A Porta Da Humildade

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A porta da humildade
"Vinde a mim, que sou manso e
humilde de coração". Deus fez-se
pequeno para que nós pudéssemos
ser grandes com a grandeza
verdadeira: a humildade do
coração.

03/04/2017

A fachada da basílica da Natividade


em Belém deixa ver ainda hoje os
sinais da sua antiga entrada que, com
o passar do tempo, ficou reduzida a
uma pequena porta, de um metro e
meio de altura. Com isso impedia-se
que se pudesse entrar a cavalo,
protegendo assim o lugar santo. As
reduzidas dimensões desta porta
interpelam também o visitante de
hoje: dizem-lhe, sem palavras, que
“Devemos inclinar-nos, caminhar
espiritualmente por assim dizer a pé
para podermos entrar pelo portal da
fé e encontrar o Deus que é diverso
dos nossos preconceitos e das nossas
opiniões: o Deus que Se esconde na
humildade de um Menino que acabou
de nascer”[1].

Somos filhos e filhas de Deus

Na sua segunda encíclica, o Papa


Francisco lembra-nos um dos
profundos motivos da humildade.
Trata-se de uma verdade simples e
grande que corremos o perigo de
esquecer muito facilmente na
agitação da vida cotidiana: “Não
somos Deus”[2]. A criação é, com
efeito, o ponto de partida firme do
nosso ser: recebemos a nossa
existência de Deus. Quando
aceitamos esta verdade fundamental,
nós nos deixamos transformar pela
graça divina. Conhecemos então a
realidade, a aperfeiçoamos e a
oferecemos a Deus. O amor ao mundo
que nos transmite São Josemaria
leva-nos a querer melhorar o que
amamos, onde quer que nos
encontremos, de acordo com as
nossas possibilidades. E no centro
desta imensa tarefa encontra-se a
humildade, “que nos ajuda a
conhecer simultaneamente a nossa
miséria e a nossa grandeza”[3]: a
miséria, que experimentamos com
frequência, e a grandeza de ser, pelo
batismo, filhas e filhos de Deus em
Cristo.

A humildade é “a virtude dos santos e


das pessoas cheias de Deus (...):
quanto mais sobem de importância,
tanto mais cresce nelas a consciência
de nada serem e de nada poderem
fazer sem a graça de Deus (cf. Jo 15,
8)”[4]. Assim são as crianças, e assim
somos diante de Deus. Por isso é bom
voltar ao essencial: Deus me ama.
Quando uma pessoa se sabe amada
por Deus – um Amor que descobre no
amor que os outros lhe mostram –
pode amar a todos.

Humildade para com os outros

A humildade leva-nos a aceitar a


realidade que nos é dada e, em
particular, das pessoas que nos são
mais próximas pelas relações
familiares, pelos vínculos da fé, pela
própria vida. “Logo, enquanto temos
tempo, façamos o bem a todos, mas
principalmente aos irmãos na fé” (Gal
6,10). O Apóstolo ensina-nos a não
nos cansarmos de exercitar uma
caridade ordenada. Aos que
receberam o dom do batismo, como
nós, como não havemos de vê-los
como irmãos, filhos do mesmo Pai de
bondade e misericórdia? “A
humildade leva-nos como que pela
mão a essa forma de tratar o próximo
que é sem dúvida a melhor: a de
compreender a todos, conviver com
todos, desculpar a todos; a de não
criar divisões nem barreiras; a de
comportar-nos - sempre! - como
instrumentos de unidade”[5].

Quem é humilde desenvolve uma


sensibilidade para os dons de Deus,
tanto na sua própria vida como na
dos outros. Compreende que cada
pessoa é um dom de Deus, e assim
acolhe todas as pessoas sem
comparações nem rivalidades. Cada
pessoa é única aos olhos de Deus e
contribui com coisas que os outros
não podem dar. A humildade leva-o a
alegrar-se com a alegria dos outros,
pelo fato de eles existirem e fazerem
parte da humanidade. Quem é
humilde aprende a ser mais um: um
entre outros. Neste sentido, a família
tem um papel primordial: a criança
aprende a relacionar-se, a falar e a
ouvir; não é sempre o centro da
atenção entre os próprios irmãos e
irmãs; aprende a agradecer, porque,
pouco a pouco, repara no que as
coisas custam. Assim, com o passar
do tempo, quando tem um sucesso
pessoal, verifica que muitas coisas
foram possíveis pela dedicação dos
seus familiares e amigos, das pessoas
que o cuidam, alimentando-o e
dando-lhe o calor do lar. Quem sou
eu, para que me digam: “perdoa-me”?
A humildade de quem pede perdão,
sendo talvez pessoa revestida de
autoridade, é amável e contagiosa
entre esposos, entre pais e filhos,
entre superiores e colaboradores.

Sem por isso ser considerado


ingênuo, o cristão tem boa disposição
habitual para tudo o que vier do
próximo, pois realmente cada pessoa
vale, cada pessoa conta; cada forma
de inteligência, quer seja
especulativa, quer venha do coração,
ilumina. A consciência da dignidade
dos outros evita cair “na indiferença
que humilha”[6]. O cristão, por
vocação, está virado para os outros:
manifesta-se a eles sem preocupações
excessivas por cair no ridículo ou
ficar mal visto. Há pessoas que, por
serem tímidas, provocam intimidação
em vez de comunicarem luz e calor:
pensam demais em si mesmas, no
que vão dizer aos outros, talvez por
um excessivo sentido de honra, da
própria imagem, que poderia
encobrir orgulho ou falta de
simplicidade.

Polarizar a atenção sobre si mesmo,


expressar repetidamente desejos
excessivamente concretos e
singulares, enfatizar problemas de
saúde mais ou menos comuns; ou,
pelo contrário, esconder de modo
exagerado uma doença que os outros
poderiam conhecer para ajudar
melhor com a sua oração e o seu
apoio: tudo isto são atitudes que
provavelmente precisam de uma
purificação. A humildade manifesta-
se também com uma certa
flexibilidade, em um esforço para
comunicar o que vemos ou sentimos.
“Não seremos mortificados se formos
suscetíveis, se estivermos
preocupados apenas com os nossos
egoísmos, se esmagarmos os outros,
se não nos soubermos privar do
supérfluo e, às vezes, do necessário;
se nos entristecermos quando as
coisas não correm como tínhamos
previsto. Pelo contrário, seremos
mortificados se nos soubermos fazer
tudo para todos, para salvar a todos.
(1 Cor 9, 22)”[7].

Ver as coisas boas e conviver

“Tocamos flauta e não bailastes;


entoamos lamentações e não
chorastes” (Mt 11, 17): o Senhor
serve-se de uma canção ou talvez de
um jogo popular, para ilustrar o fato
de alguns dos seus contemporâneos
não saberem reconhecê-lo. Nós
estamos chamados a descobrir Cristo
nos acontecimentos e nas pessoas.
Corresponde-nos respeitar os modos
divinos de atuar: Deus cria, liberta,
resgata, perdoa, chama... “Não
podemos correr o risco de nos
opormos à plena liberdade do amor
com que Deus entra na vida de cada
pessoa”[8].

Manifestar-se aos outros implica


adaptar-se a eles; por exemplo, para
participar de um esporte coletivo,
com outros que têm menos técnica;
ou esquecendo alguma preferência
nossa para descansar com os outros
como eles gostam. No convívio, quem
é humilde gosta de ser positivo. Ao
contrário, o orgulhoso tende a
destacar demasiado o que é negativo.
Na família, no trabalho, na sociedade,
a humildade permite-nos ver os
outros a partir das suas virtudes.
Quem, por outro lado, tem tendência
a falar frequentemente das coisas
que o “põem nervoso” ou o irritam,
costuma fazê-lo por falta de
amplitude de horizontes, de
indulgência, de abertura da mente e
do coração. Talvez devesse aprender
a amar os outros com os seus
defeitos. Exercita-se assim uma
pedagogia do amor que, pouco a
pouco, cria uma dinâmica irresistível:
fazemo-nos menores para que os
outros cresçam. Foi assim que fez o
precursor: “Convém que Ele cresça e
eu diminua” (Jo 3, 30), disse o Batista.
O Verbo tornou-se ainda mais
pequeno: “Na tradução grega do
Antigo Testamento, os Padres da
Igreja encontravam uma frase do
profeta Isaías – que o próprio São
Paulo cita – para mostrar como os
caminhos novos de Deus estavam já
pré-anunciados no Antigo
Testamento. Eis a frase: “O Senhor
compendiou a sua Palavra, abreviou-
a” (Is 10, 23; Rm 9, 28). (...) O próprio
Filho é a Palavra, é o Logos: a Palavra
eterna fez-Se pequena; tão pequena
que cabe numa manjedoura. Fez-Se
criança, para que a Palavra possa ser
compreendida por nós”[9].

Jesus Cristo esteve disponível para


todos: sabia dialogar com os seus
discípulos, recorrendo a parábolas,
colocando-se ao seu nível – por
exemplo, quando soluciona o
problema do imposto a César, não
hesita em considerar Pedro como seu
igual (cf. Mt 17, 27)[10] –, com as
mulheres, santas ou mais afastadas
de Deus, com os fariseus, com Pilatos.
O que interessa é chegar a
desprender-se do próprio feitio, para
ir ao encontro dos outros.
Desenvolve-se assim, por exemplo,
uma certa capacidade de acomodar-
se aos outros, evitando deixar-se
levar por obsessões ou manias;
descobrindo em cada pessoa o seu
aspecto amável, o fulgor do amor
divino; bastando a cada um ser mais
um entre os outros, em
correspondência com o que se está a
celebrar na nossa casa ou no nosso
país, também à luz do tempo
litúrgico, que marca o ritmo da nossa
vida de filhos e filhas de Deus. Quem
é humilde vive atento aos que o
rodeiam. Esta atitude é a base da boa
educação e manifesta-se em muitos
pormenores, como, por exemplo, não
interromper uma conversa, um
almoço ou um jantar, e menos ainda
a oração mental, para atender o
telefone, salvo em caso de autêntica
urgência. A caridade, finalmente,
nasce no húmus – terra fértil – da
humildade: “A caridade é paciente, é
bondosa; a caridade não é invejosa,
não é arrogante, não se ensoberbece”
(1 Cor 13, 4).

Humildade no trabalho

O Papa afirma na sua encíclica


Laudato si que “qualquer forma de
trabalho pressupõe uma concepção
sobre a relação que o ser humano
pode ou deve estabelecer”[11] com o
que o rodeia e com os que o rodeiam.
O trabalho oferece não poucas
ocasiões de crescer na humildade.

Se, por exemplo, um dirigente se


mostra demasiado autoritário, pode-
se encontrar uma desculpa, pensando
que tem muita responsabilidade
sobre os seus ombros, ou
simplesmente que dormiu mal.
Quando um colaborador se engana, é
possível corrigi-lo sem o ferir.
Entristecer-se pelo sucesso dos outros
denotaria falta de humildade e
também de fé: “todas as coisas são
vossas (…) mas vós sois de Cristo, e
Cristo é de Deus” (1 Cor 3, 22-23). A
quem é humilde, nada lhe é alheio:
se, por exemplo, se esforça por
melhorar a sua formação profissional
para além do interesse natural pela
sua especialidade, fá-lo para servir
melhor os outros. Isso pressupõe
retificar a intenção, voltar ao ponto
de vista sobrenatural, não se deixar
arrastar por um ambiente superficial
ou até corrompido, sem olhar, por
isso, os outros por cima do ombro.
Quem é humilde foge do
perfeccionismo, reconhece as
próprias limitações e conta com a
possibilidade de os outros
melhorarem aquilo que ele fez. Quem
é humilde sabe retificar e pedir
desculpas. Quando dirige, o que lhe
dá capacidade de liderança é o
reconhecimento de sua autoridade,
mais do que um certo poder
estabelecido.

Deus chamou-nos à existência com


um amor gratuito. Todavia, às vezes
parece que precisamos justificar a
nossa própria vida. O desejo de
distinção, de fazer as coisas de outra
maneira, de chamar a atenção, a
excessiva preocupação por sentir-se
útil e destacar-se no serviço aos
outros, podem ser sintomas de uma
doença da alma, que convidam a
pedir ajuda e a aceitá-la, sendo dóceis
à graça. “Com um olhar ofuscado
para o bem e outro mais penetrante
para o que adula o próprio ego, a
vontade tíbia acumula na alma sarro
e podridão de egoísmo e de soberba
(...), a conversa insubstancial ou
centrada em si mesmo, (...) o non
cogitare nisi de se que se exterioriza
no non loqui nisi de se (...), arrefece a
caridade e perde-se a vibração
apostólica”[12]. Pensar muito em si
mesmo, falar apenas de si mesmo... A
pessoa humilde evita encaminhar as
conversas para a sua história pessoal,
para a sua experiência, para o que
fez: evita procurar desmedidamente
que reconheçam os seus méritos.
Bem diferente é, por outro lado,
recordar as misericórdias de Deus e
integrar a própria vida no desígnio
da Providência. Se uma pessoa fala
do que fez, é para que o outro possa
desenvolver a sua própria história.
Portanto, o testemunho de um
encontro pessoal com Cristo, com o
recato natural da alma, pode ajudar o
outro a descobrir que também Jesus o
ama, o perdoa e o diviniza. Que
alegria, nesse caso! “Sou amado, logo
existo”[13].

Há momentos especialmente
propícios para renovar os desejos de
humildade. Por exemplo, quando se é
promovido ou se começa a ter um
trabalho com certa visibilidade
pública. Então é o momento de tomar
decisões que mostrem um modo
cristão de trabalhar: assumir essa
posição como uma oportunidade que
Deus nos dá para servir mais; recusar
qualquer vantagem pessoal
desnecessária; intensificar a nossa
atenção para com os mais fracos, sem
cair na tentação de os esquecer,
agora que nos damos com pessoas às
que antes não conseguíamos aceder.
Também é o momento de dar
exemplo nos êxitos e honras
inerentes a esse cargo ou trabalho, de
tirar importância aos aplausos que
costuma receber quem manda e, por
outro lado, mostrar abertura às
críticas, que costumam ficar mais
veladas e que têm indícios de
verdade. São muitas as possíveis
manifestações da simplicidade no
trabalho: rir-nos de nós mesmos
quando nos surpreendemos, por
exemplo, procurando ver se
aparecemos na fotografia ou se fomos
citados em um texto; superar a
tendência para deixarmos em tudo a
nossa assinatura, ou amplificar um
problema quando ninguém nos pediu
conselho para o resolver, como se
fosse necessária a nossa opinião em
todas as circunstâncias...

Aprender a render o juízo

No ambiente profissional, familiar,


até recreativo, organizam-se reuniões
onde se trocam pontos de vista, talvez
opostos. Somos pessoas que
pretendem que os outros se
submetam ao nosso modo de pensar?
O que devia ser, o que devia ter sido
feito... A tendência excessiva para
insistir no ponto de vista pessoal
pode denotar rigidez mental. É
evidente que ceder não é uma coisa
automática, mas, em todo caso,
muitas vezes, demonstra que
compreendemos a situação.
Aproveitar as ocasiões para render o
próprio juízo é agradável aos olhos
de Deus[14]. Com frase lapidar, Bento
XVI comentava em uma ocasião a
triste volta que deu Tertuliano nos
últimos anos da sua vida: “Quando se
vê apenas o próprio pensamento na
sua grandeza, no final é precisamente
essa grandeza que se perde”[15].

Alguma vez teremos de ouvir pessoas


mais jovens, com menos experiência,
mas que talvez tenham mais dotes de
inteligência ou de coração, ou tenham
funções às quais assiste a graça de
Deus. Certamente, ninguém gosta de
fazer o papel de tolo, ou de pessoa
sem coração, mas se nos preocupar
demasiado o que os outros pensam
de nós, pode significar que nos falta
humildade. A vida de Jesus, o Filho de
Deus, é uma lição infinita para
qualquer cristão investido de uma
responsabilidade que a sociedade
considera elevada. As aclamações de
Jerusalém não fizeram esquecer ao
Rei dos Reis que outros iriam
crucificá-lo e que era também o Servo
sofredor (cf. Jo 12, 12-19).

O rei São Luís aconselhava o seu filho


que, se algum dia chegasse a ser rei,
não defendesse com vivacidade a sua
opinião nas reuniões do conselho
real, sem antes ouvir os outros: “os
membros do teu conselho poderiam
ter medo de contradizer-te, coisa que
não convém desejar”[16]. É muito
salutar aprender a não opinar com
superficialidade, sobretudo quando
não se tem a responsabilidade última
e não se conhecem os fundamentos
de um assunto, além de não se ter a
graça de estado e dos dados que
talvez possua quem está constituído
em autoridade. Por outro lado, tão
importante como a ponderação e a
reflexão é a disposição para render o
juízo de forma nobre e
magnanimamente. Às vezes é preciso
exercer a prudência de ouvir os
conselheiros e mudar de parecer, e
nisso se manifesta como a humildade
e o senso comum engrandecem a
pessoa e a tornam eficaz. A prudência
no juízo é favorecida pelo trabalho
em equipe: fazer equipe, juntar
esforços, elaborar uma ideia e chegar
a uma decisão junto com os outros:
isso tudo é também um exercício de
humildade e inteligência.

Humildade do servo inútil

Nas iniciativas pastorais, nas


paróquias, nas associações de
beneficência, nos projetos de ajuda
aos imigrantes, as soluções aos
problemas muitas vezes não são
evidentes, ou simplesmente existem
muitos modos de resolvê-los. A
atitude humilde leva-nos a manifestar
a própria opinião, a falar
oportunamente se algum assunto está
menos claro, e também a aceitar uma
orientação diferente da que temos,
confiando que a graça de Deus assiste
a quem exerce a sua função com
retidão de intenção e conta com a
ajuda de peritos na matéria.

É pouco sabido que a Igreja católica,


na sua valiosa humildade coletiva, é a
instituição que dá vida a mais
iniciativas de ajuda a pobres e
doentes, em todo o mundo.
Justamente no povo de Deus, onde
convivem o humano e o divino, a
humildade é especialmente
necessária. Que bonito é desejar ser o
envelope que se joga fora quando a
carta é lida, ou a agulha que deixa a
linha cosida e desaparece, após ter
cumprido a sua missão! O Senhor
convida-nos a dizer: “Somos servos
inúteis; fizemos o que devíamos
fazer” (Lc 17, 10). Assim, o sacerdote
terá a humildade de “aprender a não
estar na moda”[17], não procurar
estar sempre à frente, na vanguarda
de tudo; a rejeitar o protagonismo de
modo quase instintivo, porque
costuma ir associado à mentalidade
de proprietário das almas. Por sua
vez, o fiel leigo, se for humilde,
respeita os ministros do culto pelo
que representam: não critica o seu
pároco ou os sacerdotes em geral,
mas os ajuda discretamente.

Os filhos de Noé cobriram a nudez do


seu pai embriagado (cf. Gen 9, 23).
“Como os filhos bons de Noé, cobre
com o manto da caridade as misérias
que vires em teu pai, o
Sacerdote”[18]. São Tomás More
aplicava este relato até ao Romano
Pontífice, por quem o povo cristão
deveria ter rezado... em vez de
perseguir![19]

O tempo é de Deus: fé e humildade

“É unânime, a este respeito, o


testemunho da Escritura: a solicitude
da divina Providência é concreta e
imediata, cuida de tudo, desde os
mais insignificantes pormenores até
aos grandes acontecimentos do
mundo e da história. Os livros santos
afirmam, com veemência, a
soberania absoluta de Deus no
decurso dos acontecimentos: “Tudo
quanto Lhe aprouve, o nosso Deus
fez, no céu e na terra” (Sl 115, 3); e de
Cristo se diz: “que abre e ninguém
fecha, e fecha e ninguém abre” (Ap 3,
7); “há muitos projetos no coração do
homem, mas é a vontade do Senhor
que prevalece” (Pr 19, 21)”[20]. A
direção espiritual é um meio
excelente para nos situar melhor
nesse horizonte. O Espírito Santo
atua, com paciência, e conta com o
tempo: o conselho recebido deve
fazer o seu caminho na alma. Deus
espera a humildade de um ouvido
atento à sua voz. Deste modo é
possível tirar proveito pessoal das
homilias ouvidas na paróquia, não só
para aprender alguma coisa, mas
sobretudo para melhorar. Tomar
alguma nota em uma palestra de
formação ou tempo de oração, para a
comentar depois com quem conhece
bem a nossa alma, também é
reconhecer a voz do Espírito Santo.

A fé e a humildade andam de mãos


dadas. No nosso peregrinar para a
pátria celestial é preciso deixar-nos
guiar pelo Senhor, recorrendo a Ele e
ouvindo a sua Palavra[21]. A leitura
sossegada do Antigo e do Novo
Testamento, com os comentários de
carácter teológico-espiritual, ajuda-
nos a compreender o que Deus nos
diz em cada momento, convidando-
nos à conversão: “Os meus planos não
são os vossos planos, os vossos
caminhos não são os meus caminhos
– oráculo do Senhor” (Is 55, 8; cf. Rom
11, 33). A humildade da fé ajoelha-se
ante Jesus Cristo presente na
Eucaristia, adorando o Verbo
encarnado como os pastores em
Belém. Assim aconteceu com Santa
Teresa Benedita da Cruz, Edith Stein.
Nunca se esqueceu daquela mulher
que entrou em uma igreja com o seu
saco das compras e se ajoelhou para
fazer a sua oração pessoal, em íntima
conversa com Deus[22].

A humildade leva-nos a viver o


presente aligeirado de qualquer
possível futuro, porque os cristãos
somos aqueles que “esperam com
amor a Sua vinda” (2 Tim 4, 8). Se nos
zangamos perante circunstâncias
menos favoráveis, precisamos de
crescer em fé e em humildade.
“Quando te abandonares de verdade
no Senhor, aprenderás a contentar-se
com o que vier, e a não perder a
serenidade, se as tarefas - apensar de
teres posto todo o teu empenho e
utilizado os meios oportunos - não
correm a teu gosto... Porque terão
“corrido” como convém a Deus que
corram.”[23]. Assim, evita-se o
descontentamento exagerado, ou a
tendência para reter na memória as
humilhações. Um filho de Deus
perdoa os agravos, não fica
ressentido, segue em frente[24]. E se
alguém pensa que foi ofendido, tenta
não recordar as ofensas, não fica
rancoroso: olha para Jesus, sabendo
que “a mim, a quem me perdoou
muito mais, que grande dívida de
amor me fica!”[25]. Quem é humilde
diz, com São Paulo: “esquecendo-me
do que fica para trás e avançando
para as coisas que estão adiante,
prossigo para a meta, para alcançar o
prêmio da celeste vocação de Deus
em Cristo Jesus” (Fil 3, 13-14).

Esta atitude ajuda-nos a aceitar a


doença e a convertê-la em um tempo
fecundo: é uma missão que Deus nos
dá. E faz parte dessa missão aprender
a facilitar que os outros possam
ajudar-nos a aliviar a nossa dor e as
possíveis angústias. Permitir que nos
assistam, nos curem, nos
acompanhem, é a prova de que nos
abandonamos nas mãos de Jesus, que
se faz presente nos nossos irmãos.
Temos de completar “o que falta à
Paixão de Cristo pelo seu corpo, que é
a Igreja” (Col 1, 24).

A consciência de que somos fracos


levar-nos-á a deixar-nos ajudar, a ser
indulgentes com os outros, a
compreender a condição humana, a
evitar surpresas farisaicas. A nossa
debilidade abre-nos a inteligência e o
coração para compreender a dos
outros. Pode-se, por exemplo, salvar a
intenção ou pensar que uma pessoa
esteve em situações muito difíceis de
gerir, embora evidentemente isso não
suponha ignorar a verdade,
chamando “ao mal bem e ao bem
mal”, e trocando “o amargo pelo doce
e o doce pelo amargo” (Is 5, 20). Por
outro lado, pode acontecer, às vezes,
que a pessoa tenha tendência para se
menosprezar. A baixa autoestima,
frequente em muitos, também não é
salutar, porque não corresponde à
verdade e corta as asas de quem está
chamado a altos voos. Não há motivo
para a desmoralização: a humildade
leva-nos a aceitar o que nos é dado,
com a profunda convicção de que os
caminhos pelos que deseja conduzir-
nos o Senhor são de misericórdia (cf.
Heb 3, 10; Sl 95, 10); mas leva-nos
também, por isso mesmo, a sonhar
com audácia: “Sentir-se barro,
recomposto com grampos, é fonte
contínua de alegria; significa
reconhecer-se pouca coisa diante de
Deus: criança, filho. E há maior
alegria que a de quem, sabendo-se
pobre e fraco, se sabe também filho
de Deus?”[26]

Abertura à Providência

O homem e a mulher humildes estão


abertos à ação da Providência sobre o
seu futuro. Não procuram nem
desejam controlar tudo, nem ter
explicação para tudo. Respeitam o
mistério da pessoa humana e confiam
em Deus, mesmo que o amanhã
pareça incerto. Não tentam conhecer
as secretas intenções divinas, nem
aquilo que supera as suas forças (cf.
Si 3, 21). Basta-lhes a graça de Deus,
porque “a força manifesta-se na
fraqueza” (2 Cor 12, 9). Encontramos
a graça no trato com Jesus Cristo: é
participação na sua vida.

Depois de uma emocionante ação de


graças a Deus Pai, Jesus convida os
seus discípulos de todos os tempos a
aproximar-se d’Ele, quia mitis sum et
humilis corde (Mt 11, 29): o Senhor é
manso e humilde de coração, e por
isso encontraremos n’Ele
compreensão e sossego.
Aproximamo-nos de Cristo na
Eucaristia, aproximamo-nos do seu
Corpo ferido e ressuscitado: in
humilitate carnis assumptae, reza o
Prefácio I do Advento – vem pela
primeira vez na humildade da nossa
carne. Tocamos a inefável humildade
de Deus. “Humildade de Jesus: em
Belém, em Nazaré, no Calvário...
Porém, mais humilhação e mais
aniquilamento na Hóstia Santíssima;
mais que no estábulo, e que em
Nazaré, e que na Cruz”[27]. Nossa
Senhora acompanha-nos para que O
recebamos com a humildade com que
Ela recebeu o seu Filho Jesus. Salve
radix, salve porta, ex qua mundo lux
es orta[28]: Salve raiz, salve porta,
pela qual a luz nasceu para o mundo
submerso nas trevas do orgulho:
Jesus Cristo, Luz de Luz[29], revela-
nos a misericórdia de Deus Pai.

Guillaume Derville

[1] Papa Bento XVI, Homilia,


24/12/2011.

[2] Papa Francisco, Encíclica Laudato


sì (24-V-2015), 67.

[3] São Josemaria, Amigos de Deus,


94.

[4] Papa Francisco, Discurso à Cúria


Romana, 21/12/2015.

[5] São Josemaria, Amigos de Deus,


233.

[6] Papa Francisco, Bula


Misericordiae Vultus (11/04/2015), 15.

[7] São Josemaria, É Cristo que passa,


9.

[8] Papa Francisco, Carta ap.


Misericordia et misera (30/11/2016), 2.

[9] Papa Bento XVI, Ex. ap. Verbum


Domini, 12.

[10] Cf. Guillaume de Saint-Thierry,


Exposé sur le Cantique des Cantiques,
109, em Sources Chrétiennes 82, 243.

[11] Papa Francisco, Encíclica


Laudato sì (24/05/2015), 125.

[12] B. Álvaro del Portillo, Carta


pastoral, 9/01/1980, 31 (citado em
Álvaro del Portillo, Orar. Como sal y
como luz, Barcelona: Planeta, 2013, p.
207).

[13] Papa Francisco, Carta ap.


Misericordia et misera (30/11/2016),
16.

[14] Cf. São Josemaria, Caminho, 177.

[15] Papa Bento XVI, Audiência,


30/05/2007.
[16] S. Luís de França, Testamento
espiritual ao seu filho, futuro Filipe
III, em Acta Sanctorum Augustii 5
(1868), 546.

[17] Entrevistas com Mons. Escrivá,


59.

[18] São Josemaria, Caminho, 75.

[19] Cf. S. Tomás Moro, Responsio ad


Lutherum, em The Yale Edition of
The Complete Works of St Thomas
More, vol. 5, p. 142 (CW5, 142/1-4).

[20] Catecismo da Igreja Católica, 303.

[21] Cf. Sagrada Bíblia, Tradução e


notas da Faculdade de Teologia da
Universidade de Navarra, comentário
ao Salmo 95.

[22] Cf. S. Teresa Benedita da Cruz


(Edith Stein), Aus dem Leben einer
jüdischen Familie. Das Leben Edith
Steins: Kindheit und Jugend, 1965
(ed. completa 1985), p. 362.

[23] São Josemaria, Sulco, 860.


[24] Cf. Javier Echevarría, Carta
pastoral, 4/11/2015, 21.

[25] São Josemaria, Forja, 210.

[26] São Josemaria, Amigos de Deus,


108.

[27] São Josemaria, Caminho, 533.

[28] Hino Ave Regina Cælorum.

[29] Cf. Missal Romano, Credo.

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https://opusdei.org/pt-br/article/a-porta-da-
humildade/ (16/03/2024)

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