Douglas Maris Antunes Coelho
Douglas Maris Antunes Coelho
Douglas Maris Antunes Coelho
Guarulhos
2016
DOUGLAS MARIS ANTUNES COELHO
Guarulhos
2016
1
COELHO, Douglas Maris Antunes.
145 f.
2
DOUGLAS MARIS ANTUNES COELHO
Aprovação: ___/___/_____
_________________________________________________________________
_
Prof. Dr. Fábio Franzini
Universidade Federal de São Paulo
_________________________________________________________________
_
Prof. Dr. Cássio da Silva Fernandes
Universidade Federal de São Paulo
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso Jr
Universidade Estadual de São Paulo
3
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao professor Fábio Franzini por ter acreditado no potencial do meu projeto e
por suas aulas, sugestões, análises cuidadosas, que transformaram uma ideia confusa em uma
dissertação de mestrado. Além disso, pelas conversas francas, por toda a autonomia na
pesquisa e disposição em ajudar.
Sou grato também à universidade pública, e em particular à Unifesp, sem a qual
dificilmente teria a oportunidade de cursar a pós-graduação. A todos os professores do
Programa com quem tive o prazer de ter aulas: João Adolfo Hansen, Luís Filipe Silvério
Lima, Maria Rita de Almeida Toledo, Luigi Biondi. Gratidão extensiva ao professor Cássio
da Silva Fernandes, do Departamento de História da Arte da Unifesp, que com enorme
gentileza participou da minha qualificação, trazendo um exame cuidadoso, com indicações
extremamente valiosas para a composição deste trabalho.
Meus agradecimentos vão também ao professor Hélio Rebello Cardoso Jr., da
Universidade Estadual Paulista, campus de Assis, que mesmo após seis anos do término da
minha graduação continua presente em minha memória com suas ótimas aulas, conversas,
atenciosas observações. Ademais, por ter participado e contribuído nesta nova fase da minha
vida.
À minha família: a matriarca Dona Maria das Dores Maris; a linda e batalhadora
Márcia Cristina Maris, minha querida mãe, sempre sorridente e encorajadora; as minhas
adoráveis irmãs, Carolina Maris Altelino e Stela Maris, eternas companheiras, que nunca
deixaram de me ajudar e me apoiar. Esse passo que dou também é de todas vocês!
Aos meus amigos “paulistanos” que me receberam de corações abertos nessa difícil
empreitada que é viver em São Paulo: a Kátia Fire, amiga de longa data que sempre me enche
de prazer em reencontrá-la; o Lucas Almeida (Potyra) e a Dona Hermínia, que
constantemente me apoiaram e sem os quais nem teria prestado a prova de mestrado da
Unifesp; o (B)Marcus Vinícius, que me recebeu muito bem em sua casa; assim como o Fábio
Donizete e toda sua família, que transformaram a experiência da vida da metrópole em algo
bem menos tenso.
4
Por fim, agradeço à linda Thaís Mendes, que com muita calma e tranquilidade me
apoiou nos momentos mais difíceis, com leituras meticulosas, correções pertinentes,
companheirismo e com todo respeito ao trabalho acadêmico.
5
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo abordar e analisar as reflexões sobre feitiçaria e
cultura popular desenvolvida pelo historiador italiano Carlo Ginzburg durante os quinze
primeiros anos de sua produção intelectual (1961-1976). A investigação parte das possíveis
influências e interlocuções das obras de Ginzburg com a produção de outros historiadores, em
particular Delio Cantimori e Aby Warburg, intelectuais essenciais para a concepção de seus
primeiros livros no que se refere às temáticas e métodos implicados no processo da escrita
histórica. Posteriormente, a atenção voltar-se-á à crítica interna dessas obras do historiador
italiano, Os andarilhos do bem e O queijo e os vermes, atentando-se à emergência das
tensões, interlocuções e preocupações metodológicas e políticas nelas presentes.
6
7
ABSTRACT
The present work intends to approach and analyze the reflections on witchcraft and
popular culture developed by the Italian historian Carlo Ginzburg in the first fifteen years of
his intellectual career (1961-1976). The research begins with an investigation on the possible
influences and interlocutions between Ginzburg and other historians, particularly Delio
Cantimori and Aby Warburg, essential influences for the conception of Ginzburg’s first
books regarding to subjects and methods implicated in the process of historical writing.
Posteriorly we focus our attention in the internal analysis of the books The Night Battles and
The cheese and the worms, considering the emergence of tensions, interlocutions as well as
political and methodological concerns within such works.
Keywords: Carlo Ginzburg. Witchcraft. Popular Culture. Delio Cantimori. Aby Warburg.
8
SUMÁRIO
Introdução ……………………………………………………………………………….... 9
Capítulo 1: Delio Cantimori e Aby Warburg: As Marcas de uma Hermenêutica da
cultura……………………………………………………………………………………... 15
1.1 A História como escolha da erudição..………………………………………… 15
1.2 Delio Cantimori: A filologia hermenêutica a serviço do estudo da heresia..….. 20
1.3 Aby Warburg, entre História da Arte e a História da Cultura……………….. 34
1.4 Hermenêutica e a Filologia..………………………………………………….... 49
Capítulo 2: Entre mentalidade e cultura: Conflito de Classes……………………….... 53
2.1 Feitiçaria: piedade popular e privação social…..………………………………. 53
2.2 Os andarilhos do bem: entre a crença e a inquisição…..………………………. 59
2.3 Os limites da interpretação histórica…..……………………………………….. 63
Capítulo 3: Cultura Popular: circularidade entre erudito e subalterno………………. 83
3.1 Religião popular: o “baixo” como elemento transformador...………………. 83
3.2 O universo cultural de Domenico Scandella, detto Menocchio…..……………. 88
3.3 Por uma História sobre o popular…….………………………………………... 93
3.4 A recepção crítica de O queijo e os vermes…….…………………………….... 95
9
INTRODUÇÃO
1
GINZBURG, Carlo. Il formaggio e i vermi. Il cosmo di un mugnaio del '500. Torino: Giulio Einaudi. 1976. No
Brasil o livro foi lançado em 1987, pela editora Companhia das Letras, com o título O Queijo e os Vermes. O
cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição.
2
Dentre tais debates, aquele em que Ginzburg discutiu com Hayden White acerca de questões epistemológicas,
conceituais e éticas envolvidas na prática do historiador, por ocasião de um simpósio realizada na Universidade
da Califórnia – Los Angeles em 1990, foi um momento marcante da historiografia contemporânea, embora até
hoje suas motivações e implicações não tenham sido devidamente avaliadas. Boa parte dos textos apresentados
neste simpósio, incluindo os de Ginzburg e White, encontra-se no livro organizado pelo promotor do evento: cf.
FRIEDLANDER, Saul (ed.). Probing the limits of interpretation. Nazism and the “Final Solution”. Cambridge,
Mass; London: Harvard University Press, 1992. Os dois artigos também foram traduzidos para o português e
publicados em MALERBA, Jurandir (org.). A história escrita. Teoria e história da historiografia. São Paulo:
Contexto, 2006.
10
central da guerra civil americana. Anos depois, em 1968, o mexicano Luis González y
González, sem nenhum contato com Stewart, publicou Pueblo en vilo. Microhistoria de San
José de Gracia, obra que investigava a vida de uma pequena aldeia mexicana ao longo de
quatro séculos. O termo, aqui, era assumido como sinônimo de história local, atenta ao
aspecto qualitativo da pesquisa. Fernand Braudel também fez referência a certa microstorie
em suas reflexões, entendendo-a, segundo Ginzburg, como sinônimo de histoire
événementielle e, como tal, com conotações negativas, supostamente por impossibilitar a
3
construção do conhecimento científico.
No caso italiano, a expressão acabou por sintetizar e expressar as preocupações de
alguns historiadores em dar respostas alternativas tanto às abordagens provincianas marcadas
4
pela historiografia tradicionalmente local do país, quanto às abordagens quantitativas
5
francesas, centradas na longa duração de uma História quase imóvel. Os primeiros elementos
do que viria a ser a microstoria emergem no início da década de 1970, com “discussões em
6
torno da História social, dos estudos de famílias e comunidades, da antropologia histórica”,
promovidas por Edoardo Grendi, Angelo Ventura, Ernesto Galli Della Loggia, Raffaele
Romanelli. Em fins da mesma década, “micro-história” já aparecia como título de um dos
números da revista Quaderni Storici, periódico que, desde 1966, desempenhava papel
singular no ambiente universitário do país graças à sua preocupação em trazer a dimensão
local como um campo de experimentação tendo como base uma metodologia interdisciplinar,
7
o que o tornou “alvo central de polêmicas e objeto de balanços historiográficos”. Pouco
depois, a mesma revista batizaria uma coleção de monografias publicada pela editora
Einaudi, de Turim, sob a direção de Ginzburg, Levi e Simona Cerutti e, por extensão,
passaria a ser também o elemento identificador das reflexões, práticas e produção de um
grupo formado por nomes como Edoardo Grendi, Giovanni Levi, Gérard Delille, Carlo Poni
3
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.
250-253.
4
ESPADA LIMA, Henrique A micro-história italiana. escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006, p.28
5
MUIR, Edward. Introduction: observing trifles. Disponível em http://mamaynooth.freeservers.com/muir.htm.
Acesso em 05/10/2016.
6
Ibidem, p. 59.
7
ESPADA LIMA, Henrique. Op. cit. . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 60.
11
e, claro, Carlo Ginzburg. O contato com a ideia de uma “micro-história” remontaria, assim,
aos debates em torno da revista Quaderni Storici, e, de acordo com o historiador turinês, os
primórdios dessas reflexões em torno da micro-história se caracterizaram pela falta de
definição prévia:
(...) a primeira vez que ouvi falar de “micro-história” foi em 1977 ou 1978, da
boca de Giovanni Levi. Acho que me apoderei dessa palavra nunca ouvida sem
pedir elucidações sobre o seu significado literal: devo ter-me contentado, imagino,
com referência à escala reduzida da observação que o prefixo “micro” sugere.
Lembro-me bem, no entanto, de que as nossas conversas então falavam de
“micro-história” como uma etiqueta colada numa caixa historiográfica a ser
8
preenchida.
8
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.
249.
9
Cf. HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
10
GRENDI, Edoardo. Repensar a micro-história. IN: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escala. a experiência da
microanálise. Rio de Janeiro: Ed. Fund. G.Vargas, 1998, p. 261.
11
Ibidem,
12
Ibidem,
12
e a cultura popular, em busca, mais especificamente, da dinâmica da produção dessas
reflexões. A análise partirá das possíveis influências de Ginzburg com a produção de outros
historiadores, em particular Delio Cantimori e Aby Warburg; intelectuais essenciais para a
concepção de seus primeiros livros no que se refere às temáticas e métodos implicados no
processo da escrita histórica. Posteriormente, a atenção voltar-se-á à crítica interna da obra do
historiador italiano e, com isso, espera-se favorecer a emergência das tensões, interlocuções e
preocupações metodológicas e políticas presentes em sua produção. Para desenvolvê-la,
13
escolheu-se um fio que parte de seu primeiro artigo, “Feitiçaria e piedade popular” (1961),
no qual se atenta à feitiçaria em períodos anteriores à época moderna como uma possível
14
“luta de classe”; passa pelo seu primeiro livro, Os andarilhos do bem (1966), que se centra
na concepção de bruxaria como embate de mentalidades e como resultado da sobreposição
hegemônica das crenças dos inquisidores sobre os camponeses acusados; e chega até O
queijo e os vermes (1976), com sua preocupação com os conflitos e as trocas culturais entre
“alto” e “baixo” a partir da reconstituição das leituras do moleiro Menocchio. Com isso,
buscar-se-á os nexos de uma produção de quase duas décadas do historiador – nexos que não
são necessariamente consensuais e coerentes –, verificando-se neles e a partir deles as marcas
de uma forma muito específica de se fazer História.
O primeiro capítulo, assim, analisa a produção intelectual de Delio Cantimori e Aby
Warburg, em busca de sinais que indiquem, ou sugiram, possíveis conexões com as primeiras
produções de Carlo Ginzburg. Como veremos, ambos os autores, ainda que cada qual à sua
maneira, lançaram mão de aspectos da hermenêutica filológica, na medida em que se
apropriaram da redução de escala, de certas generalizações em âmbitos circunscritos e da
narrativa histórica como meio de compreensão e interpretação de uma realidade do passado –
características todas que também despontariam no trabalho de Ginzburg. Tanto em Os
andarilhos do bem quanto em O queijo e os vermes, Ginzburg se utiliza de técnicas da
hermenêutica, compreendendo o passado como uma realidade escondida, “com um sentido
13
GINZBURG, Carlo.“Stregoneria e pietà popolare. Note a proposito di un processo modenese del 1519.” IN:
Annali della Scuola Normale superiore di Pisa, Lettere storia e filosofia. Série II, XXX (1961), p. 269 –287.
14
Idem. I benandanti. Stregoneria e culti agrari tra cinquecento e seicento. Torino, Einaudi, 1966. No Brasil,
publicado em 1989, pela editora Companhia das Letras, com o título Os andarilhos do bem. Feitiçaria e cultos
agrários nos séculos XVI e XVII.
13
15
profundo,” passível de ser acessado e reconstituída através da narrativa histórica.
Obviamente, não se quer dizer aqui que Ginzburg seja um historiador hermeneuta por
definição, até porque a hermenêutica tem as suas próprias características e sua própria
16
historicidade; entretanto, o historiador italiano molda elementos dessa técnica interpretativa
de acordo com suas próprias demandas, assim como fez com as reflexões de Cantimori e
Warburg.
Diante da complexidade do problema, buscar-se-á analisar no segundo capítulo as
especificidades de Os andarilhos do bem, destacando a temática, os objetivos e metodologias
nele implícitas e em que medida suas reflexões ganham corpo e autonomia. A análise da
feitiçaria enquanto temática e o objetivo de reconstituir as vivências dos perseguidos pela
inquisição, a partir do questionamento dos suportes teóricos que sustentam essas reflexões de
Ginzburg em seu primeiro livro, fazem parte da crítica interna da obra, que se realiza também
com a apresentação de parte de sua recepção crítica, particularmente resenhas produzidas à
época, vistas como capazes de enunciar alguns problemas e soluções inseridas nas reflexões e
metodologias presentes na primeira publicação do historiador.
O terceiro capítulo segue no mesmo caminho do anterior, com o objetivo de
apresentar a tese central do livro O queijo e os vermes, que se altera em relação ao livro
anterior na medida em que Ginzburg assimila a leitura de outros autores, os quais passam a
dar suporte a novos aspectos teóricos e conceituais. Nos dez anos que separam as duas
primeiras publicações do historiador italiano, muitos elementos de sua perspectiva histórica
se alteram, como no caso de seu distanciamento do conceito de mentalidade; entretanto,
também há movimentos de continuidade e consolidação de ideias, como na concepção do
conflito cultural entre hereges e inquisidores, embate central nas duas primeiras publicações.
Nesse sentido, a proposta interpretativa de Ginzburg é examinada a partir de diferentes
resenhas críticas, com a pretensão de elucidar as fragilidades e potencialidades do texto,
ressaltando a importância de uma análise histórica, distante das análises teleológicas da obra
15
CARDOSO JR, Hélio Rebello. Paradigma Indiciário e História Cultural. Episteme: Porto Alegre, v.25,
p.13-33, 2007, p. 5.
16
Ibidem,
14
do historiador, que muitas vezes tendem a interpretá-lo a partir de uma visão consagrada da
micro-história italiana.
15
CAPÍTULO 1: DELIO CANTIMORI E ABY WARBURG: AS MARCAS DE UMA
HERMENÊUTICA DA CULTURA
Nas reconstruções biográficas que fez de sua vida, em entrevistas e nos prefácios de
seus livros, Ginzburg constantemente destaca os motivos que o levaram a estudar História e
influenciaram o seu interesse em pesquisar determinadas temáticas, como a feitiçaria, a partir
de abordagens metodológicas específicas, voltadas para a análise do particular. Ainda que a
memória traga consigo algumas armadilhas, os testemunhos retrospectivos servem como
indicadores, sinais apresentados pelo autor que, quando examinados criticamente, podem
elucidar aspectos de sua produção intelectual. Na entrevista concedida a Maria Lúcia
Pallares-Burke, em 1998, o historiador destaca alguns elementos relevantes presentes no
início de sua carreira:
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da história: nove entrevistas. São Paulo: Editora
17
16
leitor; afinal, sua mãe, Natália Ginzburg, é reconhecida como uma das maiores romancistas
do século XX na Itália. Na adolescência, sua experiência literária passou por Kafka, Pavese,
Dostoievski e, em particular, Tolstói em Guerra e Paz, seguidamente lembrado por Ginzburg
18
como elemento importante na construção de sua concepção da História. O escritor russo
havia abordado a invasão do seu país durante as guerras napoleônicas a partir de uma
perspectiva muito particular, contrapondo, em suas considerações sobre a História, duas
visões possíveis: a dos sujeitos heroicos e grandiosos, lineares, e a sua perspectiva mais
complexa, interessada em abordar e compreender as reações dos personagens em todas as
19
condições de vida – uma história dos homens.
Nas leituras que marcaram suas primeiras escolhas intelectuais autônomas, isto é, não
perpassadas imediatamente pelo ambiente familiar, destacam-se Leo Spitzer, Erich Auerbach
e Gianfranco Contini. Elas apresentaram a Ginzburg o interesse pela filologia textual
alimentada pela apreciação crítica e meticulosa, atenta aos detalhes da literatura, a qual não
20
deixava de investigar os textos sem considerar o contexto social de sua produção. A ligação
entre filologia e erudição parece ter sido significativa na sua escolha pela História, e remete
também aos seus primeiros anos de formação em Pisa, na Scuola Normale Superiore. Em
entrevista concedida às historiadoras Alzira Alves de Abreu, Ângela de Castro Gomes e
Lucia Lippi Oliveira, em 1990, o autor discorre sobre esse período:
18
ESPADA LIMA, Henrique A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006. p. 284.
19
Ibidem, p. 284.
20
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989,
p. 8.
17
houvesse alguém na Itália propondo os Annales como tema a um estudante que
21
não sabia do que se tratava.
Although Ginzburg's actual teachers were Cantimori and other Italian historians, his
spiritual father is clearly Marc Bloch. Several aspects of Bloch's work appeal to him
21
ABREU, Alzira Alves de; GOMES, Ângela de Castro e OLIVEIRA, Lúcia Lippi. História e Cultura.
Conversa com Carlo Ginzburg. Estudos Históricos; Rio de Janeiro, vol. 3, n. 6, 1990, p. 254 -263.
22
ESPADA LIMA, Henrique A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006, p. 288.
23
ABREU, Alzira Alves de; GOMES, Ângela de Castro e OLIVEIRA, Lúcia Lippi. História e Cultura.
Conversa com Carlo Ginzburg. Estudos Históricos: Rio de Janeiro. vol. 3. n. 6. 1990, p. 254 -263.
18
and appear to have influenced the directions in which he has moved. First, he is
impressed by Bloch's resolution of fundamental problems faced by the historian,
notably the latter's assertion that philological expertise and systematic critical and
analytical thinking make history a real "science," in spite of the fact that historians
cannot replicate in the laboratory the events that they study. He is particularly
interested in Bloch's emphasis on the kinds of detective procedures required for
making sense out of "irrational" phenomena like rumors and mass delusions.
Furthermore, he stresses the French historian's predilection for curious, apparently
24
marginally important historical occurrences – belief in “the king's touch”.
Uma ocasião, quando eu ainda estudava em Pisa, fui a Londres visitar minha
mãe, que se havia casado novamente com um professor de literatura inglesa em
Roma. Eles estavam em Londres, e fui encontrá-los. Cantimori também estava
lá, e me levou para conhecer o Warburg Institute. Fiquei fascinado pelo
instituto, pela história da arte, pela possibilidade de trabalhar com história da
arte numa perspectiva mais ampla. Em 1964, quando estava preparando meu
livro Os andarilhos do bem, ganhei uma bolsa de um mês e fui para Londres.
Trabalhei como um louco, descobri a obra de Gombrich, sobretudo Art and
illusion, comprei os livros de Saxl, voltei para a Itália com uma mala cheia de
livros. (...) Escrevi então um artigo sobre a tradição da Biblioteca Warburg, que
depois foi publicado na coletânea Mitos, emblemas, sinais. Enviei o artigo a
Gombrich, e a seu convite voltei a Londres por um ano. E isso para mim foi
muito importante. Na Itália como no Brasil, as pessoas perceberam meu trabalho
através da tradição dos Annales. Sem dúvida, os Annales foram importantes para
mim. Nos últimos 15 anos, tenho sido regularmente convidado a ir a Paris para
discutir com o grupo dos Annales. Mas acho que meu arcabouço intelectual é
25
mais heterogêneo. Houve outras coisas que me marcaram.
Cantimori e Warburg. Talvez não seja exagero afirmar que foi sobre esses dois pilares
que Ginzburg assentou e desenvolveu boa parte de sua mirada historiográfica. A relevância
de Cantimori fora salientada mais de uma vez pelo historiador, como elementos importantes
para investigar suas primeiras produções, assim como Warburg. Intelectuais com
características e abordagens próprias, que investigaram o tópico da heresia e da magia, como
24
SCHUTTE, Anne Jacobson. Periodization of Sixteenth-Century Italian Religious History: The Post-Cantimori
Paradigm Shift. The Journal of Modern History. Vol. 61. No. 2 (Jun., 1989). p. 269-315. University of Chicago
Press. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1880861. Acesso em: 05 de janeiro de 2016, p. 299.
25
ABREU, Alzira Alves de; GOMES, Ângela de Castro e OLIVEIRA, Lúcia Lippi. História e Cultura.
Conversa com Carlo Ginzburg. Estudos Históricos: Rio de Janeiro. vol. 3. n. 6. 1990, p. 260
19
crenças em contextos específicos, indagando a partir de uma erudita e cuidadosa
hermenêutica filológica, que, num diversificado e conciso entrecruzamento documental, seria
capaz de reconstituir uma determinada realidade histórica. Tanto Warburg como Cantimori
propõem em seus escritos a crítica a conceitos estilísticos ou históricos gerais como
Renascimento, Reforma e Contrarreforma, que só poderiam ser entendidos por meio da
análise do particular. Para pensar essas possíveis interlocuções é necessário seguir, mais uma
vez, alguns sinais deixados pelo próprio historiador em suas reconstruções biográficas. Ao
recordar de seus primeiros anos como estudante na Scuola Normale Superiore da
Universidade de Pisa, entre 1957 e 1958, ele afirma que:
26
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da história: nove entrevistas. São Paulo: Editora
Unesp, 2000, p. 255-256.
27
ESPADA LIMA, Henrique A micro-história italiana. escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006, p. 287.
28
Ibidem, p. 287-288.
20
Para melhor entender essa complexa relação vale apresentar uma análise particular da obra e
vida de Cantimori, assim como no caso de Aby Warburg, para ressaltar em que medida
ambos se conectam com os livros de Ginzburg.
29
CANTIMORI, Delio. Eretici italiani del Cinquecento. Ricerche storiche. Torino: Giulio Einaudi Editore,
2009.
30
XAVIER, Felipe Araújo. A trajetória intelectual de Delio Cantimori: escritos políticos, história e
historiografia. 2015. Tese de doutorado em História: narrativas, imagens e sociabilidade – Faculdade de História
da UFJF. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora.
31
Intelectual nacionalista que durante o processo de unificação da Itália, em fins do século XIX, se opôs
veementemente a Monarquia, defendendo a construção de uma República, servindo de aparato ideológico para
futuros movimentos de cunho fascista no país. PERTICI, Roberto. Mazzinianesimo, fascismo, comunismo:
l’itinerario politico di Delio Cantimori (1919-1943.) Cromohs, 2. 1997. p.1-128. Disponível em:
http://www.fupress.net/index.php/cromohs/article/view/15809/14788. Acesso: 05 de agosto de 2016.
32
Risorgimento [em português: Ressurgimento] é um termo historiográfico que se refere ao complexo contexto
de transformações políticas, econômicas e sociais, permeado por movimentos culturais, militares e diplomáticos,
que, em fins do século XIX, levou a Itália À unificação. XAVIER, Felipe. Op. cit. p.13
21
arquitetura urbana, em seus monumentos e nas importantes bibliotecas do período medieval -
pela presença romana, etrusca e como um importante centro de trocas comerciais entre o
Ocidente e o Oriente no medievo, devido, principalmente, à sua privilegiada posição
33
geográfica, às margens do rio Tirreno. Não por acaso, um ambiente oportuno para o estudo
da circulação de ideias heréticas na península itálica.
Em Pisa, participou, como aluno, da escola de Giovanni Gentile (1875-1944),
professor da Scuola Normale, e Giuseppe Saitta (1881-1965), professor da Università di Pisa.
Autores que, em suas respectivas obras, Giordano Bruno e Il pensiero del Rinascimento e
Marsílio Ficino e La filosofia dell’umanesimo, teriam aberto ao estudante romagnolo o
34
interesse no universo humanista italiano. No prefácio do livro sobre os heréticos do
Cinquecento, Cantimori destaca a importância de Gentile e sua obra para sua interpretação:
33
FERNANDES; Cássio da Silva. Delio Cantimori. Um diálogo com a História da Cultura. In: OLIVEIRA,
Mônica Ribeiro de e ALMEIDA, Carla Maria de (orgs.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: FGV,
2009. p. 117.
34
Ibidem, p. 117.
35
CANTIMORI, Delio. Eretici italiani del Cinquecento. Ricerche storiche. Torino: Giulio Einaudi Editore,
2009, p. 9
36
FERNANDES, Cássio da Silva. Delio Cantimori: um diálogo com a História da Cultura. In: OLIVEIRA,
Mônica Ribeiro de e ALMEIDA, Carla Maria de (orgs.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: FGV,
2009, p. 118.
22
suas traduções de autores da Antiguidade Clássica e o estudo de reflexões neoplatônicas, fora
37
essencial para o rompimento com o pensamento medieval e o início da modernidade.
37
XAVIER, Felipe Araújo. A trajetória intelectual de Delio Cantimori. escritos políticos, história e
historiografia. 2015. Tese de doutorado em História: narrativas, imagens e sociabilidade – Faculdade de
História da UFJF. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora. p. 49
38
FERNANDES. Cássio da Silva. Op. cit. p. 119.
39
CANTIMORI, Delio. Eretici italiani del Cinquecento. Ricerche storiche. Torino: Giulio Einaudi Editore,
2009, p. 11.
23
História e ideia dos homens, destaca o deslocamento do problema de cunho filosófico para o
âmbito da História. No centro dessa mudança analítica, o autor evidencia a oportunidade de
pesquisar os heréticos para fora da Itália:
Focando seus estudos em Basileia, Cantimori depara-se com uma região marcada pelo
intenso convívio herético nos círculos heterodoxos, formados, em grande parte, por
perseguidos religiosos italianos, que encontraram no local um ambiente de tolerância para
suas ideias. Região que, durante a época moderna, caracterizou-se por ser uma cidade-estado
com substancial autonomia, integrando parte das rotas comerciais mais importantes do
continente europeu, o que acabou por favorecer um local que combinava cosmopolitismo e
41
provincianismo. A passagem por Basileia teria contribuído para a virada na interpelação
nacionalista dos hereges, abrindo espaço para uma forma diferente de problematização, a qual
partiria para a concretude da tradição intelectual, concebida na individualização dos grupos,
42
por meio de trocas comerciais e culturais entre indivíduos, num dado momento histórico.
De acordo com Cássio Fernandes:
40
Ibidem, p. 11-12.
41
XAVIER, Felipe Araújo. A trajetória intelectual de Delio Cantimori. escritos políticos, história e
historiografia. 2015. Tese de doutorado em História: narrativas, imagens e sociabilidade – Faculdade de
História da UFJF. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora. p.74.
42
Ibidem, p. 80.
24
ainda, logo após a morte de Erasmo, à influência direta dos humanistas italianos
43
(dos hereges, que Cantimori buscava).
Nesse sentido, o autor passa a propor a aproximação da vida concreta dos homens, na
individualização dos grupos heréticos, e como se estabelecia a rede de suas relações,
buscando conhecer a formação, o crescimento e a difusão de suas ideias de modo concreto,
na leitura precisa, de texto a texto, de homem a homem, deixando de pensar em correntes de
46
pensamentos para focar e se concentrar em contextos específicos. E é nessa perspectiva que
43
FERNANDES, Cássio da Silva. Delio Cantimori. um diálogo com a História da Cultura. In: OLIVEIRA,
Mônica Ribeiro de e ALMEIDA, Carla Maria de (orgs.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: FGV,
2009. p.120.
44
MICCOLI, Giovanni. La ricerca storica come “storia positiva”. Studi Storici. Bari: Edizioni Dedalo, 1993, p.
757-768. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/20565585. Acesso: 05 de agosto de 2016, p. 758.
45
CANTIMORI, Delio. Eretici italiani del Cinquecento. Ricerche storiche. Torino: Giulio Einaudi Editore,
2009, p. 13.
46
MICCOLI, Giovanni. Op. cit. p. 759.
25
o autor concebe o livro sobre os hereges italianos do século XV, numa abordagem de trocas
concretas entre personagens. A organização dos seus capítulos é esclarecedora nesse sentido:
“A imigração italiana a Zurique e a Basileia”, “Curione em Basileia. Curione e Bullinger”,
“Os amigos basileenses de Curione: David Joris, M. Borrhaus, S. Castellione. A atmosfera
mística e iluminada do círculo de Basileia”, “Fausto Sozzini em Basileia”, “Aconcio na
Inglaterra”, “Cracóvia e os hereges italianos”, “Um seguidor de Occhino e de Lelio Sozzini
47
em Zurique (Anton Mario Besozzi), e o seu processo”, “O processo de Curione”.
Os hereges passam a ser interpretados a partir do complexo mundo dos movimentos
religiosos, tendo como base a filologia na análise da vida desses homens reformadores,
considerados “irregulares”, portadores de uma mentalidade laica e com o cerne da
transformação social, por conseguir aproximar das massas a intelectualidade de seu tempo.
Indivíduos singulares, mas não isolados, que encontravam um ambiente fecundo da “heresia
popular”, e da “heresia social” renascentista. O destaque da pesquisa estava no interesse
relacional entre a intelectualidade herética e o universo anabatista, em que Cantimori
reforçava a presença de uma interação entre letrados e grupos populares e a diluição desses
48
saberes entre as massas:
Ad ogni modo, nel Cinquecento troviamo all' origine e come punto d'incontro di
tutte le tendenze ereticali, L'anabattismo; e non soltanto in quel senso generico
onde veniva chiamato anabattista tutto quel che non poteva venir designato
secondo regole fisse nel campo religioso, mas anche nel senso especifico di
movimento radicale a carattere sociale e teologico insieme, che cioè manifestava il
suo radicalismo ponendo la esigenza di una società cristiana assolutamente nuova,
fondata non sulla trasmissione oggettiva dei carismi o dei ministerî divini, mas
sulla volontà e sulla convinzione personale. Nell'anabattismo e nei movimenti che
attorno ad esso presero vita, confluivano L'insoddisfazione dei ceti popolari e di
menti radicale per il trasformarsi dell'impulso originario della riforma protestante,
con' essi lo avevano intenso, da rivoluzionario in tutore dello stato territoriale
assolutistico o cittadino e borghese; L'impulso della affermazione della verità
qualunque essa sia; e infine il realismo razionalistico e prammatistico
dell'umanesimo, tendente alla effettuazione pratica immediata delle idee e dei
49
principî ritenuti giusti e veri, fiduciosa nelle possibilità individuali dell'uomo.
47
FERNANDES, Cássio da Silva. Delio Cantimori: um diálogo com a História da Cultura. In: OLIVEIRA,
Mônica Ribeiro de e ALMEIDA, Carla Maria de (orgs.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: FGV,
2009, p.121
48
BERENGO, Marino. La ricerca storica di Delio Cantimori. In: Rivista storica italiana. p.1-49. Nápoli, 1967,
p. 23.
49
CANTIMORI, Delio. Eretici italiani del Cinquecento. Ricerche storiche. Torino: Giulio Einaudi Editore,
2009, p. 45
26
O livro sobre os heréticos apresentava o século XV a partir de problemas teológicos,
nos quais o genérico termo Anabatismo se configura como ponto de encontro de diferentes
tendências profanas e, por isso, não poderia ser concebido com regras fixas. Mas, segundo
Cantimori, é no Anabatismo que estaria o cerne do movimento radical protestante, guardando
em si a negação dos sacramentos cristãos e a idealização de universo permeado pelo juízo
individual e não divino. Movimento que traz para si reflexões de problemas religiosos, antes
reservadas apenas aos clérigos, e que, após a laicização, passa a ser foco da reflexão de
diferentes grupos humanistas, que criam condições de emergência de uma nova consciência
religiosa a partir da popularização de suas concepções. Como diz o autor:
Al primi del Cinquecento, in Italia, col ritorno umanistico alla letteratura cristiana
patristica e a quella che allora su chiamava teologia “positiva”, dai motivi piú
immediatamente religiosi e pratici, anche i problemi della teologia “scolastica’,
elaborati attraverso concetti filosofici il pensiero religioso, cessavano di essere
riservati pressoché esclusivamente al clero. La dottrina della religione e della
teologia divenivano problemi di vita prevalentemente intellettuale, tanto attraverso
il trasformarsi della compagine del clero in senso laico e attraverso il diffondersi
della nuova cultura anche religiosa, teologica. Dopo il Savonarola, la tendenza dei
laici a occuparsi di problemi religiosi assumeva una maggiore energia e un
carattere particolare; L’interesse dell’ umanesimo per i problemi religiosi non era
solo di carattere filosofico generale, ma anche teologico ed etico-politico,
volgendosi a problemi che fino a quel momento si solevano riservare al clero,
50
regolare o secolare, a causa delle loro implicazioni pratiche.
50
Ibidem, p. 15.
27
religiosos, colocando-se como um homem de cultura contra os clérigos e as questões
51
teológicas.
A relevância de Valla no direcionamento das pesquisas de Cantimori seria essencial
não só como objeto de estudo, mas, principalmente, no aspecto do desenvolvimento
52
metodológico da pesquisa. O direcionamento para análise hermenêutica filológica com o
objetivo de conhecer o verdadeiro significado das palavras, conjuntamente com a elaboração
de conceitos precisos, visando à compreensão de relações específicas em expedientes
históricos também específicos, estaria ligada com o estudo de Lorenzo Valla e sua
importância no fornecimento do alicerce para a reforma italiana:
51
Ibidem, p. 16.
52
XAVIER, Felipe Araújo. A trajetória intelectual de Delio Cantimori. escritos políticos, história e
historiografia. 2015. Tese de doutorado em História: narrativas, imagens e sociabilidade – Faculdade de
História da UFJF. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora. p.112.
28
impegnavano i valori fondamentali della vita, i rapporti fra uomo e uomo e uomo
53
e Dio.
A importância da filologia como instrumento político, usada por Valla para questionar
assuntos eclesiásticos colocava em xeque princípios de divindade e de essência do
catolicismo, minando mitos sobre o qual a Igreja se legitimava. As reflexões de Valla
representariam uma das matrizes da entrada secular nos debates sobre programas
eclesiásticos e um importante instrumento metodológico de pesquisa. Conjuntamente com
suas ideias, Cantimori destaca a relevância das ideias do filósofo humanista Marsilio Ficino
(1433-1499), no ambiente florentino, e suas ponderações neoplatônicas a respeito dos
dogmas religiosos:
53
Ibidem, p. 15-16.
54
Ibidem, p.17-18.
55
BERENGO, Marino. La ricerca storica di Delio Cantimori. In: Rivista storica italiana. pp.1-49. Nápoli, 1967,
p. 27
29
segundo Giovanni Miccoli, passa a ter interesse na vida intelectual dos homens do
Renascimento, de suas ideias e conceitos, mas nega qualquer pressuposto generalizante, na
medida em que as conclusões são fruto de pesquisas circunscritas, levando em consideração a
singularidade dos acontecimentos históricos. Perspectiva que se contrapunha à História do
tipo hegeliana, geistesgeschichtlich, sustentada na concepção do espírito imanente do
homem, voltada a seguir um fio ideal que desconsiderava as variações do expediente
histórico, acabando por não se referir à realidade do passado. Com isso, pretendia evitar um
duplo anacronismo:
Allora, la questione per Cantimori restava quella della storia di un nucleo di idee -
quelle degli eretici italiani del Cinquecento - e del modo di studiarle: e, rispetto al
modello- piú vicino e importante, quello offerto dagli studi del Ruffini, gli
premeva chiarire la differenza del suo punto di árttenza, che non era rivolto al
contributo astratto di quegli uomini al formarsi della moderna concezione della
tolleranza ma della funzione politica svolta da quelle idee in un rapporto tra alta
cultura e popolo italiano. C’era un'opposizione fra L’illuminismo di Ruffini e il
57
romanticismo di Cantimori, per usare due grandi etichette.
56
MICCOLI, Giovanni. La ricerca storica come “storia positiva”. In: Studi Storici. Bari: Edizioni Dedalo, 1993,
pp.757-768. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/20565585. Acesso: 05 de agosto de 2016, p. 760.
57
CANTIMORI, Delio. Eretici italiani del Cinquecento. Ricerche storiche. Torino: Giulio Einaudi Editore,
2009, p. xxxiv.
30
Para Cantimori, a ideia de tolerância não seria resultado apenas de discussões
jurídicas ou do Direito canônico, mas de doutrinas teológico-políticas que tinham sua origem
no pensamento dos hereges do século XVI. Nesse sentido, o conceito de tolerância passaria a
ser central na análise, pois significaria a “superação da posição dogmático-mitológica dos
58 59
problemas teológicos”, sendo essa a maior conquista dos heréticos italianos.
Non interessa la storia positiva di queste idee, non può interessare se si accetta il
punto di vista giuridico, che trova un’importanza ed un significato nel movimento
ereticale italiano fra i riformatori solo nella loro polemica in nome della tolleranza.
Se si esce dal punto di vista strettamente giuridico, e si considerano anche le
implicazioni politiche di quella posizione giuridica e di diritto canonico, si ha subito
un’interessante osservazione da fare: gli eretici mettono in dubbio la liceità pel
cristiano di assumere cariche statali, e specificamente di entrare nella
“magistratura”: conseguenza della prima negazione, che il magistrato debba
occuparsi di punire i dissidenti religiosi. Ma a questo punto occorre considerare
dall’interno lo sviluppo delle idee ereticali: non si tratta solo di una conseguenza
della discussione giuridica, si tratta di una particolare dottrina teologico-politica,
radicata nel pensiero religioso di quegli eretici, come nel sommuoversi di vaghe
60
aspirazioni sociali in quell’epoca.
Cantimori’s “heretics” were not ordinary Protestants. He, in fact, from very early
in his studies, distinguished two main components, one orthodox, another
heterodox, among the Italian refugees compelled to find haven outside the
peninsula. (...) These “heretics narrowed the gap between God and man, elevated
the role of reason in religion, and sought to minimize the grounds for intolerance
and controversy by reducing Christianity to a few basic doctrines on wich all
58
XAVIER, Felipe Araújo. A trajetória intelectual de Delio Cantimori: escritos políticos, história e
historiografia. 2015. Tese de doutorado em História: narrativas, imagens e sociabilidade – Faculdade de
História da UFJF. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora. p. 115
59
Ibidem, p. 115.
60
CANTIMORI, Delio. Eretici italiani del Cinquecento. Ricerche storiche. Torino: Giulio Einaudi Editore,
2009, p.xxxiv.
61
XAVIER, Felipe Araújo. A trajetória intelectual de Delio Cantimori: escritos políticos, história e
historiografia. 2015. Tese de doutorado em História: narrativas, imagens e sociabilidade – Faculdade de
História da UFJF. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora. p.116
31
people could agree. (...) As a consequence, they were among the first champions
of religious toleration and of ethical rather than theological concerns in the
62
sixteenth century.
62
TEDESCHI, John. The Sixteenth Century Journal 40, n. 1 (2009): pp.148-151. Disponível em:
http://www.jstor.org/stable/40541129. p.149.
63
CANTIMORI, Delio. Eretici italiani del Cinquecento. Ricerche storiche. Torino: Giulio Einaudi Editore,
2009, p. 45
32
A pesquisa de Cantimori opunha-se à Europa das nações e à historiografia que
compreendia a Europa a partir do conceito romântico de “nação”. Ao mesmo
tempo, e também de maneira velada, ele mostrava a impossibilidade de separar as
raízes históricas formadoras dos povos que vivem, no século XX, sob a égide dos
64
estados nacionais.
Va messo, infine, sul conto di quegli anni non solo l'interesse per Marx e la lettura
di Lenin, ma anche L'inizio del rapporto con Emma Mezzomonti che non poté
andare disgiunto dalla rivelazione di un diverso orizzonte di lotta politica o
almeno di un diverso modo di vivere la politica. Nei saggi che in quegli anni
anticiparono il libro si colgono accenni singolari, poi lasciati cadere ma rivelatori
della consapevolezza che "i moti spirituali" non andavano dall'alto verso il basso,
anzi. Ed è proprio in questo contesto che la genealogia della modernità affidata ai
64
FERNANDES; Cássio da Silva. Delio Cantimori: um diálogo com a História da Cultura. In: OLIVEIRA,
Mônica Ribeiro de e ALMEIDA, Carla Maria de (orgs.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: FGV,
2009, p. 122.
65
Ibidem, p. 135.
33
professori averroisti dello Studio di Padova viene a scontrarsi con una genealogia
66
opposta, fatta di anabattismo popolare e neoplatonismo.
Importa destacar que esse movimento de interação entre populares e cultos não seria
um esquema fixo proposto em suas análises, nem mesmo o objeto de sua pesquisa, mas fruto
de estudos específicos em rede de relações histórica concretas, a partir dos círculos heréticos
da península italiana e transalpino. Segundo Fernandes, Cantimori
66
CANTIMORI, Delio. Eretici italiani del Cinquecento. Ricerche storiche. Torino: Giulio Einaudi Editore,
2009, p.xxxix.
67
FERNANDES, Cássio da Silva. Op. cit. p.113
68
Ibidem, p.123
69
WARBURG, Aby. Prefácio à edição de estudos, 1998. A Renovação da Antiguidade pagã. Rio de Janeiro:
Editora Contraponto, 2013.
70
GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. __________. Mitos, emblemas, sinais:
morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
34
importância de seu professor se destaca; afinal, fora Cantimori que lhe apresentara o Instituto
Warburg, evento esse sempre lembrado pelo italiano:
No entanto, Ginzburg não estava atento apenas às produções dos nomes ligados ao
Instituto – o que pode exemplificado no seu contato com a obra de Ernst H. Gombrich e de
Fritz Saxl, reconhecidos historiadores da arte do século XX –, mas, principalmente, à obra de
Warburg, o que se evidencia na elaboração do artigo referido acima, “De A. Warburg a E. H.
Gombrich: Notas sobre um problema de método”, publicado em 1986 no livro Mitos,
Emblemas e Sinais. Nesse sentido, a preocupação em reconstituir experiências do passado,
atrelada à análise iconográfica atenta aos detalhes que deveriam ser analisados em seu
contexto histórico específico, baseada em fontes escritas e figurativas com grande potencial
interpretativo, seria parte desses elementos favorecidos no contato do historiador com a obra
de Warburg.72
71
Ibidem, p. 9.
72
ESPADA LIMA, Henrique A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006, p. 295
73
WARBURG, Aby. Prefácio à edição de estudos, 1998. A Renovação da Antiguidade pagã. Rio de Janeiro:
Editora Contraponto, 2013, p. xviii
35
centradas na temática da presença da tradição clássica na civilização europeia. Um
colecionismo entrelaçado com o interesse pelo conhecimento da história do humanismo que
se materializa na organização da própria biblioteca. Para Warburg, os livros não eram apenas
objetos de pesquisa: a sua organização e agrupamento por temáticas, e não por ordem
alfabética ou aritmética, expressariam problemáticas das permanências e mutações do
74
pensamento da humanidade.
No entanto, ao longo dos anos a biblioteca superou as fronteiras de suas pesquisas
ensaísticas e monográficas, passando a integrar um grupo de estudiosos ligados à
Universidade de Hamburgo. Transformada em Instituto em 1920, com o auxílio de sua
família, proporcionou o encontro de diferentes intelectuais continuadores de seus estudos e
tantos outros, que ocupariam importantes cátedras na região. Figuras como Fritz Saxl, amigo
e discípulo, Ernst Cassirer, Erwin Panofsky, Karl Reinhardt, Edgar Wind e Ernst Gombrich,
que fundam em 1924, conjuntamente com Warburg, a Die Kulturwinssenschaftliche
Bibliothek Warburg (Biblioteca Warburg sobre Ciência da Cultura), que promovia palestras e
75
conferências públicas.
Mesmo após a morte de seu fundador, em 1929, e do difícil momento de
desintegração do continente europeu marcado pela Primeira Guerra Mundial, Saxl e Wind
deram continuidade ao Instituto, transferido para Londres em 1933 diante da ascensão do
Terceiro Reich. Em 1944, passou a integrar a Universidade de Londres, favorecendo a
expansão da Instituição ligada ao nome de Warburg, abrangendo milhares de livros, que
representa hoje a mais importante e famosa biblioteca de história da cultura e da arte. Guarda
em sua estrutura a organização idealizada pelo seu criador, a qual seguia o pressuposto da
“boa vizinhança”, reservando a cada livro um contexto individual, onde sua divisão em
andares é composta por quatro amplas áreas do conhecimento humano: orientação, associada
à religião, ciências naturais e filosofia; imagem, ligado ao amplo sentido de artes plásticas;
língua, seria toda a área da literatura da Antiguidade e seus sucessores, e por fim, ação,
74
FERNANDES, Cássio da Silva. Aby Warburg entre a arte florentina do retrato e um retrato de Florença na
época de Lorenzo de Médici. História: Questões e debates, Curitiba, n.41, p. 131- 165, 2004.
75
FERNANDES, Cássio da Silva. Aby Warburg entre a arte florentina do retrato e um retrato de Florença na
época de Lorenzo de Médici. História: Questões e debates, Curitiba, n.41, p.131- 165, 2004, p. 134.
36
76
englobando todo campo da história, do social e político. Segundo Edgard Wind, seria uma
“biblioteca que se define expressamente a partir do próprio modo científico-cultural de
77
operar”.
Durante sua vida, Warburg optou por não tornar público a reunião de seus escritos,
agrupados, porém não publicados, apenas em 1921, por Saxl. O grave estado de saúde que o
fez se internar por seis anos numa clínica psiquiátrica em Kreuzlingen, na Suíça, deixou claro
para Saxl que seria conveniente revisar os escritos de seu mestre visando uma futura
publicação, porém teve seu projeto adiado com o retorno de Warburg em 1924, que
totalmente recuperado, voltou a assumir a chefia do Instituto. Somente após sua morte é que
seus escritos foram editados e publicados, intitulado Gesammelte Schriften (Escritos
Selecionados), foi lançado em 1932, em momento pouco propício e conturbado da História
78
da Alemanha, o que favoreceu a pouca difusão e quase nenhuma recepção. A sua devida
importância e atenção só emergiu décadas depois, principalmente em meados de 1960,
período em que Ginzburg descobre o Instituto, passando lentamente a ser traduzida em outros
79
idiomas conjuntamente com os escritos de seus seguidores. No Brasil, sua obra só foi
traduzida em 2013, pela editora Contraponto, intitulada A renovação da antiguidade pagã.
80
Contribuições científico-culturais para a história do renascimento europeu.
Filho de família de banqueiros da região de Hamburgo, Warburg nasceu em 1866 e
logo se decidiu pelos estudos no campo da História da Arte. Sua tese, defendida em
Estrasburgo, em 1891, examinava de maneira inovadora para a época, as pinturas mitológicas
do pintor florentino Sandro Botticelli (1445-1510): O nascimento de Vênus e A primavera
concebidas a partir da relação de Botticelli e o poeta e humanista florentino Angelo Poliziano
(1454-1494), pertencente do círculo de Lorenzo de Médici (1449-1492), tendo como mote a
76
WARBURG, Aby. Prefácio à edição de estudos, 1998. A renovação da antiguidade pagã. Rio de Janeiro:
Editora Contraponto, 2013, p. xx
77
WIND, Edgar. Warburgs Begriff der Kulturwissenschaft und seine Bedeutung für die Ästhetik. IN: KROIS,
John Michael; OHRT, Robertohrt (org.). Hellig Furcht und andere Schriften zum Vehältnis von Kunst und
Philosophie. Hamburg: Philo Fine Arts, 2009, pp.83-111. Tradução de Cássio da Silva Fernandes. No prelo. p.
1.
78
BING, Gertrude. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes. vol. XXVIII. Tradução de Cássio da Silva
Fernandes. No prelo. p.3
79
BING, Gertrude. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes. vol. XXVIII. Tradução de Cássio da Silva
Fernandes. No prelo. p. 3-4.
80
WARBURG, Aby. A renovação da antiguidade pagã. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013.
37
identificação de elementos figurativos do mundo antigo representados nas imagens do pintor
81
florentino.
Após os anos universitários, e sua vinculação ao curso de psicologia em Berlim, fez,
em 1896, significativa viagem à América do Norte, onde entrou em contato com os
etnógrafos da Instituição Smithsoniana de Washington, e com um dos fundadores da
antropologia cultural, Franz Boas. Durante sua estadia nos Estados Unidos, teve a
oportunidade de conhecer, na região do Novo México e Arizona, a tribo dos índios Pueblo, e
de observar formas religiosas pagãs vivas, e parte do processo de formação da expressão de
82
imagens religiosas. Ao retornar para Europa em 1897, instala-se em Florença até 1902, num
intenso período de pesquisas nos arquivos e bibliotecas públicas e privadas da região que
culmina com sua volta para Hamburgo, passando o resto de sua vida, num ambiente
extremamente restrito, e com toda atenção voltada para a organização de sua enorme
83
biblioteca. Após um longo período numa clínica psiquiátrica na Suíça, de 1918 a 1923,
retomou suas funções em Hamburgo, momento que iniciou o inacabado projeto do "Atlas
Mnemosyne", que acompanharia, por meio de imagens, as migrações de formas pictóricas
84
desde a Antiguidade até o Renascimento.
A imensa obra de Warburg, condensada somente após a sua morte, guarda em si
grandes contribuições para todas as ciências humanas. De aspecto fragmentário tendo como
mote a presença do mundo antigo no período renascentista, seus escritos abrangem diversas
temáticas, desde pinturas clássicas até o estudo da astrologia. No entanto, um aspecto é
notável em todos eles: sua preocupação em pensar a obra de arte, ou qualquer tipo de
imagem, para além da contemplação estética-formal. Sua investigação, seguiu as relações
sociais, comerciais, culturais dos pintores e seus círculos de convivência, para poder pensar,
no âmbito do particular, em que medida, tais contatos poderiam elucidar o processo de
85
composição de determinada obra. Nesse sentido, Warburg abria caminho para pensar a
81
FERNANDES, Cássio da Silva. Aby Warburg entre a arte florentina do retrato e um retrato de Florença na
época de Lorenzo de Médici. História: Questões e debates. Curitiba, n.41, p.131- 165, 2004. p. 136.
82
FERNANDES, Cássio da Silva. Jacob Burckhardt e Aby Warburg: da arte à civilização italiana do
Renascimento. Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 12, n. 1, p. 127-143, 2006, p.133.
83
WARBURG, Aby. Op. cit. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013, p. xlii.
84
Ibidem, p. xvii.
85
WARBURG, Aby. A renovação da antiguidade pagã. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013, p. xlii.
38
História da Arte para além das grandes obras do Renascimento e de seus pintores mais
renomados; passando a incluir uma série de documentos e personagens remotos, tidos como
irrelevantes, que elucidam o círculo mecenas, principalmente, de Florença, marcado pela
presença da Família de’ Médici, e suas respectivas conexões, comerciais e culturais, entre o
86
norte e sul do continente, permeados pelo legado da Bacia do Mediterrâneo.
A abordagem do estudioso alemão se conectava com a do contemporâneo historiador
suíço Jacob Burckhardt (1818-1897), que já destacava, em sua obra Die Kultur der
87
Renaissance in Italien (1860), A Cultura do Renascimento da Itália, a importância da
88
relação entre comitente e artista como meio de apreciação do fenômeno artístico. A
89
declarada filiação à pesquisa histórico-artística de Burckhard, permitia a Warburg ampliar a
concepção de documentação e obra de arte para além das fronteiras do puro formalismo que
se evidenciava na abordagem de renomados historiadores da arte do período, como o suíço
Heirich Wölfflin (1864-1945). Segundo Fernandes,
86
Ibidem, p. xlii.
87
BURCKHARDT, Jacob. A cultura do renascimento na Itália: um ensaio. São Paulo: Companhia das Letras,
2009.
88
FERNANDES, Cássio. Jacob Burckhardt e Aby Warburg: da arte à civilização italiana do Renascimento.
Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 12, n. 1, p. 127-143, 2006, p. 129.
89
Ibidem, p. 129.
90
Ibidem, p. 127.
91
BING, G. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. XXVIII. Tradução de Cássio da Silva
Fernandes. No prelo. p. 10-11.
39
Warburg divergia da chamada História das Ideias de tipo hegeliana e de grande influência em
toda a Europa do período em questão. Um desses representantes era Wölfflin, que em suas
obras lutou pela a autonomia da História da Arte, com o esforço de se separar da das
92
abordagens culturais, propondo assim, o rompimento com a tradição de Burckhardt.
Para Wölfflin, a arte deveria ser apreciada e examinada em estado “puro”, para isso
toda a concretude e materialidade, ou seja, toda a conexão da obra com seu contexto
histórico, teria que ser ignorada, propondo assim, a radical separação entre objeto artístico e
93
sua representação. A ideia emerge como proposta de abordagem matemática, capaz de
construir uma caracterização geral do estilo, caracterizado a partir da separação entre
conteúdo e matéria, fornecendo à forma uma historicidade própria. Trocava-se, assim, uma
História da Arte atenta à“ origem e (a)o destino dos monumentos como portadores de uma
criação significativa” por uma “história das vontades artísticas, que isola o elemento formal
94
do perceptível.” Dessa antítese, que na abordagem de Wölfflin teria causado a ruptura entre
arte e cultura, é que surgiu a abordagem de Warburg, que em seu mais alto nível, buscou
restabelecer essa relação - entre forma e representação. Daí a necessidade de se considerar os
usos sociais dado aos objetos artísticos,
E quem poderia negar que está, por assim dizer, destinação pré-artística constitui a
diferença essencial entre os dois objetos (diferenças derivadas do uso que o homem
faz de utensílios diferentes para propósitos diversos) seja um fator decisivo em sua
elaboração artística, fazendo nascer, em relação à observação, diferenças estéticas
95
em seu conteúdo formal?
92
WIND, Edgar. Warburgs Begriff der Kulturwissenschaft und seine Bedeutung für die Ästhetik. In: KROIS,
John Michael; OHRT, Robertorg. John (org.). Hellig Furcht und andere Schriften zum Vehältnis von Kunst und
Philosophie. Hamburg: Philo Fine Arts, 2009, pp.83-111. Tradução de Cássio da Silva Fernandes. No prelo. p.
2.
93
Ibidem, p. 2.
94
Ibidem, p. 3.
95
Ibidem, p. 4.
40
profundidade os fatores condicionantes na formação do estilo, fez Warburg retomar e ampliar
96
os estudos de Burckhardt exatamente na direção a qual Wölfflin havia negligenciado.
Para Warburg, qualquer tentativa de separar a imagem de sua intrínseca relação com a
religião, com a poesia, com o culto e o drama equivaleria a interromper com sua “linfa vital”.
Considerava a imagem “indissoluvelmente ligada à cultura total”, apontando o objetivo de
fazer emergir um universo de vibrações e ideias, que compreenderam as diferentes formas de
98
ver no tempo, caídas no esquecimento. O método para atingir esse propósito só poderia ser
indireto, afinal não haveria testemunhos oculares de um universo que deixará de existir,
relegando para os estudiosos futuros apenas sinais, presentes numa ampla e fragmentária
documentação - no caso das cidades estados italianos do período do Renascimento. Para
compreender o ambiente de elaboração de uma determinada imagem, deveria-se seguir
através dessas provas indiciárias inseridas num complexo de ideias, e que deveriam ser
99
verificadas individualmente.
O estudo do Renascimento florentino, por parte de Warburg, tinha como mote um
questionamento fundamental que permeia parte de suas reflexões: Qual a influência do
mundo antigo para a cultura artística do Renascimento? E como formas imagéticas surgidas
num contexto completamente diferente passaram, ao longo de gerações, a se tornar objeto de
inspiração para os pintores italianos do século XV e XVI? Problemas que se inserem, em sua
96
WIND, Edgar. Warburgs Begriff der Kulturwissenschaft und seine Bedeutung für die Ästhetik. In: Hellig
Furcht und andere Schriften zum Vehältnis von Kunst und Philosophie. Org. John Michael Krois und Roberto
Ohrt. Hamburg: Philo Fine Arts, 2009, pp.83-111. Tradução de Cássio Fernandes. No prelo. p.5
97
Ibidem, p. 6
98
Ibidem,
99
Ibidem, p. 7
41
100
tese, a respeito das pinturas mitológicas de Sandro Botticelli. Ao comparar os dois famosos
quadros, O nascimento de Vênus e A Primavera, buscou identificar a presença de
representações do mundo antigo, na figura de Homero que pela via transmutada do latino
Ovídio, teria se inserido no ambiente humanista de Florença. As pinturas encomendadas por
Lorenzo de’ Médici, tinham como base iconográfica a formulação poética do humanista
101
Angelo Poliziano, professor na Academia Platônica de Florença. Warburg apresentava seu
interesse no processo constitutivo da obra das artes, e ao mesmo tempo, seguia os caminhos
de transmissão do legado antigo no limiar da modernidade, que no caso de Botticelli estaria
diretamente ligado com o papel de Poliziano como mediador da relação do pintor com o
universo antigo . No seu estudo de caso, Warburg identificava assim, a poesia “como versão
anterior no tempo e mais próxima do seu modelo, e o quadro, como versão posterior e mais
102
livre, observando uma série de temas de mesmo gênero:
(...) como unidade completa de corpo, posição e vestuário, sem dela deduzir ou
construir por abstração nenhuma de suas peculiaridades estilísticas. Observando-a
isoladamente de todos os contextos nos quais aparecia, aquela figura tornava-se
comum tanto aos meios expressivos literários, quanto àqueles artísticos. Tal
paralelismo não se devia a um presumível espírito de época, mas significava que
100
BING, Gertrude. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. XXVIII. Tradução de Cássio da Silva
Fernandes. No prelo. p. 11.
101
FERNANDES, Cássio da Silva. O legado antigo entre transferências e migrações. Topoi (Rio J.), Rio de
Janeiro , v. 15, n. 28, p. 339.
102
WARBURG, Aby. A renovação da antiguidade pagã. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013, p. 9
103
Ibidem, p.12
42
aquela figura fazia parte de uma categoria de expedientes expressivos da qual se
104
podia servir tanto a literatura, quanto as artes visuais.
104
BING, Gertrude. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. XXVIII. Tradução de Cássio
Fernandes. No prelo. p. 12.
105
Ibidem, p. 12.
106
WARBURG, Aby. A renovação da antiguidade pagã. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013.p. 39.
107
Ibidem,
43
obras literárias, investiga as relações entre artista e mecenas, inseridas no ambiente comercial
108
e cultural da família de’ Medici.
Pintado por Domenico Ghirlandaio (1449-1494) na Capela Sassetti, na Igreja de Santa
Trinità, em Florença, entre os anos de 1480 e 1486, sob encomenda do burguês laico
Francisco Sassetti (1421-1490) - mercador e sócio nos negócios de Lorenzo de’ Médici-, para
sua capela sepulcral. Como tema do afresco, a lenda de São Francisco, patrono do comitente,
109
composta por seis pinturas. O ensaio de Warburg centrava-se na cena do recebimento da
confirmação da ordem do Papa Honório III por São Francisco, identificando uma série de
personagens representativos do ambiente erudito e comercial de Florença do período. A
pintura de Ghirlandaio se divide em dois planos, à representação do santo católico era
relegada a segundo, colocando em destaque seu comitente ao lado de Lorenzo de’ Médici, os
filhos de Sassetti, e num patamar abaixo, localizado nas escadas da pintura, o humanista
110
Angelo Poliziano acompanhado dos filhos de Lorenzo.
A identificação dos personagens se construiu a partir do reconhecimento dos filhos de
Lorenzo e certos membros de sua rede de relações, passando a ampliar a descrição dos
elementos constituidores do afresco com a utilização de cartas, relatórios, inventários, que
ligam a família Médici a pintura e seus integrantes entre si, fazendo surgir “um quadro vivaz
111
do ambiente mais próximo da vida privada de Lorenzo. Para tal empreendimento, o
pesquisador ressaltou a importância das pistas e circunstâncias que forneceriam elementos
para a reconstituição dessa relação materializada na obra,
108
FERNANDES, Cássio da Silva. Aby Warburg entre a arte florentina do retrato e um retrato de Florença na
época de Lorenzo de Médici. História: Questões e debates, Curitiba, n.41, p.131- 165, 2004, p. 137.
109
Ibidem, p. 138
110
Ibidem, p. 140.
111
BING, Gertrude. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. XXVIII. Tradução de Cássio
Fernandes. No prelo. p. 13.
44
de um afortunado momento imprevisto, e assim se esquiva da consciência pessoal e
histórica. Já que é tão difícil obter depoimentos de testemunhas oculares,
precisamos provar a participação do público por meio de evidências circunstanciais.
Florença, o berço da cultura urbano-mercantil moderna e autoconfiante, não nos
legou somente retratos de pessoas há muito falecidas em uma vivacidade cativante e
uma abundância incomparável. Em centenas de documentos arquivados já lidos, e
em outros milhares ainda não lidos, as vozes dos mortos continuam vivas. Uma
postura de respeito histórico pode devolver o timbre a essas vozes inaudíveis, dado
112
que nos damos ao trabalho de recuperar o vínculo natural entre palavra e imagem.
112
WARBURG, Aby. A renovação da antiguidade pagã. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013, p. 123.
113
FERNANDES, Cássio da Silva. Aby Warburg entre a arte florentina do retrato e um retrato de Florença na
época de Lorenzo de Médici. História: Questões e debates. Curitiba: n.41, p.131- 165, 2004, p. 139.
114
Idem. O legado antigo entre transferências e migrações. Topoi (Rio J.). Rio de Janeiro: v. 15, n. 28. p.341.
45
monumentos, mas também escavando sob as camadas que se instalaram nele como agentes de
115
transmissão.”
Os ensaios e conferências de Warburg, posteriores a 1902, abordam uma diversidade
de temas difíceis de serem analisados em toda particularidade e complexidade que merecem,
porém, o interesse pela astrologia e a saída do campo da História da arte para a reflexão das
imagens num âmbito maior, marca momento significativo de suas reflexões, tema relevante
para os estudos de Ginzburg. A partir de 1908, o estudioso ao analisar gravuras e calendários,
advindos da Itália e do mundo germânico, identifica alterações estilísticas, concebidas a partir
116
da influência da escultura clássica sobre as representações de deuses da antiguidade tardia.
A influência da Antiguidade Clássica na cultura geral europeia do tempo do Renascimento
continua presente na pesquisa, mas só poderia chegar à toda a sua extensão “quando
compreendida e analisada as figuras dos deuses pagãos ressuscitados no início do
Renascimento, no Norte e Sul - não só como manifestação artística, mas também como
117
criaturas religiosas.” Para Warburg, a temática da astrologia e magia só poderia ser
compreendida em toda sua complexidade, quando pensada como campo intermediário entre a
118
religião e a ciência, a partir de análises circunscritas.
Formas do campo da astrologia ligadas às migrações humanas, que no caso da
Europa, teve o mar Mediterrâneo como importante ponto de intercâmbio cultural e comercial,
conectando norte e sul do continente por meio de representações do mundo antigo. Imagens
de deuses pagãos, por muito associadas a fontes textuais, que ao migrarem, mantêm certa
independência de tempo e lugar, são reinterpretadas em contexto totalmente distinto de sua
119
concepção, tendo no surgimento da prensa e das xilogravuras momento significativo. Para
Warburg, o mundo dos deuses antigos, enobrecido pelo Classicismo, se configurava como
115
BING, Gertrude. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. XXVIII. Tradução de Cássio da Silva
Fernandes. No prelo. p. 16.
116
FERNANDES, Cássio da Silva. O legado antigo entre transferências e migrações. Topoi (Rio J.). Rio de
Janeiro: v. 15, n. 28. p. 343.
117
WARBURG, Aby. A renovação da antiguidade pagã. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013. p. 516.
118
WIND, Edgar. Warburgs Begriff der Kulturwissenschaft und seine Bedeutung für die Ästhetik. In: KROIS,
John Michael; OHRT, Roberto (org). Hellig Furcht und andere Schriften zum Vehältnis von Kunst und
Philosophie. Hamburg: Philo Fine Arts, 2009, pp.83-111. Tradução de Cássio da Silva Fernandes. No prelo.
p.18.
119
Gertrude. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. XXVIII. Tradução de Cássio da Silva
Fernandes. No prelo. p. 21
46
símbolo de uma Antiguidade, a partir da criação da cultura humanista erudita do
Renascimento.
Atento mais uma vez às chamadas zonas intermediárias, Warburg visitava os lugares
limites das ideias, os momentos de transições, e no interior desses períodos mantinha a
predileção por homens que por sua posição social ou destino ocupavam posições ambíguas,
seja mercadores amantes da arte que mesclavam seus interesses comerciais com gostos
artísticos, seja astrólogos que combinavam religião e ciência, criando conceitos próprios de
121
verdade. . E no caso do período da época da Reforma Protestante, o astrólogo percorria
esses dois caminhos opostos - o da abstração matemática e o da vinculação ao mundo
fatalista medieval que se materializa em um estado de alma homogêneo e de eterna oscilação.
122
A lógica, que cria o espaço do pensamento entre ser humano e objeto - pela
designação e a distinção conceitual, e a magia, aglutinando o ser humano e o objeto
por meio do vínculo - ideal ou prático - da superstição, são elementos que, no
pensamento profético da astrologia ainda observamos como ferramentas homogênea
123
e primitiva com o qual o astrólogo podia medir e praticar magia ao mesmo tempo.
Mundo antigo, que como legado helenístico, teve nos árabes o elemento transmissor,
que passado por Toledo e Pádua chegou ao Norte do continente, guardando aos astrólogos
120
WARBURG, Aby. Op. cit. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013, p. 517
121
WIND, Edgar. Warburgs Begriff der Kulturwissenschaft und seine Bedeutung für die Ästhetik. In: Hellig
Furcht und andere Schriften zum Vehältnis von Kunst und Philosophie. KROIS, John Michael Krois; OHRT,
Roberto. Hamburg: Philo Fine Arts, 2009, pp.83-111. Tradução de Cássio Fernandes. No prelo. p. 18.
122
WARBURG, Aby. A renovação da antiguidade pagã. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013, p. 517.
123
Ibidem, p. 517.
47
124
árabes italianos a originalidade de serem os primeiros a ilustrarem suas obras. Nesse campo
de pesquisa que se insere seu ensaio sobre “A Antiguidade pagã em palavras e imagens nos
tempos de Lutero,” produzido em 1908, e que analisa especificamente a relação de Lutero
com astrólogos da época, e como esse universo paradoxal se expressava por meio de imagens
e textos inseridos num momento histórico singular.
Warburg inicia o ensaio com as controvérsias a respeito do ano de nascimento de
Martin Lutero. O astrólogo Filipe Melâncton (1497-1560), ligado ao mundo germânico,
colaborar e amigo de Lutero, conjuntamente e Lucas Gauricus (1475-1558), astrólogo do sul
da Itália, apresentavam a data de nascimento com um ano de diferença, de 1483 para 1484. A
arbitrária mudança buscava encaixar o ano de nascimento de Lutero numa grande conjunção
125
de planetas, que anunciaria uma nova época para o mundo religioso ocidental.
124
Ibidem,
125
Ibidem, p.525
126
WARBURG, Aby. A renovação da antiguidade pagã. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013, p. 529
48
da sábia adivinhação dos movimentos no céu. Defrontava com o universo medieval cristão,
127
“frustrado pela ilusão de que o céu pudesse ser usado para fins individuais.”
Percorrendo uma série de documentações, o autor mapeia uma rede de circulação de
ideias que manteve viva a presença do mundo antigo e pagão no universo imagético
renascentista. A investigação se amplia para outros lugares do continente e acaba por destruir
as fronteiras modernas dos países europeus, transformando a relação entre norte e sul apenas
em um elemento do imenso e fragmentário quadro de migrações culturais. Segue sempre com
o cuidado de evitar generalizações ou de impor qualquer teoria a priori na análise.
Perspectiva que confere uma especificidade também nos interesses dos seus estudos
128
históricos.
Warburg apresentava seus estudos num movimento duplo, como dois pares de lente,
“um focalizando o aspecto que o momento apresenta de fato; o outro, direcionado aos
130
itinerários através dos quais foi adquirida a sua consciência do passado.” Porém, além de
não inferir sobre nenhuma teoria, as reflexões a respeito das migrações imagéticas eram
sempre tomadas num “alcance limitado”, que por mais que aferisse conexão com o mundo
antigo, seu sentido só emergia de um singular expediente histórico. E nesse duplo
movimento, Warburg concebe a História como campo fronteiriço do pensamento, o limite
onde as ideias se cruzam e materializam-se no particular, com destaque a figuras
131
representantes de um mundo em conflito.
127
BING, Getrude. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. XXVIII. Tradução de Cássio da Silva
Fernandes. No prelo. p. 22.
128
FERNANDES, Cássio da Silva. Aby Warburg entre a arte florentina do retrato e um retrato de Florença na
época de Lorenzo de Médici. História: Questões e debates. Curitiba, n.41, p.131- 165, 2004, p. 146.
129
Ibidem, p.146.
130
BING, Getrude. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. XXVIII. Tradução de Cássio da Silva
Fernandes. No prelo. p. 17
131
FERNANDES, Cássio da Silva. O legado antigo entre transferências e migrações. Topoi (Rio J.). Rio de
Janeiro: v. 15, n. 28. p. 342.
49
O interesse por homens incomuns na história, comerciantes apreciadores de arte,
astrólogos, hereges populares que se opunham ao poder temporal da Igreja, representantes de
um mundo em transição, que guardavam no seu universo psicológico o conflito da mudança.
Figuras que não se ajustam em análises gerais, que não se enquadram em conceitos amplos
como Reforma, Renascimento, e que por isso deveriam ser analisados em seu aspecto
particular, examinados a partir de recortes históricos circunscritos. Para interpretação do
universo desses personagens, se destaca a importância da acumulação e diversidade
documental, apreciada numa leitura lenta, que por meio da filologia hermenêutica, seria
capaz de reconstruir um determinado expediente histórico, a partir do singular. Elementos
destacados nas trajetórias intelectuais de Delio Cantimori e Aby Warburg, que, em campos
diferentes das ciências humanas, recorreram a abordagens metodológicas específicas e
acabaram por influenciar de modo decisivo o trabalho de Carlo Ginzburg.
Por mais que fiquem claras as diferenças dos autores, e o primeiro capítulo da
dissertação tem como objetivo evidenciar essas peculiaridades, o que se nota é que ambos
recorrem a tópicos, elementos e questões da hermenêutica filológica para responder
problemas históricos. Sobre a hermenêutica, Cardoso Júnior destaca que
(...) é uma tradição tão arraigada na historiografia que ela penetra na formação do
historiador de um modo imperceptível. Por exemplo, a idéia de que o
conhecimento histórico é garantido pelo fato de que o historiador-sujeito e o
objeto realizam uma interseção ou fusão, já que ambos pertencem à mesma
realidade (a história), é um princípio hermenêutico que faz parte de um senso
comum que todo historiador respeita. E o respeita como fonte de apoio de toda
132
operação historiográfica.
132
CARDOSO JR, Hélio Rebello. Paradigma Indiciário e História Cultural. Episteme (Porto Alegre), v.25,
p.13-33, 2007, p. 6
50
encontro “entre a hermenêutica e a historiografia, uma vez que o desenvolvimento das
técnicas da crítica documental, por parte dos historiadores, levaria incontinente ao
133
aprofundamento da reflexão sobre a interpretação de documentos históricos.”
134
Para Gadamer, a “doutrina da arte da compreensão e da interpretação” emergiu por
135
dois caminhos diferentes: o “teológico” e o “filológico”. A hermenêutica “teológica”, ou
“bíblica”, teria como seus idealizadores os reformadores do cristianismo, os quais defendiam
que o sentido original das escrituras havia sido deturpado pelo tradição católica. O legado
humanista e o impulso reformador de Lutero, apontava para o sentido único da Sagrada
Escritura, o qual não necessitaria da Igreja para intermediá-la, “já que sua literalidade”
136
deveria “ser intermediada por ela própria, o sensus literalis”. Da mesma forma, a
hermenêutica filológica buscava o sentido original da literatura clássica, obscurecido pelo
mundo medieval cristão. Tanto a hermenêutica filológica quanto a bíblica procuravam o
137
sentido original do texto, o qual teria contido em si uma unidade interna.
A formação da hermenêutica histórica deu-se a partir do século XVIII, quando passa a
se reconhecer que para compreender adequadamente a Escritura, diante uma crítica
documental, deve-se considerar a diversidade de autores que a compuseram, os erros de
tradução, os acréscimos e as omissões de diferentes passagens. Sendo assim, a interpretação
gramatical passava a ser realizada, necessariamente, com o contexto histórico de sua
138
produção. No entanto, o salto para uma hermenêutica histórica demandaria alguns
percalços, afinal, a princípio, a tarefa estava voltada para o âmbito textual, ao passo que o
campo histórico demanda outros problemas ligados aos acontecimentos, fatos e experiências
humanas. Essa transposição traria a necessidade de se singularizar o campo da reflexão
histórica, sendo capaz de desenvolver uma forma de conhecer que seja característico a partir
139
de métodos e práticas também específicas.
133
Ibidem,
134
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1999, p. 272.
135
Ibidem, p. 273
136
Ibidem, p. 275
137
CARDOSO JR, Hélio Rebello. Paradigma Indiciário e História Cultural. Episteme (Porto Alegre), v.25,
p.13-33, 2007, p. 7
138
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1999, p. 266
139
CARDOSO JR, Hélio R. Op. cit. p. 8
51
A formação da hermenêutica histórica está ligada a duas linhas: a primeira remonta o
século XIX e nomes como Schleiermacher, Ranke, Droysen e Dilthey; a segunda é mais
140
contemporânea abrangendo nomes como Gadamer e Ricoeur. A diferença entre essas duas
perspectivas seria, de acordo com Ricoeur, que a hermenêutica do século XIX visava
“restituir a intenção do autor por trás do texto” e a do século XX busca “explicitar o
141
movimento pelo qual um texto exibe um mundo, de algum modo, perante si mesmo.” Esse
redirecionamento estaria conectado com as transformações efetuadas dentro da tradição
hermenêutica pela fenomenologia de Heidegger, que estende para esse campo do saber a
ontologia, ou seja, para todo o Ser, na medida em que a compreensão seria a base de toda
interpretação, sendo “co-original com nossa existência e, por isso, ontologicamente
fundamental. Toda compreensão é temporal, intencional e histórica, inclusive a das ciências
142
da natureza”. Dentro da nova perspectiva hermenêutica, da qual são exemplos, com suas
singularidades, as filosofias de Gadamer e Ricoeur, a operação narrativa está intrinsecamente
ligada com a experiência humana; a tarefa narrativa, portanto, não seria uma ação externa ao
trabalho do historiador, sendo este capaz de captar
Nessa perspectiva hermenêutica é que podemos pensar nas possíveis relações entre
Ginzburg e seus “mestres”, pois os três autores (Cantimori, Warburg e Ginzburg) trazem para
o campo da História aspectos da hermenêutica filológica, na medida em que buscavam na
compreensão histórica restaurar o sentido do passado, por meio da leitura de textos,
140
Ibidem,
141
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa, vol. 1. Campinas/SP: Papirus, 1994, p. 123.
142
ALBERTI, Verena. A existência na história: revelações e riscos da hermenêutica. Estudos históricos -
Historiografia, Rio de Janeiro, v.9, nº 17, p.31-57, 1996, p. 15
143
CARDOSO JR, Hélio Rebello. Paradigma Indiciário e História Cultural. Episteme (Porto Alegre), v.25,
p.13-33, 2007,p. 8
52
documentos e imagens. Cada autor, com suas próprias preocupações e peculiaridades,
forneceram ao historiador de Turim elementos temáticos e analíticos presentes em suas duas
primeiras publicações: no campo da temática, a heresia, o interesse pelas imagens e por
biografias de personagens tidas como irrelevantes; no aspecto análitco, o uso da hermenêutica
a serviço da História.
No entanto, a apreciação das primeiras obras de Ginzburg não evidencia apenas
aproximações às reflexões temáticas e metodológicas de Cantimori e Warburg: ela revela
também distanciamentos, os quais demarcam justamente o caminho particular, original,
trilhado pelo autor. A interpretação de Ginzburg, feita num expediente histórico específico,
acaba por ressignificar a obra desses seus dois mestres, voltando-as para questões da “história
dos vencidos” e das relações entre alta e baixa cultura, bem como para abordagens
metodológicas muitas vezes estabelecidas a priori, como no caso do embate cultural entre
inquisidores e hereges, o que certamente o fez distanciar-se de suas influências
historiográficas. Para uma análise mais apurada, é necessário debruçar-se sobre os primeiros
escritos do historiador, para, assim, compreender em que medida ele se aproxima e se
distancia das abordagens de Cantimori e Warburg.
53
CAPÍTULO 2: ENTRE MENTALIDADE E CULTURA – CONFLITO DE CLASSES
Carlo Ginzburg publicou o seu primeiro artigo, “Feitiçaria e piedade popular”, em
1961, no qual analisou um processo inquisitorial encontrado no Arquivo do Estado de
Modena, na Itália, transcorrido no ano de 1519. No processo, há a referência à camponesa
Chiara Signorini e seu cônjuge Bartolomeo, acusados de terem lançado feitiços sobre sua
antiga patroa, Margherite Pazzani, que caiu enferma após a expulsão de ambos de sua
propriedade. As preocupações do artigo partiam de problemas fundados, em geral, em
suposições de caráter psicológico, centrando-se em três pontos: possíveis relações entre
feitiçaria e piedade popular, como anunciado no título; motivações sociais que poderiam ter
levado às práticas de feitiçaria; e a sobreposição de esquemas dos inquisidores à declaração
144
dos acusados.
A partir do cruzamento de vários depoimentos, entre acusações e o próprio relato de
Chiara, Ginzburg tratou dos possíveis significados de suas crenças e práticas e sua relação
com a piedade popular. Ao recorrer a entidades, divinas ou demoníacas, para sanar suas
angústias e injustiças, curando ou lançando malefícios, a camponesa recorria a elementos de
uma piedade popular que ao longo do processo foram associados à feitiçaria. O caso seria
representativo na medida em que possibilitaria a reconstituição de elementos da “fisionomia
145
real da feitiçaria popular”.
A temática da heresia, juntamente com a proposta de reconstituir os possíveis
significados das práticas para os acusados dialogava com a abordagem desenvolvida por
Cantimori, que recorria à filologia e à hermenêutica para compreender aspectos do campo das
ideias dos homens, materializadas em relações históricas concretas. No entanto, Ginzburg
ressignificava a abordagem de Cantimori a partir da aproximação às asserções de um grupo
de historiadores marxistas oriundos do Partido Comunista da Grã-Bretanha, do qual Eric
144
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras,
1989, p. 16
145
Ibidem, p. 16.
54
Hobsbawm fazia parte. A associação entre privação social e piedade popular concatenava
com a possibilidade de pensar a luta de classes num período anterior à Revolução Industrial,
146
proposta pelo historiador inglês nos ensaios sobre os “rebeldes primitivos”, e seguida por
Ginzburg na sua percepção da feitiçaria:
Por trás da minha hipótese havia a leitura dos ensaios de Eric Hobsbawm, tanto
reunidos em Primitive Rebels (1959), como (...) os de uma resenha de estudos
publicada por ele em 1960, em Società, a revista ideológica do Partido Comunista
Italiano, com um título – “Per la storia delle classi subalterne” [Para uma história das
classes subalternas] – que fazia eco a um termo usado por Antonio Gramsci em suas
147
notas do cárcere.
146
HOBSBAWM, Eric. Rebeldes Primitivos. Estudio sobre las formas arcaicas de los movimientos sociales en
los siglos XIX y XX. Barcelona. Aryel S.A. 1983.
147
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.
300 – 301.
148
HOBSBAWM, Eric. Op. cit. p. 9-10
149
Ibidem, p. 10
150
Ibidem,
55
Gramsci, nesse sentido, constituiu-se como outra referência fundamental para
Ginzburg, tanto pela via direta quanto indireta. Cabe notar, aqui, que seus escritos, em
151
particular nos Cadernos do Cárcere, elaboradas nos anos em que ficou preso por ordem do
governo fascista, de 1929 a 1935, levaram um tempo razoável para repercutir, mesmo na
Itália. Durante os primeiros anos que sucederam a sua morte, suas ideias eram conhecidas
basicamente pelos companheiros do Partido Comunista Italiano (PCI) da década de 1920,
devido à dificuldade de acesso e, principalmente, aos poucos textos compilados e publicados.
Até o final da Segunda Guerra Mundial, para a maior parte dos intelectuais, inclusive
os comunistas, Gramsci era pouco mais que um nome. A partir de meados dos anos 1950,
contudo, passou a ser conhecidíssimo em seu país, admirado para além dos círculos de
esquerda. A maior parte de sua obra fora compilada pelo PCI, sob o comando de Palmiro
Togliatti (1893-1964), e, sobretudo, pela editora Einaudi. Assim, as primeiras edições
colocaram Gramsci no cenário intelectual italiano e fizeram com que ali passasse a ser
152
considerado um dos grandes pensadores marxistas do século XX.
A posterior tradução de sua obra nos países de língua inglesa – os primeiros a manter
um interesse contínuo pelo autor fora de seu lugar de origem – contribuiu para a ampliação
do campo de reflexão do marxismo, ao propor insistentemente a autonomia das esferas da
política e da cultura em oposição às determinações econômicas, defendida pelo marxismo
153
vulgar. Para além das suas reflexões sobre a História italiana, muito questionadas no país,
se destacavam seus conceitos políticos, que atribuíam novas dimensões à análise histórica.
Segundo Hobsbawm,
151
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. O5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
152
HOBSBAWM, Eric. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, 1840 -2011. São Paulo. Companhia das
Letras, 2011, p. 285.
153
Ibidem,
154
Ibidem, p. 309.
56
Para Gramsci, subalternos representaria uma fase anterior à formação da consciência
de classe, fase essa caracterizada por homens e mulheres dirigidos e educados a pensar como
as classes dominantes, imbuídos dos valores ideológicos de instituições como a Igreja, a
monarquia e a família; as quais, cotidianamente, reforçam o valor da ordem, da hierarquia e
da estabilidade do mundo, como algo naturalmente posto por Deus. Para os grupos
subalternos, a divisão social da política está posta dentro de uma ordem natural e aceitável
das coisas. Nesse sentido, os momentos de contestação dessa ordem acabam por ser dispersos
e episódicos, na medida em que se rompem os padrões da normalidade dessa dominação, saindo
das expectativas também organizadas pela própria condição subalterna. Quando essa medida de
justeza é rompida, os subalternos acabam por recorrer aos mesmos valores da dominação, justificando
suas ações na mesma linguagem, a da violência e do castigo. Violência contra os detentores do
poder e também contra os iguais. Banditismo, saques, festas, músicas, carnaval,
acontecimentos que se misturam num impulso de quebra da ordem, mostrando que os grupos
155
populares, por vezes, recusavam a condição de inferioridade que lhes eram impostas.
Os subalternos seriam, assim, grupos dispersos e multifacetados, que ora apareceriam
como povo, ora como classe, ora como grupo social. Caracterizados pela dispersão e
imprevisibilidade, sua racionalidade seria de difícil apreensão, o que reserva para os
historiadores da contemporaneidade o desafio de alcançar as formas de ser desses grupos para
que seus aspectos centrais possam ser compreendidos:
Por meio dessa perspectiva é que Hobsbawm propunha pensar seus movimentos
“primitivos” ou subalternos, sendo seguido por Ginzburg na sua reflexão sobre o processo
inquisitorial contra a camponesa Chiara. Diferentemente das correntes do marxismo italiano
que percebiam as “pessoas comuns” a partir de uma História política sindical, tal abordagem
155
Ibidem, p. 310.
156
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 05. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 135.
57
permitiu conferir, segundo Ginzburg, uma dimensão concreta à vivência das classes
subalternas – marcando, por sua vez, um momento específico de releitura e ressignificação
das obras de Gramsci:
Para mim também, como para tantos outros estudiosos italianos da minha geração, a
leitura dos escritos de Gramsci havia sido um acontecimento decisivo. O Gramsci
proposto por Hobsbawm era um Gramsci lido e interpretado através da antropologia
157
social britânica.
Para Ginzburg, no estudo da piedade popular existiria uma relação entre a privação
econômica e social e a busca de Chiara e seu marido pelo sobrenatural. Até que ponto essa
relação realmente ocorre ou se o acesso à magia era consequência ou causa do isolamento
social de ambos é difícil saber; seu artigo, de todo modo, forçava a análise do caso de Chiara
como uma possível luta de classe, que permitiria acesso a elementos do popular.
Uma alternativa de interpretação para a documentação de Chiara (diferente da
“primitiva luta de classes”) seria a do embate entre níveis culturais de inquisidores e hereges,
embate que só seria plausível, segundo o historiador, devido ao fato de tanto juízes como
acusados partirem de “uma visão comum da realidade”, como a crença na feitiçaria. Os níveis
157
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.
301.
158
Ibidem, p. 300.
159
Idem. Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 21.
58
e lugares dos quais partiam, contudo, eram muito diversos – e isso foi crucial no caso de
Chiara, condenada pelo Tribunal do Santo Ofício. Na perspectiva analítica do conflito
cultural, se esses sujeitos partilhavam pontos de convergência, a violenta sobreposição do
esquema inquisitorial às declarações da acusada, sob a forma da tortura e de interrogatórios
“sugestivos”, foi determinante no processo. Mais uma vez, os escritos de Gramsci ressoavam
na leitura de Ginzburg sobre a feitiçaria; afinal, sua leitura dos embates entre níveis culturais,
entre inquisidores e hereges, guardava muito do conceito gramsciano de hegemonia.
Ao questionar o lugar da política, até então reservado aos governantes, Gramsci
propõe pensar a sociedade a partir das divisões de classes, entre dominantes e dominados,
permeada pelas relações históricas. Dessa forma, o Estado burguês se impunha à sociedade
civil não apenas por meio do seu aparato político-militar, pelo qual a classe dominante
organiza a coerção, mas como um instrumento complexo de dominação que, além de deter o
monopólio da repressão e da violência, faz valer seus interesses também por meio do
convencimento, da persuasão, da conquista do consentimento por parte dos dominados,
através de instituições como escolas, igrejas, sindicatos, que participam da elaboração e
160
difusão da ideologia burguesa. Era o que Ginzburg propunha para pensar a relação entre a
Igreja representada pela Santa Inquisição e a sua consequente sobreposição às ideias de
Chiara sobre a piedade popular, que a teriam transformada em feiticeira.
As fontes das quais Chiara surgia seriam, assim, depoimentos indiretos de crenças
populares distantes no tempo, que, a partir da filologia proposta por Ginzburg, seria possível
atingir. Dessa forma, o historiador reconstruía aspectos do passado, recorrendo ao “método
histórico positivo” de Cantimori; seu sentido, contudo, era atribuído no presente, ao se
conectar com as preocupações políticas e ideológicas do autor no estudo dos grupos
marginais da História, materializados na perseguição à feitiçaria da Europa de meados do
século XV. O artigo abria a perspectiva de acessar uma mentalidade popular por meio do
estudo da feitiçaria, e o acesso ao universo dos hereges se fazia, em síntese, na perspectiva de
conflito de mentalidades entre juízes e acusados, por meio do conceito de “classes
subalternas” e “hegemonia” de Gramsci, apropriados pela perspectiva antropológica de
Hobsbawm.
160
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 05. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 136.
59
A partir deste artigo, podemos traçar alguns elementos que perduraram na produção
de Ginzburg, assim como outros que foram deixados de lado. Duas perspectivas de análise
são propostas para o caso de Chiara Signorini, ambas já citadas anteriormente: a interpretação
da feitiçaria como uma “primitiva luta de classes”, por um lado, e, por outro, o embate entre
níveis culturais, entre inquisidores e acusados, mediado pelo conflito de visões de mundo. A
primeira é abandonada em meados da década de 1960, devido, principalmente, à
consolidação da perspectiva do conflito entre mentalidades, possibilitada pela documentação
dos andarilhos do bem, lançado como livro anos depois da publicação do artigo. Já a
preocupação com o universo dos marginalizados e, sobretudo, sua interpretação pelo viés do
conflito entre alto e baixo, perdurariam como chave crucial para suas posteriores reflexões
sobre a cultura popular.
No Brasil, publicado em 1989, com o título Os andarilhos do bem. Feitiçaria e cultos agrários nos séculos
161
60
análise se organizava em torno de três eixos: o primeiro era histórico, cujo objetivo era
recuperar um grupo específico de crenças populares, enunciadas pelas fontes inquisitoriais,
sobre os andarilhos; o segundo enfatiza as transformações que tais crenças sofreram a partir
do contato com os inquisidores; por fim, o terceiro pretendia destacar formas similares de
crenças presentes na Europa do período, pensando possibilidades de origem e difusão.
Segundo as declarações presentes nos processos, homens e mulheres que nasceram
“empelicados” (isto é, envoltos pela bolsa e pelo líquido amniótico), saíam em espírito, sob a
forma de animais e munidos com ramos de erva-doce, para combater em quatro noites
específicas do ano um exército de feiticeiros e bruxas, estes munidos com ramos de sorgo, em
favor da sorte da colheita. Para o historiador, a crença dos andarilhos seria parte de um culto
agrário com características específicas, ligado a estratos culturais muito antigos:
I combattimenti tra benandanti e streghe sono uno scontro dall’esito incerto tra
prosperità e carestia, una lotta vera, anche se condotta con un preciso rituale. Qui la
contrapposizione tra vecchia e nuova stagione è vissuta drammaticamente, come una
162
contesa che decide della stessa sopravvivenza materiale della comunità.
Ma questa discrepanza, questo scarto esistente tra l’immagine proposta dai giudici
negli interrogatori e quella fornita dagli accusati, permette di attingere uno strato di
credenze genuinamente popolari, poi deformato, cancellato dal sovrapporsi dello
163
schema colto.
162
GINZBURG, Carlo. I benandanti. Stregoneria e culti agrari tra cinquecento e seicento. Torino: Einaudi,
1966. p. 42.
163
Ibidem, p. IX.
61
inquisidores, das declarações dos acusados, com perguntas e respostas desconcertantes, que
fugiam dos padrões dos interrogatórios habituais. Dentro dessa perspectiva, a proposta seria
pensar os processos contra os andarilhos numa abordagem de confronto cultural, sob a qual
suas crenças passam a ser gradativamente enquadradas nos discursos e convicções dos juízes.
O resultado final desse longo processo seria a construção da imagem de um sabá demoníaco,
fruto da imposição hegemônica dos inquisidores, que usurparam as crenças dos camponeses
friulanos, transformando-os em bruxos.
A perspectiva de sobreposição cultural no processo dos andarilhos fora acompanhada
pela sugestão de conexões formais entre as crenças do Friuli com crenças de outras regiões e
momentos históricos. Num duplo movimento analítico, muito semelhante aos estudos de Aby
Warburg a respeito das imagens no período do Renascimento, Ginzburg examina as
especificidades dos cultos de fertilidade circunscritos às montanhas do norte da Itália e, ao
mesmo tempo, sugere um possível nexo com ritos agrários de outros lugares da Europa, como
no caso do lobisomem lituano:
Le credenze del vecchio lupo mannaro Thiess sono sostanzialmente identiche a quelle
emerse nel processo dei due benandanti friulani. La lotta a colpi di bastone (perfino il
particolare dei manici di scopa di cui sono armati gli stregoni lituani richiama i rami
di sorgo, o saggina, usati dagli stregoni del Friuli) in determinate notti per ottenere la
fertilità dei campi, minuziosamente, concretamente specificata - cosicché in Friuli si
lotterà per le viti, in Lituania per l’orzo e la segala; infine, il combattimento per la
fertilità inteso come opera non solo tollerata ma protetta da Dio, che addirittura
garantisce il paradiso alle anime di coloro che vi partecipano, tutto ciò non consente
dubbi. È evidente che ci troviamo di fronte a un unico culto agrario, che, a giudicare
da queste sopravvivenze cosí lontane tra loro - Lituania, il Friuli - dovette essere
164
diffuso anticamente in un’area ben piú vasta, forse nell’intera Europa centrale.
GINZBURG, Carlo. I benandanti. Stregoneria e culti agrari tra cinquecento e seicento. Torino: Einaudi.
164
1966, p. 50.
62
In ogni modo, sulla base di questo sorprendente parallelo lituano, è lecito
affermare l’esistenza di una connessione, non analogica ma reale, tra benandanti
e sciamani. Le estasi, i viaggi nell’al di là a cavallo di animali o in forma di
animali (lupi, o, come vedremo in Friuli, farfalle o topi) per recuperare i
germogli del grano o comunque per assicurare la fertilità dei campi: questi
elementi, a cui si aggiungono, como vedremo subito, la partecipazione alle
processioni dei morti, che procura ai benandanti virtú profetiche e visionarie, si
compongono in un quadro coerente, che richiama immediatamente i culti degli
sciamani. Ma rintracciare i fili che legano queste credenze al mondo baltico o
slavo esorbita evidentemente dai confini di questa ricerca. Torniamo, quindi, al
165
Friuli.
No entanto, esse salto temporal e espacial, que vincularia as crenças do norte da Itália
ao mundo báltico e eslavo, ultrapassa, segundo o historiador, os limites de sua pesquisa.
Servindo-se do método historiográfico na análise circunscrita, opta por não enfrentar o
problema das possíveis conexões existentes entre os benandanti e os antigos xamãs europeus.
166
De todo modo, o livro enuncia o singular expediente histórico no qual Ginzburg estava
inserido, na medida em que continha o estudo das atitudes religiosas recolhidas de uma série
de individualidades ao longo de um século e meio, o qual permitiria reconstruir uma
“mentalidade popular” camponesa a partir dos processos inquisitoriais. Segundo o autor,
tratava-se das:
165
Ibidem, p. 51-52.
166
Ibidem, p. XIII.
167
Ibidem, p. VII.
168
No caso da história serial, destacavam-se nomes como Fernand Braudel, François Furet, Pierre Chaunu,
Philippe Ariès; na história das mentalidades, Michel Vovelle, Jacques Le Goff, Georges Duby. É importante
destacar que, por mais que houvesse distinções metodológicas entre a história das mentalidades e a história
63
assim, Os andarilhos do bem trabalhava com uma perspectiva singular do que se
convencionou chamar de história das mentalidades. Suas preocupações estavam atentas,
como já foi destacado, a reconstituir práticas populares assimiladas à bruxaria tanto no plano
individual como no de classe, estando muito mais próximo da proposta dos historiadores
ingleses, como Hobsbawm, que dos franceses:
serial, em muitos aspectos havia também proximidades, o que permitiu a transição de vários historiadores nessas
duas áreas, como foi o caso de Philippe Ariès, por exemplo.
169
GINZBURG, Carlo. I benandanti. Stregoneria e culti agrari tra cinquecento e seicento. Torino: Einaudi.
1966, p.VII.
170
HOBSBAWM, Eric. Foreword, The night battles. witchcraft and agrarian cults in the sixteenth centuries.
London: Routlegde, 1983.
64
mentalidade dos populares acusados de bruxaria. Sublinhando o interesse nas confissões das
acusadas de um ponto de vista etnológico, ela analisou os encontros descritos pelas fontes
como fatos reais, interpretando a feitiçaria como uma remota religião, que tinha como origem
um culto pré-cristão de fertilidade, no qual os inquisidores só conseguiam ver a presença
171
diabólica. Ginzburg se apropria em parte da tese de Murray, porém critica as linhas gerais
do suposto culto de fertilidade por ter como base processos muito tardios, que não
consideravam a simbiose com a religião cristã, e nos quais a transformação dos ritos agrários
172
já havia sido completada (Sabá demoníaco). Hobsbawm, no prefácio da edição inglesa do
livro de Ginzburg, intitulado The night battles. witchcraft and agrarian cults in the sixteenth
centuries (1980) se mostrava atento a esse diálogo, destacando as contribuições do historiador
italiano para as pesquisas sobre o tema:
The story is local, but its relevance to the general study of the 'witch-cult' is
obvious. For here we have not Margaret Murray's subterranean old religion hostile
to Christianity but ritual practices which had long established a symbiosis with the
dominant religion – the benandanti originally regarded themselves as champions of
Christ against the devil – but which are forced into opposition (one of the accused
thought their practices were similar to those of the 'Turks, Jews and Heretics') by
173
Church policy.
171
GINZBURG, Carlo. I benandanti. Stregoneria e culti agrari tra cinquecento e seicento. Torino: Einaudi,
1966, p. IX.
172
Ibidem, p. X
173
Idem. The night battles: witchraft and agrarian cults in the sixteenth centuries. London: Routlegde, 1983.
174
Segundo o historiador James Amelang, em sua resenha sobre O queijo e os vermes, publicada em 2009 na
The Sixteenth Century Journal, Anne Schutte foi a primeira historiadora a escrever uma extensa análise dos
textos de Ginzburg na língua inglesa antes da publicação de O queijo e os vermes, em 1976. AMELANG, James
S. Reviewed Work: The Cheese and the Worms: The Cosmos of a Sixteenth-Century Miller by Carlo Ginzburg,
John Tedeschi, Anne Tedeschi. The Sixteenth Century Journal Vol. 40, No. 1, Special Fortieth Anniversary
Issue (Spring, 2009), pp. 31-34. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/40541095. Acesso em: 05 de janeiro
de 2016, p. 32
65
das resenhas sobre o livro é posterior ao ano de publicação, devido, principalmente ao grande
sucesso de O queijo e os vermes (1976), que projetou a tradução de suas produções
anteriores.
O historiador italiano naturalizado francês Alberto Tenenti (1924-2002), autor de
obras como Il senso della morte e l'amore della vita nel Rinascimento (Turim, 1957) e
Firenze dal Comune a Lorenzo il Magnifico (Milão, 1967), entre outras, destacou em sua
resenha crítica uma série de problemas que esse trabalho de Ginzburg apresenta. Para
Tenenti, ao tentar legitimar a sua tese sobre a feitiçaria, o autor acaba por impor sua
perspectiva do problema a priori. Para que o modelo explicativo proposto no caso dos
andarilhos fosse realmente confirmado, dever-se-ia explorar outros tipos de testemunho, não
apenas os inquisitoriais, e percorrer metodologicamente outros caminhos, adotando critérios
diversos de agrupamento e de datas, que pudessem elucidar de diferentes ângulos dos
problemas. Em suas palavras:
175
TENENTI, Alberto. Una nuova ricerca sulla stregoneria. Studi Storici. Anno 8, No. 2 (Apr. - Jun., 1967), pp.
385-390. Fondazione Istituto Gramsci. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/20562874. Acesso em: 05 de
janeiro de 2016. p. 386.
66
alla sua ricerca e annettere la più grande importanza alle serie archivistiche da lui
messe in luce. Un primo tipo di analisi che avrebbe potuto, con tutta probabilità,
venir applicato - su di un piano di riprova o almeno di complemento - era quello
statistico. Fidenti nelle di apposite carte geografiche. La mancanza di ogni tentativo
di tradurre cartograficamente i dati disponibili lascerà forse insoddisfatto qualcuno.
Data la ricchezza del materiale rinvenuto, era senza dubbio possibile far ricorso ad
uno o più quadri statistici. Rilevare la professione di ciascun benandante, la sua età
ed il sesso, le formule magiche impiegate, e così via, avrebbe probabilmente
approdato a dei risultati, como ogni altro raggruppamento di notizie classificabili. In
ogni caso, avrebbe meglio convinto il lettore della eventuale scarsa utilità di questi
procedimenti e gli avrebbe dato l'impressione di esser divenuto più partecipe della
176
realtà di cui l'opera tratta.
Ibidem, p. 386.
176
177
GINZBURG, Carlo. I benandanti. Stregoneria e culti agrari tra cinquecento e seicento. Torino: Einaudi,
1966. p. VIII
67
generali agli asserti più particolari. Ci si permetterà, perciò, di presentare qui una
serie di rilievi che investono solo un aspetto delle questioni in cui si è imbattutto
l’autore a proposito di questi benandanti del Friuli e che raccoglieremo intorno a
due quesiti: chi sono i benandanti? quali sono i loro rapporti con le credenze
cristiane e con le autorità ecclesiastiche? Ci sembra lecito insistere meno su una tesi
ormai classica come quella del Hansen quanto sulla validità delle sue rinnovate
applicazione: tre quarti di secolo dopo che è stata formulata è pur legittimo
178
individuare anche i limiti.
È forse opportuno ricordare che, per quanto li si veda su banchi opposti, gli
inquisitori ed i benandanti fanno parte di un unico vasto mondo di credenze.
Ciascuno agisce e si esprime in modo conforme ai propri interessi concreti ed al
proprio grado di cultura. Il conflitto che li oppone ha senso soltanto all'interno di
coordinate e di credenze comuni, entro l'orizzonte di un patrimonio magico
religioso sufficientemente omogeneo. Non si deve immaginare che degli sparuti
nuclei di sorciers abbiano la disavventura di comparire dinanzi a dei ferrati
dottrinari che non li capiscono. V'è certo una dose di equivoco e di tragica
incomprensione fra gli uni e gli altri: ma essa non deve mascherare la sostanziale
solidarietà dei rispettivi loro contatti con il soprannaturale e l'interazione secolare
181
tra le forme popolari di essi e quelle teoriche.
178
TENENTI, Alberto. Una nuova ricerca sulla stregoneria. Studi Storici. Anno 8, No. 2 (Apr. - Jun., 1967), pp.
385-390. Fondazione Istituto Gramsci. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/20562874. Acesso em: 05 de
janeiro de 2016, p. 387
179
Ibidem,
180
Ibidem,
181
Ibidem, p.387-388.
68
Para defender que “nel giro di un secolo i benandanti diventano (...) stregoni, e i loro
convegni notturni volti a procurare fertilità si trasformano nel sabba diabolico”, afirmando
“con sicurezza che la stregoneria diabolica si diffuse come deformazione de un precedente
182
culto agrario”, Ginzburg deveria expandir sistematicamente as comparações com crenças e
rituais agrários de outros lugares e momentos históricos, inclusive com a dos próprios
inquisidores. Afinal, o exame de um fenômeno tão vasto como a feitiçaria não poderia ser
feito a partir de uma abordagem unilateral, atenta apenas às dispersas documentações
inquisitoriais contra um grupo reduzido de indivíduos do norte da Itália.
Tenenti destaca que os cultos populares agrários, voltados para a fertilidade dos
campos, não são, como defende Ginzburg, uma característica exclusiva dos andarilhos do
Friuli; ao contrário, eles podem ser identificados em diferentes regiões do mundo ocidental,
como as crenças mágico-populares da península Ibérica, vivas entre os séculos XIV e XVI e
182
GINZBURG, Carlo. I benandanti. Stregoneria e culti agrari tra cinquecento e seicento. Torino: Einaudi,
1966. p.XII
183
TENENTI, Alberto. Una nuova ricerca sulla stregoneria. Studi Storici. Anno 8, No. 2 (Apr. - Jun., 1967), pp.
385-390. Fondazione Istituto Gramsci. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/20562874. Acesso em: 05 de
janeiro de 2016, p. 388-389.
69
evidenciadas em trabalhos como o de Di Martino di Arles, Tractatus de Superstitionibus, ou
184
La reprobación de las supersticiones y hechezerias, de Pietro Ciruelo. Somados à falta de
comparações com outras práticas ritualísticas agrárias, haveria no livro sobre os andarilhos o
problema da separação artificial entre inquisidores e hereges. O bloco doutrinário dos juízes
do Santo Ofício é postulado antes de seguir sua concreta articulação, sobretudo no que se
refere ao aparato da demonologia, radicado e desenvolvido nos diferentes estratos culturais
185
da sociedade em questão. Os andarilhos, por seu lado, não parecem menos distantes do
universo das crenças que os circundam: em suas concepções mágico-religiosas, poderiam ser
identificados elementos da liturgia culta. Dessa forma, o intercâmbio entre as crenças de
juízes e populares acaba por ser negligenciado por Ginzburg, na medida em que defende a
restituição das vozes desses marginais da História. Segundo Tenenti,
La tesi del Ginzburg ha richiesto perfino alla sensibilità di piegarsi alle sue
esigenze. Si tratta ancora una volta di dimostrare che i benandanti non possono
rimanere tali, quasi un relitto religioso: senza dubbio devono dimostrare d’inserirsi
anch’essi in uno sviluppo storico. Dovendo cambiar abito, l’autore fa loro
indossare quello di stregoni e trova che in tal guisa si trovano introdotti in una
razionalità: a suo parere, la stregoneria è una livrea teologica più vicina alla
ragione? Constatando, invece, quanto i contadini del Friuli - come quelli di gran
parte dei paesi europei - siano presi dalle loro pratiche reali o dalle loro
suggestioni fantastiche in uno stretto interscambio di elementi liturgici, diabolici e
magari pagani, non ci sembra di poterli ridurre ai seguaci di “un mito popolare
non agganciato a una qualsiasi tradizione colta e pertanto non influenzato da
186
fattori di unificazione e omogeneità.
184
Ibidem, p. 389
185
Ibidem, p. 389
186
TENENTI, Alberto. Una nuova ricerca sulla stregoneria. Studi Storici. Anno 8, No. 2 (Apr. - Jun., 1967), pp.
385-390. Fondazione Istituto Gramsci. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/20562874. Acesso em: 05 de
janeiro de 2016, p. 388-389.
70
187
“vagabonde”. Porém, Ginzburg prefere, de acordo com Tenenti, focar sua análise na
divisão forçada e, consequentemente, no confronto entre teologia jurídica e os esparsos
andarilhos:
Più di una volta l’autore si trova di fronte ad una specie di pigrizia o indifferenza
dei giudici o ad una sorta di tolleranza da parte loro nei riguardi dei benandanti (...),
e le considera il risultato dell’incapacità dei primi a classificare le credenze dei
secondi. Opportuno pare, dunque, ricordare quella che aveva voluto essere finallora
la pratica inquisitoriale. Come risulta dall’opera di Silvestro Prierias, ad esempio
(De strigimagarum daemomumque mirandis, l. III; c.4), gl’inquisitori dovevano
lasciar da parte e non perseguire le forme da loro considerate più lievi di
188
stregoneria.
187
Ibidem, p. 388-389.
188
Ibidem, p. 390.
189
Ibidem,
71
190
inevitabilmente deformante”. A análise das discrepâncias e defasagens entre as propostas
dos juízes e a defendida pelos acusados, por sua vez, seria o elemento central para acessar um
191
estrato de crenças genuinamente populares. Para a resenhista norte-americana Anne
Schutte, contudo, isso não seria o suficiente:
Yet, given certain factors which he himself recognizes the inquisitors' perception of
the benandanti through the screen of their own preconceived notions about
witchcraft (a key point of his thesis), the prosecutors' techniques of interrogation
(which involved heavy reliance on leading the witnesses), and the linguistic barrier
between the Italian-speaking officials of the Inquisition and the peasants, who spoke
in Friulian dialect – how can we be certain that we are in direct touch with the world
of peasant beliefs? The device of focusing on gaps between what the inquisitors
wanted to hear and what they were actually told does not appear to be a tool keen
192
enough to cut through these multiple layers of ambiguity.
190
GINZBURG, Carlo. I benandanti: Stregoneria e culti agrari tra cinquecento e seicento. Torino, Einaudi,
1966, p.VIII.
191
Ibidem., p. XIV.
192
SCHUTTE, A. Jacobson. Periodization of Sixteenth-Century Italian Religious History: The Post-Cantimori
Paradigm Shift. The Journal of Modern History. Vol. 61, No. 2 (Jun., 1989), pp. 296-315. University of
Chicago Press. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1880861. Acesso em: 05 de janeiro de 2016. p.306.
193
GINZBURG, Carlo.I benandanti: Stregoneria e culti agrari tra cinquecento e seicento. Torino, Einaudi,
1966, p.XV
72
How many benandanti were there, and what proportion of the Friulian
population did they constitute? How were they distributed geographically in the
region? What were their ages, sexes, occupations, and income levels? If one is
studying a group, should not its members be treated as a group and subjected to
all the techniques of group analysis developed by modern historians and social
194
scientists that the available data permit?
194
SCHUTTE, A. Jacobson. Op. cit. p. 306
195
Ibidem,
196
SCHUTTE, A. Jacobson. Periodization of Sixteenth-Century Italian Religious History: The Post-Cantimori
Paradigm Shift. The Journal of Modern History. Vol. 61, No. 2 (Jun., 1989), pp. 296-315. University of
Chicago Press. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1880861. Acesso em: 05 de janeiro de 2016, p.304
73
Martino, nonché delle ricerche di Bloch sulla mentalità medievale, spiega in parte
197
(anche se non giustifica) questa lacuna.
197
GINZBURG, Carlo. I benandanti. Stregoneria e culti agrari tra cinquecento e seicento. Torino: Einaudi,
1966, p. XII.
198
Ibidem, p. XIII.
199
NARDON, Franco. Benandanti e inquisitori nel Friuli del Seicento. Trieste. Università di Trieste. 1999.
74
facilitado após a abertura dos arquivos inquisitoriais pela Igreja Católica em meados da
década de 1990, Nardon analisa minuciosamente os arquivos do Santo Ofício de Udine
durante mais de dez anos, produzindo um material de grande valor para o enriquecimento da
compreensão dos andarilhos, dos inquisidores e do amplo quadro social em que estavam
inseridos – e não deixa de ser curioso perceber que foram necessárias três décadas para que
algum estudioso voltasse à documentação que subsidiou a abordagem ginzburguiana; afinal, a
História não é fundada em princípios de autoridade, mas sobre a análise das fontes, baseada
na crítica e na hermenêutica. Como escreveu o historiador Andrea del Col no prefácio do
livro de Nardon, os historiadores profissionais tendem a ter uma estranha hesitação em
200
investigar áreas demarcadas por outros historiadores.
A investigação de Franco Nardon se inicia no período em que o livro de Ginzburg
termina, os meados do século XVII. O objetivo é aprofundar a investigação, num recorte
temporal que Ginzburg negligencia em sua pesquisa, e compreender melhor aspectos das
práticas dos andarilhos e dos juízes do Santo Ofício. Nesse sentido, o historiador buscou
ampliar a base documental para análise, identificando e acrescentando processos adicionais,
conjuntamente com toda uma gama de fontes de tradições populares, inclusive fontes orais
contemporâneas. Com o auxílio da antropologia, Nardon produz um rico e complexo
trabalho, de grande valor para compreensão de aspectos da feitiçaria da península Itálica de
meados do século XVII.
Como seria de se esperar, o livro ainda apresenta as mudanças da historiografia
contemporânea a respeito do tema da feitiçaria na Europa, com destaque para as pesquisas de
Ginzburg. Com objeções aos seus métodos e as interpretações, especificamente, Nardon
destaca a influência da obsoleta proposta do alemão Joseph Hansen, na qual, como vimos, a
formação do sabá demoníaco seria resultado das pressões dos inquisidores. De acordo com
sua interpretação, a inquisição romana não teve uma ação centralizadora e impetuosa, como
defende Ginzburg a partir de Hansen, sendo caracterizada por ações muitas vezes moderadas,
201
marcadas por ações arbitrárias de inquisidores de tribunais periféricos. Segundo o autor,
200
Ibidem, p. 8.
201
Ibidem, p. 12.
75
In materia di stregoneria, un precoce scetticismo fu alla base delle convinte
repressioni dei repressori· già dalla seconda metà del Cinquecento: con esse, la
Congregazione salvò la vita a decine di streghe inquisite. Questa moderazione
cinquecentesca smentisce uno dei capisaldi della storiografia precedente che
condizionò anche (...) Ginzburg, secondo cui la fine delle persecuzioni
sistematiche in Italia non arrivò che nei primi decenni del Seicento: è un punto di
202
grande interesse, perché tocca da vicino la storia dei benandanti.
202
Ibidem, p. 12
203
Ibidem, p. 29
204
Ibidem, p. 65
205
Ibidem, p. 31.
76
Uomini e donne benandanti avevano in comune la prerogativa di curare le vittime
dei malefici stregoneschi, oltre che di individuarne i responsabili e di palesarli alla
comunità. L'attenzione privilegiata rivolta da Ginzburg ai racconti delle estasi e
delle battaglie notturne, dei miti legati all'oltretomba, una prospettiva volta quasi
soltanto alla comprensione del pensiero, della mentalità e dei valori di un numero
limitato di benandanti, ha finito fatalmente per eclissare il gruppo dei benandanti
206
terapeuti attivi nella società dell'epoca, in un momento storico significativo.
Va tuttavia detto che per lungo tempo novità culturali e innovazioni tecniche e
scientifiche segnarono il passo rispetto a comportamenti e valori tradizionali.
Inoltre centri di poche migliaia di abitanti come Udine mantenevano, nella
divisione vicinale, nella struttura sociale ed economica un carattere agricolo, e
un'evidente arcaicità di connotati culturali: per tutto il Seicento, il Sant'Uffizio
accolse un flusso costante di denunce contro i malèfici tradizionali e gli individui
alfabetizzati praticanti la magia cerimoniale, contro coloro che recitavano ancora
scongiuri volti ad allontanare i lupi che minacciavano i pascoli e i borghi più
esterni, contro ogni sorta di maliarde e praticoni attivi all'interno della città. Patti
agrari orali e consuetudini tradizionali regolavano la vita e le attività produttive
della società rurale urbana, le organizzazioni corporative dei vicini. D'altra parte,
l'esistenza di un'articolazione sociale più complessa e di modelli culturali
maggiormente differenziati nella città. rispetto alle campagne costringevano
l'Inquisizione a non occuparsi soltanto delle pratiche di magia bassa, parecchio
diffuse anche tra le classi più elevate, ma anche delle forme magiche di
206
Ibidem, p. 31.
207
Ibidem, p. 31.
208
Ibidem, p. 32.
77
derivazione colta e della vasta proliferazione intermedia dovuta a preti, frati,
209
artigiani alfabetizzati, ciarlatani.
Para Nardon, enfim, as práticas dos andarilhos continuaram vivas, transmutadas para
além da região em que emergiram; somado a isso, haveria o fato de que a repressão
inquisitorial no Friuli não fora tão intensa, como defendia Ginzburg. A perseguição do Santo
Ofício ao culto agrário circunscrito, que coincide com a ampla perseguição à bruxaria na
Europa, não deve ser assumida como elemento necessariamente intrínseco, pois ambos os
processos seguem transformações específicas, e as práticas mágico-religiosas do Friuli
mantiveram características autônomas, que ao longo dos séculos perderam a heterodoxia dos
seus costumes. Deste modo, considerar as falas presentes nas fontes inquisitoriais como
evidências reais das condutas dos andarilhos a partir da hipótese de um colapso de valores, ou
210
como sinais de uma mudança global de mentalidade, seria no mínimo questionável. Para
Nardon, deve-se considerar, nos processos inquisitoriais, o papel individual de cada juiz e
suas respectivas concepções, que buscavam encontrar falhas nas declarações dos acusados ou
verificar determinados tipos de infrações. Ou seja, Ginzburg acabava por estereotipar todo o
conjunto de juízes num bloco único, associados somente à repressão.
(...) si può dedurre che la personalità, la volontà del giudice e il tipo di procedura
giudiziaria adottato nelle varie circostanze condizionano parecchio gli asserti degli
inquisiti, asserti che, serve ricordarlo, non sono un prodotto autonomo e volontario.
Il giudice orienta l'indagine del loro pensiero verso scopi precisi: nel caso di
Michele Soppe, supportare l'ipotesi di maleficio con dettagliate descrizioni delle
conventicole diaboliche cui il reo confesso ammette di prendere parte. A queste
riunioni notturne Missini crede: la confessione, opportunamente stimolata,
costituisce per il giudice, ma non per la Congregazione romana, una prova di
211
colpevolezza.
A análise que Nardon desenvolve considera as ideias específicas de cada juiz ao longo
do processo, buscando entender como cada um agiu, quais suas interpretações a respeito da
feitiçaria e quais os procedimentos adotados, como demonstrado na citação acima –
elementos cognitivos cruciais para uma correta interpretação das fontes. O historiador
observa que, na segunda metade do século XVI, o inquisidor que interrogou os primeiros
209
Ibidem, p. 32.
210
Ibidem, p. 33
211
Ibidem, p. 66.
78
andarilhos estava determinado a provar a heresia dos populares para assim superar um
conflito de competência com outro inquisidor, por isso se interessou pela descrição minuciosa
das batalhas noturnas e não pelas práticas terapêuticas. Durante o século XVII, o objetivo
principal do tribunal sagrou-se em combater as práticas de cura e expulsão das bruxas por
212
parte dos benandanti, tornando secundário o interesse nos rituais agrários.
212
Ibidem, p. 67.
213
Ibidem,
214
Ibidem, p. 184.
79
Recorrendo à análise quantitativa, para melhor compreender a complexa relação entre
inquisidores e andarilhos, Nardon destaca que os processos continuaram após esse período:
(...)fino agli anni Trenta del Seicento, esso non è rintracciabile nei documenti
friulani. Tuttavia non si può dire con certezza quando apparve in Friuli, se e come
sopravvisse in qualche forma spontanea e autonoma rispetto ai procedimenti
inquisitoriali, dai quali di solito scaturiva, quanta importanza abbia mantenuto nel
contesto della magia e della stregoneria popolare, basate essenzialmente sul
maleficium, e non altro, e rispetto all'antica mitologia dei benandanti, fondata su
necromanzie, viaggi estatici nell'oltretomba, colloqui coi defunti e battaglie
217
oniriche per le messi.
215
Ibidem, p. 36
216
TENENTI, Alberto. Una nuova ricerca sulla stregoneria. Studi Storici. Anno 8, No. 2 (Apr. - Jun., 1967), pp.
385-390. Fondazione Istituto Gramsci. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/20562874. Acesso em: 05 de
janeiro de 2016, p.386
217
NARDON, Franco. Op. cit. p. 37.
80
meados da década de 1960. A comparação imediata entre as obras, sem qualquer mediação, é
descabida; portanto, ainda assim, para além da metodologia ou das fontes utilizadas, não há
como deixar de notar que foram as escolhas ideológicas de Ginzburg que o fizeram abordar
as práticas dos andarilhos a partir de um ângulo muito específico. No caso, sua reconstituição
da realidade do passado a partir da relação entre alta e baixa cultura, por atentar apenas aos
aspectos da segunda, colocou em primeiro plano suas ideias, crenças e comportamentos,
deixando em segundo plano os elementos constituintes da cultura erudita – ou seja, as
operações e os propósitos dos inquisidores, suas ações, concepções e personalidades. Tal
procedimento, obviamente, acabava por interferir na análise mais profunda das fontes,
levando-o a negligenciar o rigor da crítica interna e externa dos documentos. Suas escolhas
tornaram-se um problema para o seu próprio objetivo, restaurar as vozes dos marginalizados
pela História. Segundo Nardon,
218
Ibidem, p. 224
81
juízes, e apenas à luz das escolhas particulares destes é que as ideias dos acusados podem ser
219
interpretadas.
Em contrapartida, as escolhas teórico-metodológicas e ideológicas de Ginzburg na
produção de seu primeiro livro são esclarecedoras de suas aproximações e distanciamentos
frente ao trabalho de Delio Cantimori e Aby Warburg. Assim como Cantimori, Ginzburg
recorria a aspectos da filologia hermenêutica para reconstruir uma realidade do passado
delimitada; porém, diferente de seu professor, centrava-se numa análise unilateral, operando
apenas com os documentos inquisitoriais, negligenciando uma gama documental fundamental
para a aplicação do chamado “método histórico positivo”. Talvez esse distanciamento
estivesse ligado com suas escolhas ideológicas, pois estava mais preocupado com a análise de
classes, encontrando nas leituras das obras de Hobsbawm e Gramsci elementos para a sua
hipótese do conflito entre a cultura erudita e popular.
Ao que se refere à presença da obra de Warburg, nota-se que a estadia de um ano em
Londres, no Instituto (1964) ⎼ o qual lhe foi apresentado por Cantimori e onde esteve a
220
convite de Gertrud Bing ⎼, foi extremamente significativa para sua obra. A presença dos
estudos iconológicos auxiliados pela filologia, tendo em vista a compreensão da realidade das
imagens num duplo movimento, do particular ao geral, em que a ilustração é concebida como
um indício de uma realidade maior, fica clara em seu livro sobre os andarilhos. Ginzburg
iniciava sua proposta no livro objetivando compreender realidades individuais, mas sugeria,
para a compreensão destas, expandir a visão do objeto, propondo a reflexão dos itinerários
migratórios que teriam mantido vivas aquelas crenças circunscritas. Todavia, Ginzburg se
apropria dos estudos de Warburg para investigar aspectos da cultura popular, inferindo
alcances muito mais amplos do que o historiador da arte, que não inferia realidades sem antes
legitimar por meio de documentos apropriados.
As marcas das influências de Cantimori e Warburg continuaram presentes na segunda
publicação, O queijo e os vermes, do historiador italiano, com destaque a temática da heresia
e a dupla perspectiva análitica (do particular ao geral), tendo como base a filologia a partir da
Ibidem, p. 226.
219
220
GINZBURG, Carlo. .I benandanti. Stregoneria e culti agrari tra cinquecento e seicento. Torino, Einaudi,
1966, p. XIV.
82
interpretação hermenêutica das leituras do protagonista do livro, Menocchio. No entanto, a
abordagem historiográfica de Ginzburg também se altera com a incorporação de novas
perspectivas analíticas, como no caso do conceito de circularidade emprestado da obra do
literário russo Mikhail Bakhtin, passando a conferir maior complexidade para o esquema
interpretativo do italiano, que percebia a relação entre inquisidores e acusados através do
conflito cultural.
O próximo capítulo analisará melhor as possíveis continuidades e distanciamentos
entre Os andarilhos do bem e O queijo e os vermes, ressaltando aspectos críticos da segunda
obra.
83
CAPÍTULO 3: CULTURA POPULAR: CIRCULARIDADE ENTRE ERUDITO E
SUBALTERNO.
221
GINZBURG, Carlo. Il nicodemismo. Simulazione e dissimulazione religiosa nell’ Europa del’ 500, Einaudi,
1970.
222
BAKHTIN. Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no renascimento: contexto de François Rebelais.
São Paulo: HUCITEC, 1987.
223
KUSCHNIR, Karina. Bakhtin, Ginzburg e a cultura popular. Cadernos de campos, São Paulo, n° 3, 1993, p.
77.
84
carnaval), nas obras cômicas de caráter verbal e no vocabulário grotesco, os quais formavam
um conjunto de expressões que representariam a real cultura subalterna e sua concepção de
vida. Sua unidade cultural seria o resultado da negação de toda hierarquia social,
principalmente a religiosidade feudal, marcada pela sua contraditoriedade interna, e pelo
224
lugar de destaque do riso. Rabelais teria filtrado esses elementos para a literatura, num
225
gênero denominado por Bakhtin de “realismo grotesco”, ao adentrar no universo popular
da sua época, recriando em quatro volumes a vida e as aventuras dos lendários gigantes
Gargantua e Pantagruel, com os quais marcou um momento decisivo na própria constituição
226
da língua francesa contemporânea. Na prosa do erudito francês seria perceptível duas
culturas diferentes, que nem sempre se delimitavam com clareza: uma cultura erudita,
materializada no seu interesse pelos clássicos em latim; e a outra, popular, interessada no que
era contado nas praças públicas. A criatividade de Rabelais guardaria elementos desse
hibridismo, onde o popular se apresentava como parte de uma singular cultura, com
profundas raízes temporais.
O trabalho de Bakhtin buscou mapear esses códigos e ideais que movimentavam os
personagens das praças públicas medievais e da literatura renascentista. Entretanto, atentava
para o exame da “originalidade” da cultura subalterna presente nos livros do francês, uma vez
que “não só a literatura, mas também as utopias do Renascimento e a sua própria concepção
carnavalesca do mundo estavam profundamente impregnadas pela percepção carnavalesca do
227
mundo e adotavam frequentemente suas formas e símbolos”. Para ele, as origens da riqueza
cultural do Renascimento não residiam no “retorno” aos temas “clássicos” da antiguidade ou
no abandono das “trevas medievais”, mas encontrava-se na penetração da cultura popular,
com sua força subversiva e transformadora, no seio da alta cultura letrada, da qual Rabelais
seria apenas um exemplo.
Ao propor a contextualização da obra de Rabelais, devolvendo a sua originalidade
para as culturas populares sob a perspectiva do conflito cultural, o filósofo russo reforçava as
224
BAKHTIN. Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no renascimento: contexto de François Rebelais.
São Paulo: HUCITEC, 1987, p.22-23
225
Ibidem., p.17
226
KUSCHNIR, Karina. Bakhtin, Ginzburg e a cultura popular. Cadernos de campos, São Paulo, n° 3, 1993, p.
79.
227
BAKHTIN, Op. cit. p. 10.
85
perspectivas do historiador italiano. A publicação, em 1972, do ensaio “Folclore, Magia e
Religião” como parte do volume sobre os Catatteri originali da Storia d’Italia, demonstrava
228
a atenção de Ginzburg à chave interpretativa proposta por Bakhtin. O artigo propunha
pensar a vida religiosa italiana numa chave de longa duração e a partir do conflito entre a
religião oficial e a religião popular, caracterizado pelo esforço da segunda em anular e
subverter toda a autonomia da primeira. O “alto” buscaria cancelar o elemento transformador
que, segundo Ginzburg, advém do “baixo” – ou seja, o potencial transformador da religião
estaria diretamente relacionado com o contato com o popular. Os primeiros momentos desse
conflito remeteriam ao tempo de Carlos Magno, que, convertido ao catolicismo, inicia o
processo de evangelização da Itália, lançando a imposição da concepção cristã sobre as
crenças camponesas:
No século XIII, a figura de São Francisco de Assis também fora evocada nessa
perspectiva, na medida em que sua pregação recorria a elementos populares para reivindicar
mudanças nas práticas da Igreja Católica, como a devoção à pobreza e o fim do
tradicionalismo nas pregações. Não propôs, contudo, uma nova ordem social em função da
recusa em romper com a hierarquia eclesiástica, tendo ao longo do tempo suas concepções
apropriadas pela Igreja, transformada em Ordem Monástica. Segundo Ginzburg, Francisco de
Assis favoreceu a apropriação por parte da Igreja Católica Romana de elementos populares
presentes em suas pregações, os quais, após a depuração das propostas de transformação,
foram utilizados no longo processo de aculturação:
228
GINZBURG, Carlo. Folklore, magia, religione. Storia d’Italia, vol.I. I caratteri originali, Giulio Einaudi
Editore, Torino 1972.
229
Ibidem, p. 8.
86
testimoniata dai Vangeli. (...) era facile, perciò, trasferire questa esperienza in un
contesto diverso, tale da snaturarla. È ciò che fece, mentre Francesco era ancora
vivo, la curia romana. Fu usato finché serviva, e poi messo in disparte. Poco prima
di morire egli guardò con doloroso distacco la realtà dell'ordine che aveva pur finito
col fondare, e si sentí tradito. A torto, in un certo senso: date le premesse, l'esito
230
storico del francescanesimo era probabilmente inevitabile.
All’inizio del nuovo secolo, il giubileo del 1300 suggellò la vittoria della gerarchia
su tutte le spinte eversive proveniente dal basso. (...). Bisognerà arrivare al
Cinquecento perché si riproduca una situazione altrettanto pericolosa di spinte
incontrollate dal basso. E anche allora, soltanto a prezzo di un profondo
231
rinnovamento la Chiesa riuscirà a sopravvivere.
Tendo em vista legitimar sua análise, a qual pressupõe a existência da diferença entre a
cultura letrada e cultura popular, Ginzburg caracterizava a distinção entre cultura urbana,
carnavalesca, e a cultura camponesa, baseada em crenças orais e expressa em dialetos que,
por isso, se manteve distante da cultura letrada durante séculos. Essa relativa autonomia
manteve-se até meados do século XIV, período no qual se intensifica a perseguição às
heresias na Itália. Tais estratos da cultura oral camponesa, inclusive, só puderam emergir a
partir do contato com a Inquisição, pois a perseguição ampliaria o contato entre níveis
culturais distintos. A própria imagem do Sabá estaria conectada diretamente com esse
processo de aculturação e subversão das crenças populares italianas.
230
Ibidem, p.16.
231
Ibidem, p. 19.
87
lo snaturamento dei culti agrari prestregoneschi in culti demoniaci. Una seconda
232
volta, attraverso la repressione e il soffocamento di questi ultimi.
O clássico sabá demoníaco, com suas inversões, seria assim produto da violenta
junção de crenças populares a crenças letradas. Processo histórico que teve seu auge no
século XIV, com o período do Renascimento, o fim do monopólio da escrita e a emergência
da Contra Reforma. A essa última, Ginzburg associou duas consequências: a ascensão dos
jesuítas, responsáveis pela apropriação de aspectos da religião popular em nome da hierarquia
eclesiástica; e a submissão final do mundo rural italiano à Igreja Católica, que não
desaparece, mas passa a existir sob a forma de um sincretismo marginal.
Para Anne Schutte, a proposta de pensar a história religiosa italiana sob a perspectiva
de clivagem cultural e urbana/rural seria válida, mas fora pouco explorada no texto. O ponto
crítico, uma vez mais, residia na falta de análise de outros processos europeus, impedindo
mensurar a singularidade do caso italiano. No entanto, a historiadora destaca a qualidade dos
trabalhos de Ginzburg; pois, ao se apropriar conceitualmente de outras disciplinas, como a
perspectiva conceitual e descritiva da antropologia, ele revitalizou as pesquisas históricas
sobre a temática:
Ginzburg – whose views are obviously left-wing but seem not to reflect adherence
to a particular movement or party – lays his political cards on the table. But his
doing so is detrimental to non-Italians' understanding of Italian religious history in
the last two or three centuries. His treatment of national religious history in terms of
two cultural levels and an urban-rural split, on the other hand, is quite successful,
although it is unfortunate that his assignment did not permit him to pursue these
themes comparatively, in order to discover how typical the Italian situation was. His
connection of the social and religious values of the carnival inversion of everyday
relationships, which bears comparison with recent anthropological studies of
revitalization movements, is suggestive. Here and elsewhere in his work, he uses
concepts developed in other disciplines in a gracefully eclectic and most effective
way, rather than positing elaborate models couched in unattractive, obscure,
233
social-scientific jargon.
Não é difícil perceber que a análise que propunha da História religiosa italiana sob a
perspectiva do conflito entre popular e erudito se conectava como os trabalhos anteriores de
Ibidem, p. 49-50.
232
233
SCHUTTE, Anne Jacobson. Periodization of Sixteenth-Century Italian Religious History: The
Post-Cantimori Paradigm Shift. The Journal of Modern History. Vol. 61, No. 2 (Jun., 1989), pp. 296-315.
University of Chicago Press. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1880861. Acesso em: 05 de janeiro de
2016, p. 308.
88
Ginzburg, mas se fortalecia com a perspectiva dialética e “fonocêntrica” de Bakhtin – uma
chave de leitura fundamental para o mundo dos conflitos culturais na Idade Média e no
Renascimento.
As referências apontadas até aqui são cruciais para o retorno de Ginzburg a uma
coleção do período da pesquisa sobre os andarilhos do bem. No Arquivo do Estado de Udine,
ainda em meados da década de 1960, ele se havia deparado com dois longos processos contra
o moleiro friulano Domenico Scandella, conhecido como Menocchio, referentes aos anos de
1583 e 1599. Acusado de heresia por seus conterrâneos, Menocchio fora morto pela
Inquisição após o término do segundo processo, por volta de 1601. Aos olhos do historiador,
mais uma vez a discrepância entre as perguntas dos juízes e as respostas dos acusados
destacava-se sob o aspecto do bizarro, por meio do qual a análise seria capaz de acessar
estratos do popular.
As fontes inquisitoriais eram as mesmas dos benandanti, mas havia continuidades e
descontinuidades entre uma pesquisa e outra, entre o desenvolvimento de cada uma delas. O
conceito de mentalidade, utilizado no primeiro momento, passa a ser questionado em prol do
conceito de cultura; os cultos agrários associados à feitiçaria são deixados de lado para uma
análise de caso, mas que ainda envolve os processos inquisitoriais; a proposta da análise sob
o prisma do conflito cultural se enriquece com a incorporação das reflexões de Bakhtin.
Somado a essas perspectivas, por fim, havia ainda o contínuo interesse no acesso a estratos
culturais populares na intersecção entre curta e longa duração; ou seja, a pesquisa atenta ao
evento e à estrutura, ao novo que emerge também das concepções populares e às
permanências, as quais acabam por entrar em conflito; interesse que dialogava diretamente
com a análise iconológica warburguiana, atenta aos elementos sociais que permeiam a
constituição das imagens, e suas respectivas relações com as migrações humanas.
234
GINZBURG, Carlo. il formaggio e i vermi. il cosmo di un mugnaio del '500. Torino, Giulio Einaudi. 2009.
89
seus ideais e pensamentos. Mais especificamente, questionava as possíveis origens de sua
concepção de mundo, que tinham como base uma singular cosmologia, no surgimento da
vida na putrefação do queijo, e fortes críticas à hierarquia eclesiástica:
Cominciò denunciando l'oppressione esercitata dai ricchi sui poveri attraverso l'uso,
nei tribunali, di una lingua incomprensibile come il latino: “Io ho questa opinione,
che il parlar latin sia un tradimento de' poveri, perché nelle litte li pover'homini non
sano quello si dice et sono strussiati, et se vogliono dir quatro parole bisogna haver un
avocato”. Ma questo non era che un esempio di un generale sfruttamento, di cui la
Chiesa era complice e partecipe: “Et mi par che in questa nostra lege il papa,
cardinali, vescovi sono tanto grandi et ricchi che tutto è de Chiesa et preti, et
strussiano li poveri, quali se hanno doi campi a fitto sono della Chiesa, del tal
235
vescovo, del tal cardinale”.
235
Ibidem, p. 34.
90
conectada, de acordo com Ginzburg, a um ramo autônomo de crenças populares. Novamente,
o historiador se utilizava da análise filológica para recuperar as possíveis leituras e as formas
de ler do moleiro, perseguindo as deformações, os desvios e lacunas que teriam sido
efetuadas inconscientemente e que permitiriam inferir sobre interpretações do camponês e
sobre o mundo rural italiano:
(...) Menocchio leggeva i suoi libri: come isolava, magari deformandole, parole e
frasi, accostando passi diversi, facendo scoccare fulminee analogie. Ogni volta il
confronto tra i testi e le reazioni di Menocchio ci ha indotti a postulare una chiave di
lettura da lui oscuramente posseduta, che i rapporti con questo o quel gruppo
ereticale non bastano a spiegare. Menocchio triturava e elaborava le sue letture al di
fuori di qualsiasi modello prestabilito. E le sue affermazioni piú sconvolgenti
nascevano a contatto con testi innocui come i Viaggi di Mandeville o l'Historia del
Giudicio. Non il libro in quanto tale, ma l'incontro tra pagina scritta e cultura orale
236
formavano nella testa di Menocchio una miscela esplosiva.
“Io ho detto che, quanto al mio pensier et creder, tutto era un caos, cioè terra, aere,
acqua et foco insieme; et quel volume andando cosí fece una massa, aponto come si
fa il formazo nel latte, et in quel deventorno vermi, et quelli furno li angeli; et la
santissima maestà volse che quel fosse Dio et li angeli; et tra quel numero de angeli
ve era ancho Dio creato anchora lui da quella massa in quel medesmo tempo, et fu
fatto signor con quattro capitani, Lucivello, Michael, Gabriel et Rafael. Qual
Lucibello volse farsi signor alla comparation del re, che era la maestà de Dio, et per
la sua superbia Iddio commandò che fusse scaciato dal cielo con tutto il suo ordine
et la sua compagnia; et questo Dio fece poi Adamo et Eva, et il populo in gran
multitudine per impir quelle sedie delli angeli scacciati. La qual multitudine, non
facendo li commandamenti de Dio, mandò il suo figliol, il quale li Giudei lo
237
presero, et fu crucifísso”.
236
Ibidem, p. 194.
237
Ibidem, p. 31.
91
Mas, se Menocchio prendia-se à sua própria experiência cotidiana, Ginzburg o leva
para mais longe: a sua crença poderia estar conectada a tempos mais remotos, uma vez que
revelava-se muito semelhante às interpretações propostas nos Vedas indianos:
Eppure questo rinvio all'esperienza quotidiana di Menocchio non spiega tutto; forse,
anzi, non spiega niente. Far scoccare un'analogia tra il coagularsi del formaggio e
l'addensarsi della nebulosa destinata a formare il globo terrestre, può sembrare
ovvio a noi: certo non lo era per Menocchio. Non solo. Nel proporre quest'analogia
egli riecheggiava senza saperlo miti antichissimi e remoti. In un mito indiano già
menzionato nei Veda l'origine del cosmo è spiegata con il coagularsi - simile a
quello del latte - delle acque del mare primordiale, battuto dagli dei creatori.
Secondo i Calmucchi, al principio dei tempi le acque del mare si coprirono di uno
strato consistente, come quello che si forma sul latte, da cui scaturirono piante,
animali, uomini e dei. “Nel principio questo mondo era niente, et... dall'acqua del
mare fu batuto come una spuma, et si coagulò come un formaggio, dal quale poi
nacque gran multitudine di vermi, et questi vermi diventorno homini, delli quali il
piú potente et sapiente fu Iddio”: piú o meno queste (salvo le possibili
238
semplificazioni già accennate) erano state le parole pronunciate da Menocchio.
Temos aqui um salto temporal semelhante ao proposto nos benandanti, que expressa
uma recusa às explicações trans-históricas ou a de um “inconsciente coletivo”, ou mesmo a
de pura coincidência. Apoiado pela combinação entre cautelosas explicações históricas e a
ideia das trocas culturais, o historiador propõe a conexão entre as crenças do moleiro do
Friuli com antigos textos sagrados indianos, por meio da transmissão oral:
238
Ibidem, p. 87-88.
239
Ibidem, p. 89.
92
primeira, preocupada em reconstituir as concepções de mundo do moleiro, a maneira com
que interpretava os textos e os manipulava singularmente; a segunda, voltada para uma
hipótese sobre a cultura rural da Europa medieval e moderna, e os caminhos migratórios da
cultura oral que comporiam essa realidade histórica. Algo muito semelhante aos estudos de
Warburg, que operava exames das imagens renascentistas nessas duas óticas, do singular ao
geral; porém os alcances do seus estudos sempre eram limitados ao o que a documentação
permitiria analisar, diferentemente de Ginzburg, que inferia conexões muito distantes, as
quais, em partes, não passavam de meras suposições. No prefácio à edição inglesa de 1980 de
O queijo e os vermes, Ginzburg destaca os caminhos que sua tese assumiu, caracterizando-a
como:
240
GINZBURG, Carlo. The Cheese and the Worms: The Cosmos of a Sixteenth-Century Miller. Baltimore.
Routledge, 1980, p. XII.
241
Ibidem,
93
O conceito de cultura, definido como “il complesso di atteggiamenti, credenze, codici
242
di comportamento e cosí via, propri delle classi subalterne in un dato periodo storico” , era
pensado numa lógica de classes. Desde seu primeiro artigo sobre Chiara, passando pelos
andarilhos e as reflexões sobre os heréticos da renascença, Ginzburg apresentava a
abordagem de processos históricos sob essa ótica. Uma luta cultural de classes, em que a
análise econômica não é central e nem determinante e as “massas” são percebidas como
sujeitos ativos, passíveis de interesse histórico, evidenciando a presença das obras de
Hobsbawm, Gramsci e Bakhtin.
242
GINZBURG, Carlo. Il formaggio e i vermi. il cosmo di un mugnaio del '500. Torino, Giulio Einaudi. 2009, p.
6.
243
No prefácio do livro O queijo e os vermes, Ginzburg faz um balanço da historiografia a respeito do popular
em alguns países da Europa como, Itália, França e Inglaterra durante a década de 1960 e 1970, para assim
explicitar as singularidades do seu estudo sobre a cultura popular, da qual o moleiro Menocchio faria parte.
244
CERTEAU, M. de; JULIA, D.: REVEL, J. A beleza do morto: o conceito de cultura popular. A invenção da
sociedade. Trad. Vanda Anastácio. Lisboa: Difel, 1989.
94
enunciação do popular, que em certo momento passa a questionar a existência do mesmo.
Não seria o popular uma criação do próprio discurso que o enuncia?
Para Ginzburg, na base dessa argumentação estariam os escritos do filósofo Michel
Foucault e o livro organizado em conjunto com seus alunos em 1977, Eu, Pierre Rivière, que
245
degolei minha mãe, minha irmã e irmão, composto de um conjunto de relatórios médicos,
processos judiciais e um memorial redigido pelo próprio Rivière, ao qual o filósofo não tece
nenhuma análise, pois, segundo Foucault, acabaria por enquadrá-lo no discurso psiquiátrico,
judicial ou médico. Mas, para Ginzburg, a recusa em interpretar os escritos de Rivière
acabaria por desembocar “l'irrazionalismo estetizzante”, num “populismo di segno
246
rovesciato” ; pois, ao recusar-se a relacionar Riviére com seu contexto e a cultura
dominante, perder-se-ia também o sentido da pesquisa histórica em si.
As reflexões de Ginzburg estavam centradas na cultura, a partir de uma lógica de
classes, bem distantes das preocupações de Foucault, atento aos mecanismos de exclusão.
Desta forma, reafirmava, mais uma vez, o seu distanciamento do conceito de mentalidades
em dois aspectos: em relação aos elementos inertes e irracionais que delimitam esse campo
de estudo, que desconsideraria o seu papel ativo, seu componente racional dos indivíduos na
sociedade em que estão inseridos; e em relação às características supostamente interclassistas
a que o termo mentalidade estaria atrelado ⎼ abordagem que valorizava os elementos de
similitude, com ênfase na homogeneidade e no consenso.
Ciò che ha caratterizzato gli studi di storia della mentalità è stata l'insistenza sugli
elementi inerti, oscuri, inconsapevoli di una determinata visione del mondo. Le
sopravvivenze, gli arcaismi, l'affettività, l'irrazionale: tutto ciò delimita il campo
specifico della storia della mentalità, distinguendola abbastanza nettamente da
discipline parallele e ormai consolidate come la storia delle idee o la storia della
cultura (che però per alcuni studiosi ingloba di fatto entrambe le precedenti).
Ricondurre il caso di Menocchio nell'ambito esclusivo della storia della mentalità
significherebbe quindi mettere in secondo piano la fortissima componente razionale
(non necessariamente identificabile con la nostra razionalità) della sua visione del
mondo. Ma l'argomento decisivo è un altro: la connotazione decisamente
interclassista della storia della mentalità. Essa studia, com'è stato detto, ciò che
hanno in comune “Cesare e l'ultimo soldato delle sue legioni, san Luigi e il
contadino che coltivava le sue terre, Cristoforo Colombo e il marinaio delle sue
245
FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Rio de Janeiro,
Graal. 1977.
246
GINZBURG, Carlo. il formaggio e i vermi. il cosmo di un mugnaio del '500. Torino, Giulio Einaudi, 2009, p.
9-10.
95
caravelle”. In questo senso l'aggettivo “collettiva” aggiunto a “mentalità” è il piú
247
delle volte pleonastico.
No centro de sua tese, estaria justamente a crença nos desníveis culturais, em suas
conflituosas relações de troca, entre Menocchio e os inquisidores. Daí a relevância dos
escritos de Bakhtin e do conceito de “circolarità” qual pressupõe desníveis culturais ao
analisar a obra de Rabelais, mas também um intenso “influsso reciproco” entre o erudito e o
248
popular, entre subalternos e hegemônicos. Eis seu ponto de sustentação:
Alle classi subalterne delle società preindustriali viene attribuito ora un passivo
adeguamento ai sottoprodotti culturali elargiti dalle classi dominanti (Mandrou), ora
una tacita proposta di valori almeno parzialmente autonomi rispetto alla cultura di
queste ultime (Bollème), ora un'estraneità assoluta che si pone addirittura al di là, o
meglio al di qua della cultura (Foucault). Ben piú fruttuosa, certo, è l'ipotesi
formulata da Bachtin di un influsso reciproco tra cultura delle classi subalterne e
249
cultura dominante.
Como ponto decisivo em sua produção, O queijo e os vermes foi de longe o livro de
250
maior vendagem e público de Carlo Ginzburg. A proposta de um estudo de caso, centrado
numa biografia muito peculiar e expresso numa narrativa fluida, favoreceu sua ampla
251
recepção no cenário italiano e internacional, no mundo acadêmico e não acadêmico. Seria
impossível destacar todos os trabalhos a respeito do livro, mas algumas críticas a pontos
fundamentais de sua tese podem ser apresentadas para pensar os limites da proposta
interpretativa da cultura popular.
Os motivos que levaram a ampla recepção do livro, não só na Itália, mas em todo o
mundo – até 2003, o exemplar contava com mais de 20 traduções, incluindo o japonês e
247
Ibidem, p. 16.
248
Ibidem, p. 9.
249
Ibidem, p. 11..
250
O próprio historiador destacou que seu livro sobre Menocchio foi o que atingiu maior sucesso, em entrevista
a historiadora Maria Lúcia Pallares-Burke, em 1998, p. 279. Ver também: DELGADO, J.; TIZÓN, T. G. La
revolución de Menocchio. El impacto de El queso y los gusanos de Carlo Ginzburg. Rey Desnudo. Año III, No.
6, 2015.
251
AMELANG, James. The Sixteenth Century Journal, 2009, p. 32.
96
252
Russo – são variados. Obviamente, Ginzburg não era um indivíduo qualquer: filho da
renomada romancista Natalia Ginzburg e de Leone Ginzburg, que ajudou a fundar a editora
Einaudi, tinha o seu nome vinculado aos grandes grupos intelectuais do país. No entanto, as
resenhas elogiosas do respeitado crítico, ensaísta e biógrafo Pietro Citati no jornal Corriere
della Sera, em 1976, destacando a reconstituição do universo de Menocchio no “libro molto
253
bello”, e a do historiador da literatura e da cultura popular Piero Camporesi (1926-1997),
em seu livro Il paese della fame (Il Mulino, 1978), no qual Ginzburg “ha magistralmente
ricostruito i i tempi e le vicende (...) ne è uscita una singolare biografia intellettuale d’una
254
‘vita’ oscura e subalterna, sottoposta a una lucida e stringente radiografia”, foram
fundamentais para abrir caminho na ampla recepção do livro, tanto no público especializado
como no não acadêmico.
A recepção do livro o tornou um marco historiográfico, o que certamente contribuiu
para a vasta divulgação do trabalho de Ginzburg e para o crescente prestígio que as suas
255
publicações continuam a adquirir ao longo dos anos, em todo o mundo. Todavia, o
exemplar mereceu também variadas críticas, bastante consistentes, como a destacada pelo
historiador italiano Edoardo Grendi, que questionou de passagem, em 1976, nos Quaderni
Storici, o desinteresse do autor em definir de forma mais clara e concisa o contexto
socioeconômico no qual Menocchio se inseria, se limitando a uma conjuntura puramente
cultural, deixando de interrogar a rede de relações pessoais que os próprios documentos
inquisitoriais enunciavam do moleiro – indagação que também se aplicava ao seu primeiro
livro sobre os andarilhos. Para Grendi, “la socialità di cui partecipa Menocchio, gli oltre dieci
amici e compari che egli cita nelle sue deposizioni, rimandano a un reticolo sociale che è
256
necessario conoscere proprio per giudicare una vicenda individuale”.
Todos os fios que levam à reconstituição da biografia do moleiro convergem para a
análise da origem de suas ideias – que, segundo Ginzburg, estaria na cultura popular –
252
COLONNELLO, A; DEL COL, A. (Org.). Uno storico, un mugnaio, un libro. Carlo Ginzburg, Il formaggio
e i vermi, 1976-2002. Trieste, Università di Trieste, 2003, p. 168-169.
253
Ibidem, p. 45.
254
Ibidem, p. 52.
255
ESPADA LIMA, Henrique A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006, p. 328.
256
GRENDI, Edoardo. A proposito di ‘famiglia e comunità’.questo fascicolo di Quaderni Storici. Quaderni
Storici 11, n. 33, 1976, p. 891. Disponível em http://www.jstor.org/stable/43900461. Acessado em 10/10/2016.
97
apresentadas nos autos do processo. Menocchio se conectaria a outros de seu tempo a partir
da relação entre língua e cultura, dos quais emerge limites invisíveis que tornam a
comunicação possível. Para o historiador, a cultura seria “una gabbia flessibile e invisibile”,
257
fornecendo um universo no qual a expressão e a comunicação são possíveis, mas que só
emergem com força diante do confronto. Assim, só seria possível delimitar o contorno da
cultura popular quando Menocchio choca-se com a cultura letrada:
Agli occhi dei compaesani Menocchio era un uomo almeno in parte diverso dagli
altri. Ma questa singolarità aveva limiti ben precisi. Dalla cultura del proprio tempo
e della propria classe non si esce, se non per entrare nel delirio e nell'assenza di
comunicazione. Come la lingua, la cultura offre all'individuo un orizzonte di
possibilità latenti — una gabbia flessibile e invisibile entro cui esercitare la propria
258
libertà condizionata.
Mas, assim como no livro sobre os andarilhos do bem, a análise centra-se no uso
exclusivo da documentação inquisitorial, não recorrendo a nenhuma outra fonte, deixando de
explorar as relações do moleiro com seu meio. Para a historiadora Paola Zambelli, Ginzburg
deveria ter explorado outras fontes para poder inferir quais as reais relações entre Menocchio
e a cultura letrada e popular. No artigo “Uno, due, tre mile Menocchio?” publicado em
Archichivio Storico italiano, em 1979, ela propôs uma crítica sistemática ao livro de
Ginzburg, a qual, expandida, foi publicada novamente no History Journal, em 1985, em
língua inglesa:
257
GINZBURG, Carlo. il formaggio e i vermi. il cosmo di un mugnaio del '500. Torino, Giulio Einaudi, 2009, p.
13.
258
Ibidem, p.13
259
ZAMBELLI, Paola. From Menocchio to Piero Della Francesca: The Work of Carlo Ginzburg. The Historical
Journal. Vol. 28, No. 4 (Dec., 1985), pp. 983-999. Cambridge University Press. Disponível em:
http://www.jstor.org/stable/2639333. Acesso em: 05 de janeiro de 2016, p. 985.
98
Apenas com um aprofundamento na análise da relação do moleiro com o seu meio,
através de outras fontes, é que se poderiam esclarecer os elementos populares e eruditos que
constituíram o seu discurso. Para a historiadora, a análise de Ginzburg forneceria uma
autonomia excessiva à cultura popular. Ao frisar que o objetivo era singularizar as falas do
moleiro e não diluí-lo no contexto da cisão entre Reforma e Contrarreforma, o historiador
acentua a perspectiva classicista do passado, se descuidando da proposta de circularidade:
That is, if I understand hint correctly, exemplary because it provides the 'clue' to a
situation which is universal, even though often obscured: the homogeneity of the
culture of a given society may only be the result, according to Ginzburg, of an act of
repression, whether it be the insinuation of inquisitors during interrogation, or the
indoctrination of popular culture by a higher culture. The relationship between these
two 'cultures' presents the fundamental methodological problem embodied by
Menocchio. Ginzburg, as we shall see, resolves it by denying any relation between
the two, apart from that of 'surprising coincidence' or as a pretext. The central thesis
of The Cheese and the Worms is to be found precisely in this denial; that is, in
maintaining that the myth of spontaneous generation arose is vacua from popular
260
culture.
Em suma, o historiador italiano enfatizava o conflito e trocas entre alto e baixo, mas,
ao apresentar as ideias do moleiro, sustentava que suas reflexões não surgiram dos livros que
leu e nem de contatos com grupos heréticos italianos. Elas teria suas origens em uma cultura
popular que remontaria a tempos distantes. Para Zambelli, haveria contradições entre a
proposta de circularidade cultural apresentada no prefácio e o que efetivamente é
desenvolvido no decorrer do livro. Ginzburg, ao defender a autonomia da cultura oral como
crivo das leituras de Menocchio, acabaria por diluí-lo nessa cultura, não considerando as
complexas relações dentro de estratos culturais. Afinal, “he seems unwilling to admit any
exchanges, for fear of once again falling into the old trap of seeing acculturation as always
261
travelling in one direction, from higher to lower”. O mesmo é feito com a cultura erudita,
apresentada como um bloco único e repressivo:
(...) Ginzburg let slip the admission that there are “more advanced sectors” in high
culture: from the book as a whole one gains the impression that this high culture is
represented as a single block of tradition and repression, “fortresses of written
culture”, which employ only offensive and lethal weapons and allow no internal
260
Ibidem, p. 986.
261
Ibidem, p. 988.
99
conflict and battles. Perhaps the miller's ideas do 'derive from an oral tradition', in
some way a secret one, but I find it improbable and in any case unproven that it is
262
“very ancient”.
262
Ibidem.
263
GINZBURG, Carlo. il formaggio e i vermi. il cosmo di un mugnaio del '500. Torino, Giulio Einaudi, 2009,
p.89
264
ZAMBELLI, Paola. From Menocchio to Piero Della Francesca: The Work of Carlo Ginzburg. The Historical
Journal. Vol. 28, No. 4 (Dec., 1985), pp. 983-999. Cambridge University Press. Disponível em:
http://www.jstor.org/stable/2639333. Acesso em: 05 de janeiro de 2016, p. 984
265
Ibidem, p. 989.
100
seria peça chave para se pensar essa relação, pois reuniria elementos de um pensamento
“científico”, filosófico e religioso da época.
(1) From the point of view of the biological sciences, generation sponte seu casu of the
lower species from putrefying matter was a topos still uncontested even later than the
period studied here. It was accepted unconditionally by eminent scientists such as
Mattioli, Rondelet and Fabrici d 'Acquapendente, as well as by Harvey and Gassendi. (2)
From the philosophical point of view, the extension of such a concept – a conglomerate
derived from suggestions by Hippocrates, Aristotle and other early naturalists, combined
with the neoplatonic and stoic notion of the vital spirit – was variously modified by a wide
range of thinkers. (...) (3) From the religious point of view, this notion was propounded,
more or less explicitly, as an alternative to that of the creation. If, as fist Lucretius and
later Giordano Bruno claimed, the origin of life on earth occurs as a result of a chance
process, this does not imply the intelligent, intentional and omnipotent intervention of
266
God.
Segundo Zambelli, a geração espontânea enquanto temática foi elaborada por uma
diversidade de pensadores contemporâneos ao moleiro. Em seu aspecto filosófico,
remontaria, principalmente, mas não somente, aos gregos Hipócrates e Aristóteles ao
proporem a ideia de espírito vital. Séculos depois, Lucrécio e Giordano Bruno utilizaram tal
concepção para propor uma alternativa às concepções eclesiásticas da criação divina do
homem; nesse sentido, o surgimento da vida nada devia à vontade divina, mas ao puro acaso.
Por fim, o tema fora encontrado nos círculos libertinos “italianos” por meio da obra de Pietro
Pomponazzi e Agostino Nifo, professores em Pádua no século XVI, que indiretamente teriam
chegado ao moleiro, pois este teria acessado livros na região.
Para Zambelli, a concepção do surgimento da vida da fermentação do queijo ligaria
Menocchio não aos antigos Vedas, mas a um ambiente muito mais próximo e plausível, como
entre os círculos cultos italianos de Veneza e Pádua. Afinal, segundo o próprio Ginzburg,
266
Ibidem, p. 990.
267
GINZBURG, Carlo. il formaggio e i vermi. il cosmo di un mugnaio del '500. Torino, Giulio Einaudi, 2009,
p.104.
101
Ginzburg infere como plausível a relação de Menocchio com o ambiente culto de
Pádua, por meio do contato com o seu amigo de longa data, o clérigo Giovan Daniele
Melchiori, também acusado de heresia, o que seriam indícios mais do que suficientes para
uma investigação mais atenta; a referência a essa ligação, contudo, não passa de algumas
linhas, posteriormente ignoradas. A originalidade e liberdade de escolha de Menocchio não se
mostrariam significativamente tão diferentes das de alguns estudiosos independentes e
respeitáveis do seu tempo, como Pietro Pomponazzi (1462-1525), de quem teria se
apropriado da teoria contrária à imortalidade da alma e da concepção do desenvolvimento do
mundo físico sem a presença divina. De acordo com Zambelli o “naturalism therefore is well
rooted in both Menocchio and Pomponazzi, and their theories on the role of religion are no
268
less related”.
Na compreensão de Paola Zambelli, as teorias de Menocchio seriam uma derivação
formulada por meio indireto dos meios libertinos, como sugerido pelo próprio Ginzburg
quando este cita o contato do moleiro com o pároco de Polcenigo. As reflexões de
Pomponazzi, que agregava muito do pensamento aristotélico – sendo inclusive apontado
como um dos grandes responsáveis pela disseminação da obras do filósofo grego na Europa,
principalmente na concepção do surgimento da vida –, teriam chegado a Menocchio por meio
dos comentários do também professor de Pádua Agostino Nifo (1469-1538) em Destructio
destructionum (Pádua, 1497), que, opondo-se a Pomponazzi, defendia a ideia católica da
269
imortalidade da alma, no início do século XVI.
268
Ibidem, p.992.
269
Ibidem,
102
Christian, but I am a Christian, and I don't want to become a Turk at all” (p. 98), he
is very close to the words of Averroes Destructio. His interpretation of Christ's
humanity is much nearer to this model than to the Anabaptists; “he claims that
Christ was `a man like us, born of man and woman like us... After God had
appointed him to be a prophet and had given him great wisdom and sent the Holy
Spirit to him, I believe he performed miracles” (p. 75). Averroes, and following him
Pomponazzi, in the De incantationibus invested prophe with an essential role in
religion, namely that of maintaining consensus and order among bestial people,
whom the arguments of philosophers could never tame. This role was fulfilled by
the sermons and miracles which moved the masses. To this end, according to
Menocchio, “priests and monks who have studied made the Gospels pretending that
270
it came from the Holy Spirits”.
270
Ibidem, p. 993.
271
Ibidem,
272
BILLACOIS, François. Carlo Ginzburg, II formaggio e i vermi. Il cosmo di un mugnaio del' 500, Turin,
Einaudi, 1976, 188 p., traduction française, Le fromage et les vers. In: Annales. Économies, Sociétés,
Civilisations. 36ᵉ année, N. 1, 1981, pp. 98-102.
103
Ni misérable ni cossu, cet artisan rural est en contact avec le seigneur du lieu, avec
les marchands de la ville, comme avec producteurs et consommateurs du cru. C’est
un petit notable: le nôtre fut fabricien et podestat. Comme le curé et l’aubergiste, il a
occupé une place marginale et un rôle central dans sociabilité villageoise. Le moulin
– solvent à l'écart des autres maisons – est un lieu privilégié oú s’échangent
informations, commérages, idées reçues et idées en quête de réception. Dans le
273
jargon actuel, on qualifierait les meuniers d'intermédiaires culturels.
O lugar social do moleiro em sua aldeia poderia dizer muito a respeito da composição
incomum de suas ideias, afinal, o próprio Ginzburg evidencia no prefácio do livro, que não
podemos “considerarlo un contadino ‘tipico’ (nel senso di ‘medio’, ‘statisticamente piú
frequente’) del suo tempo: il suo relativo isolamento nel villaggio parla chiaro. Agli occhi dei
274
compaesani Menocchio era un uomo almeno in parte diverso dagli altri.” No entanto, a
investigação das ligações socioeconômicas do moleiro em seu povoado são negligenciadas,
como já havia destacado Edoardo Grendi. Para Billacois, a apresentação das convicções de
Menocchio como reflexões de caráter pré-marxistas, também seria um problema, pouco
contornado pelo historiador.
Il y a chez l’auteur une tendance - réfrénée, mais pas toujours bien contrôlée - à
décrire la pensée de Menocchio (ou des paysans du Frioul) comme une réflexion
prémarxiste. Les passages où il analyse les rapports du Dieu personnel et des
hommes sur le modèle de rapports de production ne sont pas des plus
convaincants (pp. 73-76). Ni ceux sur l'attente d’un nouveau monde qui n’est pas
l’au-delà (ni non plus l’outre-Atlantique) et que l’Homme opprimé, mais lucide,
forgera dans un effort prométhéen (pp. 96-101). Tout cela est un peu forcé. Car
enfin ces ruraux du XVI siècle n’ont ni lu ni pressenti le Manifeste communiste;
mais ils ont expérimenté le réel comme sacré (et réciproquement). Formule pour
formule, je risquerai celle-ci: dans cette vision du monde, tout ce qui est naturel
275
est surnaturel et tout ce qui est surnaturel est naturel.
273
Ibidem, p. 99.
274
GINZBURG, Carlo. il formaggio e i vermi. il cosmo di un mugnaio del '500. Torino, Giulio Einaudi, 2009, p.
39.
275
BILLACOIS, François. Carlo Ginzburg, II formaggio e i vermi. Il cosmo di un mugnaio del' 500, Turin,
Einaudi, 1976, 188 p., traduction française, Le fromage et les vers. In: Annales. Économies, Sociétés,
Civilisations. 36ᵉ année, N. 1, 1981, p. 101.
104
forçada, segundo Billacois. Somado a isso, destaca-se a falta de delimitação mais precisa do
tempo e espaço ao qual o moleiro fazia parte. “Seulement un vallon préalpin au XVI siècle?”,
seguido de generalizações também questionáveis, pois “toute la face rurale de la Chrétienté
médiévale sur un millénaire ou plus?”. Fazendo um paralelo com a obra de Le Roy Ladurie,
276
Montaillou, o autor questiona a representatividade das pesquisas para além de seus objetos:
276
Montaillou é uma “história etnográfica” escrita por Le Roy Ladurie, talvez o livro mais famoso ligado aos
Annales. Livro que se propõe a analisar algumas décadas da existência de uma vila no sul da França, onde se
inicia uma perseguição aos hereges (cátaros) A singularidade da obra está em usar o método etnográfico, para
tentar descrever com precisão os costumes, hábitos cotidianos, casas, decoração, roupas alimentação, enfim
fazer um retrato histórico (vertical), mas sob uma perspectiva antropológica (horizontal). A obra de Ladurie se
conecta com o livro O queijo e os vermes porque ambas tratam de costumes populares, e uso de documentos
inquisitoriais como fonte. A diferença é que Montaillou é sobre uma cidade, sobre os efeitos em diferentes
pessoas de diferentes classes sociais, ao passo que O queijo e os vermes tem um “protagonista”, Menocchio.
277
Ibidem, p.102.
278
GINZBURG, Carlo. il formaggio e i vermi. il cosmo di un mugnaio del '500. Torino, Giulio Einaudi, 2009, p.
89.
105
et presque effacée de l’existence d’une tradition cosmologique millénaire qui,
par-delà les différences de langage, unit le mythe à la science.” Eh oui: à la
science. Car il y a analogie entre le lait qui caille en fromage et la nébuleuse
primitive qui se condense en planète Terre. Cette nébuleuse primitive, c’est une
hypothèse scientifique, ce n’est pas vraiment de la science… Si nous suivons
l’auteur jusqu’ici, et si nous admettons le raisonnement par analogie, nous ne
sommes pas sur le terrains de l’histoire, cette “science conjecturale”. Nous
sommes dans le domaine de la poésie. Domaine respectable entre tous où les mots
de la tribu s’unissent à la sensibilité de chacun; mais domaine où la critique
279
historique n’a plus qu’à se taire.
The first version seems to contain a contradiction which the Inquisitor was quick
to point out: God is both produced out of chaos and "eternal with it" (as holy
279
BILLACOIS, François. Carlo Ginzburg, II formaggio e i vermi. Il cosmo di un mugnaio del' 500, Turin,
Einaudi, 1976, 188 p., traduction française, Le fromage et les vers. In: Annales. Économies, Sociétés,
Civilisations. 36ᵉ année, N. 1, 1981, p. 102.
280
Ibidem,
281
VALERI, Valerio. Reviewed Work: The Cheese and the Worms: The Cosmos of a Sixteenth-Century Miller
by Carlo Ginzburg, John Tedeschi, Anne Tedeschi. The Journal of Modern History. Vol. 54, No. 1 (Mar., 1982),
pp. 139-143. University of Chicago Press. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1906080. Acesso em: 05
de janeiro de 2016. p.143.
282
GINZBURG, Carlo. il formaggio e i vermi. il cosmo di un mugnaio del '500. Torino, Giulio Einaudi, 2009, p.
p. 84
106
majesty). Menocchio's answer (whose subtlety can be appreciated by reading pp.
54-56) to this objection is that God was eternal with chaos but he was not
conscious of himself until chaos, moving by itself (p. 56), produced the process
described above. Even more than the first version the second seems to echo the
doctrine of the spontaneous generation of life from inanimate matters (p. 57),
which was common in the intellectual circles of Menocchio's time, especially at
the University of Padua,' not far from our miller's native Friuli. However.
Ginzburg believes that this similarity does not prove that Menocchio was inspired
by the ideas of the above-mentioned circles, nor does he think that the daily
experience of cheese-making is sufficient to explain Menocchio's choice of it as a
metaphor for his cosmogony; he claims instead that this cosmogony is the echo of
an ancient myth that had allegedly survived by "oral transmission from generation
283
to generation" (p. 58) in the peasant culture to which Menocchio belonged.
(...) the scholars are unanimous in declaring that this myth, far from reflecting an
immemorial popular tradition based on the experience of "the shepherds of Altai,"
as Ginzburg claims (ibid.), is of Indian origin, and was transmitted by Buddhist
lamas; therefore, it did not reach the Kalmucks before the thirteenth century. As
for the original Indian myth, it is not true that it is found in the Vedas,3 as
Ginzburg declares without quoting his source; it is found instead in the much later
287
Mahabharata (Book I), Ramayana (Bala-Kantla 45, 14-31) and Puranas.
283
VALERI, Valerio. Op. cit. p. 140-141
284
GINZBURG, Carlo. il formaggio e i vermi. il cosmo di un mugnaio del '500. Torino, Giulio Einaudi, 2009, p.
.87
285
Ibidem,
286
Ibidem,
287
Ibidem,
107
O antropólogo defende que o mito da agitação das águas do oceano está muito
distante das experiências dos pastores das montanhas do Altai, e que as diferenças entre o
mito narrado em sua versão mais antiga (no Mahabharata), e a própria explicitação de
Menocchio são enormes, tendo apenas um motivo em comum: a coagulação do oceano
(provocada por um processo espontâneo, de acordo com Menocchio, pelos deuses, para
288
produzir a ambrosia, de acordo com a História indiana). Além disso,
properly speaking this motif is found only in the second version (reported by a
witness) of Menocchio's cosmogony; in the version that he himself narrates the
world evolves not from the ocean, but from a chaos made of earth, air, water and
289
fire; and the coagulation of milk is used as a simile, not as a metaphor.
for the time being at least, that either Menocchio must have had knowledge,
through somebody who had been a student at Padua, of theories and similes put
forward by Pomponazzi and others (as Zambelli attempts to demonstrate), or that
these representations were independently invented by Menocchio. In view of the
fact that Menocchio read a lot and traveled to Venice, however, I am inclined to
believe that his cosmogony is his own original synthesis of elements of various
origin, among which one can probably put the distant echo of the statements
292
mentioned by Zambelli.
288
Ibidem,
289
Ibidem, p. 142.
290
Ibidem,
291
Ibidem,
292
Ibidem,
108
Na opinião de Valeri, apenas uma obstinação populista, uma ideia de natureza
coletiva espontânea e imemorial da tradição popular, poderia atribuir a cosmogonia de
Menocchio a uma tradição oral, passada de geração por geração, em vez de atribuí-la a um
processo complexo de criação do indivíduo, perpassado por outros estratos culturais, como o
293
erudito. A própria concepção da cultura popular apresentada no livro – o elemento
transformador das leituras de Menocchio – seria hipotética, pois é inferida a partir dos
vestígios presentes nas fontes inquisitoriais – e somente nelas – as quais exprimiam as
294
hostilidades e incompreensões dos juízes. Por conseguinte,
O historiador italiano enuncia em seu texto uma relação direta entre popular,
materialismo e progressismo, tanto política quanto intelectualmente. Os calmucos e os mitos
indianos, por exemplo, juntamente com a cosmologia de Menocchio, constituíram a “prove,
frammentarie e semicancellate, dell'esistenza di una tradizione cosmologica millenaria che, al
296
di là della differenza dei linguaggi, congiunse il mito alla scienza”. O autor aqui sobrepõe
arbitrariamente, de acordo com Valeri, categorias mal definidas aos fatos históricos. Parece
que os camponeses (ou pastores), sendo instintivamente materialistas, também são
instintivamente científicos, enquanto os da cultura erudita presumivelmente são
instintivamente “idealistas” e anticientíficos. Na mesma medida é apresentada a relação entre
alta e baixa cultura, ambas fortemente afetadas pelas tendências a reduzi-las a “classe
dominante” e “classe subordinada”, respectivamente. Essa redução supõe uma
293
Ibidem, p. 143.
294
Ibidem,
295
Ibidem,
296
Ibidem, p. 88
109
homogeneização cultural em ambas as categorias que não é demonstrada, transformando a
297
ideia de trocas culturais, e de circularidade, difíceis de se evidenciar. E, se
these convergences and these exchanges were possible, it was because intellectual
activity was not simply a function of class, and because the existence of
underlying cultural principles common to all classes made communication among
them possible. From this point of view, Ginzburg's notion that cultural unity exists
in a society only because of the ruling class's violent imposition of its own
298
cultures can be accepted only if the overt aspects of culture are considered.
297
VALERI, Valerio. Reviewed Work: The Cheese and the Worms: The Cosmos of a Sixteenth-Century Miller
by Carlo Ginzburg, John Tedeschi, Anne Tedeschi. The Journal of Modern History. Vol. 54, No. 1 (Mar., 1982),
pp. 139-143. University of Chicago Press. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1906080. Acesso em: 05
de janeiro de 2016, p.143
298
Ibidem,
299
Ibidem,
300
Ibidem,
301
Ibidem,
110
capaz de estabelecer uma conexão, um relacionamento ou paralelo, qual seria o caminho para
o historiador evidenciar essas relações? Assim como Warburg se questionou, como as fontes
visuais poderiam dizer a respeito da cultura na qual foi produzida? O que a obra de arte pode
dizer sobre uma determinada sociedade, e como a compreensão das tendências culturais e
sociais gerais podem iluminar a produção desses objetos? Ginzburg se perguntava a respeito
de como fontes geradas pela Inquisição podem nos dizer algo sobre as crenças e as ideias de
302
pessoas perseguidas pelos inquisidores?
Ainda no domínio da língua inglesa, Dominick La Capra também teceu cerradas
críticas às práticas, métodos e interpretações propostas por Ginzburg. Em sua leitura, ao
buscar demonstrar que as interpretações do camponês friulano seriam atravessadas por uma
imemorial cultura oral em oposição à erudita cultura dos inquisidores, o italiano estaria
303
metafisicamente propondo uma oposição binária entre fala e escrita. A experiência do
moleiro seria apresentada para autenticar a fala, enquanto a escrita ficaria relegada ao âmbito
304
do poder. A percepção dos problemas envolvidos na “phonocentric metaphysic”,
305
conjuntamente com o chamado “myth of lost origins”, seguia as reflexões propostas por
Jacques Derrida e eram assim apresentadas por La Capra:
Suffice it to note that power is not absent from the spoken word, as the oral
performance of the inquisitors themselves would be enough to show. nor is
writing invariable an abstract “thing of the mind”- indeed it is never simply a
“thing of the mind.” The problem is that of the variable empirical differences
between speech and writing (as well as between “preliterate” societies and
societies in which speech is supplemented by writing) - a problem whose
articulation with reference to specific circumstances and contexts the metaphysic
invoked by Ginzburg readily functions to obscure. For the historian, the unterest
of Derrida’s extension of the notion of écriture to encompass both speech and
writing (in the ordinary sense) is to problematize tendentious, universal
oppositions between the two and to shift the burden of proof in specific cases to
306
concrete research.
302
MOLHO, Antony. Carlo Ginzburg:Reflections on the intellectual cosmos of a 20th-century historian. History
European Ideas, Florença, v. 30, 2004, p. 16
303
Ibidem, p. 48.
304
Ibidem, p. 52.
305
Ibidem,
306
Ibidem,
111
O historiador americano lembra que a oposição binária entre fala e escrita, quando
estendida para o passado, acaba por desconsiderar expedientes históricos específicos, em que
essa relação não se dá necessariamente como uma contradição. A fala, como mostrou Paul
Zumthor, não é desprovida de performance e, consequentemente, de poder, materializado, no
caso, na figura dos juízes. A interpretação que Ginzburg desenvolve, de acordo com La
Capra, se sobrepõe às concepções dos moleiros, pois, ao tentar dar um sentido total e único às
falas de Menocchio, o historiador italiano busca conectá-lo a uma ideia de cultura oral,
executando uma relação direta entre sua interpretação e a do seu objeto de maneira pouco
crítica.
Yet the emphasis upon oral culture as a privileged code that Menocchio
unconsciously employed returns the miller to passivity on another level, and it
reduces to mere superficiality his strong-mindedness and audacity. To the extent
that Menocchio is a figure of popular culture, it also obscures the fact that there
307
can be exceptions on the level of popular culture itself.
307
DOMINICK, La Capra. History & Criticism. Nova York, Cornell University, 1985, p. 52
308
GINZBURG, Carlo. Il formaggio e i vermi. il cosmo di un mugnaio del '500. Torino, Giulio Einaudi, 2009,
p.103.
309
Ibidem, p. 35.
310
Ibidem, p. 80.
311
Ibidem, p. 118.
112
“to what extent are the four remarkable traits I have extracted from Ginzburg’s account
unique to peasant culture, originally developed in peasant culture (where at times one even
seems to have a popular enlightenment avant la lettre), or especially prevalent in peasant
312
culture?”.
Para o resenhista, Ginzburg não oferece uma resposta suficientemente clara, capaz de
explicar qual a natureza da cultura popular camponesa e em que medida ela se distingue da
cultura erudita. Ao contrário, ele insiste na composição unitária da chamada baixa cultura,
terminando por negligenciar a ideia de circularidade emprestada de Bakhtin:
The terms and comparisons of the overall argument seem confused and
contradictory: an autonomous or at least fundamental tradition of peasant culture
is nonetheless in reciprocal or circular relations with a high (or at times dominant)
culture in the early sixteenth century (...). But how can a peasant culture be both
autonomous (or at least primordial, fundamental, infrastructural - the key, filter,
grid, and so forth) and involved in reciprocal or circular relations with a dominant
culture? Even at the risk of becoming embroiled in tedious semantic exercises or,
even worse, of repeating on Ginzburg’s text a variant of inquisitorial logic, one
313
would like a little more clarification.
Em relação à cultura erudita, assim como no livro sobre os andarilhos, Ginzburg tende
a caracterizá-la de forma residual, apresentada como o “Outro”. Mesmo que o poder exercido
pelos inquisidores seja evidente, pouco se sabe sobre as figuras individuais dos juízes, suas
ansiedades e motivações. A empatia do autor pelos oprimidos o induz a encobrir todo um
conjunto cultural concebido a partir de conceitos como hegemônicos, eruditos e repressores.
314
A respeito da documentação inquisitorial, faltaria ao autor, de acordo com La Capra, um
tratamento mais crítico, atento às dificuldades colocadas pelo problema de os registros dos
testemunhos orais serem feitos por escrivães, antes de serem utilizados como fontes capazes
de permitir a reconstrução da “realidade”: “for these documents are themselves historical
realities that do not simply represent but also supplement the realities to which they refer, and
315
a critical reading of them may provide insight into cultural processes (...)”. Os registros
inquisitoriais seriam, assim, parte de um contexto que integraria as relações hegemônicas, e
312
DOMINICK, La Capra. History & Criticism. Nova York, Cornell University, 1985. p. 59.
313
I bidem, p. 61.
314
Ibidem, p. 62.
315
Ibidem,
113
apenas um estudo a respeito da natureza das perguntas e respostas poderia elucidar melhor
316
essa relação entre dominação e trocas culturais assimétricas. Ainda de acordo com o
resenhista,
316
Ibidem,
317
Ibidem, p. 64.
318
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 235.
319
Ibidem, p. 236.
320
RAMINELLI, Ronald. Compor e decompor: ensaio sobre a História em Ginzburg, Revista Brasileira de
História, 25/26, pp. 81-96, 1993.
114
nem todas as pesquisas possuem esse aspecto “tenebroso”, pois a existência de um
substrato cultural comum a todos os segmentos sociais não invalida, a priori, as
diferenças classistas. A partir desse prisma, existiria um pool informativo como
(mentalidade = estrutura), como a língua, por exemplo, convivendo com níveis
culturais e sociais profundamente diversos e, às vezes, antagônicos. Vale dizer que
uma pesquisa que não leve em conta ambas as perspectivas tende a simplificar a
321
trama social e perder a ideia de totalidade.
A seu modo, o historiador brasileiro ecoava parte significativa das críticas que já
haviam sido direcionadas ao livro mundo afora, como se vê; isso, contudo, não significa que
sua apreensão da obra fosse idêntica à dos resenhistas aqui apresentados. Por exemplo: o que
poderia invalidar o conceito de circularidade de Ginzburg não seria a sua negação do estudo
das mentalidades ou mesmo o seu conceito classista de cultura, e sim a ênfase na ideia da
cultura popular como um ramo autônomo a partir de uma ideia de pureza e gênese. Isto
coloca em xeque as preposições do prefácio do livro e do corpo do texto, na medida em que o
primeiro enuncia o conceito bakhtiniano de circularidade e o segundo insiste na concepção de
autonomia da cultura popular à qual pertencia o moleiro.
A partir da década de 1990, com a expansão do sucesso do historiador italiano no
323
país, ampliaram-se também os estudos a respeito de seus trabalhos e sobre a micro-história.
Dentre eles, a crítica mais ácida que desponta parece ser a de Durval Muniz de Albuquerque
321
Ibidem, p. 85.
322
Ibidem, p. 185.
323
O trabalho mais expressivo desse conjunto é o livro de Henrique Espada: ESPADA LIMA, Henrique A
micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
115
Júnior, no artigo “O caçador de bruxas: Carlo Ginzburg e a análise historiográfica como
324
inquisição e suspeição do outro,” publicado em 2009. Sua proposta é apresentar como
Ginzburg enfrenta os debates no interior da disciplina histórica, principalmente em relação às
abordagens de que discorda, e suas estratégias retóricas; nesse sentido, afirma que “Ginzburg,
ao assumir o lugar de sujeito de crítico historiográfico, (...) parece bem mais próximo do
325
lugar de juiz e de inquisidor do que talvez ele tenha consciência ou suspeite”. Suas
estratégias discursivas residem na assimilação dos estratagemas do discurso inquisitorial, que
despontam no quando tem que questionar uma dada perspectiva da História, “um dado autor
e uma dada obra, que são por ele considerados perigosos e ameaçadores para a historiografia
326
e para os fins políticos e sociais que o discurso historiográfico deve atender”.
No caso de O queijo e os vermes, essa postura de “patrulhamento ideológico” fica
evidente quando apresenta suas considerações sobre os escritos de Michel Foucault, “nas
quais jamais enfrenta ou discute as posições teóricas ou as conclusões de seus trabalhos,
limitando-se a emitir avaliações sobre a pessoa do filósofo ou genéricas valorações adjetivas
327
de sua obra e pensamento”. A crítica de Ginzburg a Foucault, como já foi postulado,
328
volta-se ao livro Pierre Rivière, o qual seria uma “involuzione”, na medida em que não se
propõe a interpretar e analisar a relação do camponês com a cultura dominante e nem a
investigar as suas possíveis leituras, o que transformaria o texto num “'irrazionalismo
329
estetizzante”. Para o italiano, as vítimas de exclusão seriam para Foucault apenas um
depositário de discursos, “che passa attraverso il delitto e l'antropofagia, che s'incarna
330
indifferentemente nella memoria redatta da Pierre Rivière o nel suo matricidio.”
O filósofo francês decerto não estava preocupado com questões relacionadas ao
conceito de cultura, ainda mais se colocadas sob a perspectiva de erudito e popular. E,
excluindo-se as depreciações ao livro, podemos dizer que Ginzburg estava certo, já que as
324
ALBUQUERQUE, Durval Muniz. O caçador de Bruxas: Carlos Ginzburg e a análise historiográfica como
inquisição e suspeição do outro. Saeculum. Revista de História. João Pessoa, v. 21, dezembro de 2009.
325
Ibidem, p. 48.
326
Ibidem,
327
Ibidem, p. 50.
328
GINZBURG, Carlo. il formaggio e i vermi. il cosmo di un mugnaio del '500. Torino, Giulio Einaudi, 2009, p.
32.
329
Ibidem,
330
Ibidem,
116
preocupações de Foucault nesse momento de sua trajetória intelectual se voltavam às relações
entre discurso, saber e poder, sendo Rivière um exemplo do cruzamento dessas relações.
Mas, o que importa destacar é que fica evidente, como Albuquerque Júnior aponta, que,
quando confrontado com posições distintas da sua, o italiano passa a identificá-las como
perigosas, como ameaças “que se deve combater como a um inimigo que ameaça tomar de
assalto a cidadela inexpugnável da história científica ou como um pestilento que ameaça
331
infectar de ceticismo o sacrossanto ambiente da história realista”. Essa postura do
historiador fica clara nos seu posicionamento diante das resenhas de seus livros, como no
caso da crítica de Tenenti a Os andarilhos do bem, ou no caso da crítica da Zambelli a O
queijo e os vermes, na medida em que simplifica a visão do seus críticos para poder
desconsiderar elementos pertinentes das resenhas.
As críticas de Paola Zambelli, que parece ter sintetizado a maior parte dos pontos
frágeis do livro, foram respondidas numa nota à edição inglesa de 1980, que não existe nem
na versão em português, nem na italiana. Ginzburg se opôs à possibilidade das ideias de
Menocchio terem origem na cultura livresca, como defende Zambelli. Na análise da
historiadora não teria sido considerada a relação entre a putrefação do queijo e o surgimento
dos cosmos, dos anjos e dos homens do caos; esta ideia, repetitiva, não podia ser considerada
como um dado adquirido ou óbvio, daí sua importância decisiva:
Ibidem, p. 49.
331
332
GINZBURG, Carlo. The cheese and the worms: the cosmos of a sixteenth-century miller. Baltimore: Johns
Hopkins Paperbacks editions, 1992, p.152-153.
117
circularidade como saída. Neste caso, ainda, a circularidade deveria ser acompanhada por
uma ideia de prova diferente, pois, concebendo a realidade passada em classes culturais,
havia que se considerar que as classes mais baixas só conseguiram deixar suas marcas
indiretamente nos documentos, por advirem de uma cultura predominantemente oral. Aceitar
os “padrões habituais” de prova, segundo Ginzburg, implicaria supervalorizar a cultura
dominante. Nesse sentido, a sua preocupação está em atribuir valor e originalidade às ideias
333
das classes subalternas do passado, a partir da análise de caso.
De todo modo, mesmo considerando a resposta à Zambelli, o livro sobre o moleiro
Menocchio apresentava problemas metodológicos difíceis de contornar, segundo a opinião
dos críticos expostos nesse trabalho. O conceito de cultura popular que o historiador propõe a
partir do crivo nas leituras do moleiro, que estariam ligados a extratos muito distantes no
tempo, acaba se tornando vago, não sendo capaz de demonstrar essa relação. Ginzburg acaba
por simplificar as ideias do moleiro, concebendo uma relação direta entre popular,
materialismo e cientificismo, que só emerge como bloco devido à opressão da alta cultura,
concebida como “idealista” e anticientificista. O historiador exagera nessa divisão a priori, o
que passa a homogeneizar a realidade do passado em dois grandes blocos culturais
(acusadores e acusados), que seriam fruto do conflito de classes.
333
Ibidem,
334
VALERI, Valerio. Reviewed Work: The Cheese and the Worms: The Cosmos of a Sixteenth-Century Miller
by Carlo Ginzburg, John Tedeschi, Anne Tedeschi. The Journal of Modern History. Vol. 54, No. 1 (Mar., 1982),
pp. 139-143. University of Chicago Press. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1906080. Acesso em: 05
de janeiro de 2016, p. 143.
118
necessidade de pensar o passado por meio da função de classes. Afinal, será mesmo que as
fissuras da cultura do passado se resumiriam apenas a dois blocos: alto/dominante e
baixo/popular? E será mesmo que esses termos podem ser utilizados como correspondentes?
Segundo os autores, Ginzburg não apresenta solidamente a relação de Menocchio com a
cultura popular, a qual também não define satisfatoriamente. Por fim, ao seguir a opção de
legitimar a cultura popular da qual Menocchio faria parte, o pensador italiano acaba por
acentuar as semelhanças e similitudes dentro do popular em detrimento das diferenças,
produzindo uma noção de cultura popular que desconsiderava as fissuras internas do grupo
social que analisava.
119
CONSIDERAÇÕES FINAIS
335
GRENDI, Edoardo. Repensar a micro-história, in REVEL, Jacques (org.). Jogos de escala: a experiência da
microanálise. Rio de Janeiro: Ed. Fund. G.Vargas, 1998.
336
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário in: Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e
História. 1ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
120
deixados por meio do discurso dialógico da alta cultura opressora; e, sobretudo, com o auxílio
da hermenêutica filológica, a preocupação em dar voz aos excluídos da História.
As implicações do conceito de cultura popular presente nas primeiras publicações de
Ginzburg, se depararam com os problemas atrelados às fontes analisadas. No decorrer da
dissertação, algumas dessas questões foram abordadas, como no caso de o historiador
utilizar-se de documentos inquisitoriais para reconstituir experiências dos acusados. E neste
ponto nos deparamos com as discussões a respeito das características de tais documentos, que
são um grande desafio para qualquer pesquisa, dado a delicadeza e sensibilidade da questão,
na medida em que podem determinar os efeitos finais de qualquer análise.
Embora Ginzburg destaque as limitações das fontes inquisitoriais, ele, precisamente a
partir da riqueza etnográfica dos julgamentos, tende a enfatizar as semelhanças entre
inquisidor e antropólogo, em detrimento das diferenças. Ou seja, quando o inquisidor
questionava os comportamentos dos hereges, agiria como um antropólogo em sua pesquisa de
campo. Inclusive, em finais da década de 1980, o historiador italiano publicou o texto “O
337
inquisidor como antropólogo”, o qual propôs aprofundar as consequências dessa possível
analogia. Para o autor, os estudos a respeito da feitiçaria, que se expandem em meados da
338
década de 1960, estaria conectado à influência crescente da Antropologia sobre a História.
Relação que abriu caminho para o estudo de determinados grupos sociais antes
desconsiderados, como as mulheres, bruxas, camponeses. Haveria assim, uma continuidade
entre o inquisidor, antropólogo e historiador que exploram com estranheza o outro, com
curiosidade de descobri-lo para enquadrá-lo em sistemas interpretativos. A nível intelectual
se tem a busca pela “verdade”, permitindo que tal documentação perdurasse no tempo,
339
embora transformada pela interpretação religiosa repressiva do inquisidor.
Para Ginzburg, a diferença entre Antropologia e História estaria na ideia de prova.
Enquanto a primeira recorre às pesquisas de campo para materializar suas análises, a segunda
se depara com as fontes, muitas vezes, escassas. Além da dificuldade do acesso das fontes, no
caso da História e do estudo da feitiçaria, tem-se também as implicações da imposição do
337
GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989, p. 203-214.
338
Ibidem, p. 205.
339
Ibidem,
121
sistema religioso repressor que interpreta e distorce as provas da chamada cultura popular. A
saída encontrada pelo autor é a perspectiva dialógica do discurso,
340
Ibidem, p. 207-208
122
deve entender o papel dos inquisidores e dos antropólogos, mas nem um nem outro fará o
341
trabalho do historiador: a crítica documental.
341
NARDON, Franco. Benandanti e inquisitori nel Friuli del Seicento. Trieste. Università di Trieste. 1999, p.
14.
342
GINZBURG, Carlo. História Noturna. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Lançado originalmente em
1989, pela editora Einaudi, com o título Storia noturna: uma deicifrazione del sabba. Resultado do estudo sobre
a emergência da imagem do sabá inquisitorial numa perspectiva comparativa e conectada (morfologia e
história), que reunia crenças relacionadas à feitiçaria e aos mitos xamânicos num vasto tempo e território. O
livro marcaria o afastamento por parte do historiador das preocupações em reconstituir a cultura popular dos
indivíduos marginalizados na história.
343
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. As muitas faces da história: nove entrevistas. São Paulo: Editora
Unesp, 2000, p. 289.
123
124
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