Tese - Manoel Gustavo de Souza Neto - A História A Contrapelo
Tese - Manoel Gustavo de Souza Neto - A História A Contrapelo
Tese - Manoel Gustavo de Souza Neto - A História A Contrapelo
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
GOIÂNIA-GO
2015
1
!
1
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
GOIÂNIA-GO
2015
3
Gustavo de Souza Neto, Manoel
A História a Contrapelo: Ensaio Sobre Teoria da
História em Walter Benjamin / Manoel Gustavo de Souza
Neto. -- Goiânia, 2015.
169 f.
4
5
RESUMO
ABSTRACT
This study runs on Benjamin`s concept of history, or, more specifically, on his theory of history
taken as the reflection on the limits and possibilities of the historical knowledge. It`s an essay
which takes his for from Benjamin`s concept of a “dialetical image”, that`s why it`s divided in
two parts, leading which one to some of Benjamin`s thought phases: if in a first moment i put
my attention in the relations between philosophy of language and theory of knowledge in
Benjamin`s preface to the Trauerspielbuch its because it´s in this context that Benjamin will
develop his first concept to theory and methodology of history: the concept of origin. In the
second essay, which must be fought as a superposition to the firs essay, in a way they the
contrast between the two texts, bring to light the differences and continuities between both
phases of Benjamin`s work, I focus on Benjamin`s concept of cultural history, with the aim of
show how this concept forms the ground to a critic of culture, which means: a critic of the
concept of tradition and its linear history, guided by the concept of progress.
6
AGRADECIMENTOS
Na jornada que culminou neste trabalho recebi o apoio de muitos. Devo gratidão
especial ao professor Dr. Luiz Sérgio, pela confiança em mim depositada ao longo de
toda formação acadêmica, desde os anos de graduação. Aos membros da banca, Prof.
Dr. Eurico, Profª Drª Carla Damião, Prof. Dr. Rafael Saddi e Prof. Dr. Marcos Menezes
devo a leitura atenta que me conduziu à versão final deste texto. Ao Prof. Eurico devo a
agradecimento adicional por ter se deslocado de Brasília para a avaliação deste trabalho,
o que foi de enorme valia. Devo gratidão à minha mãe, Giselda Maria Lemos, mais do
que a qualquer pessoa, por todo incentivo ao longo de minha formação acadêmica e
pelo amor cotidiano. Foi ela quem me ensinou o apreço pelos livros. Por fim, devo
gratidão especial ao meu tio, Domingos Gustavo de Souza, por ter me apoiado ao longo
fundamental, hoje amiga querida, quem primeiro me despertou o gosto pela História.
7
SUMÁRIO
História............................................................................................................................24
Conclusão….................................................................................................................153
Bibliografia...................................................................................................................160
8
Introdução: Benjamin Historiador?
crítico da arte e da literatura; o pioneiro teórico das mídias; o crítico da cultura e teórico
da modernidade. Isso sem mencionar o Benjamin tradutor, poeta e autor de textos para o
diversos têm sempre recorrido a textos como as Passagens ou, ainda, suas Teses sobre o
conceito de história.
Na recepção da obra de Benjamin, porém, sua teoria da história tem sido relega-
da a segundo plano, de modo que se pode falar, como o fez Jeanne Marie Gagnebin,
A lacuna é tanto mais visível entre historiadores, que muito raramente têm se
ocupado de Benjamin em seus textos e cursos. No Brasil, onde felizmente alguns dos
de história, nota-se que entre as principais obras publicadas sobre Benjamin não há uma
que tenha sido produzida num Departamento de História. Se Jeane Marie Gagnebin,
ciência política.
dos com Benjamin, sente-se ainda que existe uma lacuna: a maioria dos comentadores
se ocupa do conceito de história apenas na medida em que deseja esclarecer seu objeto
9
específico de estudo: a representação da metrópole, no caso de Wille Bolle (2000); a
(1989; 2005).
dos mais respeitados leitores de Benjamin seja Richard Wolin, autor cuja principal obra
(1994) sobre o filósofo alemão não denuncia de modo algum ter sido escrita por um his-
toriador, tendo antes em seu estilo o traço típico do comentário de língua inglesa em
torno de Benjamin: a abordagem e a prosa dos culture studies, onde há grande prepon-
gica argumentativa que mobiliza autores de tradições as mais diversas, com um grau de
ausência de uma abordagem dos escritos históricos de Benjamin que tome como ponto
der que a teoria literária, ocupada com o estudo dos limites e possibilidades da represen-
do passado e da memória.
10
elemento originário do conhecimento histórico, o chamado “fato”, com todas as impli-
ta-se sobre as condições da produção e manutenção daquilo que o historiador toma por
te (2001) — e à sua relevância política, sua dimensão, por assim dizer, formadora, liga-
lar todas estas questões numa só abordagem que indaga sobre o método histórico de
Na verdade, a Teoria da História não pode fazer de outro modo, uma vez que é a
totalidade mesma dessas questões que constituem o repertório de suas indagações. As-
sim é que recorrer à teoria da história para ler Benjamin implica em mobilizar como re-
curso interpretativo a obra de autores que não são habitualmente relacionados ao filóso-
fo berlinense, em geral pelo bom motivo de que jamais foram mencionados por ele
(quando não tiveram sua obra produzida em períodos posteriores àquele em que Benja-
Bilifield: Jorn Rusen e Reinhardt Koselleck. Tão importante quanto estes foi Hayden
11
White, por meio de quem inicialmente se deu meu interesse pelas implicações da Epis-
temologia e da Estética para a Teoria da História. Neste estudo sua presença deixa-se
sentir como leitimotiv, devido ao problema pós-moderno capital para a Teoria da Histó-
ria: aquele da representação do passado. Nisso procurei ter em mente a tese de Jeanne
Teoria Literária) segundo quem o termo darstellung, que o filósofo usa pra referir-se à
2004).
as questões básicas, o rol fundamental de conceitos dos quais minha interpretação de-
de Koselleck. Tais conceitos são apenas mencionado são longo do texto, e retomados na
tas implicações quanto o original do qual deriva, de modo que é preciso destacar: Rusen
lista de Ranke.
12
crítica e hermenêutica (este último nível implica a reflexão sobre o papel da linguagem
na teorização da história).
e o presente.
aquisição de conhecimento histórico, Rusen termina por esclarecer sua dimensão estéti-
Para Rusen, a questão central não é aquela da relação entre o sentido do texto e o
A questão central seria então o fato de que a consciência histórica tem, por assim
dizer, uma dupla composição — ou é composta por duas dimensões, numa consistindo o
avançada que o empirismo radical a que o historicismo chegou, por exemplo, na cha-
mada Escola Metódica francesa, herdeira dos historicistas da Escola Histórica alemã
(mas também da sociologia positivista da primeira geração, já que boa parte dos metó-
passar do tempo. Rusen entende por consciência histórica “a suma das operações men-
tais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de si, de
13
seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente sua vida
sua experiência do devir temporal. No entanto, é certo também que o foco de Benjamin
está justamente no que não é intencional. Em seu Origem do Drama barroco Alemão,
O presente trabalho consistirá num exame das relações entre a primeira fase de
sua obra, a chamada “fase teológica”, que se inicia em 1916, marcada pela influência do
dos anos vinte, estendendo-se até sua morte, em 1940, ano em que trabalha em suas cé-
lebres Teses Sobre o Conceito de História. Tal empreitada significará também, a todo
momento, uma aproximação entre sua Filosofia da História e sua Teoria Geral do Co-
nhecimento, sendo aquela compreendida aqui em seu duplo sentido de reflexão especu-
tendo em vista que tal empresa, além de hercúlea, seria também quixotesca, não passan-
vias discursivas que tentou rigorosamente implodir. Benjamin não é, nem de longe, um
autor fácil, e não apenas devido à extensão de sua obra ou ao seu caráter multifacetado e
multifocal. Nela encontramos, entre outras coisas, uma filosofia da linguagem, uma crí-
tica do conhecimento, uma filosofia da arte e uma teoria da percepção – tudo levado a
14
cabo nos moldes de uma crítica literária e constituindo uma filosofia da história que,
em qualquer uma das áreas do conhecimento em que Benjamin atua, ele termina por
mobilizar conceitos de campos diversos, fazendo com que seus escritos contemplem
jamin tem a ver, principalmente, com sua fidelidade ao método enquanto desvio, para
usar uma formulação sua, no livro sobre o drama barroco alemão. Trata-se de uma recu-
sa em tratar seus objetos como alvo de um certo conhecimento nos moldes ditos cientí-
em seu lugar a relação entre história e linguagem (sobre as quais se fundam sujeito e
objeto do conhecimento).
que remonta, no mínimo, a Vico e Leibnz, e cujo espírito anima o surgimento da herme-
cultura (ou ainda, do espírito, como quis Dilthey). Essa tradição, a do idealismo alemão,
50).
Benjamin não está condicionada por um hermetismo exacerbado, que atribuiria à obra
15
to e serve, quando muito, à legitimação de bandeiras ideológicas quaisquer que, por há-
bito, pilham seus gurus em busca de uma legitimação teórica fácil para suas subentendi-
das cartas de intenções. O que pretendo não é tanto esgotar o conceito de história de
Benjamin, mas sim demonstrar que ele estabelece, no que diz respeito à totalidade da
obra benjaminiana, uma relação de continuidade, ainda que envolta por tensões diver-
sas. Defendo a hipótese de que muitos dos elementos centrais da obra do primeiro Ben-
Isso vale especialmente para seu conceito de história. Não é, evidentemente, que
so, porém, não justifica, a idéia de uma ruptura. O termo continuidade é perfeitamente
cabível e até desejável com vistas a uma melhor compreensão da obra como um todo.
Tal tensão criativa é particularmente visível nas Teses Sobre o Conceito de His-
toda a produção dos anos vinte e trinta, a relação entre os elementos teológicos e mar-
do conceito de história.
quei aplicar à forma do trabalho aquela divisão ambivalente que caracteriza o conceito
síntese dialética, um terceiro termo, terminam por sobrepor-se: no lugar da síntese, uma
16
Ao longo do trabalho, espero mostrar que este era como que um modelo de visu-
alização da história ao qual Benjamin recorria. Por ora, basta destacar que a estrutura do
medida em que articulou dois ensaios que, todavia, podem ser lidos em qualquer
sequência. Isso porque a estrutura temporal do conceito de imagem dialética, que pre-
tendi imitar com essa divisão, seria preservada de qualquer maneira: o primeiro ensaio
aborda escritos de Benjamin produzidos ao longo dos anos 1930. Dois contextos inte-
lectuais distintos que, uma vez sobrepostos, devem apresentar alguns aspecto da teoria
também neste texto que Benjamin apresenta sua filosofia da linguagem com um alcance
maior que aquele encontrado no ensaio de 1916, Sobre a linguagem em geral e sobre a
linguagem dos homens, do qual também nos ocupamos neste primeiro ensaio. No prefá-
mento histórico. Do ensaio de 1916, Benjamin toma o tema do nome próprio, cujo
modo de ser caracteriza uma situação linguística muito singular, onde salta a vista a di-
páginas me ocuparei deste tema com a intenção de demonstrar o papel exercido pela
17
Teoria da História. Esse tema será retomado no segundo ensaio quando examinarmos a
objeto do conhecimento, que Benjamin examina por meio de um recurso a Kant — mais
especificamente: por meio de uma crítica a dois dos conceitos-chave da analítica trans-
deixam-se mediar. Benjamin afirmava ser esta a única forma de se produzir uma teoria
gião e da história. Estas são realidades socio-culturais que não se deixam elucidar por
fim.
tarefa de elaborar para elas uma teoria do conhecimento à altura. Esta tarefa, o Progra-
sua crítica a Kant — Benjamin leva a cabo no prefácio ao livro sobre o drama barroco,
por meio de uma justificativa estética e formal do conhecimento, quando afirma que o
acreditava diferenciar a filosofia das artes ou das ciências. Por isso, dediquei uma sessão
18
min, principalmente porque desejei realçar importância da linguagem em geral para o
mão, mas retomado nas Passagens, já no contexto dos textos dos quais nos ocupamos
seu aspecto temporal, às suas implicações anti-teleológicas, das quais me ocupo no se-
gundo ensaio.
forme apresentado numa breve constelação de textos escritos nos anos 1930 e nas Teses
não tem a ver apenas com o tema heurístico e metodológico da escolha de objetos cuja
de história cultural estabelecido por Benjamin, que coincide com aquilo que no primeiro
ensaio chamaremos “teoria crítica da história”, diz respeito a uma crítica do conceito
mesmo de cultura, da escolha habitual de fazer a história cultural coincidir com a tradi-
ção, de modo a reforçá-la, ignorando a densidade histórica própria da cultura, seus di-
versos estratos temporais e semânticos, seu potencial crítico — ou destrutivo, como ten-
19
Neste segundo ensaio discuto ainda passagens de Experiência e Pobreza, O Ca-
de esclarecer aqueles aspectos que Rainer Rochlitz certa vez denominou como “os mais
Rochlitz, para quem “a teoria da história do último Benjamin ocupa o lugar que,
aos elementos da teoria da história que ora são caracterizados como revolucionários
(KONDER, 1993), ora como destrutivos (HANSEN, 2003). Trata-se da face radical da
teoria da história de Benjamin, que não se deixa reduzir, mas remonta de modo muito
mais profundo aos traços anarquistas e niilistas de seu pensamento. Seria este, aliás, o
ção é demonstrar a influência deste texto sobre Benjamin no sentido de vincular a histó-
ria científica a um conceito raso de progresso. Tento demonstrar como Benjamin encon-
20
tra já em Nietzsche, ou seja, muito antes de seu contato com os movimentos artísticos
ção do caráter científico da história, mas leve em conta também a produção de um co-
violência, com a intenção de demonstrar o quanto o teor radical de sua teoria da história
difere do autoritarismo fascista, sendo antes a resposta às demandas geradas pela crise
za (1934), a tese benjaminiana de que a crise da cultura demanda uma postura no senti-
do de fundar o trabalho crítico não mais sobre a tradição, mas sobre uma nova atitude
criativa, que Benjamin elogia nos “grandes criadores implacáveis”, que “operam a partir
de uma tábua rasa” (BENJAMIN, 1996: 116). Essa criatividade, no entanto, passa pela
que se deixa orientar pelo télos mítico do progresso, pelo retorno constante da exigência
de novidade.
siste no cerne do pensamento crítico com que ele tenta elaborar um conceito de história
à altura da catástrofe. A Crítica da Violência e O Caráter Destrutivo são textos que ori-
21
entarão minha pesquisa no tocante a estes aspectos. Nestes textos deixa-se notar que
Por fim, concluindo meu argumento, me debruço sobre as relações entre fotogra-
fia e Teoria da História, ou, mais especificamente: sobre as relações entre o conceito de
Com isso espero apresentar não uma imagem total da Teoria da História de Ben-
jamin, cujo inventário deve demandar ume exame de toda sua obra, algo que permanece
por ser feito. Minha intenção, mais restrita, é a de apresentar uma imagem específica de
do conceito benjaminiano de história lido à luz da Teoria da História, esta área do co-
nhecimento histórico cuja legitimidade até bem pouco tempo não era consensual sequer
entre historiadores.
cíficos da História e, ainda, se tivermos conseguido chamar atenção para uma configu-
ração dos textos de Benjamin que tome como centro sua concepção de história, o pre-
sente estudo terá chegado a bom termo. É nesse sentido que afirmamos haver uma Teo-
ria da História em Benjamin. O presente estudo não ignora o fato de que benjamim não
sua versão francesa, na figura de Ranke, seja na francesa, expresso em Fustel de Colan-
ges, como se opôs a ideia mesma de uma história de natureza exclusivamente científica,
22
plena de objetividade. Benjamin estava informado do debate sobre o surgimento das
ciências da cultura na alemanha. Fora aluno de Rickert, lera Dilthey e Weber, não igno-
tava que esta constituía apenas uma das dimensões da história que devia ser definida
também por sua natureza ética, pelas demandas éticas que subjazem à pesquisa históri-
ca. Neste sentido, e de maneira perfeitamente judaica, Benjamin recordava que, embora
científica, a história era uma forma de rememoração, nem de longe a única. Modo muito
eficaz de situar a ciência história no contexto mais amplo das práticas de memória,
chamando a erudição ao bom senso, de uma maneira que provavelmente teria agradado
a Nietzsche.
23
1: LINGUAGEM E TEORIA DO CONHECIMENTO: FUNDAMENTOS DE
TEORIA DA HISTÓRIA
noção do que seja uma fonte histórica, mas também no que diz respeito à abertura
interdisciplinar, àquela guinada no sentido de uma história total, atenta tanto à esfera
história quantitativa quanto com o registro daquilo que escapa à lógica do evento e à sua
uma influência incalculável, especialmente num país como o nosso, cuja cultura
Se foi grande a mudança que permitiu considerar fontes históricas não apenas os
24
tradicionais documentos escritos e guardados em arquivos oficiais, mas igualmente
qualquer tipo de resíduo, material ou não, que possa ser operado como índice de um
fragmento do passado, menor não foi a inovação na concepção do que seja o objeto de
abordagem marcou a tentativa de inserir a história no campo das ciências sociais, como
2002: 34). No entanto, é preciso recordar que, como bem notou Paul Ricoeur, estas
1
deram aliadas a uma grande recusa da filosofia . Trata-se, no entanto, de um projeto
pano de fundo contra o qual a teoria da história de Walter Benjamin se dirige (assim
como havia feito antes dele os Analles. Ora, no contexto de afirmação da História como
1
Este traço, o rechaço da filosofia, os Analles compartilharam acriticamente com a Escola Metódica, em tudo
mais alvo de suas críticas. “A Escola Metódica quer impor uma investigação científica, afastando qualquer especu-
lação filosófica e visando a objetividade absoluta no domínio da história; pensa atingir os seus fins aplicando téc-
nicas rigorosas respeitantes ao inventário das fontes, à crítica dos documentos, á organização das tarefas na profis-
são (BOURDÉ; MARTIN, 1983: 97)
25
historiador pode encontrar em sua reconstrução do passado. Como resposta, há no
modo diverso em cada autor, mas sempre com vistas à consolidação de uma concepção
uma reconstrução viva dos fatos passados — uma reconstrução que proporcionasse uma
mote rankeano, segundo o qual o passado deve ser reconstruído pelo historiador de uma
tal maneira que os livros de história apresentem as coisas “como de fato ocorreram”.
complexa que não pode ser reduzida à ciência ou à arte (aquilo que Hayden White
2
chamou de “tática fabiana” ), embora pretenda ter direitos onde a primeira postula as
normas e não prescinda da segunda, uma vez que o historicismo se entende como uma
da poética).
A história distingue-se de todas as ciências por ser também uma arte. A história é uma ciência ao
coletar, buscar, investigar; ela é uma arte porque recria e retrata aquilo que encontrou e reconheceu.
Outras ciências satisfazem-se simplesmente registrando o que foi encontrado; a história requer a
!
2
“Por mais de um século muitos historiadores acharam útil aplicar uma tática fabiana contra críticos em cambos
afins do labor intelectual. A tática funciona mais ou menos desta maneira: quando os cientistas sociais lhe criticam
a amenidade do método, a imperfeição do sistema de metáforas ou a ambiguidade das pressuposições sociológicas
e psicológicas, o historiador afirma que a história jamais reivindicou o status de ciência pura, que ela depende tan-
to de métodos intuitivos quanto analíticos e que o juízos históricos não deveriam, portanto,, ser avaliados a partir
de modelos críticos que só podem ser aplicados com propriedade às disciplinas matemáticas e experimentais. Po-
rém, quando os literatos lhe criticam a incapacidade de sondar as camadas mais sombrias da consciência humana e
a relutância em usar contemporâneos de representação literária, o historiador volta à concepção de que a história é,
afinal de contas, uma semiciência, de que os dados históricos não se prestam à livre manipulação artística e de que
as formas de sua narrativa não é uma escolha, mas é exigida pela própria matéria histórica (WHITE, 2001: 39).
26
habilidade de criar. como ciência a história é parecida com a filosofia; como arte, com a poesia. (…) A
história distingue-se da poesia e da filosofia não em consideração à sua capacidade, mas pelo objeto
abordado, que lhe impõe condições e a sujeita à empiria (RANKE, 2010: 141-143).
tais potencialidades científicas são sintetizadas nos três termos metodológicos legados
atividade que “fornece os materiais para o trabalho histórico”, e afirma que ela é “como
À crítica ele atribui a tarefa de “determinar em qual relação se entrelaça o material ainda
disponível em relação aos atos de vontade, dos quais ele oferece testemunho” (2009:
“reconstruir o desenrolar real destes episódios”) salta à vista. Seria necessário ressaltar,
porém, o fato de que o realismo não é uma marca do historicismo em particular, mas da
ciência moderna de matriz newtoniana como um todo. Se, por um lado o historicismo se
opunha ferreamente ao paradigma das ciências da natureza, por outro não deixou de
tomar dele alguns princípios com a intenção de legitimar-se como ciência. Destes
paradigma predominante, mas sobre como essa tendência se comunica com outra, que,
por sua vez, determina a especificidade da história como ciência, qual seja, a tendência
simbolicamente constituído.
3
das ciências da natureza, cujo verismo científico, ao menos à época do historicismo
alemão, era inegociável. Trata-se aqui do célebre debate sobre a especificidade das
O que se pretendo, no entanto, não é oferecer uma saída para o debate acerca da
filosofia e à história. Ele também rejeita, de igual modo, as investidas das ciências da
da cultura, era inadequado para Benjamin pois, se por um lado oferecia defesas contra o
transcendentalismo exacerbado (o que era desejável, haja vista que Benjamim era, à sua
3
Chamamos verismo o ponto de vista epistemológico que supõe que, por meio de um método adequado a um de-
terminado objeto, este pode ser plenamente apreendido pelo intelecto, de um tal modo que há, entre o objeto29eo
que sabemos dele, uma plena coincidência, o que, por sua vez, insere o objeto no domínio daquilo que entendemos
por verdade.
30
maneira, um crítico ferrenho do idealismo), por outro lado o conceito de compreensão
detecção da realidade pela via das chamadas matemáticas, mas sim a ilusão empática,
que organiza o conceito de compreensão de um modo que termina por retirar dela toda
sua robustez teórica. Calcado como é no princípio de que nas ciências da cultura há,
— o vitalizo terminava por trocar o sinal daquela equívoco que caracteriza o realismo
maneira que as ciências da cultura supõe imanente, a partir da experiência mais do que
da reflexão transcendental.
condições estavam contidas de forma ideal na ocorrência de eventos reais” (2009: 55).
Ora, supor que as condições de um fato histórico estejam contidas de modo ideal no
próprio fato seria, para Benjamin, algo de muito estranho, uma vez que para ele a
interpretação deve ser como que arrancada do objeto. Ela deve ser produzida de modo
dialético, o que significa levar em conta não apenas o ocorrido, mas também as
31
problemas centrais postos por ambas tradições constituem o pano de fundo, o arcabouço
procedimentos heurísticos de Benjamin, com seu gosto por temas que considerava
marginais e sua indisposição para com a historiografia narrativa, ocupada da crônica dos
grandes feitos da história política. Surpreendentemente, Benjamin parece não ter lido os
historiadores franceses da escola dos Analles, mas qualquer tentativa de ler sua obra no
nós.
O historicismo tanto mais deve ser evocado, pois sua influência na teoria da
políticas.
com a teoria da história conforme praticada nos cursos de história significa mobilizá-lo,
na medida do possível, para responder a alguns problemas teóricos gerais com os quais
Uma coisa é debruçar-se sobre a teoria da história de Benjamin porque ela diz
muito sobre sua teoria literária e sua estética, como o fazem a filósofa Jeanne Marie
Gagnebin, de maneira tão brilhante, e o teórico da literatura Wile Bolle; outra é lê-lo
32
da influência destas duas matrizes teóricas, posteriormente ramificadas em tantas outras.
caracterização do conceito de história que Benjamin toma como objeto de crítica: como
pode ser chamada de positivista uma escola intelectual que surge justamente como uma
com o conceito de cultura que Herder insere no ambiênte intelectual alemão uma
oposição que já havia sido enfatizada por Vico, ainda que tenha sido ignorada no bojo
História, que Vico denominava, numa visada claramente política, mundo das nações.
Após Vico, Droysen denominou a dimensão histórica do mundo como mundo ético
(2009: 53).
Por mundo das nações Vico entendia o mudo social e cultural, que excede a
político e cultural, que é artificial na medida em que surge no interior das nações a partir
Assim, Vico afirma que as coisas criadas por Deus, como a natureza, só podem
histórico, o mundo das nações: para Vico, diferentemente das coisas criadas por Deus,
as coisas criadas pelo ser humano devem ser compreendidas internamente. Sendo o
homem o seu criador, cabe-lhe um tipo de conhecimento sobre o mundo histórico que
33
jamais seria possível em relação ao mundo da natureza, dada a externalidade do ser
Hayden White, leitor de Vico, caracterizou como uma busca pela racionalidade
específica dos empreendimentos humanos, o que conduz a análise para além da busca
gesto imaginativo, bem como seu poder de instituir o mundo social. White escreve,
História como prática de pesquisa, tanto mais quando de sua fundamentação científica
Estas questões são básicas para a Teoria da História,e é com elas em mente que
34
Benjamin foi durante muito tempo, e de modo excessivo, vinculado à Escola de
Frankfurt. A aproximação, claro, não é infundada. Toda a fase de sua obra dedicada à
crítica da literatura alemã é em muito semelhante à crítica que Adorno empreendeu con-
cer identidades, em pensar por meio de um modelo geral de homogeneização que rela-
nizem entre si. Com isso cria-se acerca do objeto de pesquisa uma imagem de totalidade
anos 1930 são, em vários aspectos, próximos dos interesses da teoria crítica como for-
vista a metrópole surge como microcosmos de uma sociedade onde os sonhos de eman-
cipação por meio da técnica são abundantes e compõem um material no qual se diag-
ciá-lo dos demais autores ligados à chamada Escola de Frankfurt: justamente sua Teo-
ria da História, onde Benjamin reflete tanto sobre a tarefa (Aufgabe) política do histori-
35
dando, portanto, um método que explicitasse seus pressupostos epistemológicos, ao in-
compreender Benjamin, que justamente o regulador ético de sua teoria da história, qual
acabada.
trução do passado que fizesse jus à catástrofe ao menos por trazê-la à vista, impedindo
que esta desaparecesse submersa nas vagas da historiografia tradicional. O termo tarefa,
que nos lembra o clássico ensaio de Humboldt, A Tarefa do Historiador, tem em Benja-
4
min um acento irônico : Aufgabe é a tarefa indispensável, demandada, no caso do histo-
dade à qual responde aquilo que Jorn Rusen chamou de consciência histórica). No en-
tanto, Aufgabe é também a tarefa irrealizável, de onde sua ironia. O realismo é impossí-
vel em história porque o passado não está disponível senão na forma de fragmentos,
4
Tomamos aqui a ideia de ironia em sua acepção romântica, que Marcio Seligmman definiu desta maneira, ao ma-
pear a influência do romantismo de Jena sobre Benjamin: “a ironia vincula-se nos românticos ao fragmento, à
consciência do limite, à impossibilidade de se atingir o absoluto. Ela implica uma alternância entre os opostos,
entre o absoluto e o singular” (SELIGMANN, 199: 93).
36
caminho regular e preciso entre o sujeito e o objeto do conhecimento histórico, a refle-
xão metodológica abdica do problema da mediação: o método, antes de ser o lócus pri-
vilegiado de uma reflexão teórica, haja vista sua função de mediar os resíduos do passa-
pensamento que pensa a si mesmo, mas no sentido mais banal de espelhamento, disso
ideológica, que dava ao discurso historiográfico uma determinada forma, da qual se podia su-
gica. Como bem notou Hayden White acerca da historiografia oitocentista que Benjamin está a
criticar, “ser realista significava não apenas ver as coisas com clareza, como elas realmente
eram, mas também extrair dessa clara apreensão da realidade conclusões apropriadas para levar
A teoria da história de Benjamin diz respeito a uma reflexão teórica que se en-
reflexão epistemológica, nisso consistindo sua reivindicação de que o passado seja visto
como aberto, já que o modo usual de considerá-lo encerrado é inseri-lo numa meta-nar-
rativa oficial, onde rios de história estão destinados a desaparecer. Considerar a história
37
como aberta e inconclusa é a única forma de nutrir a esperança de uma história onde a
geneidade, mas no sentido de dado elementar: assim como um signo pode ser percebido
de axiológica, a isenção de valores no juízo científico sobre um passado por sua vez
concebido como virtualmente coerente. O passado tampouco está inteiro: trata-se antes
tínuos e pretéritos.
à qual se refere Anatol Rosenfeld quando se debruça sobre a consciência histórica ro-
mântica: “antíteses absolutas não permitem uma síntese absoluta, a não ser em aproxi-
38
Benjamin inicia o prefácio de seu livro sobre o Trauerspiel caracterizando o que,
em sua concepção, deveria ser o problema capital da filosofia: aquele de sua apresenta-
tellung, utilizado por Benjamin para remeter a essa dimensão a um só tempo epistemo-
Segundo Gagnebin, essa opção teria a vantagem de situar o conceito em seu domínio
próprio, aquele das artes dramáticas (em inglês, por exemplo, Darstellung traduz-se por
show ou present).
que se torna capital para Benjamin e que só é devidamente inserido na filosofia euro-
39
péia a partir do primeiro romantismo alemão — com a exceção pioneira de Hamman,
espaço no qual poderia frutificar a questão sobre o médium do saber filosófico e mesmo
no entanto, a filosofia não deve ter sua metodologia fundada em pressupostos realistas,
filosófico, indispensável para delimitar o campo da filosofia em relação àquele das ci-
ências.
40
Se Benjamin difere dos pressupostos realistas deste verismo científico, isso se dá
de que maneira esse gesto fundamenta a concepção de história que Benjamin elaborava
ser, impedindo assim que por verdade se entenda uma função do conhecimento científi-
co ou seu produto: uma ontologia da verdade, portanto. Esta ontologia tem ainda o obje-
com o produto final de uma pesquisa amparada no método científico de matriz newtoni-
ana, uma vez que este impõe a busca pelas constâncias, pelas leis — justamente aquilo
que o mundo histórico em seu caráter contingente não pode oferecer. Ao se deparar com
tal aconselhável; o sistema, por fim, a forma básica do pensamento. Ora, o conhecimen-
to científico, ao tomar como idioma próprio a matemática, acredita operar num plano
41
É próprio da literatura filosófica o ter de confrontar-se a cada passo
com a questão da apresentação. (...) A doutrina filosófica assenta na
codificação histórica, e por isso não pode ser invocada more geométri-
co. Do mesmo modo que a matemática mostra claramente que a eli-
minação total do problema da representação, reivindicada por toda
didática rigorosamente objetiva, é o traço distintivo do conhecimento
autêntico, assim também é igualmente decisiva sua renúncia à esfera
da verdade, que é o objeto intencional das línguas naturais. Aquilo
que, para os sistemas filosóficos, é o seu método não aparece no seu
aparato didático. Isto é sinal evidente de que lhe sé inerente um esote-
rismo de que eles não podem se libertar, que lhe sé proibido negar, de
que não podem vangloriar-se sem risco de condenação (BENJAMIN,
2011: 16).
Para esclarecer o que seja uma concepção genuinamente filosófica (leia-se: me-
que versa sobre a intransitividade do nome próprio. Destituído de qualquer função co-
partir dessa condição teológica, projeta a essência linguística das coisas. O nome consti-
sofia, na medida em que sua constituição é eminentemente teológica. Por teológica, en-
tende-se aqui, a propriedade que caracteriza o objeto como irredutível, como algo de
O caráter teológico de um objeto implica, de igual modo, que este esteja também
42
5
com a detecção de leis . Neste sentido muito específico é que se deve entender o pres-
suposto teológico de Benjamin, sem dele supor qualquer dogmática religiosa. Não se
trata aqui de submeter a filosofia à teologia, como uma alternativa de sinal trocado à
tutela da filosofia pelo método científico. Antes, é a teologia, em sua forma e não em
seus conteúdos, que é apropriada pela filosofia, não com vistas a uma dogmática qual-
refere senão a si mesmo e a Deus, já que se trata de uma teoria da nomeação inspirada
indeterminável e inacessível, que, justamente por isso, ao ser postulado como lastro úl-
de ser guarda semelhança com aquilo que Derrida, em seu Salvo o Nome (1993), deno-
partir do qual pode ser pensada como um problema. Nas palavras de Stephane Mosés:
5. A premissa de que o conhecimento mais seguro é aquele no qual a premissa é induzida a um confronto com a
situação empírica do objeto, é primordial para o método da física desde Newton e, a partir dele, torna-se um dos
procedimentos canônicos na epistemologia das ciências naturais. Como escreveu DAlambert, ainda no séc. das
Luzes: A ciência da natureza adquire de dia para dia novas riquezas; a geometria, ao dilatar suas fronteiras, levou
o seu facho às partes da física que se encontravam mais próximas a ela; o verdadeiro sistema do mundo foi final-
mente reconhecido. Desde a terra até Saturno, desde a história dos céus até a dos insetos, a física mudou de rosto.
Com ela, quase todas as ciências adquiriram uma outra forma (DALAMBERT apue CASSIRER, s/d, 77). 43
Each of the primordial “names” represents an immutable
given, an original invariant that in some way predetermines the his-
tory of thought and the source of a constant renewal of meaning. As
empty forms deprived of all semantic content, the names that consti-
tute the “language of truth” do not signify anything but outline the
ineluctable horizon within which truth can unfold (MOSES, 1993:
183).
No judaísmo, a palavra é criadora, dela surge o mundo e tudo que nele é dado.
Nela se encontra amparada a razão humana, que não existe senão mediada pela lingua-
gem, e nisso reside a semelhança entre a natureza humana e o próprio absoluto repre-
sentado pela ideia de Deus. A linguagem é a matéria com que Deus cria tanto o mundo
daquela que, segundo ele, degrada a linguagem uma vez que a concebe unicamente de
um ponto de vista instrumental, sem que seja reconhecido seu papel mais amplo, como
tra concepção (a de Benjamin) não conhece nem meio, nem objeto, nem destinatário da
gem calcada em suas funções, com vistas a determinados fins, terminaria por prescindir
vínculo por assim dizer genético que se dá entre criador e criatura, é afirmado de modo
assim também a diversidade – às coisas criadas, recorrendo para isso ao mesmo recurso
com o qual Deus criou o mundo: a palavra, por meio da qual se nomeia. Nisto reside
filosofia.
filosofia a linguagem perdesse este estatuto teológico para ser submetida à dimensão
com a palavra design) faz com que a filosofia da linguagem de Benjamin tome uma di-
reção diversa daquela onde se pode visar, por exemplo a linguística francesa, mais pró-
signos é inerente à linguística. Nisto ela termina por considerar a linguagem apenas se-
gundo seu aspecto funcional, enquanto Benjamin tomava a função comunicativa da lin-
Assim, está fora da alçada da lingüística a reflexão sobre uma linguagem origi-
como problema capital, na medida em que este problema interroga as bases mesmas do
Benjamin à linguagem nesta acepção bíblica: o cerne comum a ambos é sua indetermi-
nação última. À ausência de uma base semântica, no caso do nome próprio, corresponde
que esta se apresenta somente em relação, nunca de modo positivo (nisto consiste, para
ponto de vista genuinamente histórico que se pode avaliar o que seja a linguagem como
manifestação: a linguagem que constitui o suporte mesmo do mundo histórico, mas que
como uma teia. Se a linguagem não pode ser definida em sua essência, sendo antes o
meio que suporta qualquer definição – e não apenas de um ponto de vista meramente
47
Este ponto de vista Benjamin manteria em seus estudos posteriores sobre a fun-
A linguagem é, portanto, ela própria, uma realidade histórica, mas não de qual-
quer tipo: seria antes o objeto histórico arquetípico, já que se situa na fronteira entre
plicitado pela tradição da filosofia da consciência, seja em sua forma racionaliza ou po-
sitivista. Esta fronteira corresponde exatamente àquela que se dá entre a função nomea-
gem.
existe fora de seu domínio e, no entanto, é ela mesma o objeto primordial do historia-
dor, na medida em que ele lida com registros e não com experiências. Esta seria uma das
implicações do caráter originário com que a história afirma sua historicidade, ao mesmo
48
Logo no início do ensaio de 1916, seu mais importante texto sobre a linguagem,
E mais adiante:
bem como a dependência que este guarda em relação a uma consciência transcendental
seguro e sem declives, quando, para Benjamin, esta confiança numa representação tute-
fim também porque a ele se liga um ideal de formação, no qual o conhecimento cientifi-
camente conduzido ocupa um lugar maior. A posse do conhecimento que Benjamin re-
futava, era condição si quo non para se admitir o reflexo da epistemologia sobre o mun-
49
do ético: o conhecimento compreendido como estímulo necessário para a evolução da
Ora, do ponto de vista judaico, que deve tanto a Franz Rosenzweig quanto ao já
função nomeadora o atesta) mas é, ao mesmo tempo, o que há de mais elementar. O que
cia, não se deixa mesmo explicar; o que há de mais elementar, porque o fato de ser ela
um dado constitutivo de toda realidade à qual se pode ter acesso faz com que sua exis-
tência seja onipresente. A linguagem é, portanto, o que de mais transcendental há, por-
que a ela não podemos explicar em sua totalidade. É também o que há de mais elemen-
tar e imanente, por que não é possível consciência, seja empírica ou transcendental, se-
siderada em sua historicidade, nos usos e desusos, em sua concretude como suporte do
pensamento e da prosa, a linguagem mostra-se como algo mais objetivo, algo de mais
te em relação aos objetos que examina. A linguagem mostra-se como algo de mais em-
50
Num sentido que explica, em grande medida, o fascínio exercido por Benjamin
por ser, na chamada “consciência”, aquilo que há de mais concreto. A linguagem é algo
cujo desempenho podemos acompanhar com o olhar do historiador da cultura, mas que
não se pode esgotar de um ponto de vista filosófico. Ela é transcendental em sua moda-
gem só pode ser objetiva nos dois domínios extremos da história e da teologia. A filoso-
fia consistiria aqui num domínio intermediário, onde a linguagem é a condição de toda
modo de ser da linguagem, de onde almejar para a epistemologia (supondo que esta
seja ainda uma teoria do conhecimento filosófico, e não apenas suma démarche científi-
51
ainda não perderam a aura da sua capacidade de nomear em favor de
um significado cognitivo (BENJAMIN, 2011: 24).
Temos aqui o primeiro vislumbre do que seja o sentido teológico que Benjamin
uma vez que ele entende a história como fundada na linguagem, compartilhando com
Ainda no ensaio de 1916, Benjamin se refere, muito antes de seu contato com o
se toma o texto bíblico como ponto de partida (acima, pg. 23), não é por que seu inte-
resse teológico coincida com o de uma dogmática, podemos supor que o transcendenta-
abrigada no divino, visa tão somente retirá-la de qualquer relação instrumental, como
um artifício metodológico que visa realçar o fundo mágico da linguagem, sobre o qual
52
É segundo essa concepção não-instrumental que Benjamin entende também a
verdade como algo de linguístico. A verdade é vista como algo de incomensurável, mas
é, ao mesmo tempo, dotada de uma positividade própria: aquela da linguagem. Isso de-
nuncia o fato de que linguagem e verdade não se dão senão num misto de positividade e
nicação.
no que diz respeito à relação entre sujeito e objeto do conhecimento, alegando que sua
da experiência humana que não se deixam pensar segundo princípios matemáticos, as-
De fato, sabe-se da avaliação kantiana do que seja, por exemplo, o estatuto epis-
temológico da arte; ou melhor, sabe-se da ausência deste estatuto e do teor negativo des-
ta avaliação: a arte seria o objeto de uma fruição, mas de modo algum a base para um
conhecimento controlado. Este pressuposto seria contestado pelo idealismo mágico dos
primeiros românticos de Jena, que muito influenciou Benjamin. Era intenção dos ro-
mânticos justamente conferir à poesia o estatuto epistemológico que Kant negava à arte,
53
ou seja: obter dela os critérios para se fundamentar uma teoria do conhecimento. Ora, ao
opera sobre a noção de uma dispersão lingüística ou, como procuramos definir, sobre a
al” e “essência lingüística”, que podem ser melhor esclarecidos por uma espécie de em-
ontológico de todas as coisas e que esta, por sua vez, possui uma essência mágica, ines-
ca” à luz das relações que Benjamin estabelece entre linguagem e empiria, ou entre lin-
guagem e expressão. Como lembra Kátia Muricy, para o autor, “tudo o que aparece,
54
gem”. Expressão é, portanto, comunicação imediata, que não pode servir como instru-
a linguagem comunica uma essência espiritual, isto é, uma pura e simples comunicabi-
lidade [quer dizer, imediata].” Ainda seguindo os passos de Kátia Muricy, a autora res-
salta que “essência espiritual” e “essência lingüística” não coincidem. Vejamos também
comunica na linguagem, e não através dela (...) o que significa dizer que, de fora, ela
não é idêntica à essência lingüística. Ela só lhe é idêntica na medida em que for comu-
nicável” .
Há, portanto, uma essência espiritual das coisas, que nos é inapreensível em sua
totalidade. Isso se admitirmos que toda experiência de percepção seja, como queria
Benjamin, lingüística, o que torna impossível saber das “coisas em si” (isso significaria
a apreensão total de sua essência espiritual). Mas alguma coisa apreendemos das coisas,
o que é outro modo de dizer que elas se expressam. Se “a expressão só pode ser enten-
dida como linguagem”, devemos admitir que aquilo que podemos apreender do univer-
Se Benjamin parece não se incomodar com a possibilidade de que lhe seja atri-
dida dos pressupostos da filosofia da linguagem romântica. Esta era condicionada pelo
55
ímpeto romântico de alargar os conceitos de racionalidade e de experiência tal como
legados pelo Iluminismo, o que desencadeou, entre outras coisas, o surgimento de uma
proposta de hibridização entre filosofia e poesia. Isso implicou também numa condução
da filosofia para além não apenas dos limites epistemológicos da filosofia da era das
luzes mas, também, para além de seu aspecto estilístico, ou seja, da forma de sua prosa.
tui numa elaboração discursiva regulada. Benjamin se opõem não apenas a uma concep-
ção da linguagem que a reduza à sua dimensão comunicativa, como também a qualquer
tipo de leitura mística dos fenômenos lingüísticos que se apóiem sobre um essencialis-
gem.
Assim, Benjamin reivindica uma teoria do conhecimento que nada tem de irraci-
onal, sendo antes uma espécie de ultra racionalismo, à medida que exige que a razão
estenda seu poder crítico-compreensivo a campos por ela ainda inexplorados, relegados
em nome da precisão científica. Trata-se daquilo que Benjamin tinha em mente sobre
homem é apenas uma forma particular, privilegiada, de uma ‘linguagem geral’”, Ben-
de Deus. Quer dizer o seguinte: o nome é, na linguagem humana, aquele lugar em que
sua expressão verbal coincide, em sua essência, com a linguagem divina, ou ainda: no
56
manutenção da idéia de Deus. Ao nomear as coisas, Adão não está veiculando conteú-
dos, não está propriamente dizendo coisas: está, sim, expressando, a essência espiritual
das coisas, assim como Deus expressa sua própria essência espiritual no ato da Criação.
Está, por assim dizer, dizendo a indizibilidade do indizível, o que, como nos lembra Je-
anne Marie Gagnebin (2006: 63), tem muito a ver com o exercício praticado pela litera-
tura testemunhal, principalmente com aquela que lida com a memória dos campos de
batalha.
ções por ele contestadas, mas o criticismo que não se restringe a Kant” (MATOS, 1993:
Kant a forma de um recurso à física newtoniana, manteve fora do seu conceito de expe-
riência tudo que não se deixa apreender nos moldes de uma relação sujeito-objeto. Ao
57
“conhecimento duradouro” associa-se uma concepção que restringe os limites do co-
Benjamin incluía a experiência histórica – e não apenas ela, mas também a religiosa –
questão. Nisso está o aparente paradoxo do empirismo de Benjamim: fazer com que a
lógica transcendental, tais como as concebia Kant, rumo à empiria, e justamente através
totalidade da experiência humana, e não apenas aqueles setores desta que se permitem
terística não apenas em sua relação com a consciência pura, mas, também, e ao mesmo
para o conhecimento filosófico por meio da linguagem, que por sua vez situa-se a meio
ca:
Não nos parece que “para além da natureza” ou “supra-racionais” sejam termos
adequados para definir a essência daqueles setores da experiência humana que Benja-
58
min pretende salvar no projeto de uma teoria do conhecimento que dê conta da experi-
ência total. Parece-nos que Benjamin pretende, ao contrário, defender o caráter racional
racionalidade apta a lidar com a linguagem e com tipos de se experiência que nãos e
modo que ele possa abarcar o problema sobre o papel da linguagem na produção de um
Novalis e Schlegel, era orientada pela visão do mundo como um livro, ou seja, pela
ca, a única sobre a qual Benjamin via a possibilidade de, nas palavras de Olgária Matos,
tes e através de seu pretenso rigor, esgotar seus objetos – o que significa nada além de
59
ma sistemática –, cometendo antes o pecado de deixar intocados setores inteiros da ex-
periência humana e vendo nisso, ademais, um índice de precisão, de lucidez quanto aos
de sua subseqüente aplicação ao método, mas sim de que “o aniquilamento dos elemen-
que o que seria deixado de lado numa concepção estritamente matemática do conheci-
corresponda à das matemáticas e cujo modo de ser não se assenta num arranjo de leis.
fundados num sujeito autônomo, que Benjamin avança sua crítica convertendo-a numa
tocante a um de seus pressupostos básicos: aquele que diz respeito à relação entre o su-
60
neira a abarcar, com os conceitos de conhecimento e experiência, realidades como a re-
Do ponto de vista de uma filosofia que supõe “um ego individual que recebe
sensações por meio dos sentidos e forma suas ideias com base nestes”, a problematiza-
ção do método filosófico é reduzida à adequação desta relação, na qual um sujeito cog-
noscente, fiado por uma consciência empírica (BENJAMIN, 1996: 104), desvela o ob-
jeto, tomando conhecimento de suas leis constituintes. A ambiguidade entre esse pres-
suposto formal e a fundação metafísica da filosofia – que, por definição, deveria trans-
observação em que Benjamin considera estar a filosofia num lugar intermediário entre a
ciência e a arte.
tista e o artista, mas ele adverte: há um ponto de vista corrente que aproxima excessi-
timo. A aporia consistiria no fato de que, a uma consciência descrita de modo abstrato,
concreto — e isso a despeito da virada copernicana de Kant, que pouco ou nenhum an-
tídoto rendeu ao realismo epistemológico. Nenhum outro tópico, porém, foi alvo de tan-
tas críticas da parte de Benjamin ao longo de sua obra quanto o papel negativo exercido
61
pela subjetividade na busca por um conhecimento objetivo e controlado. No ensaio so-
bre Kant, o Programa da Filosofia Vindoura (1917), escrito logo após seu mais impor-
deixam-se também limitar-se pelas categorias da consciência, não impediu que fosse
tanto, uma autonomia perante o método. Ela garante, no sistema do idealismo crítico, a
ser ilusória. Ele nota que, se a virada coopernicana de Kant significou a superação da
noção de um objeto científico como “coisa-em-si”, por outro lado ela deixou intocado a
103).
isso se dá por uma indagação acerca do que, no campo dos objetos, poderia ser tomado
como fundado na linguagem. É a partir deste critério que Benjamin estabelece a reli-
62
gião, a linguagem e a história como os objetos filosóficos por excelência. Com isso
nopólio paradigmático que as matemáticas exercem numa filosofia que se pretende ci-
entífica.
passivo e uma consciência transcendental, que organiza a apreensão do objeto por meio
Com isso, parece claro que Benjamin busca enfraquecer o caráter auto-referenci-
al atribuído à consciência pelo idealismo crítico. Tanto mais que, no contexto do prefá-
cio epistemológico ao seu livro sobre a Origem do Drama Barroco Alemão, seu argu-
mento surja como uma crítica ao caráter possessivo do conhecimento científico – como
método científico, como teria feito Kant, o que se perde é o objeto mesmo do conheci-
mento, dissolvido numa epistemologia do reflexo que, por sua vez, não se discerne
63
Benjamin caracterizá-la, pejorativamente, como metafísica (termo que, em outros con-
textos, ele toma de forma positiva). Em seu ímpeto de possuir os objetos do conheci-
gem do conhecimento como seu reflexo. Por outro, lado, a consciência empírica, com a
qual a primeira deveria ser confrontada (segundo a síntese entre racionalismo e empi-
rismo que Kant propõe na analítica transcendental), não distingue sua própria estrutura.
Segundo Benjamin, Kant falhou em perceber que a consciência empírica, por se con-
frontar com o mundo da experiência, não pode ter uma forma única: na verdade, haveria
cia empírica, que o criticismo resumiu àquela consciência empírica que a ciência toma
Com isso Benjamin confere um novo estatuto epistemológico aos três objetos
assim uma epistemologia renovada, que formule problemas e encontre soluções para
Ao dizer que a consciência empírica como mobilizada pela ciência não é mais
que uma variação da consciência empírica em geral, Benjamin amplia o conceito de co-
nhecimento e flexibiliza o conceito de experiência que se liga a ele, já que outras moda-
64
Nota-se que esta foi a maneira benjaminiana de resolver os mesmos problemas que se
juízo maior seria o de se formular uma teoria do conhecimento fundamentada num con-
65
ceito de experiência por demais estreito, que, do ponto de vista de Benjamin, coincidiria
com aquele vigente no Iluminismo; experiência esta do mais baixo nível, caracterizada
pela “cegueira religiosa e histórica do Iluminismo”, diria ele no texto sobre Kant (1996:
103).
leis que, ademais, estariam inscritas neles próprios. Essa harmonia lógica é o que Ben-
procura superar é, mais uma vez e em última instância, a correlação mesma entre sujei-
to-objeto.
66
No prefácio a Origem do Drama barroco Alemão Benjamin constrói sua própria
fia na multiplicidade dos objetos. Essa multiplicidade, que para o conhecimento cientí-
fico, representa o horizonte de sua expansão, para a filosofia não passaria de dispersão.
sendo este antes o alvo das ciências, Benjamin sustenta que à filosofia compete a tarefa
superior de construir um exercício, por meio do qual a verdade possa ser apresentada
nação. Este exercício não toma da noção abstrata de sistema a sua forma, como o fez a
tradição da epistemologia moderna desde Kant. Antes, se funda em algo que reside na
67
Aqui já se torna claro o fato de que Benjamin, à maneira dos românticos de
do conhecimento.
cimento, em grande parte devido aos esforços do neo-kantismo, tão em voga nas univer-
de que Benjamin julga pouco conveniente para a filosofia, na medida em que esta e a
ciência tem, por definição, metas distintas, devendo ser distintos também os seu méto-
dos.
Como lembrou Sérgio Paulo Rouanet em seu importante Benjamin, o falso irra-
uma verdade que nunca se deixa apreender por completo. Para Benjamin, a filosofia se
opõe à ciência, assim como a verdade, absoluta e indeterminável, se opõe ao saber, rela-
68
tivo e determinado. Por outro lado, afirmar que Benjamin tinha em vista o teor absoluto
sofia da representação calcada nos métodos das ciências da natureza, Benjamin tenha
teologia. E, de fato, é a esta que Benjamin recorre, quando afirma que só por meio dela
é possível ter acesso aqueles objetos sem os quais é impossível pensar a verdade (BEN-
tarefa por demais restrita, se comparada àquela que concerne à filosofia – a apresenta-
ção da verdade –, implicando sua degradação, caso o método científico seja postulado
como seu fundamento epistemológico. Termina assim por deslocar o problema da defi-
nição do que seja a verdade do âmbito da ciência para o de uma ontologia — curiosa
ontologia, em que o ser da verdade não se deixa determinar. Assim, o filósofo abre ca-
minho para que seja introduzido o tema da linguagem – e, com ele, o da teologia.
Este conceito tem em Benjamin, uma natureza muito mais formal do que, patéti-
ca: remete mais à forma do pensamento teológico do que a qualquer um de seus conteú-
dos ou a um pathos religioso. Na concepção judaica que Benjamin faz do que seja a teo-
logia, mediado em grande medida por seu amigo e célebre historiador da cabala,
Gershom Scholem, a linguagem é, por assim dizer, o fundo das coisas – dos objetos que
69
A linguagem é, por isso, irredutível à análise sistemática. Em última instância,
há sempre algo na linguagem, pela sua natureza imediata e irredutível, que se assemelha
àquilo que na experiência religiosa chama-se revelação. No entanto, não se deve pres-
quaisquer. Sérgio Paulo Rouanet apresenta uma crítica cabal às tentativas de vincular
como duas faces de um mesmo limite, de uma mesma fronteira, sem a qual é impensá-
vel o exercício filosófico e onde se nota a diferenã entre filosofia e ciência, ignorada por
Kant. Algo como os espaços milimétricos que em engenharia busca-se garantir para as
como intentou não apenas o neo-kantismo, mas também a fenomenologia (que Benja-
70
min refutaria igualmente), a filosofia seria reduzida à instrumentalidade e o conceito de
experiência que dela poderia ser obtido seria aquele do mecanicismo, que o séc. XIX
herdara do Iluminismo.
pondo quase que direto o caminho a se efetivar entre sujeito e objeto do conhecimento.
Este caminho seria mediado apenas por essa plataforma particularmente neutra que é a
para além dos limites opostos do idealismo exacerbado, bem como do empirismo factu-
alista que deu o tom da Escola Histórica alemã. Terminaria, com isso, por fornecer as
bases para uma filosofia crítica da história, ou, dito de outro modo, para uma Teoria da
História que em nada ou em muito pouco coincide com aquela que opõe ciências da na-
71
Estilo e História: ensaio e tratado como modelos espitemológicos
delo que Benjamin sugere para descrever a lógica da metodologia filosófica é o ensaio –
e sua forma medieval: o tratado, que tem por característica a descontinuidade mobiliza-
da no trato com objetos que Benjamin chama teológicos no mesmo sentido em que se
referia à linguagem usando esse termo: tratam-se dos objetos próprios da filosofia, cuja
cos, sobre os quais só se podem pensar negativamente, nunca de modo positivo supondo
coisa que não a interpretação organizada imageticamente, ou, dito de outro modo: a in-
O teor metafísico do objeto impõe uma forma calcada num tipo outro de destre-
za que o da explanação linear, sistemática por natureza, inspirada num modelo matemá-
saio. Mesmo antes de ir para Paris, Benjamin já guardava estreitas relações com o am-
ado com a linguagem plástica, e mesmo habituado a modular princípios plásticos, mé-
de ser do tratado tem muito de plástico, lida com a materialidade do texto de modo mais
explícito do que a prosa sistemática da filosofia de inspiração científica. Opera com cor-
tes e sobreposições que não são gratuitos, antes assinalam o ritmo do próprio pensamen-
to, ele mesmo mais combinatório do que sistemático. O tipo que não percorre um cami-
72
nho linear em direção ao cerne do objeto, como que desejando flagrar sua essência, mas
ronda o objeto repetidamente, tocando-lhe a cada vez com uma ênfase diferente.
o pensamento de Benjamin sob a suposição de que o que ele faz é elaborar um modelo
alternativo de sistema como alternativa àquele usado por diversas verses de epistemolo-
gia moderna. O termo sistema se refere aqui aos sistemas filosóficos elaborados a partir
outra a concepção de sistema que Benjamin tem em mente quando critica sua aplicação
à filosofia.
rio de enfoques, pelo perspectivismo, que já era assunto de Novalis e Schlegel, antes
que Nietzsche lhe desse o tom de crítica radical da metafísica. Antes de sua mudança
tura o método para à argumentação filosófica não é, portanto, subliminar, assume for-
do tratado escolástico.
elaborado pelo idealismo alemão, pudesse ter menor vigência do que no domínio do ensaio filo-
que Benjamin está disposto é de outra natureza, e não coincide nem com o irracionalismo me-
todológico do método empático de crítica das fontes, que espera que os objetos simplesmente se
73
imponham sobre o intelecto, nem com a estetização que ignora que os recursos advindos das
artes não podem ter, nas mãos do filósofo ou do historiador, a mesma autonomia que encontram,
do ponto de vista do método, nas mãos do artistas.
saber que encontra na lógica seu princípio e na matemática seu medium, seu modo de articula-
ção. A própria remissão ao tratado implica em atribuir ao estilo papel primordial na apresenta-
ção da verdade, segundo Benjamin a tarefa primordial da filosofia e, portanto, objeto central
pata a teoria do conhecimento. Como estilo, o tratado não sistematiza conhecimentos por meio
de sua matematização, nem sua forma remete à concepção de uma verdade transcendental, per-
cebida num complexo matemático de causa e efeito, na constante da lei e do sistema — os ter-
filosófico. Estas formas permanecem intermediárias neste contexto porque criam uma
zona de fronteira onde uma teoria da arte e a epistemologia encontram-se sem se fundir.
plasticidade – que não é de se esperar da prosa sistemática, que trabalha com o modelo
74
plástico para a própria noção de verdade.
O tratado procura acessar a verdade não pela via da dedução ou da indução, mas
como a forma de totalidade à qual ela se vincula. Isso porque o mosaico é uma forma de
montagem que guarda afinidades com o que há de imagético no estilo do tratado, com
outra que aquela em que o conhecimento é entendido como um caminho de mão dupla
Benjamin parece fazer uma leitura estetizada da teoria das ideias de Platão, no
verdade não se deixa apanhar, apenas se pode configurá-la. Deve ser construída
relação necessária entre si mas que podem ser reunidos numa constelação, e alcançar a
ontológica.
argumentação filosófica e seu estilo eles mesmos cuidam de compor uma imagem de
platonismo, no qual as ideias são apresentadas nos fenômenos e estes “salvos”, reunidos
nas ideias. Aqui há uma crítica implícita à hipótese platônica de que o mundo das ideias
determine o dos fenômenos, mas a premissa de que há uma relação formal entre ideia e
fenômeno permanece. Os fenômenos não adquirem, como que por emanação, suas
formas num processo de derivação de outras formas primeiras, ideais. Por outro lado, 76
77
pode ser compreendidos isoladamente, precisam ser inseridos senão num totalidade
estão perdidos. Trata-se de ume esquema de abstração, mas guarda uma ligeira
diferença em relação à filosofia da consciência, porque eles não são abstraídos por meio
de ideias fundamentais. Essas ideias não são nem formas ideias, como em Platão, nem
uma pesquisa imagética, com vistas a sua reconstrução por meio da montagem literária.
domínio da estética, por isso as ideias não determinam os fenômenos nem o contrário:
suma, o que o conceito de imagem dialética faz é sobrepor dois momentos históricos
Benjamin estava ciente de que, seja como for, um historiador não pinta quadros, nem
escrever um livro e esse procedimento será sempre narrativo, mesmo que fiado em
78
paradigmas modernistas de prosa. Não se trataria, neste caso, da narração tradicional,
cuja superação Benjamin descreve em seu O Narrador, mas seria, ainda assim, uma
talvez se apresente de modo mais turvo que o necessário, pela tendência que temos a
narração é o da sucessividade, ainda que opere com séries, como a narração modernista,
que também se serve da técnica da montagem. De todo modo, no interior de cada série
recompensa cognitiva que se espera do gesto de se tomar a lógica como algo inerente ao
ideias.
Esse tipo de filosofia entende-se como literária, ainda que não propriamente
primeiro romantismo de Jena, que entendia a literatura como a forma máxima da arte,
79
que não deveria ser impropriamente colocada sob a tutela da filosofia epistemológica
que supõe o interesse pela analogia, típica das filosofias que Novalis e Friedrich
uma filosofia que tenha sistematicidade, sem constituir um sistema fechado; que é
complexa do objeto histórico, do que àquela que o entende unicamente como elemento
de um sistema, cuja lógica submete as partes ao invés de derivar delas. Com isso, busca-
espaço como o que a crítica concedeu a física newtoniana, compreendida como o grau
80
zero da epistemologia moderna e ponto de unidade das ciências da natureza do séc.
XVII.
relação de plena alteridade em relação ao objeto que visa apreender por meio do
apresenta como constelação no livro sobre o barroco. O eu e a coisa são, na leitura que
ocupava desses domínios na medida em que seu objeto de estudos era então um conjun-
pois, já no contexto das Passagens, como traço épico da história. Aqui abordaremos este
81
Primeiramente Kant acredita identificar essa meta na natureza, de modo que na
Primeira Proposição escreve: “todas as disposições naturais de uma criatura estão des-
mais isso é confirmado, tanto pela observação externa quanto anatômica” (KANT, 1986:
11). Em seguida, Kant afirma ser também da ordem da história a finalidade de auto-
realização por meio do cumprimento de uma meta, que ele primeiramente atribuiu à
natureza:
perspectiva finalista que, por sua vez, fundamenta uma noção linear e evolutiva da tem-
poralidade histórica. Este legado Benjamin identificaria na história literária do seu tem-
curso cientificista, que pensa a ciência moderna como ponto alto da teleologia iluminis-
ta, que pressupõe a emancipação humana por meio da Razão. Se do ponto de vista da
história como sucessão de grandes eventos políticos, quase uma história mesma do Es-
tado, na esfera da História Literária o mesmo princípio se apresenta numa teoria dos gê-
neros de caráter finalista, que supõe uma relação necessária e qualitativa entre as formas
82
literárias ao longo do tempo. Um argumento teleológico, portanto, cujo télos é o classi-
cismo, por meio do qual o humanismo renascentista buscou reabilitar a estética clássica.
da história literária e da filosofia da arte de seu tempo. Isso por que, na visão de Benja-
min, estas disciplinas achavam-se acopladas a uma visão teleológica da história, o que
riência coletiva do devir é orientada por um télos, um alvo ou meta necessários. Uma
finalidade, em suma. E que, portanto, é uma experiência dotada de sentido, nas duas
acepções do termo: aquela que diz respeito à sua direção ou destino, e aquela que se re-
fere ao seu significado. Kant, quando decretou a necessidade da teleologia como pres-
suposto básico para a filosofia da historia, sustentou que desta noção advém também o
sições para uma Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, de
1784, Kant afirma que “todas as disposições naturais de uma criatura estão destinadas a
83
Pode-se considerar a história da espécie humana, em seu conjunto,
como a realização de um plano oculto da natureza para estabelecer
uma constituição política perfeita interiormente e, quanto a este fim,
também exteriormente perfeita, como o único estado no qual a nature-
za pode desenvolver plenamente, na humanidade, todas as suas dispo-
sições (KANT, 1986: 21 e 22)
antídoto contra essa teleologia implícita na suposição de que há, entre natureza e histó-
ria, uma relação necessária. Esse dogmatismo teleológico foi um dos motivos pelos
kantiana para o conceito de crítica literária no romantismo de Jena. Supor que a história
Benjamin, não apenas uma concepção mecanicista, mas, de igual modo, a forma mítica
6
da história . Benjamin considerava mítica também toda teoria da consciência cujo lastro
sua vez sugere uma concepção evolutiva e linear do que seja a história. Com isso Ben-
jamin ressalta a diferença entre duas concepções do que venha a ser a historicidade
6.A naturalização do tempo, sua concepção mecanicista, foi uma das implicações do conceito de míto
elevadas por Windred Meninghaus em Benjamin. Ao todo, o autor identificou cinco variantes do con-
ceito de mito, vinculando explicitamente Benjamin a duas delas: Benjamin leva em conta o conceito
de mito ao qual se opõe a filosofia da religião e leva em conta também em conta o conceito psicana-
lítico, segundo o qual o mito é algo que precisa ser elucidado a maneira de um sonho que demanda
explicação: em ambos os casos o pensamento deve mover-se de um âmbito obscurecido pela penum-
bra de uma linguagem mítica rumo à formulação de uma linguagem emancipada (MENNINGHAUS).
Como bem notou Maria Filomena, neste sentido o projeto de Benjamin guarda semelhanças com
aquele de Wittgenstein (MOLDER).
84
processo de gênese. O que é próprio da origem nunca se dá a ver no
plano do factual, cru e manifesto (BENJAMIN, 2011: 34)
bida como emergência, o que desarma a estrutura finalista da história, livrando-a de seu
justamente por que esta é concebida como o grau zero de um processo teleológico, o da
meio de uma retomada dos ideais clássicos, conforme sugeridos pelo humanismo renas-
centista. A afirmação destes ideais fazia com quem as peças do teatro barroco alemão
fossem vistas como uma variação inferior da tragédia grega. Ou seja: num concepção
teleológica da história, que via como télos próprio das obras de arte a maturação dos
mão, sua especificidade, o que é suprimido. Em seu lugar ergue-se uma teoria dos gêne-
Benjamin, por sua vez, afirmava que o objetivo primeiro da análise formal do
85
tragédia. Com isso impôs-se uma nova classificação que impediria
definitivamente a compreensão desta forma: visto como drama renas-
centista, o drama trágico aparece, nos seus traços mais marcantes,
como uma forma carregada de defeitos estilísticos (BENJAMIN,
2011: 39).
nuo, aquilo que nela não se deixa perceber do ponto de vista da continuidade, muito
em suma, que não está ao alcance de um método voltado para às ciências de matriz ma-
causa e efeito.
damentos ao âmbito da história literária implica numa teoria dos gêneros altamente abs-
creveu:
jaminiano de origem reside no fato de que ele abarca a estrutural temporal da filosofia
da história à qual se opõe o filósofo e, ao mesmo tempo, aponta para o caráter necessá-
rio, inexorável, que assume toda filosofia da história organizada com vistas a um télos.
ráter épico. A história não mais é vista como o progresso natural da razão, seja no âmbi-
86
to da técnica e das ciências, ou no da arte. A historicidade mesma deixa de ser vista do
ponto de vista de uma temporalidade abstrata e linear, e passa a ser pensada de modo
de um obscurantista. Nas Passagens Benjamin deixa bastante claro que se está a criticar
o progresso é porque este é um conceito que parece ter perdido a maior parte de seu po-
XIX, quando a burguesia consolidou sua posição de poder, o conceito de progresso foi
perdendo cada vez mais suas fusões críticas que originalmente possuía.
Cabe à teoria da história realçar, de um modo muito mais drástico do que pôde
Benjamin afirma que “será preciso chamar atenção para o fato de que uma forma
de arte não pode ser determinada a partir da constelação de seus efeitos”. (BENJAMIN,
tecimentos, arranjados como causa e efeito uns dos outros. A determinação do objeto
co.
Disso não decorre que o objeto histórico seja visto de modo completamente
segundo Benjamin, tanto na sua pré-história, quanto em sua pós-história, o que implica
necessariamente seu teor relacional. Nisso o conceito de origem diverge novamente da-
lógico, é pressuposta a possibilidade da relação das mônadas entre si. Não é, portanto,
ontológica do objeto histórico que não aquele que o insere numa teleologia das formas
literárias. O fato histórico como concebido pelo historicismo é esvaziado de sua densi-
dade histórica e nunca alcança a forma de uma totalidade, porque é visto como mero
ca do factualismo (o objeto histórico não pode ser uma ideia, diria o factualismo histori-
cista) e garante a singularidade do objeto histórico de modo muito mais eficaz do que o
88
faria o mero rigor no exame das fontes. Nisso Benjamin afirma a especificidade do co-
nhecimento histórico ante às ciências da natureza, das quais o historicismo herdou o fe-
tiche do fato.
de modo intensivo, conforme sua singularidade, e não de modo extensivo, conforme sua
inserção numa rede de causas e efeitos que se desdobrasse ao longo do tempo. Há uma
termos monadológicos. À luz deste princípio, o objeto histórico é vislumbrado não ape-
nas em sua singularidade drástica, como intentava o historicismo, mas também em seu
7
simultaneidade de interrupção e totalização .
lo, visualmente, poderia-se dizer, não é posicionando-o como grau zero de uma linha de
acontecimentos, mas como algo que surgisse rompendo o tecido da história linear. Mas
talvez o mais correto fosse apresentar o processo originário como algo da ordem da per-
cepção do historiador, que estabelece os nexos necessário para que se haja uma configu-
ração de pré e pós história, ou seja: a origem quando uma determinada visada faz com
que um momento do passado corresponda ao presente, e isso de uma tal maneira que na
massa de fatos passados esta cápsula de espaço-tempo deixe-se definir como fato histó-
rico. Nota-se que é da ordem da percepção a metáfora da balança, em que Benjamin dis-
7.Sobre o caráter monadológico do objeto histórico, Max Pensky notou que este foi um recurso meto-
dológico com o qual Benjamin buscou remediar seu mal-estar diante da subjetividade no
conhecimen- to do passado. Pensky afirma, no entanto, que para sustentar essa autonomia do objeto
histórico, que existe como realidade em si, antes de elo numa corrente causal, Benjamin conferiu ao
objeto um ex- pontaneísmo (self-expression), que faz com que “perca-se a distinção entre a pessoa e
o ato crítico”, entre “objeto do criticismo e sujeito crítico” (critiquing subject). (PENSKY, 1993: 62)
89
tribui a importância de passado e presente para o estabelecimento de um conhecimento
histórico adequado:
mento efetivo, quanto um tipo de olhar, que forja a imagem deste desenvolvimento e o
efetua como conceito, no entanto, não é apenas um olhar diverso sobre um processo ló-
gico e evolutivo que, regendo a natureza, abarcaria de igual modo a história. Antes, a
origem constitui um ponto de vista sob o qual este processo perde seu caráter necessário
90
A origem é o conceito mobilizado por aquela “dialética do olhar” à qual se refe-
riu Susan Buckmorrs. Não se trata de uma outra maneira de narrar. Seu princípio, sua
distintos, faz com que a estrutura temporal do conceito de origem não coadune com a da
pressuposta numa narrativa descontínua que, no entanto, ainda se situa numa linha tem-
poral, na origem a noção de um tempo linear desaparece. A origem liquida o tempo li-
near na medida em que seus dois termos, o passado onde reside o objeto do conheci-
factualismo, já que todo fato justifica-se agora apenas em meio a uma constelação de
outros fatos. O conceito de origem reorganiza a proporção entre um fato e seu contexto
d historiador, por sua inscrição social, pela comunidade de profissionals da qual faz par-
te, pelo público ao qual se destina sua sobras — todos aquelas dimensões elencadas por
sobreposição de luzes destas duas constelações, a que caracteriza o fato histórico e a que
termos de Benjamin.
Por outro lado, o conceito de origem, no que tem de positivo, em seu elemento
91
evolutivo, linear; dos falsos contextos de causas e efeitos nos quais se inserem os fatos
tomados acriticamente — demanda que o fato histórico seja apresentado com o rigor
Benjamin escreve:
um conceito de verdade de cunho científico tem, portanto, como pano de fundo, sua crí-
tica mais geral ao papel exercido pela ciência na fundamentação epistemológica da filo-
sofia da arte e da história literária. Esta crítica poderia ser aplicada à toda teoria da his-
tória de cunho objetivista. Ecoando uma premissa romântica, Benjamin desloca do do-
objetos são vistos como parte de um todo contínuo, linear, politicamente esclarecido.
Benjamin percebe que teleologia e factualismo se unem numa visão da história que é
aquela mesma do humanismo liberal: conservadora como passa a ser ao longo de sua
história, esta concepção da história preza a ciência assim como a tecnocracia, e em ma-
téria de ciência histórica enaltece os fatos porque acredita no fundo que nada poderia ser
melhor do que o que já ocorreu. A dignidade do fato histórico, nessa perspectiva, não
tem a ver apenas com seu estatuto de índice, de suporte para a objetividade do conheci-
92
mento, mas de igual modo com seu caráter simples de passado. O fato sustenta tanto o
93
2: HISTÓRIA CULTURAL COMO CRÍTICA DA CULTURA
progresso na medida em que estas dependem de uma abstração que se refira a um tempo
ções de ordem política, das quais dificilmente poderiam se abster as concepções de his-
tória, por diversas que sejam. Por fim, essa concepção unívoca de um tempo neutro in-
Nas Teses Sobre o Conceito de História, Benjamin escreveu de maneira que tor-
nou-se célebre: “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homo-
gêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras (BENJAMIN, 1996: p. 229)”. Onde
houver mais de um registro temporal, vigentes mesmo que por vias distintas, a ideologia
aos fatos quando apontamos o alcance da ideologia na elaboração e assimilação das fon-
tes históricas: onde houver documentos, fontes históricas, resíduos do passado passíveis
94
uma série de escolhas por parte do historiador, escolhas estas que devem ser explicita-
das, ao invés de ocultadas com vistas a uma frágil pretensão de neutralidade científica.
tudo, a nutrir certa ironia para com os esquemas temporais que geralmente envolvem as
é sua composição múltipla, cuja natureza tem a ver com a multiplicidade mesma do
tempo que a história agencia: a tensão mesma entre aquilo que Koselleck chamou de
tar a teoria da história de Benjamin como uma crítica da cultura, nos termos da kultur-
kritik alemã.
tadas como o são sobre a seleção, interpretação, organização e crítica das fontes históri-
cas. O historicismo peca justamente por inserir a massa de fatos produzida a partir do
material documental num esquema temporal linear e por supor que, com isso, está esta-
mentariam a massa dos fatos passados conhecidos e explicados pelo historiador. Isso
porque, segundo esta concepção, o que confere ao tempo sua significação histórica é
justamente a relação que este estabelece com a verdade: o refinamento da mútua impli-
95
ca, hermenêutica e crítica, oferecem o instrumental com o qual a verdade é obtida a par-
tir das fontes (GADAMER, 2007: 189). A verdade é compreendida, portanto, como uma
em si.
culiar, do ponto de vista do método: trata-se de exercer domínio sobre o tempo remedi-
ando os efeitos de sua passagem ao mesmo tempo em que se ajusta o foco sobre sua
realidade termina vítima de seu próprio esquematismo, produzindo não mais que uma
Benjamin repara que a forma de uma história linear, evolutiva, tem a ver com
aquela da história universal, e que não há nada menos rigoroso que a noção de história
universal.
acrescenta:
pressionante paralelismo:
96
um degrau) na série dos aperfeiçoamentos (a filiação do
progresso). Tudo sempre para o melhor. Nenhum critério
para apreciar o bom ou o mau. Seria preconceito, aprio-
rismo, metafísica (BLANQUI apud ABENSOUR)”.
terial documental. É esta a falta de “armação teórica” a qual Benjamin se refere. A con-
sequência desta falha epistemológica seria uma perspectiva que, unicamente orientada
pela expectativa de se alcançar uma objetividade de cunho científico, termina por postu-
A verdade, na acepção da Escola Histórica (que deteve, por assim dizer, a auto-
ridade sobre a historiografia que Benjamin tomou como alvo de suas críticas), é identi-
ao pensar no modo como o Espírito se realiza na história (o problema que ele denomi-
dade e realidade, Benjamin escreve: “´A verdade não nos escapará´, é o que se lê num
dos epigramas de Keller. Assim é formulado o conceito de verdade com o qual se pre-
97
Na interpretação que Benjamin fazia do método historicista, os fatos identifica-
grande contribuição foi perceber que o “modo de vazar” uma pesquisa historiográfica (a
possibilidades de representação, e que, por isso, nem todo tipo de “fato” pode ser narra-
do de modo realista.
se produziria não seria tanto o material da história, e sim o material da crônica. Ora, o
pretende não fazê-lo, e o que se obtém é uma narrativa, por assim dizer, neutra. Benja-
min, escreve: “Nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico
tre tempo e verdade só pode ser pensada se o conceito do que seja a verdade não se
mostrar meramente formal. É necessário que a relação entre tempo e verdade seja apre-
ça. Refratário como possa ser o marxismo de Benjamin, há, advindo dele, um conceito
forte de interpretação, que fundamenta seu conceito do que seja a verdade e do que seja
98
o tempo; do que seja, por fim, a articulação adequada que revela a essência de ambos, a
verdade e o tempo.
Esse regime de verdade, por assim dizer, não coincide com aquele rigorosamen-
mas não apenas em sentido gnoseológico, ou seja: não somente porque os objetos sim-
mente, não sendo compreensíveis senão pela interpretação dos sentidos de que são do-
tadas as práticas e discursos que constituem a teia da cultura. Estes sentidos constituem
Gadamer.
gência de uma tomada de posição que não se restringe ao domínio epistemológico, em-
mínimas unidades de sentido, até à fractalidade dos signos, mas assim como em sua ju-
ventude já inseria o conceito de verdade no drama humano da história vista como catás-
trofe, na maturidade pode dar sequência a essa sensibilidade reformulando-a nos termos
da teoria marxista da luta de classes — mais especificamente: da ideia que dela faziam
Brecht e Lukács.
interpretação, que estaria na base do pressuposto de que as coisas passadas seriam apre-
sentadas, nas célebres palavras de Ranke, “tais como ocorreram”. Para Benjamin, no
99
entanto, a densidade própria do tempo histórico é da ordem da política tanto quanto da
epistemologia.
sofo que tornou-se historiador justamente no esforço de produzir uma filosofia a mais
postula o progresso e a novidade como princípios de uma história que se dá sob o signo
Nas palavras de Hayden White, a história escrita a partir de uma perspectiva te-
leológica “tende a orientar-se para a determinação do fim ou da meta para a qual se pre-
1992: 31).
É justamente o telos desta filosofia da história que Benjamin busca criticar, ab-
100
história. Para isso, Benjamin abdica igualmente da noção mesma de novidade, intrínse-
mos objetivos finais: se a existência tivesse um, este deveria ter sido
8
atingido” (NETZSCHE apud BENJAMIN) .
progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa marcha” (BENJAMIN, 1996: p.
229).
medida em que busca fundar um conceito de tempo histórico que escape à ideia do pro-
gresso e que não resuma o passado a uma variável na escala de progressão do tempo.
Toda a teoria da história de Benjamin tem como pano de fundo algumas das questões
8
Gadamer, que foi um leitor do historicismo muito mais informado que Nietzsche ou Benjamin, notou que, em
última instância, a noção de uma história dotada de alguma meta foi ultrapassada justamente pelo historicismo,
ainda que possamos dizer que posteriormente, no contexto da Escola Metódica Francesa, onde historicismo e posi-
tivismo efetivamente foram combinados, houve um historicismo de cunho teológico — um exemplo: o que Ben-
jamin chamava a ideologia do progresso.
101
Em primeiro lugar, Nietzsche indaga sobre a pertinência do estatuo de cientifici-
do passado como uma tarefa científica, atribuir à história o estatuto de ciência, buscar
para ela uma epistemologia própria e supor ainda que o conhecimento produzido por
essa nova disciplina poderia e deveria servir de fundamento ao edifício cultural da na-
ção.
suas expectativas de objetividade. Não seria a história feita sempre a partir dos interes-
ses que condicionam o presente do historiador? Como pôr em prática, então, a neutrali-
dade do cientista quando se trata de algo como o passado humano, fonte e objeto de in-
102
e tudo que foi um dia se abate agora sobre os homens (NI-
ETZSCHE, 2003. P. 32).
que a representação do passado seria uma tarefa que mobiliza tanto a imaginação quanto
história capaz não apenas de lembrar, mas igualmente de esquecer, tornando-se seletiva
modo indelével.
Na medida em que deseja reconstruir o passado tal como ele ocorreu, o historia-
dor factualista, que se limita a analisar os fatos de um ponto de vista causal, acaba ali-
mentando pelo passado um interesse doentio. Ao invés da energia produtiva que o pas-
gigantismo do passado com o qual é confrontado. Com sua profusão de fatos o passado
Para responder a essa tripla exigência de Nietzsche — de que a história não seja
vista exclusivamente como uma modalidade de conhecimento científico; de que ela seja
uma disciplina dotada de auto-consciência estética e política; por fim, de que o historia-
103
dor seja capaz de esquecer, assim como de lembrar — Benjamin desenvolve o conceito
tica do progresso
dado objeto do conhecimento, diferindo da gênese, que se refere apenas ao seu grau
zero. É por isto que Benjamin viu no conceito de origem a melhor realização no sentido
orientada de modo exclusivo pela oposição entre sujeito e objeto do conhecimento. Esta
origem diz respeito à proveniência do objeto, a seu passado, mas, de igual modo, se re-
9
organizado de modo a compor uma narrativa historiográfica .
sustenta tem a ver, é claro, com o fato de que os dois termos do conhecimento, dispos-
tos desta forma, na verdade não se auto-determinam, ao contrário, são determinados por
9.A esse momento do conhecimento histórico em que o presente condiciona a abordagem dos historiadores do
pon- to de vista do método, Hayden White se referiu, de modo esclarecedor, no seguintes termo: “Antes que o
historia- dor possa aplicar aos dados do campo histórico o aparato conceptual que usará para representá-l104
oe
explicá-lo, cabe-lhe primeiro pré-figurar o campo, isto é, constituído como objeto da percepção (WHITE, 1992:
44).
105
uma miríade de fatores, metafísicos e materiais, de modo que não constituem as unida-
des autônomas e estanques que se faz necessário forjar para sustentar uma concepção
Há, no entanto, outro motivo pelo qual a oposição sujeito-objeto não se sustenta:
ambos, sujeito e objeto do conhecimento histórico, são relativos no tempo. Este último
aspecto Benjamin supunha ter enormes implicações políticas, tanto que o conceito de
origem, com o qual pretende lidar com as implicações, assume a certa altura um teor
messiânico.
íntima relação com o presente, ou seja, com o contexto a partir do qual o historiador
Desta forma, conclui-se que do passado não se pode obter os fatos simplesmente
to, imagens que, prenhes de imaginações (sonhos), como devem ser as imagens que um
presente faz de seu passado, constituem a matéria prima a partir da qual a história pode
106
dade que encontramos nas ciências da natureza, o que ocorre é um rechaço teórico, em
chamados fatos históricos, incapaz de criticá-los, terminando por fim numa versão do
passado que praticamente não diz respeito ao presente. O que Benjamin tem em mente,
forma de uma crítica do racionalismo fácil por meio do qual o discurso do progresso
forja a imagem de uma história demasiado coerente, sempre assentada naquilo que
10
Hayden White denominou meta-narrativa historiográfica .
Benjamin ataca em duas frentes. Após referir-se ao Iluminismo como a época da “mais
cristianismo.
Benjamin propõe não se refere ao grau zero de um processo sucessivo que tende a um
passado, nisso consistindo o que anos depois, já no contexto das Passagens, Benjamin
10. Nesse sentido, Benjamin se encaixa “naquela longa tradição historiográfica que “desfez esse modelo (exclusi-
vamente científico) e desconstruiu a própria ideia d rum fato científico absoluto, apresentando-o como algo
produ- zido e que se desenvolve ao sabor do evolver histórico” (MAIA, 2014, p. 35). O grau zero dessa tradição
seria a pioneira crítica do historicismo levada a cabo por Nietzsche.
107
“A revolução coopernicana na visão histórica é a seguinte: con-
siderava-se como um ponto fixo o ocorrido e conferia-se ao pre-
sente o esforço de se aproximar, tateante, do conhecimento desse
ponto fixo. Agora essa relação deve ser invertida, e o ocorrido
torna-se a reviravolta dialética (…). Atribui-se à política o pri-
mado sobre a história (BENJAMIN, 2006, 433)”.
neutralidade científica, antes anunciando claramente sua posição política, não é, porém,
porque ele ignore os riscos de uma abordagem oportunista, que falseia o passado segun-
do interesses do presente. Benjamin pode não ter sido o maior intérprete de Marx, mas
11
história é comumente chamada de presentismo , não deve ser confundida com o relati-
vismo.
O que acontece é que, se há sempre o risco de uma leitura tendenciosa das fon-
tes históricas, há também, por outro lado, os interesses políticos do historiador, que uma
nua. Muito mais complicada parecia a Benjamin o papel da percepção quando o histori-
O historiador, cujo senso histórico foi adestrado não apenas tecnica, mas tam-
bém politicamente, sugere que a relação entre passado e presente é a de variantes numa
escala temporal. Essa escala marca o desenrolar do tempo à maneira do calendário, mas
11. “A história é o presente projetado sobre o passado, o que significa que os interesses e as necessidades atuais
determinam o campo e o modo de visão do historiador: desde a questão de saber o que é para ele um fato
histórico, o modo como o interpreta e o julga, até a percepção global do processo histórico. Assim, parte-se do
presente, dos seus conflitos e das suas lutas que o historiador — quer tenha consciência disso ou não —
exprime e nos quais participa. A única história possível é a história comprometida, a história animada 108 pelo
espírito de partido e, portan- to, em um certo sentido da palavra, parcial” (SCHAFF, 1986: 132).
funciona também como registro temporal do político, como o assinalar de uma urgên-
tórico seja algo estável, encerrado na condição de ocorrido, o que temos é a noção do
instante, que assinala, sem dúvida, uma ocorrência, mas uma ocorrência que só se pode
perceber de modo limitado como se percebe algo que é instantâneo — algo que se per-
cebe apenas por um instante, cabendo ao historiador a tarefa de fixar essa percepção,
Benjamin escreve:
cos de Benjamin revelam sua face política. O perigo ao qual se refere, bem sabemos, era
guerras vindouras, considerando mesmo que a guerra com uso de gás pudesse significar
o ocaso da Europa. Num texto de 1925, intitulado As armas do futuro, Benjamin escre-
ve:
109
tar os terrores criados pelo inimigo por terrores dez vezes maiores (BEN-
JAMIN, 2013: 69).
Benjamin, era justamente em sua pouca sensibilidade ao perigo. Isso decorria de uma
que o Iluminismo levou à última potência no sonho de uma emancipação por meio da
Atacar a boa fé no progresso, bem como a concepção de tempo ingênua que cor-
responde a essa boa-fé foi, portanto, o modo que Benjamim encontrou de fundar usei
bem como qualquer otimismo em matéria de história, tornou-o apto não apenas a perce-
ber o risco permanente da catástrofe. Além disso, seu pessimismo começou a operar no
pessimismo, para que ele não venha cercear qualquer horizonte de expectativa, qualquer
utopia.
Veremos a seguir a semelhança deste gesto com sua tentativa posterior de traçar
110
A politização da história em sua face cultural: experiência, destruição e violência
tura”) não implica numa mera apologia da destruição, tampouco aponta para o misti-
12
cismo de uma virilidade meramente destrutiva. Benjamin não é Ernst Junger e, como
demonstrou Sérgio Paulo Rouanet, abdicar da herança humanista não significa uma
apologia do irracionalismo. Em Benjamin, trata-se antes de uma crítica que supõe, como
12. O escritor Ernst Junger participou das duas Guerras Mundiais, na primeira delas como combatente.
Também escreveu o maior bestseller sobre a primeira guerra mundial, publicado no Brasil como Tem-
pestades de Aço, livro onde encontramos várias passagens que idealizam o heroísmo beligerante e
estetizam a guerra. Um exemplo: “O que era aquilo? A guerra havia mostrado sua agarras e jogado
fora sua máscara acolhedora. Era tão enigmático, tão impessoal. Mal se pensava no inimigo, esse
ser misterioso, traiçoeiro, escondido em algum lugar, na retaguarda” (JUNGER, 2013: 9).
111
Esta circularidade, como veremos logo adiante, é aquela por meio da qual dois
templa aquela face humanista do contratualismo, que reza ser tarefa do Estado o fomen-
13
de em nome de uma inflação do seu próprio poder .
racterística, no entanto, não seria uma deturpação da ordem do direito, como se ela fosse
originalmente fomentada para garantir uma democracia tão ampla quanto possível. No
tocante a este tema, Giorgio Agambem leitor de Benjamin demonstrou que essa caracte-
13. Sobre isso, ver o comentário de Benjamin acerca da polícia, compreendida por ele como a
instituição responsável por zelar pelo caráter difuso da autoridade com que o Estado, ao invés de
promover, cer- cea as liberdades individuais na medida em que estende sua soberania para além do
previsto pelo con- tratualismo em qualquer de suas versões. “O infame de uma tal instituição reside
no fato de que nela está suspensa a separação entre a violência que instaura o direito e a violência
que o mantém (…). A afirmação de que os fins da violência policial seriam sempre idênticos ao resto
do direito, ou pelo me- nos teriam relação com estes, é inteiramente falsa. Pelo contrário, o “direito”
da polícia assinala o ponto em que o Estado, seja por impotência, seja devido às conexões
imanentes a qualquer ordem do direito, não consegue mais garantir, por meio dessa ordem, os fins
empíricos que ele deseja alcançar a qual- quer preço. Por isso a polícia intervém em um número
incontável de casos nos quais não há nenhuma situação de direito clara; para não falar nos casos
em que, sem qualquer relação com fins de direito, ela acompanha o cidadão com uma presença que
molesta brutalmente ao longo de uma vida regula- mentada por decretos, ou pura e simplesmente o
vigia (…). Sua violência não tem figura, assim como não tem figura sua presença espectral, jamais
tangível, que permeia toda a vida dos Estados civiliza- dos (BENJAMIN, 2011: 135-136).
112
agencia antes a culpa universal, que, por sua vez, é diametralmente oposta à soberania
do Estado.
leis uma espécie de dispositivo regulatório. Este dispositivo, no entanto, não regula, por
assim dizer, o coeficiente de liberdade da sociedade, mas sim seu coeficiente de rebelião
— de Kafka Benjamin deduzira que apenas uma humanidade plenamente culpada pode
truindo sua própria teoria da modernidade, assim como, por exemplo, Max Weber pen-
seu avesso: aquilo no interior da cultura que pode ser considerado ainda barbárie, aquilo
aquilo que não aparece na historiografia tradicional, mas que constitui a matéria prima
com que trabalha o tipo de historiador que Benjamin esforça-se por esboçar.
ência constitui um tipo de violência ou, no mínimo, que ele é fundado em violência.
Portanto, uma das tarefas que tenta levar a cabo é mostrar como esta violência, ao invés
113
tramada nele descrevendo sua lógica mais íntima e conferindo-lhe um teor mítico. Ve-
Benjamin discerniu entre dois tipos de violências que, segundo ele, estariam en-
voltas numa mútua implicação. A violência que instaura uma nova ordem, ou, como ele
também dirá, um novo direito, é chamada violência instauradora. A violência que tem
por fim manter uma ordem outrora estabelecida é chamada violência mantenedora do
cia de tipo instaurador ou a de tipo mantenedor. É antes a estrutura mesma dessa oposi-
ção, sempre repetida e por isso mítica. Essa estrutura do conceito de violência parece
mesmo, quando supõe-se que o Estado deve deter o monopólio da violência com vistas
contestação pacífica do poder estabelecido, caso este mostre-se aquém do seu papel.
Que Benjamin tenha organizado desta maneira seu esquema explicativo, opondo
de de criticá-lo, afirmando que Benjamin supõe estanques dois tipos de violência que,
entende o fato de que uma violência instauradora só existe perante uma violência man-
tenedora da ordem.
Benjamin parece não fazer outra coisa, como pretendo mostrar a seguir, que não
explicitar essa interdependência, essa relação de mútua implicação entre a violência que
funda a ordem e que, por isso, transmite-se na violência que deve manter esta mesma
114
ordem, contra a força de uma violência que é o que a violência mantenedora foi um dia:
Benjamin põe-se então a imaginar um tipo de violência que aplaque essa tensão
quem espera mais conhecimento do gesto de tencionar os termos do que de uma síntese
qualquer.
Isso é algo esclarecedor e que não se costuma dizer: que o modo de funcionar da
imagem dialética (conceito do qual não nos ocupamos neste estudo) guarda afinidades
formais com a dinâmica da violência expressa na Crítica. Pois bem: essa violência, res-
ponsável por suspender a tensão entre violências em situação oposta bem poderia cha-
mar-se absoluta.
linguagem: imediato e divino é tudo aquilo que não entra numa relação de fins, que não
mente muito abstrato evocado pela idéia de uma mediação pura e de uma violência
imediata, que aniquila o esquema no qual tipos de violência disputam seu espaço por
termo possa ter. Mas isso seria compreender mal o teor da teologia em sua obra. Assim
115
como em sua teoria do conhecimento e em sua filosofia da linguagem, também em sua
teoria política a ideia do divino não se refere de modo algum a uma concepção literal do
É bom insistir: a ideia do divino tem a ver com um âmbito da realidade que es-
capa à ordem instrumental que domina o universo profano. É neste mesmo sentido que
Benjamin, na sua juventude, fala sobre a necessidade de um novo espírito religioso, sem
que com isso estivesse a pensar num credo qualquer (BENJAMIN, 2005: 27).
como emblema do soberania divina (WEIGEL, 2013: 63-65). A violência imediata que
lência é posta numa contradição que se reproduz de modo circular — portanto mítico.
Esse esquema, Benjamin identifica com o direito, afirmando assim sua origem
mítica. Ao direito diz respeito uma contradição inerente, que consiste no fato de que
toda violência instauradora se efetiva perante uma violência que encontrava sua legiti-
midade em zelar por uma determinada história, na medida em que zelava por uma or-
dem — se nos ativermos ao critério historicista segundo o qual aquilo que se efetiva é a
história.
Esta violência instaurada, uma vez efetivada, torna-se ela mesma uma violência
mundo histórico (segundo o velho padrão historicismo que cabe ao historiador crítico
desconstruir).
116
Ora, a promiscuidade do conceito de violência no esquema do direito, “homogê-
neo e vazio” como a temporalidade que lhe é correlata, serviu de indício a Benjamin, de
seu tempo um cacoete mítico. O cacoete consiste na repetição, no modo como a violên-
ção”, que, por sua vez, será ameaçada em algum momento, numa lógica cíclica, e por
Essa lógica, que chamamos mítica porque sua estrutura temporal é cíclica, mas
também porque Benjamin a ela se refere desta forma, ele a localizou historicamente na
ordem burocrática: aparato de leis é organizado e exercido de uma forma que visa sem-
Ao contrário do que afirma Derrida (referencia), Benjamin não toma por estan-
ques os dois tipo de violência que constituem o direito e o Estado. O que Benjamin faz é
a luz um do outro.
Esse esquema não contempla a condição real da violência no mundo. Esta não
é possível dizer que a tensão entre uma violência instauradora e outra de tipo mantene-
dor não esgota a lógica da violência, coincidindo tão somente com a lógica do direito.
A oposição entre os dois tipos de violência não contemplaria, por exemplo, uma violên-
cia que, ao invés de instaurar uma nova ordem mediante a exaustão da violência mante-
117
A essa violência, que Benjamin chamaria divina, Slavoj Zizek identificou uma
das mais famosas passagens de Benjamin, a que se refere ao anjo, cujas asas abertas,
não se pode fechar, tamanha a força da tempestade que sopra do passado em direção ao
futuro.
aquela praticada pelo direito positivo e pelo direito natural em torno dos conceitos de
como a de fazer uma filosofia de sua história (uma história do conceito de violência).
ciso fazer uma história da violência ou seja: situar os tipos de violência em seus devir
implicação mútua que consiste mais num ciclo que num devir — correspondendo mais
125).
perduração daquilo que se critica. Crítica como seleção, seguida de incorporação e re-
formulação. A crítica, no sentido que Benjamin tem em mente, já sob forte influência do
temologia e política, Benjamin compreende que o senso de perigo que ele demanda do
historiador não pode se dar com a pretensão de neutralidade, e que, portanto, ou essa
118
pretensão sustenta uma fraude, um engodo epistemológico, no mínimo um equívoco —
uma neutralidade que é um engodo com a realidade em si. Esta a natureza do equívoco.
lismo avançado, e, somadas a isso, a boa fé, a confiança no progresso, para Benjamin
escreve Benjamin:
também denominada pelo próprio Benjamin niilista e anarquista (2012: 24)— ainda
que em momento algum Benjamin tenha se ocupado em escrever algo sobre qualquer
Qual a ligação deste com aquele senso de perigo que nas Teses Benjamin afirma ser im-
prescindível ao historiador?
foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de
119
um perigo. (BENJAMIN, 1996: 224)”. O perigo, Benjamin escreve em outra parte, é o
de que a esperada articulação ética (leia-se: política) entre presente e passado não se dê.
Estas ideias, tal como apresentadas nas passagens citadas, fazem parte da face marxista
de Benjamin, mas também dizem respeito à influencia do misticismo judaico, que ante-
O senso de perigo, ao qual nos referimos acima e que parece funcionar como
como que por um entorpecimento, como se a catástrofe pudesse estar debaixo dos olhos
de uma civilização sem que esta produzisse sequer um repertório conceitual adequado à
baixa consciência histórica, onde o pensamento histórico opera em sua forma mais po-
bre, aquela que Benjamin identificou como uma ideologia do progresso, e também que a
120
Beatrice Hansen e Irving Wolfhart destacaram, cada um à sua maneira, o fato de
que este texto acha-se ligado a um outro, onde podemos encontrar o tipo de humor que
anima a crítica benjaminiana da cultura em sua face mais radical. Acertadamente deno-
O caráter destrutivo pertence àquele que tem o espírito, talvez a percepção mes-
processou de uma tal maneira as energias agressivas do humano, que, Benjamin parece
sugerir, estava dotado para conferir teor criativo e emancipados à razão em sua forma
negativa, em sua forma talvez menos experimentada de modo lúcido: sua forma destru-
tiva.
por Brecht.
É desse ponto de vista que devem ser lidas as linhas muito positivas que Benja-
min dedica àquilo que denominava “arte pós-aurática”, às vanguardas ao romance mo-
derno, ao cinema e ao rádio. Seu otimismo, no que tenha tido de ingênuo, por levar tal-
vez a sério demais as supostas energias emancipatórias abrigadas nas novas tecnologias
121
de comunicação (no cinema em especial), era contrabalançada por um pessimismo que,
como uma teoria da história e como uma crítica da cultura. Uma teoria da história, em
nismo europeu que Benjamin busca definir a modernidade a partir de seu avesso, preci-
forjar a imagem de uma cultura européia esclarecida e emancipada. Uma crítica da cul-
tura, em segundo lugar, porque Benjamin retoma a oposição entre comunidade e socie-
narrativa cinematográfica, assim como descreve o processo no qual a arte aurática, fiada
na distância entre a obra e o observador, e aquela dimensão tátil inaugurada pelo foto-
gráfica e pelo cinema, que Benjamin chamaria de pós-aurática e na qual o receio do ob-
como atesta o receio de que a câmera roube a alma a quem for fotografado.
No entanto, se Benjamin retoma a oposição típica por meio da qual tantos auto-
da história com a exigência de uma regulação ética: à história, compreendida aqui como
122
ça, que torne possível o desenvolvimento de conceitos como os de messianismo e re-
denção.
dor ideal de Benjamin é responsável por efetuar o referido nivelamento ético entre pas-
sado e presente, ao menos no domínio de sua alçada, aquele de estabelecer uma memó-
ria politicamente situada e que não abdica de seu estatuto de conhecimento controlado.
dem ser ouvidas no presente e, senão sanadas, ao menos atualizadas no quadro geral das
demandas por justiça no presente do historiador. Isso, nos parece, é o que Benjamin ti-
nha em mente quando falava sobre dar primazia ao aspecto político da história em de-
trimento da epistemologia.
te como parte do esforço mais amplo de se construir uma filosofia da história (WEI-
GEL, 2013: 62), o que significa se apropriar de um problema teórico de natureza jurídi-
ricas.
jamin seleciona na tradição religiosa da mística judaica os núcleos de sentido que lhe
formular os problemas que é característica da teologia, para solucionar aporias por ele
construídas com esmero e com vistas a horizontes outros que não a religião: a política,
123
se por manter a ordem, e aquela que quer fazer-se valer sobre esta violência primeira,
mantenedora, a violência chamada instauradora, cuja força tem a ver com o advento do
em torno da guerra.
A questão que se coloca então é sobre qual seria a relação entre historicidade e a
violência produzida pelas culturas e experimentadas pelos seres humanos desde sempre.
Nessa violência, que desmantela uma ordem anterior e instaura uma nova, Benjamin via
deve ser explicitado e que Benjamin parece identificar com o gesto crítico. Este “caráter
destrutivo”, como benjamim o chamou, não pode impunemente ser diferido do pathos
fascista — se tivermos em vista o problema acerca do seu tipo de violência ou, para ser
124
Se dizemos que não se pode diferir impunemente o pathos fascista e o caráter
destrutivo benjaminiano não é porque não seja possível fazê-lo, mas si porque fazê-lo
significa dar satisfações. Trata-se, justamente, de que tipo deve-se elaborar uma crítica
da violência em plano teórico: uma avaliação sobre a legitimidade de cada tipo de vio-
lência conforme o fim a que se destina, de um ponto de vista não apenas legalista, mas
texto de Benjamin sobre A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica é aque-
tradição. É o que pretendo demonstrar a seguir, destacando o fato de que ambos concei-
ção.
o ensaio sobre A obra de arte é capital para compreensão do método histórico de Ben-
jamin. Em segundo lugar, tenho em mente o fato de que o ensaio sobre Fuchs, além de
conter várias passagens que Benjamin deslocou integralmente para as Teses, foi escrito
à mesma época que o famoso escrito estético de Benjamin, desenvolvendo uma argu-
ponto de vista primordialmente histórico. Ora, que o texto sobre Fuchs seja tão pouco
comentado talvez tenha a ver com o desdém que o próprio Benjamin lhe dedicou en-
Social. É provável, no entanto, que o texto tenha ficado em segundo plano por desen-
volver com ênfase histórica muitos dos argumentos benjaminianos que tornaram-se fa-
125
mosos por seu viés estético e por suas consequências para a teoria da arte. Devido a re-
cepção da obra de Benjamin ter, até o presente momento, destacado muito mais suas
teses estéticas do que sua teoria da história, o texto sobre Eduard Fuchs nunca obteve o
devido reconhecimento.
ensaio sobre Fuchs. Assim é que Benjamin elabora seu conceito de história cultural.
Por mais complicado que seja o conceito de aura quando pensado de um ponto
de vista sensorial — haja vista a mais que vaga tentativa empreendida por Benjamin de
formular o conceito por meio das metáforas da distância e das montanhas — talvez ele
exclusivamente sensorial.
Se descreve a aura por meio de uma metáfora referente à sensação que experi-
mentamos quando observamos uma montanha ao longe (essa citação será tomas ame
detalhe na sessão adiante dedicada à fotografia) — sua presença, por sua imagem e por
de arte, aquilo mesmo que ela compartilha com um fato histórico de qualquer natureza:
sua unicidade. A unicidade da obra garante a ela uma posição específica no contínuo da
126
tradição, assim como ocorre com os fatos, uma vez considerados fatos históricos, são
incorporados à tradição.
citação
Vista desta forma, a tradição apresenta-se como a configuração histórica que ar-
tória. Apenas trata-se, para Benjamin, de uma totalidade demasiado suspeita, já que
história daquilo que pereceu ou que nunca encontrou a configuração monumental garan-
tida pela ideia de tradição. Assim, a tradição é, até essa altura da avaliação de Benjamin,
efetivou.
para a continuidade do efetivar-se, mais para a catástrofe do que para a tradição. Não é
gratuito que Benjamin tenha recorrido à ideia de monumento para apresentar a barbárie
como avesso da cultura. A cultura, inventariada pela tradição na forma de fatos (inclusos
aqui aqueles fatos da esfera artística que constituem as obras) únicos e, por isso, monu-
mentais, pode ser alvo de uma crítica “destrutiva”, cujo procedimento sem dúvida guar-
arbitrariedade com que aquilo que se estabeleceu terminou por adquirir contornos de
verdade. Uma verdade que, ademais, precisa ser defendida contra a barbárie. O barba-
127
rismo saudável que é a marca do que Benjamin chamou caráter destrutivo consiste em
abarcar aquilo que em sua forma convencional o conceito acaba por excluir: o conjunto
daquilo que, sem deixar de ser histórico, não prevaleceu ao ponto de constituir uma tra-
dição.
car um conceito amplo de cultura, que dá conta da tensão histórica, das disputas de po-
der que determinam que um determinado fato seja tomado como histórico, ou seja,
É este o momento de dizer que, se Benjamin toma como alvo de sua cítrica o
conceito de tradição não é para dele prescindir e sim para conferir-lhe a devida densida-
de histórica. Trata-se de reformular o conceito mesmo de tradição sem dele abrir mão.
No que consiste o novo conceito de tradição que Benjamin está a formular sob o signo
muito mais abstrato que o conceito marxista de guerra de classes. Refiro-me ao princí-
pio mesmo do devir histórico, que estilhaça por dentro os esquemas de contenção — as
canônica o conceito de tradição expressa domínio sobre o devir histórico. A tradição não
é outra coisa que não aquilo que, ao menos provisoriamente, resiste ao devir histórico e
se estabelece.
forma, como conjunto de monumentos, constitui um falso salto para fora do devir histó-
128
rico — assim como as grandes contextualizações históricas operam com falsos contex-
ratura panoramática” (BENJAMIN, 2006: 722), ou seja: fala da influência exercida so-
bre a escrita por uma técnica surgida no âmbito das artes visuais. De modo semelhante,
o argumento que segue busca realçar a correlação entre a reflexão benjaminiana acerca
da fotografia e sua reflexão sobre a escrita da história. Dito de outro modo, trata-se de
expor em que medida a teoria da história de Benjamin têm seus fundamentos em refle-
129
o Benjamin historiador afirma: “Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho
aquele que é, talvez, o mais célebre de seus escritos e do qual se pode destacar vários
min afirma que “o modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela
JAMIN, 1996: 169), o que nos faz recordar as palavras com que Boris Kossoy formulou
história também a grande influência do cinema. Isso porque, para ele, fotografia e cine-
14
Ainda sobre a popularização da fotografia: “(…) não haviam lentes suficientes, nem câmaras obscuras para a
satisfazer o zelo de tantos amadores ementados. Acompanhava-se com um pesar nos olhos o sol que baixava no
horizonte, levando consigo a matéria prima da experiência. Mas logo nas primeiras horas do dia seguinte, podia
ser visto na janela um grande número de experimentadores esforçando-se, com toda espécie de precaução e cuida-
do, fixar em uma placa preparada a imagem da clarabóia vizinha, ou a perspectiva de um conjunto de
chaminés” (FIGUIER apud BENJAMIN, 2006: P. 719)
130
15
ma eram duas práticas conectadas de modo evolutivo , configurando o novo estado das
artes visuais. O interesse de Benjamin pelo cinema tem a ver com seu interesse pelas
condições históricas que tornaram possível não apenas o surgimento da fotografia mas,
principalmente, que esta adentrasse ao domínio das artes, tornando possível a fotógrafos
to da fotografia são abordados por Benjamin de um ponto de vista que articula o desen-
tografia como um gênero inferior de arte, antes atribui a pintura um novo estatuto à luz
ria da percepção, que toma por tema a fotografia e o contexto histórico de seu desenvol-
implicadas como são numa articulação entre estética e política; 3) a importância da fo-
tografia para a História da Arte, o que implica investigar não apenas as origens históri-
15
Afirmar que há entre fotografia e cinema uma relação evolutiva parece, a primeira vista, contrariar a sensibilida-
de benjaminiana no tocante ao tempo. Como é sabido de todos os comentadores, em suas reflexões sobre a tempo-
ralidade histórica, Benjamin realçava muito mais a ruptura e a descontinuidade do que a evolução. A contradição,
no entanto, é apenas aparente, e deixa-se elucidar na medida em que tomamos o termo evolução em seu sentido,
por assim dizer, fraco, ou seja: no contexto da presente argumentação ele diz respeito tão somente a evolução ma-
terial das tecnologias da imagem. Está fora do horizonte desta pesquisa qualquer intenção de conferir a Benjamin
um pensamento teleologicamente orientado. Trata-se, muito pelo contrário, de destacar o fato de que a evolução
das tecnologias da imagem ofereceram a Benjamin justamente os recursos metodológicos que, transportados para a
escrita, permitiram a apresentação de uma história descontínua, na qual os nexos evolutivos apresentam-se mais
como cisão do que como continuidade.
131
No presente estudo, me limitarei aos aspectos primeiro e segundo, entre os três
acima destacados.
O interesse de Benjamin pela fotografia não tem a ver somente com seu hábito
de pensar a modernidade a partir da arte. Ele remonta também, e de modo talvez surpre-
entre estética e filosofia da linguagem não é, de modo algum, evidente, tampouco ne-
quanto em seu Origem do Drama Barroco Alemão, publicado em 1928 — seus dois li-
arcabouço fundamental.
lem, é no romantismo alemão que Benjamin encontraria, ainda na juventude, uma con-
cepção da linguagem próxima àquela que estava a desenvolver a partir de motivos teo-
lógicos, provenientes da mística judaica. Essa concepção, como vimos no primeiro capí-
tulo deste estudo, recusa a interpretação de que a linguagem seja um todo arbitrário de
no originário, mesmo mágico, arquetípico em sua negatividade, já que não se deixa de-
bem antes de seu contato com o marxismo, provavelmente referindo-se àquilo que Ni-
etzsche entendia como o “filisteísmo” da cultura moderna. Este filisteísmo consiste jus-
132
progresso no sentido de instrumentalizar até mesmo os fenômenos mais espirituais, nis-
devem ser compreendidas não como gêneros, e sim como ideias, foi destacada por vári-
Esta Benjamin entende não como um conteúdo positivo qualquer, mas, de igual modo,
como uma ideia: ela não pode ser percebida em si mesma, mas tão somente em sua rela-
ção com a história, no que consiste sua reformulação da teoria das ideias de Platão
Benjamin parecia supor duas maneiras opostas, segundo as quais a arte seria en-
ter as obras particulares, a outra corresponderia a uma média feita a partir das caracterís-
ticas predominantes nas obras de arte, assemelhadas pelos critérios mais arbitrários.
tória da arte: o dedutivo (que parte da generalização) ou o indutivo (que se atém à ela-
sobre o que seja uma determinada forma artística deve, segundo Benjamin, ser procura-
da sempre na obra de arte individual, eliminando assim tanto a indução quanto a dedu-
incorpora no sentido de que todo objeto deve ser visto como totalidade em si mesmo.
133
mundo real poderia ser visto como problema, no sentido
de que nos pede para penetrarmos de tal modo em tudo
que é real que daí resultasse uma interpretação objetiva
do mundo (…). A ideia é uma mônada — isso significa,
em suma, que cada ideia contem a imagem do mundo. A
tarefa imposta à sua representação é nada mais nada
menos que a do esboço dessa imagem abreviada do
mundo (BENJAMIN, 2011: pp. 36-37).
Não passa desapercebido o fato de que Benjamin estabelece aqui uma relação
história.
mada como um tipo de totalidade e não como instrumento para comunicação. Na acep-
ção benjaminiana a linguagem deve ser entendida, aliás, como a totalidade que torna
num médium: um meio que precede a comunicação e lhe empresta as condições materi-
ais de sua possibilidade. Deste ponto de vista, a comunicação consistiria em apenas uma
com a teoria da história. Susan Sontag, que classificou Benjamin como “o mais original
segundo ela, seria “a mais profunda de que se tem registro” (SONTAG, 2004: pp.
90-91). Foi ela também quem, de modo muito perspicaz, realçou o teor iminentemente
técnica que produz a mais realista das imagens que o mundo se pode ter. Quando afirma 134
135
que a fotografia é “a única arte nativamente surreal” (2004: p. 66), Sontag busca na re-
te errático desta técnica. Com isso ela toca no cerne da problemática histórica acerca da
Não seria o caso aqui de discorrer sobre o tema do colecionismo, ao qual Ben-
jamin dedicou toda uma sessão das Passagens, na qual o colecionador é apresentado
como protótipo do historiador que aborda o passado não apenas por meio de imagens,
com a lógica imediata e descontínua da imagem fotográfica. Nos limites a que o presen-
te artigo pretende restringir-se deve ser o bastante destacar na fina sensibilidade de Su-
como ocorreu”.
sado, nisso articulando muito bem o interesse de Benjamin pelo surrealismo, seu apreço
pela fotografia e sua crítica constante do historicismo, cujo pecado metodológico maior
136
seria o viés sistemático e realista com que se pretendia examinar o passado, aquela parte
Talvez seja pertinente recordar aqui que em seu livro sobre o barroco, no mo-
jamin refere-se ao mais que famoso mote de Ranke, o nome maior da Escola Histórica
Este trecho se relaciona de perto com o tema atualíssimo do abalo sofrido pela
teoria da história, após a chamada “virada linguística”, no que diz respeito ao seu estatu-
lista e anti-sistemático que seja, não coincide com um relativismo exacerbado, temido
realista, do que de tentar forçosamente criar coerência que a realidade, ademais, não
nome de um relativismo que equipara ciência e arte, história e literatura. Benjamin está
137
seu compromisso com o “verismo científico”. Num sentido que poderia bem fazer-nos
remontar a Vico, Benjamin propõe um método científico que se fia mais na linguagem
do que numa noção de sistema que, derivada como é da física newtoniana, não se mos-
de formular uma teoria da história que toma a imagem como médium da apreensão e da
16
do a linguagem como médium da percepção e do pensamento em geral .
Para Benjamin, linguagem e imagem são duas modalidades de suporte: sua pre-
notadamente no modo como nesta a imagem assume papel central, sem que, no entanto,
16
Ainda sobre as relações entre fotografia e pensamento, ver este fragmento de Balzac, citado por Benjamin nas
Passagens: “Assim como os corpos se projetam realmente na atmosfera, deixando subsistir nela este espectro
apreendido pelo daguerrótipo, que o detém de passagem, também as ideias se imprimem naquilo que podemos
chamar de atmosfera do mundo espiritual…, elas vivem nela espectralmente (pois é necessário forjar palavras para
exprimir fenômenos inomináveis) , e então criaturas dotadas de faculdades raras podem perfeitamente perceber
essas formas ou esses traços de ideias (BALZAC apue BENJAMIN, 2006: p. 727). Parece-me perfeitamente justo
afirmar que a habilidade de interpretar a história por meio de imagens consistia numa dessas “habilidades raras”
que Benjamin reivindicava a um novo tipo de historiador, do qual ele mesmo pretendia ser o primeiro modelo.
138
função do trabalho crítico, na medida em que este tem uma tarefa mais ampla: a de es-
tabelecer o conhecimento histórico por meio de uma imagem, que Benjamin chamará de
justamente dialética. Esta dialética consiste no fato de que o passado é visto à luz de um
contexto específico no presente do historiador. Este, por sua vez, ao invés de buscar a
neutralidade que, segundo o método historicista, constitui a história como ciência, pro-
move antes a “virada copernicana” segundo a qual o histórico em, seu sentido factualis-
ta, abre precedência para a história em seu sentido político. Assim Benjamin inaugura
passado e presente.
história de Benjamin: se há algo como um inconsciente ótico, que guarda, segundo ele,
ambos, uma espécie de inconsciente histórico, onde se encontra cifrado aquele conhe-
cimento do passado que não encontrou formulação possível, que não encontrou voz no
ambiente discursivo de uma história que se expressa na narrativa dos grandes feitos, das
avesso, o lado obscuro do processo civilizatório: aquilo que se encontra sem formula-
ção, encoberto pelo discurso histórico tradicional, fundado na empatia com tudo aquilo
17
“vencedores” .
Não seria excessivo, portanto, recorrer ao jargão técnico da fotografia para afir-
mar que o que Benjamin busca na história é o seu negativo. Os resíduos históricos que
17
Sobre a influência da fotografia na construção de uma história “vista por baixo” e que leva em conta “as pessoas
comuns”, focalizando não apenas os grandes eventos e figuras políticas, mas, principalmente, “as experiências das
pessoas comuns”, ver Burke, 2004: p. 15.
139
não foram trazidos à vista pelos processos de elucidação da historiografia tradicional,
talvez possam vir à tona na medida em que o historiador se inspire naquela técnica de
dotada não apenas de um sentido religioso, mas, igualmente de um sentido técnico, li-
gado à produção de fotografias, ao qual alguém recorre quando diz que um filme foto-
que aponta claramente para essa correlação entre o filme e a dimensão negativa da his-
Desde o início ter em vista esta ideia e avaliar seu valor constru-
tivo: os fenômenos residuais e de decadência como precursores
— de certa forma, como miragens das grandes sínteses que vem
em seguida. Estes universos de realidades devem ser focalizados
em toda parte. O filme, seu centro (BENJAMIN, 2006: p. 714).
visível uma parte do universo imagético originalmente indisponível para a visão em seu
estado natural.
como rememoração, comporta uma dimensão inconsciente. Deste modo, é possível di-
zer sobre a história aquilo que Benjamin disse sobre o espaço imagético inaugurado pela
fotografia:
140
“a natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é
outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado
conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre in-
conscientemente” (BENJAMIN, 1985: p. 94).
prática do historiador como uma atividade elucidativa —, esta concepção libera uma
história que se encontra indisponível numa narrativa elaborada nos moldes do factua-
lismo, narrativa esta comprometida com o ideal de progresso, segundo o qual a marcha
orientada para o futuro. Ora, esse futuro não é outro senão o de uma sociedade emanci-
toriográfica, sendo este um dos sentidos possíveis para aquele enigmático fragmento em
que afirma ser objetivo de sua reflexão sobre e o conhecimento histórico “educar o mé-
máximos do progresso para, a partir deles, formular uma concepção de história que re-
Nas palavras de Sérgio Paulo Rouanet, que dedicou uma obra aos “itinerários
se. Será útil, no entanto, recordar que o modelo de história acima apresentado desfaz
da fotografia. Pode-se dizer que a leitura psicanalizante que Benjamin fez da fotografia
tornou possível aquilo que chamamos aqui de inconsciente histórico. O modelo do im-
brincamento, que Certau atribui à psicanálise, é exatamente aquele que Benjamin elege
para a relação entre presente e passado. Apenas este imbrincamento não é evidente, de-
inconsciente da história.
às “coisas como elas de fato ocorreram” — e não a especulações sobre o sentido de uma
142
história supostamente orientada para o futuro. Ao postular, no entanto, que aquilo que se
efetiva — ou seja, aquilo que além de ocorrer, se institui e permanece ao longo da histó-
ria — é o que de melhor poderia ter sido, o historicismo termina por cunhar uma forma
de realismo.
é justamente que, no que diz respeito ao passado, assim como no que diz respeito à vi-
visual, a realidade não está diretamente disponível ao olhar humano, o que vai contra o
O argumento de Benjamin vai na direção daquilo que Peter Burke propôs quan-
do sugeriu que a tradicional noção de fonte, tão cara aos historiadores, fosse substituída
Benjamin, por sua vez, estava ciente daquilo que se tornou lugar comum na teo-
18
ria da história após a chamada virada linguística : em qualquer esforço de reconstrução
do passado são necessários artifícios que tragam à vista aquilo que não está evidente,
que, narrado do ponto de vista oficial, oculta aquela sua face que estaria voltada para os
vencidos, para aqueles que, dada a sua inscrição na sociedade — à margem desta — não
são contemplados pelo zelo com que, por exemplo, o estado e as grandes instituições,
18 143
Para uma adequada definição do que foi a chamada virada linguística em teoria da história
ver MAIA, 2014: 27-37.
144
Apenas a explicitarão do excedente de historicidade não contemplada pela con-
cepção tradicional de história, realista e elitista, aquilo que chamamos aqui de inconsci-
segunda de suas Teses Sobre o Conceito de História, aquela em que o filósofo afirma
que “foi nos concedida uma frágil força messiânica à qual o passado dirige um apelo”.
Disso deduz-se que o imbrincamento entre passado e presente é, além de estético e lin-
sua consciência de que é por um recurso à estética que a teoria do conhecimento históri-
co pode alcançar por enfiamento epistemológico necessário para sustentar uma repre-
145
Experiência, Mimesis e Modernidade
Nas Passagens, Benjamin diz: “Técnica deste trabalho: montagem literária. Nada
Wille Bolle chamou a atenção para nada menos que dez técnicas de montagem
utilizadas por Benjamin no trabalho das Passagens, todas derivadas de suas reflexões
filogenético do comportamento mimético”, o que significa algo como traçar uma histó-
ria natural das relações empáticas estabelecidas entre o ser humano e a natureza, rela-
ções estas fundadas num critério de similitude. A noção de semelhança aponta aqui para
Habermas lembra que foi sobre o pano de fundo daquilo que Weber denominou
vida que caracterizou a modernidade desde seus primórdios, que Benjamin pensou, ao
mar a atenção para a história da faculdade mimética, demonstrar como seu raio é mais
estreito hoje do que em outros tempos, quando o homem sentia-se capaz de estabelecer
uma relação empática com as estrelas ou com as vísceras dos animais – os princípios da
astrologia e da quiromancia – é, mais uma vez, chamar a atenção para a dimensão má-
gica da linguagem, com o que retomamos um dos temas centrais de meu ensaio anterior. 146
147
No entanto, se no primeiro ensaio ralamos a dimensão imediata da linguagem, é
fundo indispensável sobre o qual emerge a magia da linguagem, e que esta, por sua vez,
anos 1930.
jamin, seu empirismo sui generis. A julgar pelo mito bíblico, a linguagem em sua magia
plena, em sua totalidade mística, nunca esteve disponível sequer para Adão. Não se
pode transferir para o âmbito da experiência humana um tipo de plenitude possível ape-
nas em Deus, em seu verbo criador. O nome próprio com o qual Adão nomeava a natu-
reza alude ao verbo divino porque é puro mimetismo, mas não coincide com ele, pois
está historicamente situado – ao passo que Deus deve ser a definição mesma do eterno e
suprahistórico.
e aquilo que é nomeado se dá de forma empática, imediata, não obstruída pelas exigên-
cer semelhanças.
Essa capacidade se aninha na linguagem uma vez que o espaço externo a ela,
cada vez mais gerido por uma racionalidade instrumental, lhe é hostil. É uma tal con-
cepção de linguagem que permite que, para Benjamin, a estética – como teoria da per-
148
cepção, não apenas como teoria da arte – se articule com as preocupações do Benjamin
partir do qual Benjamin pensa a magia da linguagem em sua própria época. Não se trata
quer evitar uma concepção mística da linguagem que comete, no extremo oposto da ins-
No primeiro caso supõe-se uma harmonia, uma plena empatia entre a inefabili-
de que ela como que rodeia o poço sem fundo da inefabilidade da natureza, a ela cor-
das formas de abordagem da linguagem ditas científicas, há uma feliz coincidência en-
tre aquilo que se diz e aquilo sobre o quê se diz. Trata-se, portanto, não de uma coinci-
Com essa longa digressão pretendemos esclarecer duas coisas: o papel do con-
bíguo) de sua teoria da modernidade. Ambos elementos são indispensáveis para a com-
149
preensão de suas teorias da experiência e da aura. Esse compromisso dialético é o que
disso, a “nova barbárie”; lamenta a perda da aura, mas enaltece a fotografia e o cinema,
como veremos a seguir, pelo modo como fazem a aura voar pelos ares, abrindo o cami-
Benjamin uma sociologia das formas de percepção típicas da modernidade que culmina
uma decadência da experiência. Transposto para o âmbito da arte isso corresponde a sua
teoria da decadência da aura. Em ambos os casos o que está em jogo é a crise da tradi-
co e político, fundar-se uma nova tradição tendo em vista o que Benjamin chamou de
“nova barbárie”.
dências e de, a partir dela, através de uma racionalidade analógica, estabelecer os crité-
rios de orientação do agir e fundamentar uma tradição orgânica. No âmbito de uma teo-
ria da experiência o homem acha-se condicionado a uma forma mais pobre de mimetis-
mo. Não se trata mais de se estabelecer relações de semelhança com a natureza. No pro-
150
A autonomização das esferas sociais e culturais, exemplarmente descrita por
Max Weber, trouxe a vantagem de libertar a arte, a política e a ciência da autoridade re-
ligiosa e dos ditames do dogma, mas seu potencial emancipatório manteve-se a meio
dade que se instala entre técnica e moral. Na sociedade capitalista a técnica autonomi-
zada torna-se uma espécie de segunda natureza, cuja frágil conexão com as esferas polí-
tica e moral reside no discurso de uma ideologia do progresso que Benjamin, a qual nos
referimos anteriormente.
cada de 30), com aquele que atualiza sua filosofia da linguagem em termos materialistas
manutenção da tradição.
discurso de Benjamin um tom por demais nostálgico, ou mesmo conservador. Mas logo
151
Trata-se daquilo que, nas Passagens, Benjamin chamou “niilismo antropológi-
co” (BENJAMIN). O termo nada tem a ver, por exemplo, com o sentido que Nietzsche
modernidade (e, em parte, era esse o projeto de sua empreitada mais ambiciosa, as Pas-
sagens), acha-se pronta para enfrentar o trauma da crise moderna através da fundação
de uma nova tradição, aquela que se constitui no gesto de escovar a história a contrape-
ante a tradição. Aqui também ela é dupla: o custo é altíssimo, pois está inscrito na tradi-
tradição está também inscrita sua face opressora, tudo o que nela contribuiu para a do-
cuja plena realização, para Benjamin, estaria na guerra – a guerra constitui a autonomia
massas que toma a novidade como valor primordial, tornando-se assim gradualmente
indisponível para a tradição. O célebre ensaio A Obra de Arte na Era de Sua Reproduti-
bilidade Técnica surgiu em 1936 como uma afirmação crítica da cultura de massas.
Charles Rosen notou, de forma bastante perspicaz, a persistência neste texto de uma
152
coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar em
repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no
horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós,
significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho.
(BENJAMIN, 1985, Pg. 170)
Segundo Rosen:
Assim é que Benjamin dispõe, paralelamente, dois níveis de sua teoria da aura,
crise da modernidade.
marxista que reduzisse o fenômeno da arte de massas a uma hedionda vitória da ditadu-
rio do processo de decadência da aura ( Por essas razões, não podia se identificar por
completo com a postura de Adorno, que sempre se recusou a ver na cultura de massas
min leva a cabo via Baudelaire. É como parte desta constelação que sua teoria da aura
153
Segundo Benjamin, a decadência da capacidade humana de estabelecer rela-
que Benjamin ilustra através da análise do estado da narrativa nas sociedades modernas.
repertório comum a partir do qual uma sociedade podia interpretar o mundo e, a partir
disso, orientar suas ações e a manutenção de sua cultura. A narrativa era veiculadora de
dade de sugerir rumos à experiência presente. Por isso Benjamin a compara à arte de dar
conselhos que, sendo a habilidade em sugerir rumos a uma história – no caso, a própria
convicção de que nada de positivo pode ser feito antes que se assuma, até as últimas
erspiel tem a ver com o fato de, nesse contexto, ter havido um desenvolvimento de for-
como ponto de partida uma crise que abala a tradição. No caso do século XVII, como
tada pelas vias de uma representação harmônica, típica da renascença, e que o barroco
necessário atualizar os conceitos de melancolia e de alegoria, o que tem a ver com aque-
Trata-se da resignificação de um instante histórico pelo seu contato com um recorte es-
pecífico do passado, o que implica em algo como uma colagem: dois instantes são ar-
conceito que se permite explodir por dentro, seu princípio pode abarcar mais de dois
155
Se compreendermos o termo crise como uma espécie de dialética da icono-
suas reverberações, então podemos admitir que a crise está inscrita na modernidade
19
como um elemento irrevogável de sua identidade. Benjamin vê uma correspondência
possível entre o século XIX – que ele vê pelas lentes de Baudelaire – e o barroco do séc
laire é uma espécie de lírica negativa, a lírica possível num mundo em que o lirismo é
Baudelaire como a lírica possível de sua época e a alegoria que dele se desdobra como o
a norma. Desnecessário enfatizar como essa postura constitui um dos ganchos principais
a partir do qual o pós-modernismo, com razão, reivindica Walter Benjamin. Se essa rei-
vindicação não pode ser feita de forma irrestrita é porque o projeto benjaminiano, jus-
tamente pela seu caráter dialético, que tentamos demonstrar até aqui, não se permite
acoplar-se a qualquer forma de ruptura com a tradição que não seja, simultaneamente,
!
19
Cf. Habermas, em seu Discurso Filosófico da Modernidade, enfatizou este aspecto no tocante à necessidade de
auto-fundação e auto-certificação típicas da modernidade.
156
uma incorporação da mesma, ou, melhor dizendo, de seus ímpetos emancipatórios, raci-
tra coisa que não a secularização do valor de culto que sempre esteve no cerne de toda a
belo ou de sublime constituem, cada um a seu modo, um refúgio para a consciência hi-
a autonomia da arte se mostra, para Benjamin, como algo a ser preservado a qualquer
preço. Benjamin via na crise da arte autônoma, assim como na crise de toda a tradição
moderna, uma pequena fresta na qual deveria caber tanto uma “organização do pessi-
20
mismo” quanto o “machado afiado da razão” . Em torno dos conceitos de mímesis, ex-
20
No que concerne ao cinema, no entanto, Benjamin estava bastante atento às ligações entre este e a lógica a partir
da qual o capital toma, gradualmente, o posto axiológico antes conferido a todas as formas de significação do
mundo que foram pouco a pouco varridas pelo processo de racionalização. Mesmo assim não compartilhou do
radicalismo adorniano em relação à indústria cultural.
157
periência e aura, a teoria da modernidade de Benjamin articula melancolia e revolução,
pessimismo e utopia.
mento ontológico de toda experiência possível, essa inefabilidade não pode ser renunci-
ada sem que com isso se incorra em equívocos epistemológicos (todas as formas de po-
“administração total” que o conceito aplica sobre o real numa lógica representativa de
cunho simbólico guarda semelhanças com aquela administração total que o capital con-
lado Benjamin renuncia qualquer apreensão dessa inefabilidade que não tenha como
pano de fundo a realidade objetiva na qual ela se manifesta como que nas entrelinhas.
mentado num teoria do conhecimento que, antes de tudo, uma filosofia da linguagem de
mente comunicativa com a linguagem e que torna a alegoria uma forma pertinente de
co, e que torna cada vais mais improvável o tipo de experiência e transmissibilidade do
158
patrimônio cultural indispensáveis à manutenção da tradição, expressa-se no âmbito da
sição do valor de exposição sobre o valor de culto no qual teria se fundado desde os
arte. É devido ao caráter dialético de seu diagnóstico da tradição que Benjamin está dis-
“arte primitiva” (ou coisa que o valha), os primeiros capítulos de uma história cronoló-
gica qualquer da arte eram, antes de mais nada, formas de organização da sensibilidade
estético que o termo “arte” veio representar. Rosen afirma que Benjamin era “talvez o
único crítico que nem se rejubilaria com a perspectiva da morte da arte – apesar da pro-
funda nostalgia que seu ensaio expressa – nem se permitiria prantear tal
falecimento” (2004:193).
Marc Jimenez nos lembra que o conceito de autonomia da arte tem dupla signi-
ficação:
vez que é exaurida a distância entre este e a obra – o que definia a aura. Assim o obser-
vador pode dispor dela como o pode fazer em relação a qualquer outro produto. Deixa
159
de ser propriamente um observador e se torna um proprietário, capaz de intervir no seu
conduzindo-o a uma radical transformação. Se Adorno via nisso uma perversão da arte
brechas.
seria o emblema máximo de como esta “nova barbárie” constitui o terreno propício a
partir do qual a crise da tradição pode constituir o fundamento de uma tradição ultra-
160
CONCLUSÃO
dor como sendo a de “escovar a história a contrapelo”. A expressão, que não evocamos
até aqui, dá título a este estudo porque é a metáfora que se refere aquele tipo de contra-
ricismo alemão, de modo que sua problemática ainda se faz sentir de modo latente em
toda reflexão e teoria da história. A questão a relação entre objeto e sujeito do conheci-
mento, por exemplo, é gritante, bem como o problema sobre as relações entre história,
que não são historiadores de formação. Tampouco Benjamin o era. E justamente essa
teoria da história como disciplina poderia fazer, no atual estágio de seu desenvolvimen-
to. Talvez isso explique em parte a pouca recepção da obra de Benjamin entre historia-
como insulto, tamanho o receio de que o pós-modernismo constitua uma ameaça ao es-
161
tatuto de cientificidade da história, estes comentadores lêem Benjamin com a grande
ralismo. Ou seja: um ambiente intelectual muito mais propício pro tipo de teoria da his-
da cultura.
mológica e política. O principal legado teórico que Benjamin parece deixar à teoria é a
deve ser politizada, no sentido de ter desfeita sua falsa aparência de neutralidade, sem
enraizamento histórico.
tas. No entanto, quando fala em politizarão da história, Benjamin muitas vezes desen-
162
tentativa ideológica de fazer o que é histórico, e portanto passível de construção e críti-
ca, parecer natureza. É de Lukács, principalmente, que Benjamin retira as ideias que lhe
para os termos da crítica da cultura dos anos 1930, que abordamos no segundo ensaio.
Esta passagem de Lukács formula nos termos do materialismo dialético boa par-
método para as ciências da cultura; por fim, está lá também a crítica a noção de que
cada esfera da cultura tenha sua própria história autônoma. Lukács se refere à economia
163
face epistemológica, em seu esforço de proteger as metodologias próprias da filosofia e
(justamente na figura dos historicistas). O segundo ensaio foi uma tentativa de examinar
do alguns dos seus textos de teoria da modernidade — aqueles que falam objetivamente
cultural, o ensaio de Benjamin foi evocado novamente, mas com a intenção específica
de esclarecer seu conceito de mimesis, bem como, no tocante à aproximação entre foto-
A hipótese que tentei provar foi a de que é na exigência de uma inflexão política
no domínio da epistemologia que Benjamin cumpre aquilo que Jorn Rusen estabelecera
do do passado.
teoria da história que atualiza o historicismo ao mesmo tempo que lhe encaminha críti-
164
isso implique num risco de que a história perca seu estatuto de conhecimento controla-
manda o passado justamente na medida em que precisa resolver uma tensão que é, a um
passado em perspectiva, na medida em que este pode servir de orientação para o futu-
165
21
ro , recorda quase que litoralmente duas famosas passagens de Benjamin, com os quais
em que Benjamin afirma estar perdido todo passado cuja interpretação era particular-
mente possível num determinado presente, mas que não encontrou nesse presente o seu
imagem do passado que ameaça desaparecer com todo o presente que não se reconheceu
como presente intencionado nela” (BENJAMIN, 2012: 11), ou (na tradução de Sérgio
Paulo Rouanet): “pois irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presen-
te, sem que esse presente se sinta visado por ela” (BENJAMIN, 1996: 224).
riador e o passado que surge somente quando o historiador torna visível nele as caracte-
rísticas que coadunam com suas próprias exigências históricas — a vantagem que a teo-
ria da história de Benjamin guarda sobre toda epistemologia que atribui mais peso a um
dos pratos da balança histórica. Como ensinou Benjamin nas Passagens, os pratos da
balança devem ser mantidos em equilíbrio, diferindo apenas a quantidade e a forma dos
pesos que devem ser postos em cada prato, sendo muitos e pequenos os pesos que cor-
21
”O melhor ponto de partida parece ser aquele que, na vida corrente, surge como consciência histórica ou pensa-
mento histórico (no âmbito do qual o que chamamos “história” constitui-se como ciência). Esse ponto de partida
instaura-se nas carências humanas de orientação do agir e do sofrer os efeitos das ações no tempo. A partir dessa
carência é possível constituir a ciência história, ou seja, torná-la inteligível como uma resposta a uma questão,
como solução de um problema, e como satisfação (intelectual) de uma carência (orientação). (…) Trata-se do inte-
resse que os homens têm – de modo a poder viver – de orientar-se no fluxo do tempo, de assenhorear-se do passa-
do, pelo conhecimento, no presente. Interesses são determinadas carências cuja satisfação pressupõe, da parte dos
que as querem satisfazer, que esses as interpretem no sentido das respostas a serem obtidas. Tais interesses são
abordados pela teoria da história a fim de expor, a partir deles, o que significa pensa historiograficamente. A teoria
da história abrange, com esses interesses, os pressupostos da vida quotidiana e os fundamentos da ciência da histó-
ria justamente no ponto em que o pensamento histórico é fundamental para os homens se haverem com suas pró-
prias vidas, na medida em que a compreensão do presente e a projeção do futuro somente seriam possíveis com a
recuperação do passado” (RÜSEN, 2001, p. 30).
166
respondem aos fatos que deseja-se conhecer, ma poucos e maciços os que representam a
densidade histórica própria dos problemas que o historiador formula a partir de suas ca-
Koselleck, leitor de Novalis, afirma citando o filósofo romântico que tanta in-
Benjamin, por sua vez, escreve: “existe um acordo secreto entre as gerações pas-
sadas e a nossa. Então, gomo esperados sobre esta Terra” (2012: 10). Apenas este en-
contro não tem a forma do mito ou do destino, não se dá como que determinado pela
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