Emerenciano - Entre A Representação e A Materialidade

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EMERENCIANO : ENTRE A REPRESENTAÇÃO E A MATERIALIDADE

Primeiro uma questão:


Pode a representação, uma representação particular, anular a representatividade nos seus
limites naturais, na sua universalidade uniforme?
Questão fortemente teórica, sobretudo enquanto enuncia o problema dos limites do próprio
teórico. Mas também questão eminentemente prática enquanto coloca o problema (quase
ético) da possibilidade de um particular anular a essência.
Questão que, na sua simultânea complexidade e singularidade extremas, parece conter uma
aproximação da aventura pictóricometafísica de EMERENCIANO: toda a pintura de
EMERENCIANO se institui como resposta possível a essa questão. Todavia, esta pintura,
como toda a pintura não meramente discursiva, inclui uma fragilidade intrínseca: é que a
colocação da questão, como a eventual resposta achamse, entre si, numa deslocação
essencial: a que viabiliza o próprio dispositivo na sua globalidade, ou seja, torna possível a
enunciação da questão limite, mas que, ao mesmo tempo, introduz a dimensão da leitura no
seio do discurso que o texto artístico inevitavelmente é ou contém. É por isso que uma
pintura que nos coloca perante este tipo de problemas suscita, às vezes, o seu entendimento
como fruto de uma experiência primitiva, uma experiência do não exprimível, precisamente
como forma de tentar tornear aquela exigência, numa aproximação mítica do que seria a
verdadeira obra.
Depois, uma constatação:
tornada visível pela pintura de EMERENCIANO tal como (aqui) se apresenta: a da sua
transformação densa e rigorosa. Uma evolução que não é apenas técnica ou propriamente
pictórica, mas essencialmente pictóricometafísica. Tratase, afinal, da descrição de uma
sucessão de relações primordiais de que a própria pintura se institui como imagem crítica.
Lugar onde a experiência não é primitiva, nem irrepetível nem inexprimível. Lugar da
experiência como facto complexo. Como feito de relações múltiplas. Como suposição do que,
no seu interior, é já interpretação.
E assim, a leitura:
os primeiros quadros (as primeiras formas do texto) como a afirmação do sentido através da
escrita, uma afirmação autorepresentada e universal, indiciada pela utilização obsessiva da
totalidade espacial do quadro; uma afirmação absoluta, portanto, contínua e continuada.
Mas esta continuidade é, a partir de um determinado momento, rompida através de dois
acontecimentos paralelos e simultâneos:por um lado a emergência do símbolo, que pode ser a
espiral fechada, as letras ou, em alguns casos, o aparelho fonador, verdadeiro macrosímbolo,
enquanto indicia a presença do sujeito e das fixações significativas por ele introduzidas; a voz
como excesso (ou resíduo) irreconduzível ao sentido préinscrito, mas instaurador de novas
determinações; por outro lado, a emergência de ambiguidades ou pluridimensões
significativas através da irrupção de uma materialidade que não cabe nas cartas da escrita
absoluta. O reconhecimento dessa exterioridade, não apenas como excesso, não como
oposição de naturezas semelhantes (e, eventualmente, concorrentes), mas como o totalmente
outro: a partilha do espaço pictórico entre escrita, símbolo e materialidade não significada, o
suposto primeiro objecto da representação. E o quadro constróise como lugar da batalha entre
estes espaços de sentido: a maneira como eles se compõem e recompõem, no que dirseia
re/de composição eterna, as formas que daí nascem como quasecomentário ao que seria a
forma ideal (idealizada) da pintura de EMERENCIANO. Mas este comentário não é, como se
poderia pensar, algo de marginal ou de aleatório em relação ao que seria a verdadeira pintura
de EMERENCIANO, aquela forma ideal que se procuraria. A pintura de EMERENCIANO
está realizada, na sua essencialidade como na sua idealidade. Aquele comentário é,
paradoxalmente, a discussão do que, ao mesmo tempo, é afirmado; é a contestação do que é
dito, a expressão máxima da luta entre os componentes do quadro da representação onde
(como em Hegel) não pode haver anulação.
A pintura de EMERENCIANO é assim a expressão da impossibilidade de representação
enquanto representação total. A representação do acto pelo qual a representação se anula a si
mesma ao introduzirse no universo que, supostamente, representaria e assim se afirma como
singularidade.

E a escrita ainda, aqui; esta sobre a outra, por ela, necessariamente. Representação ainda e
final porque pobre e condenada ao apagamento. Tão depois dela e sem ela, o que esta fez
objecto será sujeito de si mesmo, sem reflexo nem imagem. Na sua verdade, instituidora dela,
apenas dela objecto.

Porto, Janeiro de 1991


Rui Magalhães

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