ALVIM - A Clínica Como Poiética

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Estudos e Pesquisas em Psicologia

E-ISSN: 1808-4281
[email protected]
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro
Brasil

Botelho Alvim, Mônica


A clínica como poiética
Estudos e Pesquisas em Psicologia, vol. 12, núm. 3, septiembre-diciembre, 2012, pp.
1007-1023
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=451844639018

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ARTIGOS

A clínica como poiética

Clinic as a poietic

Mônica Botelho Alvim*


Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO
Um dos temas fundamentais na clínica diz respeito à produção de sentido.
Quando Merleau-Ponty enfatiza a noção de carne, propõe uma espécie de
passividade do eu ao campo, a um ser bruto que comporta eu e outro,
cultura, historicidade, temporalidade. Afirma a necessidade de passar da
erlebnisse (vivência) à stiftung (instituição), colocando acento num tipo de
produção de sentido que é gênese espontânea, diferenciação, criação a
partir da diferença. Neste trabalho discutimos a clínica da Gestalt-terapia em
diálogo com essas propostas e as questões contemporâneas, para propor a
clínica como lugar de criação, que visa permitir o nascimento espontâneo do
sentido como fala falante e desviante; a gênese do sentido como instituição
que nos garante o pertencimento com o outro a um mesmo mundo. É nesse
sentido que podemos pensar em uma ética da criação na diferença – uma
clínica como poiética.
Palavras-chave: Gestalt-terapia, Merleau-Ponty, Instituição, Psicologia
clínica, Corpo.

ABSTRACT
A key theme of the clinic relates to the production of meaning. When
Merleau-Ponty emphasizes the notion of flesh, proposes a kind of passivity
of the self to the field, a brute being who holds self and other, culture,
history, temporality. Affirms the need to move from Erlebnisse (experience)
to Stiftung (institution), placing emphasis on a kind of sense produced by
spontaneous genesis, differentiation, creation from the difference. We
discuss the clinical gestalt therapy in dialogue with these proposals and
contemporary issues, to propose the clinic as a place of creation,designed to
allow spontaneous birth of meaning as deviant speech; the genesis of the
sense as an institution guarantees belonging with the other to the same
world. In this sense we can think of an ethics of creation from the difference
– clinic as a poietic
Keywords: Gestalt-Therapy, Merleau-Ponty, institution, clinical psychology,
body.

1 Introdução

Marginal é quem escreve à margem,


deixando branca a página
para que a paisagem passe

ISSN 1808-4281
Estudos e Pesquisas em Psicologia Rio de Janeiro v. 12 n. 3 p. 1007-1023 2012
Mônica Botelho Alvim
A clínica como poiética

e deixe tudo claro à sua passagem

Paulo Leminski

A poesia de Leminski nos faz um convite. Escrever à margem


deixando a página em branco para a passagem da paisagem. Barry
Stevens, gestalt-terapeuta, eternizou a imagem de um terapeuta
marginal – aquele que escreve à margem - no título “Não apresse o
rio, ele corre sozinho”. O que está implicado nessa imagem? Ficar à
margem do rio que corre, escrever à margem, deixar a paisagem
passar ou o rio correr. Esperar. Respeitar o ritmo. Não apressar.
Deixar espaço em branco. Não preencher.
O convite de ambos é para um trabalho – do terapeuta e do poeta –
que confiando na vida (como vir-a-ser), concebe o fluxo e o vazio
como espaço-tempo de poder ser. Nesse trabalho, o olhar que admira
e espera que algo se faça, possa ser, exige abertura e não-fixação,
presença e não-representação.
Está em jogo aqui o tema da produção de sentido, tema fundamental
na clínica, um espaço de possibilidade de ressignificação da
existência. Compreendo a clínica como um campo de experiência com
o outro que faz brotar sentidos a partir da expressão e do diálogo.
Espaço de instituição que vejo, aproximando-me do ponto de vista de
Merleau-Ponty, como um processo de nascimento, “operação que é
ao mesmo tempo recuperação e superação de significações anteriores
e apelo a novas criações de sentido” (DUPOND, 2010, p. 38). Um
processo reversível entre o arqueológico e o teleológico, passado e
futuro, um ecoando no outro, aqui-agora.

2 Experiência e expressão

A expressão é gesticulação corporal, de acordo com Merleau-Ponty.


Longe de ser a colocação no mundo como objetividade de algo já
pronto no interior como subjetividade, a expressão envolve um
movimento reversível de sair de si e entrar em si, movimento ek-
stático, “ímpeto ou arrebatamento de nosso corpo em direção a algo
que, mesmo não diferindo de nossa própria temporalidade, não nos
faculta coincidir conosco, exigindo de nós, a cada experiência, um
novo recomeço” (MÜLLER, 2001, p. 285). Merleau-Ponty, nos rastros
de Husserl, entende que é o corpo sensível que nos dá o sentido da
possibilidade, do Ich cann (eu posso). Propõe a experiência como
expressão e fala, gesticul-ação corporal em situação com o mundo,
síntese temporal, trabalho do corpo, práxis que é gênese de sentido,
uma praktognosia. O sentido se faz enquanto expressão. Assim
Merleau-Ponty (1994) define o que chama “milagre da expressão” (p.
268): fazer a significação existir como coisa no mundo, presença,

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emblema, corpo (p. 247). A potência de expressão, ele afirma, é bem


conhecida na arte. “A expressão estética confere a existência em si
àquilo que exprime, instala-o na natureza como uma coisa percebida
acessível a todos (...) a operação expressiva realiza ou efetua a
significação e não se limita a traduzi-la” (op.cit., p.248).
É também na direção da experiência como expressão que Lygia
Clark1 busca aproximar arte e vida. Trabalha para transformar o
espaço da obra de arte em um espaço orgânico expressional.
Convidando o espectador a participar ativamente da obra, transverte
o espaço da arte em um espaço-tempo. Redireciona as relações do
espectador com a obra de arte de um lugar de contemplação para
outro de um ato corporal, ou seja, síntese temporal realizada pelo
corpo: a experiência expressiva, ato corporal que institui um espaço-
tempo, faz a obra de arte. Marginal, a artista deixa em branco o
espaço, entregando ao participante, antes espectador, a autoria, o
poder-ser.
Definindo a psicologia como o estudo da operação da fronteira de
contato no campo organismo/ambiente, a Gestalt-Terapia enfatiza a
experiência, operação criadora e expressiva diante da tensão da
diferença com o ambiente. Ao definir self como um sistema de
contatos, promove um duplo movimento do eu: deslocado do interior
do psiquismo para o campo, ele é descentralizado; perdendo o
estatuto de pura representação, o eu, insubstancial, é compreendido
como um processo de desdobramento temporal, espontaneidade
expressiva e criadora.
Considerando a neurose um estado de distanciamento do corpo e da
experiência, dicotomização mente-corpo e corpo-mundo que implica
em fixação, rigidez de formas e impossibilidade de criar, a gestalt-
terapia propõe uma clínica que visa restituir plasticidade e fluidez na
formação de formas, retomar o livre fluxo de awareness. Definida por
Robine (2006) como conhecimento imediato e implícito do campo, a
awareness é experiência temporal que envolve sentir, excitamento e
formação de gestalten. Dimensão pré-reflexiva, o sentir é pathos de
abertura, entrega ao campo e ao diferente que me afeta, convoca e
anima, fazendo nascer um excitamento e um movimento corporal
espontaneamente orientado ao futuro que se avizinha e se liga ao
passado, fundo habitual que sustenta a formação de gestalt. Desse
modo, a Gestalt-terapia, menos que uma teoria da personalidade é
uma teoria da criação e expressão, uma terapia da formação de
formas: movimento do presente para o futuro que não prescinde do
passado, ação- atividade, paixão – passividade (pathos).

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3 Corpo e intercorporeidade

A fenomenologia de Husserl em sua última fase, tal como


compreendida por Merleau-Ponty e transmitida em seus cursos sobre
a natureza (MERLEAU-PONTY, 2000n), afirma o corpo como
originário. O mundo das idealizações é construído sobre um mundo
pré-reflexivo em que o papel do corpo é o de operar uma síntese de
transição que permita compreender o mundo de dentro dele, numa
relação com as coisas do mundo que se dê pelos movimentos do
corpo que avança e recua, dá voltas, reúne perspectivas. “Eu
organizo com o meu corpo uma compreensão do mundo”, afirma
Merleau-Ponty (2000n, p. 122). Tal compreensão não é dada por uma
consciência reflexiva, mas é sentimento de poder (possibilidade) dado
pela inserção em um mesmo campo, “campo onde se localizam
minhas sensações” (MERLEAU-PONTY, 2000n, p. 122).
O corpo é excitável, capacidade de sentir não como reação, mas
como co-presença com as coisas. O sentir localiza-se, assim, no
corpo-mundo, nesse campo ou situação aqui-agora. Tal consciência,
dada pelo corpo, é “escorregadia, o sentimento de um poder”
(op.cit). É na relação com outrem que me completo como existência
objetiva, que passo de tal consciência escorregadia, desse sentimento
de poder, a uma concretude da realização daquilo que apenas sinto. É
vendo o outro ver o que vejo, movendo-se, como eu, em direção a
algo, numa operação que, antes de reflexiva é estesiológica, que
surge um eu como concretude no espaço e no tempo. Husserl, tal
como afirma Merleau-Ponty (2000n, p. 125) propõe assim que a
Einfülung (empatia) é uma operação corporal, “(...) a posição de um
sujeito estesiológico. Eu não projeto no corpo de outrem um Eu
penso, mas apercebo o corpo como percipiente antes de apercebê-lo
como pensante”.
Ao escolher o termo organismo e não sujeito ou pessoa, a Gestalt-
Terapia marca o lugar do corpo na experiência no mundo. È nesse
sentido que podemos falar de organismo como totalidade mente-
corpo imbricada no mundo, numa relação que não tem produto ou
produtor, atividade ou passividade absolutas, que Merleau-Ponty
(2000n) denominou naturante-naturado e a Gestalt-terapia refere-
se, em sua teoria do self, como modo médio de funcionamento2. O
método da Gestalt-Terapia propõe concentrar-se na estrutura
concreta da situação para restituir o brilho e o vigor da figura débil. O
que significa uma figura débil? Que não há in-corporação, o fluxo de
awareness está impedido e a excitação perdida como direção e
moviment-ação. O terapeuta busca estabelecer uma relação com a
situação a partir de seu corpo e de sua presença, assumindo a
posição de um sujeito estesiológico, convidando, assim, o cliente ele
mesmo a voltar-se para o corpo. Busca resgatar a relação de co-
presença. A espontaneidade do terapeuta distingue a Gestalt-Terapia,

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indicando que a relação terapêutica solicita, sobretudo, uma presença


engajada que permita um encontro que seja experiência estética do
campo, um campo de presença.
Merleau-Ponty, na última fase de seu trabalho, deixa o ponto de vista
de um corpo-sujeito, para enfatizar a noção de carne, propondo
assim uma espécie de passividade do eu ao campo, a um ser bruto
que comporta eu e outro, cultura, historicidade, temporalidade. O
filósofo critica a crença em uma subjetividade transparente a si
mesma e um caráter constituinte da consciência e propõe um campo
primordial, uma indiferenciação original de onde brota o sentido, o
ser bruto, anterior a qualquer diferenciação em termos de
subjetividade. Trata-se de uma dimensão sensível e passível apenas
de compreensão corporal e de ser compartilhada por meio da
experiência intercorporal.
Referimo-nos em Gestalt-Terapia a um id da situação (PERLS;
HEFFERLINE; GOODMAN, 1997; ROBINE, 2006; ALVIM, 2007).
Compreendo, a partir desse construto, que estamos voltados para a
dimensão sensível e intercorporal do processo de contato que, na
situação terapêutica, dá indícios da necessidade em dominância. A
fonte do excitamento está no contato. Não está em alguma
profundeza do eu, tampouco no estímulo do ambiente, mas na
situação, nessa imbricação, entrecruzamento que conecta eu e outro,
visível e invisível, singularidade e universalidade, fato e essência
configurando uma estrutura, Ser em estado bruto (MERLEAU-PONTY,
2000). O trabalho psicoterápico, em nossa perspectiva, deve partir da
exigência de sentido dada no diálogo e no contato, experiência de
alteridade que é ao mesmo tempo diferença e identidade. Esse
diálogo é, na perspectiva de Merleau-Ponty, intercorporeidade. Ao
contrário de um diálogo que se dê em torno de uma reflexão, busca
de constituição de sentido por uma consciência ativa, é um trabalho
de instituição. Modo médio, passividade-atividade, co-presença,
precisa dar-se inter corpos, partindo do id da situação, ou seja, isso
que está aqui-agora, em estado bruto, em processo de diferenciação,
visível em processo de fazer-se, emergindo de um fundo (carne) que
é invisível, todavia presente e sensível.
Concebendo então o corpo como experiência originária, falamos de
corpos vivos, vibrando diante do outro, movimentando a carne
(MERLEAU-PONTY, 2000) que é também mundo. Carne, que
trêmula, nos sustenta como um fundo no qual estamos apoiados e do
qual brotamos como diferença. Partimos desse ponto para pensar no
primeiro de alguns cenários necessários para compor nossa
construção neste texto.

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3.1 Cenário 1- Do corpo no mundo contemporâneo

Como estão nossos corpos no mundo contemporâneo? Menos


vibrantes: dormentes, an-estesiados, ou seja, sem estesis ou
movimento. Menos totalidade: cindidos, tornados objetos submetidos
à racionalidade ela própria moldada e controlada por padrões
externos. Menos imbricados no mundo: fechados em nós como
partes-extra-partes, mais e mais naturados, objetos feitos de fora,
produzidos em série nos espelhos das academias, nas vitrines da
moda, no jogo das imagens reais ou virtuais, que cooptam e
banalizam a invenção transformando a criação em produto
serializado, serial-killers dos corpos vibrantes. Uma espécie de morte
em vida.
Como fazer frente a esse tipo de vida morta?
A morte de Cara de cavalo, um bandido do morro da Mangueira, em
meados dos anos 60, movimentou Helio Oiticica na invenção de uma
obra-homenagem, um de seus bólides, que nomeou Cara de cavalo.
O mergulho na comunidade da Mangueira atraiu seu olhar para uma
poética da ludicidade e da alegria do corpo que dança, da construção
coletiva, da liberdade lúdica que implica o corpo-no-mundo-com-o-
outro. Diante da revolta do próprio artista com a desigualdade social
e os falsos valores “que pregam o bem-estar, a vida em família, mas
que só funcionam para uma pequena minoria” (OITICICA, 1986, p.
82), o bordão que ecoava dele era “Seja marginal, seja herói”. O
heroísmo do marginal está em praticar uma “antimoral” (op.cit),
situar-se à margem. A obra de Oiticica é um elogio ao herói solitário
e morto por sua radical e trágica não-submissão à ordem instituída.
Na obra-homenagem de Helio, há uma denúncia contra a miséria, a
injustiça social, a repressão. E uma ode à subversão. “Estão como
que justificadas todas as revoltas individuais contra valores e padrões
estabelecidos”, afirma (OITICICA, 1986, p. 81). O artista expressava
na homenagem a Cara de cavalo sua crença absoluta na adesão do
estético e do ético pela cola da criação e da transgressão. No limite
da auto-destruição, estamos diante da morte como conseqüência
(trágica) de uma radical tentativa de afirmação de vida.
Dialeticamente opostas, uma vida morta e uma morte viva nos
convidam a pensar uma psicologia a serviço da restituição da vida.
Que reacenda os corpos, quase sempre mortos-vivos encenando a
tragédia da imagem simulacro. Uma psicologia que restitua o que há
de heróico na transgressão. Que convide ao diálogo e ao coletivo
como instância legítima de vida. Vida que cria, transgride e é
legitimada nos olhares outros do coletivo.
A poesia, a terapia, a arte e a filosofia aqui trazidas, convergem na
ênfase na experiência expressiva, na direção ao âmbito de um eu
posso. Baseados na compreensão de que a criação é experiência-
corpo, trabalho de produção de sentidos, instituição, propõem um

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tipo de diálogo – do escritor com o leitor, do participante com a obra,


do cliente com o terapeuta – que seja “invenção comum de verdade”
(DUPOND, 2010, p. 31), processo que ultrapasse a alternativa entre
passividade e atividade, fato e essência, natureza e cultura.
Tal diálogo envolve gesticulação corporal, expressão e linguagem,
fala falante, palavras e gestos de um que convocam o outro pelas
discrepâncias, lacunas, desvios e diferenças. Processos de
descentramento e criação articulados por um diálogo intercorporal,
como unidade básica da vida que se faz e refaz. Ao voltarmo-nos
para a ampliação da capacidade de awareness, estamos baseados na
proposta de que o fenômeno originário é a experiência, tal como
compreende Merleau-Ponty em seus últimos escritos, quando
radicaliza a idéia de que as essências estão subordinadas à
experiência. Essências e fatos são inseparáveis, a experiência como
variação e a essência como invariante são dimensões que não se
pode separar. Para Merleau-Ponty, tal como afirma Dupond (2010, p.
25), “todo fato é internamente estruturado ou armado por uma
essência selvagem, regra invisível da visibilidade, da generalidade ou
do sentido”.
Na neurose a experiência está soterrada pelos conceitos e idéias,
falsas essências. O corpo, anestesiado e encouraçado (Wilhem Reich),
docilizado e feito máquina (Michel Foucault), seja autômato ou
sintomático, expressa e torna visível tensões e conflitos envolvidos
nas relações com o mundo sócio-histórico. Na neurose há um
impedimento do fluxo espontâneo do excitamento, em função desses
conflitos.
Na situação terapêutica visamos, então, concentrarmo-nos no corpo
sensível e nos sinais do excitamento que aponta para a direção
daquilo que representa vitalidade, sinais que dão indícios da
necessidade dominante, da força de vida, da essência, do sentido de
ser. Aquilo que, de modo neurótico, está impedido, mas que não está
morto.
No morto-vivo, decerto, ainda há vida, ainda que como um rasgo ou
ponto, débil sinal que, muitas vezes como derradeira tentativa, leva
alguém a buscar a terapia. Reconhecer esse sinal, gesticulação
mínima, imagem quase toda borrada, requer um olhar aberto,
distraidamente atento, que seja não intelectualidade, mas experiência
estética, atitude que aqui chamamos marginal, atitude de espera,
certa lentidão.
Diante da situação contemporânea pergunto se isso seria suficiente.
Pergunto sobre a existência, no contexto atual, de fatores limitantes
ou condicionantes da possibilidade de responder à exigência ek-
stática de um novo recomeço. Uma prática psicológica, compreendida
em nossa perspectiva, se constrói e reconstrói em uma via de mão
dupla, no mundo, precisa ser um tipo de práxis que produza gnose.
Faz-se necessário dirigir nosso olhar para o mundo em sua dimensão

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sócio-histórica para prosseguir em nossa reflexão. Traçemos, então


alguns outros cenários.

3.2 Cenário 2: da psicologia tal como é vista no mundo


contemporâneo

Em nossos tempos a psicologia está afirmada como ciência e práxis.


No imaginário social o psicólogo ocupa lugares distintos, dos quais
destaco dois: o daquele que escuta, acolhe e compreende; e o do
especialista que sabe. O primeiro ocupa o lugar que se tornou vazio
no mundo da solidão e do individualismo onde ninguém escuta
ninguém; o segundo corresponde à demanda pelo saber científico e
objetivo de alguém que sabe o que eu não sei e vai me curar.
Os dois lugares não são excludentes e refletem um modo de pensar
contemporâneo construído ao longo do desenvolvimento da
psicologia. O primeiro reflete um modo de estar no mundo marcado
por individualismo, onipotência e auto-referência que gera um
movimento centrípeto na busca de uma subjetividade transparente a
si mesma. O segundo lugar do psicólogo reflete a predominância de
um tipo de lógica mecanicista e explicativo-causal, um pensamento
analítico que diante do sofrimento busca causas, origens,
explicações, esperando encontrar em um tipo de análise genético-
constitutiva a cura para o sofrimento. Ambos conduzem ao indivíduo
e ao psiquismo como instâncias legítimas do tratamento psicológico.
Mais que afirmada como práxis, há, em certas camadas da sociedade,
uma psicologização da existência. Jacó-Vilela e Rodrigues (2004)
discutem a divisão histórica da psicologia em duas vertentes: uma
que compreende a psicologia necessariamente intrincada com o social
e a vertente hegemônica, a psicológica, que acentua o indivíduo e a
psyché e que, no máximo, inclui a sociedade como coadjuvante. Para
essa vertente, “o social pode, em síntese, influenciar o psicológico,
mas não o produz nem o fundamenta” (op.cit., p.217). As autoras
discutem uma historiografia da psicologia no Brasil, mostrando que a
origem dos “estudos sobre o homem” é marcada por discursos
médicos que, “a posteriori serão reconhecidos como psicológicos”
(op.cit., p.219). O modelo médico cientificista e da especialização se
propaga na psicologia desenvolvida ao longo do século XX, afirmando
o indivíduo, seja na dimensão da interioridade, da consciência, do
inconsciente, ou mesmo do comportamento (op.cit). Fato é que o
psiquismo está na base e é o foco do trabalho clínico. A clínica inclui
as relações com o outro e com a cultura na constituição do
psiquismo, mas o tratamento é, via de regra, dirigido para o âmbito
de uma dinâmica intrapsíquica.
Vasconcelos (2009, p. 44) corrobora esta idéia quando discute as
características hegemônicas do modelo clínico liberal: “ênfase no
atendimento individual,(...) elaboração psicológica sustentada nos

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códigos culturais e linguísticos das elites letradas da sociedade (...) e


foco praticamente exclusivo nos processos psíquicos”.

3.3 Cenário 3: da psicologia em movimento

Uma parte da psicologia, por sua vez, movimenta-se para fora, um


movimento ex-cêntrico e ek-stático, atendendo à exigência de
recomeço e percebendo que o risco de reduzir o sofrimento ao
intrapsíquico é de transformar o espaço da psicoterapia em outra
forma de sofrimento. Diálogos e movimentos interdisciplinares
apontam uma tendência não-psicologizante, que não considera
possível, tampouco suficiente, uma psicologia sem sociologia,
antropologia, história, ciência política.
Há um descompasso entre a demanda instrumental que se faz à
Psicologia e esse projeto em progressão. Para compreender e superar
isso por meio de novas instituições de sentido para a práxis da
clínica, faz-se necessário, entre outras coisas, refletir sobre o
momento histórico da passagem do século XX ao século XXI. Já se foi
a primeira década do novo século. A crise do capitalismo globalizado
nos põe diante de um novo estado de coisas. Diante dos desafios que
representam as novas (e reedições das velhas) formas de relações,
subjetivação e sofrimento no mundo contemporâneo, a psicologia
clínica tem sido convocada a repensar seu projeto (BIRMAN, 1999;
FONSECA; ENGELMAN, 2004; ANDRADE; MORATO, 2004; DUTRA,
2004; COSTA; BRANDÃO, 2005; ALVIM, 2009).
Muito se tem discutido sobre o tema e sobre a necessidade de pensar
modelos clínicos ampliados na psicologia. Algumas propostas
centram-se no corpo e nos afetos. Franco e Galavote (2010) fazem
referência a algumas delas: A Clínica Ampliada (CAMPOS; AMARAL,
2007; CUNHA, 2005); Clínica Peripatética (LANCETTI, 2006); Clínica
do Desvio – Klinamen (BENEVIDES; PASSOS, 2001), Clínica do CsO
(MERHY, 2007). De acordo com os autores essas são algumas das
sugestões de um amplo mosaico de propostas que têm por objetivo
não apenas a discussão, mas, sobretudo, uma práxis voltada para o
cuidado em saúde. Os autores propõem a Clínica dos Afetos:
“Pensamos assim que a clínica do olhar deve compor com a dos
afetos operando sobre as diversas dimensões do corpo e produzindo
ao mesmo tempo a intervenção sobre os órgãos, e um processo
intenso de subjetivação pelos afetos” (FRANCO; GALAVOTE, 2010).

3.4 Cenário 4: da Gestalt-terapia

Na formulação da Gestalt-terapia que nasce em 1951 houve a


colaboração de um grupo de pensadores de diversas disciplinas:
psicanálise, psicologia da gestalt, sociologia, estudos orientais,
medicina, educação. Inaugura-se na psicologia um pensamento que

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considera o campo organismo/ambiente o ponto de partida e o foco


da psicoterapia. Dirigidos pelo interesse e foco na estrutura
organismo-ambiente, esse grupo formulou compreensões que
abrangiam e enfatizavam o embate entre as forças sociais e o
movimento centrífugo do organismo em direção à regulação.

Em toda e qualquer investigação biológica, psicológica ou


sociológica temos de partir da interação entre o organismo e
seu ambiente. Não tem sentido falar, por exemplo, de um
animal que respira sem considerar o ar e o oxigênio como
parte da definição deste (...). O significado da raiva
compreende um obstáculo frustrante; o significado do
raciocínio compreende problemas de prática. Denominemos
esse interagir entre organismo e ambiente em qualquer
função o ‘campo organismo/ambiente’, e lembremo-nos de
que qualquer que seja a maneira pela qual teorizamos sobre
impulsos, instintos etc., estamos nos referindo sempre a esse
campo interacional e não a um animal isolado (PERLS;
HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p. 42).

Quando dizemos que self é contato, que nos fazemos e refazemos a


partir do campo organismo ambiente, estamos considerando não um
sujeito psíquico, mas uma totalidade estrutural com dimensões
“sócio-culturais, animais e físicas” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN,
1997). O que equivale às três ordens da estrutura, tal como proposto
por Merleau-Ponty: ordem física, vital e humana ou simbólica.
Se falamos de um campo sócio-cultural, animal e físico a partir do
qual há produção de um ajustamento criador, podemos tomar como
referência a idéia de que o que faço (espontaneidade motora) tem
uma dimensão de ajustamento e outra de criação alimentadas por
uma dimensão física (materialidade) outra animal (vitalidade,
instintos, pulsões ou hábitos?) e outra sócio-cultural (capacidade
simbólica, representações, ideais sociais, crenças, moral)
entrelaçadas de modo complexo. Está em jogo uma proposta de
psicoterapia fundada na complexa imbricação de natureza e cultura.
Quando propõe que no processo de contato o sistema self de
contatos funciona no modo médio, indica uma posição filosófica e
epistemológica que postula – encontrando-se com as propostas de
Merleau-Ponty-, que a produção de sentidos seja instituição, noção
que implica o surgimento de algo que referenciará experiências
ulteriores. Ao contrário de um sentido que surge da minha
interioridade ou subjetividade como constituição, a instituição é um
sentido que me aparece por meio de uma situação – tempo-espacial
– que produz um movimento, apela ao futuro, ao porvir. “O tempo é
o modelo da instituição: passividade-atividade, ele continua”
(MERLEAU-PONTY, 2003, p. 5). A partir de seu aspecto
universalizante, continua o filósofo, instituição são “eventos-matrizes,
abertura de um campo histórico que tem unidade” (op.cit., p.44).

Estud. pesqui. psicol., Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 1007-1023, 2012. 1016


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A clínica como poiética

O método clínico da Gestalt-Terapia se desenvolveu em torno do


contato como movimento de desdobramento temporal - ajustamento
criador diante da diferença. Como discutimos, visa, partindo da
situação psicoterápica, ampliar a capacidade de awareness (sentir,
excitamento e formação de gestalten) propondo abertura e entrega
ao campo (sentir) para que o excitamento flua de acordo com o
campo ou situação de interação (forças presentes), haja um trabalho
criador e instituinte que permita a formação de gestalten no campo.

Na perspectiva da gestalt-terapia, não somos frutos de


determinações externas ou sociais, tampouco de
determinações psíquicas, mas nos fazemos e refazemos a
partir do campo organismo-ambiente, imbricados no mundo
com as coisas e os outros, sendo parte de situações
concretas e sócio-históricas. É a partir dessa condição
situada e intersubjetiva que criamos sentidos, significamos e
ressignificamos nossa existência e o mundo (ALVIM, 2010).

Importa-nos aqui ressaltar que a Gestalt-Terapia visa à totalidade


organismo-ambiente, concebendo um eu que se faz e refaz na
relação. Visa o corpo e o encontro com a necessidade mais genuína
naquele campo, parte da singularidade expressa naquela situação,
garantindo a possibilidade da diferença.
Ao pensar em uma clínica poiética, pretendemos provocar um
diálogo, um deslocamento e a busca de novos sentidos. Queremos
dizer com isso que buscamos um pensar sobre a clínica que não se
restrinja à gestalt-terapia, tampouco ao espaço do consultório ou à
clínica tradicional. Que não seja disciplinar na própria psicologia. Que
assuma a noção de clínica como Klinamen, ou seja, desvio de
direção. Que se possa expandir para as comunidades humanas em
todas as suas dimensões e singularidades.

4 Elementos para uma clínica poiética

Para o desenvolvimento da proposta de uma clínica como poiética


aqui delineada, coloca-se como requisito e fundamento encará-la
como ethos – tal como significava na Grécia antiga a natureza - lugar
de acolhida, morada, abrigo, onde nos sintamos con-fiantes diante do
outro diferente e a ele unidos por uma aisthesis, dada na experiência
da intercorporeidade, ou seja, do “sentir com” (ALVIM, 2011).
Colocam-se então algumas dimensões elementares para nossa
proposta:
1- a proposta de escrever à margem visa, na dimensão ethos da
clínica, à abertura de espaço, acolhimento que se faz primeiro no
esvaziamento dos sentidos para que, daí, seja exigida a experiência
da criação e de ser;

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2- a tomada do corpo como sentir e co-presença permite a


experiência do “eu posso”; a experiência do outro é uma operação
empática corporal e sensível que permite a completude de uma
consciência de ser aqui-agora.
3- O corpo como sentir e co-presença permite, na experiência
empática da aisthesis, uma segunda abertura de espaço para a
experiência do “eu posso”;
4- o poder do “eu posso” não é um poder constituinte, mas
instituinte, ou seja,

a instituição oferece um sentido alargado para o que


Merleau-Ponty denominou “eu posso” na fenomenologia da
percepção: “relação com o espaço-tempo valorados, em
suma, como capacidade para o novo, o genérico, o particular
e o universal. Donde a insistência de Merleau-Ponty de que o
modo de ser da instituição não é o de um fazer eficaz ou
eficiente fundado numa relação entre meios e fins e numa
escolha, mas é uma operação simbólica ou um ato, que pode
ser designado como nascimento, entendido como instituição
de um porvir (Chauí, 2009, p.31).
5- Trata-se de uma práxis que permita o nascimento espontâneo do
sentido como instituição – atividade que ao mesmo tempo retoma o
passado e exige um futuro –, fala que uma vez proferida se faz ser,
criatura, presença inexorável que, sedimentada na história e na
cultura, nos garante o pertencimento com o outro a um mesmo
mundo.
O apelo ao poiético que aqui fazemos nos dá a pensar o terapeuta
como aquele que instiga a fala falante. O que remete à diferença. É
com esse horizonte que tomamos a noção de “desajustamento
criador” (Alvim, 2007), como um tipo de intervenção psicoterápica
que visa introduzir na situação uma novidade que lance terapeuta e
participante ao âmbito do invisível, ao espaço deserto das
representações, ao vazio fértil de significações. É diante do vazio que
se vislumbra adiante a possibilidade, quando se vive a experiência do
“eu posso”, vivência que alimenta a ação criadora e transgressora. O
vazio aqui discutido não tem significado psicológico, não é uma falta
nesse sentido. Como propõe Dupond (2010) a partir de Merleau-
Ponty, “são ocos que se produzem quando se deslocam as
discrepâncias de significado” (p.31).
As tarefas do desajustamento criador se inspiram na arte moderna:
descentrar o olho e desnaturalizar a percepção. Descentrar o olho
que é sempre seduzido pelas facilidades da paisagem conhecida, da
imagem fotográfica, como disse Merleau-Ponty. As representações e
teses científicas podem ser uma bela e sedutora paisagem,
entretanto, fixam o nosso olhar, impedem o exercício da crítica,
fazem adormecer o corpo e os sentidos. Desnaturalizar a percepção é
convidar ao trabalho perceptivo, passar ao terreno do desconhecido,

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do imprevisível que, partindo das entranhas da carne, nos obriga a


um engajamento no mundo para significá-lo. Inspirados nos
movimentos de vanguarda da arte moderna, fizemos, naquele
trabalho (Alvim, 2007), uma imagem metafórica do terapeuta como
um personagem daquela vanguarda, que aqui retomamos.
Consideramos o terapeuta um moderno inveterado. “Educador” dos
sentidos para que se produza o novo, o diferente, a fala falante, sua
música, às vezes, é atonal e provoca desagrado. Seu trabalho
envolve a dimensão satânica da experiência e da reorganização da
percepção. É aquele que busca o descentramento como forma de
afirmar a existência. Karl (1998, p. 18) adverte que o satânico da
experiência tende a ser associado à decadência e à podridão.
Acreditamos, ao contrário, que a demonização é um processo belo e
vital. A ação de produção do contraditório a partir do desajustamento
criador aciona os sentidos, a corporeidade e remete à experiência
estética. Ao considerar o espaço da psicoterapia como um campo de
experiência, espaço expressivo e instaurador de significados, estamos
no âmbito da experiência estética. Transformar a existência em
objeto estético significa reconciliar o autor com sua própria obra, que
agora pode ser vista em outra perspectiva, permitindo criação e
reconciliação com si mesmo no mundo. Até mesmo – e quase sempre
o é - quando essa reconciliação é transgressora: provoca choques e
transgride o que está dado.
O sentido ético de tal postura clínica
O desajustamento criador propõe a frustração do modo fixado de
realizar a experiência e o suporte para a criação de novos modos de
experienciar o contato. Se o terapeuta trabalha nessa perspectiva,
está implicado na situação e então precisa, ele próprio, saber
enfrentar o sertão desconhecido, ajustar-se criativamente às
novidades, abrir mão do controle. De acordo com seu estilo, saberá o
melhor modo de experimentar a experimentação. De acordo com
cada cliente, em cada situação.
Sem perder-se de vista, sem sair, ele próprio, da situação buscando
segurança neurótica na técnica. O grande mal acontece quando a
situação terapêutica representa, para o terapeuta, um “estado de
emergência crônico de baixo grau” (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN,
2007, p. 123). Então ele poderá tender à busca de uma falsa
segurança. Miller (2002) define comprometimento como ficar com a
experiência presente. Para ele, isso transcende um princípio técnico
ou um método, mas é “princípio estético de transformação” e
“posição ética” (p. 113).
Corroboro sua posição, pois penso que quando a Gestalt-Terapia
propõe ficar com a experiência e com a expressão singular do cliente,
ela assume uma posição ética oferecendo o espaço do ser e da
experiência do outro. Tal posição é também corajosa: ao mesmo
tempo em que o terapeuta deseja que o cliente vivencie sua

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espontaneidade e se abra criativamente para a novidade e o


desconhecido, ele próprio abre mão do “controle” da situação, se
lançando também para o âmbito do desconhecido.

5 Considerações Finais

Ao discutir o contra-efeito que o artista moderno amarga ao exercer


seu papel de vanguarda, Karl (1998) faz referência ao incômodo do
grande público com a música de Schoenberg: “A inclinação do público
favorecia claramente o neoclassicismo de Stravinsky, assimilável, e
se manifestava contra a atonalidade e os 12 tons de Schoenberg,
inaceitáveis para os ouvidos” (p. 18).
Os contra-efeitos que atingem nossa imagem diante do grande
público são uma questão essencial para pensarmos na psicologia
contemporânea e na demanda que a ela é dirigida. Os riscos da
psicologia psicologizante, da demanda instrumental feita a ela, se
colocam também para nós, que comungamos perspectivas
existenciais e fenomenológicas em psicologia. Para escapar de uma
psicologia psicologizante, de uma demanda instrumental, precisamos
da crítica permanente. A complexidade das forças políticas, dada
pelas transformações do modo de produção capitalista, requer do
terapeuta uma capacidade crítica da cultura e da sociedade, assim
como de sua própria práxis. Nesta perspectiva, se faz indispensável
uma postura à margem e que sustente os contra-efeitos. Faz-se
igualmente necessário um diálogo interdisciplinar que possa propiciar
práticas transdisciplinares, um movimento que avance do paradigma
da simplicidade, tal como propõe Edgar Morin e que possa avançar
para a complexidade, retomando os primórdios de uma prática clínica
ainda não atingida pela miopia da especialização. Para lidar com
algumas forças invisíveis, instituições e sedimentações do mundo
contemporâneo que agem como forças agenciadoras de subjetividade
(GUATTARI, 1992) é preciso levar a noção de situação às últimas
consequências, nos perguntando até que ponto, permanecendo
fechados em nossos consultórios e abordagens, concreta ou
metaforicamente falando, temos condições de integrar em nosso
diálogo movimentos vibrantes que, como navalha na carne, possam
instituir.
Na vida midiática do ano de 2011 o mesmo jogo de imagens que nos
mata em série, nos atinge em dois flancos: de um lado com a arte
viva e transgressora de uma Amy Whinehouse (que poderia ser Janis
Joplin, Cássia Eller, Elis Regina) nos sentimos inspirados e
confirmados em nossa dimensão poiética. De outro, sua morte trágica
reafirma, de modo novo, o heroísmo de Cara de cavalo, quando lança
no mundo, como instituição, um grito da dor pungente de todos nós,
dimensão universal e invisível, carne do mundo atravessada e

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sangrando, exigindo, implorando por novas criações de sentido que


possam retomar e ecoar sentidos para a vida.
Apelo que brota da angústia, a po-ética na clínica consiste em
nascimento, gênese do sentido como fala falante e desviante. Com
um movimento de zigue-zague, a clínica não anda em linha reta, nem
concebe cada um andando na sua linha, mas, ao contrário, é co-
presença e co-afetação que institui e garante o pertencimento a um
mesmo mundo. A po-ética é, assim, força mobilizadora que, diante
do abismo, nos impulsiona à aventura de voar.

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Endereço para correspondência


Mônica Botelho Alvim
Av. Pasteur, 250 – Pavilhão Nilton Campos. Campus da Praia Vermelha,
Cep. 22.290-240, Rio de Janeiro - RJ, Brasil
Endereço eletrônico: [email protected]

Recebido em: 09/11/2011


Aceito para publicação em: 11/10/2012
Acompanhamento do processo editorial: Ana Maria Lopes Calvo de Feijoo

Notas
*Doutora em Psicologia – Universidade de Brasília – UnB.
1
Artista brasileira que fez parte do movimento neoconcreto no Rio de Janeiro
(1959) e que exerceu um papel importante na formulação de concepções
instituintes para a arte contemporânea, como a participação do espectador e a
implicação do corpo do espaço da arte.

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2
O termo é utilizado na Gestalt-Terapia para indicar um tipo de relação sujeito-
mundo que funciona em um modo médio, ou seja, nem ativo, nem passivo. Provém
da lingüística, de um modo verbal médio que desapareceu da maior parte das
línguas, onde sobrevivem apenas os modos verbais ativo e passivo. Ver Perls,
Hefferline e Goodman (1997) , Robine (2006) e Alvim (2007).

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