HARTMAN, Saidiya - Vidas Rebeldes, Belos Experimentos

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Neste estudo inovador sobre a população

dos cinturões negros da Filadéfía e de Nova


York,cidades que receberam um intenso
fluxo migratório no pós-Abolição norte-
-americano, Saidiya Hartman se vale do
método da fabulação critica para dar voz
às personagens por ela estudadas,em sua
maioriajovens negras “em franca rebelião”.
Ao combinar um estilo literário a uma
extensa pesquisa de arquivos,documentos
e imagens, Hartman descreve o mimdo
através dos olhos dessas mulheres e se
n ÍV
propõe a “recriar a imaginação radical
delas, oferecendo uma nova mirada sobre
esse grupo social. Acostumadas a tf.' I

questionar desde cedo o valor de categorias ■tb-


jurídicas que até poucos anos antes as
reduziam à condição de escravizadas, essas
jovens se viram obrigadas a transformar
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tais categorias, tensionando o y
ordenamento social com a própria h ,
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experiência para que este comportasse 4
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suas variadas formas de vida. V I

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Na pesquisa rigorosa e sensível de I r
Hartman,a população negra deixa de ser ■1

definida por suas habitações, por vezes u ■ ●

insalubres,trabalhos subalternizados,
prisões arbitrárias e toda sorte de \ ■
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cerceamento ao exercício da cidadania, V 1

J
e passa a ser vista como capaz de modificar ● -.W
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o tecido social e cultural ao oferecer novas .«■

respostas e formas de resistência à equação


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insolúvel com a qual a sociedade a
condenava desde o nascimento.
O que a historiografia e a sociologia \
clássicas classificaram como
comportamentos degenerados passa a ser
visto como parte de um movimento cultural
T*^
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u
que transformaria para sempre a paisagem
y
urbana dos Estados Unidos. Se hoje
conhecemos o Renascimento do Harlem
é porque as jovens destas páginas fizeram
valer a liberdade recém-conquistada,
Vidas rebeldes, belos experimentos
I

F S F R

M
SAIDIYA HARTMAN

Vidas rebeldes,
belos experimentos
Histórias íntimas de meninas negras desordeiras,
muiheres encrenqueiras e queers radicais

Tradução
FLORESTA
Para Beryle e Virgílio Hartman,
de quem sinto saudades todos os dias

Para Hazel Carby, que abriu aporta


Ela era, como sabia, de umaforma estranhamente indefinida,
umfatorperturbador.

Nella Larsen,
Quicksand[Areia movediça]
i1 Uma nota sobre o método
14 Personagens

LIVRO 1: ELA CAMINHA A ESMO PELA CIDADE

23 A terrível beleza do gueto


33 Uma figura menor
57 Uma mulher mal-amada
63 Uma história íntima de escravidão e liberdade
95 Manual do trabalho doméstico geral
99 Um atlas da rebeldia
-139 Uma crônica de necessidade e desejo
171 Em um momento de ternura o futuro parece possível

LIVRO 2: A GEOGRAFIA SEXUAL DO CINTURÃO NEGRO


●'75 1900. O Tenderloin. 41®* Street West,241
■I9i
1909.61®* Street West,601. Uma nova colônia para pessoas de
cor, ou Malindy na Pequena África
207 Mistah Beauty,a autobiografia de uma mulher ex-de cor.
Cenas selecionadas de um filme nunca lançado de Oscar
Micheaux, Harlem,anos 1920
2i7 Álbuns de família,futuros abortados: uma esposa desiludida
se torna artista, Seventh Avenue,1890
LIVRO 3: BELOS EXPERIMENTOS
231 Revolução em tom menor
241 Rebeldia: uma breve introdução ao possível
243 A anarquia das garotas de cor reunidas na desordem
273 A vida interrompida de Eva Perkins
279 Revolta e refrão
305 O socialista dá uma palestra sobre amor livre
313 A beleza do coro
361 O coro abre caminho

366 AGRADECIMENTOS

369 NOTAS

4-12 CRÉDITOS DAS IMAGENS

416 ÍNDICE REMISSIVO


Uma nota sobre o método

Na virada do século 20,jovens negras se encontravam em franca re


belião. Elas lutavam para criar vidas autônomas e belas, para esca
par das novas formas de servidão que estavam à espreita e para vi
ver como se fossem livres. Este livro recria a imaginação radical e
as práticas rebeldes dessas jovens ao descrever o mundo através dos
olhos delas.É uma narrativa escrita de lugar nenhum,do não lugar do
gueto e do não lugar da utopia.
Quem se dedica a historicizar a multidão, as pessoas despossuí-
das, subalternas e escravizadas, se vê tendo de enfrentar o poder e
a autoridade dos arquivos e os limites que eles estabelecem com re
lação àquilo que pode ser conhecido, à perspectiva de quem importa
è~á quem possui a gravidade e a autoridade de agente histórico. Ao
escrever este relato da insurgência,lancei mão de uma vasta gama de
materiais arquivísticos para representar a experiência cotidiana e o
caráter agitado da vida na cidade. R^T^s vozes e uso as palavras
dessas jovens quando possível e habito as dimensões íntimas de suas
vidas. A ideia é transmitir a experiência sensorial da cidade e captu-
rar a rica paisagem da vida social negra. Com esse fim, empreguei
um modo de narrativa íntima, um estilo que coloca a voz que narra
e a personagem em uma relação inseparável, de forma que a visão, a
linguagem e os ritmos da insurgência modelam e arranjam o texto. As
frases e versos em itálico são interferências do coro. Esta história é
contada a partir do interior do círculo.

11
' Todas as personagens e os eventos apresentados neste livro são
/ reais; nada foi inventado. O que eu sei da vida dessasjovens foi apura
do em registros de cobradores de aluguel; pesquisas e monografias de
sociólogos; transcrições de julgamentos; fotografias do gueto; rela
tórios da delegacia de costumes, assistentes sociais e oficiais de con
dicional; entrevistas com profissionais da psiquiatria e da psicologia;
e autos de prisão — e em todos esses documentos elas são represen
tadas como um problema.(Alguns nomes foram alterados para pro
teger a confidencialidade e conforme exigência pelo uso de arquivos
do Estado.) Criei uma contranarrativa/íivre dos julgamentos e das
classificações que submeteram jovens negras a vigilância, punição e
confinamento, e que oferece um relato sobre os belos experimentos
— de fazer do viver uma arte — realizados por aquelas muitas vezes
descritas como promíscuas, inconsequentes, selvagens e rebeldes.
Trata-se de uma tentativa de recuperar o terreno insurgente dessas
vidas; de exumar a franca rebelião de dentro dos autos,de desassociar
a rebeldia, a recusa,a ajuda mútua e o amor livre de sua identificação
como desvio, criminalidade e patologia; é afirmar a maternidade li
vre (escolha reprodutiva), a intimidade fora da instituição matrimo
nial e as paixões queer e fora da lei; e iluminar a imaginação radical
e a anarquia cotidiana de meninas de cor* comuns, algo que não foi
apenas esquecido, mas que é quase inimaginável.
Vidas rebeldes elabora, amplia, transpõe e escancara documentos
de arquivo pará que forneçam um retrato mais rico da reviravortã^-
cial que transformou a vida social negra no século 20.0 objetivo é en
tender e experimentar o mundo como essas jovens fizeram,aprender
com aquilo que elas sabiam. Prefiro pensar este livro como o escrito
fugitivo da rebeldia, marcado pela errância que a obra descreve. Nes-

* A autora emprega o termo colored, utilizado por pessoas negras nos Estados Unidos
desde o século -ig e que foi repensado e debatido por pensadores e militantes ao longo
dos anos. No Brasil, do século ig até o início da retomada do termo “negro” na década
de -1930, a expressão “pessoas de cor”também foi utilizada por alguns grupos como
forma de minar outros termos entendidos como depreciativos.(Esta e as demais notas
ao iongo do texto são do tradutor,exceto se indicado de outra maneira. As notas
numeradas são da autora.)

12
se espírito,ter^sipnei os limites dos autos e dos documentos,especulei
sobre o que podería ter sido, imaginei coisas sussurradas em quartos
escuros e ampliei momentos de confinamento, fuga e possibilidade,
momentos em que a visão e os sonhos da rebeldia pareciam possíveis.
Poucas pessoas, na época ou agora, reconhecem jovens negras
como modernistas sexuais, amantes livres, radicais e anarquistas, ou
percebem que a melindrosa é uma pálida imitação da menina do gue
to} Elas não têm sido creditadas com nada: permanecem como mu-
lheres excedentes sem nenhum significado, meninas consideradas
impróprias para a história e destinadas a ser figuras menores. Este
livro é alimentado por um conjunto de valores diferente e reconhece
os ideais revolucionários que animam vidas comuns. Ele explora os
desejos utópicos e a promessa de um mundo futuro que residia no re
belar-se e na recusa da governança.
O álbum aqui montado éum arquivo do exorbitante, um livro dos
sonhos pela existência diversa. Na abordagem dessas vidas, uma his
tória do século 20 muito inesperada emerge,uma história que oferece
certa crônica íntima do radicalismo negro, uma história estética e
desordeira de meninas de cor e seus experimentos libertários — uma
revolução anterior a Gatsby.Em grande parte, a história e a potencia
lidade do universo delas permaneceram impensadas porque ninguém
podia conceber jovens negras como socialmente visionárias e como
figuras inovadoras no mundo em que esses atos tiveram lugar. As dé
cadas entre 1890 e 1935foram decisivas na determinação do curso dos
futuros negros. Uma revolução em tom menor se desdobrou na cida
de, e jovens negras foram seu veículo. Essa reviravolta, ou transfor
mação da vida íntima negra,foi consequência da exclusão econômica,
da privação material, do enclausuramento racial e da desapropriação
social; contudo, também foi alimentada pela visão de um mundo fu
turo e daquilo que poderia ser.
\ A ideia disparatada que anima este livro é a de que jovens negras
^/ foram pensadoras radicais que imaginaram incansavelmente outras
\ maneiras de viver e nunca deixaram de considerar como o mundo po-
I deria ser de outra forma.

13
Personagens

Menina #i Vaga pelas ruas do Sétimo Distrito


da Filadélfia e do Tenderloin de Nova
York, ano 1900. Ela é jovem, mas ain
da assim tào velha e rude.

Menina #a Presa em um estúdio num sótão na Fi


ladélfia, ano 1882.

As moças da vitrine Duas jovens passeando pela South


Street,fim dos anos 1890.

Empregada doméstica Aparece no decorrer do livro, de 1896


a 1935. Está sempre em busca de uma
rota de fuga.

As agitadoras Jovens presas no Lowell Cottage,Bed-


ford Hills, Nova York.

O coro
Todas as jovens sem nome da cidade
tentando encontrar uma forma de vi
ver e em busca da beleza.

14
A brigada do saco Mulheres que no mercado de escravos
de papel do Bronx esperam vender seu traba
lho para donas de casa brancas em
troca de salários de fome.

Mattie Jackson, Quinze anos, vinda de Hampton,Vir


nascida Nelson gínia, e recém-chegada a Nova York.

Victoria Earle Fundadora da White Rose Mission e


Matthews membra da Liga Nacional para a Pro
teção de Mulheres de Cor e da Asso
ciação Nacional de Mulheres de Cor.

W.E. B. Du Bois Jovem sociólogo e o mais novo doutor


de Harvard, conduzindo uma pesqui
sa social no coração do gueto negro,
1896-98.

Katherine Davis Diretora da College Settlement Asso-


ciation e primeira superintendente do
reformatório feminino do estado de
Nova York em Bedford Hills.

Ida B. Wells Radical,feminista,ativista antilincha-


mentos, escritora, oradora política e
encrenqueira.

Helen Pappish Filantropa abastada e reformadora


habitacional amasiada com Hannah
Fox,também membra da elite da Fi
ladélfia.

15
Mamie Shepherd,vulgo Uma beldade de dezenove anos que
Mamie Sharp aluga um apartamento de três cô
modos em um cortiço na Saint Mary
Street, Filadélfia.

James Shepherd Marido de Mamie.

MORADORES DA SAINT MARY STREET

Fanny Fisher Uma mulher de meia-idade que bebe


até cair.

Velho Fisher Marido de Fanny.

Mary Riley Umajovem mãe.

Katy Clayton Uma moça bonita que gosta de com


panhias masculinas.

Velha Clayton Avó de Katy.

Ike e Bella Denby Um casal briguento que bebe muito.

May Enoch Recém-chegada em Nova York.

Arthur Harris Marido e defensor de May.

Robert Thorpe Um homem branco que agarra May


Enoch e bate em Arthur Harris.

16
Gladys Bentiey Pessoa fanfarrona e mulherenga,uma
escultura africana, exibida, andari
lha gênero-queer,* tem amizade com
Mabel Hampton.

üackie Mabley Atua, é comediante, sapatào, fêmea


impostora e tem amizade com Mabel
Hampton.

Mary White Ovington Reformista social, uma querida ami


ga de W.E. B. Du Bois e cofundadora
da Associação Nacional para o Pro
gresso de Pessoas de Cor(naacp).

Edna Thomas Atua no palco e nas telas.

Olivia Wyndham Aristocrata inglesa que se apaixona


por Edna Thomas.

LIoyd Thomas Marido de Edna. Um homem bonito e


culto que gosta de citar poetas de ori
gem chinesa e é gerente de uma casa
noturna no Harlem.

Happiet Powell Dezessete anos,adora salões de bailes.

Eleanopa Fagan,vulgo Catorze anos, presa por prostituição


Billíe Holiday em uma batida policial no Harlem.

* Genden-queen strollen no original. Aqui o termo stnoller, literalmente pessoa


“andarilha”,faz referência à prática de caminhar por um lugar com o intuito,entre
outros,de adquirir conhecimentos sobre o iocal, as pessoas e os costumes, para
obter informações variadas e realizar articulações políticas, uma prática comum
no Harlem dos anos 1920 e -1930.

17
Esthep Brown Marafona e revoltada, insiste em ser
tratada como as meninas brancas.

Rebecca Waters Amiga de Esther Brown.

Grace Campbell Assistente social, oficial de condicional


e membra da African Blood Brother-
hood e do Partido Socialista.

Eva Pepkins Dezenove anos, operária, amante da


vida da rua e esposa de Kid Chocolate.

Aapon Pepkins, Boxeador do Harlem, ascensorista e


vulgo Kid Chocolate, sonhador.
vulgo Kid Happy

Shine Mito,arquétipo e avatar.

Mabel Hampton Corista, lésbica, intelectual da classe


trabalhadora e aspirante a cantora de
concerto.

Ella Bakep Andarilha do Harlem,conselheira co


munitária e pesquisadora de campo
da NAACP.

Mapvel Cooke Comunista e jornalista.

Hubept Happison Socialista, escritor e leitor palestran


te de esquina.

18
LUGARES

Ruas e vielas do Quinto e Sétimo distritos da Filadélfia; ruas do Ten-


derloin e do Harlem; o estúdio de um artista na Spruce Street; terceira
classe de um navio a vapor da Old Dominion; docas de West Side; va
gões segregados da Atlantic Coast Line Railway; quartos e quitinetes
por todo o cinturão negro,* clubes, bares e cabarés; Lafayette Theater,
Alhambra Theatre, Garden of Joy, Ciam House, Edmond’s Cellar; o
asilo de Blackwell’s Island, o reformatório feminino de Bedford Hills;
Coney Island; e teatros, cinemas, salões de baile, cassinos, botequins
dessegregados,** bares clandestinos e restaurantes chineses.

* No opigínal, Black Se/t.Termo histórico originalmente empregado em referência à cor


da terra em que se cultivava algodão no sul dos Estados Unidos na época da escravidão.
Com o tempo,o termo passou a ser usado para se referir aos locais de população
mqjoritariamente negra.
** Termo datado em referência a um bar ou qualquer estabelecimento do tipo que
admitia pessoas brancas e racializadas.

19
LIVRO -1

EDa caminha a esmo pela cidade


A terrível beleza do gueto

Você pode encontrá-la em meio a um grupo de belos bandidos e meni


nas ligeiras reunidos na esquina cantarolando o último rag^^ ou demo
rando-se diante da Wanamaker’s olhando com cobiça para um par de
sapatos finos dispostos comojoias atrás da vitrine. Observá-la na viela
com um jarro de cerveja que vem e vai entre ela e seus amigos,atrevida
e adorável em um vestido barato e fitas de seda; olhá-la com admiração
enquanto ela se pendura com metade do corpo para fora da janela de
um cortiço, absorvendo o drama do quarteirão e desafiando a força da
gravidade. Pise em qualquer um dos caminhos que cruzam a cidade em
expansão e você poderá encontrá-la perambulando. Forasteiros cha
mam de gueto as ruas e vielas que constituem seu mundo. Para ela, é
apenas o lugar onde vive. Você nunca pinta na quadra dela a menos que
more lá também,ou que tenha se perdido, ou que tenha saído em uma
noitada à procura dos prazeres oferecidos por gente de outra laia. Os
voyeurs,em suas expedições aos bairros pobres,se alimentam da força
vital do gueto, desejam e abominam essa força. Os cientistas sociais
e reformadores não são nem um pouco melhores, com suas câmeras e
suas pesquisas,ao encarar atentamente todos os estranhos espécimes.
Seu distrito é um labirinto de vielas fedorentas e becos escuros. É
uma cidade africana, o quarteirão negro, a zona nativa. Os italianos

* Gênero musical estadunidense que ganhou popularidade no fim do século 19 e início do


ao. Reconhecidamente negro,o rag ou ragtime foi um estilo predecessor dojazz.

23
e judeus, engolfados pela proximidade, desaparecem. É um mundo
escondido atrás da fachada da metrópole ordenada. Os prédios ain
da não arruinados e as casas decentes de frente para a rua ocultam o
cortiço da viela onde ela mora. Ao adentrar a estreita passagem do
beco,cruzamos o limiar de um mundo barulhento e desordenado, um
lugar definido pelo tumulto, pelo coletivismo vulgar e pela anarquia.
É uma pocilga humana povoada pelos piores elementos. É um reino
do excesso e de maravilhas. É um ambiente miserável. É a plantation
estendida para a cidade.É um laboratório social. O gueto é um espaço
do encontro. Os filhos e filhas dos ricos vêm em busca de significado,
1^0 vitalidade e prazer. Os reformadores e sociólogos vêm em busca dos
L verdadeiramente desfavorecidos, falhando em vê-la e a seus amigos
(/^ como pensadores ou planejadores,ou em notar os belos experimentos I
,'' P criados por meninas negras pobres.
0^istritOj„a quebrada, o gueto — é um ambiente urbano comum
onde os pobres se reúnem, improvisam formas de vida, experimen
tam a liberdade e recusam a existência subalterna predefinida para
eles. É uma zona de extrema privação e de um desperdício alarmante.
Nas fileiras de cortiços, as pessoas decentes vivem em paz com as de
vassas e imorais. O quarteirão negro é um lugar despojado de beleza e
extravagante naforma como exibe isso. Adentrar e seguir em frente é
o que estabelece os ritmos do cotidiano. Cada onda de recém-chega
dos muda o lugar — a aparência, os sons e os cheiros do gueto. Nin
guém se estabelece aqui, apenas vai ficando,espera por algo melhor e
segue adiante; pelo menos, essa é a esperança. Ainda não é um gueto
preto,^ mas em breve restarão apenas as pessoas negras.
No gueto, tudo está em falta, exceto a sensação. A experiência é
abundante. A terrível beleza está além do que qualquer um poderia es
perar assimilar, ordenar e explicar. Os reformadores tiram suas fotos
dos prédios, quitinetes, varais e puxadinhos. Ela passa despercebida
enquanto os observa dajanela do terceiro andar de seu prédio na viela
onde vive, rindo de sua estupidez. Eles tiram uma foto da Lombard
Street quando não tem quase ninguém lá. Ela se pergunta o que tanto
os fascina naqueles varais e puxadinhos. Sempre fotografam as mes
mas coisas. Será que as roupas de baixo dos ricos são assim tão me-

24
Ihores? Será que o algodão é tão diferente da seda e não se apresenta
tão bem como uma faixa hasteada pelas ruas?
Os forasteiros e os entusiastas falham em capturá-la, em com-
preendê-la.Tudo o que veem é uma típica viela de negros,cegos dian
te da troca de olhares e das manifestações de desejo que perturbam
a legenda de suas fotografias e insinuam a possibilidade de uma vida
maior que a pobreza, o tumulto e o levante que não podem ser cap
turados pela câmera. Falham em discernir a beleza e veem apenas a
desordem, sem captar todas as maneiras pelas quais as pessoas ne
gras criam vida e transformam a mera necessidade em um terreno de
elaboração. Uma mulher seminua, com um casaco por cima de uma
camisola delicada, está recostada na soleira da porta, oculta pelas
sombras do saguão de entrada, enquanto fofoca com sua namorada
de pé no limiar. A vida íntima se desdobra nas ruas.
Jornalistas às.Harper's Weekly golfam no impresso:“Acima dosju
deus,nas mesmas casas[de cortiço],em meio a cenas de uma sordidez
indescritível e de uma elegância de mau gosto, habitam os negros,le
vando uma vida despreocupada de prazeres, confusão, música, baru
lho e brigas violentas que fazem deles um terror para as vizinhanças
brancas e os senhorios”? Excitado com a visão de criados, zeladores e
estivadores vestidos com elegância, meninos ascensoristas com cha
péus estilosos se aprumando na esquina, e negros estéticos contentes
em gastar dinheiro com extravagâncias, ornamentos e brilhos, o so
ciólogo implora para que eles aprendam o valor de um dólar com seus
vizinhos judeus e italianos. Os negros devem abandonar os hábitos
lassos de vida, o deleite sensual e excessos imprudentes que são cos
tumes da escravidão. O presente-passado de uma servidão involun
tária se desdobra na rua, e o lar, completamente arruinado pelo navio
negreiro epelo arrebanhamentopromíscuo daplantation está mais
uma vez arruinado agora,escancarado ao acolhimento de estranhos.
Os sentidos são solicitados e oprimidos. Veja só. Deixe que seus
olhos capturem tudo: os belos bandidos alinhados no pátio como sen
tinelas; a disposição desmedida de três vasos de flores arranjados no
parapeito dajanela de um cortiço,lençóis,lenços com iniciais, meias-
-calças de seda bordadas e roupas de baixo de prostitutas pendura-

26
das em um varal de um lado ao outro da viela, comunicando arranjos
clandestinos, vidas rebeldes, questões carnais. Mulheres com embru
lhos de papel e barbante passam apressadas como sombras. A luz in
clemente às suas costas as transforma em silhuetas; formas escuras e
abstratas que substituem quem realmente são.
As filhas do vendedor de jornal à toa nos degraus que levam ao
seu apartamento no porão. A mais velha é magnífica,sentada entre os
escombros em seu chapéu e vestido de domingo puídos. A maisjovem
permanece misteriosa e indistinguível.
O sol se derrama pela escada, deitando-se sobre as meninas e ilu
minando a entrada para o cômodo pequeno e úmido, abarrotado com
as mercadorias do pai: pasquins, papéis, encomendas e objetos des-

27
cartados que foram recuperados para uso futuro. Ele vira as costas
para a câmera e se esquiva da captura.
O que você pode ouvir se parar para escutar: os sons guturais do
iídiche fazendo do inglês uma língua estrangeira. Os sons harmo
niosos e vociferantes da Carolina do Norte e da Virgínia se desman
chando na linguagem dura da cidade, transformados pelo ritmo e
pela cadência das ruas do Norte. A erupção de risos, a salva de mal
dições, os gritos que fazem as paredes do cortiço vibrarem e o chão
vacilar. Sim, oooh, amor, isso étão bom!—a doce música de um gemi
do longo que silencia quem ouve, os bisbilhoteiros querendo mais,
apesar de saber que não deveriam. A onda de impressões: a almis-
carada essência de corpos dançando bem juntos em um bar num po
rão; o roçar não intencional da mão de uma estranha na sua enquan
to ela atravessa o pátio; um vislumbre de jovens amantes aninhados
nas sombras profundas do corredor de um cortiço; o abraço violento
de dois homens brigando; o odor acre de bacon e bolo de milho fri
tando em um fogareiro; a madressilva da água-de-colônia de uma
doméstica; a fumaça de bordo-campestre subindo do cachimbo de
espiga de milho de um velho. Um mundo inteiro se espreme em um
pequeno quarteirão lotado de pessoas negras apartadas de quase
todas as oportunidades que a cidade oferece, mas ainda assim into-
xicadaspela liberdade. O ar está vivo com as possibilidades de sejun
tar, de se encontrar, de congregar. A qualquer momento,a promessa
so-
da insurreição, o milagre da revolta: pequenos grupos, pessoas
zinhas e estranhos ameaçam iniciar uma aglomeração para incitar
uma traição em massa.

Não há nenhum aviso visível nas portas das lojas barrando a entrada
dela,apenas a brutal rejeição do “não atendemos negros”. Quando se
sente corajosa, ela grita um insulto ou pragueja enquanto se retira
da loja sob os olhares de ódio da balconista e das clientes. Ela pode
se sentar onde quiser nos bondes e teatros, ainda que as pessoas se
encolham caso escolha se sentar ao lado delas, como se fosse con
tagiosa, e pode assistir ao vaudeville ou ir ao cinema no mesmo dia

28
em que as pessoas brancas,embora seja mais divertido e ela consiga
respirar melhor quando há apenas pessoas de cor, porque sabe que
nào vai ser insultada. Apesar das liberdades da cidade, a vida aqui
não é nada melhor que a vida na Virgínia, não há nenhum futuro
mais brilhante pela frente, nenhuma oportunidade para garotas de
cor a nào ser a vassoura e o esfregão ou abrir as pernas nos tempos
mais difíceis. Tudo o que é essencial — que escola ela frequenta, o
tipo de trabalho que pode conseguir, onde pode morar — é ditado
pela linha de cor,* que a coloca por baixo e todos os demais em cima
dela. Por ser jovem, ela tenta sonhar com a criação de outra vida,
uma na qual seu horizonte não se limite a um uniforme de empregada
e à casa suja de uma mulher branca. Nessa outra vida, ela não será
obrigada a engolir todas as merdas que ninguém mais aceitaria e
se fazer de agradecida.
Nessa cidade do amor fraternal, ela foi confinada a uma zona es
quálida que ninguém mais, a não ser os judeus, suportaria. Não se
trata de um berço da liberdade, de um território livre ou de um refú
gio temporário, mas de um lugar onde uma turba de irlandeses quase
espancou seu tio até a morte por um crime supostamente cometido
por outro negro; onde a polícia a arrastou para a prisão por ter sido
desordeira e indisciplinada ao mandar os policiais para o inferno^ de
pois de eles a terem arrancado dos degraus de seu prédio, dizendo
para ir embora dali. Na Second com a Bainbridge Street, ela ouviu
um homem branco gritar "Lincha ele! Lincha ele!” quando um ho
mem de cor, acusado de roubar um pão na mercearia da esquina,'^
passou correndo.
Quando ela chega no Tenderloin, o motim irrompe. Na 41®* com a
Eighth Avenue, o policial disse: “Sua vadia preta, saia já daí!”. Então
arrastou a mulher para fora, a espancou com seu cassetete e a pren
deu por desordem e indisciplina.®

* Categoria elaborada por W. E. B. Du Bois com a finalidade de descrever a desigualdade


racial como um fenômeno que opera em escala global. A linha de cor é um termo que
visa chamar a atenção para a existência de um coqjunto de mecanismos de exclusão de
populações não brancas que está na base da manutenção do poder político, econômico
e ideológico do grupo racial branco.

29
*

Paul Laurence Dunbar a avistou na Seventh Avenue e ele temeu pela


civilização estadunidense. Ao ver a garota entre a multidão de negros
desocupados e indolentes que apinhavam a avenida,ele se perguntou:
“O que fazer deles,o que se pode fazer por eles,se têm de ser impedidos
a inocular nossa civilização com o veneno de sua vida?”.® Eles não são
anarquistas; e ainda assim nessas multidões aparentemente incautas
e espalhafatosas reside uma ameaça terrível às nossas instituições.
Embora não tivesse lido Deus e o Estado ou O que éa propriedade? ou A
conquista do pão^ os perigos que ela e outros como ela representavam
se equiparavam aos perigos daqueles malditosjudeus,Emma Goldman
e Alexander Berkman.Tudo em seu ambiente tendia à degradação do
senso moral,todo ato engendrava o crime e encorajava afranca rebelião.
Dunbar lamentou:se ao menos pudessem ser impedidos de migrar em
bando para a cidade,“se a metrópole pudesse regurgitá-los para o sul,
o problema todo se resolveria’7 As restrições sulistas seriam melhor
para eles e para nós, melhor do que uma “falsa liberdade que floresce
nocivamente em licença”. Antes os campos, as humildes casas de es
pingarda, as cidades empoeiradas e o interminável ciclo de crédito e
débito, antes isso que a anarquia negra.

Na maioria dos dias, os abusos da cidade eclipsam sua promessa:


quando a água é cortada nas casas, quando mesmo em seu melhor
vestido ela não consegue deixar de se perguntar se está cheirando à
latrina ou se é evidente que suas calçolas estão maitrapilhas,quando
está tão faminta que o aroma de sopa de feijão que sobe da cozinha
do abrigo* enche sua boca de água, ela sai para as ruas, como se em

* Os abrigos ou settlements eram organizados pelo settlement movement,uma


iniciativa de reforma social da década de -1880 ambientada na Inglaterra e nos Estados
Unidos,cujo objetivo era estimular pessoas de classes mais elevadas a morarem em áreas
urbanas habitadas por pessoas empobrecidas,de forma a levar melhorias para essas
áreas e aproximar estratos socioeconômicos distintos em comunidades baseadas na
cooperação.

30
busca da cidade real, nào dessa pobre imitação. As pretas velhas em-
poleiradas em suasjanelas gritavam:“Garota,por onde você andou?”.
Cada nova privação levanta dúvidas a respeito de quando chegará a
liberdade; levanta dúvidas se a pergunta martelando em sua cabeça
—Eu posso viver?—um dia poderá ser respondida da maneira certa
ou apenas repetida na expectativa de algo melhor do que suportar a
dor, a esperança, a beleza e a promessa.

31
Uma figura menor

A pequena figura nua se reclina no sofá com arabescos. Olhando


para a fotografia,é fácil confundi-la com qualquer outra crioula^ as
sociá-la com todas as delinquentes da Lombard Street e da Middle Al-
ley, perdê-la de vista em meio às muitas mulheres de cor da cidade,
condenar e ter pena da menina meretriz. Todo mundo tem uma his
tória diferente para contar. Fragmentos de sua vida se entrelaçam
com as histórias de outras jovens parecidas ou que não se asseme
lham em nada a ela, histórias unidas por desejo, traição, mentira e
decepção. O artigo de jornal a confunde com outra menina,registra
seu nome de forma equivocada. Fotografias do cortiço em que mora
aparecem regularmente nos mandados policiais, mas mal dá para
vê-la ali, espiando dajanela do terceiro andar. A legenda não faz ne
nhuma menção a ela, e aponta apenas os riscos morais da quitinete,
as condições precárias dos banheiros e o barulho da saída de ar. A
fotografia que tiraram dela no estúdio do sótão é a mais familiar; é
como o mundo ainda se lembra dela. Se seu nome tivesse sido rabis
cado na impressão em albumina, havería ao menos um fato que eu
poderia informar com algum grau de certeza, um detalhe que não
teria que adivinhar, um obstáculo a menos para retraçar a trajetória
da menina pelas ruas da cidade. Se o fotógrafo ou algum jovem as-
sistente no estúdio tivesse registrado o nome dela, eu poderia tê-la
encontrado no censo de 1900, ou descoberto se ela alguma vez resi
diu no Abrigo para Órfãos de Cor, se dançou no palco do Lafayette

33
Theater, ou se foi parar no Asilo das Madalenas quando não tinha
mais para onde ir.
Os amigos dela se recusaram a dizer qualquer coisa para as auto
ridades; mas mesmo eles não sabiam como ela chegara no prédio na
periferia do Sétimo Distrito, nem o que aconteceu no estúdio naquela
tarde. A governanta irlandesa pensou que ela era sobrinha da cozinhei
ra negra, a velha Margaret,e que, negligenciando o trabalho como elas
costumavamfazer,tinha saído da cozinha para ir até o estúdio. A velha
Margaret, que não tinha nenhum parentesco com ela, acreditou que o
sr. Eakins tinha atraído a menina até o sótão com a promessa de algu
mas moedas, mas nunca chegou a confessar o que temia. A assistente
social mais tarde encarregada do caso da menina nunca viu a fotogra
fia. Culpou a mãe da menina e o gueto por todas as coisas horríveis que
aconteceram e preencheu as lacunas no formulário de histórico pessoal
sem jamais ouvir qualquer outra resposta. A idade do primeiro abuso
sexual foi a única pergunta sem resposta certa.
Partindo dessesfragmentos e peças,tem sido difícil saber por onde
começar ou até como chamá-la. A ficção de um nome próprio seria
uma evasão do dilema,e não uma solução. Apenas adiaria a pergunta:
Quem é ela? Penso que podería chamá-la de Mattie ou Kit ou Ethel
entre
ou Mabel. Qualquer um serviria, eram o tipo de nome comum
as jovens negras no início do século 19. Há outros nomes reservados
nomes im-
às meninas escuras: pitéu, princesa, dondoca e pequena
postos a meninas como ela que sugerem os prazeres proporcionados
por atos íntimos performados em quartos alugados e corredores mal
iluminados. E há os pseudônimos também,as identidades vestidas e
descartadas um “senhora” rapidamente afixado ao nome de uma
amante,ou um nome emprestado de uma atriz favorita para inventar
uma nova vida, ou a capa protetora oferecida pelo sobrenome da pri
ma morta de uma avó materna — tudo para se esquivar da lei, manter
seu nome fora dos registros policiais, deixar o passado em uma dis
tância segura, esquecer o que homens crescidos fazem com meninas
atrás de portas fechadas. Os nomes e as histórias correm juntos. A
vida singular dessa menina em específico começa entrelaçada com a
vida de outrasjovens que cruzaram seu caminho,compartilharam de

34
suas circunstâncias, dançaram com ela no coro, viveram no quarto ao
lado em um cortiço no Harlem,passaram sessenta diasjuntas no asilo
e traçaram um caminho errante pela cidade.
Sem um nome,há o risco de que ela nunca escape do esquecimento
que é o destino de vidas secundárias e de que seja condenada àque
la pose pelo resto da sua existência, permanecendo como uma figura
insignificante anexada à história de um grande homem, relegada ao
item número 308, Menina afro-americana, no conjunto de sua vida
e obra. Se eu soubesse o nome dela, podería localizá-la, descobrir se
teve irmãos,se a mãe era falecida, se a avó “morava” com uma família
branca, se o pai era um vendedor de jornais ou trabalhador diurno,
ou se ele havia desaparecido. Um nome é um luxo que ela não pode se
permitir — outras modelos não são nomeadas, mas podem ser identi
ficadas; ela é a única anônima.
Em uma fotografia tirada à força, o nome de uma menina não tem
mais importância que seu desejo por um tipo diferente de imagem.^
(A única coisa que eu sabia com certeza era que ela teve um nome e
uma vida que ia além do fotograma no qi^ foi capjturada.) Quando 0
escândiaío veio à tona e meninas brancas que viviam em lares impo
nentes com pais poderosos revelaram as coisas que o artista as forçou
a fazer, ninguém a mencionou,tampouco qualquer outra menina ne
gra. Anos depois, quando outro anatomista, outro homem da ciên
cia, foi surpreendido com uma provisão secreta de nus de colegiais
negras, ninguém se lembrou dela.^
Sem um nome,era improvável que um dia eu fosse encontrar essa
menina em particular.
O importante é que ela representava todas as possibilidades e pe
rigos à espreita de jovens negras nas primeiras décadas do século 20.
Ao ter um nome negado,ou,talvez,ao recusar a fornecer um,ela pas
sa a representar todas as outras meninas que seguem pelo seu cami-
nhõTÕ anonimato permite que êlãTassúmá òlügar de todsiras outras.
A figura secundária cede ao coro.É ela quem deve suportar toda a dor
e a promessa da rebeldia.

35
Nào era esse o tipo de imagem que eu procurava quando me pus a contar
a história da revolução e das transformações sociais da vida íntima
que se desdobrou na cidade-negra-dentro-da-cidade. Vinha buscando
fotografias de representação inequívoca daquilo que significava viver
em liberdade para a segunda e a terceira gerações nascidas após o fim
oficial da escravidão. Estava ávida por imagens que representassem
os experimentos de liberdade desenvolvidos na sombra da escravidão,
a prática da vida cotidiana e àa^fuga da subsistência alimentada pelas
liberdades da cidade. Belos experimentos de um viver livre e tramas
urbanas contra a plantation floresceram, mas ainda assim foram insus
tentáveis,frustrados ou criminalizados antes que pudessem criar raízes.
Procurei fotografias que exemplificassem a beleza e a possibilidade
cultivadas na vida de meninas ejovens negras comuns que alimentaram
sonhos daquilo que seria possível se conseguissem escapar do lar da
servidão. Esse arquivo imagético,encontrado e imaginado,forneceria
um antídoto necessário para as costas açoitadas, os olhos marejados,
os corpos despidos e marcados ou tornados grotescos para o prazer
da branquitude. Recusei os retratos e os álbuns de família das elites
negras que moldaram sua vida conforme as normas vitorianas,aquelas
tão bem descritas por W.E. B. Du Bois como empenhadas, como os
décimos talentosos,como brancos de sangue negro.
Procurei entre os retratos adoráveis que Thomas Askew tirou da
aristocracia negra, mas não encontrei as jovens cujas vidas se des
dobraram nas ruas, cabarés e corredores de cortiço, em vez de casas
enormes com salões decorados com pianos e poltronas bergère ador
nadas com sobrecobertas de renda.Jovens com vários amantes, mari
dos no plural e amantes mulheres também.Jovens que se fantasiavam
de Aida Overton Walker e Florence Mills, jovens que preferiam se
vestir como homens.
Procurei em imagens vernaculares, coleções fotográficas em ar-
quivos municipais, antologias fotográficas de pessoas negras, pes
quisas documentais do gueto, retratos de pessoas negras e fotos em
grupo exibidas em pavilhões negros e organizações socioeconômicas
em exposições internacionais e feiras mundiais. Passei por milhares
de fotografias tiradas por reformadores sociais e instituições de cari-

37
dade esperando encontrá-las, mas elas não apareceram. Desviavam o
olhar ou passavam correndo pelo fotógrafo; agrupavam-se no canto
das fotos, olhavam por janelas, espiavam pelas portas e viravam as
costas para a câmera. Recusavam os termos da visibilidade que lhes
eram impostos. Escapavam ao fotograma e permaneciam fugitivas —
silhuetas adoráveis e sombras escuras impossíveis de prender na rede
de descrição naturalista ou na taxonomia das imagens do gueto.
As mães jovens eram retratadas com mais frequência; eram obri
gadas a se sentar com seus filhos em quartos apinhados e em quitine-
tes a fim de receber a assistência que lhes prometeram: leite para as
crianças, uma visita da enfermeira, pois a mais nova estava doente,
ou um par de sapatos emprestado para poder sair e procurar trabalho.
As mães tinham que aparecer nos retratos da reforma, e essas ima
gens eram reunidas como evidências nos casos abertos contra elas
pelos assistentes sociais e sociólogos.
Jovens que não passavam tanta necessidade, que não se encontra
vam sobrecarregadas pelos filhos e tinham idade suficiente para dizer
Nemferrando e Sai da minhafrente escapavam da captura. As poucas

38
imagens de jovens entre os dezesseis e vinte e três anos são fotogra
fias em grupo tiradas com parentes ou vizinhos. Elas nunca pareciam
furiosas e rebeldes ou ligeiras nessas fotos. Apesar dos gestos fugitivos
de recusa —^ ombros caídos, olhares de esguelha e uma raiva radian-
te ,eram transformadas em clientes,tipos e exemplos; convertidas
em documentos sociais e pessoas estatísticas, reduzidas à excrescên-
cia humana do direito social e da ecologia do gueto, compadecidas
como jovens mães traídas, rotuladas como criaturas fortuitas de he
reditariedade questionável. Os barris de cinzas enfileirados na rua,
os prédios arruinados e os visitantes amigáveis dos pobres dominam
e infantilizam essasjovens.
Eu me cansei das inúmeras imagens de lençóis brancos pendura
dos no varal,torneiras vazando,banheiros imundos e quartos apinha
dos. Recuei diante da apresentação dos slides antigos e suas imagens
oscilantes de causa e efeito, antes e depois, o movimento imagético
impulsionado por narrativas moralistasjpbre„prpmjcuidade sexual,
tutela imprópria e os perigos do bar, da pensão e do saião de dança.
Os clichês visuais da danação e da salvação: o botequim dessegrega-
do, a sociabilidade dos vizinhos para além da linha de cor, o ato de
ficar de bobeira nos degraus do prédio, o casamento entre raças, ou
o cortiço-modelo ocupado por uma família monocromática perten
cente a uma mesma raça. As consequências eram flagrantes: por um
lado, o necrotério, a prisão e o asilo; por outro, o lar privatizado e a
soberania do marido e do pai.
As pesquisas e as imagens sociológicas me desanimaram. Essas
fotografias jamais compreenderam a bela luta pela sobrevivência,
vislumbraram os modos alternativos de vida ou iluminaram a ajuda
mútua e a riqueza comunal do gueto. Os retratos da reforma e as pes
quisas sociológicas documentaram apenas a feiura. Tudo de bom e
digno ficou nas ruínas dos modos de afiliação e formas de vida pros-
critos: o amor não reconhecido pela lei, lares abertos para estranhos,
a intimidade pública das ruas e as predileções estéticas e excessos ca
prichosos dosjovens negros.Os mundos sociais representados nessas
imagens foram alvos de extermínio e eliminação. Os reformadores
usavam palavras como “progresso” e “melhorias sociais” e “proteção”.

39
mas ninguém se deixou enganar. O gueto inter-racial foi arrasado e
mapeado em zonas homogêneas de absoluta diferença. Assim nasceu
o gueto negro.
As legendas transformam as fotografias em imagens morais, am
pliam a pobreza, arranjam e classificam a desordem. Quarteirão ne
gro. A jeggnda^ deveria re|jicar a imagem, detalhar o que reside em
seu fotograma, mas,em vez disso, produz o que aparece nele. Subor
dina a imagem ao texto. Às palavras conectadas à imagem — feias,
partidas,típicas — quase parecem fazer parte da fotografia,como os
lençóis amassados ou as tábuas que cobrem as janelas quebradas do
barraco,^legendas indexam a vida do pobre. As palavras policiam e
dividem: Quarteirão negro. Anunciam a ordem vertical da vida: Bens
danificados. Tornam o espaço doméstico disponível ao escrutínio e
à punição: Um cômodo de risco moral. Declaram o crime de arranjos
sociais promíscuos: Oito pessoas ocupam um quarto. Gerenciam e se
gregam a multidão mista e representam o mundo fidelizando a linha
de cor: Vista de meninas italianas. Meninos de boina e Dois negros na
entrada de um prédio em ruínas.
Tais fotografias tornaram impossível imaginar que a segregação
não fosse a seleção natural baseada em afinidade, e que as leis Jim Crow
nem sempre haviam prevalecido. Os reformadores sociais atacavam a
intimidade e proximidade inter-raciais; o problema da mulher e o pro
blema do negro se mostraram ao mesmo tempo e encontraram um alvo
comum na liberdade sexual das jovens. Os temores coincidentes da
promiscuidade, da degeneração e da intimidade sexual inter-racial re
sultaram em sua prisão e confinamento. As melhorias no gueto e a mira
nos vícios urbanos ampliaram a linha de cor na falta de um aparato le
gal ou lei estatutária para ordená-la e fazê-la se cumprir. Os reforma
dores progressistas e os funcionários dos abrigos foram os arquitetos e
projetistas da segregação racial nas cidades do Norte.
As fotografias coagiam as pessoas negras e pobres à visibilidade
como uma condição de policiamento e caridade,fazendo aqueles que
Q't^vpiforçadosa aparecer o fardo da representação. Nessas
imagens clássicas do negro urbano e pobre, indivíduos foram força
dos a simbolizar narrativas históricas generalizadas sobre o progres-

40
so ou o fracasso do negro, servir como representantes de uma raça ou
classe, incorporar e habitar problemas sociais e evidenciar falhas ou
melhorias. Essas fotografias ampliaram uma ótica da visibilidade e
da vigilância que tem suas origens na escravidão e na lógica adminis
trada da plantation.^(Ser visível era ser alvo de ascensão* ou punição,
de confinamento ou violência)
Algumas coisas não aparecem nas fotografias, como os três vasos
de flores alinhados no parapeito da janela, as colchas ahsurdas prote
gendo o forro de colchões, as bíblias embrulhadas em renda e calicô,
as ilustrações do catálogo de mala direta presas na parede. Os refor
madores e osjornalistas eram aficionados pela quitinete. Eles não sa
biam que o saguão de entrada, a saída de emergência e a laje eram um
trecho de praia urbana até os ricos adotarem a prática e virar moda

* Aqui a autora se refere a uma ascensão coagida. A ideia por trás disso é que as
pessoas negras teriam de se encaixar em moldes estabelecidos pela branquitude
para merecer a liberdade ou ser aceitas na sociedade, não por quem são, mas por
meio da vigilância e da punição.

41
dormir no telhado. Não sabiam que o corredor e a escadaria eram lo
cais de encontro, uma clareira no interior do cortiço, ou que se amava
na entrada dos prédios.^ Não há nenhuma fotografia do corredor, mal
iluminado pela luz tremeluzente de uma lamparina a gás que escon
de todas as coisas sem charme. Mesmo na luz do dia, as sombras são
muito escuras e muito densas para capturá-las. O corredor fornece
refúgio para o primeiro beijo de língua, um lugar para você se diver
tir com os amigos, o conduíte para a fofoca e a intriga. É nele que,
pela primeira vez, você aprende sobre o mundo e sobre o papel que te
atribuíram, então você v2bisQ2ifoda-se o\xfilho da puta na parede da
escadaria. É no corredor que as autoridades afixam as leis do cortiço
e as regras do conjunto habitacional, e as diretrizes poderiam muito
bem dizer: Negro» nem se dê ao trabalho de tentar viver. O corredor
é uma área interna, mas pública. A polícia invade sem mandados e
prende quem quer que tenha a má sorte de ser encontrado e captura
do. É a passagem que conduz aos dois cômodos onde você vive com a
sua mãe,seu pai,sua tia e suas duas irmãs.Sua mãe tenta transformar
esses cômodos sem vida num lar ao dispor o jogo de chá da sua avó,
que é elegante demais para a mesinha da cozinha; ojogo pertenceu à
família branca para a qual trabalhou. Ela disse que foi um presente,
mas uma vez deixou escapar que eles lhe deviam esse presente, ela
ganhou ojogo de chá e muito mais. Um calendário de uma loja maçô-
nica e uma litografia de Frederick Douglass escondem a rachadura na
parede de gesso. A cortina fina pendurada na janela filtra a luz fraca
do fim da tarde. O descanso cor de marfim cobrindo a tampa surrada
do fogão confirma que mesmo nos piores lugares é possível encontrar
a beleza. Todo esse esforço torna o lugar menos horrível. Ninguém
se esquece de que eles estão ali porque foram excluídos de todos os
outros lugares, então você se vira como pode e tenta prosperar num
lugar quase inabitável. É o cinturão negro: você está confinado aqui.
Vocês se amontoam aqui e constroem uma vidajuntos.
No corredor, você se pergunta se o mundo vai ser sempre tão es
treito quanto duas paredes que ameaçam esmagar e reduzir você a
nada. Então imagina outros mundos, às vezes nem sequer melhores,
mas pelo menos diferentes deste. Você e seus amigos tramam planos

42
de fuga e de abandono. Esse interior negro é um espaço para o pensa
mento e a açào, para o estudo e o vandalismo, para o amor e a dificul
dade. O corredor é um salão para aqueles que dão conta de viver em
cômodos escuros, apertados e sem ar suficiente e que veem a luz do
sol apenas quando saem para os degraus da entrada.
É feio, é brutal e é onde você vive. Não importa se você não ama
o lugar; você ama as pessoas que moram nele. É o mais perto de um
lar que você vai conseguir chegar, é transitório, um refúgio impos
sível para aqueles que são forçados a sair, empurrados,sempre des
locados. Eles vivem aí, mas nunca se estabelecem. O corredor é um
espaço agitado pela expectativa e tensionado pela força do desejo
não satisfeito. É a zona liminar entre o dentro e o fora para aqueles
que vivem no gueto; o reformista que documenta o habitat do pobre
passa direto sem notar, e falha em ver o que pode ser criado em um
espaço apertado,se não utn prelúdio^ uma profanação^ ou em conside
rar nossas belasfalhas e terríveis ornamentos? Esse corredor nunca
aparece na apresentação de slides. Apenas aqueles que residem no
cortiço sabem disso.
p. Q interior do cortiço nao seria fotografado ate décadas mais
tarde. Só em 1953® é que uma fotografia vai transmitir a experiência
de habitar por dentro daquelas paredes, oferecer um vislumbre dos
universos ali criados, capturar a falta de ar de um prédio de quatro
andares sem elevador, saber em primeira mão que o modo como vi
vemos e onde moramos não é um problema social. A nossa relação
com o mundo dos brancos é que é o problema. Mesmo na quitinete po
demos encontrar a alegria dos casais dançando embaixo de um varal
suspenso do teto,adolescentesjogando cartas e rindo com os amigos,
um homem bebendo chá na mesa da cozinha,a xícara fumegante bem
junto à bochecha,o toque da porcelana em sua pele.
Os modos de vida e a urgênciaferoz do agora podem ser percebi
dos nessas outras fotografias, as imagens perdidas e encontradas,
imaginadas e antecipadas, como cenas editadas de um filme inaca
bado. As ferrotipias tiradas em um piquenique da igreja. As Kodaks na
praia em Coney Island. Imagens de meninas negras ligeiras tentan
do abrir caminho num beco sem saída, uma série de fotos de jovens

43
negras em debandada para a cidade a fim de escapar da plantation
e na intenção de criar uma vida livre no contexto de uma nova clau
sura. Elas estão tão desesperadas para encontrar uma rota de fuga
da servidão quanto sedentas por novas formas de vida. Ao ver as
pessoas passearem pela avenida ou jogarem cartas na escada ou be-
berem vinho no terraço, elas se convencem de que os negros são o
povo mais bonito. A luxúria comunal da metrópole negra, a riqueza
do só nós, a cidade-negra-dentro-da-cidade transformam a imagina
ção daquilo que você pode querer e do que pode ser, encorajam você
a sonhar. Merda, nem importa se você é negra e pobre, pois você
está aqui e está viva e todas as pessoas ao seu redor a encorajam e
a convencem a acreditar que você é bonita também. Esse esforço
coletivo para viver livre se desdobra nos confins da paisagem car
cerária. Elas podem ver o muro ser erigido ao redor do gueto, mas
ainda assim querem estar prontas para a boa vida, ainda querem se
preparar para a liberdade.

A fotografia é tão pequena que é possível segurá-la na palma da mão.


Não é uma impressão em prata luxuosa, mas em albumina barata que
mede 3,65 x 6,20 centímetros;seu tamanho diminuto anuncia seu status
menor.É umajmagem forçada,^ umaimagem capturada sem a permissão
da modelo; destinada a classificar,isolar e diferenciar. Não é o tipo de
fotografia de que ela gostaria e não foi tirada a seu pedido.
A odalisca, uma imagem de um nu reclinado, combina duas cate
gorias distintas da mercadoria: a escrava e a prostituta. A rigidez do
corpo trai a lasciva postura reclinada, e o olhar vazio e duro da me
nina dificilmente seria um convite à admiração. Ela recua o máximo
possível da câmera no canto do sofá, como se à procura de um lugar
para se esconder. Seu olhar direto para a câmera não é um convite
ao espectador,um apelo por reconhecimento ou um olhar baseado na
reciprocidade. Esse olhar não assume nada que possa ser comparti
lhado entre aquela compelida a sair na foto e aqueles que a encaram.
O desejo íntimo é que o mal infligido não seja tão grande e que haja
uma saída desse e de outros quartos do mesmo tipo.

44
Que conhecimento de anatomia^kins ou seus alunos descobri
ram naquela tarde no estúdio? Já tinham visto corpos negros antes,
em
sua maioria os cadáveres do JefFerson Medicai College. Corpos de
pessoas negras e pobres que não foram reclamados por parentes, ou
cuja família não tinha dinheiro para arcar com um enterro adequa
do,ou corpos roubados do cemitério de pessoas de cor. Houve vários
escândalos. Ela era um corpo vivo, não um cadáver, mas sua imagem
não é como as outras fotos de crianças tiradas para corroborar ou
questionar teorias do desenvolvimento do esqueleto, ou para deter
minar o movimento da musculatura no fotograma.Espero que ele não
tenha colocado eletrodos nela para observar o movimento da massa
muscular. É improvável que houvesse alguém acompanhando a meni-
Que conhecimento do mundo ela adquiriu naquela tarde? Susan
Eakins estava presente? Foi ela que tirou a fotogr^a? Ela sussurrou
bobagens no ouvido da menina'? Ou a encorajou a ficar quieta e não se
mexer? Fez o mesmo com as sobrinhas? Auxiliou ou fez vista grossa
para o trabalho dele? É difícil olhar para a fotografia e não pensar a
respeito das imagens que a precederam e das que viriam em seu en
calço. In^gens persistentes da escravidão^° que pretendiam lembrar
o espectador do pode^que exerciam sobre tal corpo ameaça que
P®^^^^^sòBré dsüjeito capturado no fotograma,do tipo de coisas terrí
veis que podiam ser feitas com uma menina negra sem que ocorresse
um crime.
Foi possível fazer anotações sobre a imagem? Transformar mi
nhas palavras em um escudo gue poderia protegê-la, uma barricada
paradesviar o olhar e encobrirpijueJoLexposto?
Será que ela tremeu ao antecipar a pressão das mãos dele? Terá
o pintor pairado sobre o sofá e arranjado os membros dela? Seriam
as mãos dele grandes e úmidas? Teriam deixado um resíduo viscoso
na superfície da pele dela? Será que ela pôde sentir o cheiro de suor.
óleo de linhaça, formaldeído e roupas usadas por muitos dias? Será
que notou os chinelos, a camisa surrada e as calças imundas e então
ficou assustada? Teriam as outras modelos deixado sua marca na su
perfície irregular e na pátina oleosa do estofado, no cheiro rançoso e
almiscarado?

45
A menina que entrou no número 1729 da Mount Vernon Street náo
foi a mesma que partiu. Rumores sobre as outras garotas vieram à
tona: elas eram brancas, filhas da elite, então houve indignação pú
blica e o pintor caiu em desgraça. Elas tinham sido poupadas disto:
a odalisca, a pose de prostituta e de escrava. Não lhes foi pedido que
olhassem diretamente para a câmera, que admitissem o olhar dele e
fingissem que o convidavam. As outras meninas poderiam tê-la men
cionado se ela não fosse negra e pobre.
Ela deixou 0 estúdio da mesma forma que chegou: desceu os qua
tro lances de escada até o jardim retangular com a fileira de colocá-
sias, passou pela torneira, pelos quatro gatos e pelo perdigueiro,sain
do pela cerca de madeira e de volta para a 18**’ Street para então tomar
o caminho de casa. Terá sido capaz de se reestabelecer em sua vida
ou essa última violência deixou uma marca, um registro tão indelével
quanto a fotografia?
O olhar diz tudo sobre o tipo de propriedade feminina que ela é —
uma fêmea que não pertence à classe daquelas que merecem proteção
e, ao contrário da filha da burguesia, cuja sexualidade é propriedade
privada do pai e depois do marido; ela é uma propriedade destinada
ao uso público. O prazer fornecido pela agressão negada, pela ima
gem gráfica da personificação negra violada, provê um indício, uma
antecipação,de que o corpo dela,seu trabalho e seu cuidado,vão con
tinuar a ser tomados e explorados; o trabalho íntimo da doméstica
definirá sua sujeição. É uma imagem cruel e brutal, apesar de seu su
posto poder de excitar. Estaria o prazer de olhar baseado na recusa
da violência, na insistência do livre arbítrio da menina, no convite
a encará-la assinalado pelo seu olhar direto para a câmera? Seria a
pré-condição para esse prazer a indiferença, que é a resposta habitual
para a dor negra? Ou o prazer é alcançado por meio do cultivo do so
frimento e da imposição do dano?
A odalisca é uma imagem forense que detalha a violência pela qual
o corpo negro feminino pode ser subjugado.É uma imagem duracional
da violência íntima. Tanto tempo se acumula em sua pequena figura
que a menina podería muito bem ter séculos de idade, suportando o
peso da escravidão e do império,incorporando o trânsito das mercado-

46
rias, suturando a identidade da escrava e da prostituta. Tudo isso im
possibilita que ela seja uma criança. Ajo^rafia fabrica seu consenti-
mento^m_geoista. Gomo ela consente com a coesão? Como o prazer
obtido pela imagem da agressão sexual resulta do convite da menina?É
umaimagem que cheira à plataforma de leilão,à plantation e ao bordel.
É uma imagem que confunde nossos,esforç.os_pam çlassifiçá-la.
Pornografia?” É uma imagem fria que torna aparen
te aquilo que pode ser tirado e o que pode ser feito sob pretexto da
ciência e da observação. A violência alcançada e praticada se justifica
como o estudo do negro,como uma lição de anatomia. Como se pode
descrever a vida que oscila entre as categorias de domésfica, puta,
escrava e cadáver? E evidente que sua vida é descartável? Ou que ela
é subjugada por um regime de brutalidade tão normalizado que a vio
lência dele mal pode ser discernida? Como alguém pode tornar essa
violência visível quando ela garante o deleite, a soberania e a integri
dade física do homem e do senhor?
O corpo dela está exposto, mas ela retém tudo.“O corpo se reve-
la’V2 obedecendo à exigência, mas ainda assim “não se dá, não há ge
nerosidade nele”. É possível dar o que já foi tomado?

/ O que a fotografia de uma menina posando num sofá pode nos dizer
sobre a vida negra na virada do século,ou sobre a vida dejovens negras
em debandada para a cidade, desesperadas para entrar em uma nova
era?^® Como essa imagem pode antecipar os obstáculos à espera delas?
Como essa imagem pode iluminar o emaranhado de escravidão e de
liberdade e oferecer um vislumbre dos futuros que se desdobrarão?
Olhando para ela imobilizada no velho sofá de crina de cavalo,
presa como um espécime raro no padrão de arabescos, seus braci-
nhos bem juntos ao tronco como asas cortadas, penso nos tipos de
toque que não podem ser recusados. Em 188.^, u idade de consenti
mento era dez anos. Não havia nenhuma lei estatutária de estupro
para penalizar o que ocorreu no estúdio, e se uma lei dessas existis
se, uma menina negra pobre ficaria fora de sua cobertura. Quando
um estupro ou um abuso eram reportados à polícia ou à Sociedade

47
de Nova York para a Prevenção da Crueldade contra as Crianças, a
menina,seduzida ou estuprada,podería ser sentenciada a frequentar
uma escola correcional ou um reformatório,a fim de que fosse prote
gida ou punida por ser muito ligeira, muito madura ou muito sabida.
A sexualidade precoce das meninas que amadureciam rápido demais as
tornava vulneráveis ao confinamento e à prisão. A imoralidade prévia
impedia qualquer pedido de proteção pela lei. A inocência (ou seja,
virgindade) era a questão, não em que faixa etária uma menina tinha
idade suficiente para ser possm'da. A imoralidade prévia significava
que um homem podia fazer o que quisesse. Presumia-se que meninas
de cor eram sempre imorais.(Um dos argumentos contra a legislação
estatutária de estupro^"^ aprovada nos anos 1890, que elevava a idade
de consentimento na maioria dos estados para dezesseis ou dezoito
anos, era que meninas negras lascivas usariam a lei para chantagear
homens brancos. Meninas negras vieram antes da lei,^® mas não eram
protegidas por ela.)
Como a fotografia evidencia,o corpo delajá era marcado por uma
história de
corrupção sexual, já era tachado como mercadoria. Sua
disponibiüdafle ser usado e ferido foifundamental para o conjunto
dominante dos
mTanjos sociais, no qual ela era formalmente livre e
vulnerável ao prejuíao“triplo da violência econômica,racial e sexual.
Essa Violência necessária e rotineira definiu a sobrevlda da escravi-
dão e document
Ou o alcance da plantation no gueto.

Ao observar a fotografia, nos perguntamos se ela já foi criança. Aos


dez anos,elajá teria aprendido tudo o que precisava saber sobre sexo?
Aos doze, não teria nenhum interesse nisso?'^ Ela conhecia as mu
lheres que trabalhavam na rua, as senhoras nas casas de tolerância.
os homens gentis, os assediadores e ladrões que moravam na quadra
dela? Ela passou a entender as coisas muito cedo por causa daquilo
quejá tinha lhe sido feito ou apenas por observar o mundo ao redor?
A violência foi experimentada em um estúdio no sótão ou na casa de
um vizinho irreparável? Nesse caso,de que forma teria determinado
o curso da vida dela? Essa violência teria eclipsado a possibilidade

48
de uma autonomia sexual ou marcado essa autonomia permanente
mente? Teria feito com que elajurasse quejamais amaria um homem
ou que buscaria sua proteção? Isso a levaria a ansiar por um toque
afetuoso, capaz de mitigar e retificar a longa história de violência
capturada em uma pose? Teria feito com que ela amasse com fúria
e imoderação? Essa violência a faria decidir que não queria ser uma
mulher, mas tampouco um homem?
18
Ao observar a fotografia, podemos discernir a dnfonia da raiva
residindo na figura capturada. É uma imagem que não posso nem
reivindicar nem recusar. Confesso que é um lugar difícil para se co
meçar, com a declaração de que a violência não é uma exceção, mas
define o horizonte da existência dela.É preciso reconhecer que nunca
fomos destinadas a sobreviver^ mas ainda assim estamos aqui. O ema
ranhado de violência e sexualidade,de cuidado e exploração,continua
a definir o significado do que é ser negra e mulher. Ao mesmo tempo,
tenho que ir além da fotografia e encontrar outro caminho para ela.
Como essa natureza morta poderia produzir uma imagem latente ca
paz de articular outro tipo de existência, uma imagem fugitiva que
transmita a revolta interna? O que constaria em um filme sobre a vida
de uma jovem negra no interior do cinturão negro? O cortiço. A tina.
O salão de dança. A casa dos sonhos. Onde começaria? Em Farmville,
Virgínia? No porão do navio que transportou sua bisavó das Bermudas
para Norfolk? No vapor que a conduziu até a cidade de Nova York? E
como terminaria? Com ela dançando no Edmond’s Cellar,ou cantando
na Ciam House,ou limpando quartos no Hollywood Hotel,ou esperan
do por uma diária no mercado de escravos do Bronx,* ou contando os
dias para o término de sua sentença, quando ela recebería seus docu
mentos de soltura de presente? Seriam as imagens sequenciais de sua
vida terríveis, adoráveis ou desoladoras?
Nas imagens dela com os amigos num piquenique da igreja na cos
ta de Jersey ou abraçando a namorada embaixo do calçadão de Coney

* Como era chamada uma área no Bronx, Nova York,em que mulheres negras permane
ciam à espera de serem contratadas por diárias num contexto de grave desemprego
causado pela crise de igag.

49
Island, captamos um vislumbre dessa outra vida, ouvimos os ritmos
secundários que desafiam a lei social e escapam ao senhor, ao Estado
e à polícia, ainda que apenas por uma tarde, alguns meses,em seu dé
cimo nono ano. Nas imagens antecipadas, mas ainda nào localizadas,
podemos vislumbrar a terrível beleza das^vidas rebeldes.Em tais qua-
dros, é fácil imaginar a pos§íyglJiistórí^3/ae uma menina negra que
talvez siga por outros caminhos. Discernir um indício de possibilida
de,sentir a ânsia por aquilo que poderia ser. Foi a essa imagem que eu
tentei me agarrar.

Depois de passar um ano olhando para uma menina de cor posando


nua em um velho sofá de crina de cavalo, decidi retraçar seus passos
pela cidade e imaginar suas muitas vidas. Seguindo as pegadas dela e
de outrasjovens negras na cidade,tracei um caminho pelos cinturões
negros da Filadélfia e de Nova York,as vizinhanças e quarteirões negros
apelidados em homenagem aos seus habitantes,Little África[Pequena
África]e Nigger Heaven [Paraíso Negro],ou conforme suas aspirações,
a Meca e a City ofRefuge[Cidade do Refúgio]. Desenhei as vias erran
tes e as linhas de fuga que nas décadas de 1890 a 1935 delimitariam as
fronteiras do gueto negro. No fim,isto não se tornou a história de uma
única menina,mas uma biografia serial de uma geração,um retrato do
coro, uni filme da rebeldia. ^
Por décadas fiquei obcecada pof^fí^ras anônima^e muito do
meu trabalho intelectual se dedicou a reconstruir a experiência do
desconhecido e a recuperar as vidas menores do esquecimento. Essa
foi a minha maneira de retificar a violência da história, compondo
‘ uma carta de amor a todos aqueles que foram prejudicados e, sem
estar totalmente ciente disso, lidando com o inevitável desapareci-
i mento que me esperava. A revolta que experimentei ao olhar para a
fotografia dela me convenceu de que eu tinha que ir adiante, ainda
que duvidasse de que algum dia poderia encontrá-la. Eu a vi de uma
forma diferente das outras. Ela foi uma menina situada no limiar de
uma nova era, uma era definida por extremos —o nadir da demo-

50
cracia e a era progressista. O período foi caracterizado por guer
ras imperiais, por uma epidemia de estupros e linchamentos, pelo
surgimento de aparatos de segregação racial legais e sociais e por
leis raciais antinegros que inspiraram as Leis de Nuremberg nazis
tas. Rebeliões raciais varreram o país. Ao mesmo tempo,reformas
legislativas e sociais tentaram proteger os vulneráveis das preda-
ções capitalistas e do livre mercado, bem como de seus resultados
necessários: pobreza, desemprego e violência social. Ativistas po
líticos e militantes negros radicais lutaram contra o renascimento
do racismo que tomou a nação e contestaram a cidadania prejudi
cada e a ausência de direitos que definiam a condição negra. Clubes
de mulheres* concentraram sua atenção na situação de meninas e
mulheres negras, com a determinação de protegê-las, defendê-las,
ascendê-las e de erradicar os hábitos imorais, que eram o legado da
escravidão.
Eu não a vi como uma figura trágica ou arruinada, mas como
uma menina negra comum; e como tal, sua vida foi moldada pela
violência sexual ou pela ameaça dessa; o desafio era descobrir como
sobreviver a isso,como viver no contexto de tamanha brutalidade e
prosperar na privação e pobreza. O estado de emergência era a nor
ma,e não a exceção. A única diferença entre essa menina e todas as
outras que cruzaram seu caminho e seguiram em seu encalço é que
havia uma fotografia insinuando que algo aconteceu, permitindo
que a violência cotidiana adquirisse o status de um evento, a ima
gem forense de um ato de violência sexual que definitivamente não
foi julgada como um crime.

Eu a segui de Filadélfia até Nova York,as maiores cidades negras ao


Norte, cambaleando pelas ruas do Sétimo Distrito, passando pelo

* Club women no original. Referência a um movimento estadunidense iniciado no


século ig que compreendia grupos de mulheres dedicados a educação,serviços
comunitários, questões sociais e políticas públicas.

51

L
Tenderloin e em seguida pelo Harlem.Eu a notei em todos os lugares
— na esquina, no cabaré, no calçadào de Coney Island, no coro; às
vezes falhei em notá-la. Em outras,os astros e as celebridades a ofus
cavam quando ela era admitida em sua companhia. Ela me lembrou
vagamente da primeira menina que encontrei, e se eu não soubesse
sobre o sótão ou que eia foi forçada a dormir em um caixote de car
vão ou que eia foi estuprada pelo tio ou agredida por um vizinho ou
brutalizada por um empregador,jamais adivinharia só de olhar para
ela. Foi um período em que os negros eram o povo mais bonito,e isso
não era menos verdadeiro no caso dela. Até seus detratores admitiram
isso com relutância.É difícil explicar o que há de belo em uma menina
de cor tão comum e sem nenhum talento excepcional, um rosto difícil
de discernir na multidão, uma corista mediana não destinada a ser
uma estrela, ou sequer a heroína de uma trama feminista. De algum
modo,é reconhecer o óbvio, mas aquele que é aceito com relutância:
a beleza do cotidiano negro, a beleza que anima a determinação de
viver livre e que reside nela,a beleza que impulsiona os experimentos
de uma vida contrária. Isso inclui o extraordinário e o mundano, a
arte e o costume do dia a dia. Beleza não é luxo; ao contrário, é uma
forma de criar possibilidade no espaço da clausura, uma arte radical
da subsistência, o acolhimento do que é horrívei em nós, uma trans
figuração daquilo que é dado.É um desejo de adornar,uma tendência
ao barroco e o amor pela abundância.
Ao buscá-la,logo encontrei todas as outras figuras que pairavam
em torno dela sociólogos, reformadores habitacionais, oficiais
de condicionai, membras de clubes de mulheres, assistentes sociais,
oficiais da polícia de costumes,jornalistas e psiquiatras — todos in
sistindo que suas visões sobre ela eram a verdade. Uma dessas pes
soas estava sempre na minha frente, bloqueando o meu caminho,
onde quer que eu a encontrasse. Nenhum deles acreditava que ela
florescería. Seus cadernos, monografias, autos e fotografias cria
ram as trilhas que segui, mas li esses documentos contra a corrente.
Çert^andp e rompendo coitrág~KísforíarquejÍes contaram a fim
de narrar arminha própria versão. Para tanto, précisei especular,
ouvir com atenção, observar a desordem e a bagunça do arquivo e

53
honrar o silêncio. Os documentos oficiais a transformaram em uma
pessoa totalmente diferente: delinquente, prostituta, negra media
na em uma mesa mortuária, criança incorrigível e mulher indisci
plinada. No quadro estatístico, na pesquisa social e na fotografia
do gueto ela parece tão pequena, tão insignificante. Tudo o mais se
assomava — a condição dos cortiços, os perigos do gueto, os ris
cos morais da quitinete, as ameaças apresentadas por tantos corpos
forçados a habitar os quartos abarrotados da pensão. Era mais fácil
para os profissionais imaginá-la morta ou desgraçada do que consi
derar a ideia de que ela poderia prosperar, que o acaso ou o acidente
poderíam permitir que florescesse. Tive que estar atenta para que
eu mesma não causasse danos. Apenas as coristas, sapatões, negros
estéticos, mulheres que amavam mulheres, bichas e anarquistas
apoiaram os experimentos de sua vida livre. Ela foi o anjo vingador
deles. Apenas os rebeldes apreciavam sua conduta desordeira e seus
hábitos bárbaros, bem como o desejo de criar uma vida do nada;
apenas eles poderiam discernir a bela trama contra a plantation que
ela empreendia dia a dia.

Os homens da mudança encontraram as impressões em albumina em


meio ao lixo da casa abandonada. Eles podem ter se animado com a
fotografia de uma menina de cor nua em um sofá de arabescos e sem
se preocupar nem um pouco se elajá era maior de idade. Uma criança
pré-púbere sem peitos,de quadris estreitos e coxas grossas capturada
em uma pose de prostituta e de concubina era um estímulo tão bom
quanto qualquer outra imagem indecente. Quando o prazer cedeu à
indiferença,a fotografia foi descartada ejogada em uma pilha com os
outros escombros do estúdio.

Não é o tipo de fotografia que a garota teria desejado. A imagem não se


parece em nada com ela. Os olhos estão opacos e vazios; duros como os
das garotas que trabalham na Middle Alley. São olhares que antecipam
o tempo e a experiência?'^ Para evitar que o fotógrafo se aproximasse

54
mais,ela tentou expressar um olhar do tipo fique-longe-de-mim,eu-te-
-desafio, um olhar de sílex, nào o olhar de uma prostituta que aborda
um cliente — Olá, senhor — e recusa — Isso eu nãofaço em um só
relance. Quando ela cruzou o caminho de Du Bois mais de uma década
depois,o anseio nesse olhar a trairía.

55
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Uma mulher mal-amada

Quando o condutor voltou a pedir que ela cedesse seu assento no


vagào das senhoras, ela se recusou.^ Ele nào disse que as outras pas
sageiras se opunham à companhia dela, simplesmente ordenou que
renunciasse ao seu assento e fosse para o vagão segregado. Até o
homem tentar tirá-la à força dali, as senhoras tinham assumido que
ela era uma empregada viajando com sua senhora, e assim estavam
confortáveis com o seu lugar no vagão da primeira classe. Só depois
que a disputa irrompeu e a mulher de pele escura insistiu que seu
bilhete de primeira classe lhe dava direito a um assento foi que as
senhoras brancas recuaram e começaram a gritar, ordenando “saia
daqui” porque não tinham o hábito de “compartilhar assentos com
negros”. Então elas ficaram chocadas com sua presença e com a
imposição de um contato tão íntimo. O tormento causado por sua
proximidade não foi aliviado pela estatura miúda da professora de
cor ela tinha pouco menos de um metro e cinquenta — ou por seu
refinamento evidente. A bela jovem de 21 anos estava trajada com
um elegante guarda-pó de linho. O rancor das mulheres e as amea
ças do condutor que pairavam em torno dela não enfraqueceram
sua determinação em seguir adiante na jornada de Memphis para
Woodstock, Tennessee; nem a levaram a duvidar de seu direito de
ocupar um assento pelo qual ela pagara. Os olhos do condutor, seu
tom grosseiro e em seguida suas mãos ásperas não foram suficien
tes para desalojá-la. Não, ela não sairia dali. Ele tentou arrancá-la

57
do assento confortável e acolchoado, mas ao agarrar seu braço, ela
cravou os dentes na mão fechada que a agredia e mordeu com toda a
força que pôde reunir.
Ficou orgulhosa com o fato de que foram necessários mais dois ho
mens para ajudar o condutor a destituí-la. Ela lutou como um tigre.
Os homens agarraram suas mãos e pés, arrastando-a pelo corredor e
rasgando seu casaco de viagem. Ela se segurou nos bancos,arranhou e
esperneou, mas havia muitos deles e apenas uma dela. As passageiras
brancas permaneceram em seus lugares e bateram palmas quando ela
foi expulsa. Não era uma senhora. Não era uma mulher. Era uma negra.
O vagão Jim Crow não tinha designação de gênero. Ida Wells escolheu
deixar o trem em vez de sofrer a humilhação do carro segregado, que
também era onde os homens brancos podiam fumar e beber. A condu
ta proibida na primeira classe era permitida no vagão de cor. Homens
brancos fumavam no vagão imundo,cuspiam no chão, bebiam, xinga
vam,liam revistas obscenas,encaravam com cobiça e molestavam mu
lheres de cor. Como umajovem lembrou:“Você ficava à mercê do con
dutor e de qualquer homem que entrasse lá”. Ida estava familiarizada
com “todas as terríveis tragédias sofridas por garotas de cor que foram
obrigadas a viajar sozinhas nesses vagões”.^ Esse havia sido o motivo
de sua escolha pelo vagão das senhoras.
Por sorte, não houve hematomas, olhos roxos ou costelas quebra
das. Para a srta. Jane Brown, outra mulher de cor que tinha sido reti-
I rada de um vagão da primeira classe anteriormente, a ação foi justiíi-
i cada após o ocorrido com a acusação de que “ela não era uma pessoa
respeitável”,® mas “uma cortesã notoriamente pública, dada ao uso de
. linguagem profana e a uma conduta ofensiva em espaços públicos.O
dano causado a Ida Wells foijustificado não por má reputação, mas por
seu status de “não exatamente humana”.'^ Uma senhorita negra e uma
vaca preta eram estranhamente equivalentes e indicativas da crise de
categoria que ela personificava. Que tipo de mulher ela era,se é que era
uma mulher? A questão não se mostrou menos presciente ou urgente
que antes. Um século depois, esse questionamento alcançaria propor
ções míticas: não sou uma mulber?^ O domínio da incerteza era tão
inescapável que não fazia tanta diferença que Sojourner Truth ainda

58
não tivesse dito essas palavras.* Como Ida Wells experimentou direta
mente, uma mulher de cor podia ser tachada de prostituta, xingada de
“mulata insolente e vulgar”® e ameaçada com castração.
Ao voltar para casa, ela decidiu contratar um advogado e enfren
tar a companhia ferroviária no tribunal. Ser obediente não estava em
sua natureza. Segundo sua própria descrição, ela era tempestuosa, ca-
beça-dura e obstinada,"^ o que significava que estava preparada para
confrontar os homens brancos e a lei, opondo-se a eles, ao mundo in
teiro se necessário fosse. Ida Wells não se colocaria em seu lugar nem
se prostraria diante da raça dominante. Ao compartilhar sua história
com o advogado,sua voz não falhou pela mortificação que o incidente
violento tencionou produzir;em vez disso,liberou sua intrepidez inata
e uma qualidade de coragem tão feroz e resoluta que a permitiu fazer o
que os negros “razoáveis” se negavam a fazer — confrontar, batalhar,
boicotar e se opor à supremacia branca em todas as frentes. Apenas
a pele a traía enquanto contava o que havia acontecido; sua pele for
migava enquanto se lembrava das mãos dos homens brancos em seus
braços e pernas,agarrando-lhe a cintura. O gosto amargo das palavras
presas na garganta poderia ter causado náusea ou levado uma mulher
mais frágil às lágrimas, mas ela manteve o controle.
O condutor e o carregador de bagagens poderiam ter feito coisa
muito pior, e a lei teria permitido. Ela sabia, em primeira mão,de coi
sas terríveis que aconteciam às mulheres negras. Naquele mesmo dia,
tinha lido no Appeal sobre o caso de uma mulher de cor que fora lin
chada em Richmond, Virgínia. Coisas terríveis ocorreram na família
dela também. Lembrava-se nitidamente de uma conversa entre a avó,
Peggy, e seu pai, James Wells, sobre o antigo senhor e sua esposa. O
pai era prole do senhor de escravos, uma propriedade, não filho. A avó
comentou que a sra. Polly, a antiga senhora, queria ver James e seus
filhos. A veemência da resposta de seu pai surpreendeu a jovem Ida:
“Não quero ver aquela velha enquanto eu estiver vivo. Nunca vou es
quecer como ela despiu e açoitou você no dia seguinte à morte do velho.

V.Referência ao discurso proferido em i8si por Sojourner Truth,“E eu não sou


uma mulher?".

59

L
e nunca vou visitá-la” As palavras duras de seu pai levantaram questões
que ela não ousou perguntar à avó, mas que logo encontraram respos
ta na violência sexual que tomou o Sul. No jornal The Free Speech, Ida
Wells escrevería histórias sobre estudantes, domésticas e professoras
que tinham sido estupradas, espancadas e enforcadas..^45“ mulheres da
raça não escaparam à fúria da turba.^ Ela inscrevería as atrocidades.
Faria um registro temporal das mortes. Denunciaria a oclocracia, os
linchamentos, a violência sexual e a lei do homem branco até as amea
ças de morte a forçarem a fugir de Memphis e ir buscar exílio no Norte.
Na sala de visitas de casas bem providas na Filadélfia e em Nova
York, ela trocou com outras mulheres negras histórias sobre os insul
tos, as propostas obscenas, os olhares odiosos, os olhos libidinosos, as
ameaças de lesões corporais graves. No Norte também não encontrou
nenhum refúgio. As próprias palavras “jovem de cor” ou “mulher ne
gra” eram quase termos de repreensão. Ela não estava em voga. Qual
quer homenagem no santuário dafeminilidade desenhava uma linha de cor
que a deixava etemamentefora desse círculo místico? Juntas elas recon
tavam essas histórias num tom cheio de cansaço do mundo, mas sem
constrangimento — eram tratadas com menos gentileza que um cão de
rua, com menos delicadeza que uma mula,eram brutalizadas e abando-

60
nadas pela lei. Então vinham as histórias^° que faziam o silêncio tomar
conta da sala: aquela mulher em Nova Orleans assassinada por viver
com um marido branco; a doméstica linchada por roubar uma Bíblia;
a mãe enforcada ao lado do filho pela acusação de sempre; a esposa do
agente dos correios, sra. Baker, que perdeu o marido e a filha pequena
para a turba, enfurecida porque um negro havia assumido o trabalho
de um homem branco;a menina de treze anos, Mildrey Brown,lincha
da em Columbia; Maggie Reese, de oito anos,estuprada em Nashville;
Lou Stevens, enforcada em uma ponte ferroviária pelo assassinato de
seu amante branco que havia abusado dela; e assim por diante. O re
gistro vermelho* nunca cessou. Mais de mil pessoas negras foram as
sassinadas em seis anos. E todas as coisas terríveis que ela e os outros
sobreviventesjamais esqueceríam, por mais que tentassem.
Enquanto bebiam chá e comiam biscoitos amanteigados,as mulheres
planejavam formas de evitar que tais coisas acontecessem,sonhavam co
letivamente com um país no qual pudessem ser cidadãs,pesavam os prós
e os contras da emigração africana, lamentavam os mortos. Ida Wells
descreveu as virtudes do Winchester e concluiu que a autodefesa era a
única forma de proteção concedida às mulheres negras.Era melhor mor
rerlutando contra a injustiça do que como um cão ou um rato na ratoeira. A
frase que ela escreveu sobre o heróifora da lei, ofilósofo de sótão Robert
Charles, bem podería ser aplicada a si. Idajá estava determinada a ven
dersua vida pelopreço maisalto possívelse ela fosse atacada.
O tilintar delicado da xícara de porcelana apoiada com gentileza
no pires, o tinir de uma colher de prata cuidadosamente colocada so
bre a louça Wedgwood pareciam anunciar —Ainda estamos aqui. Era o
murmúrio,a música que animava o discurso delas. Ainda estamos aqui.
Não permitiam que suas vozes falhassem nem que seus olhos brilhas
sem diante dos fatos, do cálculo brutal de vida e morte. Apenas o nós e
o ainda estamos aquié que lhes permitiam proferir uma atrocidade após
a outra sem sucumbir.

* Referência ao livro Red Record[Um registro vermelho] de Ida B, Wells,em que a


autora expõe o linchamento como uma prática recorrente voltada para a manutenção
da supremacia branca e para a limitação das oportunidades sociais, políticas e
econômicas das pessoas afro-americanas.

61
Uma históHa íntima de escravidão e iiberdade

Havia chegado a hora de Mattiiíí^iajar sozinha no navio a vapor


Dominion da Virgínia para Nova York seria sua primeira aventura.
Parecia que ela estivera esperando por uma eternidade quando sua
mãe mandou buscá-la, embora tivesse se passado apenas um ano. Só
depois que o navio já havia ido muito além do James River é que ela
pôde acreditar que estava a caminho.Tinha embarcado no menor na
vio auxiliar de Hampton Roads até Norfolk, e, finalmente, estava se
guindo para o Norte. Golfadas de ar salgado acalmaram a sensação de
vazio que oscilava no fundo de seu estômago. Em dezenove horas ela
chegaria nas docas de West Side, píer 26,North River,ao pé da Beach
Street. Píer 26 ecoava na cabeça dela como um refrão, como um rit
mo que competia com o vaivém do Atlântico, com os silvos e chiados
do gigantesco motor a vapor. Foi o que encorajou o devaneio que en
volveu Mattie durante toda a jornada e pontuou a lista de coisas que
estava feliz em deixar para trás — a fábrica de ostras, os campos de
tabaco e as cestas de roupa transbordando de roupas e lençóis sujos.
Todos os lugares que um dia foram preenchidos pelas histórias, men
tiras e risadas de seu pai ficaram vazios e mal-assombrados depois da
morte de Earl Nelson. Havia coisas das quais ela sentiria falta,a gran
de varanda da casa deles em Hampton. O cheiro de rosa e açafrão.
E o que mais? As pessoas, sentiria saudades da avó e do irmão mais
novo em especial. O resto tinha sido apagado pela expectativa e pelo
desejo. Ela não gritou no convés,“Maldita seja, Virgínia”, mas estava
muito feliz por ir embora.^

63
Até aquele exato momento,sua vida tinha sido restrita a um raio
de cem quilômetros, que incluíam a casa e a fazenda em Gloucester,
a escola de um cômodo, a igrejinha que sua família frequentava, e a
casa deles na cidade. Esperava que 294 milhas náuticas fossem uma
distância suficiente para criar uma nova vida. Mattie queria algo a
mais. Era simples assim, algo tão elusivo e vago quanto insistente.
Algo a mais nunca era listado entre as razões pelas quais as pessoas
iam embora, que incluíam apenas coisas terríveis e verificáveis —
o bicudo-do-algodoeiro, o linchamento, a turba branca, o trabalho
forçado,o estupro,a servidão,a escravidão por dívida; e ainda assim
o desejo incipiente, que você quer mas não pode nomear, um desejo
resoluto e teimoso por um outro lugar,outra forma ainda por se mos
trar mais claramente, uma noção do possível cujos contornos eram
confusos e amorfos, exercia uma força não menos poderosa e obs
tinada. Por que mais buscar e partir para um lugar onde você é uma
estranha,tolerada no melhor dos cenários, mas na maioria das vezes
indesejada e insultada?
A vastidão do Atlântico tornou evidente a vida restrita e dimi
nuta da qual Mattie fugia, uma vida em que suas únicas possibili
dades eram as mesmas que foram impostas para sua avó e sua mãe.
Ela também fora condenada ao trabalho servil sem ter sido treinada
ou atraída por esse trabalho. A casa não era melhor que os campos;
0 trabalho doméstico era tão desumano e impiedoso quando tirar
ostras da casca ou colher tabaco — o fedor de peixe ou as mãos gru-
dentas e amarelas de nicotina, as dores de cabeça e a náusea; ou o
toque indesejado, as palpadelas e apertadas e pegadas por baixo do
vestido dela. Era se submeter ou se arriscar a levar uma surra. Bun
da, mãos e habilidades eram propriedades da senhora e do senhor.
Por que fingir que se podia encontrar uma oportunidade dentro da
casa de gente branca ou mentir sobre os seus perigos? Quem não
odiava o trabalho doméstico? Nenhuma mulher de corjamais esque-
ceria que esse tipo de trabalho carregava a mácula da escravidão.
Não precisamos mentir sobre seus perigos. Todo mundo conhece
uma garota que foi demitida e mandada para longe antes de criar
barriga. A cozinha era o campo e o bordel?' Não precisamos adornar o

64
fato: mulheres negras ainda se encontram no lar da servidão.'^ Nem
Mattie nem sua mãe ou avó escolheram a cozinha ou a tina; elas fo
ram conscritas a esses lugares. A bordo de um navio a vapor rasgan
do as águas da costa Leste, Mattie seguia firme na crença de que
seguir em frente era a única forma de construir uma vida melhor, de
que a fuga era a precursora da liberdade.
Junto com a maioria dos passageiros de cor, Mattie foi despa
chada para o convés inferior,^ que eles dividiam com cachorros, ca
bras e galinhas.(Os poucos que podiam pagar ocupavam as cabines
da popa designadas para pessoas negras.) Mas mesmo a humilha
ção dos animais, dos dois banheiros imundos reservados para eles
e da corda que os separava do restante do convés podia ser supor
tada porque ela imaginava que a cidade de Nova York prometia a
libertação da linha de cor e acreditava, com teimosia e às cegas,
que tudo de terrível tinha ficado para trás, como acreditavam as
centenas de pessoas negras amontoadas ao seu redor, ansiosas para
desembarcar. Ela nada sabia sobre as revoltas que irromperam em

65
1900 e 1905, mas em 1915 ela experimentaria a ameaça e o perigo em
primeira mão.
Sua cabeça estava cheia de sonhos. Era 1913 e tudo parecia possí
vel. Ela fizera “a única coisa que parecia dar esperança” ® tinha saído
de casa. Era uma entre os milhares de jovens negros que debanda
vam da Virgínia e de outros lugares para Nova York. Só mais tarde
esses atos de fuga seriam reconhecidos como xirnsi greve geral Qontx2i
a escravidão em sua nova roupagem, como um movimento fugitivo
de uma vida sob 0jugo dos homens brancos. Quando Mattie Nelson
desembarcou no píer 26, estava toda sonhadora, pensando no que o
futuro guardariaJintre o amontoado de gente no cais, ela respirou
tranquila em sua própria pele, apreciando o autoesquecimento que
imaginou ser possível em um território livre.

Se Mattie tivesse chegado em Nova York uma década depois,Victoria


Earle Matthews estaria à espera dela no cais.® Imagino o encontro das
duas naquela manhã no fim do outono quando Mattie desembarcou.
Com sua mão enluvada estendida em uma saudação indiferente de
boas-vindas, Matthews teria se apresentado e então perguntado a
Mattie se algum amigo ou parente viria encontrá-la. O destino de ga
rotas desacompanhadas e deixadas à própria sorte não era agradável.
Tráfico de almas, um melodrama mudo, gravara permanentemente
uma imagem trágica de garotas ingênuas em busca de acomodações
ou trabalho que foram aliciadas para a prostituição. A moça seques
trada pelo traficante de pessoas não guardava nenhuma semelhança
com Mattie, a não ser sob o olhar de Victoria Matthews.(A única
mulher negra no filme é a empregada que limpa os quartos do bordel
e se mostra ignorante ou indiferente ao que acontece por trás das
portas fechadas.)
Victoria Matthews teria preferido não dar as boas-vindas a Mat
tie, dejeito nenhum;garotas desse tipo eram inadequadas para a vida
no Norte e não tinham perspectivas certas de emprego; eram muito
inclinadas à trapaça ou ao roubo; garotas cujos movimentos não po
diam ser detidos e que ameaçavam causar ainda mais dano à repu-

66
tação das mulheres de cor. Se tivesse poder para tanto, essa mulher
honrada e fundadora da White Rose Mission, um lar para jovens de
cor respeitáveis recém-chegadas à cidade, ela teria impedido Mat-
tie de desembarcar. Teria pegado Mattie, e todas as outras pobres
garotas negras como ela, e as conduzido pela rampa de volta para o
navio, condenando então as jovens para sempre às cidades sulistas
poeirentas de onde elas haviam escapado.® A visão de Matthews não
era desdenhosa, diferente da de Paul Laurence Dunbar,que, para ela,
era muito pessimista sobre as condições do negro no Norte.^° Ele li
vrou a cara dos brancos com relação às péssimas condições e à falta
de oportunidade que os negros enfrentavam; mas Matthews também
teria preferido que garotas como Mattie jamais chegassem à cidade.
Era melhor para elas morrerem de fome no Sul e “cair nas graças de
Deus com a moral purificada do que prolongar,sem amparo,uma vida
miserável de remorso e sofrimento nos bairros mais perigosos do
Norte”.” Para garotas desse tipo, era melhor não ter nenhum desejo;
era melhor que ficassem no seu lugar. Incapaz de detê-las ou de fazer
com que voltassem, Matthews as encontrava no cais e nas estações de
trem e as saudava com um relato sobre os riscos e perigos que aguar
davam jovens desorientadas na cidade.
Mattie, notando a reserva e a prudência em suas boas-vindas,
deve ter respondido com um sorriso tímido e uma sobrancelha le
vantada de dúvida. Os alertas teriam sido desperdiçados. Ela havia
acabado de escapar da sombra do general Armstrong, o libertador
de escravos, líder da educação industrial, punho de ferro da as
censão. No Hampton Institute, jovens negras e negros de talento
eram treinados para a servidão. Todas as garotas da escola recebiam
lições de trabalho doméstico geral. A ideia de serviço era inculcada de
todas asformas possíveis. Ela vira os folhetos que alertavam para
os perigos da vida no Norte, ouvira distraidamente as histórias de
migrantes que passavam frio e fome, e folheara os panfletos com
imagens que ilustravam o antes e o depois de pessoas negras,cheias
de vitalidade e prósperas no trabalho no campo, reduzidas a figu
ras trêmulas e empobrecidas, presas em cortiços, e nada disso fez
qualquer diferença.

68
Duas mulheres negras uma mal reconhecível como negra e a
outra inconfundível, duas mulheres que, pela aparência, poderiam
ser vistas como figuras opostas, mas que ainda assim cruzavam as li
nhas falhas da imoralidade e da decência,da violência e do desejo,de
um passado indizível e um futuro vazio. A mais velha tinha nascido
durante a Guerra Civil e fora marcada por uma história de humilha
ção sexual, pela experiência da violação íntima e pela abjeção roti
neira da escravidão. Sua mãe fora uma mulher escravizada e seu pai,
um senhor. Essa história de “intimidade monstruosa”^^ e suas linhas
perversas de descendência eram inscritas no corpo,embora não fos
sem visíveis para um observador casual, que interpretaria erronea
mente o cabelo longo e preto sem a menor insinuação de uma onda
ou cacho e a pele clara, inserindo-os em uma categoria indefinida.
14
Às vezes ela se permitia ser confundida com uma mulher branca,
mas apenas quando necessário,como quando viajava para o Sul para
investigar os crimes selvagens cometidos rotineiramente contra
pessoas negras. Salvo essas circunstâncias extremas,considerava-se
orgulhosamente afro-americana,e rejeitava o termo de cor por acre
ditar que ele nada representava. Para ela, de cor era a negação de sua
humanidade e uma injúria que vinha sendo infligida por séculos de
escravidão. Agora o termo era imposto a ela como uma identidade
para causar ainda mais danos.
Na primavera de 1898,0 ano em que o levante racial em Wilming-
ton, na Carolina do Norte, e a Guerra Hispano-Americana ecoaram
a sentença de morte da Reconstrução^® e da promessa da democracia
abolicionista, dois anos depois de o caso Plessy versus Ferguson deci
dir que a segregação racial era legal e não um vestígio da escravidão,
e também o ano em que Mattie Nelson nasceu, Victoria Matthews foi
até o cais para receber umajovem que migrava para a cidade vinda de
Jacksonville, Flórida. A carta que ela havia recebido^® da sra. More-
house fornecia a hora exata da chegada do navio e observava que a
garota, sua aluna, levaria uma fita vermelha presa a uma casa de bo
tão de seu casaco. Matthews chegou na hora para receber o navio,
mas tarde demais para salvar a jovem dos homens que estavam ali à

69
espreita e a viram antes. Quando Matthews a encontrou muitos dias
depois, após uma busca cuidadosa que demandou a ajuda de detetives
policiais, uma garota entusiasmada e de olhar vivaz tinha sido trans
formada “em uma jovem criatura arruinada e desgraçada,*^ da qual a
vida na cidade[havia tirado]qualquer vestígio de esperança,qualquer
sinal de alegria inocente”. A ruína dessajovem levou Matthews a fun
dar a White Rose Mission. Qual símbolo de pureza e virtude sexuais
seria melhor que uma rosa branca? Semana após semana, da prima
vera até o fim do outono, Matthews ia até o cais para receber jovens
que chegavam pela Southern Steamship Line e as escoltava para um
lugar seguro.
Os trapaceiros e vigaristas também ficavam à espera, ávidos por
capturar uma das recém-chegadas — mulatas quase brancas, cor de
caramelo (que poderíam se passar por cubanas ou sírias), crioulas
deslumbrantes e garotas de cor comuns —,as jovens descritas como
safras prontas para a colheita. Mattie Nelson faria Victoria Matthews
se lembrar dessa primeira garota, aquela que ela havia perdido.
Quando chegou a Nova York, Victoria Matthews adentrou a cida
de de mãos vazias e, como qualquer mulher negra, sem nenhum pas
sado ao qual pudesse recorrer para o que quer que fosse.*® A escravi
dão, ela acreditava, havia destruído tudo o que havia de digno; essa
instituição havia tornado a honra e a virtude impossíveis. Tudo com
que uma mulher negra podia contar era o futuro. Assim,ela trabalhou
duro para se definir e se defender do que lhe foi infligido. Como qual
quer garota do Sul que tentasse a sorte na cidade,ela foi tratada como
uma prostituta (ou, nas palavras dela, como uma mulher da “classe
depravada que podia ser comumente encontrada nas ruas”).*® Traba
lhou como doméstica durante o dia e estudou à noite, determinada
a ser mais que nada. Pouco importava que evitasse coisas sensuais e
de má reputação, que jamais agisse conforme a sua cor e que lutasse
arduamente para fortificar os graus de classificação e as castas que
separavam os negros bons e decentes dos rebeldes e dos não incon-
denáveis. Dois séculos e meio sendo usadas, tomadas, arruinadas e
amadas pelos brancos da forma como eles bem entendessem e por

70
qualquer meio que realizasse suas fantasias, com golpes ou chicota
das, com presentes que eram os refugos da senhora ou promessas de
alforria, com maldições e bajulações, com ameaças e sussurros amo-
rosos à noite — essa história íntima da escravidão — haviam marca
do permanentemente^s mulheres negras,e el^ambém.
Ainda que ela estivesse determinada ^ virar essa vergonha do
avesso e transformá-la em orgulho, o orguU^o e a dignidade tinham
em seu âmago algo podre, estragado.^® Uma vida devotada a reparar
a reputação manchada das mulheres de cor não livrou Matthews do
estigma sexual da escravidão, apenas a transformou de uma pessoa
corrompida por um passado vergonhoso em uma pessoa que conse
guiu melhorar e superar esse passado, mas que ainda estava ligada a
ele. A mancha se
provou indelével, independentemente de quão tê-
nue fosse. O
e^igma não é um atributq,^^ ®.unia relação;-uma pessoa
é normal em
contraposição a uma-0.utra,pessn^qiie não é. As mulhe-
rés bYah^s^ran^respeitáveis ena relação e em oposição à degrada-
ç^das muUmres res negi^s.^^ Victoria Matthews e Mattie Nelson fo
ram as excluídas que definiram as normas de gênero e a definição de
feminilidade. A sombra da escravidão,o parentesco ferido,o estupro
e o concubinato as criaram e determinaram o caráter de sua luta para
alcançar a virtude e a decência. Mas a promoção desses novos ideais,
novos apenas porque impossíveis de serem alcançados ou mantidos
no contexto da escravidão, produziu seu próprio tipo de indecoro
e desvio. Sua decência também exigia que ela fosse respeitável em
oposição^ alguém^

Ainda era muito cedo para as prostitutas,bichas e valentões que faziam


seus negócios no cais. Famílias se reuniam ali à espera de suas filhas,
irmãos e primos; bandidos e gângsteres espreitavam nas cercanias da
multidão, à procura de jovens inocentes que buscavam informações
ou precisavam de ajuda com uma mala pesada. Quando Mattie Nelson
chegou a Nova York,ela tinha apenas quinze anos.Era uma garota alta,
magra e retinta, um tipo que apenas seu pai poderia descrever como

71
adorável, um tipo que as pessoas brancas taxavam como crioula para
deixar aparentes seu desdém e repulsa.^^ Isso aconteceu uma década
antes de seus cabelos grossos serem domados em tranças e presos em
um coque no topo da cabeça,as maçãs do rosto proeminentes,os olhos
amendoados e os lábios cheios e largos comparados à beleza de uma
máscara africana. Mesmo quando vestida com sua melhor roupa de
domingo, Mattie era decididamente desprovida de sofisticação. No
entanto,apesar da imagem não muito polida que ajovem negra,porém
graciosa, de uma cidade pequena representava, Mattie estava deter
minada a ser mais que nada.

72
Foi difícil para Mattie fazer uma distinção entre a cidade e a
liberdade em si. Como aqueles provincianos e tolos que Paul Lau-
rence Dunbar ridicularizou em The Sport ofthe Gods[O esporte dos
deuses] como intoxicados pelo “vinho sutil e insidioso” das ruas,
que traduziram a Bowery Street em um romance, que transforma
ram a Broadway em lírica^"^ e o Central Park em uma pastoral, e as
sim falharam em ler a cidade como realmente era, ou em apreen
dê-la de um modo compatível com seus perigos, ou em se ajustar
adequadamente aos seus ritmos e demandas; Mattie, ignorando os
fatos e os riscos, confundiu a cidade com um lugar onde ela poderia
prosperar. “A verdadeira febre do amor” tomaria conta dela, e as
ruas e os salões de dança se tornariam seus melhores amigos. Todas
as causas sentimentais para esse abalo, essa fuga a autonomia
de movimento, o desejo por liberdade, a fome por mais e melhor, a
necessidade de espaço para respirar —explicavam sua presença
em Nova York. Ela também se tornaria uma vítima dos prazeres e
perigos da cidade enquanto tentava fazer um banquete com suas es
26
cassas oportunidades.

Nenhuma fábrica, loja ou escritório contrataria jovens de cor, espe


cialmente tão retintas quanto Mattie.^^ O trabalho doméstico e de
lavanderia eram suas únicas opções.É difícil dizer se foi sua decepção
com a falta de oportunidades ou o aSsalto do inverno mais frio que ela
já havia experimentado que a mandou para a cama,fazendo-a ficar
doente por mais de um mês apenas algumas semanas após sua che
gada. Quando Mattie recobrou suas forças, encontrou um trabalho
como doméstica em uma pensão com 23 quartos onde ela era a única
empregada. Lavar, limpar os quartos, fazer as camas e se arrastar
para cima e para baixo por cinco lances de escada na pensão a esgo
taram. Ela odiava a labuta e o tédio. Mas sua mãe disse que se ela não
ia estudar, então tinha de trabalhar. Na maioria das noites, ela caía
exausta na cama, cansada demais para ir ao cinema ou ao salão de
dança. Quando não estava cansada, estava sozinha. As noites eram
longas e monótonas, nem um pouco como ela havia imaginado Nova

73

L
York. Depois de cinco semanas,demitiu-se da pensão e encontrou um
novo trabalho em uma lavanderia chinesa em Bayonne, Nova Jersey,
que era diferente, mas não melhor.
Os dias ainda eram longos e exaustivos, mas agora ela os passa
va dobrando e passando roupas. Poucas garotas brancas estavam
dispostas a trabalhar para os chineses. O pânico sexual dos chineses
alcançara um novo patamar depois que o corpo de umajovem branca
fora encontrado no baú de um homem solteiro em Chinatown.Osjor
nais alimentaram a histeria e incitaram a ideia do perigo amarelo ao
reportar regularmente histórias de garotas inocentes levadas a fre
quentar antros de ópio e transformadas em amantes drogadas,ou en
tão seduzidas por solteiros solitários em salões onde eram dançarinas
de aluguel, ou assassinadas por seus amantes. Os estranhos arranjos
de Chinatown,^® os lares compostos apenas por homens, eram resul
tado dos estatutos de imigração que restringiam a entrada de chi
nesas, e, como consequência, o bordel ou os braços de outro homem
eram as chances mais prováveis de intimidade, a menos que alguém
procurasse um amor além da linha de cor. Para Mattie, a lavanderia
chinesa era só mais um trabalho. Diferente das lavadeiras negras que
se ressentiam dos lava lavà* que competiam com elas pelos mesmos
clientes,ela não se importava.O trabalho era só umafase até que algo
melhor estivesse disponível.

Herman Hawkinsfoi seu primeiro amigo em Nova York.Ele trabalhava


como garçom em uma pensão não muito longe de onde ela morava com
a mãe. Aos 25 anos, ele parecia uma figura cosmopolita para Mattie,
que ainda não havia completado dezesseis e que, ela própria admitia,
não sabia nada, embora estivesse ansiosa para aprender. Herman se
gabava,dizendo que mostraria tudo para ela—o Tenderloin,o Harlem,
Coney Island. Ele era um migrante recente vindo da Geórgia, então
com certeza se divertiu mostrando para Mattie a cidade dele.

* No original, washee washee men,forma antiga e pejorativa de se referir aos chineses


que atuavam no ramo da lavanderia nos Estados Unidos.

74
Mattie aguardava ansiosa pelas noites na companhia de seu ami
go gentil. Eles iam a salões de dança e a festas onde os casais dan
çavam o slow drag, ofunky butt, e ofish tail ao som de rags tocados
por pianolas e de cantigas e canções de amor e ódio que o mundo dos
brancos chamava desdenhosamente de “músicas de preto”. Certa noi
te, depois de uma festa dessas, eles caminhavam para casa pelo Allen
Park quando Herman começou a falar sobre as coisas que queria fa
zer com ela. Mattie não sabia se ele começara a falar daquele jeito
pela forma como eles haviam dançado quando as luzes baixaram (tão
agarrados um ao outro que a fronteira entre seus corpos se resumia
à pele), ou se a privacidade do parque nas primeiras horas da madru
gada o encorajou a falar com ela como se fosse uma mulher, como
se fosse mulher dele^ como se fosse o tipo de mulher que gostaria de
ouvir uma conversa daquelas. Excitado pela virginal-porém-curiosa
Mattie, Herman descreveu em detalhes explícitos o que um corpo po-
deria fazer e como isso faria Mattie se sentir. Ela nunca tinha feito
nenhuma daquelas coisas antes e tentou imaginar os atos íntimos que
ele descrevia e as sensações causadas por tais atos, e se perguntou se
ela sentiria vergonha com suas calçolas nos tornozelos, e como seria
a sensação de ter o corpo dele em cima dela, e se os lençóis estariam
limpos, ou se a cama estreita rangería quando eles fizessem amor
(como a cama de sua mãe quando ela estava com o sr. Smith). Não
era certo Herman Hawkins dizer aquelas coisas. Nunca havia falado
com ela daquele jeito, ninguém tinha falado assim com ela. Mattie
pediu para ele parar, mas Herman continuou falando e ela continuou
escutando. Sabia que aquilo que Herman dizia era ruim, mas também
lhe parecia emocionante. Ele continuou falando como se Mattie não
tivesse lhe pedido para parar, e, em vez de ficar brava ou chateada,
ela apenas ouviu. Mattie não sabia que estava dando uma resposta à
pergunta dele e que tinha dito sim.

Logo depois da caminhada pelo Allen Park,ele convenceu Mattie a tirar


sua camisola e as calçolas. Não é difícil imaginar as coisas que Herman
Hawkins ensinou para Mattie dentro do quarto alugado de uma pensão.

75
Havia tanto para ensinar a uma garota que não sabia nada, que tinha
tanto por descobrir. O que fazer? Como tocá-lo? Como não se sentir
acanhada com sua nudez ou envergonhada de seus cheiros e das coisas
que ela queria fazer? Primeiro ela teve de respirar fundo e libertar o
corpo previamente blindado contra insultos e ataques, render-se em
nome do prazer, permitir que seu corpo sucumbisse a um outro, ser
penetrada,incorporada e preenchida,arriscar todas as defesas e ainda
assim não ser feita de mula do mundo.
Se fosse um amante gentil, talvez ele tivesse beijado demorada-
mente a boca dela, traçado a extensão de suas costas com a língua,
descoberto as formas com que ela gostava de ser tocada e as melhores
maneiras de fazê-la gozar. Se fosse um amante egoísta e exigente,tal
vez a treinasse para o seu próprio prazer, ensinando-a a forma certa
de se mexer, o que dizer, quando ficar calada. Terá forçado Mattie a
repetir palavras que a humilharam e a excitaram,ou suplicado que ela
admitisse aquilo que mais desejava porém temia? Ou talvez eles não
tenham proferido nenhuma palavra, apenas as mãos acariciando ge-
nitais, línguas penetrando orelhas, dedos explorando cada orifício?
Eles foram barulhentos? Ao menos se preocuparam se os inquilinos
ao lado ou os vizinhos bisbilhoteiros de baixo os ouviram? Será que se
importariam se um solteiro solitário tivesse um vislumbre de pele ou
se uma esposa abandonada saboreasse os gemidos que escaparam da
janela aberta,transformando-os nos próprios? Ou foram silenciosos,
determinados a negar aos outros os seus sons? Será que os homens
reunidos na esquina piscaram para Mattie em sua volta para casa ou
será que as mulheres trocaram olhares de reconhecimento e cobiça?
Mattie não tinha com quem compará-lo, nenhuma escala para
medir seus méritos e fraquezas, talentos e áreas que precisavam
de melhorias. Talvez as habilidades dele fossem pouco mais que os
aprendizados acumulados com as mulheres com quem estivera, mu
lheres da mesma idade ou mais velhas, capazes de treiná-lo e condu
zi-lo, mulheres que não tinham medo de mandar que ele se calasse e
fosse em frente? Mulheres que não esperavam muito mais dele, pois
também trabalhavam duro para receber salários baixos e sabiam que,
embora aos 25, como a maioria dos homens de cor em Nova York,

76
ele não podería arcar com um casamento nem sustentar uma famí
lia, ainda que quisesse. Será que as ostentações de outros homens o
incitaram a mentir, como faziam, sobre aquilo que ele poderia fazer
ou fez e a ser tão inflexível com relação ao que nunca faria, ou seja,
os tipos de hábito que as pessoas ocasionalmente satisfazem, mas
nunca revelam?
Talvez o que mais importasse para Mattie fosse que ela havia en
contrado o caminho para o próprio prazer, aprendera a apreciar o
próprio cheiro nas mãos e no cabelo dele, encontrara uma forma de
amainar o tédio e reduzir as horas de espera e de busca por uma saída.
Se o seu amante a tomou como um prêmio ou se tirou vantagem de
uma jovem inocente, para Mattie importa menos do que aquilo que
ela descobriu naquele quarto — o que ela queria poderia realmente
ser importante. Ou que '"Eu quero isscT é uma maneira de extinguir o
cheiro de ‘‘não (tenho)”, “nãoposso (ter), “não”"^^

É possível que Mattie tenha experimentado essa abertura de seu desejo


como uma recusa de tudo aquilo que a mantinha no lugar, presa na
lavanderia,acorrentada a uma tábua de passar,sem ar e sem nenhuma
possibilidade de mudança.Um ato de coito comum,um feito insignifi
cante, exceto para aqueles envolvidos, uma prática rotineira que não
deve deforma alguma ser confundida com questões importantes,apenas
0 ato cotidiano de foder, um quase-evento, que não teria sido notado
se não tivesse feito parte de um levante social maior. Atos íntimos
compartilhados em quartos alugados de pensões e cortiços pela cidade
alimentavam o pânico social acerca de jovens errantes e libertinas e
o grande número de jovens negros em debandada para Nova York. A
inquietação e o desejo de Mattie e o amor livre praticado em um quarto
privativo alugado por semana faziam parte de um conjunto maior de
atos íntimos qu^transformavam a vida social e inauguravam o moder
no,que foi caracterizado pelo entrincheiramento e pela transformação
dõ racismo,jor form^ emergentes de des^ropriaçãp^elacriação
dé^novos cercos e poruma noção obstinada e expandida daquilo que
poderia^erpossível. Garotas no auge da feminilidade,jovens negras

77
como Mattie, eram o centro dessa revolução em tom menor. Apesar
dos esforços do Estado para reprimi-la como patologia e crime, essa
revolução provou ser impossível conter a maré de desejos não sujeitos
à lei, a cópula e a procriação fora do casamento, e o desejo ardente por
viver como se bem entende.
Um quartinho alugado era um laboratório onde se tentava viver
livre num mundo em que a liberdade era impedida, evasiva, adiada,
antecipada, e não realizada. Mattie era uma artista faminta que defi
nhava por falta de oportunidade diante dos olhos do mundo enquanto
todos ao redor olhavam pasmos e assistiam. E cotno qualquer artista
sem nenhumaforma de arte, ela se tomou perigosa P Mattie estava de
sesperada para não ser uma serviçal ou escrava, inas não havia ne
nhum esquema pronto para outra vida que ela pudesse seguir além
daquele quejá havia elaborado,um plano incipiente e um pensamento
radical em ação eram seus recursos. Se pudesse sentir profundamente,
ela podería ser livre. Sabia que a beleza não era um luxo, mas algo
como água e comida, uma necessidade básica. Amava suéteres de ca-
xemira não por serem caros, mas porque o toque do tecido era tão
agradável na pele, como mil dedos acariciando seus braços, e o fres
cor das peças íntimas de seda, macias, que liberavam todo aquele ca
lor e o fogo, e a forma como um bracelete de ouro brilhava e cintilava
na luz do sol,tornando o tom preto-azulado de sua pele tão exuberan
te, como se logo abaixo da pele houvesse camadas de índigo e ocre,
um vórtice negro e profundo onde poderiamos nos perder. Beleza e
desejo forneciam a arquitetura essencial de sua existência. Seu gênio
estava exausto de tentar viver.
O que acontecia por trás das portas fechadas de um quarto aluga
do em uma pensão era um momento,uma iteração da revolução da vida
íntima negra que acontecia em Nova York, Filadélfia e Chicago nas
primeiras décadas do século 20. Era parte da agitação geral que veio a
definir a época e o Novo Negro. O experimento estava em toda a par
te. Era um termo ubíquo empregado para descrever uma variedade de
projetos sociais — do abrigo social a um laboratório sociológico ou a
um cortiço modelo, de inovações estéticas e científicas a configura
ções radicais de vida. Era um termo muito falado. Não havia nada de

78
precioso ou incomum em pesquisar,se aventurar,testar, tentar, espe
cular, descobrir, explorar novas avenidas, romper com tradições, de
safiar a lei e criar, a nâo ser pelo fato de que quase ninguém imaginou
que jovens negras também pudessem estar envolvidas nesse projeto.
Poucos conjecturaram que Mattie estivesse tentando se inventar, por
mais incerta que estivesse sobre o que podería ser e por mais desespe
rada em se livrar das expectativas e demandas dos outros,que sempre
se reduziam à labuta e à prostituição. Antes um caminho errante que
o mundo conhecido. Melhor solta que presa.
Se é possível imaginar Mattie e outras jovens negras como inova
doras e pensadoras radicais,então as transformações na sexualidade,
intimidade,afiliação e parentesco que tinham lugar no quarteirão ne
gro das cidades do norte podem ser consideradas uma revolução an
terior a Gatsby. Antes de os homens queer, as mulheres que amavam
mulheres e as bichas sejuntarem no Ubangi Club,no Garden ofJoy ou
no Ciam House,antes do Renascimento do Harlem,antes de os bran
cos se aventurarem para o norte da cidade a fim de ter um gostinho do
outro,antes de F.Scott Fitzgerald, Radclyffe Hall e Henry Miller,an
tes que comunistas e socialistas negros que discursavam nas esquinas
do Harlem notassem garotas como Mattie, ansiosa como qualquer
pessoa para ouvir notícias de um mundo futuro começou essa re-
construção da vida íntima. Depois do navio negreiro e da plantation,
32
a terceira revolução da vida íntima negra desabrochou na cidade.
O corredor, o quarto, os degraus da entrada, a laje, a saída de ar e a
quitinete forneceram o espaço do experimento. O cortiço e a pensão
mobiliaram o laboratório social da classe trabalhadora negra e dos
pobres. O quarto era o domínio do pensamento em ação®^ e um lu
gar para encenar, desfazer e reètzer rel^ações de poder. Infelizmente,
a polícia^ sociólogos também estavam lá, prontos e à espera por
Mattie ^elson np limiafdo desejo.

Dentro do quarto de Herman Hawkins, uma jovem lavadeira, uma


serviçal exausta, uma musa entre as roupas estendidas no varal e uma
sonhadora afoita tentou desfazer a garota de cor inscrita pelo mundo.

79
Dois amantes em um quarto alugado,envolvidos em atos fortuitos de
intimidade que podem muito bem ser atribuídos à promiscuidade das
ruas movimentadas da cidade e de mulheres jovens que andam pelo
mundo à própria sorte. As coisas experimentadas e exploradas exce
deram os crimes de status —^ a conduta desordeira, a depravação
moral, a vadiagem e a prostituição — pelos quais meninas e jovens
negras eram regularmente condenadas.A existência modernaforjada
por garotas como ela era apreendida como crime e atribuída ao atraso
dos “remanescentes da plantation”. Mattie não recebeu nenhum cré
dito, foi considerada inapta para qualquer papel exceto a servidão,
previamente condenada por qualquer delito e destinada a ser uma figura
menor,mesmo em suo.própr12.história verificável.^ Estimar seus atos,
reconhecer em vez de difamar o anseio irrequieto de Mattie,é abraçar
a anarquia — o programa completo da desordem^ o desejo duradouro
de mudar o mundo,o tumulto,a revolta,a franca rebelião—atribuída
às garotas rebeldes.É considerar outras formas de vida social que não
podem ser reduzidas à transgressão ou anuladas,e que emergem num
mundo marcado pela negação,embora a superem.

Ceder,ser derrotada e destituída pela força de seu desejo,sem nenhum


outro motivo além de sua vontade,fez Mattie se sentir viva,liberta. E
essa liberdade era sensual e palpável—como o gosto de Herman Haw-
kins em sua boca, uma força impressionante a ponto de paralisá-la,
de fazê-la se morder de expectativa por aquilo que poderia acontecer.
Quando ele estava dentro dela, quando ela estava dentro dele,quando
ele a beijava com tanta vontade que seus dentes machucavam seus lá
bios,ela deixava a outra Mattie para trás,aquela garota retinta comum
que ninguém nunca havia considerado bonita. A doçura dos corpos era
alimentada pelo autoesquecimento. Naquele quarto ela tentava esca
par, se esquivar do apoderamento da plantation e da polícia e ampliar
o tempo em uma extensão infinita de possibilidades.
Em outros momentos, era difícil discernir o doloroso do belo. Me
tome por inteira. Não minta pra mim. Me use. Vá embora. Não me machu
que. Havia uma linha tênue entre a perda e o gasto, entre a complacên-

80
cia e o abandono. Como era violento quando ele a forçava a fazer coi
sas que ela nào queria. Como era capaz de puni-la. Como abusava dela.
Como ele a amava. Ele a treinou para querer aquilo que ela não queria,
como se a vida de toda mulher negra fosse destinada a ser um blues,
uma crônica autobiográfica de amor e desastre,ou uma história secreta
de dor e alegria. Como ele a amava.Uma mão bruta no cabelo de Mattie,
que se soltou e se desenrolou em pequenos cachos nas palmas suadas,
e a luz que brincava em corpos escuros no crepúsculo ditavam o que o
mundo continha — beleza. Era a prática do cuidado e do oferecimen
to de si para o uso do outro nos limites de uma enorme brutalidade. A
beleza das coisas tomadas e das coisas dadas por quem vive na derrota.
Mattie queria tanto do mundo e a ela foi permitido tão pouco aforça
de todo esse querer a levou até aquele quartinho alugado. Foi movida
pela luxúria,que não era um exercício de sua vontade, mas a meraforça
da existência^ um tipo de submissão insistente, um ato que confundia o
agente e a ação. No envolvimento da carne,nesse ato mais baixo e exal
tado de entradas e saídas, Mattie ameaçava desaparecer,aforça daqui
lo tudo excedendo-a e apagando os limites do corpo discreto, tornan
do-a um pouco menos e algo mais do que ela era. Ser desfeita, contra a
vontade e com seu consentimento. Um estado que não era nem autono
mia nem captura. Isso a arruinou,a reduziu a nada,a abateu,transfor-
mou-a em qualquer outra coisa que ela desejasse ser: um pássaro que
voa alto ou uma coisa vasta e sem limites, oceânica não uma pessoa,
longe disso. No fedor e na quentura de um quarto alugado,ela era toda
carne e sensações; pairava no fim do mundo.^^ E apreciava isso.

Quando sua mãe,Caroline,perguntou“Quem é que anda mexendo com


você?”,ela lutou para tentar explicar.Para ela era impossível descrever o
deslocamento do desejo e os acessos de luxúria,a não ser na linguagem
fornecida pelos outros.Eupequeicom Herman Hawkins.Eu gostei.Ele
meforçou.Eu sei o que eufiz.Eu queria.^^ Como poderia comunicar o
primor do não edificado ou o repouso adorável dos corpos exaustos
após o ato? Ou a coragem implicada na recusa da vergonha^® ou no risco
de senti-la? A decência demandava omissão; de outra forma,ela seria

81
forçada a mentir. Não se importava com decência ou respeitabilidade.
Eram necessárias palavras melhores para expressar o que se revelava
naquele quarto — as coisas tomadas e dadas. Então Mattie ofereceu
apenas o nome dele: Herman Hawkins.É ele que anda mexendo comigo.

A bebê nasceu morta. Ele nunca chegou a ver a filha. Ele não queria ter
nada a ver com a criança ou com a mãe. A bebê morta deveria ter sido
o fim da relação com Herman Hawkins, mas, dado que Mattie tinha
apenas quinze anos quando se tornaram amantes, a Sociedade para a
Prevenção da Crueldade contra as Crianças se envolveu e a assistente
social pressionou Mattie a acusá-lo de estupro estatutário. A sra.Burns
disse a Mattie que,segundo a lei, uma garota naidade dela, mesmo uma
crioula,erajovem demais para consentir em ter relações sexuais,jovem
demais para saber o que queria.A história de Mattie desafiava alógica do
certo e errado,de querer e ser forçada.Ela queria algo pelo qual não havia
consentido ou desejava coisas ruins para si mesma? Ceder a um amante
foi o momento em que as coisas começaram a dar errado? Então a sra.
Burnsimpôs umalinguagem.A clareza exigia culpa ou responsabilidade,
dele ou dela,à espreita em cadafrase e admissão.Para a assistente social,
o consentimento era a maneira de transferir o fardo da criminalidade
dos ombros dela para os dele.Era ofator que determinava a distribuição
da punição e que enfatizava o perigo da intimidade e todas as formas
pelas quais isso poderia colocar umajovem em risco.
Depois de ouvir as evidências relacionadas ao estupro estatutário,
o júri dispensou as acusações contra Herman Hawkins, que saiu do
tribunal de justiça livre e limpo.(Mattie descobriu que, por ser ne
gra, o júri não se importava. Acreditaram que ela havia pedido aqui
lo. Depois que ele a abandonou, ficou difícil saber o que acontecera
de verdade. Era difícil acreditar que ela o tivesse desejado.) A única
obrigação dele foi arcar com o funeral da filha.

Para outro tipo de garota,a decepção com Herman Hawkins poderia ter
acabado com ela, ou tê-la induzido a fazer votos de nunca mais seguir

82
por essa estrada, ou tê-la convencido de que havia uma liçào moral a
ser aprendida com a experiência ou tê-la feito renunciar a sua aventu
ra sexual. No caso de Mattie, a experiência a libertou. Se ela pretendia
construir uma nova vida depois de Herman Hawkins,claramente seria
uma vida agitada e rebelde.Aos dezesseis,ela ainda antevia algo melhor
do que a vida que levava. Como outrasjovens negras, Mattie exercitou
seus talentos e ambições nas ruas e nos cabarés.Dia a dia elalutava para
conquistar um pouco mais de espaço em um mundo que se tornava mais
e mais restrito pela linha de cor, mais e mais definido pelas brutalidades
rotineiras do racismo. Mattie nunca parou de tentar agarrar um modo
de mdc^ melhor do que aquele que levava. Todo mundo tinha uma opi
nião sobre quem ela deveria ser e o que deveria fazer. Era claro que seus
próprios desejos não importavam a ninguém além dela.Se não decidisse
como queria viver,então o mundo ofaria e sempre a destinaria à margem.
Recusando-se a isso, Mattie seguiu adiante comosefosse livre,o que,aos
olhos do mundo,equivalia a agir como uma bárbara.

Na época em que Mattie conheceu Carter Jackson, ela já tinha per


dido a aparência de uma garota do interior. E todo o restante estava
diferente também. Para começar, na primeira vez que fizeram sexo,
Carter prometeu ser correto com ela, diferente de Herman Hawkins,
que tinha preferido se arriscar a ir preso a se amarrar a uma esposa
ou, pelo menos,a se comprometer com ela. Carter parecia ser o tipo
de homem com quem ela poderia construir uma vida. Que tipo de vida
era incerto. Quando falava, Carter fazia tudo parecer possível. Ele
ansiava por viver de acordo com os próprios termos e estabelecer a
medida de seus atos. Era difícil dizer se ele era sincero ou só melhor
em falar bobagens do que Herman Hawkins e os homens que Mattie
havia conhecido depois dele. Por hora, ela estava contente em dar a
Carter o benefício da dúvida. Não importava que os contornos do que
poderia ser fossem vagos, e que, quando ela se via pressionada com
relação a como e onde,tudo ameaçava desaparecer.
Carter Jackson não tinha visto muito mais do mundo que Mattie,e
conhecia menos porque não crescera com um pai dotado de uma edu-

83
cação esplêndida que enchera sua cabeça com histórias sobre as Fili
pinas, Cuba e o Haiti. A mãe dela havia viajado também, mas nas his
tórias de Caroline ela sempre soava como a mesma mulher,e o mundo
diferia pouco daquele que Mattie conhecia, um mundo familiar em
seus limites, um mundo que a deixava exausta. Caroline narrava suas
jornadas como se viajar pelo mundo não a tivesse mudado em nada,
como se Cuba e Jerusalém fossem iguais a Nova York, pois trabalho
doméstico era trabalho doméstico. Se ela se recordava com afeto das
noites em que dançou em bares ao ar livre, ou dos sentimentos de li
berdade ou de possibilidade que acompanhavam o abandono de tudo
o que ela conheceu, seguindo adiante como se nada a prendesse em
um tempo ou lugar,se Caroline de alguma forma desfrutou dessa sen
sação da imensidão do mar, ela nunca compartilhou com Mattie, tal
vez por não querer encorajar a imprudência sonhadora da filha.
O pai dela havia esfregado, cozinhado e carregado em seu caminho
pelo mundo,mas Earl Nelson fazia suasjornadas soarem como se nave
gasse os oceanos pela primeira vez. Ele queria que os filhos soubessem
quão grande era o mundo,como se saber disso fosse o suficiente para
combater tudo o que tentava confinar as pessoas negras* a uma exis
tência de dois-por-três-metros. Mattie havia acreditado em cada uma
das palavras do pai. Como ela costumava dizer, quando ele estava vivo,
ela não queria mais nada da vida. Eles moravam em uma casa própria
em Hampton com um grande quintal e um jardim.Seu pai tinha um ne
gócio bem-sucedido na cidade, além da fazenda em Gloucester, então,
quando faleceu, deixou para ela e para cada um dos irmãos várias cen
tenas de dólares. Se Mattie tivesse feito alguma coisa errada enquanto
Earl Nelson estava vivo, ele teria acabado com ela.

A filha conhece um homem e a esposa,outro. Depois da morte de Earl


Nelson,Caroline prometeu que nunca mais se casaria. Quase uma década
depois, ela permaneceu fiel a essa promessa. Seu marido a incumbira

* IMo original, co/ored folks faz referência à W. E. B. Du Bois, As almas do povo negro.
São Paulo: Veneta,2021.

84
de cinco crianças e entào decidiu passar a maior parte do tempo no
mar, navegando por períodos que,às vezes,duravam mais de um ano.
Embora ganhasse um bom dinheiro, ele mandava uma quantia parca
para casa, dez ou quinze dólares metidos em um bilhete descuidado.
Alguns homens magoam uma mulher pelas coisas cruéis que fazem
ou dizem; Earl magoou Caroline por todas as coisas que negou. Ele a
tinha iludido. Ao longo de seu tempo de casados, ela se convenceu de
que ele não a amava mais.Parecia evidente que ele pouco se importava
com afamília. Por que mais ele tinha decidido passar a maior parte de
seus dias no mar? Caroline não podia nem dizer se ele amava os filhos.
Ele mal mandava o suficiente para sustentá-los,forçando-a a lavar e
limpar para gente branca.
A última carta veio da companhia de carga. O navio dele tinha
naufragado. Ele já devia estar morto em seu coração quando ela leu
as palavras presumivelmente morto.Perdido no mar. Desde aquela pri
meira travessia, a água nunca parou de punir a família de Caroline,
infligindo novas perdas a cada geração. Quando sua avó era uma me
nina, “comerciantes” da Virgínia a raptaram junto com seus quatro
irmãos enquanto eles brincavam numa praia nas Bermudas. Os ho
mens brancos os atraíram a bordo,prometendo abrigo para uma tem
pestade que se aproximava e então os amarraram embaixo do convés
até encher o porão e assegurar “um total complemento de carga”. As
cinco crianças roubadas foram vendidas como escravas na Virgínia.
Elas nunca mais viram a mãe. Ser destituído da mãe definia o signifi
cado de ser uma pessoa escravizada. A natimorta morreu no mesmo
ano que a tataravó de Mattie. Disso, Caroline estava certa. Ela podia
sentir em seus ossos.

Carter Jackson não tinha um negócio próspero nem uma casa grande
construída com as próprias mãos. Sem dúvida, ele conhecia melhor
que ninguém a distância entre onde se encontrava e onde queria estar,
o abismo entre o que tinha e o que Earl Nelson havia criado para sua
família,segundo as histórias elaboradas de Mattie.Aos 26,Carter não
havia realizado nenhuma das grandes coisas com as quais sonhava, mas

85
quando Mattie o conheceu,ele não estava resignado a isso. Erajovem,
então ainda não sabia das coisas maravilhosas e terríveis das quais era
capaz.Ele ainda não sabia se era um homem bom ou mau porque ainda
não tinha sido testado.
Mattie acreditava que Carter era um bom homem, mas ela não se
ria poupada de testemunhar o que o mundo pode fazer a um homem
bom e o dano que ele causaria como sua única forma de defesa. Com
esse amante, ela não consentiu sem se dar conta; Mattie queria Car
ter tanto quanto ele a queria. Ela acreditou na palavra dele. Carter não
traria uma criança ao mundo para fugir depois. Durante seu sétimo
mês, Mattie começou a se chamar de sra.Jackson e a apresentar Carter
como seu marido. A sra. CarterJackson — as palavras rolavam em sua
língua tão doces como se fossem mel. Caroline não acreditou nisso por
nada. Mattie esperava, como qualquer futura noiva, que esse sra. pro
videnciasse uma base suficiente para assegurar o futuro, para manter
seu homem e a criança unidos. Seria esse casamento de mentira uma
tentativa de legitimar a criança ou um ensaio para a vida conjugal nor
malizada que eles falharam em conquistar, mas desejavam? Aquele sra.
Jackson seria uma performance exagerada daquilo que era esperado ou
imposto?'^^ Havia outra sra. Jackson em algum lugar com um direito
legal sobre o nome? Quem precisava da lei para decidir o que se dava
entre eles ou para dotar marido e esposa de significado?
Mattie podería ter suspeitado que as quatro semanas que eles pas
saram juntos em um quarto alugado numa pensão de Nova Jersey no
oitavo mês de gravidez era o mais próximo que eles chegariam de um
casamento. Ela voltou para a casa da mãe nas últimas semanas antes
da data de nascimento esperada do bebê. Carter ficou em Nova Jersey,
mas a visitava regularmente. Quando o bebê nasceu, Carter foi tão
terno com ela que Mattie jamais suspeitou que algo pudesse dar er
rado, ou que houvesse qualquer razão para se preocupar. Na verdade,
Carter estava se afogando, mas enchia a cabeça dela de promessas de
tudo que ele faria e que teriam. Ainda que ele nunca tivesse pronun
ciado as palavras “Você pode contar comigo”, cada gesto de amor pa
recia provar isso. Ainda que nunca tivesse dito “Querida, fique tran
quila”, Mattie confiava nele.

86
o bebê, Scott, tinha apenas um mês quando Carter desapareceu.
Caroline ligou para a pensão em Bayonne, mas não havia rastro dele.
Carter havia se mudado sem deixar outro endereço e não disse a ne
nhum dos seus amigos para onde ia. Ele pediu demissão e sumiu.
Mattie sofreu pelo marido desaparecido, sem saber se ele estava
vivo ou morto. Não importa, ele está morto para você e para o seu
filho, Caroline poderia ter aconselhado. Mas segurou a língua. Ela
sabia que aquele mesmo homem, morto para Mattie, poderia agora
ser o prêmio de outra mulher, um outro negro ressuscitado pela fuga
e agraciado com um pseudônimo.
Provavelmente afogado foi a frase exata empregada na carta da
companhia de carga endereçada à sra. Earl Nelson. Ele estava “presu
mivelmente morto”. Um termo cruel para anunciar a perda, mas que
deixava uma brecha para esperanças insensatas, expectativas tolas.
No ano anterior, Caroline recebera uma carta de lun amigo de Earl
dizendo que ele tinha visto o marido morto dela caminhando pelas
ruas de Nova York. Ela poderia ter contratado um detetive para en
contrá-lo se acreditasse que Earl Nelson alguma vez a amara ou se
houvesse alguma distinção entre estar morto e estar morto para ela.
Qual seria o sentido de surpreendê-lo em sua última e maior mentira?
Caroline preferia pensar nele como morto e continuar no conforto
de sua condição de viúva. Era melhor para todo mundo, e ela nunca
pensou em dizer outra coisa para Mattie.

Aurelia Bush reconheceu suas roupas íntimas. Seu novo conjunto de


camisola e calçolas de seda que havia desaparecido após a segunda
lavagem estava pendurado no varal daquela assanhada como se fos
se seu por direito. Ela se enfureceu ao pensar naquela puta de baixa
categoria usando suas peças íntimas. Aurelia nunca tinha gostado de
Mattie Jackson e nunca se deixaria enganar pelo tipo de mulher que
ela e sua mãe eram porque sabia da história toda. Ela sabia da bebê
morta,do bastardo,de Herman Hawkins e dos dois maridos,além dos
brancos que frequentavam a casa delas. Aurelia não era nenhuma boba.
Mattie era amigada com Jackson, um hóspede na casa de sua

87
mãe,e ainda por cima se chamava de sra.Jackson, um nome que come
çou a usar quando engravidou do filho de Cí^rr&r Jackson. Ela não era
nem pior nem melhor que sua mãe, Caroline Nelson, que vivia com o
hóspede Smith e se chamava de sra. Smith. Era tudo mentira. Aurelia
Bush tinha certeza absoluta. O que mais a ofendia eram os italianos
que apareciam à procura de Mattie. Ela observava enquanto subiam
os degraus e entravam pela porta dos fundos. Que tipo de mulher de
cor decente recebia a companhia de homens brancos? Isso explicava
por que Mattie e sua mãe viviam melhor que qualquer um.
O varal era de Mattie, mas ela tinha permitido que Aurelia, que
vivia no andar de baixo, pendurasse suas roupas nele também. As
roupas íntimas perdidas poderíam ter sido um equívoco inocente,
mas também era verdade que Mattie tinha pouca consideração pela
propriedade privada.É meu, isso me pertence — eram termos que não
tinham muito peso para ela. Ela tratava a posse como se fosse uma
coisa condicional, e não uma noção absoluta, como se objetos belos
servissem para ser compartilhados, como se as coisas mais adorá
veis fossem justamente um luxo comunitário. Certa vez ela chegou
em casa com um bracelete de ouro que pertencia a uma mulher cujas
roupas ela lavava. Quando a mãe perguntou dajoia, Mattie disse que
tinha encontrado. Outra vez, chegou do trabalho vestindo um suéter
de caxemira que era o preferido da filha de sua patroa. No dia seguin
te, ela foi trabalhar usando o suéter. Como aconteceu com as roupas
íntimas de Aurelia, Mattie não fez nenhuma tentativa de esconder
os objetos. Sua patroa acreditava que Mattie era tão honesta quanto
uma garota de cor comum,mas não tinha deixado de notar que ela era
um tanto descuidada com as coisas dos outros. Não acusava Mattie
de roubo porque ela não escondia os itens, usava-os abertamente. Até
onde ela sabia, Mattie não pegava nada de propósito. Era o tipo de
socialismo barato comum entre negros. Quando Mattie encontrou um
medalhão e uma corrente que pertenciam a uma das crianças, pôs no
pescoço, deixando-os bem à vista, como se indiferente ao direito de
posse e inocente diante da noção de roubo. Objetos bonitos a chama
vam e ela cedia a eles, sem se importar quem eram seus donos, sem
acreditar que tivesse roubado alguma coisa.

88
Quando Aurelia a confrontou, Mattie se desculpou e lhe ofereceu
os 3,97 dólares que tinha pagado pelas peças, mas Aurelia Bush queria
mais que uma desculpa."^^ Foi ela quem contou ao detetive policial so
bre Carter e Ghester, as duas sras. Jacksons. Mattie Jackson era uma
prostituta de baixa categoria. Aurelia tinha repetido essa acusação
tantas vezes que passou a ter certeza de que era verdadeira.O investi
gador nunca encontrou nenhuma evidência para confirmar isso, mas
a acusação causou seu dano.

A nota sociológica anexada aos autos declarava:A casa materna é um


ambiente pobre. A mãe não pareceu se sentir profundamente desonrada
pelo comportamento dafilha. Ela é negligente com a supervisão dafilha.
Sua conduta moralfoi replicada pelafilha. A oficial da condicional não
julgou que sua casapoderia ser um bom lugarpara mandar uma cliente.
Ela considerou a condicional muito seriamenteporsereste0primeiro delito
dajovem, massentiu quea instituição seria melhorquea condicional nesse
caso. A equipe está de acordo.
Se a mãe dela fosse a sra. Smith por lei, se Mattie realmente fosse
a sra. Jackson, se ela não tivesse dado à luz duas crianças fora do ca
samento,se o detetive estivesse disposto a retirar as queixas quando
Aurelia Bush mudou de ideia, se a oficial da condicional não tives
se desaparecido no meio do julgamento de Mattie, se a Casa de Mi
sericórdia ou o Asilo das Madalenas estivessem dispostos a aceitar
jovens de cor, se a supervisora do reformatório não acreditasse que
a prisão era um ambiente melhor e mais instrutivo que uma casa de
gente negra comum, se os oficiais da corte não tivessem concluído
que as vidas das duas sras. Jacksons configuravam depravação mo
ral,'*^ se Mattie Jackson fosse branca,é pouco provável que ela tivesse
sido confinada no Reformatório Feminino do Estado de Nova York
em Bedford Hills por quase três anos.
O caso contra Mattie era o caso contra sua mãe. Essa herança
materna a colocou em risco de ser presá e confinada,a marcou como
uma figura patológica e imoral, se não criminosa. Dada sua criação
pobre e o lar destruído, não surpreendia que a garota tivesse dado

89
errado. Era mais exemplo de negligência materna. Nas deliberações
sobre o futuro de Mattie, essa herança materna era muito mais im
portante que as roupas íntimas desaparecidas de Aurelia Bush. A
falta de vergonha de Caroline diante do comportamento sexual de
Mattie e das crianças bastardas provou que a jovem precisava de
uma supervisão melhor que aquela oferecida por uma mãe negra
negligente. Apesar de frequentar a igreja, a sra. Caroline Nelson,
também conhecida como sra. Smith, tinha padrões morais muito
falhos e havia transmitido sua conduta ilegítima para a filha. Sem
nem pestanejar, Caroline disse ao investigador que havia prometido
nunca mais voltar a se casar, mas isso claramente não excluía rela
ções extramatrimoniais.
As palavras de Mattie foram igualmente prejudiciais. No “Depoi
mento da garota”, ela disse: Eu gostei. Eu pequei. Ele meforçou.Eu sei
0 que eufiz. Eu quis. Seus comentários não demonstraram nenhuma
noção clara de culpa ou arrependimento. Nem convenceram ninguém
de que ela havia aprendido a lição depois de Herman ou Carter. Os
italianos levantaram a questão da prostituição, embora não houvesse
nenhuma evidência disso. A falta de remorso e a recusa em admitir
qualquer delito pioraram sua situação. Nada do que ela fizera justi
ficava que fosse presa, menos ainda encarcerada. Ao insistir que não
tinha feito nada de errado, Mattie contribuiu para confirmar sua cul
pa aos olhos da assistente social e do psicólogo.

Ainda que Caroline Nelson não tivesse ouvido Mattie gritar^^ no se


gundo domingo de novembro em seu segundo ano de prisão, muito
provavelmente ela teria lido nos olhos da filha que as coisas não iam
bem.Quando ela visitava Mattie,havia sempre um guarda presente,45
então a filha não podia dizer muito. Caroline esperava na sala de visi
tas quando a supervisora, a sra. Engle,lhe informou que Mattie não
poderia receber visitas. Caroline podia ouvir Mattie gritar e continuou
perguntando,Sra. Engle, qualéo problema? Qual éo problema?Estou
ouvindo minhafilha. Então ela começou a gritar o nome de Mattie,
na esperança de que ela pudesse ouvi-la. A supervisora pediu que

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Caroline parasse de gritar e insistiu que estava tudo bem. O tempo


inteiro Mattie gritava ao fundo. A sra. Engle conduziu Caroline para
fora da área de visitas e pelos portões principais. No trem de volta
a Nova York, Caroline, aflita e temerosa, se perguntou: O que eles
estão fazendo com a minha filha? Os gritos de Mattie ecoaram em
sua cabeça durante toda a viagem.
Mattie escrevia para a mãe duas vezes por mês, mas as superviso
ras liam todas as cartas, então ela não poderia ter dito: Mamãe,elas
estão me machucando. Por favor, me tira daqui. Elas me algemaram
nas grades da minha cela. Me trancaram na masmorra da ala discipli
nar. Me negaram água e comida. Amarraram meus pulsos com uma
corda e me deixaram pendurada no teto da minha cela. Me estrangu
laram e me espancaram. Estapearam minha cara. Me chamaram de
crioula e de puta. Mãe,por favor, me tira daqui.
Se Mattie tivesse escrito qualquer dessas coisas em uma das duas
cartas que podia enviar mensalmente, as correspondências teriam
sido confiscadas e ela teria sido submetida a uma punição ainda mais
severa.(Logo a tortura e os abusos viriam a público. Mas levaria dé-

91
cadas até alguém questionar sejovens deveríam ser encarceradas por
ter filhos fora do casamento, passar a noite fora, ter vários amantes
ou relações íntimas para além da linha de cor.)

Caroline desceu do trem no Harlem.Estava determinada a encontrar


duas garotas que tinham sido amigas de Mattie em Bedford. O que
as garotas contaram acabou com ela e fez Caroline querer machucar
alguém.Coisas horríveis tinham sido feitas a sua filha,o sangue do seu
sangue. Caroline deve ter se sentido como sua bisavó quando os filhos
foram sequestrados nas Bermudas.O que ela poderíafazer? Absoluta
mente nada.Ela deve ter se lembrado de sua avó,roubada e destituída
da mãe,ou ficado preocupada com o neto,também destituído da mãe.
O parentesco ferido se repetia por gerações. Naquela tarde, Caroline,
determinada a fazer algo, escreveu uma carta para a superintendente
da prisão:

26de novembro deigig

Querida srta. Cohh,


Escrevo para te perguntar qual é o problema com Mattie que ela estava
gritando? Vocêsestão maltratando Mattie?Encontrei uma mulhere ela disse
'que vocês todos tratam minhafilha como se elafosse um cão. Por que vocês
fazem[isso?]Ela não estava lá quandofui.
Me disseram duas vezes depois que eu saíde lá antes da chegada do trem
eu mesma ouvi Mattie chorando[foi]por isso que eu estava de pé quando
você entrou. Eu ouvi ela e quero saber vocês estão maltratando Mattie[?]
Uma menina que esteve lá me disse que vocês duas pegam Mattie e batem
nela e enforcam ela.
Se eu tivesse ouvido isso antes de ir no domingo teria contado para você,
mas na volta para casa eu parei na parte alta da cidade e as meninas me
contaram. Peço perdão por escrever, mas eu preciso porque quero que você
saiba disso,pois me deixa doente saber que tem gente tão cruel lá. Nãoposso
acreditar.[Você]vai entregar essa carta para Mattie. Você lê[para ver]se
eu escrevialguma coisa errada,pode riscar.

92
Porfavor,eu vou contaro que as meninas me disseram para asenhora,srta.
Cobb,seasenhora mepermitir É[tudo o que eu]perguntopara você:quando eu
posso ver[MattieJ ou quandoposso verasenhora?Assinado respeitosamente.

Sra. Earl Nelson


Peço resposta.

As cartas de Mattie nào constam nos autos,embora ela tenha se corres


pondido com a mãe e enviado bilhetes para as amigas.Em pelo menos
uma ocasião, ela foi punida por passar bilhetes para uma garota de
outro alojamento. Na primavera de 1918, ela foi mandada para a ala
disciplinar por esconder artigos de papelaria e selos em seu quarto.
Mas não existem cópias das cartas que ela escreveu na esperança de
contrabandeá-las para fora da prisão nem dos bilhetes que enviou para
/ uma namorada.Que histórias foram compartilhadas nas cartas perdidas
\ e desaparecidas, as coisas sussurradas e nunca reveladas? É possível
I trazer à tona as frases, parágrafos e poemas contidos nesse arquivo
/ perdido? Ou encontrar um caminho para a linguagem autoexpressiva
de Mattie? Seu desejo de escrever era tão grande que ela estava disposta
■ a arriscar uma punição. Um bilhete passado por baixo de uma porta ou
uma mensagem amarrotada passada de cela em cela,de mão em mão,se
46
chama pipa — as palavras viajam mesmo quando nós não podemos.
V
Será que Mattie manteve um diário ou escreveu poemas de amor?
Ela registrou seus sonhos? Escreveu histórias sobre natimortos ou
crianças roubadas ou navios perdidos no mar ou pais desaparecidos?
Em suas cartas para casa, será que lembrou sua mãe de cantar uma
canção de ninar para Scotty cair fácil no sono? Pensou sobre sua tata-
ravó exilada nas Bermudas e separada dos filhos? Ela se arrependeu
do que havia acontecido com Herman Hawkins? Ou reconheceu quão
difícil é dissociar as coisas que desejava das que a machucavam, ou
separar a beleza daquilo que havia experimentado da violência aí con
tida? Em suas cartas para Caroline, teria ela perguntado sobre suas
amigas no Harlem ou se a mãe tinha visto Chester ultimamente? Mat
tie não teria ousado perguntar sobre os levantes do Verão Vermelho.

93
Ela nào teria sido capaz de dizer para a mãe se estivesse apaixonada
por uma garota do alojamento vizinho ou se tivesse sejuntado às ami
gas na rebelião no reformatório, virando camas, incendiando corti
nas e destruindo tudo ao alcance; ou explicar que se elas destruíram
tanto éporque tinham sofrido muito. Se a mãe dela lesse nas entreli
nhas,teria conseguido discernir o que a carta de Mattie insinuava:ela
estava lutando para se libertar.

94
Manual do trabalho doméstico geral

Manual: próprio ou pertencente à mào ou às mãos,feito ou desempe


nhado com as mãos. Especialmente com relação ao trabalho (físico),
uma ocupação etc., em oposição ao mental, ao teórico. Manual em
distinção ao mental e ao intelectual. Manual: referente a uma arma,
ferramenta, instrumento etc.; que é usado ou trabalhado com a mão
ou as mãos. Na verdade, nas mãos de alguém, não apenas em poten
cial. (Manual: abreviação para exercícios manuais, isto é, trabalho
físico, e não o exercício da razão ou da imaginação.)Uma ferramenta
ou um objeto, sob o domínio de alguém, não especulativo, não uma
proposição ao gênio feminino negro. O uso do corpo como ferramen
ta ou instrumento. Próprio de ocupação ou posse. Apto a se ter nas
mãos de alguém, enquanto posse representa três quintos da lei, en
quanto posse faz de você três quintos de um ser humano,* uma pro
priedade manuseada por outro. Também uma coisa a ser possuída. A
ser manuseada como pertencente,anexada, marcada,invadida,inge
rida, não autônoma. Manual: ser manejada por outro, ser manejada
ao bel-prazer; ser manejada como um exercício da vontade do outro.

* Referência a um pacto firmado entre os estados do sul e do norte dos Estados Unidos
em 1787,cujo objetivo foi resolver um impasse relativo ao poder de representação
dessas regiões. Como uma maior densidade populacional significava maior representa
ção,e como nos estados sulistas havia um contingente maior de pessoas escravizadas,
para não haver disparidade em relação aos estados nortistas,foi estabelecido o
Compromisso dos Três Quintos,que previa que cinco pessoas escravizadas contavam
como três pessoas.

95
ser separada de sua própria vontade, motivações ou desejos. Manual:
em oposição ao mental, um não exercício das faculdades racionais.
Em oposição à formulação de reflexões críticas; em oposição à con
templação do eu ou do mundo. Um método de operar ou trabalhar.
Uma função. Abreviação de exercício manual. Abreviação de ferra
menta manual.
Manual:oposto de automático,oposto ao ato de agir ou funcionar
por si ou para si, oposto à deliberação e ao julgamento, algo necessi
tado de direcionamento,sob a imposição da senhora ou do senhor.
Manual: pertencente à mão ou às mãos. As mãos a serem desatua
lizadas ou tornadas obsoletas pela máquina. Próprio ou pertencente
à mula mais que à máquina. Trabalhado com as mãos,finalizado com
as mãos. Não mais que um par de mãos. Mãos rachadas e inchadas
pelo sabão cáustico e pela amônia. Mãos queimadas ao tirar tortas
do forno. Mãos rígidas e desfiguradas de torcer os lençóis e toalhas
gelados lá fora no inverno, antes de serem pendurados no varal para
secar. Mãos, não mais suas, restringidas, possuídas e dirigidas por
outro, como uma ferramenta ou um objeto. As mãos que manuseiam
você. As mãos que levantam o vestido, as mãos na sua bunda,as mãos
que despem suas roupas íntimas, as mãos que te prendem ao chão.
As mãos que te pagam dois dólares pelo dia ou treze dólares por se
mana. Manual: algo sujeito ao uso, tornado ferramenta, manuseado,
agarrado,espalmado,estapeado,acariciado,abraçado,atormentado,
afagado; pertencente à mão.
Manual: oposto à contemplação ou à teoria. Oposto ao uso do
intelecto. Oposto a olhar, visualizar, contemplar. Oposto ao ato de
pensar, refletir, esquematizar, esboçar, planejar, pesar, ponderar. O
uso das mãos em oposição a uma concepção,esquema mental ou pa
radigma. Manual: o concreto, o físico, o incorporado em oposição
ao conhecimento abstrato e sua formulação. Em oposição à razão.
Manual: pertencente à ignorância, obtusidade, estupidez e oposto
à erudição.
Relacionado ao manuseio,a ser manuseada,a ser manuseada sem
nenhuma consideração, a ser manuseada como uma ferramenta ou
instrumento; a ser manuseada como uma escrava, como uma moci-

96
nha qualquer, como uma puta, como uma vadia, como uma crioula.
Manuseada como se pertencente àquela parte da coisa que deve ser
agarrada pela mão para ser usada ou movida. Ser agarrada pela mão
ou às vezes pelo pescoço, a bunda, a garganta. Coloquial: perder as
estribeiras; se enfurecer; acabar com tudo. Figurativo: aquilo pelo
qual algo é ou pode ser tomado; uma,duas ou mais formas pelas quais
uma coisa pode ser tomada ou apreendida. Manipular, administrar;
sujeitar à ação das mãos,tocar ou sentir com as mãos. Oposto a: não
me toque. Pertencente a: mãos para cima, não atire. Administrar,
conduzir, dirigir, controlar. Ser manuseada por homens, ser maltra
tada, ser tomada por homens,ser usada por homens, ser consumida
por homens. Manuseada,com relação ao uso da coisa,fazer algo com
a ferramenta, em oposição a ser dirigida pela vontade e pelo desejo;
oposto ao consentimento, oposto ao me deixa em paz, porra. Lidar
com,tratar como bem queira, usar,acumular,gastar, exaurir.
Manual:com relação a um livro etc. — da natureza de um manual
feito para ser mantido a mão para referência. Um tratado conciso,um
compêndio,um guia.

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Um atlas da rebeldia^

Na South Street, duas jovens andando de mãos dadas pela calçada


chamaram a atenção do sociólogo. O olhar dele pousou nelas, mas as
garotas o ignoraram. Uma cutucou a outra com o cotovelo, e elas pa
raram diante de uma das lojas e olharam a vitrine repleta de fileiras
de sapatos. A grande vitrine permitia que elas adentrassem o mundo
dos objetos brilhantes, e elas também se tornavam parte da bela exi
bição. Seus reflexos flutuavam na superfície do vidro, os rostos ne-
gros resplandecendo enquanto elas pairavam sobre o mar de objetos,
embaladas pela abundância de produtos. A vitrine fascinou asjovens
e por um momento interrompeu a caminhada delas enquanto a olha
vam como se assistissem a um filme. Ela oferecia uma confirmação:
Garota,você estájoia; repreendia: Esse casaco puído não engana nin
guém; instruía: Cubra mais seu olho direito com esse chapéu, crie o
mistério que você quer ser.
Com os olhos cheios de cobiça, uma delas estendeu o braço, apon
tando para um par de sapatos masculinos.
Está vendo aquele par?
Qual?
Era uma variedade de calçados: brogues pretos conservadores,
botas de cano alto com ilhós prateados, botas lustrosas com ganchos
complicados, sapatos simples e comuns e botas de trabalho pesadas.
Os sapatos que chamaram a atenção dela cairíam bem em um homem
que ousasse exceder o eufemismo, não se importasse em ser respei-

99
tável e se deliciasse em fazer todas as cabeças virarem ao andar pelo
quarteirão. Quem poderia resistir a um homem num par de botas bi-
colores, vermelho-escuro e marfim,e com botões na lateral?
Com o dedo apontado, ela direcionou o olhar da companheira.
Aquele'?
Esse éo tipo de sapato que eu compraria pro meu homem.
As duas caíram na risada. Cada uma delas imaginou o tipo de ho
mem que usaria aqueles sapatos e o tipo de mulher que era preciso ser
ou se tornar para andar ao lado dele. Não seria uma garota tímida ou
caseira, mas uma mulher tão esperta e perigosa quanto ele. O tipo de
homem que a levaria a fazer as coisas que você nunca fazia, mesmo
se quisesse, e isso sem que ele fosse uma desculpa, estabelecesse as
regras ou bancasse o mestre, aquele tipo que se prestaria a ficar de
joelhos e implorar para que você abrisse mão dos limites do seu dese
jo:Posso te beijar lá? Seus irmãos o odiariam, convencidos com razão
de que ele seria a sua ruína, mas o tipo de homem que suas amigas
desejariam e invejariam. Ela nem é tão bonita assim. Amar esse tipo
de homem faria sua mãe chamar você de imprudente eseu pai» de louca.
Ele era o homem para quem a multidão se abria, dando passagem
para a mulher apoiada em seu braço,que seguiria ao lado ou atrás dele
sem ter de tirar pessoas enciumadas do caminho. A garota de braço
dado com ele não era mais apenas um rosto na multidão, mas o rosto
pèlo qual as outras mulheres buscavam,fuzilavam com os olhos e des
figuravam com sua inveja.
Os sapatos incitavam afantasia do homem.Pois caíam bem apenas
no tipo de homem que poderia elevar sua temperatura com um gesto:
o movimento da língua sobre um lábio inferior escuro,cor de ameixa,
ou a forma como ele empoleirava a perna nos degraus da frente e pu
xava as calças, de modo que seus sapatos esplêndidos ficassem bem à
mostra,ou o jeito como ele inclinava a cabeça e posicionava os lábios
enquanto lançava um olhar de soslaio. Um desses malandros do tipo
Nem vem que não tem» que assumem com arrogância saber o que você
quer, e se você tiver feito a escolha certa, eles sabem mesmo. Ele era
o tipo de homem bonito e perigoso que arriscava tudo para manter
a cabeça erguida, que amaria e abandonaria você, o tipo de homem

100

/i
que tinha uma fala doce, que tripudiava com o seu coraçào e deixava
um rastro de amantes angustiadas em seu encalço. O tipo de homem
capaz de fazer muito pior do que fez com você, de forma que, quando
ele parte se achando decente,você se considera sortuda por ter sobre
vivido ao amor com apenas uns arranhões e um punhado de palavras
indelicadas que ainda a encantam. A simples ideia desse amor louco
e devastador excitava as jovens porque elas o imaginavam como algo
semelhante à liberdade,a submissão desfrutada por escolha, um ato im
prudente de autossacrifício.
Duas garotas de cor, não ainda sem futuro, desejavam um belo par
de sapatos que as atraía para um mundo muito melhor, muito maior
que cortiços feios e o aperto da pobreza. Elas olharam por um bom
tempo e com atenção todos os objetos expostos na vitrine da loja,
cheias de expectativa e sonhando com uma saída.

O sociólogo se demorou na esquina da Seventh com a Lombard, um


espectador determinado a não deixar escapar um detalhe sequer da
vida fervilhante das ruas. O cruzamento era o centro do cinturão ne
gro da Filadélfia, e ali da esquina ele tinha uma vista do pior gueto da
cidade. Vestido em um terno de três peças cinza e bem cortado, com
um relógio de ouro aninhado no bolso do colete e uma bengala elegante
descansando sob as mãos bem cuidadas,ele se parecia em tudo com um
dândi.Por baixo da aparência refinada,batia o coração de um vitoria
no e um libertino. A bengala e as luvas, um hábito adquirido quando
estudou na Alemanha,eram um escudo e uma segunda pele que o dr.
W.E. B.Du Bois,então com 28 anos,esperava serem capazes de pro
teger a primeira. Ele procurava desesperadamente acreditar que um
estilo refinado poderia tornar evidente aquilo que escapava ao olhar
dos brancos — que os negros não eram iguais. Todos o notavam ali na
esquina, mas ninguém o encarou nem jogou uma pedra nele.^
Dia e noite, as ruas ferviam. A esquina oferecia um refúgio para
vagabundos,apostadores,ladrões e prostitutas, bem como para esti
vadores, carregadores, diaristas e lavadeiras. As risadas e a gritaria
estridentes que se passavam por conversa e os ritmos acelerados e

101
irregulares da vida cotidiana soavam dissonantes aos ouvidos do pes
quisador, e a cabeça dele latejava sob o seu ataque. Se não vigiasse,
seria engolido por inteiro pela urgência furiosa, pela fome incessante
do gueto. Mesmo a beleza era uma afronta nessas circunstâncias —
os garotos vestidos com elegância e as garotas atrevidas e adoráveis,
imprudentes a ponto de investir cada centavo em uma roupa.
Ele temia ser tragado pela multidão e cultivava o distanciamen
to como defesa. A aversão era nítida e visceral. Se houvesse alguma
esperança a ser encontrada no tumulto e na revolta do gueto, nas on
das de negros rústicos vindos do Sul, no excesso rural, no desejo por
mais e melhor, nos sons transgressores do bairro, ele procurava por
ela. Quem são essas pessoas?, perguntava-se.Só porque sou negro não
significa que compreenda o que esses negrospensam,sentem ou querem.
O calor de agosto era opressor,sufocante. O fedor dos banheiros e
das ruas cheias de lixo compeliam inspirações curtas. O clima do ve
rão, como o Sétimo Distrito, era intemperado e volátil, claro e limpo
num momento e tempestuoso no próximo. Em um instante, um olhar
distraído, uma piada inoportuna ou uma imitação mordaz poderia
transformar risadas em ameaças e maldições. Uma interação alta e
raivosa irrompeu na quadra,atraindo a atenção dele e a da multidão.
Dois jovens estavam atracados em uma briga. Os pugilistas se abra
çavam para evitar o dano dos golpes trocados. Uma jovem gritava
enquanto eles oscilavam e investiam. Espectadores imploravam para
que os jovens parassem com aquilo; outros os incitavam a acabarem
um com o outro. Um chapéu foi derrubado no chão e um colarinho se
rasgou. Com o brilho de uma lâmina,a multidão se espalhou. Os am
bulantes italianos e judeus se puseram em movimento, recuaram do
perigo e conduziram ligeiros seus carrinhos bambos de frutas, grãos
e farinha para longe dos negros briguentos. As senhoras brancas do
College Settlement não ousaram entrar na briga e foram atender com
diligência aqueles que esperavam pelo almoço. O clamor da rua aba
fou suas boas-vindas e derrotou os clichês, mas sopa era sopa e a pro
messa de uma refeição gratuita atraía até os mais relutantes. Quando
a polícia chegou, a vítima sangrava sozinha na calçada. Ninguém ti
nha visto nada.

102
Quarteirões e quarteirões de feiura e de disformidade era o melhor
que a liberdade podia proporcionar. Três décadas após a emancipa
ção e as pessoas negras não tinham nada. Não importa. O fluxo de
migrantes não cessava, e a pressa de viver não conteve os sonhos do
Norte,a cidade e a boa vida. Tudo o que eles ouviam em casa, nas ci
dades poeirentas do Sul,eram mentiras e promessas—as coisas eram
mais fáceis lá em cima e os brancos não eram tão ruins. Bastava uma
semana para se descobrir que nada disso era verdade. Ainda assim,
era melhor que a Virgínia ou a Carolina do Norte.Para os recém-che
gados na cidade,as únicas evidências duradouras daquilo que a Guer
ra Civil havia lhes conquistado era a possibilidade de embarcar num
navio a vapor para o Norte e vagar pelas ruas em busca de oportuni
dades que lhes escapavam.
O Sétimo Distrito era um lugar maravilhoso e arruinado,o coração
de uma metrópole negra diversa, o embrião de um gueto emergente.
A Filadélfia abrigou a maior população negra da região nordeste até
1900, quando o cinturão negro de Nova York superou a região, e Chi
cago tomou o seu lugar como a segunda maior cidade da nação. Mas,
em 1896, o lugar ainda era impressionante. Desde 1780, a Filadélfia
tinha sido um laboratório para o experimento da democracia racial
da nação e o palco principal em que se encenava ofuturo pós-escravi-
dão, A cidade se vangloriava de uma história dourada de triunfos e
realizações. A primeira lei de emancipação gradual da escravidão foi
aprovada em 1780. A Sociedade Africana Livre foi estabelecida em
1787, e as portas da Igreja Metodista Episcopal Africana BetheF se
abriram em 1794. A Sociedade Antiescravagista Americana foi fun
dada em 1833. Antes da Guerra Civil,a cidade era lar da maior comu
nidade negra livre do país, e ostentava uma pequena e próspera elite
negra. Mas havia outro lado:um surto de febre amarela em 1793 havia
delimitado fronteiras raciais na cidade. Os moradores negros foram
culpados pela propagação da epidemia, recrutados para cuidar dos
doentes e transportar os mortos, e em seguida incriminados por atos
de roubo e extorsão que supostamente aconteceram durante a crise.
A Penitenciária Estadual do Leste abriu em 1829 e inaugurou a prá
tica do confinamento solitário. Seu primeiro prisioneiro foi Charles

103
Williams, um negro. Em 1838, os negros perderam o direito de voto
depois que o Legislativo decidiu que cidadãos negros e brancos não
eram iguais perante os olhos da lei e modificaram as qualificações
para o sufrágio, antes previsto para todo homem livre e agora para
todo homem branco, livre, de 21 anos ou mais, e que pagasse impos
tos. Os levantes raciais de 1839, 1842, 1849 e 1871 agitaram a cida
de e atestaram o significado de escravidão e liberdade, de cidadão e
estrangeiro em solo nortista. Os homens negros não recuperaram o
direito de voto até 1870, quando a décima quarta e a décima quinta
emendas foram ratificadas. Octavius Catto, um jovem professor e
ativista pelos direitos civis, desempenhou um papel central na cam
panha de ratificação da décima quinta emenda na Pensilvânia. Nas
eleições de 1871, ele e outros homens negros exercitaram esse direito
conquistado a duras penas com um voto para o Partido Republica
no. Depois de depositar sua cédula na Filadélfia, ele foi assassinado
por uma turba irlandesa liderada pela polícia. Após o compromisso
de 1876 que deu um fim à Reconstrução e restituiu a escravidão no
Sul sob os disfarces de escravidão por dívida, parceria rural, servi
dão doméstica e o sistema de arrendamento de condenados, ondas
de migrantes negros começaram a chegar na cidade. Eles fugiam da
plantation e se juntavam nas ruas.

Meninos ligeiros e insolentes, meninas graciosas e robustas,coletores de


apostas,vagabundos,gângsteres ordinários,domésticas,estivadores e
prostitutas — asjovens e as batalhadoras,as velhas e as libertinas — se
reuniam na esquina da Seventh com a Lombard.O ar se adensava com
as risadas,exaltações de conquistas, mentiras maiores que os homens
que as contavam.Desocupados falavam alto uns com os outros em uma
batalha de palavras orquestrada. Cafetões sussurravam “Ei, garota,
manda ver” para qualquer mulher abaixo dos trinta que passava. Sa-
patões despiam as que eram bonitas com o olhar.Transeuntes podiam
entreouvir histórias sonhadoras sobre as coisas boas que ainda estavam
por vir. Trabalhadores e hedonistas esmorecidos contavam piadas,
desesperançosos — este é o futuro que esperávamos?

104
A bela anarquia da esquina não recusava ninguém. Era o único lu
gar onde podiam parar de procurar,descansar um pouco e ainda acre
ditar que estavam em movimento e a caminho de algum lugar melhor
que aquele. A livre associação era a única regra, e a vida social pro
míscua, seu caráter definidor. Todos eram autorizados a permane
cer brevemente, tomar fôlego, resistir ao impulso de perambular, ao
impulso da agitação e da busca. Toda hora alguém comentava Tenho
que ir, mas acabava ficando. Recém-chegados refrescavam a multi
dão; estranhos se tornavam íntimos. O fluxo de chegadas e partidas
conservava a vivacidade. As pessoas ali eram sempre as mesmas, mas
ainda assim o lugar sempre parecia diferente.
Todas as classificações e tonalidades da vida negra podiam ser vis
tas no Sétimo Distrito. Um quarto dos negros da cidade vivia ali. Os
aristocratas e os pobres se esbarravam, não íntimos(na verdade, era
raro que conversassem), mas forçados pela linha de cor a comparti
lhar as ruas, bem como o mais baixo degrau da vida social. O gueto
havia se espalhado do Quinto Distrito para o Sétimo, expandindo-se
para o Oeste. Gente de cor ocupava as ruas da Seventh até a i8* e
da South Street até a Spruce. Remapearam o distrito, bagunçando a
organização da cidade pela forma como habitavam e usavam o espa
ço público. Seus clubes políticos, igrejas, pensões, barbearias, esta
belecimentos até que razoáveis que serviam peixe frito e biscoitos, e
bares renomados por seus recitais de piano, festas, mulheres fáceis,
homens perigosos, bichas e tríbades haviam criado o cinturão negro
em uma cidade do Norte. Agora os brancos queriam o lugar de volta.
Cortiços caindo aos pedaços e moradias em vielas germinaram
nas sombras das melhores casas da Filadélfia. Negros ignorantes e
irlandeses bêbados dispostos a trocar um voto por alguns dólares ou
um frango no jantar haviam decidido a última eleição para prefeito e
derrotado o candidato reformista. As elites reclamavam que associa
ções políticas apenas acobertavam ajogatina e a prostituição. Bárba
ros do Sul haviam transformado a cidade e ameaçavam causar mais
danos se as coisas não mudassem. Osjornais diários depreciavam os
migrantes recém-chegados:eram um povo interiorano e iletrado,ina
dequado para a vida moderna e intoxicado pelos sonhos de liberdade.

105
Cidadãos preocupados, assustados com a corrupção política e o
crime em sua cidade, responsabilizavam a crescente população de imi
grantes negros, então o contrataram — um doutor por Harvard e ne
gro — para conduzir uma pesquisa sobre o Sétimo Distrito, onde eles
acreditavam que o câncer residia."^ Susan Wharton,a diretora da Col-
lege Settlement Association, e o dr. Charles Harrison, reitor da Uni
versidade da Pensilvânia,convidaram ojovem cientista social para ir à
Filadélfia e escrever um estudo abrangente sobre o problema do negro.
As razões por trás do convite não lhe escaparam.Havia um sentimento
generalizado de que algo estava errado com uma raça culpada por tanto
crime.^ Estava claro que queriam a confirmação do quejá sabiam: a ci
dade estava indo para o buraco e os negros eram os culpados.

Por um ano, ele e suajovem esposa. Nina,foram obrigados a chamar


de casa um apartamento de um cômodo parcamente mobiliado na pior
parte do Sétimo Distrito. Eles ainda eram amantes tímidos praticando
os papéis de marido e esposa. Ele agia de modo paterno,como um ti
rano cordial, da forma como imaginava que um marido e chefe do lar
deveria agir. Nina,uma belajovem miúda e de olhos escuros,atendia às
instruções dele,seguindo sua liderança como se ainda fosse sua aluna.
Quando ele dava aulas em Wilberforce, Nina cursava sua disciplina
de clássicos. No início do semestre, ele notou aquela beleza delicada.
Completamente apaixonado pelos cabelos pretos e lustrosos dela, as
curvas bem definidas, os olhos grandes e sinceros,a cor de canela, Du
Bois a pediu em casamento,e no fim do ano letivo estavam casados.O
refinamento dela e seus sólidos alicerces familiares asseguraram a união.
O pai de Nina era um chefe respeitado,e sua mãe,de origem alsaciana,
uma dona de casa atenta e amorosa que cultivara a graciosidade e as
excelentes maneiras da filha. Du Bois a idolatrava, mimando-a com
presentinhos e surpresas. Ávida por agradar. Nina era uma dona de
casa meticulosa e esposa devotada. Ela aprendeu rápido a colocar em
primeiro lugar o trabalho dele e sua vida pública.
O número 700 da Lombard Street — a College Settlement House
— ficava no coração do gueto. Ali eles viviam ao lado daqueles que

106
ele tinha ido estudar, residindo em uma atmosfera de imundície, be
bedeira, pobreza e crime.® O abrigo fora construído nas ruínas da
notória Saint Mary Street, outro projeto frustrado de limpeza do
gueto e renovação urbana.“Cortiços modelo” um dia ladearam a rua,
oferecendo aos pobres dignos um exemplo de como deveríam viver,
com senhoras caridosas, enfermeiras e visitantes simpáticos, além
da polícia, que oferecia as instruções necessárias para a ascensão e
melhorias.(Dessa vez Susan Wharton pretendia fazer um trabalho
melhor, e não trabalhar às cegas.Y Quando os antigos cortiços foram
demolidos, os moradores foram espalhados em outras partes, mas
pouca coisa mudou. As ruas ao redor estavam abarrotadas de negros
indolentes,com uma pitada dejudeus russos e alemães e um punhado
de italianos. A College Settlement House replicou esse esforço ante
riormente frustrado em melhorar o gueto e ascender o negro. Mas a
limpeza do gueto apenas exacerbou a linha de cor, desalojando pes
soas negras e pobres que tinham ocupado as piores quadras e alocan-
do-as nas áreas para as quais as pessoas da classe mais alta tinham
fugido,esperando escapar das condições dos negros menos afortuna
dos. Melhor não limpar umafossa atéque se saiba onde o refugo pode ser
descartado^ Um gueto desapareceu e outro emergiu. Os funcionários
do abrigo e os reformadores habitacionais falharam em perceber que
o gueto não era um simples fato; era um sintoma de problemas sociais
e históricos maiores. Nas próximas duas décadas, o quarteirão negro
se tornaria — um cerco racial, uma prisão a céu aberto.®
Após uma semana de residência no distrito, Du Bois aprendeu que
assassinato era um lugar-comum e que a polícia representava o úni
co governo. No fim de agosto, ele sabia que não devia se levantar e
ir olhar pela janela quando ouvia pistolas dispararem. Duas quadras
adiante, a polícia uma vez deteve 48 prostitutas em uma operação
matinal. O Inquirer reportou que a batida na “Pequena África rendeu
um tribunal cheio de mulheres de todos os tons, do preto retinto ao
dourado,todasjovens,todas duronas e todas muito dadas à arrogân
cia e às blasfêmias vis”.^°
Pobreza, crime, desemprego, superlotação, falta de habitação
digna e acessível e famílias destruídas infestavam o Sétimo Distri-

107
to. Tudo isso exemplificava os problemas do emergente gueto negro.
Du Bois culpava a moral lassa, a promiscuidade, as crianças nasci
das fora do casamento e o desprezo da união conjugal pela crise so
cial ou revolução da vida íntima negra que ocorria no gueto. O lar,
que tinha sido destruído pela escravidão, lutava para emergir após a
Emancipação, mas se encontrava novamente em risco. Ele culpava a
plantation e a cidade pelo estado lamentável da vida doméstica. As
relações casuais, os casamentos transitórios e famílias que falhavam
em se conformar ao padrão papai-mamãe-filhinhos o perturbavam:
mães solteiras; uniões do mesmo sexo; mulheres chefes de família;
famílias compostas de irmãos, tias e crianças; famílias que mistura
vam parentes e estranhos;casamentos em série;“viúvas” desprovidas
de apoio legal;jovens vivendo com amantes sem laços matrimoniais;
inquilinos e hóspedes agindo como maridos temporários; um homem
que desaparece de uma casa e surge em outra para criar o filho de um
estranho como se fosse dele. A coabitação descendia diretamente da
plantation e era praticada deforma considerável. Dez a 25 por cento das
uniões do gueto eram uniões estáveis, coabitações temporárias e re
lações que duravam de dois a dez anos. Tais ligações eram tidas como
ruins e imorais, e o ambiente doméstico era considerado insalubre e
um perigo para a sociedade. As mulheres assumiam os deveres dos
homens,e os homens dependiam dos ganhos de suas irmãs, mães e es
posas para sustentar a família. Homens à procura de trabalho deixa
vam companheiras e filhos para trás, começavam novas famílias em
outro lugar e agiam como substitutos de outros que haviam desapa
recido. Talvez uma tia, amante ou inquilina fizesse o mesmo por ele,
assumindo dependentes e obrigações que outros haviam abandonado
ou que não podiam cumprir, porém tais práticas permitiam a sobrevi
vência. O parentesco flexível e elástico não era um “reminiscente da
plantation”, mas um recurso da sobrevivência negra, uma prática que
documentava a generosidade e a reciprocidade dos pobres.
Para ojovem sociólogo,o tom da vida social negra era promíscuo.
Ele culpava essa condição pelo número desproporcional dejovens e o
excedente de mulheres novas que haviam migrado para a cidade — o
que encorajava o amor livre e os excessos sexuais. Nesse excedente.

108
previa uma tragédia tão profunda e sombria quanto qualquer outra na
história da lida humana}"^ A fuga para a cidade e o vagar de um lugar
para o outro em busca de uma vida melhor haviam produzido um le
vante social. Sessenta por cento da população negra tinha menos de
trinta anos de idade. A tendência a se casar mais tarde, as dificulda
des econômicas,a alta taxa de mortalidade entre os homens negros e
as práticas sexuais instáveis revolucionavam a vida íntima negra. As
mulheres excediam os homens. Charlotte Perkins Gilman, escritora
e feminista, identificou pela primeira vez o perigo das “mulheres fá
ceis” na cidade. Essas mulheres excedentes eram incapazes de asse
gurar um casamento ou gerar famílias adequadas porque o número de
mulheres solteiras ultrapassava o de homens disponíveis. Elas atra
palhavam a trama conjugal e geravam crianças sem nome.
O drama por trás das estatísticas e das proporções de gênero dis
torcidas se dava mais ou menos assim: dois jovens sem condições fi
nanceiras para casar ou sustentar uma família ingressam em um casa
mento impensado.O marido,incapaz de manter a esposa,e agora uma
criança, com seus ganhos, precisa que ela trabalhe também; esse era
um estado daquilo que os sociólogos descreviam como homens pela
metade. O casal lutava para sobreviver e enfrentava conflitos conju
gais,e então a esposa se tornava uma lavadeira, o marido desertava ou
o casal escolhia se separar. Outros cenários inclm'am promiscuidade
sexual e homens sustentados por mulheres. Du Bois temia que “exérci
tos de prostitutas negras”e “prostitutas indetectáveis”se passando por
mulheres comuns sobrepujassem a raça. Tais mulheres figuravam de
forma proeminente nas ansiedades dele com relação ao futuro.
Os altos índices de solteiras diminuíam os padrões de vida e pro
moviam relações casuais, coabitação, a aceitação e a rejeição de
amantes à vontade. Os hábitos morais lassos do regime escravocra
ta ficavam aparentes em relacionamentos arruinados por caprichos
e desejos. O sexo casual era um lugar-comum. Abandono,separação
voluntária e morte explicavam o grande número de lares sem maridos
e pais. Mais da metade das mulheres do distrito eram solteiras, viúvas
ou separadas,e isso punha em perigo a recém-formada família negra.
Tais eram os frutos de uma revolução social repentina.

109
Os homens, incapazes de sustentar a família com ganhos tão bai
xos, arruinavam garotas, abandonavam mães e deixavam esposas.
Uma mudança tão repentina nos hábitos conjugais representava graves
perigos. A devassidão sexual surgia como uma consequência secundária,
trazendo o adultério e a prostituição em seu encalço. A imoralidade se
xual era uma mácula no caráter das pessoas negras. A escravidão e a
total desconsideração pela virtude e respeito próprio da mulher negra,
12
tanto nos tribunais como nas tradições, eram responsáveis por essa
vergonha, essa desgraça.
As considerações de Du Bois vacilavam, à medida que a qualida
de emocional da justiça e a mágoa do sentimento compartilhado so-
prepujavam a frieza estatística. Uma jovem mãe traída pelo amante
pode incorporar toda a ruína e a vergonha da escravidão e também

110
representar tudo o que era bom e natural na feminilidade. Du Bois se
equivocou com relação à liberdade sexual e, décadas depois, chegou
perto de endossar o amor livre quando este coincidia com o desejo
materno.Para ele, a maternidade era sempre nobre e virtuosa porque
se definia fundamentalmente pela devoção, pelo sacrifício, o heroís
mo e a fortuna da afeição natural, o que se distinguia do egoísmo e
dos prazeres carnais. Ele viria a acolherjovens mães traídas e perce
ber a constituição de novos ideais revolucionários nas escolhas que elas
fizeram e na forma como viviam. Forçado pelas circunstâncias, foi
levado a reconhecer que a vida das mulheres negras não era ditada
pela maternidade conjugal,e a aceitar que o franco desejo sexual era
um sinal de saúde em uma cultura que venerava virgens e insultava
prostitutas. Em um romance,*® ele teve a habilidade de transformar
em heroína uma garota arruinada que cresceu em um bordel, mas
alcançar o mesmo feito em um estudo sociológico se provou quase im
14
possível. A literatura era mais capaz de lidar com o papel do acaso
nas ações humanas e de iluminar a possibilidade e a promessa do ca
minho errante.

Nenhum muro cercava o gueto negro,*® separando-o do resto do mun


do. Os vizinhos judeus e italianos nos cortiços adjacentes ainda não
eram brancos.*® O conforto e a identidade deles ainda não dependiam
de pactos restritivos que proibiam pessoas negras de morar na mesma
quadra; ainda não haviam saboreado a palavra crioulo^ nem a tinham
pronunciado com um orgulho e patriotismo como se balançassem a
bandeira,com a certeza de que o epíteto,tanto quanto as estrelas e as
faixas do estandarte,estabelecia sua posição e segurança na república.
O quarteirão negro ainda não era o gueto negro, mas a cada dia uma
nova pedra era colocada em seu lugar.Ainda não era umazona de cerco
racial caracterizada por extrema privação e violência frequente.Ainda
não era uma reserva para os despossuídos e para aqueles relegados
como fungíveis, descartáveis,excedentes e não totalmente humanos.
O gueto ainda não era uma conclusão antecipada. Em duas décadas,
isso deixaria de ser verdade.

111
A cada ano mais e mais negros inundavam o distrito, o que con
centrava as mortes e a pobreza da cidade no quarteirão negro e tor
nava mais difícil enxergar além do gueto ou sonhar em escapar dele
algum dia. As ruas sujas e as parcas condições habitacionais não eram
o centro da questão. O gueto era o sintoma de um problema que evo
luía havia 250 anos, mas ninguém recebia bem as explicações que co
meçavam com a chegada de vinte e tantos africanos em Jamestown,
Virgínia, e prosseguia enumerando crimes que jamais poderiam ser
perdoados. Três décadas após a Emancipação,a liberdade era um ex
perimento aberto.^^ Para a maioria das pessoas brancas, a liberdade
ainda era impensável e, pior, era um crime.
De sua janela, um andar acima da rua, Du Bois observava os vizi
nhos. Os bons elementos se misturavam com os maus e viviam lado a
lado em aparente harmonia.*® Ao olhar indiferente dos brancos, eles
eram apenas negros, nada mais. Os mais pobres faziam fila para pegar
sopa e pão na cozinha do abrigo. De sua posição elevada, ele podia sen
tir o cheiro da pobreza deles tão bem quanto o aroma de suas refeições.
Diante dele havia um mar de rostos negros. Alguns eram oprimidos
pela pobreza, outros, ainda livres de seu jugo, eram questionadores e
inteligentes. Diaristas, amuadas e exaustas, se arrastavam para casa,
passando por migrantes esquálidos impressionados com a diversão e a
miséria do distrito. Seus olhos vagavam do grupo de desocupados reu
nidos na esquina para asjovens imprudentes e as mais velhas amargu
radas. Na Lombard, na Kater, na Middle Alley, as pessoas se reuniam
nos degraus de entrada dos cortiços, aproveitando o indulto da cozi
nha,do chefe, da patroa e da labuta, pelo menos por algumas horas.
Fora da vista de suajanela,havia as mulheres reunidas no pátio,que
bebiam cerveja e jogavam cartas. Aos olhos uma da outra, elas eram
espertas, loucas, indomáveis, mulheres com quem não se podia brin
car. Fofocavam sobre aquelas que tinham se mudado para Nova York
esperando encontrar uma vida melhor do que aquela que a Filadélfia
tinha para oferecer,ir para o palco ou deixar os problemas para trás. As
mulheres trocavam causos sobre os vigaristas na esquina,xingavam os
vagabimdos pelos quais não valia a pena lutar, gabavam-se de ter rala
do a noite toda, mentiam sobre serem casadas e nunca deixavam esca-

112
par que a irmà delas era, na verdade, namorada.Allpimps look alike to
uma exclamou,cantarolando a melodia popular. Ainda assim,as
afirmações estridentes — Não quero ele;podeficar—e as risadas altas
e desinibidas que irrompiam após cada anedota compartilhada sobre
um homem bonito e sem nenhum valor não disfarçavam o silêncio de
licado que se seguia quando aquela que falava da forma mais furiosa
confessava: Tudo o que eu sempre quisfoi um preto sincero?^ Ainda assim,
as confidências compartilhadas no pátio e o conhecimento coletivo das
condições lamentáveis de uma delas não evitaria que amigas saíssem
no tapa por causa de um mulherengo ou que se metesse com o marido
de outra. Elas se deliciavam com boatos e criavam escândalos ao embe
lezar o disse me disse até que a verdade não fosse mais possível de dis
cernir, mas ficavam sérias ao compartilhar as notícias do dia: os três
policiais de cor contratados pelo prefeito,e a história nojornal sobre o
leiteiro de cor linchado em Ohio.
Se Du Bois tivesse visto as mulheres de sua janela, elas poderiam
ter lhe parecido exaustas e disformes depois do longo dia de traba
lho limpando a sujeira dos brancos, ao se arrastar para casa, para os
cortiços sujos e vielas. A visão de uma lavadeira, sob o fardo de um
cesto de roupas sujas, caminhando com dificuldade pela imundície
da viela, podería ter encorajado o desespero dele. O galope das botas
pretas puídas dela era acompanhado por pragas e blasfêmias resmun
gadas, direcionadas àquela maldita cidade. Alguns homens se senta
vam diante de portas abertas, forçados a sair de casa para escapar
de cômodos sufocantes e abafados. Mulheres jovens perambulavam
pelas ruas, à deriva e rumo à encrenca. Onde estavam os pais delas,
seus tios,seus irmãos?,ele se perguntava. Não aqueles desocupados à
toa na rua em cadeiras com encosto de palha, nem aqueles bandidos
reunidos na esquina. Onde estavam os trabalhadores decentes? Nesse
grande centro industrial, as portas da siderúrgica e da ferrovia eram
fechadas na cara dos homens negros, eles eram barrados em fábricas
e apartados das profissões especializadas. Eram desocupados às mar
gens da indústria?^ As mulheres excediam os homens em número.Isso

* Em inglês no original:“Para mim,todos os cafetões são iguais”.

113
produzia uma condição insalubre, encorajava-as a copular casual
mente, e aos homens a se relacionar e trocar de mulheres como lhes
convinha. Estatísticas e proporções não eram exangues e abstratas,
mas antagonistas na trágica história da feminilidade negra.
Nosgráficos que documentam as uniões conjugais de pessoas negras,
as barras horizontais são bem evidentes;tudo o que faltou no gráfico de
barras em preto e amarelo “Mortality of American Negrões”[Mortali
dade dos negros estadunidenses]foi o vermelho indicando a morte e o
sofrimento que haviam produzido esse estado de coisas. Um diagrama
colorido à mão forneceu um quadro completo da crise, um documento
visual de um futuro em perigo. Nada nas tabelas estatísticas pôde me
garantir alguma coisa, nem correu o risco de ser confundido com um
exemplo autobiográfico, tampouco exigiu que o sociólogo cedesse aos
desgostos dosfatos frios,embora quadros e gráficos pudessem nos alfi
netar tão prontamente quanto qualquer fotografia. Um mundo inteiro
podería ser feito e desfeito por uma série de figuras,e o futuro podería
ser eclipsado por proporções ou linhas de um fluxograma. A tabela de
uniões criada, separada e frustrada representou uma épica histórica de
amor e problemas, uma longa crônica da violação e do toque indeseja-
do. As vidas acabadas e destruídas aparecem exangues nos diagramas;
os quadros morais eram frios, objetivos, independentemente de quão
devastadoras eram as imagens sociais que pintavam.
As mulheres atraídas para a prostituição e forçadas a se vender
para ganhar dinheiro rápido desapareceram nas colunas identifica
das como lares irregulares e indecentes. O trabalho sexual era um cri
me disfarçado em outras categorias,como furto, assalto e agressão.
Durante a escravidão, a lei de propriedade ordenava que as mulhe
res negras se submetessem a qualquer homem branco que as quises
se; hoje, a pobreza ditava o curso delas. As mulheres negras, uma
vez vendidas, agora eram coagidas a vender o corpo para ganhar
dinheiro rápido. Esse novo tráfico de mulheres trazia a marca do
antigo comércio de mercadorias humanas. Em meio ao pânico mo
ral que marcou as primeiras décadas do século 20, reformadores e
jornalistas denunciavam a prostituição como a “escravidão branca”,
e assim também o faziam os legisladores e promotores, embora não

114
CONJUGAL CONDITION.

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houvesse nada de branco nisso, pelo menos não no que dizia respei
to às mulheres negras do distrito, cujos corpos violados e as capaci
dades exploradas eram a norma, não a exceção. Cada mulher de um
dólar e cada prostituta de cinquenta centavos que trabalhava na
Ratcliífe Street ou na Middle Alley representava mais um nome ins
crito no livro-razão.
O peso esmagador da escravidão recaiu sobre as mulheres negras.
Fora isso, que tipo de mulher poderia nascer no mundo de hoje? O adul
tério e a degradação são sua herança e condição atuais. O que de bom po
deria vir dessas mulheresT^'^ Levaria décadas até que Du Bois pudesse
encontrar uma resposta que não as condenasse nem lhes apontasse
um destino terrível. Por enquanto, ele se concentrava em elaborar as

115
forças sociais e históricas que haviam produzido o problema. Uma li
nha reta poderia ser traçada da plantation até o gueto. Diferente de
seus colegas sociólogos que se contentavam em contar os bastardos e
asprostitutas^"^ e parar por aí, ele reconheceu o longo histórico de cor
rupção sexual que marcava a face do presente. Ao olhar para a trilha
de mulheres exaustas se arrastando a caminho de casa,ele temeu pelo
futuro. O mundo havia relegado aquelas mulheres a um destino me
donho. Ele tremeu diante da visão delas.^'^

Asinquirições de porta em portalhe demandavam de oito a nove horas por


diainspecionando o distrito e entrevistando seus vizinhos.Ele tinha pouca
experiência com esse tipo de negros urbanos e pobres.A maioria morava
na cidade fazia poucos anos, mas já havia sido marcada pela acolhida
hostil e fria da antipatia do norte e tinha sido endurecida pelas privações
e violência do gueto.Eles em nada se pareciam com os camponesesfiéis e
solícitos das colinas do Tennessee a quem ele tinha dado aulas durante as
férias de verão da Universidade Fisk,onde pela primeira vez experimentou
um mundo completamente negro.Os Dowell e as outrasfamílias seimiam
na adversidade comum da pobreza,^ mas ainda assim o receberam bem,
um estranho,e compartilharam suas casinhas escrupulosamente limpas,
forçando-o a repetir suas refeições defrango frito,biscoitos de trigo,broa
de milho,vagens e frutos silvestres. No distrito,esse tipo de boas-vindas
era raro. Quando batia nas portas do Sétimo Distrito,ele geralmente en
contrava rostos contrariados e olhos desconfiados, duvidosos. Olhares
duros o fitavam longamente. A maioria dos moradores do distrito sabia
que deviam ter cuidado com aqueles que os estudavam.
Como ele poderia explicar o propósito de seu estudo:educar o mun
do sobre a vida do negro e as razões que nos forçavam a viver como
vivemos? Quem ele era? Ninguém. Era só um estranho se intrometen
do em suas vidas com perguntas invasivas. O mundo dos brancos, ele
queria lhes dizer, ignora nossas circunstâncias. Se nós os educarmos,
podemos mudar nossa condição.
Nas 835 horas^^ de conversa com 5 mil pessoas do distrito, elas
perguntaram. Por que você está estudando a gente? Não seria melhor

116
estudar os brancos,já que eles é que precisam mudar? Perguntavam-
-se que negro seria tão franco ou ingênuo a ponto de acreditar que
a simples verdade podería mudar as pessoas brancas. Como se elas
fossem cegas para o mundo que elas mesmas tinham criado. Ou nào
sabiam tratar os negros de outro jeito que não feito cães?
Nós não somos cobaiasl

A visão de um homem de cor trajado impecavelmente adentrando


porões, cortiços e casas de viela não passou despercebida. Sem dú
vida, a aparência do cavalheiro afetado que caminhava pelas vielas
imundas do distrito divertia algumas pessoas. Outros desconfiavam de
seus modos arrogantes e da forma reservada com que se comportava
na companhia deles. Alguns fechavam a porta em sua cara; aqueles
menos hostis participavam com relutância,fornecendo respostas su
cintas às perguntas, de forma que as entrevistas não duravam mais
que quinze minutos. Os bordéis e os antros de jogatina negavam sua
entrada, assim como os lares impecáveis da elite negra, embora por
razões diferentes.Esse pequeno alto escalão evitava as piores quadras
quando passeava em suas carruagens elegantes;eles preferiam manter
distância das classes mais baixas, na medida do possível. Mantinham
distância dele, mas deixavam ojovem socióiogo ao alcance.Estranhos
raramente conseguiam entrar no círculo deles. Muitos nessa camada
mal pareciam negros e poderiam ser mais bem descritos como brancos
com uma pequena porcentagem de sangue negro.
Qualquer orgulho racial despertado pelo sucesso deles vinha mis
turado à decepção. A sua obsessão pela autopromoção e a busca obs
tinada por riqueza e conforto os cegava para as condições das clas
ses mais baixas, exceto quando incomodados ou envergonhados por
alguma nova crise ou escândalo causado por elementos criminosos,
mas pelos quais eles também seriam forçados a pagar.
“Acha que somos animais pra sermos dissecados por um negro es-
tranho?”27
“Agradeço o seu tempo,senhora.” Ele escrevia relutante em respon
der na agenda de perguntas.

117
*

“Qual é o objetivo dessa pesquisa?”,a mulher perguntou,olhando des


confiada para ele.
“Apenas chegar na verdade”, ele respondeu.
“Você pretende fazer alguma coisa depois que conseguir os fa
tos?” ela inquiriu.
“Nós apenas coletamos os fatos”, ele replicou.“Outros podem usá-
-los como queiram.”
“Então você só está tentando juntar os fatos, e não melhorar as
coisas”, ela disse.
“Sim”, ele respondeu.
“Humpf”, a mulher replicou e então se negou a lhe dizer qualquer
coisa.^®

“Por que os negros estão se saindo mal,é esse o mistério que você está
tentando resolver?”
Quando as risadas se acalmaram, Du Bois seguiu para a próxima
pergunta.

Com eles, Du Bois aprendeu muito mais sobre o problema do negro


do que imaginou que seria possível.^® Ter nascido de uma raça não o
dotou de uma mina de conhecimento.Sua experiência de ser negro era
tardia. Ele começou a pesquisar sem nenhum método,apenas fazendo
visitas e conversando. Entrevista após entrevista, as pessoas negras
deixavam claro que queriam mais,e que mereciam algo melhor do que
o que recebiam. Enquanto a maioria duvidava de que a pesquisa fosse
fazer alguma diferença,as pessoas dividiam detalhes de sua vida com
ele. Ninguém nunca tinha perguntado como elas conseguiam ganhar
a vida juntas, ou o que desejavam para os filhos, ou quais eram suas
experiências com o mundo dos brancos,ou quais dificuldades enfren
tavam ao tentar encontrar um lugar para morar,ou por que tanta gente
morava em tão poucos cômodos.Du Bois os ouvia falar das remunera-

118
ções baixas,do fato de serem excluídos das profissões que costumavam
ser deles mordomos, motoristas, barbeiros e maitres — e barrados
nos novos empregos nas siderúrgicas. Apesar da ausência de placas
informando com clareza,“Negros não devem se candidatar”, ninguém
queria contratá-los. Os homens não conseguiam encontrar trabalho e
as mulheres ficavam encurraladas no serviço doméstico. Mão de obra
não qualificada e salários baixos eram as únicas oportunidades que os
aguardavam na cidade. Um terço dos negros na cidade eram empre
gados.^® Nove em cada dez mulheres eram domésticas. Muitas, quase
vinte por cento, moravam na casa dos brancos,^^ onde se viam sozinhas
e isoladas.Não» elas nunca se sentiam parte ãafamília. Aquelas que não
moravam no trabalho gastavam quase todo o salário com o aluguel.
Tinha semanas em que seus filhos só comiam aquilo que elas podiam
levar para casa da cozinha das mulheres brancas.“ Os brancos con
sideravam isso roubo. Mas como podia ser errado levar para casa as
sobras das refeições que elas mesmas haviam cozinhado? Deveriam
negar seu trabalho e seu cuidado para a própria família? As horas que
passavam preparando biscoitos e carne assada não deveriam beneficiar
seus próprios lares? Como alimentar seus filhos podia ser crime?
Cada dia era um teste da afirmação:Eu não sou uma escrava. As coi
sas pareciam estar piorando.Profissão? Ele nem precisava perguntar.

Muitas perguntas eram questões de conhecimento público — Nome e


endereço? Sexo?Idade? Local de nascimento? Tempo de residência? Ou
tras eram mais invasivas:Sabe ler? Sabe escrever? Estado civil? Relação
com o chefe da família? Membros da família que moram na residência?
Du Bois fora tolo o suficiente para esperar respostas inequívo
cas a perguntas como: Você é casada ou viúva? Mas tais questiona
mentos sobre os assuntos íntimos e privados estavam no centro do
desvio que ele havia presumido e buscava documentar. Os experi
mentos conjugais deles excediam as leis e as desafiavam. Os rostos
inexpressivos, as evasivas, explicações distorcidas e mentiras o
surpreenderam. Ou você era casada ou não era. Ou foi assim que
pareceu. O chefe da família é o pai dos seus filhos ou um amante

119
que ajuda no sustento deles? Se ela trabalha regularmente, então
ela é a chefe da família? E no que diz respeito às crianças cujo pai
desapareceu antes que a mãe se tornasse uma senhora casada? Cha
mar a si mesma de viúva não era a coisa certa a se fazer para o filho
dela? Como a sra. Washington poderia admitir que era prostituta ou
explicar que uma vez fora uma estivadora com um nome diferente?
Não é melhor não explicar? Quando nãofornecidas as informaçõesy
acrescentar “desconhecido’'ou “sem resposta”.
Uma mulher em circunstâncias discutíveis poderia responder a in
dagação dele com uma própria.Talvez elas tenham discernido os pensa
mentos dele:Lares degradados como estes[são]uma mera continuidade do
passado. Ogrupofamiliar luta para se recuperar da devassidão da escravi
dão?"^ O desgosto e ojulgamento estariam presentes no olhar do soció
logo ou no tom de sua voz? Histórias elaboradas eram inventadas para
esconder a verdade de circunstâncias embaraçosas ou disfarçar as com
plexidades de arranjos íntimos. O silêncio contido e inflexível muitas
vezes contornava as réplicas das perguntas. Se as entrevistas tivessem
sido gravadas, nós poderiamos esperar ouvir evasivas do tipo:
“Marido? Qual deles?”
“E o que importa o que a lei diz, não é como vivemos que conta?”
“Ele era meu marido, mas não no papel. Temos moral como todo
mundo.'
“Ele cuidou de mim e dos meus filhos, então eu tenho todo o direi
to de usar o nome dele.”
“Viúva. Eu não sei quando foi, mas tenho certeza de que ele está
morto.
“Não,eu não conheço o meu pai. Foi minha mãe que colocou comi
da no meu prato.”

Seu pai era uma vagalembrança.Os únicos detalhes dos quais se lembrava
eram aqueles que tinha conseguido salvar das histórias contadas pela
mãe.Alfred Du Bois abandonou afamília um ano antes do nascimento
de seu filho William. Como muitos daqueles que entrevistou, Du Bois
cresceu sem saber se o pai estava vivo ou morto. Metade das mães no

120
distrito se declarava viúva.s^ Ele se confortava com o fato de que ao
menos seus pais tinham sido casados. Fora poupado da vergonha de
ser um filho sem nome,o que teria aumentado a ferida de ter sido aban
donado e nunca ter conhecido o pai. Seu irmão mais velho, Adelbert,
nasceu bastardo(de um pai diferente). A rede de mentirasfabricadas por
seus tios e tias sobre um romance frustrado,ou um noivado rompido,
entre sua mãe e o primo para o qual ela estivera prometida pouco fez
para ocultar a dura verdade ou torná-la menos dolorosa.
A verdade simples do parentesco ferido* soava como um blues:É
aquela velha história, sempre a desgraça de um homem. Querido, volte
pra casa. O que importa se ele não me ama mais?Papai, o que você tem
agora que não tinha antes? Aquele homem me maltrata. Você não ganha
nada sendo um anjo. Melhor mudar de rumo a perder o prumo. Você não
quer mulher nenhuma,sófazficar vagando pelas ruas. Eu segui meu pai
até0 túmulo.** Outras histórias, sóbrias e lamuriosas,como o sermão
de um pastor, alertavam para os perigos que aguardavam logo além
da porta,quando se era repreendida ou desprezada,quando se ousava
questionar Deus sobre quanto um negro deveria suportar.

Se viviam em um ou cinco cômodos,as pessoas negras dividiam as mes


mas esperanças.Desejavam e rogavam que as coisas terríveis que tinham
acontecido a elas,a suas mães e pais,não acontecessem com seusfilhos.
Amaldiçoavam os homens brancos e o mundo.Quarenta anos no deserto
não tinham sido suficientes? O que mais teriam de aguentar?
“Quero coisa melhor pra minha filha do que limpar casas.”
“Eu sei que não sou o que deveria ser, mas não quero que ela seja
como eu.>’3S

* O parentesco ferido,aqui tratado como a eiaboração da experiência de ausência


paterna pelas famílias afro-americanas,já foi mencionado por Saidiya em um artigo sobre
o processo de construção coletiva das identidades negras no âmbito da sociedade
norte-americana. Ver Saidiya Hartman, Tempo da escravidão. Contemporânea: revista
de socioiogia da Ufecar,São Carlos, v.io, n.3, pp.327-48,set.-dez. 2020.
** Os trechos destacados em itálico remetem aos versos de canções de blues. Confira
“Dyin* by the Hour”, por Bessie Smith;“Wild Women Dont Have the Biues”, por Ida Cox;
“Long Tall Mama”, por Bernice Edwards;“Death Letter Blues”, por Ida Cox.

121
●f!§

Os olhos delas fitavam os de Du Bois como se lhe implorassem uma


solução. Havia alguma resposta ou remédio que podería ter lhes esca
pado? O sociólogo ficava em silêncio.
As conversas o humilhavam. Por fora, ele permanecia um obser
vador imparcial. Seu comportamento cavalheiresco e as maneiras re
servadas da Nova Inglaterra — mesmo seus amigos o chamavam de
querido Du Bois — não agradavam e aumentavam o abismo entre ele e
as pessoas negras comuns. A distância era um requisito da pesquisa e
uma atuação estudada. Ficava dilacerado pelas histórias que coletava
dia a dia em suas entrevistas. Foram 835 horas de esperança e deses
pero — e ele era o Atlas obrigado a carregá-las nos ombros. Era o re
positório de toda aquela luta e decepção, o colecionador de anedotas e
histórias, alguém que se apegava a todas aquelas vidas machucadas. O
que podería organizar em uma sequência ordenada nos planejamentos,
quando tanta coisa excedia esse trabalho? Essas outras informações
ele guardou na memória. Lamentou pela habilidade e inteligência des
perdiçadas porque o mundo falhou em reconhecer os talentos e notou
apenas os problemas, como se a pobreza e a fealdade não fossem os re
sultados de uma contínua relação entre senhores e escravos, que era
agora conduzida pelos filhos e filhas deles, circunscrevendo todas as
pessoas em um mundo dividido pela linha de cor. Era esse o significado
do progresso. No entanto, a inocência e a indiferença evitaram que o
resto do mundo fosse responsabilizado, que reconhecesse sua dívida e
assumisse seus crimes.
O talento e a ambição negros não tinham outro meio que não a
rua. Sob outras condições, o que poderiam ter realizado? Em cada
engraxate espreitava um físico, um engenheiro e um artista; e nas ga
rotas ligeiras, presas fáceis para as aflições do desejo, ele via profes
soras, assistentes sociais e matronas íntegras, se ao menos as coisas
tivessem se dado de outra forma. Du Bois ficava magoado com a visão
de todos aqueles jovens impedidos de avançar mais que suas mães e
seus pais, forçados a realizar atividades subalternas para ganhar o
pão de cada dia. Eram amargurados, descontentes e se recusavam a
trabalhar porque foram impedidos de exercer suas vocações.^® Quem
poderia culpá-los por rejeitarem a servidão, por sua relutância em fin-

122
gir que ser circunscritos ao trabalho manual era uma oportunidade?
Quem podería culpá-los por se recusarem a ser treinados para servir?
Testemunhar tais inteligências e ambições frustradas o afetou pro
fundamente. Mudou a forma como via as pessoas negras e, em seu
tempo, transformaria radicalmente sua compreensão dos problemas
que elas enfrentavam. Quando chegou lá, Du Bois as via como recrutas
brutos e bárbaros^ e as culpava pelo crime e pela sordidez do distrito.
A debandada irrefletida de negros atrasados para a cidade alimentou a
antipatia dos brancos e precipitou o declínio das melhores vizinhan
ças negras. Densos bolsões de pobreza e de vício se concentravam
no distrito. Ele entendia que os recém-chegados eram impelidos pelo
desejo universal de subir na vida e de escapar da limitação sufocante
da plantation e da repressão ilegal do Sul. Ainda assim, a menos que o
movimento deles em direção à cidade fosse inspecionado e que fossem
criadas oportunidades reais, como eles poderíam evitar se tomar po-
bretões, vadios, prostitutas e criminosos? As classes mais baixas luta
vam pela mera existência física.^^ Como poderíam deixar de prejudicar
ou ameaçar a tênue posição da melhor classe de pessoas negras?
Du Bois sempre havia imaginado que pessoas como aquela gen
te pobre e sem educação esperavam que alguém como ele aparecesse
para melhorar sua condição. Enquanto permanecia apegado à ideia
de que os homens mais bem equipados da raça seriam aqueles que con
duziríam o restante e direcionariam a massa para longe da contamina
ção e da morte da ralé, ele descobriu que os estratos mais baixos não
esperavam que ele ou nenhuma outra pessoa os resgatasse. O conhe
cimento que essas pessoas compartilhavam excedia muito o escopo
da pesquisa dele. A agenda de perguntas abordava as circunstâncias e
condições materiais, mas a existência daquelas pessoas não podia ser
reduzida aos empregos que tinham,ao tempo de estudo,aos membros
da família que residiam no apartamento. Muito do que elas queriam
dizer não tinha a ver com as perguntas dele. O anseio e a raiva im
pregnavam as entrevistas, e apesar da armadura do sociólogo, esses
sentimentos também o tocavam. Ele entendia por que aquelas pes
soas sentiam o que sentiam, e ele se sentia assim também.

123
—A cada dia uma porta se fecha. Antigamente, você podia encon
trar trabalho de mordomo ou garçom, agora os brancos não querem
nem olhar na sua cara. Eles preferem contratar um irlandês ou um
alemão em vez de um negro. São estrangeiros, mas são brancos.
— Eles não enxergam um ser humano.
— Minha filha tira boas notas na escola, e a professora dela dis
se que um dia daria uma excelente empregada. Uma professora tinha
que moldar o que a pessoa pode ser, não dizer pra uma criança que ela
não pode esperar nada da vida.
— Nunca fui insultada na rua, mas minha filha já. Uns meninos
brancos chamaram ela e os amigos de tudo quanto é nome. Ela che
gou em casa chorando. Minha mãe se lembra de quando um negro não
podia andar de bonde nem andar em paz na via pública.
— Todo mundo sabe que numa cidade como a Filadélfia um negro
não tem a mesma chance que um homem branco.
— Como você explica para os seus filhos que o homem branco está
metido entre eles e o futuro?

Seria melhor omitir as histórias e não dizer nada sobre aquilo que
o mundo podería fazer com você? A forma como o mundo tentaria
reduzir você para caber no espaço limitado reservado aos negros?
Uma caixa não muito maior que um caixão, uma cela ou uma quitine-
te? Não, não era bom dizer tanto para as crianças; elas descobriam o
mundo muito cedo, experimentavam o beco sem saída da oportuni
dade,eram cercadas pelos cantos obtusos do mundo tão,tão pequeno
ao qual elas foram confinadas. Então mães e tias omitiam as piores
histórias e sussurravam as atrocidades, mas as crianças já sabiam.
Não era difícil imaginar. Elas sabiam como viviam, e sabiam como
as pessoas brancas viviam. Mesmo antes de aprenderem a falar, elas
sentiam o mundo contra elas. Sabiam que tinham sido condenadas.
Por amor, poupavam os pais desse conhecimento, protegendo-os do
fato de sua impotência.
Os jovens eram raivosos, decepcionados e se encontravam em
franca rebelião Sessenta por cento da população tinha menos de
trinta anos. O desejo ávido por algo melhor se chocava com a total

124
falta de oportunidade; tais circunstâncias criavam raiva e desespe
ro, encorajavam tumultos e levantes. Os jovens estavam aptos a ser
perigosos. Essa ambição insatisfeita, o mérito não reconhecido e as
péssimas perspectivas os colocavam em guerra com aquilo que era
dado. Eram inconsequentes.O que tinham a perder? O que era crime,
a não ser afranca rebelião de um indivíduo contra o seu ambiente social'?
Havia um sentimento generalizado de que algo estava errado com uma
raça culpada por tanto crime e que medidas duras eram necessárias.
Ainda assim, como poderiam não se rebelar contra as circunstâncias
que tornavam sua vida impossível?
Por quanto tempo uma cidade poderia ensinar para suas crianças
negras que o sucesso exigia um rosto branco? Por quanto tempo po
deria excluir as pessoas negras de todas as oportunidades que ofere
cia e esperar que elas aceitassem isso, que permanecessem paciente
mente à margem, gratas? Em 1896, uma em cada dez pessoas presas
no país era negra. Isso representava sete vezes mais que sua parcela
da população total."*® Dadas as circunstâncias, a incidência criminal
crescente não era nenhuma surpresa. Era de se esperar, uma vez que
a criminalidade era antecipada. Du Bois acreditava que o crime era o
resultado de uma inteligência mal orientada sob uma severa tensão
econômica e moral; ele falhava em ver que era o resultado óbvio do
policiamento racial"** e algo essencial para a manutenção de uma or
dem social branco-sobre-negro.

O longo e contínuo movimento dos negros em direção às cidades do


Norte deixou claro as implicações políticas da fuga,embora a ideia de
que essa recusa da plantation fosse uma greve geral ainda não tivesse
lhe ocorrido. Ele observava as milhares de pessoas debandando para
a cidade oriundas da Virgínia e de Maryland, e se espalhando pelo
gueto vil. Incapazes de moldar o mundo segundo os próprios termos,
ao menos elas podiam resistir ao mundo que lhes era imposto. O mo
vimento coletivo contra a servidão e a dívida,a fuga coreografada do
estupro,do terror e do linchamento era uma reiteração, uma segunda
onda de um êxodo anterior das pessoas escravizadas que deixaram a

125
plantation durante a Guerra Civil. Décadas mais tarde,ele descrevería
a greve gerais em termos muito semelhantes à marcha de escravos que
buscavam liberdade atrás das linhas do exército da União. Relacionou
esse movimento a uma grandiosa e contínua ondulação do oceano. As
pessoas escravizadas que haviam escapado da plantation não queriam
simplesmente parar de trabalhar.Era uma grevefundada em uma base
ampla contra as condições de trabalho. Uma greve geral que, nofim, en
volveu diretamente meio milhão depessoas, talvez. Elas queriam parar a
economia do sistema da plantation, e para tanto a deixaram.
Na aurora do século 20,era mais uma vez umaforma de dizer “não”
para o mundo conhecido e para os vestígios da escravidão. O negro
estava em greve. Em 1920, isso era inegável. O pequeno movimento
das pessoas negras oriundas do Sul, iniciado já na década de 1880,
havia se tornado um movimento de massa. E não foi nada menos que
uma recusa do regime da plantation. A greve geral era um grande ex
perimento humano. As pessoas negras “buscavam asilo político den
tro das fronteiras de seu próprio país”.'^^ Ano após ano, década após
década, elas fugiam do Sul e ingressavam na Filadélfia e em Nova
York (além de Chicago e Detroit). Depois que ele saiu da Filadélfia
e foi para Atlanta, depois que Sam Hose fora mutilado e linchado e
teve suas juntas postas em exibição'^’^ em uma mercearia na Mitchell
Street, depois da morte do primogênito de Du Bois, depois de uma
epidemia de estupros e linchamentos, depois de ele ter se sentado nos
degraus da frente de sua casa em Atlanta com uma Winchester ani
nhada nos braços à espera da turba branca,depois do Verão Vermelho
de revoltas raciais, Du Bois seria capaz de reconhecer esses tumultos
e levantes,essa debandada para a cidade,como uma forma de contes
tar a escravidão não declarada. Avaliaria essa fuga como uma recusa
às condições de trabalho'*® e como uma tentativa desesperada de criar
um outro tipo de vida.
Em 1897, o que sentiu superou seu vasto conhecimento. Foi capaz
de discernir entre a fome e a vontade de comer. Os verbos contam a
história: rebelar, debandar, vacilar, fugir e paralisar. No Sétimo Dis
trito,“tudo é bom e humano e belo e feio e mau,ainda que a Vida es
teja em outro lugar

126
*

À noite ele voltava exausto para o assentamento. Os recém-casados


geralmente jantavam sozinhos. Era raro que ele e Nina convidassem
pessoas para o modesto apartamento deles. Katherine Davis,a diretora
do assentamento,e Isabel Eaton,que o ajudava com a pesquisa,tinham
aparecido para um chá em algumas poucas ocasiões,um convite que a
maioria das mulheres brancas recusaria por medo dos danos que seriam
causados à sua reputação por se encontrarem na companhia de negros.
Ambos eram de uma boa linhagem abolicionista da Nova Inglaterra e
se opunham à segregação,ao contrário de outros funcionários do as
sentamento. Aqueles anos solitários em Harvard o haviam ensinado a
avidez com que o Norte liberal policiava as linhas de cor.Seus colegas
estudantes se apressavam pelo Harvard Yard e desviavam o olhar na
Brattle Street para não dizer olá ou bom-dia para um negro. Harriet
Beecher Stowe capturou isso na antipatia benevolente e na aversão
sentimental que a srta. Ophelia dedicava a Topsy."* Ideais elevados e
aversão racista andavam de mãos dadas. Seus colegas de classe eram
esclarecidos o suficiente para se sentar no mesmo auditório que ele,
mas isso definia o limite de sua hospitalidade e envolvimento. Quando
a circunstância ou a proximidade tornavam a conversa inevitável,o as
sunto seguia um curso previsível. Ele queria dizer,não gritar:Ninguém
éobrigado a discutira questão do negro com qualquer negro que encontrar
nem contara elesobre um paique esteve ligado à ündergroundRailroad;
ninguém é obrigado a encarar o rosto negro solitário na platéia como se
esse rosto nãofosse humano; não é necessário escarnecer^ ser indelicado
ou grosseiro se os negros num mesmo ambiente ou na rua não se compor
tam da melhorforma ou não possuem as maneiras mais elegantes; não é
necessário eliminar da lista cada vez menor de conhecidos da infância e

* Referência ao livro A cabana do pai Tomás,de Harriet Beecher Stowe,de 1852.


O enredo do livro tornou-se popular no Brasil após a adaptação para novela da Globo,
em 1969.
** Nome dado a uma rede secreta de rotas e abrigos subterrâneos estabelecida nos
Estados Unidos no século ig, utilizada por pessoas negras escravizadas em fuga para
08 estados livres.

127
da adolescência ou de amigos dos tempos da escola todos aqueles que por
um acaso tenham sangue negro, simplesmente por não se ter coragem de
cumprimentá-los na rua.^^
Depois do jantar, ele voltava ao trabalho. Seus livros e suas ano
tações cobriam a mesa. Debruçava-se sobre histórias da Filadél
fia, revisava três séculos de leis estaduais, consultava pesquisas de
Londres, Nova York e Chicago e compilava estatísticas de taxas de
nascimento, idade de casamento, filhos fora do casamento, crime,
divórcio e morte. Ele traçava gráficos e tabelas estatísticas, consul
tando o estudo em nove volumes de Charles Booth,Life andLabour
ofthe People in London [Vida e trabalho das pessoas em Londres].
Os mapas coloridos à mão refletiam a expansão e a densidade do
quarteirão negro, tornavam visíveis as diferentes classes que cons
tituíam a raça e documentavam a segregação do negro do restante
da cidade. Ele traduzia as histórias do distrito em estatísticas e grá
ficos, silenciando as vozes e reunindo as vidas daqueles que entre
vistara em um grande padrão sociológico, além de transformar as
condições extremas da existência cotidiana em tabelas numéricas.
A sociedade representava as regularidades da ação humana. Os nú
meros, quadros e gráficos aspiravam a ser um filme da vida negra
que documentasse a modernidade e deixasse claro que a raça tinha
um futuro. Um filme era uma imagem viva, uma história em movi
mento.^^ O negro não era algo fixo, mas uma entidade cambiante e
variável. Os diagramas buscavam traduzir as grandes vicissitudes
da vida negra e representar o desenvolvimento histórico ao longo
de um século.
Enquanto as melhores mentes da Universidade de Chicago e de
Columbia talvez acreditassem que as pessoas negras estavam desa
parecendo e que um dia seriam extintas,^ Du Bois tentava provar o
contrário. As imagens gráficas contestavam as estatísticas de Hoff-
man®^ que apontavam taxas de mortalidade crescentes entre os ne
gros urbanos e projeções a respeito de seu eventual desaparecimento.
Ao contrário das fotografias, que prendiam o movimento e fixa
vam o tempo, criando o contingente e desdobrando o presente na
eternidade, seus quadros e gráficos representavam a mudança ao

128
gs domésticos

pessoas com negócios


classe de comerciantes profísslona

Í790 i8oo 1810 1820 1830 1840 1850 1860 1870 1880 1890

longo do tempo,e detalhavam os avanços e as regressões, as pausas


e inícios da história, oferecendo um relato visual do movimento ne-
gro debandada, greve e ocupação. Os diagramas capturavam os
ritmos primários e secundários da vida negra; o léxico visual ante
cipou o cinema,formou sua pré-história, registrando o movimento
do negro de pequenos vilarejos para a cidade grande e o movimento
contínuo e adiante ao longo do tempo. Os gráficos verticais esta
beleciam a escala de medida e permitiram que o negro fosse visto
em relação aos brancos e ao mundo como um todo. Os gráficos de
barras horizontais revelaram a flutuação das taxas criminais e a si
milaridade entre os padrões de união conjugal das pessoas negras
e brancas. A história se escrevia em números e gráficos, e as esta
tísticas transpunham vidas em barras e curvas, em densidades de
tinta e cor. As tabelas comparavam as taxas de pobreza entre negros
e brancos, detalhavam a frequência de separação e viuvez, mostra
vam as incidências de doenças e distinguiam a raça em classes dis
tintas. Os mapas coloridos traçavam a difusão de residências, mo
ralidade, aspirações e necessidades.
As 40 mil pessoas negras na Filadélfia, incluindo as 9675 que vi
viam no Sétimo Distrito, podiam ser divididas em classes ou graus,
ascendendo do último degrau até a aristocracia. Grau um: famílias
de respeitabilidade indubitável com uma renda suficiente para viver
bem; grau dois: a classe trabalhadora respeitável que habitava mo
radias dignas e tinha estabilidade profissional; grau três: os pobres,
nem sempre ativos ou prósperos, mas sem nenhum traço de imora-

129
lidade grosseira; e grau quatro: a classe mais baixa dos criminosos,
prostitutas e vagabundos, o décimo submerso.* Segundo ele, essas
eram mais categorias morais que designações de classe. A pobreza e
o crime não representavam a condição natural do negro, ao contrá
rio da crença popular. Os sociólogos concentravam seus olhares nos
piores elementos, e contabilizavam alegremente asprostitutas e os bas
tardos. A escória e a gentalha os fascinavam, mas Du Bois sabia que
os melhores elementos determinavam o futuro da raça. Seus gráficos
visuais ofereciam um retrato realista das pessoas negras como indiví
duos cambiantes e variáveis, e não como párias da evolução.
Não existia um negro médio, nenhum crioulo padrão, mas classes
e modos de vida distintos que mereciam uma representação precisa e
acurada. Não havia maneira mais certa de interpretar mal o problema
do negro do que ignorando distinções evidentes e gritantes de caráter
e de condições entre as pessoas negras na Vi\2.áé\fí2i. Apenasa linha de
cor os amarrava todosjuntos.
Quando ele ia para a cama,as ruas ainda estavam agitadas. Festeiros
cambaleavam para casa depois de uma noite de dança.Rags^ tocados em
um velho piano no bar vizinho,soavam depois da meia-noite. Nas primei
ras horas da manhã,apostadores retomavam ao mundo,alegres e exaus
tos após dias enfiados em antros escuros e enfumaçados.Gritos e risadas
penetravam no ar da noite como se desafiassem o distrito a dormir.

“Esse é o tipo de sapato que eu compraria pro meu homem.” Foi a única
parte da conversa delas que o sociólogo ouviu, mas a expressão no olhar
da garota a traiu. A lâmina afiada da luxúria o cortou como uma faca.
Olhou desgostoso para os sapatos espalhafatosos e se voltou para as
duasjovens,procurando em seus perfis características que revelassem
uma prostituta,evidenciadas pela indecência de suas palavras. O comen-

* Em -igi4, Harny H. Laughlin propôs um plano eugenista de esterilização de um décimo


da população estadunidense — aproximadamente -14 miihões de pessoas — que eram
por ele consideradas inferiores por serem pobres,judeus, negros,imigrantes e todos
aqueies que não fossem brancos de fenótipo “nórdico” Essa parcela foi chamada de
“décimo submerso”.

130
THE STATES OE THE UNITED STATES ACCORDING
TO THEIR NEGRO PGPULATION .

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tário determinou a história de vida delas; elas viviam entre as prostitutas


da Middle Alley ou da Ratcliffe Street ou alguma estância similar, onde
cada mulher sustenta algum homem com seus ganhos. Elas não eram mais
prostitutas indetectáveis.^‘^
Já podia ver o rosto delas na ficha policial e, por mais que tentas
se, não conseguia identificar qualquer beleza naquelas faces escuras.
Um retrato distinto da vida delas se desdobrou. Ainda muito novas,
já tinham sido arruinadas; se por uma circunstância em particular ou

131
pelo ambiente no geral importava menos que a indecência da exposi
ção descarada. Osjornais ofereciam uma crônica diária de mulheres de
cor que eram presas por roubo,briga e desordem.Jovens mulheres apu
nhaladas e espancadas nos corredores dos cortiços por causa de rixas
antigas e ciúmes insignificantes; garotas impressionáveis levadas para
o mau caminho por seus amantes. No LedgeVy Du Bois leu a história de
uma jovem, Etta Jones, que fora uma criada responsável até conhecer
um mulato estrábico de pele macia,um crápula que pegou cada centavo
do dinheiro dela e penhorou todas as suas roupas. Então ela começou a
roubar de seus patrões. Foi presa por furto depois de roubar um vestido
de seda de sua patroa e tentar vendê-lo na loja de penhores por sete
dólares. Algumas semanas antes, uma jovem de Baltimore tinha sido
presa por roubar uma nota de dez dólares de um branco em um esque
ma de extorsão. Não era difícil imaginar o que o homem branco tinha
em mente ao abordar uma crioula na rua e acompanhá-la até em casa.
Havia as histórias trágicas®® de sedução e suicídio: ajovem ingênua da
Virgínia era atraída para uma casa de prostituição ou a doméstica de
coração partido era encontrada inconsciente em um beco depois de ter
tentado tirar a própria vida com um frasco de benzina. Mulheres cres
cidas exibiam sinais de uma infância arruinada—o olhar frio e duro de
56
quem amadureceu cedo demais.

O sexo ilícito tinha introduzido Du Bois à atividade sexual e quase o


arruinara. Nunca superou a culpa que acompanhou o prazer de perder
a virgindade em um ato de adultério com uma esposa infeliz. Na época
em que foi para as colinas do Tennessee, Du Bois, professor jovem e
solitário, era tão ignorante sobre sexo que não conhecia nem mesmo
a diferença anatômica básica entre homens e mulheres. Nenhum de
seus colegas acreditava que alguém podia ser tão inocente e estúpido
até descobrirem que ele dizia a verdade. Os garotos do campo pertur
baram o menino de dezessete anos sem perdão, o apresentaram para
mulheres indecentes e fofocaram sobre as mulheres da cidade dispostas
e experientes. Sua mãe era a única mulher que ele já havia abraçado.
Ele a adorava,e sua virgindade era prova de sua devoção.

132
Quando chegou em Wilson County, Tennessee,Josie Dowell o aju
dou a encontrar sua escola. Era uma garota magra e simples de vinte
anos,com um rosto marrom-escuro e um cabelogrosso e muito crespo, o tipo
comum degarota, de bom coração, efalava rápido e alto.^ Du Bois se refe
riu a ela como uma menina-mulher, mas aos vinte,Josie era mais velha
que ele. “Precisamos de um professor na escola lá na colina”, ela disse.
“Você pode ficar com a minha família.” O lar dos Dowell era uma casa
de campo simples com quatro cômodos, empoleirada logo abaixo do
topo da colina, entre pessegueiros.Josie era a filha mais velha e o cen
tro da vida familiar. O sr. Dowell, pai dela, era um homem analfabeto
e leal, sem nenhum traço de vulgaridade ou imoralidade^ A sra. Dowell
era exatamente o oposto. Uma mulher atraente e vibrante, com uma
língua ligeira e implacável,e uma ambição de viver comogente.
Diferente da filha, a sra. Dowell não era decente ou humilde; era
uma mulher sonhadora e imprudente. Tinha defeitos, era vulgar e se
sentiu atraída pelo jovem professor. Ele alimentou o desejo que ela
tinha por uma vida diferente da que compartilhava com o marido.
Ela talvez tenha confiado®® “as coisas que tinha e não tinha feito e as
coisas que queria”. Naquele verão, ela ensinou o professor a segurar
uma mulher,onde pôr as mãos,o que fazer com a boca.Ele mal podia
acreditar no que acontecera; que fosse seu o corpo que roçava o dela,
que se emaranhava a ela, seu suor e sua vergonha.
Ao longo da vida, ele escrevería sobre aqueles dois verões nas co
linas do Tennessee. Nunca descreveu o período como um divisor de
águas sexual.®° A cada vez narrava uma versão um pouco diferente.
Nunca escreveu o nome dela, talvez com medo de que, caso a iden
tificassem, o resultado seria óbvio, e a culpa restaria tão palpável na
página como se ele pronunciasse o nome dela, de novo e de novo, um
nome reprimido,e não clamado na paixão e exuberância de um aman
te noviço. Ele a culpou pelo que aconteceu:Fuiliteralmente violentado
pela esposa infeliz que era minha senhoria.^^ Ele a responsabilizou pelo
apetite que foi desencadeado e pela luta desesperada e contínua para
manter o instinto sexual sob controle. Para ele, controlar sua luxúria e
reprimir os impulsos mais sórdidos significava tudo, não apenas por
causa dos próprios padrões morais, mas também por sua ambição de

133
conduzir seu povo e servir de modelo para aquilo que eles deveríam
lutar para alcançar. Afinal, ele era o exemplo vivo das possibilidades
da raça negra,^"^ Nada era mais crítico para a raça do que refrear seus
apetites, a fim de melhor administrar a vida carnal.
Em seu ensaio “A Negro Schoolmaster in the New South”[Um pro
fessor negro no Novo Sul], Du Bois imortalizou Josie em seu lugar,
transformando o trágico heroísmo moral da filha em um ideal femini
no. Diferente da mãe,que ansiava por algo melhor,estava insatisfeita
com o marido e cobiçava homens maisjovens,Josie se sacrificou para
preservar a família. Exaurida e leal, labutou até ser vencida pela infi
delidade de um amante, que se casou com outra. Du Bois lamentou a
morte de Josie, que o fez questionar o significado de progresso,se não
duvidar dele em um mundo que tinha garotas de pele escura em tão
baixa conta. O destino dela pode tê-lo lembrado de sua sofrida mãe.
Ela havia sido umajovem arruinada pelo trabalho duro e pela pobre
za, e fatalmente enfraquecida pela traição e pelo abandono. Josie
era uma figura trágica, mas ela não o fez temer pelo futuro da forma
como a mãe dela fez. As necessidades e os desejos da sra. Dowell eram
imorais, excessivos. A lembrança da intimidade deles ainda causava
um estremecimento.®® Ao olhar para o par de sapatos espalhafatosos,
ele foi atravessado por uma onda de vergonha.

Esse éo tipo desapato que eu compraria pro meu homem!Algo de criminal


e promíscuo espreitava o desejo das garotas. Um amor tão grande pela
beleza geralmente era o sinal de anseios ingovernáveis e modos erran
tes. Crime e ornamento^ eram companheiros. Seu mentor,o reverendo
Alexander Crummell,já afirmara isso,condenando o caráterestético dos
jovens negros,suspeitando de algo pródigo,sensual e ímpio no desejo de
adornar.^ Os “dândis” e os “amantes de roupas”®® eram “cheios de vai
dade e pretensão,envenenados pela luxúria e pelo uísque, orgulhosos e
preguiçosos demais para trabalhar”. Falsas noções de estilo e elegância
arruinavam as garotas de cor “enlouquecidas pelo deleite,varridas pelos
desejos animais,alheias aos deveres domésticos e devotadas ao prazer”.
As lições severas do pastor eram inequívocas:“Ninguém vive de flores.

134
nem ganha força e solidez com a devoção pela beleza. Ninguém ganha
a vida e se edifica com o estilo refinado e a moda deslumbrante, nem
com o vício pelas harmonias,cores e dehcias que agradam aos sentidos”.
Du Bois também se queixava dessa tendência ao excesso,ao além da
conta,o amor barroco;®^ o descritivo duplo: bem-educado,negro-claro,
mais e melhor; o frenesi e a paixão; o brilho e a maravilha das garo
tas do gueto. Negros ignorantes e mulheres imprudentes que tentavam
subsistir à base de beleza. Os prazeres vulgares, o resplendor e o brilho
oferecidos nas ruas da cidade haviam degradado o desejo humano pela
beleza, assim afirmou Jane Addams. Os “sentidos recém-despertos”
àa,juventude urbana eram atraídos por “tudo o que é espalhafatoso e
sensual,®® pela música de rua irreverente, pelos cartazes coloridos do
cinema, pelas histórias de amor ordinárias, pelos chapéus empluma
dos, o heroísmo barato dos revólveres dispostos nas vitrines das lojas
de penhores”.O desejo inculto pela beleza era perigoso porque não pos
suía “um estímulo correspondente da imaginação superior”. O desper
tar dos sentidos não contido pela faculdade dejulgamento criava uma
“insensibilidade estética” que resultava numa sensualidade destrutiva
e encorajava o apetite por experiências sensoriais maiores e mais in
tensas,guiadas apenas pelo “instinto embrutecido e poderoso” e “sem o
despertar da imaginação ou do coração”.
O desejo pela beleza expresso em “roupas disparatadas” ou num
“chapéu enorme com sua selvageria de penas esfarrapadas” era a for
ma pela qual a jovem pobre anunciava para o mundo:Eu estou aqui.
Ela “demandava atenção ao fato da sua existência;®^ estava pronta
para viver, para tomar seu lugar no mundo”. Duasjovens de cor dese
jando um par de sapatos masculinos eram imbuídas da mesma culpa
— o ardente desejo de viver,o anseio por encontrar um lugar no mun
do onde não seriam relegadas à margem.
Por mais que soubesse que as garotas não eram culpadas, Du Bois
as culpava mesmo assim. Desprezo era uma palavra forte para defi
nir os sentimentos dele — decepção capturaria melhor o turbilhão de
emoções que o tomou. Sob o seu olhar, elas não eram mais duas ga
rotas que passeavam na South Street, transportadas para fantasias
amorosas por todos aqueles artigos sedutores; em vez disso, eram fi-

13S
guras padrão,representantes das piores tendências da raça, produtos
70
de muitas gerações de hábitos imorais e corpos enfermos.
Todos seus argumentos sobre propagar a causa da ciência e de
monstrar o progresso da raça se detinham ou desabavam diante delas.
Que plano reformista poderia mudar a vida delas? Que mundo futuro
estaria à espera de uma raça de homens decepcionados e mulheres de
gradadas? Que tipo de mães aquelas duas seriam? Aos seus olhos, as
duas jovens negras arrebatadas por um par de sapatos incorporavam
e tornavam palpável a ameaça de declínio. A pura expressão de desejo
o ofendeu profundamente. Garotas como aquelas enchiam os olhos do
público e empurravam mulheres honradas e decentes para as sombras.
Esse sentimento de algo manifestadamente sexual e a vergonha
que vinha em seguida como um golpe poderoso quase acabaram com
ele. Para a sua consternação, ele pensou em Nina, sua esposa reso
lutamente virginal, amante relutante,^^ e se encolheu diante da com
paração. Ele havia casado com Nina bem a tempo; de outra forma,
poderia ter se acomodado com as esposas de outros homens ou pior.
Apressou-se em se casar numa tentativa desesperada de deixar tudo
aquilo para trás — os riscos e perigos de relações adúlteras, concubi
nas e amantes fora da lei. Nina era uma boa esposa e tinha sido prepa
rada para o papel desde criança. Sua educação de virgem ao longo da
vida, a proteção dedicada à sua castidade como uma propriedade do
pai, que seria então transferida para o marido, eram a lei de ferro do
lar negro respeitável e a primeira linha de defesa contra a duradoura
mácula sexual da escravidão. Tudo isso fez com que lhe fosse quase
impossível não considerar a relação sexual como fundamentalmente
indecente. Nina queria agradá-lo, então tentou atender com menos
relutância seu apetite sexual. Era a grande dificuldade de sua vida
de casados. A atividade sexual demandava muita bajulação da parte
dele e causava grande vergonha nela, ainda que se mostrasse passiva
e pouco estimulante. Não havia pressa para despir as roupas íntimas,
penetrar furtivamente e tirar o máximo de prazer possível num curto
intervalo antes que o marido dela e as crianças voltassem para casa,
como ele fizera com a sra. Dowell. Sem quadris ativos e ávidos para
encontrar os dele como as putas de Paris, nem uma palavra estimu-

136
lante sussurrada nos ouvidos como fizera sua amante em Berlim,nem
abraços fervorosos e instrutivos como lhe dera a requintada esposa
de um colega seu no Wilberforce College. O ato do coito pedia uma
contenção cuidadosa da parte dele para não deixar sua querida esposa
73
infeliz.^ Tarefa nadafácilpara umjovem normal e vigoroso.
Quem mais além das prostitutas da Middle Alley ou da Ratcliífe
Street ousavam proferir tais palavras? A história delas estava apa
rente na franca expressão do desejo. Ele sabia exatamente o tipo de
homem que imaginaram naqueles sapatos. Desocupados e libertinos
acostumados a viver dos ganhos de prostitutas. Disso ele tinha certe
za,e isso porque era incapaz de imaginar o que mais podería explicar
tal desejo em uma mulher. Olhando para os reflexos das garotas na vi
trine, ele se perguntou: Quem são elas? Ele não era capaz de enxergar
realmente o rosto delas, só tudo aquilo que temia. Elas devolveram
seu olhar com uma mirada penetrante que perguntava: “Tá olhando
o quê?”. Antes que pudesse arriscar uma resposta, asjovens deram os
braços, viraram as costas e continuaram seu passeio.

Em sua caminhada para casa, ele manteve distância dos homens as


tutos e impiedosos que se alinhavam no meio-fio e saíam de pensões
decadentes,apressando o passo para evitar qualquer perigo. O número
do dia reverberava pela quadra enquanto era transmitido de casa em
casa,como um código que desvendaria o segredo do gueto:a esperança
furiosa e o presente do acaso. Toda garota suspeita que cruzava seu
caminho o fazia se lembrar das risadas indecentes dasjovens meretri-
zes. Vitoriano culpado, ele não podería ver nasjovens rebeldes de cor
nada além de vítimas de um longo histórico de violação,destinadas ao
comércio. Vendidas no leilão, manchadas,forçadas a copular com os
senhores,trancadas em quartos de porão, molestadas em estúdios no
sótão,vendendo o corpo na Middle Alley—essa não era a única histó
ria. As garotas de cor também ansiavam pelo mundo carnal conduzidas
pela presença feroz e insistente do próprio desejo, desgovernadas e
imprudentes. A maioria estava determinada a não vender nada,con
tentavam-se em dar de graça.

137
Uma crônica de necessidade e desejo

O prédio se encontrava num tremendo alvoroço. Maldições e quei


xas escapavam dasjanelas do número 635 da Saint Mary Street. Duas
mulheres estavam em guerra declarada. Fanny Fisher afrontava He-
len Parrish, a cobradora de aluguéis, de uma forma tão escandalosa
que todas as pessoas na rua haviam parado para ouvir a torrente de
abusos. “Vai pro inferno!”, Fanny gritou. Mary Riley fechou a porta
para que as crianças não ouvissem o palavreado de Fanny. Katy Clay-
ton não entrou na briga, mas se deleitou com a humilhação de He-
len e encorajou Fanny com suas risadas. “Que o diabo te carregue!”
A vizinhança toda ouviu o esporro de Fanny sobre o aluguel:“Eu não
ligo pro que o livro diz. Não estamos devendo nada!”. Fanny esta
va bélica e embriagada. A cobradora de aluguéis não sabia ao certo
quanto Fanny devia, pois os livros estavam uma bagunça só.Ela havia
mostrado ao sr. Fisher o confuso livro de recibos. Ele não sabia ler e
ela passou uma hora tentando pacientemente calcular as somas e lhe
explicar o que constava ali, ainda assim, sem ousar deixá-lo perce
ber que estava tudo uma bagunça. Helen Parrish não permitiria que
Fanny Fisher ou o marido duvidassem de sua autoridade ou retidão
de jeito nenhum.“Sra. Fisher, ou você paga o que é devido ou vai pa
rar no olho da rua!” “Danem-se você e o aluguel!” Fanny respondeu.
Um apartamento minúsculo não era o mundo. Erguendo a voz acima
dos impropérios estrondosos, Helen mandou Fanny Fisher se calar.^
“Você não se atreva a voltar a falar comigo desse jeito! Sra. Fisher,

139
se controle.” A ordem apenas incitou outra rodada de xingamentos e
abusos. Vaca! Katy Clayton se dobrou de tanto rir. Mais uma vez elas
tinham conseguido vencer a Madame Benfeitora, fazendo-a descer
ao nível delas.^
Por sorte a polícia nào foi chamada. Nào havia nada que o tenente
Mitchell apreciasse mais do que arrastar uma mulher de cor para a ca
deia. Vinte e quatro horas trancada por rebeldia e desordem, alguns
dias a mais se soubesse o nome dela,e o tenente conhecia todo mundo
na Saint Mary Street.

Fanny, consumida e exausta, voltou para o seu quarto. Os vizinhos


ouviram os palavrões; mas no lugar deles, Fanny poderia facilmente
ter dito: estou tão cansada. Estou acabada. Sem dúvida, seus sonhos
eram maiores que dois cômodos minúsculos em uma quadra que fedia a
esgoto e lixo. A feiura era tão brutal que poderia levar você às lágrimas.
Ela nunca esqueceu nem por um momento a violência necessária para
tornar a vida tão feia, ou o ódio necessário para manter as pessoas
negras encurraladas nos piores quarteirões da cidade. A injustiça de
não se ter nada e dever tudo foi o que a fez gritar com a srta. Parrish,
além da vergonha de se ver reduzida a isso. Fanny se opôs ao aluguel e
ao livro que transformava a vida deles em colunas de crédito e débito.
O que você devia era só umaforma de dizer que estava em dívida com
eles, ainda uma escrava. As coisas não eram diferentes no Norte. Os
brancos adoravam dizer o que os negros lhes deviam,o que deviam ao
país,o que deviam a si mesmos.Era uma dívida quejamais poderia ser
paga.3 O aluguel era apenas mais um fardo cuja intenção era acabar
com você; e a prisão ou o hospício eram as ameaças cuja intenção era
manter seu traseiro preto na linha. Um simples ato de caridade não era
capaz de reparar todo esse dano,e as boas intenções da srta. Parrish e
da srta. Fox não faziam a menor diferença. Fannyjamais se sujeitaria
a mendigar e implorar como a Velha Clayton,que se rebaixava a ponto
de se dispor a vender as roupas do corpo para pagar o aluguel, para
que a srta. Parrish, que claramente não passava nenhuma necessida
de, pudesse rabiscar uns números e anotações num livro, escrevendo

140

á
furiosamente o tempo todo, como se ela os estudasse, como se a vida
deles fosse apenas matéria-prima para algum experimento.
Fanny já não se perguntava mais que tipo de vida era possível na
Saint Mary Street. Não havia promessa alguma ali, só muita lida e
esforço para sobreviver. Não havia jeito de vencer, era sentir raiva
ou se submeter, apenas um dia após o outro. Até o momento, Fanny
só tinha sido jogada de um lugar ruim para outro, mas esse era o caso
da maioria das pessoas negras. Quando chegou à Filadélfia, estava
começando a se tornar ajovem mulher que gostaria de ser, mas nunca
chegou lá, havia tão pouco para ela, apenas a maldade da cidade. O
que podia fazer? A Saint Mary Street não era tão ruim quanto os ou
tros lugares, mas ainda estava à margem.

Era um quarteirão que tinha má reputação pelajogatina,pelas brigas e


prostituição. A Saint Mary Streetficava no distrito*» da cidade com a maior
taxa de mortalidade e abrigava os habitantes mais pobres da Filadélfia.
A rua tinha apenas duas quadras abarrotadas de casinhas de madeira a
ponto de desabar e de pátios escuros, com casas mais feias ainda, que
se ramificavam a partir da rua principal. Hebreias de pele escura, negpos
pacientes e alemães corpulentos viviam suas histórias dia a dia diante dos
olharesda rua.® Forasteiros,foras da lei e gente de mau caráter conside
ravam a rua um lar. Pessoas decentes sofriam muito. Migrantes negros,
de olhos arregalados e ignorantes, afetavam uma pose de sofisticação
que não era própria deles; outros ficavam à toa nos degraus da frente,
pensando no número da sorte do dia e compartilhando os nomes das
poucas empresas dispostas a contratar pessoas negras.Os homens,apa
rentemente descompromissados,pois suas esposas ainda se encontravam
à sua espera na Virgínia ou trabalhando como domésticas em Chester ou
Camden,onde também moravam,andavam com garotas imprudentes e
estrangeiras desocupadas,fazendo amor em praça pública.
Mãe Hewitt, uma irlandesa imoral tão devassa quanto seus inqui
linos, casada com um homem de cor, administrara os cortiços dos
números 635 e 637 antes de Hannah Fox comprá-los.® Hannah Fox e
Helen Parrish pretendiam estabelecer um clima bem diferente.^

141
.f

Eias eram filhas da elite da Filadélfia. O pai de Helen tinha sido


um cirurgião do Pennsylvania Alms Hospital, um homem contrário
à pena de morte, membro dos Amigos do Comitê Anual para Assun
tos Indígenas e presidente da Sociedade para a Promoção da Aboli
ção da Escravidão da Pensilvânia. Ela e sua prima Susan Wharton
tinham crescido brincando de esconde-esconde no porão de seu pai,
onde havia funcionado uma estação da Underground Railroad. Su
san era sobrinha-neta do magnata do aço Joseph Wharton e membra
fundadora da College Settlement Association, da Saint Mary Street
Library e do assentamento Starr Center.Já a riqueza recém-adquiri-
da de Hannah Fox ainda não havia sido purificada por um histórico
familiar de filantropia e reforma social. Seu pai fizera fortuna por
meio de especulações em empreendimentos petrolíferos no oeste da
Pensilvânia, mas ela compensou essa herança ao comprar dois cor
tiços na quadra de pior reputação do gueto. Lá, ela e Helen começa
ram para valer sua carreira de reformadoras urbanas^ e uma relação
que duraria a vida toda.

-142
Uma necessidade subjetiva —^ o desejo delas de experimentar uma
vida cheia de propósito e significado — explicava a presença de duas
mulheres brancas ricas no coração do quarteirão negro. Para Helen e
Hannah, a reforma do gueto fornecia um remédio para a ociosidade
dos privilegiados, um canal para a inteligência e a ambição de mu
lheres estudadas e uma saída para a questão do casamento e a casa
do pai. Não sendo mais garotas de trinta anos, elas haviam fugido da
conscrição de esposa. Sem um senhor para protegê-las dos perigos
da vida ou proibi-las de se associar a maus elementos, traçaram um
caminho pelas ruas povoadas de negros,judeus russos, italianos, la
drões, prostitutas, sodomitas, bandidos e anarquistas. No gueto, evi
tavam as acusações: solteirona, mulher excedente,* invertida, e pro
curavam ouvir seus nomes — srta. Parrish e srta. Fox — vinculados a
boas ações, e não a fofocas maliciosas.

* Conceito cunhado durante a Revolução Industrial na Inglaterra, utilizado em


referência à mulher solteira, num contexto de desequilíbrio populacional entre
homens e mulheres, acentuado pela Primeira Guerra Mundial.

143
#

Na fortaleza de seu escritório, Helen registrava todos os detalhes de


sua batalha terrível contra os Fisher. A dúvida e o desespero enchiam
duas páginas de um caderno de exercícios de uma colegial. Apenas
um mês atrás, ela fora tola a ponto de acreditar que aquelas mulheres
negras mal-humoradas um dia poderiam confiar nela e até chamá-la de
amiga.Fazia um dia lindo de verão. Todos os inquilinos da Saint Mary
Street tinham sido convidados para ir à biblioteca pública reservada
às pessoas de cor para comer biscoitos e beber limonada. Um punha
do de mulheres apareceu, mas nenhum homem. Ela gostaria que os
homens tivessem comparecido.Era mais fácil com eles do que com as
mulheres. A maioria preferiria morder a língua a dizer a coisa errada
para uma mulher branca. Ela pensava que podia confiar nos homens,
mas não nas mulheres. Eram diferentes. Era necessário ser tão astuta
quanto uma cobra, com certeza, para lidar com as mulheres. Tinha de
se lembrar de nunca falar nada sobre uma para a outra. Até as mais
casuais certamente causariam problemas.Elas passavam muito tempo
juntas, muito tempo dentro de casa, e amavam conversar e fofocar.
Encontrava grupos de mulheres no pátio, e o que quer que ela fizesse
viraria assunto— sozinhas eram receptivas, mas em grupo passavam
lO
longe disso.
Naquela tarde radiante dejulho, Helen não ofereceu nenhum con
selho nem fez demandas, apenas aproveitou a festa. Ela finalmente
considerou o conselho da tia sobre o dano causado por aqueles que se
esforçam demais para controlar as coisas,então não ralhou com a Po
bre Mary Riley por causa do penico que mantinha embaixo da cama
para as crianças e que deixava a casa inteira fedorenta e insuportável
no calor do verão; nem se queixou do marido desocupado de Mary,
Charles, que estava desempregado há semanas e que perdia no jogo o
dinheiro do leite e do pão. Mais de uma vez Helen havia censurado o
marido de Mary por falhar em cumprir com seus deveres. Charles Ri
ley era um homem que se deixava derrotar facilmente, então Helen o
conquistou com gentileza, dizendo o que ele deveria fazer sem nunca
lhe dar uma chance de falar. Será que não tinha brio suficiente, ou era

144
cortês demais para se defender do ataque? A Pobre Mary,uma garota
simples e apática, apenas ficava ali, mansa e intimidada.
Durante a festa, até a Pobre Mary conseguiu abrir um sorriso. A
Ligeira Katy Clayton era muito charmosa quando não estava preocu
pada em se opor firmemente a qualquer boa ação apenas para provar
que ela nào servia para obedecer a ninguém. Elas sentíam, as pobrezi
nhas!Sua ignorância e impotência, e mesmo assim aquelas meio loucas
como Fanny Fisher se revoltavam com isso, cuidando de qualquer pe
queno equívoco para contornar seus deveres. O que deveria ser feito
de umajovem como Katy, que dormia no saguão para escapar do calor
do verão, que ficava nos degraus da frente, seminua,flertando com os
homens à vista de todos? Helen segurou a língua. Não alertou Katy so
bre o dano causado à reputação de umajovem que tinha muitos amigos
homens, nem repreendeu Rebecca Clark por ficar bebendo cerveja no
pátio. Ela não impediu que a Velha Clayton, avó de Katy,fizesse uma
refeição inteira de biscoitos amanteigados, nem que bebesse limonada
além da conta. Bella Denby disse que se pudesse beber uma limonada
daquelas todos os dias, pararia de beber msque.“Oh,se tivesse um bar
onde a gente pudesse beber uma coisa dessas, nunca tinha bebido nada
tão gostoso na vida.” Com o cabelo bem preso no topo da cabeça, Bella
quase poderia se passar por uma mulher decente. Mesmo com o olho
roxo e os trapos imundos, ela ainda era bonita.Parecia penitente & re
belde e gentil&rude ao mesmo tempo. Seu marido,Ike, havia penteado e
trançado o cabelo dela, dividido em duas tranças,como se ainda fosse
umajovem do campo.Um ato de devoção realizado pelas mesmas mãos
que haviam lhe dado um olho roxo e um corte no lábio.
Na biblioteca, Helen e as mulheres falavam livremente, como se
fossem iguais. Conversaram sobre amenidades o clima,o aumento
do leite e do pão, a vitrine nova da John Wanamaker, uma excursão
da igreja para Cape May. Katy Clayton tinha ido até Chester para um
encontro de cristãos no campo e a noite das mulheres foi linda. Tira
ram uma ferrotipia dela, mas não fazia jus à sua beleza. Por algumas
horas,a srta. Parrish não ameaçou despejar ninguém,nem ensinou as
mulheres negras a viver. Em uma adorável tarde de julho, com o sol
entrando pelasjanelas, Helen se sentia satisfeita por serem amigas.

145
Toda segunda-feira, Helen fazia as rondas e batia em cada uma das
portas do 635 e do 637, determinada a fazer o impossível — cobrar o
aluguel. Dirigia-se aos inquilinos pelo sobrenome, quase sempre pre
cedidos por senhorita, senhora ou senhor. Era o único sinal de igual
dade formal com que podiam contar.Para ela, era um gesto de trégua.
Semana após semana, Bella e Ike Denby nem sequer abriam a porta,
fingindo que não estavam em casa, sem enganar ninguém. Ela havia
conversado com Joe Robinson e disse que,se ele se casasse com a sua
garota branca, não podería mais ficar ali no prédio. Uma pena, ela
confiava nele, ainda que o homemfosse um crioulo. Fanny Fisher, em
vez de pagar o aluguel, se ofereceu para varrer as escadas. A Velha
Clayton implorou por um tempinho a mais para planejar como con
seguir o que ela não tinha.Prometeu penhorar os sapatos para conse
guir um pouco do que devia, se a srta. Parrish lhe desse mais uma se
mana. Seus filhos não podiam ajudá-la e Katy estava desempregada,
mas à procura de trabalho. Assim que Katy encontrar alguma coisa,
nos acertamos. Katy é trabalhadora,só precisa de uma chance. Mary
Riley se desculpou,como vinha fazendo nas últimas cinco semanas.A
Pobre Mary parecia se contentar” em ficar o dia todo em casa,senta
da na beirada da cama cuidando das crianças. Era difícil pensar nela
como uma dona de casa, e não como uma negra preguiçosa. Helen
a repreendeu sobre a necessidade de cumprir com suas obrigações
enquanto lágrimas transbordavam dos olhos de Mary. O aluguel era
apenas uma dívida. Mary não tinha o direito de esperar mais do que
cômodos limpos dela e da srta. Fox. Ao sair, Helen ofereceu à Pobre
Mary cinquenta centavos para uma sopa de carne para as crianças e
prometeu que lhe traria um par de sapatos na semana seguinte.
A Velha Clayton e Mary Riley nunca conseguiam cumprir com o
aluguel; estavam sempre em dívida. Varriam os corredores, esfrega
vam os banheiros, limpavam cômodos desocupados e recebiam com
passividade os abusos de Helen. Penhoravam suas roupas e itens do
mésticos e arranjavam bicos — como tirar ostras da concha, lavar e
costurar roupas. De vez em quando, Helen estendia o empréstimo,
apesar de sua crença de que isso encorajaria a preguiça e uma noção
de direito. Esses atos de bondade calculados não eram suficientes

146
para diminuir o abismo entre a pobreza e os requisitos mínimos ne
cessários para a sobrevivência. Nenhuma dessas medidas paliativas
oferecia uma maneira de contornar a verdade: mais de sessenta por
cento das pessoas negras na cidade se encontravam num estado de
12
pobreza.

Nas tardes de segunda-feira, Gallen, o zelador, ia até o escritório de


Helen para reportar os eventos da semana. Seus próprios esforços de
espionagem haviam se provado infrutíferos e rendiam pouco além de
um maço de cartas de baralho, três vasos de flores no quarto de Ida
Haines e uma garrafa de gim pela metade no armário de Bella Denby,
então ela dependia do zelador. Gallen parecia desapontado quando
nada de sensacional acontecia,e saboreava os detalhes sórdidos: Bella
Denby causou tumulto no sábado à noite. Ida Haines foi detida num
bordel na Hirst Street e passou um dia presa por ter dado chilique.
Fanny Fisher passou o fim de semana bebendo depois que o médico
lhe dissera que não havia esperanças. Agora ela disse que podería be
ber o quanto quisesse. Gallen guardou o pior para o final, exibindo
o traço negro do drama. No sábado à noite, ele tinha surpreendido
Katy Clayton fazendo amor com um dos garotos Gallagher no saguão.
Quando destrancou a porta, encontrou Jim Gallagher, mas não Katy.
Eles devem ter ouvido o barulho das chaves quando abriu a porta da
frente. Gallen mandou que ele saísse e, ao encontrar Katy na torneira
do quintal,ela tentou fingir que nada tinha acontecido, mas ele não era
tolo. Ele os ouviu no ato. Sabia o que a garota fizera com Gallagher.
Com toda aquela comoção,eles não poderíam estar só de mãos dadas.
Não tinha acreditado nas fofocas sobre Katy, mas agora ele sabia que
os rumores eram verdadeiros.
Depois de conversar com Gallen, Helen foi direto para a delega
cia.^^ Buscava a ajuda do tenente Mitchell sempre que os problemas
da Saint Mary Street eram grandes demais para ela. Hannah estava
em Londres e,sem sua companheira,Helen titubeava. À noite,ela en-
tretinha Hannah com os detalhes cotidianos da rua: “Outro dia um
crioulo muito bonito me abordou pedindo um quarto para ele mais

147
uma pessoa. Então você é casado? Ah, sim, ele respondeu. Então o
quarto é para você e sua esposa? Não,é pra mim e uma amiga!”.
Helen empalideceu diante da palavra prostituta^ mas não havia
maneira de contorná-la. O tenente Mitchell prometeu que Katy se
ria presa se fosse pega no flagra. Ela podería ser mandada para longe
por uns bons três anos pelo que tinha feito. Caminhando da delega
cia para casa, Helen se perguntou se tinha tomado o caminho certo.
O conforto que sentira quando o tenente lhe assegurara que cuidaria
do problema havia desaparecido. Era tarde demais para deter o que
ela pusera em movimento. Agora Katy Clayton estava em perigo. Se o
tenente conseguisse, ela logo seria mandada para o Asilo das Mada
lenas ou para a Penitenciária Estadual do Leste. Helen esperava que
ninguém a tivesse visto na delegacia. Seja lá o que ela tivesse feito,
certamente geraria alguma discussão. Era difícil cometer um desli
ze daqueles. Ela esperou até que as circunstâncias pedissem alguma
ação, então fez aquilo que achava que era correto, mas ainda assim
não tinha certeza se estava certa. Não sabia o que era melhor.
Às vezes as coisas se mostravam certas logo depois de feitas, mas
Helen queria ter a consciência limpa antes disso. Tia Sue dizia que
os sentimentos de rebeldia deles direcionados a Helen quando ela lhes
dava ordens sobre suas casas ou tentava impor coisas deviam ser
respeitados. Helen nunca deveria olhar dentro dos guarda-roupas
nem entrar na casa deles, sua tia aconselhava, mas ela falhou em
seguir esse conselho. Sempre que tentava ditar algo, eles insistiam
que tinham pagado pelo lugar e que ela não tinha nenhum direito de
interferir.
Helen falhou em atingir as mulheres. Cada sarcasmo ou expres
são hostil a lembravam disso. As mulheres poderiam tanto mandá-la
para o inferno quanto desejar bom-dia. Observando-as reunidas no
pátio, ela se enchia de inveja, acreditando que a intimidade delas era
uma forma de rejeição. As mulheres eram iluminadas pela luz do fim
da tarde, as formas pretas como silhuetas contra o flanco dos lençóis
pendurados atrás delas. Cada olhar indiferente, cada uma daquelas
costas viradas para ela era uma barricada que a mantinha fora do
círculo. Quando negavam reconhecimento e deixavam claro que não

148
precisavam de Helen para nada, quando ela era incapaz de encontrar
seu melhor reflexo nos olhos delas, quando a hostilidade era tão in
tensa que ameaçava esmagá-la e destruí-la, então o grupo de mulhe
res reunido no pátio em uma tarde no fim de agosto, envolvidas nas
tarefas mundanas de pendurar roupas,quebrar pecãs e pregar botões
se decompunha em um outro sem rosto, uma multidão ameaçadora,
uma raça sem feições ou características distintas. Nesses momentos,
Helen conseguia enxergar apenas uma traição em massa^ as linhas da
batalha estavam traçadas; ela pensava:Estão todas contra mim?^ Du
vidava de que algum dia poderia alcançá-las. Quem poderia imaginar
que a batalha a travar seria tanto contra elas quanto contra o gueto?
Quando estava cara a cara com Katy,Fanny ou Bella, Helen se for
çava a lembrar que elas não eram o inimigo.Se possível,teria entrado
na pele delas apenas para saber o que sabiam e sentir o que sentiam;
e as mulheres, como se sentissem esse desejo dela de ocupar sua vida
íntima e reivindicá-la, a repeliam, negavam-lhe o direito de entrar em
sua cabeça e em seu coração; elas não lhe confidenciavam nada.

Duas mulheres de cor em vestidos bem cortados,chapéus de bom gosto


e luvas impecáveis entraram no escritório. Helen não ficou surpresa
em vê-las, pois poucos senhorios alugavam para negros,e aqueles que
se dispunham cobravam os aluguéis mais altos pelos piores cortiços do
distrito. Uma entrevista com as duas senhoras não se faria necessária.
Helen rejeitava os melhores tipos. Elas claramente não precisavam
de ajuda e não eram adequadas para a vizinhança. Antes que Mamie
Shepherd e sua mãe,a sra. Eunice Berry,tivessem tido chance de cum
primentar ou se apresentar, Helen já as tinha dispensado. Seus olhos
não puderam captar nenhuma necessidade de melhoria. A filha, cuja
semelhança com a mulher mais velha era inegável,era uma figura muito
notável. Era uma jovem adorável e desarmou Helen com seus modos
respeitáveis e seus olhos grandes e inocentes. Do tipo que se desvia
facilmente, Helen pensou, armando um caso contra ela. Uma garota
tão dócil e gentil não duraria uma semana sem que Katy Clayton a me
tesse em problemas,ou que algum bandido bem-apessoado a seduzisse.

149
Senhoras, para o bem de vocês, é melhor evitarem a vizinhança,
aconselhou. A mâe de Mamie concordou que seria melhor para a filha
procurar outro lugar. Eunice Berry não deixou de notar o lixo espa
lhado na frente dos outros prédios e os olhares atrevidos e insisten
tes dos homens que vadiavam na esquina. Mamie ficaria mais segura
com ela até encontrar acomodações adequadas. Helen podia ver que
a jovem era refinada demais para a Saint Mary Street e que era acos
tumada com coisa melhor. Mas Mamie insistia que não podia morar
na casa da mãe para sempre;uma mulher casada precisava de sua pró
pria casa. Eram apenas Mamie e o marido e ela prometeu se manter
firme. Era impossível encontrar um quarto em outro lugar. Ela estava
disposta a tentar a Saint Mary Street, mesmo que temporariamente.
O apelo daquele rosto adorável voltado para cima e os olhos casta-
nho-escuros penetrantes mexeram com Helen. Que coisinha mais lin
da. Mamie Shepherd ficou com o apartamento número 5.
James Shepherd chegou na noite de quinta. Nada na aparência dele
deu a Helen razão para duvidar de sua capacidade de conduzir Mamie
na direção certa. Os cômodosjá estavam muito bem arrumados. Na pri
meira oportunidade, Helen planejava falar em particular com ele sobre
Katy Glayton e as outras; seria melhor que Mamie evitasse aquelas jo
vens. No sábado, voltou a visitá-los. Era aniversário de Mamie. Ela es
tava fazendo dezenove anos e era uma garota radiante e atraente. Com
o apoio necessário,ojovem casal podería criar uma vida digna.Por ora,
Helen pretendia fazer o que estivesse em seu poder para proteger Ma
mie das outras. Não iria perder a garota como perdera Ida Haines e Katy
Gla3Tton. Tentaria ao máximo influenciá-la e mantê-la fora de perigo, e
jurou que protegeria Mamie de seus arredores, especialmente quando
seu marido passava a semana fora. Ele não conseguira emprego na Fi
ladélfia, então, como a maioria dos homens de cor, trabalhava fora da
cidade. Helen redobraria seus esforços em nome daquela garota.

Sentada àjanela, Mamie ouvia o clamor da Saint Mary Street. A quadra


pulsava com uma fome tão intensa que ela podia senti-la só de ouvir.
Toda a violência,a beleza e a miséria reverberavam pelo gueto,se insi-

150
nuavam pelas ruas e vielas e ecoavam nos cortiços.Toda noite, Mamie
podia ouvir os rags tocados no piano pairando pela viela, vindos do
botequim da Seventh Street; os golpes firmes de gângsteres irlandeses
que espancavam um menino negro por esporte; a Velha Clayton,can
tarolando distraidamente “My Way’s Cloudy”* empoleirada najanela
do andar de baixo; a sra. Washington barganhando o preço daquilo
que já tinha sido feito com um freguês caloteiro ainda agarrado aos
seus quadris; os irmãos Gallagher plantados nos degraus da entrada
enchendo a cabeça de Katy Clayton de adulações e seduzindo-a com
promessas; um homem branco do Pat 0’Brien’s lá no pátio,flertando
com Rebecca Clark e suas amigas,dando o máximo de si sem conseguir
nada,mas a cada rodada de cerveja as mulheres ficavam mais flexíveis,
e ele, mais atraente. Mamie conheceu seus vizinhos por conviver com os
sons deles.Pessoas estranhas em todos os outros sentidos se tornavam
íntimas. Ela reconhecia os soluços, podia ouvir os arrependimentos
sussurrados e a torrente de desculpas que se seguiam às violências de
Ike. Mesmo com as bochechas machucadas, muito roxas, Bella ainda
era bonita, mas todo o resto estava arruinado. Charles Riley gritava
com Mary e as crianças, acreditando que estariam melhor sem ele.
Ele sabia o que era esperado de um homem e Mary implorava para que
parasse de falar daquele jeito. O repicar das gargalhadas de William
Sutton,agudas e estridentes, penetrando o ar enquanto ele rendia suas
companhias,homens ou mulheres,com seu charme.O alerta barítono
de Fisher:“Chega,Fanny. Você está tentando se matar, por acaso?”
Quando se cansava de ouvir a vida dos vizinhos, Mamie se vestia
e vagava pelas ruas, espiava vitrines de lojas e inventava histórias so
bre o que faria com aquele vestido de veludo preto ou como seria sua
vida se morasse em uma imponente casa geminada feita de pedra na
Spruce Street como a srta. Parrish. Nessas jornadas errantes pela ci
dade, Mamie se movimentava tão livremente quanto queria. Sua mãe
a alertara muitas vezes, dizendo que não era seguro que andasse sem
rumo por aí, ou que ficasse na companhia de estranhos.

* Spiritual também citado por Du Bois no capitulo “As canções do sofrimento” de


Almas do povo negro,op. cit.

151
As pessoas teriam a pior das impressões de uma mulher de cor va
gando sozinha pelas ruas, especialmente à noite. Qualquer coisa po
dería lhe acontecer. Até agora, ela tinha dado sorte. Nenhum homem
branco a insultara, então ela ainda se sentia confortável de andar so
zinha. Passeando pela teia de ruas que ordenava a cidade, ela entrava
e saía de dúzias de conversas. Errar por aí libertava um algo selvagem
que a fazia se sentir viva, uma pontada aguda de desejo que a fazia
tremer. A cidade negra à noite pulsava de possibilidades.
Em algumas noites ela ia até o Gil Balfs na Seventh para beber uma
cerveja e escutar um rag favorito. Ou ia para a Academia de Música
se houvesse algum número de vaudeville ou um espetáculo de menes-
tréis em cartaz. Ela gostava de ir ao teatro e de se divertir, e ninguém
nunca a havia insultado lá. Sentada no auditório escuro, ela experi
mentava o transporte que permitia às garotas pobres sonhar. Era por
isso que Mamie amava o palco. Ela se sentava maravilhada na platéia,
vendo as “mulheres vestidas alegremente” que “pareciam para ela
criaturas de um reino encantado”. Centenas de outras garotas haviam
experimentado isto: a sensação de estar “perdida” e “fascinada” com
sua alma “flutuando num mar de sentidos”.*® Era grandioso. Ao ver os
atores no palco, ela se perguntava como seria ser uma atriz e estar lá
em cima. O brilho dos holofotes poderia convencer qualquer um que
uma vida maravilhosa estava à sua espera em algum lugar. Absorta
nos magníficos números musicais, perdida nas sedas e rendas,*® ela
preferia não pensar em sua vida, e sim reivindicar o glamour e o pra
zer do palco para si. Era o antídoto para as visões estereotipadas dos
pobres que viviam em lares arruinados e dos melodramas miseráveis
narrados pela srta. Parrish.
O mundo era tão vasto e ela vira tão pouco dele:leopardos em mon
tanhas cobertas de neve,paisagens do polo Norte e do Japão,vistas pa
norâmicas de Paris, filmes, uma edição ilustrada d’0 coroo. Com dez
centavos ela podia pagar por uma excursão para os belos lugares que
nunca visitaria, experimentar vidas que nunca habitaria, a não ser em
um auditório escuro; mas ainda assim tudo isso lhe parecia mais real
que aquele apartamento de três cômodos no qual vivia. Conforme uma
imagem se dissolvia e outra aparecia, seu coração acelerava. As ima-

153
feri

I
fJ

gens piscando na tela a transportavam para longe de um cortiço de


cente em um quarteirão horrível, a conduziam para enormes palácios e
conjuravam a promessa de uma vida diferente. Era o oposto a ficar em
casa, trancada dentro dos cômodos minúsculos da Saint Mary Street,
fingindo que estava contente e se vendo obrigada a ser grata. Ela se tor
nava outra pessoa em outro lugar, como num sonho,em que o que você
é não se parece em nada consigo, mas ao mesmo tempo é tão claramen
te você. Os slides que passavam pela tela transformavam o mundo num
piscar de olhos; cada imagem carregava a promessa de que a distância
entre o agora e aquilo que o futuro guardava podia ser facilmente ven
cida; era como se aquela sua gloriosa versão de si encoberta pela escu
ridão do cinema fosse a única que jamais existira.
O desejo encantava e embelezava a cidade aos seus olhos. De outra
forma,seria um lugar feio e hostil, ela se sentiria da mesma forma que
se sentia quando estava presa em seu apartamento deprimente, ente-
diada e sem nenhuma perspectiva a não ser aquilo que James ou algum
outro homem poderiam oferecer. Quando a cidade não era nada mais
que a dura realidade da pobreza — prédios abarrotados em ruas mui
to estreitas, barris de cinzas e lixeiras apinhadas na calçada, o fedor
dos coletores puxando suas carroças de excremento pelas ruas depois
da meia-noite, as roupas tristes de domésticas e caminhoneiros lava
das e penduradas pela viela, o cheiro fraco e doce de pão barato vindo

154
de uma padaria do cortiço então ela era menos do que imaginava.
com certeza não uma mulher independente,apenas uma garota de cor
sem rumo,uma coisa triste e solitária.
Como qualquer outra pessoa na quadra,Mamie queria algo melhor
do que tinha, melhor que a privação e a feiura do quarteirão negro.
As horas em que passava desperta eram dedicadas a imaginar como
seria. No fim do século 19, ainda era possível acreditar que não fica
ria presa em um cortiço, mesmo que digno, para sempre. Ainda era
possível supor que uma sala toda pintada de branco, cheia de móveis
de segunda mão, em uma quadra arruinada, era apenas uma parada
a caminho de um lugar melhor. O quarteirão negro ainda não era um
lugar “cercado pelo desastre”,^^ então não parecia tolo acreditar que
outro tipo de vida estava ao alcance.

MamieSharpfoi o nome que elaforneceraem seu endereço anterior.Srta.


Parrish,a senhora disse que só alugava pra gente decente.Se você alugou
pra Mamie Sharp,está claro que aceita qualquer um.Logo esse lugar vai
ficar tão ruim como quando Mãe Hewitteraa encarregada.A intrometida
sra.Joyce continuou divagando,mas Helen tinha parado de ouvir.
Ela não esperava boas notícias quando a vizinha apareceu de repente
em seu escritório. Ela ouviu,mas não conseguiu encaixar a história com
aquela adoráveljovem de dezenove anos que residia no apartamento nú
mero 5. Muitos pensamentos percorreram sua cabeça; mas para fingir
que estava no controle da situação, respondeu secamente: Mamie está
em período probatório — se não se comportasse bem,teria de ir embo
ra. Helen evitou perguntar qualquer coisa que pudesse dar à sra. Joyce
a impressão de que sabia mais sobre os inquilinos que a própria Helen.
Levantando-se de sua cadeira, Helen agradeceu a informação e fez com
que a conversa terminasse antes do que a sra.Joyce havia esperado,para
sua clara insatisfação, mas Helen estava muito agitada para continuar
ali sentada. Saiu às pressas,deixando a sra.Joyce em sua mesa.
Será que havia se enganado terrivelmente em sua avaliação de
Mamie? Como se enganara com Ida, embora ela tivesse suspeitado
de que Ida bebia desde a primeira vez que se encontraram. Como se

155
enganara com a sra. Henderson, achando que ela era respeitável e
próspera com seu excelente conjunto de dentes falsos, até a mulher
ameaçar espancá-la. Mas Mamie era diferente. Helen ainda não tive
ra a chance de trabalhar com uma garota daquela qualidade, e muito
podería ser realizado com um material tão fino. Mas e se as coisas
terríveis que a sra. Joyce alegara fossem verdade?
Quando Helen bateu na porta, Mamie a convidou para entrar. Foi
recebida com um alegre olá, e não o “Que é?” emburrado que com fre
quência acompanhava a chegada da cobradora de aluguéis, a porta
ligeiramente aberta, apenas o suficiente para a cabeça protuberante
dizer “Não tenho hoje” ou “Não é certo bater aqui no sábado pra fazer
negócio”, e então fechada com tudo após a última palavra, sem nem
mesmo a cortesia de um “Boa tarde” ou “Boa noite”.
Não havia uma maneira fácil de entrar no assunto do adultério,
então Helen abordou a questão diretamente. “Mamie, você está an
dando por aí com outros homens? Está?” A pergunta era mais uma
acusação que uma consulta. A resposta de Mamie não foi menos di
reta: “Sim,eu gosto de fazer o que tenho vontade”. Mamie não pediu
perdão ou ofereceu desculpas por não ser capaz de se comportar; ela
não tentou moderar o julgamento de Helen admitindo que se sentia
sozinha. A solidão podia provocar atos imprudentes dos quais as pes
soas viríam a se arrepender. Helen compreendia isso muito bem,tra
balhando às cegas como fazia na ausência de Hannah.
Mamie não ofereceu nenhuma desculpa. Recusou-se a pedir per
dão ou a se explicar.
“Mamie, você não tem noção do que é certo e errado?” Helen per¬
guntou.
Certo e errado não tinham nada a ver com a situação. “Não sou o
tipo de mulher que fica sozinha. Gosto de sair com os meus amigos.”
“Mamie,você não pode andar por aí com um homem que não é seu
marido. Estou certa de que você sabe disso,sim?”
“Não sou pior que os outros”, Mamie respondeu.“Não sou pior que
a maioria aqui. Sim, eu tenho me comportado mal. Mas nas últimas
duas semanas,James tem trabalhado de dia e chegado em casa à noi
te, e eu não tenho ido pro teatro nem nada.”

156
Mamie nâo acusou a srta. Parrish de interferir, nem a chamou de
vadia intrometida como Bella Denby ou Fanny Fisher teriam feito.
“Depois que James falou com você, ele me proibiu de sair com Maizie
Gibbs”, Mamie disse. Quando Ida Haines foi fazer uma visita, ele nào
a deixou entrar. Mamie não via necessidade de explicar o que havia
feito. James era a única pessoa a quem ela devia satisfações. Sem cul
pa ou remorso, disse: “Talvez tenha me comportado mal, mas você
não entende o que eu preciso”.

No sábado à noite de sua terceira semana na Saint Mary Street,James


Shepherd chutou a porta do apartamento. Ele estivera fora a semana
toda,e o homem que vinha fazendo companhia para Mamie saiu cor
rendo de camisa e sapatos na mão. Não é difícil imaginar James con
sumido pela raiva arrombando a porta; o resto é incerto e os detalhes
são imprecisos,embora cenas de amor e traição se desenrolem em um
curso familiar, repetido ao infinito e com tanta frequência quanto as
juras de fidelidade:

James nào pretendia desmantelar os cômodos que haviam levado duas


semanas para ficar menos inóspitos, mas destruir uma das cadeiras o
impediu de colocar as mãos em Mamie.Ele poderia ter perguntado por
que, mas não o fez, pois não fazia sentido. Nada do que ela dissesse po
deria suavizar o golpe, ou fazê-lo doer menos. Ele a empurrou para o
quartinho ao lado da entrada, seu santuário. Era mais um armário que
um quarto, mobiliado apenas com uma mesinha dobrável, uma caixa de
charutos e uma Bíblia com o nome dos pais e avós dele, o nome e a data
de nascimento dos irmãos, e o nome dos outros parentes dos quais eles
ainda se lembravam escritos na primeira página. James socou a pare
de acima da cabeça de Mamie para evitar olhar nos olhos dela e para
arrancar aquele olhar de quem diz Eu não tenho do que me en^oergonbar
da cara dela. Seus olhos nâo tinham sequer um brilho de consciência
para o qual ele pudesse apelar. O olhar vazio quase o destruiu. Deixava
claro que ele nunca seria suficiente e que no mundo nunca havería nada
suficiente para ela. Desesperado para fazer aquele olhar desaparecer.

157
destruiu o quarto, mas o vazio persistiu. Ele a empurrou contra a pare
de, pressionou o corpo contra o dela, devorou sua boca e abriu caminho
pelo obstáculo de suas anáguas. Mamie,Mamie,ele chamou,até o vazio
naqueles olhos desaparecer.

A cena é dolorosa e tocante, um jovem bonito, traído, avaliando


aquilo que não pode possuir, uma mulher que o ama, mas que não lhe
pertence. Essa cena não foi descrita em nenhum lugar do caderno de
Helen. Mamie a mencionou brevemente para Gallen. Talvez tenha
confidenciado mais para Maizie Gibbs ou Katy Clayton. Então só
podemos especular sobre a briga e as súplicas incitadas por sua infi
delidade ou a força do amor que permitiu que Mamie e James sobre
vivessem a ela. A relação vulnerável e frágil de um casal tão jovem e
recém-casado tentando construir uma vida juntos sem que tivessem
nada para apoiá-los ou para impedir que afundassem provavelmen
te não terminaria bem.E a situação era igualmente dolorosa quando
vista pelos olhos dela ou dele.
James Shepherd era um homem atencioso, talvez um pouco ta
citurno ou melancólico. Já tinha perdido muitas pessoas que amava
para ser descuidado com suas relações. A perda ameaçava enfraque
cê-lo; era como se aqueles que iam embora levassem junto uma parte
sua específica que haviam tornado especial. Muitas peças se perde
ram na jornada da Flórida para a Filadélfia. Ele perdera dois irmãos
pelos quais teria dado a vida e ainda não tinha ouvido notícias deles.
Ele e Mamie formavam a única sociedade da qual ele precisava. Con
tentava-se com isso. Tinham tão pouco tempo juntos com ele traba
lhando fora da cidade, que era um alívio ter um lugar só deles, não a
casa da mãe dela, isolados do mundo.
James viajara o suficiente para saber que o mesmo tipo de gente
era encontrado em todos os lugares. O quarteirão negro, a Pequena
África, o Tenderloin, a periferia — todos tinham a mesma aparência,
o mesmo cheiro, não importava onde você estivesse, Richmond ou
Filadélfia, Nova York ou Washington, Chicago ou Pittsburgh. Nun
ca havia ar suficiente para respirar, espaço para crescer, nenhum pe
daço de terra suficiente onde criar raízes. Negros eram andarilhos.

158
nômades, fugitivos, nâo colonizadores. A eles não eram permitidas
as palavras “eu” e “meu”. Mesmo se você tivesse a pretensão de acre
ditar que havia estabelecido um direito duradouro, construindo um
lar com espaço suficiente para os seus filhos e para os filhos do seu
irmão, onde um dia seus tataranetos se sentariam na varanda e per
guntariam:“Papai,como foi que chegamos aqui?” e você respondería
algo como: Construí essa casa com as minhas próprias mãos, e ela é
de vocês,e dentro dos nossos portões nenhum homem branco manda
ou faz outras coisas que passam uma sensação de segurança pra eles,
mas ainda assim você os prepararia para a vida,para que,quando eles
descobrissem que não existe proteção nenhuma contra gente bran
ca, eles conseguissem guardar esse conhecimento e renunciar a um
mundo hostil. Mesmo com tudo isso, um dia um homem branco pode
subir na sua varanda com um pedaço de papel na mão e dizer que nada
daquilo pertence a você; não é seu e nunca foi, e aquilo que uma escri
tura fraudulenta falha em realizar, uma tocha e um rifle com certeza
conseguem. Quando esse dia chegar, você não tem outra escolha se
não lutar e morrer ou pegar suas coisas e ir embora. E enquanto for
assim,os negros têm de estar prontos para fugir num piscar de olhos,
como ele e seus irmãos tinham feito.
Essa primeira geração pós-escravidão era tão apaixonada pela li
berdade que poucos notaram ou se preocuparam com o fato de que
eles não tinham sido libertos de forma nenhuma. Ainda não sabiam
que o preço da guerra seria descontado de sua própria carne. As pes
soas estavam muito ocupadas sonhando com aquilo que desejavam
ser, pensando em como queriam viver, nos acres que iriam cultivar,
em busca da mãe que jamais encontrariam, perguntando-se o que
acontecera com o tio, se a irmã estava morta, e será que era verdade
que tinham visto dois dos seus irmãos bem longe no Norte, na Fila
délfia? A liberdade era a promessa de uma vida que a maioria nunca
teria,e que poucos tinham vivido. Mas quem podia suportar isso? En
tão as pessoas de cor seguiam em busca,recolhendo suas coisas e indo
embora,de novo e de novo.
Na ausência dos dois irmãos,James não tinha ninguém a não ser
Mamie.Passara-se tempo demais sem nenhuma notícia,de forma que

159
era impossível não imaginá-los mortos, presos ou foragidos. James
estava exausto, à espera de uma resposta que nunca chegaria. Tudo
o que ele tinha era Mamie. Houve mulheres mais bonitas, mulheres
dispostas a lhe comprar sapatos, relógios de bolso e coletes de seda,
mulheres que beijariam o chão onde pisava. Algumas o haviam dei
xado antes de ele ter chance de dizer adeus, mas não importava. Para
ele não havia nada mais que confusão e vida fácil. Até que seus irmãos
sumiram,e ele soube que não tinha nada. Mamie o encontrara quan
do restava muito pouco dele mesmo.James se agarrou a ela, sentindo
que, de outra forma, desaparecería. Não me solte. Ela o segurou en
quanto ele aprendia a não esperar mais o som do seu nome pronuncia
do pelos irmãos, o rugido da Costa do Golfo contido nele.

Estava tudo calmo no número 635,a não serpor Mamie.Helen perguntou


sobre James e ela para Gallen. A fofoca havia se espalhado,então outros
também começaram a reclamar de Mamie.Contrariando aquilo em que
Helen queria acreditar,ao que parecia, Mamie era muito desprovida de
princípios. Helen nem sabia se ela alguma vezfora fiel aJames. Gallen
repetiu o que Mamie havia lhe contado: enquanto Shepherd estivera
fora, ela havia ficado na companhia de outro homem,e quando seu
marido chegou em casa, ele arrombou a porta. Gallen não tinha visto
nem ouvido nada.Se ela não tivesse contado para ele, outros poderíam
ter feito isso.
Os acordos íntimos na Saint Mary Street, como Helen descobriu,
mmca eram o que pareciam ser. No fim das contas, um marido era um
marido ou uma esposa era uma esposa? Os termos da intimidade eram
tão flexíveis no caso das pessoas negras que era difícil precisar o que
significavam — aquela era sua esposa desde jovem ou só a mulher com
quem ele vivia agora? O chefe da família era o pai das crianças ou o ho
mem que as sustentava? Era impossível saber se um jovem casal havia
sido separado em nome do trabalho,como eles alegavam,ou se a união
deles era de um tipo livre e não reconhecida por lei. Era difícil decidir
se a família negra era realmente uma família. Uma criança chegava na
companhia de uma mãe e então, meses depois, era reclamada como o

160
filho de outra. Os homens eram pais, mas viviam separados dos filhos;
ou um marido podería ter duas famílias. Mulheres desimpedidas eram
incapazes de construir um lar, ou nào queriam fazê-lo, ou moravam no
trabalho, na casa de famílias brancas,abandonando os próprios filhos.
Helen sabia de tudo isso, mas ainda assim não estava preparada para
Mamie. Nem o nome dela estava certo. Mamie Sharp. Ela se casara
com quinze anos,e o marido abusava dela e a maltratava. Mamie o ha
via deixado uns dois anos atrás. Desde então, ele se “casara” de novo e
ela se “casara” com James Shepherd.
Para piorar as coisas,agora Mamie e James estavam com o aluguel
atrasado. Helen foi ver Eunice Berry sob o pretexto de cobrar o alu
guel vencido, mas queria informações. A mãe de Mamie confidenciou
que não podia manter a filha em sua casa porque ela apreciava compa
nhias masculinas. Eunice temia por ela.

A sala estava abafada. Mamie conversara com James sobre a separação,


mas ele não queria ouvir. Helen Parrish tremia sentada na cadeira,
esperando James surgir do quartinho contíguo à sala de estar. Ele se
portou de forma calma e educada,e não com violência,como ela temia.
Helen esperou que James Shepherd falasse. Mamie permaneceu em si
lêncio e distante,como uma espectadora da cena que acontecia na sala
de estar. Helen sabia de tudo agora, e pediría que eles desocupassem
o apartamento, concedendo-lhes o aviso prévio de uma semana,con
forme sua prática usual. Se James soubesse que eram permitidos três
meses por lei, poderia ter insistido em ter esse tempo. Helen contava
com a ignorância de James sobre o assunto e também com que ele não
desconfiasse dos limites de sua autoridade.James Shepherd não disse
nada,então ela iniciou a conversa.
“Sr. Shepherd, essa situação não pode fazer bem algum a Mamie”,
a voz de Helen vacilou.“Quando se candidataram para o apartamen
to, vocês fingiram que eram casados. Se eu soubesse a verdade,nunca
teria alugado para vocês. Vocês não podem mais ficar aqui.”
“Srta. Parrish, pretendemos sair assim que encontrarmos outro
lugar.’

161
Helen, surpresa por ouvir isso, olhou para Mamie em busca de
confirmação, mas Mamie a ignorou. “Com essa relação ilícita, você
não pode fazer nenhum bem a ela, nem protegê-la. Ela está numa si
tuação de perigo e tentação constantes. Não consegue entender que
ela estaria melhor sem você?”
James pareceu surpreso. “Srta. Parrish, eu me preocupo com ela.
Você não acha que me casaria com ela se pudesse?”
“De quem é a culpa?” Helen perguntou bruscamente. “Mamie se
casou às pressas e agora tem que pagar por isso.” Ojovem casal havia
pagado e estavam pagando agora, mas Helen continuou falando so
bre lei e moralidade,cega a esse fato essencial.
“Não se pode deixar um marido por capricho e se envolver com
outro homem. Você se comprometeu quando fez aqueles votos. Não
se pode simplesmente ir embora e começar uma relação com outra
pessoa.” Helen olhava para James enquanto falava, mas suas palavras
eram direcionadas para Mamie. “Existem leis civis e religiosas que
condenam a forma como vocês vivem.”
“Eu a amo”, disse James.“Não tem nada de precipitado nisso.”
“Mas você tem condições de protegê-la?”
Ele a havia protegido.James colocara um teto sobre a cabeça dela
e roupas em seu corpo.
“Você não representa proteção alguma com Mamie saindo por aí em
perigo constante. Sr. Shepherd,você não tem nada a oferecer para ela.”
James ficou em silêncio.
“O que você fez além de rebaixar Mamie a ponto de ela não saber
diferenciar certo e errado? Não há nenhuma proteção nesse arranjo
de vocês.”
James permitiu que Helen prosseguisse com o sermão quase sem
interrompê-la. Ouviu tudo de cabeça baixa e esperou sua vez de falar.
Quando Helen fez uma pausa,James levantou a cabeça e perguntou:
“Srta. Parrish, a senhorajá amou alguém? Já foi casada?”
Helen estremeceu. A arrogância dos questionamentos dele a enche
ram de raiva. Naquele momento,decidiu não poupar James Shepherd,
aquele homem que pleiteava sobre o amor e tentava se salvar com pala
vras tão bonitas que poderiam ter sido tiradas de um soneto.
Helen não respondeu.

162
“Então a senhora não sabe o que está pedindo.Eu amo essa mulher
como amo a mim mesmo.”
Este era o problema dos negros — a lei não determinava o que era
certo e errado aos olhos deles, como se pudessem viver fora da lei ou
em oposição a ela. Além dos Fisher, Helen já tinha ouvido outros in
sistirem que nenhum papel podia decidir se uma coisa era certa ou
errada, nenhum papel podia determinar a verdade. Sem possuir nada
e subsistindo com tão pouco,eles deixavam o coração decidir tudo.O
amor era sua âncora. Era claro para Helen que a única coisa que im
portava para James Shepherd era: Eu quero Mamie? Mamie me quer?
A lei e a srta. Parrish que vão pro inferno.
“Você não acha que eu me casaria com ela se pudesse?”,ele repetiu.
Helen avaliou ojovem alto e notável e decidiu acabar com ele.
“Mamie quer que você vá embora. Ela me disse que está disposta
a deixar o apartamento e o ‘amigo’ dela e encontrar outro lugar. Ela
quer que você vá embora. Ela está disposta a acatar o meu desejo.”
James não chamou a srta. Parrish de mentirosa, mas relutava em
acreditar no que ela dizia. “Mamie?” James esperou que ela respon
desse, que negasse, mas ela ficou calada.“Mamie,você disse pra srta.
Parrish que quer me deixar?”
“Eu disse pra srta. Parrish que conseguiria outro lugar.”
“Sr. Shepherd, Mamie me disse que não se importaria muito em
deixar ninguém.”
“Sim”, Mamie disse,“só pra conseguir outro lugar.”
“Você está fugindo da minha pergunta”,James disse.
“Eu disse que iria embora e encontraria outro lugar”, Mamie admitiu.
O ar estava carregado de tudo aquilo que se recusavam a dizer
diante de Helen Parrish. Eu te perdoo por tudo, James poderia ter
dito. Você sabe o tipo de mulher que eu sou, Mamie poderia ter arris
cado responder. Nada disso foi dito, mas pairava entre eles.
“Você sabe o que eu perguntei”,James implorou.
“Sim”, Mamie disse.“Eu disse pra ela que deixaria você desde que
conseguisse um lugar pra morar. Mas nunca tive essa intenção.”
“Não foi o que eu entendi. Ela me disse que deixaria você”, Helen
repetiu.“Mamie,você disse,‘Oh,não,eu não me importaria’.”

163
James olhou para Mamie, desejando que os dois estivessem sozi
nhos naquela sala.
“Se você tem amor por Mamie, podería fazer mais por ela deixan-
do-a ir. Você não faz bem nenhum a ela.”
“Mamie,você quer que eu vá embora?” James perguntou, descren
te. Seus olhos fizeram um apelo.
“Sim”, Helen insistiu.“Não tem nada que você possa fazer por ela.”
“Eu não tenho pra onde ir”, James disse em voz baixa.“Não tenho
casa. Não tenho ninguém. Tenho irmãos, mas não sei onde eles estão.
Só tenho um amigo em Nova York.”
“Você pode conseguir trabalho e uma casa”, Helen replicou seca¬
mente.
“Um trabalho e uma casa? Paz de espírito é a única coisa que pro
curo”, ele respondeu.
“Você precisa ir embora”, Helen insistiu.
“Me dê mais um tempo”,James implorou.
“Volto amanhã”, Helen disse.
“Já tentei ir embora antes, deixar Mamie, mas eu não consegui ficar
mais do que dois ou três dias longe. Me dê mais um tempo.Por favor.”

Naquela noite, em casa, Helen tentou recontar tudo em seu diário,


mas escrever a conversa se provou uma tarefa complicada. Era difí
cil saber o que pensar — quão profundamente compreender o significado
de tudo aquilo. Helen transcreveu a conversa, tentando se lembrar de
cada palavra dita, de forma que pudesse entender melhor a estranha
experiência do triângulo.
A repetição de “ele disse” e “ela disse” rendeu um estranho drama
de salão. Apesar de sua cuidadosa transcrição,a verdade do que acon
tecera lhe escapava. Em outras circunstâncias, ela podería ter escri
to: Dominei a situação muito bem. Isso a faria admitir aquela necessi
dade de machucar e possuir. E reconhecer que James,um negro alto e
bonito,seu adversário,era o único sacrificado pelo ciúme.
Nos conflitos com os outros inquilinos, as linhas de batalha eram
inconfundíveis. Todos viviam cientes do estado de guerra declarada

164
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no qual estavam envolvidos. Com os Fisher e os Denby, as fronteiras
eram bem estabelecidas, o antagonismo evidente e inevitável. Quan
do ela deu para a sra. Henderson um aviso prévio, a mulher ameaçou
bater nela. Quando chegou no número 5, Helen receou que James
Shepherd pudesse ameaçá-la e dizer impropérios,como os outros. Na
semana anterior, quando ela chamou a polícia para Ike e Bella Denby,
o policial comentou que era muito corajosa por viver entre aquele tipo
de gente e que certa vez um homem tinha sido jogado de uma janela
daquele prédio. O que levaria um homem ajogar outro homem de uma
janela? Teria sido uma briga por mulher?, ela se perguntou. Que tipo
de pessoa era capaz de um ato desses? Que tipo de pessoa estaria tào
determinada a acabar com um homem? Foi um ato premeditado com
a cabeça fria e mãos embrutecidas ou terá sido um crime passional?
Helen entendia a crueldade desencadeada pelo desejo. Ela e James
haviam brigado por Mamie.Ela pretendia resgatar a garota,educá-la
e supervisioná-la, moldar a vida de Mamie conforme os seus desíg
nios. O melhor seria mandá-la para o campo. A cidade lhe prometia
apenas problemas. Helen não se envergonhava em admitir que se
preocupava profundamente com a garota. O sucesso de seu trabalho
dependia dessa afeição mútua. Quando James Shepherd pisou na sala
de estar de sua casa, ele não estava preparado para lutar pela vida;
nunca chegou a suspeitar que Mamie seria a arma usada contra ele.
Foi uma derrota — Helen tinha acabado com ele enquanto sua amada
Mamie assistia tudo de fora, passivamente. Em questão de dias ele
deixaria a cidade. Helen encontraria um lugar seguro para Mamie no
campo,onde a garota ficaria longe de tentações e nas mãos dela.
Se James amasse Mamie verdadeiramente,ele poderia fazer mais
por ela indo embora. Helen se asseguraria de que Mamie estives
se guardada e protegida, algo que o consorte dela não podia fazer.
Helen nunca estivera tão confiante com relação àquilo que o amor
exigia ou sobre a forma como uma mulher deveria ser amada. Srta.
Parrisb, a senhorajáfoi casada'? Helen evitara a pergunta dele. Seus
sentimentos não estavam abertos para discussão. Ela se perguntou
o que Hannah acharia daquilo — um negro tentando lhe ensinar so
bre amor e devoção.

166
*

SHOT IN THE NECK.


A manchete do Philadelphia Inquirer o
identificou como Joseph Spanks, mas The M^sterious Affiray That Startied
LIsbon Street.
Helen sabia que era James Shepherd.
A primeira coisa que pensou foi em SS7EBÂL CONFIiiaFUta 8T0RIE8.
Mamie e em como ela poderia estar Gcergo Gisnt, for Somo Unkaoirn
ItesMn.ralli Ont a Pistol anS
envolvida. Ela pegou uma tesoura na Dcliberatelr ShooUausepb
gaveta de sua escrivaninha, recortou Spanks.

o artigo do jornal cuidadosamente e o Josepli 8t«oko, coloted. agetl 23, oTKa


C3fl st. Alary sUoet, Uea Intbe reoniiylvanla
colou em seu diário: llcspltol lo a dylofc cosdltton ftom tbo
eíTects ofa piatol woand Infitetsd by Georga
Grant, alm ooloiml, of No. 010 Borclaf
stnwt. Somany confUollBg Btoilesaratold
TIRO NO PESCOÇO^» tbat It 1b diOlcult to «lotermlne tbo cauu of
tbo ailblr. Xbe polico aroIncUned to bellero
O misterioso tumulto que alarmou a tbat tbo BbootlBg wastbo reaoltor a dmakoa

Lisbon Street Biüratos altet ««(Itíock yíBtet^jr


BnemooBpaaieiB>brtnthaTlelni^of Ktttb
BBdHarBtBtreatsxroreattractod bya com*
VÁRIAS VERSÕES CONFLITANTES moUoB in IdBboB otroet, a
ning oir lluiBt. batweon MfUi aod BUtb
Btrceta. TbonoÍMproceododftoina sbaaty
George Grant,por razões desconheci ontbaeaBt Bld^noar Slatb oteoet. Wbea
tbodootwaa tooken opoa Grant bad flod
BDd Spanks oraa sUn^Bg In foa ^caatra of
das,sacou uma pistola e atirou delibe- tborooiD,bIeedlBgpxolteaoly flrom a bullet
tronad in tba noclc. , . . . .
radamente em Joseph Spanks. A bystander who wasIn tbe apartmont at
tbo tliBS B8td tbat Spanks waa wrmtUnj
wltb anotber coloted man wbon Grant aald
tbat if Spanks wonld mora to obo aldo ba
«ooldBbootblm. Spanks did a<^ and ao-
cordlBg to tbo bystander, bs«as sfaot on tbo
Joseph Spanks, negro, 23 anos, snot Anotber p«roon.«boclalpod to a
«itBe8B,bnt«booonId not ba fonnd after*
residente no n“635 da Saint Mary Street, «ardsTasld tbatlt «as an acddent.
Offlcer nanatd and bis p^er wbo woro
se encontra no Philadelphia Hospitalem
condição agonizante em virtude de um sald tbo abootiag waa accldontol, and an-
BonncedblslnteBtlon ofeartendorlng to tba
ferimento à bala infligido por George noilcr. Spanks at tbe tlmo bsd no Idea ba
trsB serlonsly UOated. Stopplng tbe fioir cf
blood «Itb a banilkercblef, h« staggerad out
Grant, também negro, residente no of tbo honso. Ko got along afll rlght
nnUI fae reoched Blxth and Lomb trd streets,
n“610 da Barclay Street. São tantas as wbenbeBankdoornexhaustedftotn tbelosa
"^A^^róloronon «as summoned and tbe
versões conflitantes relatadas que é «oonded man taken to tbe Pennylvanta
Ifoapttol, «berobts wounds «ate pronoonced
difícil determinar a causa da contenda. to bo a sertoas cbaraeter. At&rat he tefosed
to siretbensme orblsnaflaUant, bnt «hen
ba reallzed bis erltleal oondlttoa ha eon-
A polícia está inclinada a acreditar que Bontedtodoflo. 11a added tbat tbe shot vas
flred intentlonally and wlthont ptoToeation.
os tiros foram resultado de uma briga Late loat nlgbt Grant «as arreated neat
Soutb Street ferry and lockod np toamtt
de bêbados. tbe reawlt of SpatVs inlnrjo^ DetecBws
Geyer and ürawibrd were detalled by Ohtef
AVooU to Inrostlgate tbe casa.
Alguns minutos após as cinco horas
da tarde de ontem,os transeuntes nas
proximidades da Fifth e da Hirst Streets

167
foram atraídos por uma comoção na Lísbon Street, uma via que cruza com
a Hirst,entre a Fifth e a Sixth Streets. O barulho veio de um barraco em
East Side, nas proximidades da Sixth Street. Quando a porta foi aberta,
Grant fugiu e Spanks permaneceu no meio da sala, com um ferimento à
bala no pescoço sangrando profusamente.
Um espectador que se encontrava no apartamento nessa hora informou
que Spanks brigava com outro homem de cor quando Grant disse que se
Spanks se movesse, daria um tiro nele. Spanks se afastou e, de acordo
com o transeunte,foi atingido na hora. Outra pessoa,que se identificou
como uma testemunha,mas que não pôde ser encontrada posteriormente,
disse que foi um acidente.
Naquele momento,Spanks não fazia ideia de que estava gravemente
ferido. Estancando o sangue com um lenço, saiu cambaleando da casa.
Seguiu bem até alcançar a altura da Sixth com a Lombard Street,quando
desabou,exaurido pela perda de sangue.

James Shepherd estava no leito de morte. Mamie estivera no hos


pital todos os dias nas últimas duas semanas. O casal ainda estava
unido e Mamie ainda morava no número 5 — para a tristeza de He-
len. Mamie continuava a posar como esposa de James, mas agora ia
e vinha às pressas do hospital, com medo de se tornar viúva. Não
houvera nenhum desentendimento entre os dois homens e, de acor
do com Mamie, eles eram amigos. Agora estava claro que Mamie a
enganara tão bem quanto enganara James. A garota não tinha ne
nhuma intenção de deixá-lo, nem de ir para o campo, como havia
concordado. Até Eunice Berry parecia dançar em outro compasso
agora,dizendo que era correto e apropriado que Mamie fosse cuidar
do marido moribundo.
Era difícil acreditar que fazia apenas um mês desde que Mamie se
mudara para lá. Helen folheou as páginas de seu diário. No dia5 de se
tembro,Mamie se candidatou para o apartamento. No dia6 de setem
bro,James Shepherd chegou, embora parecesse que semanas haviam
se passado até a chegada dele. Na semana seguinte, a sra. Joyce apa
receu no escritório de Helen com seus fuxicos. Na segunda semana,
Mamie estava com o aluguel atrasado como todo mundo. Na terceira.

168
Helen já sabia o suficiente para escrever A História Secreta de Mamie
Sharp. E então, mentiras, mentiras, mentiras.
Depois que foi liberado do hospital, James e Mamie desaparece
ram. Gallen ouviu um boato de que tinham ido para Nova York.A sra.
Joyce disse que estavam morando em uma casa de péssima reputação
no Sétimo Distrito. Helen planejara perguntar ao tenente Mitchell se
os dois ainda estavam na Filadélfia e para quando o julgamento de
George Grant estava agendado, mas decidiu não fazer isso.
Mamie havia desapontado Helen muito mais que as outras. E ela
era a culpada, por ter tentado resgatar uma garota que não queria ser
salva. Se Helen tivesse notado o desejo feroz naquele rosto ingênuo,
ou se tivesse realmente fitado aqueles olhos suplicantes, teria per
cebido que Mamie Sharp não era destinada a uma vida protegida no
campo nem a uma pobreza respeitável e redutora, que era tudo o que
Helen tinha a oferecer. No fim, Mamie se mostrou igual a Katy e às
outras. Ela também se recusava a ser governada.

169
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Em um momento de ternura o futuro
parece possível

o casal certo existe em um estado de perigo. O futuro prometido


pela trama conjugal sai dos trilhos quando a mãe pergunta: “E o
que aquele preto tem pra casar com você?”.^ Essa é a questão sobre
a qual se funda o casamento negro. Os números condenam o amor.
A tabela de mortes, a taxa de desemprego, as proporções desiguais
de gênero, as abstrações assassinas. Os números garantem a lei e
determinam o terrível resultado. Que tipo de âncora é o amor con
tra tudo isso? O felizes-para-sempre lhes escapará. A bela vida que
poderia ter sido é capturada em um momento de ternura que dejeito
nenhum trai o que está por vir: a mãe cobrindo a filha com um manto
funerário. Todo o trabalho e sacrifício materno falham em assegu
rar perspectivas melhores para a filha ou fornecer um meio de fuga
do indizível. Também por isso a mãe negra carregará a culpa. Ela
deu tudo o que tinha, tudo o que lhe importava, mas sem sucesso.
Um sentimento vago e inquietante paira no ar. Isso vai custar tudo
para ela e para sua filha.
A narrativa é desconjuntada. A história é fragmentada. A cadeia
de causa e efeito não funciona. É impossível ter certeza do que acon
teceu ou do que foi imaginado. A história toda é inacreditável, então
é difícil reconstruir a série de eventos. Sonhos e vislumbres frustram
a tentativa de ordenar o tempo em categorias precisas de passado,
presente e futuro. A história avança e tropeça na incerteza. Então o
relato do romance é necessariamente especulativo.

171
A ameaça de ruína paira acima da cabeça do casal certo. Seria tudo
isso apenas um pesadelo na vigília? Haveria um cenário alternativo,
uma trilha paralela onde pudessem viver felizes para sempre? Onde a
invenção seria capaz de sustentar o amor?
Cai uma tempestade. E ela não vem do paraíso, mas é do tipo que
os lembra que há cães do inferno em seu encalço. O clima^ os faz per
der o rumo. Ameaça devorá-los. Engolidos pela tempestade, eles não
conseguem encontrar um meio de fuga, uma rota para um lugar segu
ro; continuam andando em círculos. Será que vão conseguir? Buscam
abrigo e encontram uma velha casa, mas a doméstica não lhes oferece
nenhum refúgio. As portas fechadas escondem a dor, fazem da bru
talidade uma história secreta. Em outra narrativa, o estupro nunca
acontece e uma vida perfeita espera por eles. Em outra narrativa, o
pesadelo acaba e o amor triunfa.

172

ü
LIVRO 2

A geografia sexual do
cinturão negro
l

□—II 1—OtQ
I

D-—i ©-□ © X
X
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I

P © D

í

D
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Y
n 'A
T B

Pearl M.
A - Artístico T-Tuberculoso
B - Bissexual W - Alcoólatra
L-Sifílítico X - Promíscuo
P - Psicótico Y - Separado
igoo.O Tenderloin.4-1^ Street West,241

Eram duas da manhã. O calor de agosto era brutal e ninguém con


seguia dormir. Cabeças despontavam das janelas de cômodos aluga
dos, sonolentas e irritáveis; os desesperados se deitavam em camas
improvisadas; colchões e lençóis dobrados se espalhavam por saídas
de incêndio e telhados. Corpos seminus em camisolas descansavam
em público. A temperatura alcançava quase 37 graus,colocando gen
te decente e trabalhadora na companhia de prostitutas, bandidos,
coletores de apostas e apostadores, o pessoal que dominava as ruas
depois da meia-noite. Mães acampavam nos degraus da entrada com
seus filhos, pequenos grupos de homens se reuniam nas esquinas,
aqueles com algum trocado sobrando se acotovelavam em botequins
lotados por uma jarra de cerveja gelada. Em uma noite como essa,
todos conspiravam para escapar do sufoco dos cortiços, quartos de
fundos abafados e prédios asfixiantes, para fugir do assalto de corpos
malcheirosos, crianças choronas, brigas de casais, para se livrar da
miséria generalizada.
May Enoch também não conseguia dormir. O quarto alugado no
último andar do prédio de Annie Jones era insuportável. A cada lance
de escada,a temperatura se aproximava do ponto de ebulição, de for
ma que os cômodos mais altos eram como o inferno. O calor subia dos
apartamentos embaixo,e o sol que batia na cobertura de piche do edi
fício quase os cozinhava vivos. Estava quente demais para cozinhar,
então ela e Kid decidiram sair para comer alguma coisa. Estavam a

175
caminho do Dobbins’s, mas antes ele precisava de um charuto. Ele
provavelmente esperava que ela pagasse. “Minha mulher vai pagar”
era uma frase que passava pelos lábios dele com mais frequência ago
ra que estavam em Nova York. Ele não pediu nenhum dinheiro para
ela, mas desapareceu no McBride’s para comprar um charuto.
No bar com os amigos e uma bebida gelada na mão, Kid perdeu a
noção do tempo, enquanto May o esperava lá fora na esquina, ten
tando não suar no vestido. Ele fumou um charuto, bebeu um copo de
ginger ale com seus amigos Kid Black, Sam Palmetto e George Bar-
tell, e ficou ali no balcão. Aquele homem adorava matar o tempo. May
não entrou no McBride’s, mas,impaciente, gritou da porta,“Kid, va
mos pra casa”, e esperou. Estava ali esperando por quase uma hora,
não apenas por ele, mas por algo que não podia nomear e que fazia
seu coração acelerar sempre que soltava frases como Eu quero e Se
ao menos, O que achariam dela ali à espera de um homem na esquina
e com todo aquele calor? Que era tola? Baleia encalhada?^ Uma mu
lher que só podia contar com o próprio dinheiro e de ninguém mais?
As pessoas andando pela 41” Street ou subindo a Eighth Avenue se
arrastavam lentamente, como se suas pernas fossem pesadas demais
para ser erguidas. Elas se moviam com indiferença, considerando se
deviam se render à letargia ou antecipando algo ou alguém que pu
desse animá-las. Fazia calor demais para se mexer. Maldito Kid. Ela
estava cansada.
Esperar inutilmente por seu homem na esquina, vagar pelas lar
gas avenidas da cidade,cavalgar Kid em um quarto alugado no último
andar de uma pensão no Tenderloin, amar e machucar, como o olho
roxo evidenciava — tudo isso definia a coreografia de sua vida,tanto
quanto esfregar,limpar e servir. O envolvimento sexual de um jovem
casal num quarto de cortiço — que era só deles pela semana e custa
va o dobro do que era cobrado dos brancos — era tão doce quanto a
liberdade podia ser. Ela era da Filadélfia e ele, da Virgínia; os dois ha
viam se conhecido em Nova Jersey e esperavam conquistar o mundo
em Nova York. O que encontraram foi um pequeno poleiro no quar
teirão negro. Ela se demorava na esquina da 41®* Street,sem saber que
no dia seguinte ansiaria desesperadamente por isso, pela liberdade de

176
passar um tempo perdida em pensamentos. Ela se lembraria vivida-
mente dessa noite.
Era a segunda semana deles em Nova York, então ela não sabia o
que a cidade poderia guardar. Será que o lugar tinha algo a lhe ofere
cer, algo melhor que a Filadélfia, Newark ou D.C.,ou apenas a mesma
coisa por um preço mais elevado? Ela havia deixado um homem pelo
caminho, um marido propriamente dito, após quatro anos de casa
mento. Ela se perguntou o que John Enoch estaria fazendo. Estaria
morto? Também haveria se casado de novo? Por sorte não tiveram
filhos. Se tivesse tido uma criança, poderia nunca ter saído de casa,
nem conhecido Kid ou se mudado para Nova York. Se tivesse tido um
filho,ela teria ousado ir embora? Era difícil se mudar e sair por aí com
um bebê. Uma criança poderia ter selado seu destino.
No mês seguinte, no dia 4 de setembro, seria o primeiro aniver
sário deles. As coisas com Kid estavam boas o suficiente para irem
tentar a sorte em Nova York. Se havia um lugar onde a sorte podia
ser encontrada por uma pessoa negra, esse lugar era ali. Nova York
era a maior cidade negra do Norte. Era mais viva, mais perigosa que
a Filadélfia. Era um ano auspicioso e ela,como qualquer outra pessoa
negra, esperava que 1900 representasse um presságio de mudança.
Sim, de fato, Nova York era a cidade certa para uma nova vida, para
uma
um novo século.Pessoas negras ansiavam desesperadamente por
quebra do passado, uma ruptura com os dias obscuros, então elas se
recriaram como os Novos Negros^ e falavam sem descanso sobre re
generação e sobre despertar na esperança de que o mundo pudesse
seguir seu exemplo e criar arranjos melhores.
A mão apertou com força seu braço esquerdo antes que ela se vi
rasse e visse o rosto dele. O homem já a arrastava pela rua antes que
ela pudesse dizer qualquer coisa. Mas que diabos esse branco está
fazendo? As pessoas observavam, mas ninguém fez nada, ninguém
disse nada. Uma mulher de cor podia ser agarrada na rua e ninguém
diria uma maldita palavra nem daria um pio. Não importava aonde
você fosse, sempre precisaria dizer para algum homem branco tirar
a mão de você. Quando você menos esperava, quando estava perdida
em devaneios sobre a boa vida na cidade,essas mãos apareciam de re-

177
pente,como se estivessem sempre à espera de agarrá-la. No momento
em que você baixava a guarda, elas faziam exatamente isso. O que
você está fazendo? Ele continuou a arrastá-la. Sendo nova na vizi
nhança, May não o reconheceu, não sabia que o homem tinha como
prática regular ficar ali na esquina e “abusar de homens e mulheres
negras ao bel-prazer”. Ele era um terror e se orgulhava em ser o pesa
delo de qualquer pessoa negra. A gente de cor o odiava,^ mas ele não
se importava.Isso só alimentava seu apetite por violência; o medo e o
ódio o inspiravam. Enquanto arrastava May pela quadra,Thorpe não
disse palavra. Muitas vezes a ameaça era suficiente para colocá-los
de joelhos, outras vezes tinham de ser maltratados para ceder. Não
importava o quanto implorassem, não importava o que tivessem sido
forçados a fazer, ele os fichava sem falha.(A corrupção e o assédio no
Tenderloin eram lendários. Suborno, propina e extorsão faziam dos
policiais homens ricos. Essa enorme receita—aparte mais suculenta
do lombo* — batizou a região.)
Quando Kid saiu pela porta lateral do McBride’s, viu um homem
branco com as mãos em May,empurrando-a e arrastando-a. Ele saiu
correndo pela quadra atrás deles. “Ei, deixe minha mulher.” No tri
bunal, quando recontou tudo o que havia acontecido, falou num lin
guajar padrão para provar que não era nenhum crioulo ignorante. No
local, ele teria dito:“Qual é o problema? Por que está agredindo ela?”
“Não é da sua conta. Não gostou?” disse Thorpe.
“Não mesmo.”
Kid mandou que May desse o fora dali e ela obedeceu. Então o ho
mem branco agarrou a gola dele. Os primeiros golpes acertaram o ros
to e a cabeça de Kid, derrubando-o na calçada. Ele estava prostrado na
rua, e o homem branco o espancava com um cassetete, provocando-o,
desafiando Kid a se levantar.“Levanta daí,seu preto filho da puta.” Kid
pegou seu canivete no bolso. Golpeou duas ou três vezes, e então o ho
mem branco caiu na sarjeta. O sangue, escorrendo brilhante, cobria a

* Como a autora explica em nota,Tenderloin é a alcunha dada a uma área conhecida por
ser reduto do crime e do vício. Em inglês, tenderloin significa “filé”, um corte nobre de
carne retirado do lombo do boi ou do porco.

178
frente da camisa dele. Kid ficou ali, paralisado,olhando feio para o ho
mem branco que gemia e praguejava na rua.E então ele fugiu.
Um homem branco que fumava na viela perto do teatro viu uma
mulher negra de pele clara com um olho roxo correr pela rua. Foi ele
quem disse à polícia"^ onde poderiam encontrar May. Ela não sabia
para onde ir, então foi correndo para casa.
Quando o policial bateu em sua porta, May contou que o homem
nunca disse que era da polícia. Estava à paisana. Ele nunca disse que
era da polícia. Como ela poderia saber? Deveria tratar todo homem
branco como se ele fosse a lei? Nada do que May disse fez diferença.
Ela tentou explicar. Kid, seu marido — o nome verdadeiro dele era
Arthur Harris só estava tentando defendê-la. Eles perguntaram
quem havia dado as facadas. May disse que não tinha visto a briga,
mas sabia que tinha sido Kid. Ele era o único que se preocupava com
ela; o único que se importava se um homem branco tentasse arras-
tá-la pela rua ou prendê-la porque toda mulher negra era uma pros
tituta aos olhos da lei. Ela não tinha nenhum direito? “Quando você
nes-
perde o controle do seu corpo,® você perde quase tudo o que tem
te mundo.”
Ela não sabia onde Arthur Harris estava escondido. Quando o
oficial Thorpe foi esfaqueado, por que você ficou olhando e não fez
nada? Os policiais a arrastaram de volta para a esquina. Thorpe es
tava sangrando na rua. Os outros guardas chamaram o nome dele.
Thorpe, é essa aqui? Ele ergueu o olhar para May e disse: É ela. May
foi detida por prostituição e levada para as Catacumbas.* No dia se
guinte, quando os jornais informaram que um negro, Arthur Harris,
havia assassinado um policial no Tenderloin, May foi identificada
pelo nome, que veio acompanhado por acusações e classificações
como “suposta esposa”, “namorada”, “esposa amancebada”, crioula
e “meretriz”.® Sua culpa foi estabelecida com os termos “vadiagem
e “prostituição”. As descrições a condenavam:libertina, criminosa e
promíscua.

* Catacumbas,em Inglês the Tombs,é o nome popular dado ao Complexo Prisional de


Manhattan,construído em 1838 e localizado na 125 White Street.

179
May Enoch sefinge de esposa, mas não dizem o que ela era, como
se não fosse nada. Estava no New York Tribune para todo mundo ver.
Fingir-se de esposa ou agir como uma nào era o mesmo que ser casa
da. O amor não atrelado à lei e não sancionado pelo selo de um funcio
nário municipal não era legitimado. O procurador do distrito nunca
hesitou em descrevê-la como uma prostituta e a Arthur Harris como
um estuprador. Não importava que não houvesse nenhuma evidência
sobre ambas as acusações. Os brancos tinham criado as regras que
determinavam a forma correta de ser um homem,de ser uma mulher,
de viver em intimidade, e May e Kid viviam fora dessas regras. Todo
mundo se perguntava as mesmas coisas: por que ela estava sozinha na
rua depois da meia-noite? Por que continuou esperando ali na esquina
depois de ter falado com o marido? O que exatamente o policial disse
a ela e o que ela respondeu? Por que ela não fez nada para impedir
seu consorte, para deter Arthur Harris, uma vez que Thorpe estava ali
prostrado na rua?
Ficou claro que ela também era culpada. Seu crime foi se movi
mentar pela cidade e ocupar o espaço público; o crime dele foi acre
ditar que tinha o direito de defendê-la da violência de um homem
branco. Outras pessoas negras concordaram.Se essa recusa a se sub
meter e o enfrentamento da lei foram celebrados ou exaltados nSi Ba
lada de Arthur Harris ou no Rag de May Enoch^ essas músicas foram
esquecidas.

Vocês viram ele com a minha mulher.


Eu dei um jeito no filho da puta, não dei?
O camarada que me cascou.
Ele tentou prender minha mulher.®
Eu dei um jeito no filho da puta.®

“Ele não me disse nada,ele me agarrou—esse policial. Arthur avançou


antes que ele tivesse chance. Eu tinha acabado de falar com Arthur
quando o oficial pôs as mãos em mim.Arthur disse:‘Por que você está
fazendo isso? Ela não fez nada’. O policial me soltou e agarrou ele.

180
Entào um homem chamado George me disse para ir pra casa [...]. Vinte
minutos depois, dois policiais vieram me procurar.”

Sam Palmetto disse:“Um homem pegou sua mulher”.


Kid disse:“O que você está fazendo com ela?”.
Kid empurrou as mãos de Thorpe;entào Thorpe o agarrou.
“Vou te pegar”,Thorpe disse, agarrando Kid pela gola do casaco.

Entào Thorpe acertou Kid com o cassetete.


Daí os golpes acertaram o rosto de Kid.
Aí houve uma luta.
Daí Thorpe o acertou pela terceira vez com o cassetete.
Aí Kid pegou um canivete.
Entào o homem branco caiu na sarjeta.

Vocês viram ele com a minha mulher.Eu dei um jeito no filho da puta,
nào dei?

Nos degraus da casa onde o corpo de Thorpe foi velado,uma das enlu-
tadas, uma mulher branca tomada pelo pesar, gritou:“Peguem todos
esses crioulos bastardos”. A multidào de policiais,os amigos e parentes
umra-
de Thorpe agarraram o primeiro negro que viram pelafrente
paz de dezessete anos a caminho de casa,voltando do trabalho. Outros
brancos que nào davam a mínima para Thorpe e tinham pouca consi-
deraçào pela polícia sejuntaram à turba determinada a bater, mutilar e
matar. Mulheres brancas gritavam e praguejavam,incitando a vingança,
alimentando a fúria de seus homens.“Esses pretos mandaram na rua
por tempo demais.” “Linchem os crioulos!”"“Matem esses crioulos
filhos da puta!”“Tragam um preto aqui,que vamos linchar ele!” O New
York Herald relatou:“Homens brancos se reuniram em cada esquina,
e o assunto geral era que os negros tinham privilégios demais na ci-

181
dade, que abusaram deles, e que havia chegado a hora de lhes ensinar
uma lição [...]. Por todos os lados foi afirmado que[os negros] haviam
sido encorajados demais e assumido uma influência indevida na Sixth,
Seventh e Eighth Avenues e que os brancos deveríam se afirmar”. Ho
mens brancos espancaram negros na rua,os arrancaram dos bondes e
invadiram suas casas,determinados a suprimir e anular essa influência
indevida, essa presunção negra que insinuava uma noção de que eles
eram no mínimo tão bons quanto qualquer homem branco.Talvez Kid
quisesse ser “o monstro mais frio da esquina”.”
Três dias de atos violentos por parte dos brancos tomaram a ci
dade. Depois que o tumulto diminuiu, o reverendo William Brooks
condenou a polícia que incitara a turba branca, que orquestrara e
direcionara a violência, encorajando a brutalidade como um dever
cívico. Brooks garantiu que os negros não sofreriam tais injustiças
passivamente e em silêncio. Em seus comentários para a imprensa,
ele não citou o nome de May Enoch,mas mencionou pessoas decentes
e íntegras. Eram cidadãos e não tolerariam esse flagrante desrespei
to à lei; não sucumbiriam à turba branca e à força da lei do lincha
mento. As pessoas negras contariam sua história e o mundo inteiro
sabería; e ainda que a polícia não se desse ao trabalho de coletar seus
testemunhos, eles os registrariam. Quando o reverendo Brooks e a
Liga Protetora dos Cidadãos organizaram o panfleto Story ofthe Riot
[História do levante],a história de May Enoch não estava em nenhum
lugar. Ela foi mencionada de passagem como a esposa de Arthur Har-
ris e não recebeu nenhuma atenção para além disso. Kid era o único
que se importava com ela. A Liga temia tipos libertinos como May e
Kid. Mulheres barulhentas demais que perambulavam pelas esquinas
e homens arrogantes demais confundiriam a questão, desarmariam
a raiva justa direcionada àquilo que vinha sendo feito com pessoas
negras decentes,inocentes, obedientes à lei e respeitáveis. May e Kid
estavam do outro lado dessa linha.
Era como se o que acontecera com May pertencesse a uma classe
diferente daquelas coisas terríveis que a polícia fizera com os outros
negros,como se gente decente tivesse sofrido por deles, por cul
pa dela. Foi Arthur Harris que incitou a turba? Foi ela a responsável.

182
no fim das contas,já que Arthur tentou protegê-la? O sangue derra
mado de cada negro espancado e violentado pela polícia e pela turba
branca deveria ser atribuído a ela? May era tão ruim quanto Kid, e
todo mundo concordou que o que ele fizera foi horrível. Ele havia ten
tado defender sua esposa; se recusara a apanhar como um cachorro.
Na esquina, May esperava Kid apreciar uma bebida e terminar um ci
garro. Isso era crime? A faca também estava na mão dela? Arthur fez
o que fez para protegê-la. Teria May ficado feliz que ele tenha dado
um jeito naquele filho da puta? Teria ficado feliz por ele ter se recusa
do a ficar ali parado enquanto um homem branco a agarrava? Sentiu-
-se orgulhosa por ele ter resistido e resolvido “vender a vida ao preço
mais alto possível”,como Robert Charles, que enfrentara a polícia e a
turba branca algumas semanas antes? Se a coragem fez dele um fora
da lei,^2 então que seja.
A cidade estava tomada pela violência enquanto May Enoch aguar
dava em uma pequena cela nas Catacumbas. Cada golpe que a polícia
destinava a mães negras acompanhadas pelos filhos, cada mulher ejo
vem de cor xingada de puta preta e de meretriz,cada filha e irmã e avó
maltratada e obrigada a desfilar pelas ruas em suas camisolas e roupas
de baixo, cada indignidade lançada contra elas — era uma forma de
fazê-las pagar por aquilo que Kid tinha feito e pelo perigoso pensamen
to incitado por um homem negro que levantou a mão e ousou revidar.
Todos eles, os recém-chegados e os nativos, os negros desordeiros e
aqueles estabelecidos, pagariam pelo feito de Arthur Hams.

Por quatro dias, todas as pessoas de cor da cidade foram obrigadas a


responder por May Enoch e Kid. Ele ainda era um fugitivo. Até sua
captura,todos os negros sofreriam a violência destinada a ele. Quando
Annie Hamer saltou do bonde na Seventh Avenue,a turba a cercou. Na
hora, ela foi atingida na boca com um tijolo. Enquanto os policiais a
cercavam,foi separada do marido, e não soube o que tinha sido feito
dele até as três horas da manhã seguinte, quando ele chegou em casa
coberto de sangue.^^ Na mesma noite, dois policiais à paisana invadi
ram a casa de Elizabeth Mitchell às onze e meia. Quando Kate Jackson

183
ouviu as batidas na porta, ela temeu que a turba branca fosse fazer mal
a ela e às crianças, talvez assassiná-las. “Pegou a criança mais nova
14
(de três anos) no colo e, cheia de frenesi e medo, pulou da janela,
indo cair num galpão [...] a criança ainda nos braços.” Kate ficou fe
rida, incapaz de andar, mas pelo menos ela e a criança sobreviveram.
Rosa Lewis estava sentada nos degraus da frente de seu prédio com o
marido e alguns vizinhos quando um policial se aproximou e ordenou
que entrassem,ameaçando bater em qualquer um que não se mexesse.
Ela obedeceu, por preferir não arriscar um maxilar quebrado ou uma
cabeça machucada.“Eu já tinha chegado no pé da escada que levava
ao meu apartamento quando o policial, que tinha vindo correndo pelo
saguão, bateu nas minhas costas com o cassetete dele.”
Irene Wells estava sentada nos degraus da frente com os três fi
lhos, como também estavam os seus vizinhos brancos. Nas noites
quentes,as pessoas relaxavam nos degraus, esperando uma brisa pas
sar. Às onze e meia, a polícia começou a rondar a quadra. Um policial

184
foi em direção a ela e disse:“Entra lá, sua preta filha da puta” e a atin
giu no quadril direito. Ao entrar correndo no prédio com as crianças,
o policial a seguiu, “batendo nela até ela alcançar o último degrau”.
Ele ameaçou espancá-la de novo se saísse de casa. Às 2hS5 da manhã,
os policiais voltaram a rondar a quadra,batendo nas pessoas negras.^®
Não fazia a menor diferença se você era homem ou mulher.*®
Aqueles que eram inocentes o suficiente para solicitar a proteção
da polícia eram agredidos e espancados pelos oficiais, e então pre
sos. Uma vez na delegacia, eram espancados novamente e trancados
em celas. A turba e a policia estavam unidas no esforço de “tratar
os negros como fazem lá no Sul”.*® Era impossível distinguir a turba
da lei. As ameaças e xingamentos eram compartilhados:“Vamos es
quentar as coisas pra vocês, seus crioulos!”,*® “Matem todos os mal
ditos crioulos!”,2o “Botem fogo no prédio!”.^* Quando a polícia entrou
à força no prédio de Lucy Jones, no número 341 da 36**' Street West,
eles gritavam:“Seu maldito preto filho da puta, você sabe muito bem
o motivo desse maldito tiroteio. Se não me disser nada, vou explodir
seus miolos”. Ela viu a polícia espancar e arrastar seu vizinho, Wil-
liam Seymour, que morava no apartamento ao lado. Quando o leva
ram para fora,ele estava apenas de camiseta. A humilhação adicional
de sua nudez provocou um estado coletivo de vergonha. Um dos seus
vizinhos brancos viu Lucy espiar da janela. Ele gritou: Olhem a me-
retriz preta,aquela desgraçada olhando pelajanela. Atirem nela! Ati
rem nela!”. A cena da turba arrancando Lavinie Johnson do bonde na
Eighth Avenue foi ilustrada no New York World,mas o rosto dela apa
receu como uma máscara preta, indistinto e desprovido de feições;
as dobras e os vincos das calças do homem que chuta as costas dela
foram reproduzidas com mais precisão que a expressão dela. O exces
so de pigmento preto a manchou,transformando-a em uma sombra.
Quando arrancaram Nettie Threewitts de sua casa, ela protestou:
“Vocês não vão me levar sem roupas, ou vão?” “Você não precisa de
roupa”, o policial respondeu, empurrando-a pelas escadas até os de
graus da frente, onde ela se viu em plena exibição pública. Quando a
viatura chegou,os policiais a xingaram por esporte. Eles a chamaram
de puta preta, rindo e desfrutando de sua humilhação.“Um deles deu

185
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um soco na minha cabeça, outro cuspiu de propósito na minha cara


e outro pegou o capacete dele e acertou o meu olho.” Alguém suge
riu: “Queimem todas essas meretrizes crioulas”. Outro gritou: “Cala
a boca, você é uma puta como todo o resto”. As mulheres do Ten-
derloin eram vistas perante a lei como May fora, futuras criminosas,
prostitutas, como se não fossem gente.
Pessoas gritavam: “Oh, Deus! Oh, Deus! Nào me bata! Não me ba
ta! Deus, me ajude Faça ele dar umjeito. Que ele consiga fazer saí
rem. Mulheres rezavam por seus pais, maridos e amigos^^ apenas para
serem espancadas e xingadas ao lado deles. A polícia causou mais
dano que a turba. Vejam, um crioulo! Linchem o crioulo! Matem o criou
lo! Tais eram as manifestações dos vizinhos e cidadãos. Menos de três
semanas após a brutalidade em Nova Orleans e um ano depois de Sam
Hose ter sido linchado na Geórgia, queimado e mutilado diante de
uma multidão de mais de 2 mil pessoas, homens brancos se reuniram

186
nas ruas de Nova York, determinados a ensinar aos negros sobre os
limites da liberdade para acabar com a arrogância e a presunção que
evidenciavam uma crença equivocada na igualdade. As leis da turba
no Tenderloin eram igualmente cruéis e indiscriminadas. O Norte e
o Sul eram apenas direções num mapa,e não espaços que garantiam
liberdade ou segurança frente à polícia e à turba branca.

O reverendo Brooks defendeu Arthur Harris, mas ele não o chamaria


de herói como Ida Wells fizera ao defender Robert Charles depois de ele
ter matado sete homens brancos,incluindo quatro policiais,em Nova
Orleans, em legítima defesa. Ele também não reivindicou seu direito
de legítima defesa.O reverendo Brooks e os autodeclarados hderes da
raça esperavam que a bandeira da inocência pudesse protegê-los da
brutalidade orquestrada e aleatória. A Liga Protetora dos Cidadãos
repetia sem nenhuma utilidade:“Somos cidadãos,ainda que negros,e
deve haver alguma reparação nos tribunais por tudo o que sofremos.A
cidade deve se responsabilizar pela brutalidade que vem sendo praticada
contra pessoas inocentes [...]. Se não conseguirmos[reparação]agora,
quando conseguiremos? Quando conseguiremos?”.^® Essa pergimta se
repetiria infinitamente ao longo do século.
O terror desencadeado no coração do distrito mais negro e popu
loso da cidade trouxe à memória as Draft Riots de 1863,* tão escan
carado era o ódio,tão vorazes a violência e a fúria. Entre 1890 e 1900,
a população negra de Nova York dobrou, e as pessoas brancas que
viviam nas proximidades dessa população se ressentiam gravemente
de sua presença. Os mais de 40 mil negros^^ eram menos que dois por
cento da população, mas a ameaça que sua presença representava foi
mil vezes amplificada. Os efeitos do levante no Tenderloin foram de
longo alcance e aceleraram a segregação racial que cada vez mais de
finia a cidade. A violência foi uma grande catalisadora na construção

* Durante a Guerra Civil, um profundo descontentamento da classe trabalhadora


branca com relação às ir\justiças no sistema de recrutamento levou a revoltas. Essa
classe temia que homens negros livres competissem no mercado de trabalho e os
brancos mais ricos pudessem pagar por sua liberação do Exército.

187
do Harlem. Depois de serem atacados por seus vizinhos brancos, os
nova-iorquinos negros buscaram proteção juntando-se aos seus. Os
ataques e conflitos raciais diários no centro, somados à disponibili
dade de moradia no Harlem, estimularam essa migração dentro da
cidade. Em 1915, pelo menos oitenta por cento dos nova-iorquinos
negros morava no Harlem. Os números aumentavam constantemen
te apesar dos esforços do “Comitê de Salvação do Harlem”, organiza
do pela Anglo Saxon Realty com o fim de estancar o fluxo de pessoas
negras.2® O que o levante deixou claro foi que a linha de cor estava
se fortalecendo, e que a segregação e o racismo antinegro não eram
apenas aumentados pelas políticas estaduais e federais, mas tam
bém alimentados pela antipatia e pelo investimento psíquico até dos
brancos mais pobres na subordinação e servidão negra. Os ancestrais
deles nunca tiveram escravos, mas ainda assim consideravam as pes
soas negras como “escravas da sociedade”. Que interesses tinham al
guns sobreviventes da fome e da miséria na recriação da plantation
na cidade, na violência gratuita direcionada a qualquer rosto negro,
na defesa da linha de cor como se sua vida dependesse disso,como se
a sua noção de sujeito estivesse ancorada nessa capacidade de ferir
outras pessoas? Que interesses tinham os sobreviventes de progroms
ao excluírem os negros do chão de fábrica e se recusarem a contratá-
-los?2® Como os quatro dias de agosto evidenciaram, pretendia-se que
as cercanias do cinturão negro fossem tão bem definidas nas cidades
nortistas como haviam sido no Sul; pobreza, violência estatal, terror
extralegal e o racismo antinegro eram essenciais na manutenção de
uma nova ordem racial.
Como se antecipassem aquilo que o futuro guardava, como se o
Verão Vermelho de 1919 e as revoltas no Harlem em 1915,1935 e 1943,
e em Watts no ano de 1965 ou em Detroit em 1967,já estivessem na
sua mira. Paul Laurence Dunbar aconselhou os negros do Tender-
loin^ a não fazerem nada que causasse problemas e incitasse a ira
dos brancos.®^ Em um tour pelas casas de pessoas negras no distrito,
ele as aconselhou a “ficar em casa e se abster de fazer qualquer coi
sa que possa provocar novamente a erupção do elemento da revolta”,
como se a ira branca fosse uma tempestade que caía no Tenderloin,

188
ou uma frente de tempo ruim que podiam pacientemente esperar pas
sar. Exausto após o encontro com todas aquelas vidas machucadas e
agredidas em que estivera balbuciando o que era esperado que ele dis
sesse, embora lhe custasse acreditar, Dunbar foi matar a sede em um
bar na ga"** Street com a Sixth Avenue. O bardo negro desmaiou, uma
condição com a qual estava familiarizado,exceto pelo fato de ter afir
mado que o apagão não fora consequência de uma bebedeira, mas de
ter sido drogado no bar. Quando acordou no dia seguinte,seu relógio
havia sumido, bem como um anel de diamantes de 150 dólares, mais
quarenta dólares em dinheiro. Seu histórico pessoal de libertinagem
e esbanjamento falhou em moderar as lições severas que ele oferecia
para os escalões mais baixos da raça, cujas vidas havia transformado
na lírica que garantira sua fama. Sua canção para o levante chegou
tarde,sendo escrita quando até mesmo um tolo era capaz de interpre
32
tar os sinais, ouvindo o choro profundo e ardoroso.

189
1909- Street West,601. Uma nova
colônia para pessoas de cor,ou Malindy*
na Pequena África

Meio homem — soava menos grosseiro que terceiro sexo ou queer ou


invertida e tinha a vantagem de endossar a aspiração de ser um ho
mem de verdade e por inteiro. Igualmente crítica era a questão re
lacionada, que obscurecia essa ambição ainda não realizada: quando
a mulher de cor alcançaria seu status completo de mulher? Em seu
papel oficial como amiga da raça, Mary White Ovington buscava me
lhorar a sorte do negro, e não ser mais uma estatística fria que regis
tra os crimes e calcula as taxas de natalidade ilegítima. Embora não
se pudesse negar que aquilo que significava ser lun homem ou uma
mulher no mundo dos negros divergia amplamente do que era espe
rado no mundo em geral, ainda era possível para o negro entrar na
— homens
linha. Apesar das coisas que ela presenciava diariamente
que dependiam das esposas e amantes, além de uma ampla evidência
de vidas depravadas e de infidelidade — ela era otimista com rela
ção ao futuro da raça.^ Era difícil escapar de assuntos tão indelicados
conforme a noite avançava; e embora ela tentasse não se intrometer,
tais questões eram da sua conta. A vida íntima era exibida nas ruas e
nos corredores. A saída de ar tornava públicas as coisas que aconte
ciam atrás de portas fechadas.

* Referência ao poema-tftulo “When Malindy Sings"[Quando Malindy canta], de Paul


Laurence Dunbar,que nomeia uma coletânea do autor publicada em 1903. Entretanto,
aqui a personagem descreve perfis gerais de Jovens negros.

191
Por quase um ano, ela tinha observado em primeira mão aquele
mundo anômalo, mas belo, ao habitar os densos recintos da vida ne
gra. Homens desocupados e mulheres provedoras borravam as linhas
entre homem e mulher, marido e dona de casa, cônjuge e amante.
“Homens afetados e desempregados pregavam sua doutrina de vida
fácil e feliz ao lado de uma jovem trabalhadora.” Homens de cor im
punham sua marca e havia várias garotas para garantir suas “botas
engraxadas, casacos elegantes e calças bem vincadas”.^
Por nove meses ela morou em um apartamento no terceiro andar
de um cortiço modelo em San Juan Hill, a única mulher branca entre
seus vizinhos negros. No gueto negro, ninguém nunca a incomodou

192
nem molestou, um fato que ela sempre repetia para os amigos e co
legas brancos,“uma vez que o negro havia adquirido uma reputação
de brutalidade”. Nunca se vira “tão livre de insultos^ ou danos quanto
naquela área de Nova York”. Nenhum homem estranho jamais falou
ou se aproximou da mulher visivelmente loira e de olhos azuis; ela ia
e vinha sem medo a qualquer hora do dia. A noção de que ela ficaria
bem onde quer que chegasse nasceu da riqueza e do conforto, da edu
cação e da oportunidade, uma noção fundamental de pertencimento
ao mundo,onde fosse. O conforto que sentia entre as pessoas negras
era sustentado por suas convicções políticas. Ela achava fácil se rela
cionar com suas vizinhas negras e pobres, mais fácil que com aquelas
outras propriamente descritas como seus pares, que julgava difíceis
e encrenqueiras. Uma mulher branca que vivia entre negros, mesmo
uma mulher nos seus quarenta — bem,a imaginação corria solta. Os
segredos e as indiscrições dela não os envolviam, apesar das coisas
horríveis escritas a seu respeito nojornal,onde era pintada como uma
suma sacerdotisa da igualdade social, que encorajava o casamento in-
ter-racial,comia e socializava com negros e organizava uma “festa do
amor pela igualdade” e um “banquete da miscigenação”.Era bem ruim
que uma mulher culta e de posses se submetesse a uma“fraternidade de
pervertidos”,'^ mas atrairjovens brancas para a companhia de homens
negros era algo indizível. Era uma traidora da raça,® é claro.
Só de bater o olho,seus vizinhos podiam dizer que ela não era uma
daquelas irlandesas ordinárias da Tenth e da Eleventh Avenues, não
era umajudia nem uma italiana que se passava por negra para poder
viver em paz com o marido e os filhos ou o amante,sem atrair o des
prezo e a violência, e ela também não era uma daquelas negras bran
cas que se deixavam discernir apenas enquanto parte de um grupo.
A bondade exagerada em seu olhar e a noblesse oblige que coloria
os mais simples atos de cuidado e decência resolveram a questão.
Quando ela entrava nas pequenas casas deles, parecia grande demais
e avaliava muito abertamente a vida deles. Ela não revelava que esta
va fazendo uma pesquisa social, nem que vivia entre eles para coletar
um “material sobre o negro”,® embora isso fosse óbvio. Não menos
aparentes eram os prazeres que ela sentia na companhia dos negros.

193
Mary White Ovington se deleitava ao se perder no mar da negritu
de. A aglomeração e a tensão dos quarteirões densamente abarrotados
de San Juan Hill, a intimidade tão intensa que despertaria repulsa em
grande parte das pessoas brancas, lhe davam alegria e vitalidade, que
ela perversamente comparou a “uma massa humana^ próxima àquela
do navio negreiro”. Os apartamentos eram “colmeias humanas,® alveo-
lados com cômodos minúsculos repletos de seres humanos”.
San Juan Hill era uma “vizinhança pobre, que se estende da West
60*'’ Street até a 64* Street, entre a Tenth e a Eleventh Avenues. Os
brancos habitam as avenidas, as pessoas de cor, as ruas, e as brigas
entre os dois grupos batizaram a região;® homens negros são obri
gados a lutar tão ferozmente aqui quanto lutaram em San Juan Hill
durante a Guerra Hispano-Americana.” Quinze mil habitantes se es
premiam numa área composta de cinco quadras. A 61®*, a 62'“' e a 63***
Streets são quarteirões completamente negros.“ San Juan Hill era um
pedaço da “África, tão negroide em seu aspecto quanto qualquer dis
trito sulista que você venha a visitar.”" Toda vez que saía da Eleventh
Avenue e entrava na 61®* Street,ela se sentia feliz por entrar no mundo
dos negros novamente.
A afluência de migrantes negros estava mudando San Juan Hill e
o Upper West Side bem ao norte, até a 99*'’ Street, na fronteira com o
Central Park. Como o The New York Times observou:“Um fluxo cons
tante de caminhões de mudança carregados com os bens domésticos
de uma nova colônia de pessoas de cor, invasoras da localidade esco
lhida, se derrama na rua. Algumas são grotescamente picarescas [...].
Os prédios ficam abarrotados^'^ tão logo suas portas se abrem. Outra
procissão igualmente longa se move no sentido oposto e leva embo
ra os bens das pessoas brancas que ali viveram por anos”. O cintu
rão negro havia estendido o seu alcance. Um passeio por Manhattan
tornava claro que a segregação tinha se estabelecido na cidade. Os
13
negros eram isolados em ruas e vizinhanças exclusivamente negras,
e os bons e maus elementos se misturavam. Como uma assistente so
cial escreveu: “Foi uma surpresa descobrir que endereços de garotas
delinquentes levavam aos mesmos prédios onde pessoas respeitáveis,
conhecidas minhas, moravam, e em apartamentos muito próximos”.

194
A segregação nivelou as distinções^*^ de posição ao obrigar todas as
pessoas negras a se amontoar num mesmo lugar.
Todo o vício e desejos inapropriados dos brancos eram canaliza
dos no quarteirão negro da cidade. Era uma zona intermediária onde
mundos díspares se encontravam e tudo podería acontecer, onde ga
rotas viciadas em ópio^® se prostituíam em corredores escuros, poetas
suicidas saltavam para a morte e mulheres que amavam mulheres e
travestis buscavam refúgio. Os sinais reveladores dos negrófilos que
buscavam aventuras na Pequena África eram aparentes nos olhares
arregalados e famintos, na sensualidade radiante, na sensação pal
pável de que os desejos mais básicos poderíam ser tolerados ali. Em
1910, John Rockefeller Jr. encomendou uma pesquisa de porta em
porta sobre prostitutas frequentadoras dos piores antros da cidade.
Mulheres irlandesas,francesas, alemãs e italianas que ofereciam ser
viços de mão e boca viviam muito próximo a jovens de cor trabalha
doras. Se tivessem dito bom-dia, se estivessem dispostas a cruzar a
linha de cor, se imaginassem os negros como vizinhos, elas poderíam
ter entoado uma espécie de Internacional das putas.’® E era exatamen-

195
te isso o que Rockefeller e outros reformistas progressistas temiam
— a promiscuidade social entre os baixos escalões, amor e amizade
para além da linha de cor. A lei e a ordem dependiam da linha de cor
para segregar o vício e isolá-lo dentro do gueto negro. A classe traba
lhadora branca entrou na linha e apoiou o projeto.
Para Ovington, mais impressionante que o crime e a degradação
era a beleza das pessoas negras. Fosse em San Juan Hill ou no bairro
Jamaica, ela achava os rostos escuros e bronzeados, os lábios roxos
e cor de ameixa, os olhos brilhantes, as figuras belas e suas posturas
régias adoráveis. Seu cunhado, que compartilhava dessa admiração
pela beleza da raça escura, a provocava: “Ela aborda a igualdade do
negro da maneira errada. Basta aprovar uma lei segundo a qual todos
devem ficar nus. Então você conseguiría não a igualdade, mas a supe
rioridade negra”.Aos olhos dela, o quarteirão negro era a Pequena
África. Um lugar caracterizado pelo torpor e pelo prazer da colônia li
bertina,^® pela licença que tornava os corpos escuros disponíveis para
19
a venda e para o uso. No interior dessa geografia distintiva, as nor-
mas de gênero e as morais sexuais eram “invertidas, ridicularizadas
e completamente ignoradas”; o abismo entre a vida dela e a dos seus
vizinhos negros era nitidamente aparente.
A linha de cor na cidade era profunda e ampla como o oceano. Ela
a atravessava, preferindo o mundo dos negros e voltando a respirar
tranquila quando tragada pelo mar de rostos negros, quando se de
morava no “corredor frio de um cortiço” na companhia de “mulheres
de cor robustas e amáveis”, relutantes em entrar em seus apartamen
tos e “girando lentamente as travas da porta”. Os “sons incessantes da
humanidade^® enchiam o ar”. Os quartos se abriam em saídas de ar,
que eram condutoras de sons, passagens para a vida coletiva do edi
fício. Todos esses barulhos,se não um tipo de música,eram ao menos
uma inspiração musical. Ethel Waters fez músicas a partir deles, de
todos os sons da vida, do amor e das brigas, das risadas e do sofri
mento, e descreveu as privações e a vitalidade de se viver no aperto
a partir de dentro: “Eu ouvia um casal discutindo em outro aparta
mento, por exemplo. Suas vozes subiam pela saída de ar,^* eu ouvia e
inventava histórias sobre suas discussões e sobre sua vida amorosa.

196
Podia ouvir uma discussão dessas à tarde e naquela noite mesmo can
tar uma canção inteira sobre ela. Cantava suas desgraças ao som do
meu blues”. Ellington também estimava a saída de ar e os sons da vida
que ela transmitia: “Você escuta brigas, sente o cheiro de um jantar,
ouve pessoas fazendo amor. Você ouve fofocas íntimas flutuarem [...].
A saída de ar é um grande alto-falante. Você vê as roupas sujas dos
vizinhos. Escuta os cachorros do zelador [...]. A saída de ar contém
todos os contrastes [...]. Você ouve pessoas rezarem,brigarem,ronca
rem”. Você pode ouvir uma mulher num cortiço de fundos “chamando
pelo marido dela lá no cortiço da frente e ameaçando de morte a mal
dita criatura^^ que o atraiu pra lá”.
A beleza do cinturão negro,fosse em Lowndes County, Alabama,
no bairro Jamaica ou nos cortiços de Nova York, era indiscutível, e à
noite, apesar do assalto das luzes elétricas que embaçavam as estre
las, havia “as risadas de homens e mulheres voltando do teatro, ou de
algum baile que dura[durava]até o amanhecer.A luz e os barulhos in
termitentes,o calor do longo dia subindo do asfalto,assim [era]a noi
te em San Juan Hill. As músicas da plantation soam [soavam]à noite,
melodiosas, trêmulas: All the people talking about heaven airCt going
there.^ Apenas os mais velhos cantavam essas músicas nobres, preen
chidos como eram pelo pensamento de uma bem-aventurança futura.
23
mas
O hoje não carrega nenhuma aquiescência aostatusda escravidão,
uma batalha duradoura e árdua por mais céu na terra”.

A BELEZA DO MARIDO

“É estranho, mas às vezes eu penso que quanto maisleviano o homem,


mais protegido e cuidado ele é,^ e esse mesmo amor é dado a mulhe
res egoístas”, uma vizinha confidenciou. O querido Du Bois,um amigo
próximo de Mary,explicou os arranjos íntimos e as estranhas relações

* Em inglês no original, Quem tanto fala no céu não acaba lá. Letra consagrada em um
spiritual,ou hino religioso, que leva o título:“Everybody Talking ’Bout Heaven Aln’t
Going There”.

197
— o tipo de homem que vivia à custa de uma mulher e a mulher dis
posta a sustentar esse homem — como reminiscências da plantation
e como um tipo de prostituição. Embora ela visse isso mais como uma
expressão de amor pobre e um ato de autodispêndio que lhe era inson-
dável, Maiy conseguia discernir as nuances entre entregar tudo e se
prostituir. Essa generosidade excessiva era um traço racial. Mesmo
quando eram usadas e abandonadas, as mulheres negras perdoavam
facilmente quem as havia enganado ou desapontado; mesmo as mais
rudes eram generosas. Essa capacidade de compartilhar tudo o que
tinham sem esperar nada em troca transformava casas particulares
em refúgios que acolhiam a todos,independentemente de julgamen
tos sobre quem era digno e quem não prestava.“Abrigar quem merece
e quem não merece”, uma mulher lamentou,“se escravizar por um ne
gro qualquer,que nem na plantação de algodão,tem muito disso entre
as mulheres atrás dessas portas aqui”. Nos corredores dos cortiços,
mulheres negras confessavam suas mágoas,expressavam sua derrota
e se orgulhavam daquilo que podiam dar umas às outras, como se o
ato de dar algo satisfizesse as necessidades e transformasse em abun
dância tudo aquilo que lhes faltava.
Era óbvio que o gênero como categoria não era elástico o suficiente
para abarcar todas as diferenças radicais nas experiências vividas por
homens e mulheres negras. Na escravidão, o trabalho roubado, a car
ne violada e a maternidade negada(mulheres negras eram legalmente
proibidas de exercer a maternidade e não tinham nenhum direito de
escolha reprodutiva) definiam essa diferença. No século 20,o trabalho
remunerado, a servidão, a tutela imprópria, a maternidade falha, as
relações casuais, os casamentos em série e a viuvez marcavam a dife
rença. A meia mulher anunciava o fracasso da mulher negra em reali
zar as aspirações de feminilidade ou alcançar o marco da humanidade.
Grandes perigos aguardavam aquelas que viviam dentro do hiato lexi
cal existente entre a negra e a mulher.^ Essa crise de categoria definiu
a sobrevida da escravidão.“O negro vem para o Norte e se vê como um
meio homem.E a mulher? Também,vem até aqui para ser nada além de
uma meia mulher? Qual é o seu status na cidade para a qual ela se volta
em busca de oportunidades e de mais liberdade?”^®

198
f
A

A mulher negra era uma provedora — esse era o problema mais


gritante. Em suma, ela ameaçava assumir e ofuscar o papel do mari
do. Desde 1643, o trabalho das mulheres negras^”^ vinha sendo clas
sificado da mesma maneira que 0 dos homens negros. A Assembléia
Geral da Virgínia estabeleceu um imposto sobre o trabalho de mu
lheres africanas. Dízimos ou contribuições geralmente eram esta
belecidos sobre o trabalho agrícola dos homens e chefes de família.
Nenhum imposto era cobrado pelo trabalho de esposas e filhas bran
cas que viviam na casa dos pais e maridos. Ao contrário do trabalho
das mulheres brancas, a força de trabalho das mulheres negras era
tratada como se elas fossem homens,o que inaugurava uma crise de
séculos com relação ao status do trabalho da mulher negra e seus

199
desvios das normas de gênero. O imposto introduziu essa dispari
dade de gênero, que se tornaria absoluta duas décadas depois, quan
do a capacidade reprodutiva e a maternidade também passaram a
ser visadas e consideradas propriedade dos senhores de escravos;
o útero foi transformado numa fábrica e as crianças, em produtos
mercantilizados. O fracasso em cumprir ou alcançar as normas de
«28
gênero deíiniria a vida negra; e essa “não generificação marcou
inevitavelmente as mulheres negras(e os homens negros)como algo
menos que humano.
Essa conformação — mulheres negras como provedoras, chefes
de família e trabalhadoras remuneradas transgredia aquilo consi
derado normal e adequado:“Para ela, o trabalho como autossustento
geralmente começa aos quinze, e de forma alguma cessa com o casa-
mento,que apenas envolve novos encargos financeiros. Os ganhos do
marido [...] são quase sempre insuficientes para sustentar uma famí
lia, a não ser na penúria extrema, e a esposa aceita a necessidade de
complementar a renda dele. E assim ela passa a lavar ou vai trabalhar
na casa de uma família, onde faz o trabalho doméstico [...]. Ela tem
apenas algumas horas para dedicar aos filhos. Está disposta a apoiar o
marido e a ser uma amiga para ele, mas se ele se revelar um mau negó
cio, ela não terá nenhum receio de deixá-lo, uma vez que suas relações
conjugais não são fundadas na dependência econômica”. A mulher que
não precisasse nem dependesse do homem levantava preocupações e
instigava dúvidas sobre seu status — era mesmo uma mulher? Essa
pergunta inoportuna e insistente colocava as negras num limiar entre o
perigoso e o desconhecido.^®
Apesar das cordialidades trocadas no corredor, das visitas aos
doentes e aos necessitados, dos livros e biscoitos oferecidos para as
crianças, Mary Ovington considerava seus vizinhos pessoas sexual
mente imorais. De um lado, isso era uma questão histórica e um há
bito. De outro, um problema numérico. Havia muitas mulheres de cor
na cidade. O que significava ser uma mulher excedente? Seriam elas
desnecessárias, dispensáveis ou sem valor? Ao se sopesar o perigo que
representavam e o valor de suas vidas,tratava-se de quem elas amavam
multiplicado por quantas vezes haviam amado dividido pelas perdas

200
por morte e separação? Produzia a mulher excedente um déficit social,
ou drenava os recursos públicos? Seria a relação entre excedente,débi
to e perigo algo específico do quarteirão negro? Que medida era usada
para calcular o custo do amor e da sobrevivência, e por que as mulheres
negras sempre se encontravam em falta? “Nos momentos de lazer, as
mulheres excedentes são conhecidas por causarem estragos com os fi
lhos das vizinhas, e mesmo com os maridos delas, pois, uma vez que a
falta de homens impossibilita o casamento para cerca de um quinto das
jovens de cor em Nova York, disso resulta uma desordem social. Mu
lheres negras, capazes de garantir trabalho,sustentam homens negros
ociosos e saudáveis. A vadiagem na esquina,o dânditocando seu banjo
na sala de estar, significa que há uma Maltndy da na cozinha,em
cima de uma tábua de lavar.”

Mary Ovington não era estranha à prática de causar estragos com o


marido de outra mulher,de amar o homem de outra.Enquanto seus casos
se limitavam a cercanias mais luxuosas que um cortiço modelo,numa
vizinhança mais abastada da cidade,ela também era sujeita às tentações
degradantes,culpada pelas relações extraconjugais desaprovadas pela
decência geral, mas nesse caso a intimidade fora da lei não podería ser
atribuída a uma educação em um ambiente pobre ou ao histórico da
escravidão. Quase ninguém sabia de seu caso com John Milholland,
o industrial abastado. Talvez o querido Du Bois, seu amigo e colega,
possa ter suspeitado. Ele tinha experiência nessa área,com um histó
rico de vários casos extraconjugais,*^ embora todos muito discretos e
sem causar escândalo.Toda a sua formalidade e indiferença forneciam
a máscara perfeita para o adúltero. Enquanto as relações sociais dela
com os negros eram a causa do alvoroço público que alimentava rumo
res ultrajantes, e os almoços e jantares na companhia de Du Bois no
Marshall Hotel eram rastreados por investigadores particulares,seus
segredos permaneciam seguros em outro lugar. Os únicos rastros do
caso podiam ser encontrados no diário de seu amante,entre as orações
de um homem casado que rogavam pela “subjugação da carne” e pela
“purificação de sua imaginação imunda”.**

201
Quando descrevia suas vizinhas negras como mulheres imorais,
se ela sentia uma pontada de hipocrisia ou a dor de um taljulgamen
to que redundava em sua própria vida, ela nunca deixou escapar. Era
fácil fingir ser aquilo que o mundo reconhecia nela: uma mulher res
peitável de posses. As próprias paixões e indiscrições não mitigaram
nunca seus julgamentos direcionados à jovem negra de Nova York.
Sem hesitar, ela procurou por uma longa história de degradação e
por uma “fraqueza” maternal “nos contornos e na cor®^ do rosto dela”,
expressando sérias dúvidas com relação ao seu futuro. Teria um am-
biente vicioso [...] fortalecido suas paixões^ e a degradado desde a
mais tenra infância?”. O fato de enfrentarem um preconceito racial
mais severo que os homens tornava as mulheres negras menos pro
pensas ao sucesso ou a se libertar do passado? “Proibida a entrada de
crioulos” bloqueava a entrada delas em escritórios ou lojas. A jovem
de cor em Nova York “pega o trabalho que ajovem branca não quer”.
O que ajovem branca “deseja a si mesma,ela nega para a sua vizinha
de cor”.®® Para as mulheres negras, não havia rotas na cidade onde
pudessem evitar insultos e propostas obscenas. Após ter sido insul
tada em um parque público, uma jovem declarou: “Eu queria que o
mar se erguesse®® e afogasse cada uma das pessoas brancas na face
da terra”.
O que poderia levar a “uma diminuição da imoralidade sexual”?
Seria um gesto tão simples quanto “tirar o chapéu para cumprimen
tar as mulheres de cor”? Ou oferecer ajuda com uma carga muito
pesada?®"^ Muitas vezes “o homem branco mais patente contra os
‘crioulos’” era “o mais propenso a entrar em um relacionamento ilí
cito com a mulher que ele diz desprezar”. Teriam a história e os cos
tumes sociais ditado um curso irrevogável? A mulher de cor algum
dia alcançaria sua condição total de mulher^ “A escravidão a privou
de uma vida em família, colocou-a para trabalhar diariamente no
campo,ou apropriou os instintos de sua mãe para a criança branca.
Hoje, ela tem a difícil tarefa de manter a integridade e a pureza do
lar. Muitas vezes ela teve sucesso, com frequência ela falhou, e por
vezes nem tentou.”®®

202
*

Ela subiu os quatro lances de escada até o último andar do cortiço escuro
para visitar a mãe de Annabel, uma mulher delicada e arruinada pelo
esforço físico empreendido na lavanderia e nos trabalhos domésticos.
Inevitavelmente, parecia que fosse quem precisasse visitar, essa pessoa
morava no andar mais alto do cortiço. A mãe da garota estava com
tuberculose e vendera todos os móveis da família para pagar o aluguel
de dez dólares,e então perdera a nota a caminho de casa. Eles tinham
vendido tudo, mas ainda assim seriam despejados. “Acabou , a mãe
disse em voz baixa,“não sobrou nada”.“Não temos um centavo, mas o
que temos vai para o aluguel [...] Annabel não tem o que comer direito,
e veja os sapatos dela.” Seu filho bonito e alto estava desempregado
e não podia fazer nada pela mãe. Ele se afastou em silêncio. Havia
uma expressão de vergonha no rosto da mãe, embora ela não tenha
dito nada,apenas pegou o prato que ele havia deixado na cadeira e lhe
desejou boa-noite.'39
Annabel varria o chão e lavava a louça. Ela era a ajudante perfeita
para a mãe. Que futuro aguardava Annabel?, ela se perguntava.
a
“O que você vai fazer quando crescer?” Mary perguntou para
criança.

203
Annabel respondeu imediatamente:“Vou trabalhar no teatro. Dá
pra ganhar um monte de dinheiro assim. Quero dançar e cantar. Pos
so dançar^ agora” completou.
E de fato ela podia. Os quinze ou dezoito dólares ganhos sema-
nalmente"^* por uma corista negra podiam ser conseguidos porjovens
brancas de diversas outras maneiras. Ela vira Annabel coqueteando
no parquinho.“Você não pode fazer algo melhor que isso?”
Annabel conhecia muito melhor o lado material da vida de uma
pessoa negra do que a srta. Mary jamais conheceria. “Eu quero uma
casa”, respondeu com alguma emoção.“Quero minha mãe num lugar
onde ela pode ter as coisas dela.” Annabel deu uma olhada no cômodo
vazio"^2 e desmantelado.
Sim,ela podería dançar no palco, talvez no Lincoln Theatre ou na
Broadway. Mesmo que fosse num bar com chão de terra e uma pista
de dança pequena, suficiente apenas para ela dançar, não importava,
pois todos iriam até lá só para vê-la, não para beber gim e cerveja.
A platéia espremida nas mesinhas amontoadas em volta da pista de
dança jamais tiraria os olhos dela, todos a adorariam, e ela nunca te-
ria que esfregar até seusjoelhos ficarem em carne viva e suas mãos in
chadas. Nunca teria de ser uma criada como a mãe dela, que trabalha
va tanto, mas não tinha nada. Sim, rebolaria os quadris e usaria ruge
e pó e sorriria muito,e chutaria as pernas no ar mais alto que qualquer
outra dançarina. Seria arrebatadora e os negros mentiriam, dizendo
que a conheciam há muito tempo;fingiriam quejá esperaram grandes
feitos dela e que ela tinha sido uma amiga próxima. Contariam a his
tória de como ela escapou de um cortiço escuro na 62"** Street, como
ela nunca se prostituiu nem se jogou de três lances de escada porque
estava tão infeliz que não suportava viver, nem usou ópio porque essa
era a única saída que podia enxergar. Diríam que desde que era uma
garotinha queria dançar e a história de “quando eu a conheci” e “o que
aconteceu foi” terminaria em uma nota agradável. Annabeljamais te
ria de andar pela 62"*^ Street chorando e berrando porque havia perdi
do sua última nota de dez dólares e seria despejada dos dois cômodos
alugados, as lágrimas caindo pelo rosto enquanto as pessoas obser
vavam,balançavam a cabeça com pena ou sussurravam “vadia burra”.

204
Não, ela teria uma mão cheia de notas de dez dólares, tantas que, se
perdesse uma,nem notaria.Tantas que as daria para as crianças brin
cando na rua e então ela colocaria o braço ao redor de seus ombros e
os olhos dela diriam “Um dia as coisas vão melhorar”, e todos eles se
esforçariam muito para acreditar que isso era verdade.

205
Mistah Beauty,* a autobiografia de uma
mulher ex-de cor.Cenas selecionadas de
um filme nunca lançado de Oscar
Micheaux, Harlem,anos igao

Se a vida de Gladys Bentley estivesse em um filme de Oscar Micheaux,^


esse filme abriría com a tomada de um cortiço de três andares na Fila
délfia, onde a artista cresceu. Quatro meninos brincando na viela atrás
do prédio. A câmera focaria no mais velho, distinguindo-o dos demais
como o protagonista do filme, mas sem exagerar qualquer diferença
entre ele^ e os outros. Nada na forma como ele salta do alto da escada
ou empurra o irmão, o que o faz cair e gritar pela mãe, estabelece ou
fixa as categorias “menino” ou “menina”,“irmão” ou “irmã”. Ou a histó
ria pode começar mais cedo,com um par de mãos vazias preenchendo
a cena, mas separadas do corpo e suspensas no ar, expectantes. Então
uma tomada da jovem mãe olhando com indiferença para uma crian
ça que ela não pode amar e se recusa a abraçar, numa cena em que a
rejeição seria pontuada ou ressaltada por uma música dramática, que
anunciaria que esse abraço fracassado se trata de um evento, um mo
mento significativo,um ponto nodal da história que se desdobrará.Um
gesto melodramático,como o olhar abatido da mãe,um olhar desviado,
ou a testa apoiada nas palmas das mãos enquanto ela soluça transmiti
ríam sua angústia. Ou uma longa tomada da mãe se afastando do bebê
aninhado nos braços estendidos do seu marido. A autoaversão ficaria

* Personagem do conto “The Adventures of Kit Skyhead and Mistah Beauty [As
aventuras de Kit Skyhead e Mistah Beauty],de Eric D. Walrond, publicado na revista
Vaníty Fain em 1925.

207
aparente em seu rosto conforme ela dá as costas para a criança, sua
primogênita, que jamais seria capaz de amar. Aquela que sempre lhe
lembraria de que ela não era uma màe boa-o-suficiente. Doeria demais
dizer as palavras mãe ruim, mesmo quando o fato nào podia ser evitado.
A próxima cena podería ser filmada nas sombras,e nós nos esforçaría
mos muito para discernir a figura escura no quarto mais escuro ain
da,até a porta ser escancarada e a luz inclemente do corredor inundar
o quarto sem janelas; então veríamos um andrógino de catorze anos
deitado na cama estreita, vestido com o terno de domingo do irmão e
perdido em um sonho desperto sobre a professora do terceiro ano que
ele ainda amava loucamente. Antes que pudesse abrir os olhos e se ar
rancar da fantasia dos braços, dos beijos dela, e voltar para o quarto
escuro e abafado, ele seria exposto e censurado. Próxima cena, dose
fechado na carta escrita pelo adolescente aflito de dezesseis anos nas
primeiras horas da manhã,endereçada ao pai e à mãe,explicando que
ele estava a caminho de Nova York,que não podia mais morar em casa;
não podia fingir que era a filha que sua mãe nunca amaria,ela só podia
amar um filho,e ele tinha se tomado um.Mas ainda assim elafracassou
em amá-lo. O longo e objetivo olhar da câmera enquanto ele atravessa
o corredor, deixa furtivamente o prédio com tudo o que possma guar
dado numa mochila, o que não era muito, e então fecha a porta sem
fazer nenhum barulho. Ou a história pode começar num cabaré, com
um dose em Bentley como o Negro Mau,como um cavalheiro vistoso
(a fisionomia ou um gesto sinalizariam para a platéia sua falha trágica,
seu defeito moral).
No filme, os gestos reveladores, tiques e maneiras estranhas de
nunciariam Bentley: sua tendência à presunção, o corpo grande de
mais, a voz alta demais, a montanha de carne, a entonação vocal, a
distribuição capilar, a distribuição de peso masculina, seu desprezo
descarado pela lei, pelos costumes e pela civilização, seu desafiar ar
rogante e a aberta demonstração de prazer.^ Sentado na melhor mesa
do clube, ele estaria cercado por um bando de beldades.
A câmera se demora nas cinco garrafas de champanhe acumuladas
na mesa,de forma que o público não deixa passar a pista nem a condena
ção:ele enchia asjovens corístas de álcool,estavam intoxicadas,e todas

208
aquelas garrafas deixam claro que o trapaceiro tem dinheiro para gas
tar. Os olhos transbordam de luxúria. O sorriso de canto e a boca convi
dativa certamente poderiam ser a causa da ruína de umajovem corista.
Corta para o número de dança na pista do clube, que é crucial, obri
gatório e nunca desnecessário em um filme de Micheaux.Tudo o que há
de terrível sobre o clube — o álcool, a depravação, a infidelidade enco
rajada pelo ambiente, as mulheres soltas e cansadas — seria equilibra
do por essa cena,que condenaria e ao mesmo tempo exaltaria o cabaré.
Nessa cena é exibida a virtuosidade negra. Então vem o coro, e os cor
pos dançantes são arranjados em belas fileiras que se movem e mudam
de lugar enquanto os floreios e excessos das dançarinas se desdobram
em possibilidades revoltosas, traduzindo em arte o tumulto e o levan
te do cinturão negro. Os longos números musicais podem à primeira
vista parecer digressões, porém estabelecem o horizonte no qual tudo
0 mais transparece e colocam em primeiro plano a realidade adorável
da negritude.** A cena da dança é crucial, o movimento dos corpos, o
coro, assim como as pessoas comuns que apinham a pista de dança, re-

209
velam as outras linhagens do cinema negro,compreendido amplamen
te como uma tradução da vida negra em movimento,em contraste com
as imagens aprisionadas e fixas que produzem e documentam a vida
negra como um problema. A cena do cabaré ilumina a dívida do cinema
com a dança do limbo (que, praticada no navio negreiro, representou
“a porta de entrada ou o limiar para um novo mundo e o deslocamento
de uma cadeia de milhas”)e com o ringshout dançado no meio da roda.®
As longas pernas dasjovens coristas se erguem no ar, e seu movimento
coletivo cria uma série de lindas linhas que elas formam e rompem. A
beldade café-au-lait ginga enquanto canta uma cantiga popular e gira
os quadris, os braços cortando o ar, e o fluxo desse segmento corta e
desarranja as unidades regimentadas na narrativa do melodrama, e,
diante de toda essa beleza, nos esquecemos de que as coisas vão aca
bar mal para o xeique sentado à mesa. O coro conjura a promessa de
que essa noite nunca vai terminar, de que não existe outro mundo além
desse,de que tudo é possível,que a reserva de vida é ilimitada. O trasei
ro hiperestendido, a silhueta contraída, a pélvis em rotação, os braços
bem abertos, erguidos para o céu e pondo abaixo a casa, o movimento
dos corpos — eles reduzem a distância entre a plantation e a cidade,
os quarteirões e os cortiços, e produzem a “aniquilação do tempo e do
espaço”, característica da modernidade e definitiva para o cinema.® O
shimmy,o turkey trot, ofunky butt, o black bottom,o ritmo sincronizado
do coro,tudo atesta o fluxo e a frequência^ da locomoção negra, a pro
pulsão e a detenção da história. A vida de Bentley refletida no cinema
de Micheaux é o movimento selvagem e desregulado que nega a linha
de cor e foge da clausura do gueto. Os corpos em movimento,os corpos
íntimos e próximos, afirmam com imprudência aquilo que pode ser, a
forma como as pessoas negras deveríam poder vivqy,O navio negreiro é
tão central quanto a ferrovia no colapso do tempo e do espaço que pro
duz a modernidade e o cinema negro. A cena gira em torno da violação
e da ferida e se empenha no impossível, na reparação. A beleza reside
tanto em sua tentativa quanto em seu fracasso. O que se antevê: a vida
reconstruída em linhas radicalmente diferentes.® O coro elabora e re-
constrói a passagem,conjura a morte nos campos e a morte no asfalto
da cidade,e reanima a vida;faz os corpos caídos se levantarem,encena

210
em tempos múltiplos e convida a entrar na roda, a se juntar à linha, a
regozijar e celebrar com grande solenidade?
Tais cenas poderiam ser testemunhadas toda noite nas dezenas de
clubes noturnos e cabarés onde Bentley se apresentava. La Bentley
era uma estrela na Jungle Alley do Harlem, um dos seus sumos sacer
dotes. Bentley era carne em abundância,arte em movimento.
Enorme,voluptuoso e cor de chocolate, Bentley sempre trabalhava
de smoking e cartola ou num traje masculino chamativo. O cabelo le
vava um corte curto, domesticado e ondulado com um punhado de po
mada que o empastava na cabeça.Em qualquer dia da semana,Bentley
podia ser visto marchar pela Seventh Avenue trajado com os panos chi
ques de um xeique do Harlem,geralmente com uma bela corista pendu
rada nos braços.Ele prosperava com o fato de seus “hábitos estranhos”
serem assunto de muito falação”,*® por viver e amar como um homem.
Não era radical, mas um artista brilhante, esperto o suficiente para
transformar a maldição corporal da figura negra e masculina em um
tipo de fantasia que encantava,estimulava e atraía as pessoas.
Riscos ou recompensas acompanhavam a oferta do corpo grande
e escuro como um objeto de veneração e ridicularização, condenação
e prazer. A apreciação e as risadas dos espectadores aglomerados no
cabaré domesticavam o perigo de La Bentley, mas ele não cedia terre
no, de jeito nenhum. Não havia nada feminino nele; era mais que gla-
mour drag, mais que uma mulher vestida de homem,como várias de
suas esposas, brancas e negras, poderiam atestar. Platéias brancas e
negras amavam as letras picantes,a voz intensa e sonora,o flerte des
carado com as mulheres mais atraentes da platéia, as piadas sobre as
bichas e sapatões. As pessoas choravam de rir; elas se dobravam com
a força de tudo isso, coravam e se alimentavam da beleza anômala
de Bentley.“A figura enorme,escura e masculina”,segundo Langston
Hughes,era “uma escultura africana animada pelo ritmo”.** Um plano
moderno. Uma arquitetura exemplar da possibilidade negra.
Em um filme de Micheaux,toda essa virtuosidade aparecería como
um aparte, uma quebra na narrativa, uma digressão no enredo de sedu
ção ou traição, mas,na verdade,tudo mais que acontecesse no filme se
ria um
mero adendo. Quando a câmera por fim se voltasse para Bentley

212
ou para o sombrio antagonista e sua luta com o bom homem, aquele
que trabalhava duro, devotado às melhorias da raça, trabalhando sem
descanso para levantar fundos para uma escola de negros, disposto a
se casar com uma garota pra salvá-la da sarjeta ou de um pai abusador,
ou honrado demais para abandonar uma mulher de moral questionável,
permanecendo fiel,ainda que uma mulher melhor o esperasse nos basti
dores —nada disso importaria realmente;era difícil recobrar o enre
do ou registrar qual era a mulher boa e qual era a má,separar a realidade
da sequência sonhada. O espectador assiste e aguarda — prendendo a
respiração — pela próxima interrupção da cena do cabaré e a traição
do enredo. O duelo ou a competição entre os dois homens que defini
ríam tanto o destino de nossa heroína quanto o futuro da raça seriam
tediosos, desinteressantes e frustrantes. Em um filme de Micheaux, o
luxurioso e pródigo Bentley,afiado e durão como qualquer homem que
rido do Harlem e comum gingado igual a qualquer homem naturaU^^ só
poderia ser elencado como vilão.Ojogador passava de uma mulher para
outra;sempre insaciável,no melhor dos casos,ele podería amá-las e dei
xá-las. Não havia mulheres suficientes no mundo para fazê-lo se sentir
amado.Então ele percorria as corístas, arruinava as mulheres,acabava
com elas, usava e abusava delas.“Suas cabeças são como a de um anjo
meigo e [elas]caminham como um homem natural”.®*
Um conquistador como Bentley, mulherengo, farrísta e libertino,
tería um destino ruim. A história puniu aqueles que se desviavam da
trama conjugal, do roteiro da ascensão racial, do dever e daquilo que
se esperava que uma mulher fosse.Como que em arrependimento pelas
cenas extravagantes do clube, pelos corpos seminus, pela vida promís
cua e pelas transgressões íntimas permitidas pela noite,^^ o desfecho
do filme restauraria os ideais calcados e as normas ameaçadas de tem
perança, monogamia e heterossexualidade. A masculinidade queer de

* Como a autora menciona em nota,aqui se trata de uma referência a “B. D. Woman’s


Biues"(1935),composta por Luciiie Bogan (que também usava o pseudônimo de Bessie
dackson). O B. D. no títuio da música significa bull dyke, buli daggen ou,em português,
“sapatão”.
**
Letra de “B. D. Woman*s Biues” No original,“They got a head like a sweet angel and
they walkjust like a natural man”.

213
Bentley atropelou a disseminação da honra^® que residia no coração
de todo melodrama racial. Bentley destruiu as normas de gênero e os
ideais de família centrais ao projeto de ascensão racial autocontro-
le, monogamia, fidelidade, matrimônio e reprodução — e zombou do
moralismo dos vitorianos modernos, os aristocratas da ascensão. In-
felizmente, o vilão não pode escapar do desfecho que o aguarda. En
quanto Fim rola pela tela, o antagonista da virtude já se foi há muito
tempo. Um acidente de carro, uma bala na cabeça ou no coração, ou a
penitenciária resolveram o drama.(Para o nosso protagonista, o clima
político conduziria a história para um fim trágico. Na década de 1930,
era exigido por lei que mulheres artistas solicitassem uma licença para
usar roupas masculinas em suas apresentações. O cross-dressing foi en
tão rotulado como uma prática subversiva. Queers foram colocados na
mira do senador McCarthy e do Comitê de Atividades Antiamericanas
da Câmara [huac]. O tão falado casamento de Bentley com uma mu
lher branca^^ em uma cerimônia civil tornou o artista vulnerável.)
Um acidente de carro ou uma bala não matariam o celebrado vi
garista e amante de mulheres, o marido de tantas beldades, negras e
brancas.
Uma reviravolta brutal na trama do filme que Micheaux nunca di
rigiu leva à morte do nosso protagonista. Um ato de autoimolação,
motivado pela pressão estatal e declarado em uma confissão coagida,
obriga o marido bonito a assumir o papel de esposa, assinalando sua
derrota. É um último ato de autorrenúncia devastador. As falas do
leito de morte:Eu habitei aquela meia sombra,'^’’ a terra de ninguém que
existe entre asfronteiras dos dois sexos. No mundo inteiro há milhares de
nós, humanosfurtivos, que criamos para nós mesmos umafantasia tão
antiga quanto a própria civilização; umafantasia que nospermite, ainda
que temporariamente, virar as costas para o duro reino da vida. Nosso
número é legião e nossas mágoassão inconcebíveis.
O homem indiferente e sem valor, vigarista, xeique, querido, ca
marada queer e sedutor deve ser controlado ou despachado para que o
casal direito possa emergir — o verdadeiro marido e mulher. Assim, a
garota arruinada pela promessa de um papel no show,a garota disposta
a encontrar ojogador,o cafetão ou o produtor suspeito depois do expe-

214
diente, a garota disposta a fazer qualquer coisa para conseguir o papel,
pode ser resgatada, de forma que ninguém mais poderá saborear as pa
lavras ou cantarolar a melodia: Women airCtgonna need no men. Theygot
#18
a head like a sweet angel and walkjust like a natural man.

* Letra de “B. D. Woman’s Biues”. Em inglês no original:"As mulheres não vão mais
precisar de homens [...]/ Suas cabeças são como a de um anjo meigo e elas caminham
como um homem natural”.

215
1

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Álbuns de família,futuros abortados:
uma esposa desiludida se torna artista,
Seventh Avenue,1890''

Havia poucas memórias de infância das quais ela podia se lembrar


com prazer. Não seria errado dizer que nunca foi uma criança, ou
pelo menos, que nunca foi uma criança feliz. Crianças precoces al
guma vez foram felizes? Aprender sobre o mundo ou desabrochar
muito cedo era perigoso. Não estava claro se o seupãi^ o homem que
estuprou sua mãe quando ela tinha doze anos,era o filho da família
que possuiu o povo de sua avó; tudo o que sabia era que ele era o tipo
de cavalheiro sulista que não tinha nenhum escrúpulo em tran^ormar
suas empregadas em concubinas? Embora um termo como concubina
descreva de forma inadequada a violência experimentada por sua
mãe,avó e bisavó, três gerações de mulheres que, nas palavras dela,
se tornaram bem experientes em submissão. Sua bisavó fora escra
va; a avó e a mãe eram teoricamente livres. A intimidade monstruosa^
da escravidão por propriedade, o acasalamento violento e a repro
dução compulsória marcaram cada uma das gerações de sua família.
A criança herda a condição da mãe —partussequitur ventrem —* de
forma que asfilhas ainda agora têm de lidar com as consequências? O
que aconteceu com a mãe,a avó e a bisavó de Edna não foi uma coi
sa única nem excepcional. Era algo a se esperar quando você era a
empregada de uma casa. O trabalho doméstico, escreveu Du Bois,

* Princípio vigente em grande parte das sociedades escravagistas da América,segundo o


qual a criança deveria herdar a condição de escravizada da mãe.

217
preservou “os últimos vestígios da escravidão e do medievalismo”. A
“degradação pessoal do trabalho” era tão grande que “qualquer ho
mem branco decente preferiría cortar a garganta da filha em lugar
de deixá-la seguir tal destino”. No mundo inteiro, não havia “nenhu
ma fonte maior de prostituição do que esse tipo de serviço domés
tico”. Du Bois ecoou Frederick Douglass, que um século antes havia
descrito a cozinha como um bordel. A cozinha continha “todo um
histórico social”,® não apenas de racismo e servidão, mas de abuso e
violação sexual.
Sua avó se juntou à “debandada desenfreada do serviço domésti
co, por parte de quem [podia]lutar ou fugir”,® e se mudou com a famí
lia para Boston, para que Edna pudesse se esquivar desse destino. As
coisas horríveis das quais elas escaparam eram descritas apenas por
meio de eufemismos como criadas leais, concubinas e pais, mas sua
avó era honesta demais para disfarçar como amor ou consentimento
a brutalidade que fazia parte do trabalho íntimo. A dissimulação foi
a forma^ como elas administraram e conviveram com essa violência.
O que Edna sabia era: Todasas mulheres dafamília eram bonitas e Elas
provavelmente se submeteram a homens brancos comfrequência. Tam
bém sabia que nunca deveria falar o nome do seu pai, do pai da sua
mãe ou do pai da sua avó. Os segredos,as mentiras e as linhas de des
cendência perversas compreendiam a escravidão e sua sobrevida.®
Apenas quando se tornou adulta foi que sua mãe compartilhou com
ela o relato gráfico de seu estupro. Uma família branca contratara
sua mãe como babá. A família dela era tão pobre que acabou permi
tindo. Quando ela estava dormindo ao lado de sua incumbência de
três anos de idade, seu empregador, um refinado cavalheiro da Vir
gínia, se juntou a ela na cama e a estuprou. Aos doze anos, ela nem
se deu conta de que estava grávida,era muitojovem para saber sobre
sexo ou bebês, e assim pensavam os mais velhos quando disseram
que havia cobras na barriga dela?

Minha irmã, minha mãe. Até os seis anos,Edna achava que a avó era sua
mãe. Ela e a mãe moravam com sua avó e com o negro com o qual ela

218

. ..
havia se casado depois de ter dado à luz duas crianças de um homem
branco.Eles eram pobres, mas viviam nas cercanias de uma vizinhança
de cor muito boa“e se esforçavam para assumir seu lugar entre pessoas
negras decentes e respeitáveis. O fato de serem quase brancas lhes
conferia status;ser quase branca também levantava questionamentos
sobre as circunstâncias que geraram a compleição clara de Edna,o
cabelo ondulado e dourado, os olhos azuis. A ausência do pai expu
nha a mentira de qualquer respeitabilidade presumida. Uma vez que
se tornou aparente que Edna não tinha pai nem sobrenome,as outras
crianças da quadra passaram a zombar dela e a chamar por nomes
terríveis,transformando em uma brincadeira cruel as coisas que seus
pais cochichavam por trás de portas fechadas. Elas a adoravam e a
insultavam,invejavam sua beleza quase branca e a desprezavam como
a filha da meretriz de um homem branco. Uma bastarda mestiça. Seu
destino estava selado. Até sua tia Nancy acreditava que Edna nunca
daria em nada e que ela seria uma mulher ruim como a mãe.
Quando, em um ataque de ciúmes, seu avô matou o noivo da en
teada, então com dezesseis anos, e foi condenado à prisão perpétua,
Edna também foi condenada como a neta de um assassino. Todas as
esperanças de se misturar e de se tornar invisível entre as classes mais
altas foram frustradas. O escândalo do assassinato e a inveja que o
padrasto sentia do amante de sua enteada lançaram mais uma cama
da de vergonha sobre a casa deles.
Sua mãe era livre demais. Ela fazia o que queria. Suas relações se
—a
xuais eram casuais. Ninguém conseguia segurá-la. Esse excesso
imprudência de se deitar com vários homens,de cor e brancos não
poderia ser, e nem seria, perdoado. Sua mãe era bonita, solta e im-
penitente em sua sexualidade. Ela se atraía por homens gentis e por
homens que abusavam dela. Sobrecarregada pelo peso do histórico
da mãe,Edna se sentia culpada e condenada. Não era um.peso que ela
deveria carregar, mas o mundo a punia assim mesmo. O nó de vergo
nha que se formou dentro dela tinha tanto a ver com os nomes pelos
quais os vizinhos a chamavam quanto com aquilo em que ela agora
acreditava. Era difícil olhar para a mãe e não julgá-la como uma mu
lher ruim.

219
Como eles viviam em três cômodos pequenos,era impossível para
Edna evitar a visão de sua mãe na cama com homens negros e bran
cos. Meretriz de homem branco, os vizinhos cuspiam. As palavras
promíscua e dissoluta não estavam no vocabulário da Edna de seis
anos.Negligente com questões sexuais^ imoral^ sôfrega^ de comportamen
to incontidOy incontrolável, extravagante, melancólica. Quando tinha
idade suficiente para entender o significado de tais palavras, preferiu
descrever a mãe como alguém livre demais. Uma torrente de lágrimas
acompanhava a convicção de que aquilo que os vizinhos diziam sobre
sua mãe era verdade. Não era a imagem de sua mãe enroscada nos
braços de um amigo casual ou estranho que a fazia soluçar inconso-
lavelmente, mas a visão de sua mãe aplicando ruge nas bochechas. A
cor vermelho-sangue era a mesma da rosa artificial que ela embebia
em água para liberar o pigmento, com o qual então pintava o rosto.
Sua mãe era bonita, ordinária e profundamente escarlate.Só mulheres
ruinsfaziam aquilo.

DESVENDANDO O MUNDO

Por trás do comportamento discreto, das boas maneiras, da aparên


cia honesta e de toda a beleza, havia uma turbulência contida. Edna
demorou para perceber que isso não se devia apenas às circunstâncias
instáveis de sua vida; antes, havia algo decididamente instável nela.
Uma revolta interna se mostrava palpável, mas Edna não podia dis
cernir sua fonte. Talvez fosse apenas tristeza, a solidão brutal típica
de um casamento fracassado e infeliz. Talvez fossem as três gerações
de sofrimento transmitido pela linhagem materna. Havia o medo fur
tivo e o risco de que sua passividade resoluta pudesse ceder a algo
perigoso e inesperado. Talvez fosse uma busca cega por algo que ela
não podia nomear.
Lloyd Thomas não tentou seduzi-la como tantos fizeram. A ado
rável Edna de vinte e nove anos frequentava os melhores círculos.
Como secretária de Madame C.J. Walker, a primeira mulher negra
milionária, ela rapidamente foi admitida nos universos das pessoas

220
ricas e elegantes. A aspirante a atriz era cortejada por admiradores,
brancos e negros, e se movimentava facilmente entres os universos
de Greenwich Village e do Harlem, desfrutando das oportunidades
e do glamour que a cidade oferecia, ao menos para as mais belas e
talentosas, e ela era as duas coisas. Edna ficou fascinada com a indi
ferença de Lloyd. Aquele homem austero e taciturno, que gerencia
va aspirantes a cantores e atores, além de diversos clubes noturnos
no Harlem, nào parecia querê-la ou desejá-la, e isso a fez desejá-lo
ferozmente. Ela iniciou a corte, e eles se casaram pouco tempo de
pois. Ele era atraente, cortês, cosmopolita; e o mais importante,era
um mestre do autocontrole. Mesmo quando se via em uma sala cheia
de belas coristas,seus olhos nunca vagavam.Ele permanecia alheio,
frio, inalcançável. Isso a maravilhava e a excitava, encorajava sua
determinação em fazer com que ele a desejasse fervorosamente. Ele
a amava à distância, se é que de fato a amava. Lloyd nunca lhe dis
sera isso e se recusava a pronunciar aquelas três palavras — Eu te
amo — apesar dos tormentos dela, como se dizê-las fosse uma coisa
ultrajante ou irracional a se esperar de um homem.Embora ele nun
ca tivesse expressado ardor ou ternura antes do casamento, aqui
lo a surpreendeu, pois ela assumira erroneamente que ele cederia e
amoleceria. Por certo, ele nào era um homem convencional; Lloyd
apreciava a companhia de artistas e escritores cujos desejos não
eram fixados por coordenadas identitárias, daqueles que desafia
vam afrontosamente as expectativas sobre aquilo que deveriam ser
a ex-
e quem deveriam amar.(Como Edna, Lloyd talvez apreciasse
periência de ser desejado por quem ele não desejava; mais provável,
ele se atraía pelos homens queers que se encontravam regularmente
em sua companhia,os poetas, cantores e donos de clubes que embe
lezavam o Harlem; ou talvez ele os desejasse com uma intensidade
que Ednajamais poderia ter imaginado. Circulavam rumores de que
a união deles era um casamento de conveniência.)
Apesar de sua indiferença, Lloyd se provou um amante apaixona
do;ele a satisfazia fisicamente e era fiel,já que parecia completamen
te impassível diante de outras mulheres, mas ainda assim o coração
dele pertencia apenas a si. As mesmas qualidades que inicialmente o

221
tornaram tào atraente a reticência sexual, a reserva olímpica e a
notável impassividade — causaram bastante dor.
O que estava em jogo ao tentar transformar a indiferença em amor
e adoração? Ela deveria se satisfazer com a constância fria dele e com
a fidelidade assegurada pelo tédio diante de outras mulheres? Seria
o esforço impossível de transformar o desinteresse em devoção mais
uma tentativa de escapar da vida de sua mãe? Ou de compensar aqui
lo que a mãe havia falhado em oferecer? Edna escapara do destino da
mãe e tivera sorte em comparação às outras mulheres da família. Não
houve estupradores,assassinos nem homens voláteis e violentos. Nada
de amor selvagem nem carnalidade indomável. Aos dezesseis, ela se
apressou em casar-se ainda virgem, determinada a escapar da pobreza
e do escândalo. Tudo o que ela e a mãe notaram foi o verniz de respei
tabilidade e o sobrenome abastado. Seu marido,filho de um self-made
man, desfrutava de um lugar seguro em uma “sociedade clara”. O que
podería ser mais atraente para uma criança bastarda do que uma po
sição social, do que a proteção de pais e maridos? Apenas depois de se
tornar uma senhora casada foi que ela descobriu que Lloyd era mimado
e irresponsável; ele nunca trabalhava; bebia e apostava todo o dinheiro
que tinha. Tinha cometido um erro colossal. Discretamente, ela plane
jou uma rota de fuga e jurou nunca ser mãe.O primeiro aborto foi difí
cil, mas ela foi igualmente determinada na segunda vez.
No primeiro casamento, ela calculou mal, confundiu aparências
com substância, buscando segurança contra a turbulência que fora
sua infância no meio pretensioso e puritano da classe alta negra, mas
errou ao acreditar que, ao preferir a constância à paixão, e uma vida
estável à incerteza, ela podería evitar ser prejudicada pelo mundo.
Apenas a riqueza de seu sogro protegia a ela e ao marido das ruas. Na
segunda vez, não havia ninguém a quem ela pudesse recorrer. E para
protegê-la de quê? De um casamento tépido, de uma relação morna,
de uma afeição decadente,do tédio? Todos os segredos guardados no
interior de um casamento: a distância do marido, a rotina desgastan
te da vida cotidiana, a monotonia da domesticidade, as mil oportuni
dades perdidas de um ato de ternura ou uma pequena prova de amor.
A solidão do leito conjugal ameaçava acabar com ela.

222
No palco, Edna encontrava um propósito. Ali ela nào era mais
uma esposa decepcionada; estava viva, resplandecente. Não impor
tava que esse sentimento fosse transitório e efêmero. A liberdade de
ser menos como Edna e mais como outras era vibrante.Perder-se do
mundo” do casamento,do dever, da decepção e do tédio ao adentrar
o espaço da assembléia e a intensidade de criar e habitar um mundo
com outros, um domínio de corpos coletivos, da experiência cines-
tésica e da linguagem gestual. Todos os outros papéis tinham de ser
abdicados. O palco permitia que ela escapasse de sua vida irrisó
ria e individual para se inserir na existência de uma outra qualquer
— prostituta, rainha, trabalhadora, heroína falha — e se livrar de
toda preocupação mesquinha. Quando entrava em uma personagem
e emprestava seu corpo ao gesto, ela era ninguém e todo mundo ao
mesmo tempo, não estava mais presa à sua história pessoal e ainda
assim era capaz de expressar toda a dor e fracasso e desejo, compar
tilhando-as com o mundo, mas sem se envergonhar de nada.
Edna desaparecia dentro de outras vidas; tornava-se outros eus.
Era lindo. E era a alegria mais duradoura que ela jamais experimen
tara. No mundo dos atores, diretores, cantores, dramaturgos e as
sistentes de palco, ela encontrava um veículo, uma válvula de escape
para sua paixão retraída; ela abandonava o impulso de ir em busca de
segurança no confinamento da moderação e de se contentar com uma
existência desapaixonada.
Conforme a carreira dela alavancava, Lloyd foi ficando ciumen
to e ressentido. O nome dela aparecia regularmente nas críticas tea
trais, primeiro em produções amadoras,em seguida como integrante
da Lafayette Players, e finalmente como protagonista. Cada sucesso
de que ela desfrutava o fazia sentir-se menor, como se não houvesse
ar suficiente no mesmo cômodo para os dois; como se ela estivesse
tentando se tornar a figura dominante, como se eles estivessem em
uma competição, e ele não seria coadjuvante de ninguém. Lloyd se
opusera de maneira inflexível à carreira de atriz de Edna e agora ela
pretendia sair numa turnê. Depois de seis meses na estrada com Lulu
Belle, Edna voltou para casa e descobriu que o marido andava saindo
com mulheres mais jovens, frequentando cabarés e clubes de teatro

223
sem ela, passando a noite em outros apartamentos no Harlem. As coi
sas se desenredaram, mas foi tudo muito civilizado: sem xingamen-
tos, brigas e roupas rasgadas, nada de jogar os pertences dele na rua.
Eles eram modernos.Eram boêmios. Mais uma vez ela estava sozinha
e desiludida com o casamento; Edna estava acostumada a ser decep
cionada, habituada a sofrer por amor.
Se foi Evelyn Preer ou Fredi Washington ou Rose McClendon —
ela nunca confidenciou. Tudo o que revelou foi que um encontro ro
mântico com uma protagonista negra mudou sua vida. Uma dança fez
Edna se precipitar por um caminho radicalmente diferente. Envolvi
da nos braços dessa adorável mulher, Edna sentiu algo elétrico, sen
tiu-se viva; soube que era alguém diferente de quem imaginava ser.
Essa foi a sua primeira experiência com uma mulher. Elas dançaram
juntas e algo espetacular aconteceu,algo vibrante.Eassim ela soube
Os rumores circularam. Era o mundo do teatro, logo, ninguém ficou
chocado. Então veio a fofoca sobre sua relação com Alelia Walker.
Edna pertencia ao círculo*® de belas mulheres que ficavam ao redor
da herdeira do Harlem. Elas eram amigas íntimas. Edna deixou o as
sunto por aí.
Ela conheceu Olivia em uma festa na casa de A’lelia. Por seis me
ses, Lady Olivia Wyndham perseguiu Edna sem descanso, alegando
que estava perdidamente apaixonada depois do primeiro encontro
entre as duas, e sem dar a mínima para Lloyd. A aristocrata inglesa
era masculina, elegante, viciada em ópio e imprudente. Uma vez ela
talhou a cabeça com uma faca e se jogou de um lance de escada para
ser hospitalizada e cuidada por uma enfermeira que ela amava. A
intensidade e a força de seu desejo fizeram Edna recuar. Tudo isso a
assustou. Era o oposto do que ela buscava num marido. Por seis me
ses, Olivia, perseverante, apareceu com frequência no apartamen
to de Edna e Lloyd na Seventh Avenue vestida com a elegância de
um cavaleiro de posses. O pessoal do Harlem aceitava isso como um
costume inglês, no estilo de Radclyffe Hall, Sackville-West e Nancy
14
Cunard. Afinal de contas, ela era prima distante de Oscar Wilde.
Wyndham era a tempestade que ameaçava destruir o que sobrara do
casamento sóbrio e sem amor de Edna. Após meses de uma perse-

224
guiçào incansável, Olivia aceitou a derrota e decidiu voltar para a
Inglaterra. Na noite de sua partida,ela fez uma última visita a Edna,
provavelmente para dizer adeus, mas não sem esperanças. Edna
fízera todo o possível para acabar com as expectativas de Olivia,
sem nunca retribuir a afeição nem encorajar o desejo dela. Mas de
alguma forma, após meses em posição de guerra, rejeitando Olivia
em qualquer ocasião e determinada a não sustentar nenhum tipo de
sentimento por Lady Wyndham,Edna sucumbiu aos seus encantos.
Teria a determinação dela simplesmente se desgastado? Ou teria
sido algo mais como a chuva após uma longa estação de seca, ines
perada, surpreendente e necessária? Se fosse pressionada, ela não
teria escolha a não ser admitir que nutria sentimentos por Olivia.
Agora que a partida dela era iminente,era mais fácil admitir. Quan
do Olivia chegou naquela noite, Edna a convidou para entrar e se
recusou a deixá-la ir. Elas viveram juntas por décadas.
ca-
O romance entre a aristocrata inglesa e a protagonista negra
tivou a imprensa. Os artigos contornavam cautelosamente o óbvio
— nunca mencionavam os termos amantes de mulheres, homosse
xuais ou lésbicas — e não lançavam calúnias. As pessoas assumiram
erroneamente um ménage à trois; Edna e Olivia formavam o casal,
mas um casal abrangente o suficiente para incluir Lloyd como um
companheiro de casa. Lloyd não parecia se importar em abrir mão
de Edna e apreciava a atenção que recebiam na imprensa: Rica bri
tânica abandonou seu próprio povo para morar no Harlem ou Ela re
nunciou às tradições britânicas por seus amigos negros, Lloyd e Edna
haviam se deixado cair nos braços de outros amantes, criando vi
das paralelas, mas os três viviam juntos no apartamento da Sev-
enth Avenue, davam jantares para amigos em comum e figuravam
regularmente nas colunas sociais como o sr. e a sra. Lloyd Thomas e
amiga, quando compareciam aos bailes de A’lelia Walker,a eventos
beneficentes, estreias teatrais ou no Hamilton Lodge Bali. Wallace
na
Thurman, Dorothy West e Jimmy Daniels alugaram um quarto
casa deles e a jovem e bela amante de Lloyd, a garota mais descola
da do Harlem, Blanche Dunn,fez do apartamento sua segunda casa
até abandonar Lloyd por um magnata inglês do petróleo. A fortu-

225
Froiii The Irillianee Of laylairTe--
SHE RENOUNCED BRITISH TRADITION FOR HER NEGRO FRIENDS
^ThêXexv York ●imsterÂani Sew] Juu 22. 1940;

\
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●sií.v/-S*íwn
●S^:,-25jrsí::

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j

OLIVtA WYNDHAM EDNA THOMAS


●‘Thero’s noihing unusuBi about ma.” Thoy mot at B pnrly—and a firm friendahip sSartod.

na de Olivia proporcionava uma vida confortável para eles. Depois


que seu clube noturno no Harlem fechou, Lloyd nunca mais voltou a
trabalhar. O casamento era o disfarce que lhes permitia viver como
bem entendessem e evitar a censura pública.
Foi tudo muito inesperado um amor tardio e uma carreira de
sucesso, uma fazenda em Connecticut e férias na Europa em caste
los ingleses e châteaux franceses. Para uma garota pobre, criada em
um apartamento de três cômodos nas margens da respeitabilidade,
era tudo assombroso e inacreditável a não ser que você fosse uma
protagonista, uma artista brilhante ou parte do mais cobiçado dos
elencos. Ela estava entre as mais sortudas: “os resquícios daquela ha
bilidade e gênio [...] a quem as casualidades da educação e da opor
tunidade elevaram nas grandes ondas do acaso”,’® uma ave rara, uma
artista negra.
O mundo continuava fazendo Edna imaginar’® o que ela poderia
fazer e quem poderia se tornar. Ela tinba feito todas as coisas chocan
tes imagináveis e o único motivo que podia alegar era seu anseio pela
expressividade, um anseio que ninguém experimentou mais intensa-

226
mente que as mulheres negras e pelo qual ninguém pagou tão caro
quando essa necessidade não era atendida, quando se era uma artis
ta sem umaforma de arte, Para onde quer que se olhasse, era possível
ver isso. Nenhuma pessoa moderna e inteligente se contentava em apenas
existir. Às vezes era bom arriscar.

227
LIVRO 3

Belos expepimentos
V* *. ■

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* 4’
*

i t:

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*■

J
Revolução em tom menor

Já passava da meia-noite e Harriet Powell ainda estava na pista de dan


es-
ça. Primeiro, ela não conseguiu entender o que o policial disse. Ela
tava presa? Pelo quê? A música ensurdecedora ao fundo e os casais que
dançavam ao redor dela não ofereciam nenhuma dica de que ela passa
ria os próximos anos entrando e saindo da prisão, e de que levaria uma
década para que conseguisse receber o presente de seus documentos
de liberdade. Quem podería esperar que a servidão involuntária osse
o preço por duas noites de amor no quarto alugado de um cortiço no
Harlem? Ou que esse tipo de movimentação negra não regulamenta a
ainda fosse um risco, uma ameaça e um crime? Ou que a chama rebe
de”^ de suas “perambulações noturnas” e o desvio sexual fizesseni e a
uma prostituta em potencial, adepta da vadiagem? Como é que o sta
do foi mirar em uma garota negra de dezessete anos para torna a vo
de sua violência? Mesmo depois que o policial disse as palavras, oce
está presa, ela protestou,insistindo que não tinha feito nada de errado.
Como é que viver havia se tornado um crime?
Todo mundo falava em liberdade e democracia. Um ano,seis meses
e doze dias de guerra não haviam produzido nenhum acordo sobre o
que a guerra significava e que efeitos traria.^ A polícia não dava a nií
nima se um negro estava fardado. Anda, cnoulo, Mas mesmo os dissi
dentes, os negros radicais que se opunham em transformar jovens em
bucha de canhão do capitalismo e que condenavam a guerra como um
crime e uma extensão da linha de cor em escala global,esperavam algo

231
decisivo no resultado do conflito. Estariam as pessoas de cor do mun
do inteiro unidas na luta contra o imperialismo? A esperança de mu-
danças revolucionárias inflamadas por 1917 tocaram fundo no coração
do Cinturão Negro. O novo negro não tem medo era o manifesto que
ecoava na multidão. O espírito do bolchevismo^ era palpável nas ruas
do Harlem. Um mundo melhor se revelaria em seu rastro? Nos edito
riais do New York Age, do Amsterdam News, do Chicago Defender e do
Afro-American,todos perguntavam quando,se é que isto aconteceria,o
negro seria livre. Mas ninguém tinha Harriet Powell em mente, nem a
guerra travada contra ela. Caminhar com um “balanço tão consciente
mente convidativo”,'^ se reunir no cabaré e se envolver na prática coti
diana muito comum da rebeldia era desproporcional com o idioma po-
Htico do ajuste,da melhoria e da recompensa,o Santo Graal dos líderes
autodeclarados da raça e dos amigos do negro.Era também algo que se
encontrava sob o escrutínio de negros socialistas e radicais de esquina.
A bela falta de comedimento de Harriet,sua recusa espetacular em al
mejar um trabalho melhor ou uma vida decente e sua luxúria radiante
chamavam apenas a atenção da poUcia e dos sociólogos.
Charlie Hudson não era um soldado, diferentemente de muitos
dos jovens conhecidos de Harriet, que viviam aflitos no Sul, deses
perados para chegar na França. O romance deles não era alimenta
do pelas paixões da guerra ou pela ameaça iminente de separação. Se
eles se envolveram muito rápido e passaram da pista de dança para a
cama em uma semana,a única desculpa era o prazer. Na terça à noite,
quando saiu de casa para encontrá-lo, Harriet disse aos pais que logo
estaria de volta. Seu pai não acreditou. Ele reclamava que a garota
nemfingia escutar. Ela estava sempre passeando pela rua. Depois do
trabalho, ia para casa e ficava lá pelo tempo necessário para trocar
de roupa antes de sair às pressas para dançar ou ir ao cinema e não
voltava até bem depois da meia-noite.Se eu trabalho,porque nãoposso
sair de vez em quando?,^ questionava. Ele disse que não toleraria isso
em
sua casa. Não erajusto, Harriet replicava; ela trabalhava que nem
uma mulher adulta, por que não podia ser tratada como uma?
O quarto alugado ficava a algumas quadras do Palace Casino,®
onde ela conhecera Charlie. Era a parte mais imoral do Harlem,cheia

232
de pensões, cabarés, clubes e bares, e era onde a polícia concentrava
suas batidas. Harriet havia tido intimidades com outros, a maioria
jovens de sua idade, com quem ficava aos beijos e às apalpadelas em
corredores escuros e telhados. A primeira vez que ela fez isso foi com
um italiano que conhecera no parque. Ele a levou para casa e a estu
prou. Poucas eram as garotas que consentiam na primeira vez. Com
Charlie Hudson foi diferente. Ele não foi violento. Não a forçou,nem
queria que ela se apressasse.Por dois dias e duas noites,eles ficaram à
toa na cama de um quarto mobiliado indistingmVel de centenas de ou
tros, que tinham sido recortados de adoráveis casas geminadas,ago
ra amputadas e transformadas nos cortiços e pensões que ladeavam
a 134**' Street. No minúsculo, mas glorioso mundo do quarto alugado,
ela fazia o que bem entendesse, não aquilo que os outros esperavam^^
dela,e isso a fazia se sentir crescida. Quando ela e Charlie finalmente
se aventuraram numa saída, eles volta
ram para o salão de dança. Causes Sister’s Arrest in
Na pista de dança do Palace Casino, Dance Hdl às Inconi^le
Harriet saboreou a alegria de se perder Í6tli Helon Poters.'n. a wltres».
St. waa arrcnted carly
na multidão. Ela absorvia as ondas de
anrt
8U Ma^^n^Ave.. P
addrosa.’who eíuwg^ bír wlth bo-
calor emanando de todos os corpos que
se remexiam, balançavam e se agita
vam, o que adoçou mais ainda o prazer
das últimas quarenta e oito horas. E foi SiQ poHw»*"»»*

só quando o oficial Johnson agarrou seu


braço enquanto ela dançava na pista que .1" ™.í.r
Coiirt. the matter^
“*“
VorkvUle CourU ^
esse prazer chegou ao fim.

A crescente presença negra em Nova York ampliou a ameaça das mu


lheres de cor e os perigos sexuais representados pelosjovens negros
que debandavam para a cidade. A cada década,a população dobrava.
Era impossível caminhar pelas ruas do Tenderloin, de San Juan Hill
ou do Harlem sem encontrar garotas tempestuosas,crianças de rua e
prostitutas muito jovens. Eram as filhas das diaristas, dos migrantes
sulistas e dos imigrantes antilhanos que inundavam a cidade. Os boê-

233
mios as chamavam de mocinhas, anarquistas, amantes de mulheres,
cocotes,sapatões ejovens indomáveis.
Os reformadores sociais e a imprensa marrom soaram o alarme:
a sedução de garotas “desprotegidas” alcançara proporções epidêmi
cas, medidas extremas se faziam necessárias. A escravidão branca in
citou o pânico moral e um movimento nacional de proteção àsjovens
contra predadores sexuais. Circulavam rumores sobre conspirações
de escravidão branca, redes judaicas de tráfico humano, predadores
negros, antros de ópio em Chinatown. A total falta de evidências
pouco fez para diminuir o medo e a histeria. O senso comum afirmava
que asjovens negras eram as mais vulneráveis,por causa das agências
de emprego corruptas que as recrutavam do Sul,da falta de oportuni
dades de trabalho decentes,e o mais importante, por causa do hábito
secular de se relacionar com homens brancos, uma parte integrante
de seu treinamento^ na escravidão. “As mulheres negras cediam mais
facilmente às tentações da cidade que as outrasjovens”,explicou Jane
Addams, porque as pessoas negras, como um grupo, como uma co¬
lônia de pessoas de cor”, não tinham sido postas sob controle social.
Os formuladores de políticas e os reformadores insistiam que elas se
encontravam “várias gerações atrás da raça anglo-saxã com relação a
agências e processos civilizatórios”.® Por isso se fazia necessária uma
regulamentação mais ampla. A escravidão era a fonte da imoralidade
das mulheres negras, observou a criminologista Francês Kellor, pois
“as mulheres negras [eram] supostamente imorais e [tinham] poucos
estímulos para agir de outra forma”. Mesmo W.E. B. Du Bois lamen
tou:“Sem dúvida,o ponto em que o negro[ou a negra]estadunidense
está mais atrasado [ou atrasada] na civilização moderna diz respeito
aos seus costumes sexuais”.®
Ao se movimentar pela cidade como bem entendiam e se associar
livremente com estranhos, as jovens corriam o risco de ser assedia
das, presas e confinadas. As leis aplicadas às menores infratoras as
tornavam passíveis de prisão e transformavam atos sexuais, ainda
que consensuais e sem o envolvimento de dinheiro,*® em delitos cri
minais. Definições como “prostituta em potencial”, “desajustada” e
“sob risco de se tornar moralmente depravada” davam licença para

234
as diligências policiais. Encontros sexuais casuais e relacionamentos
em série eram estigmatizados como “depravação moral”, um delito
punível com sentença de prisão. Todas as mulheres de cor eram vul
neráveis a uma apreensão aleatória pela poUcia;aquelas que trabalha
vam até tarde, ou que voltavam para casa após o bar fechar ou depois
de apagadas as luzes do salão de dança, podiam ser presas e acusadas
de prostituição. Se ela tinha alguma doença sexualmente transmissí
vel, ou filhos fora do casamento, ou filhos mestiços, sua condenação
era quase garantida. Jovens entre catorze e 21 anos, mas às vezes até
mesmo meninas muito novas de doze anos, eram mandadas para re-
formatórios por visitar uma casa de má reputação ou residir nela, por
suspeita de prostituição, por associar-se com pessoas imorais e crimi
nosas, por promiscuidade ou por não trabalhar. Aquelas que ousavam
recusar as normas de gênero e as convenções sociais de proprieda
de sexual — monogamia, heterossexualidade e casamento ou que
falhavam em cumprir as normas de respeitabilidade feminina, eram
visadas como prostitutas em potencial, praticantes da vadiagem,
desviantes e crianças incorrigíveis. Imoralidade, desordem, promis
cuidade, inversão e patologia eram os termos impostos para visar e
erradicar tais práticas de intimidade e afiliação.”
ato de intimidade.
Era o status de alguém que determinava se um
uma noite ao lado de um estranho ou uma tendência a perambular pe
Ias ruas seria um delito punível. O delito de status era uma forma e
comportamento considerada ilegal apenas para um grupo espec co
de pessoas. Esses delitos iam parar najurisdição dos tribunms e ma
gistrados, e osjuizes tinham uma ampla liberdade para decidir so re
o destino de uma jovem. Avaliações subjetivas de “comportamento
e conduta” produziam péssimos resultados. O Tribunal de Mulheres
foi criado para tratar de casos de delinquência sexual e apresentou a
maior taxa de condenação entre todos os tribunais da cidade de Nova
York. E,não é de surpreender, as mulheres negras constituíram uma
porcentagem significativa entre aquelas que foram condenadas.
O sexo não era crime, mas algumas formas de intimidade eram
ilícitas e imorais sexo antes do casamento, sexo com memnas ou
meninos abaixo da idade de consentimento, sodomia, sexo em troca

235
de presentes ou dinheiro em lugar de um pedido de casamento. Um
menor delinquente, conforme deíinido pelo Código de Processo Pe
nal,era:“Qualquer pessoa entre os dezesseis e 21 anos de idade que(1)
tem por hábito associar-se com pessoas dissolutas’, ou(2)‘se encon
tra por sua própria vontade e razão em uma casa de prostituição ou de
má reputação,ou tem por hábito associar-se com bandidos, prostitu
tas, cafetões, alcoviteiros ou pessoas desajustadas’, ou(3)‘desobede
ce deliberadamente aos comandos razoáveis e lícitos dos pais,tutores
ou outros cuidadores e é moralmente depravada ou corre o risco de se
tornar moralmente depravada’, ou(4)‘[...] sem causa e sem o consen
timento dos pais, tutores ou outros cuidadores, abandona sua casa
ou local de residência e é moralmente depravada ou corre o risco de
se tornar moralmente depravada’, ou(5)‘[...] se comporta de maneira
deliberada em prejmzo ou comprometimento da moral própria e de
outrem’”.

Apenas mulheres jovens foram julgadas como delinquentes sob


esses
estatutos (entre 1882 e 1925)}^ A intenção da legislação era
policiar e regular os delitos sexuais sem o “estigma da condenação
crimmar. A atividade sexual dejovens mulheres,acreditava-se,con
duzia “dketamente ao ingresso da menor em uma carreira de pros
tituição”. Ainda assim, tais “medidas protetivas” serviam apenas
para criminalizar jovens negras e torná-las ainda mais vulneráveis
à violência estatal.
Ter sucessivos amantes ou um determinado estilo comportamen-
tal, um lapso de julgamento, uma falha de controle, um excesso de
desejo
esses não eram crimes em si, mas indicações de desajuste
e de crimefuturo. Aquelas que sofriam acusações não eram tecnica
mente culpadas de infringir a lei ou de ter cometido algum crime,en
tão,como resultado disso, não eram protegidas por formas regulares
do devido processo legal, mas se encontravam sujeitas ao poder de
decisão do magistrado quanto à suspensão da sentença, à oferta de
liberdade condicional ou ao internamento em um reformatório ou em
outra instituição apropriada. Como consequência desse poder de de
cisão, muitasjovens negras que eram rés primárias, ou, para ser mais
exata,jovens negras que tiveram seu primeiro encontro com a polí-

236
cia, tinham grande probabilidade de ser condenadas ao reformatório
por três anos.
A rebelde era culpada por um modo de viver e existir considera
do perigoso, e representava um risco ao bem público. Formalmente,
ela não podia ser considerada menor infratora, pois a “infração com
preende o cometimento de um ato que, se cometido por um adulto,
seria julgado como um crime e punido como tal”. Em contraste, as
14
disposições da Wayward Minors Act [Lei de Menores Infratores]
consideravam que “a definição de um menor delinquente compreende
apenas atos não criminais, mas que indicam a iminência de criminalida-
defutura”.
O paradoxo era que pequenos delitos e infrações estatutárias eram
sujeitos aformas de punição mais severas do que crimes propriamente
ditos. Uma jovem condenada como menor delinquente poderia rece
ber uma sentença indeterminada de três anos, enquanto uma mulher
julgada por prostituição poderia cumprir sessenta dias de trabalho
em um asilo. Quando a jovem Billie Holiday se apresentou diante do
Tribunal de Mulheres depois de ter sido presa em uma casa de tole
rância,^® Elinora Harris,então com catorze anos,se apresentou como
Eleanora Fagan, o sobrenome de sua avó, e fingiu que tinha 21 anos

WOMEN' URT
VAG ;SUBD.4:LOIT.:SOL.PUB.PL. CASE
I. D. N.
●E
SUBO. 4.
SUBO.
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PRIOR CONV37 PROST., ●MNTOX. ETC...... ... F. P. B. W -\f
HEALTH REPORT
INPECtK^S NO CTF. NON-INFECTIOUS MENTALLY SUB<NORMAt« DRUO ÀDDÍÇT <

237
L A
para evitar uma sentença de três anos no reformatório em favor de
uma curta temporada no asilo. Como ela esperava, ajuiza(Jean Nor-
ris) a sentenciou a quatro meses no asilo de Blackwelfs Island. Essa
sentença compreendia um mês a mais que a sentença recebida pelo
vizinho que a estuprou quando ela tinha onze anos.
As leis aplicadas às menores infratoras colocaram sob controle
policial e judicial condutas como beber, dançar, namorar (especial
mente no caso de relações inter-raciais),fazer sexo,frequentar festas
e cabarés, convidar homens para o próprio quarto e vagar pelas ruas.
Essas contracondutas(diferentes formas de conduzir o eu’® e de desa
fiar a hierarquia da vida produzida pela linha de cor e reforçada pelo
Estado)ou modos errantes de vida eram capturados pelo Estado con-
forme o cálculo de riscos e perigos sociais que representavam.
O risco era a métrica utilizada para tabular crimes futuros, e esse
prenúncio determinava o destino de jovens negras já visadas e susce
tíveis a uma miríade de formas de violência estatal. A lógica atuarial
posta em ação previa o tipo de pessoas e o tipo de atos provavelmente

238
propensos ao crime e à desordem social. O racismo do governo exa
cerbava o alcance das leis aplicadas às menores infratoras, marcando
a negritude com a desordem e o crime.

Harriet Powell não foi creditada com nada:ela permanece como uma
mulher excedente e insignificante,uma ninguém considerada imprópria
para a história e destinada a ser uma figura menor. Que pensamentos
errantes e idéias loucas a encorajaram a desprezar as normas sociais
e a viver fora da lei, e contrariamente a ela, buscando o prazer e a
beleza? Ou a nunca se estabelecer e a seguir em suas andanças pelas
ruas? Seria uma forma de experimentar algo semelhante à liberdade
ou de desfrutar do êxtase efêmero da autonomia? Será que a doçura
de frases como Te quero,Eu vou onde hem entendo,Não sou de ning^ém
passeavam por sua boca?

239
t

I
Rebeldia: uma breve introdução ao possível

Rebelde se relaciona à família de palavras: errante,fugitiva, obstina


da, anárquica, teimosa, irresponsável, encrenqueira, desordeira, tu
multuosa, revoltada e indomável. Habitar o mundo de forma nociva
àquelas consideradas apropriadas e respeitáveis, ser profundamente
consciente do abismo entre o lugar onde você se encontra e como po-
deria viver. Rebeldia: o desejo ávido por um mundo não governado
toma-
pelo senhor, pelo homem ou pela polícia. O caminho errante
do pelo enxame sem líder em busca de um lugar melhor que aqui. A
poesia social que sustenta os despossuídos. Rebelde: o movimento
desregulado da deriva e da errância; permanências sem um destino
fixo, possibilidades ambulantes, migrações intermináveis, debanda
da e fuga,locomoção negra; a luta diária para viver livre. A tentativa
de escapar à captura pela não acomodação. Não as ferramentas do
senhor, mas os gestos fugitivos da ex-escravizada, seus sapatos de
viagem. A rebeldia articula o paradoxo da criação restrita, do ema
ranhado do escape e do confinamento, da fuga e do cativeiro. Rebe
lar-se: vagar, não ter amarras, ficar à deriva, vadiar, errar, navegar,
deambular e buscar. Reivindicar o direito à opacidade. Atacar, se re
voltar, recusar. Amar o que não é amado.Perder-se para o mundo.É a
prática do contrário social, o solo insurgente que permite novas pos
sibilidades e novos vocabulários; é a experiência vivida da clausura e
da segregação, da assembléia e do encontro. É a busca desorientada
por um território livre; é uma prática de fazer e de se relacionar que se

241
insere dentro dos limites policiados do gueto negro; é a ajuda mútua
ofertada na prisão a céu aberto. É um recurso queer da sobrevivência
negra.^ Um belo experimento de modos de vida.
A rebeldia é uma prática da possibilidade em um tempo no qual
todas as estradas, a não ser aquelas criadas pela destruição, se encon
tram bloqueadas. Não obedece a nenhuma regra e não tolera nenhu
ma autoridade. É impenitente. Transita nas visões ocultas de outros
mundos e em sonhos de uma vida diferente. A rebeldia é uma con-
tínua exploração daquilo que poderia ser, uma improvisação com os
termos da existência social, quando esses já foram ditados, quando
há pouco espaço para respirar, quando você se vê condenada a uma
vida de servidão, quando o lar da servidão assoma em qualquer sen
tido que você vá. É a infatigável prática de tentar viver quando você
nunca foi destinada a sobreviver.^

242
A anarquia das garotas de cor reunidas
na desordem

Esther Brown nâo escreveu um tratado político sobre a recusa de ser


governada, não traçou um plano de ajuda mútua, nem esboçou uma
memória de suas aventuras sexuais. Um manifesto da rebeldia Não
possua nada. Recuse o que édado. Viva com aquilo de que você precisa e
nada mais. Esteja pronta para ser livre — não foi encontrado entre os
itens de seus autos. Ela não compôs nenhum verso musical: Mamãe
diz que sou irresponsável, papai diz que sou louca, eu não sou bonita,
mas sou o anjinho de alguém.""^ Ela não pôs no papel suas ruminações
sobre liberdade: Com a natureza humana enjaulada em um espaço es
treito, açoitada diariamente até a submissão, como podemosfalar de po
tencialidades?'^ Os cartazes de papelão do tumulto e do levante que ela
incitou poderiam ter dito: “Não brinca comigo. Eu não tenho medo
de acabar com tudo”. Mas em sua luta não houve declarações políticas
formais, slogans nem crenças. Sua luta não demandou nenhuma pla
Caminhando
taforma partidária nem um programa de dez pontos,
pelas ruas de Nova York,ela e Emma Goldman se cruzaram, mas não
se reconheceram.Quando Hubert Harrison a encontrou no saguão do

* No original, My mama says l’m reckiess, My daddy says l'm wild, I ain t goodiooking,
but l’m somebody’s angelchild. Confbrme a autora aponta em nota,letra de “Reckiess
Blues”, performada por Bessie Smith.
** Referência ao “Programa dos dez pontos", divulgado em meados de igBy,que contém
as articulações e os objetivos do então recém-formado Partido dos Panteras Negras
pela Autodefesa.

243
Renaissance Casino® depois de ter pronunciado seu discurso “Mar-
riage Versus Free Love” [Casamento versus amor livre] para o Clu
be Socialista, ele notou apenas que ela tinha um rosto bonito e uma
bunda grande. Esther nunca subiu em um caixote na esquina da 135*'’
Street com a Lenox Avenue para fazer um discurso sobre autonomia,
o alcance global da linha de cor, a servidão involuntária, maternida
de livre ou sobre a promessa de um mundo futuro, mas ela bem sabia
que o desejo de se movimentar como bem entendia não era nada me
nos que traição. Ela sabia,em primeira mão,que o crime mais punido
pelo estado era a tentativa de viver livre. Vagar pelas ruas do Harlem,
querer algo melhor do que aquilo que tinha e ser movida pelos seus
caprichos e desejos significava ser ingovernável. Seu modo de vida
não ficava devendo em nada para a anarquia.
Se tivessem encontrado as notas grosseiras rabiscadas nas mar
gens de sua lista de compras, ou correlacionado os números tantas
vezes circulados em seu livro de sonhos amarrotado e com rotas de
fuga que não podiam ser encontradas no atlas da McNally, ou se ti
vessem lido as cartas de amor escritas para a namorada dela que con
tavam como as duas viveríam no fim do mundo, os mestres filósofos
e os radicais de carteirínha, com toda a certeza, teriam dito que as
análises dela eram insuficientes, a desprezariam por ter falhado em
entender aquelas passagens tão importantes de Grundrisse sobre are-
cusa do ex-escravizado ao trabalho"e por ter enfatizado os limites da
política feminista negra.Elesdeixaram deser escravos, mas nãopara se
tomarem trabalhadores assalariados, ela concordava com entusiasmo
sobre todos os pontos equivocados,satisfeitos em produzirapenas oes-
tritamente necessário para consumo próprio e abraçando sinceramente
a indulgência e a ociosidade como o verdadeiro hem de luxo?
O que os müitantes não experimentados e os ideólogos presunço
sos sabiam de Truth e Tubman? Diferentemente das mulheres de cor
desobedientes, eles fracassaram em reconhecer que a experiência era
algo capazde abrir novoscaminhos,de render mil novasformaseimprovi
sações? Eles seriam algum dia capazes de entender os sonhos de outro
mundo que não perturbassem a distinção entre Estado,lei. colonizador
e senhor? Ou narrar a luta contra a servidão,o cativeiro,a propriedade

244
e a clausura que tiveram início no barracão e continuaram no navio,
de onde alguns pularam, alguns lutaram e alguns se recusaram a co
mer? Outros ainda incendiaram a plantation e os campos,envenena
ram o senhor. Eles nunca tinham ouvido Lucy Parsons; nunca tinham
lido Ida B. Wells. Nem imaginaram a revolta como um grito de guerra
e recusa de uma vida fungível.
Apenas uma interpretação equivocada dos principais textos anar
quistas podería imaginar um lugar para as garotas de cor rebeldes.
Não, Kropotkin nunca descreveu sociedades de ajuda mútua de mu-
lheres negras, nem o coro, em seu livro Ajuda mútua, embora ele te
nha imaginado a sociabilidade animal em sua rica diversidade e as
formas de cooperação e mutualidade encontradas entre formigas,
macacos e ruminantes.^ Domésticas impossíveis e obstinadas ainda
não estavam no campo de visão dele e nem de mais ninguém. Assim,o
diminuto histórico de insurreição de Esther Brown permaneceu des
percebido até ela ser capturada pela polícia. (Isso aconteceria uma
década antes de Ella Baker e Marvel Cooke escreverem seu ensaio,
“The Bronx Slave Market” [Mercado de escravas do Bronx], e mais
de duas décadas antes da publicação do ensaio de Claudia Jones,“An
End to the Neglect ofthe Problems ofthe Negro Woman”[Um íim à
negligência dos problemas da mulher negra].)» A revolta das mulheres
negras contra “a degradação pessoal de seu trabalho” e as “condições
MC
de trabalho injustas”® se expressava em recusas militantes: enrola-
ção, mau humor, pequenos furtos, instabilidade e mudanças rápidas
e infrutíferas de senhores. Mas ainda assim nada disso encontrou
nenhum cronista. Ninguém respondeu ao chamado para escrever o
grande romance sobre ajovem empregada.
Não surpreende que uma crioula seria a culpada de confundir ocio
sidade com resistência, de exaltar a luta pela mera sobrevivência, de
confundir atos mesquinhos com insurreição, de imaginar que uma fi
gura menor podería ser capaz de fazer qualquer merda dotada de sig
nificado, de tomar a preguiça e a ineficiência por uma greve geral, de
reformular o roubo como uma espécie de socialismo barato praticado
por jovens soltas demais e mulheres questionáveis ou de considerar
idéias loucas como pensamentos radicais. No mínimo,o caso de Esther

246
Brown fornece outro exemplo da tendência ao exagero e ao excesso co
mum à raça(e mais uma prova do pensamento fantasioso que confunde
vadiagem e fuga do trabalho com um exemplo de protesto e que con
sidera um bando de jovens negras descansando como uma assembléia
radical). Ninguém se lembra da noite em que ela e as amigas se diverti
ram maravilhosamente na Street, viraram o Edmond’s Cellar de
cabeça para baixo e fizeram um barulho tão bonito durante o levante
que seus gritos soaram como uma música improvisada, de forma que
mesmo os jornalistas desafinados do New York Times descreveram os
10
clamores negros de mulheres desordeiras como um coro dejazz.

Esther Brown odiava trabalhar, odiava as condições de trabalho tan


to quanto a própria ideia de trabalho.^^ Seus motivos para se demitir
afirmavam isso. Trabalho doméstico: pouco dinheiro. Lavar roupas:
pesado demais, não. Trabalho doméstico geral: cansada do trabalho.
Pregar botões em camisas:cansada do trabalho. Lavar louça:cansada
do trabalho.Trabalho doméstico:homem muito mal-humorado.Morar
no serviço: eu seria como uma escrava.
Aos quinze, quando Esther deixou a escola, ela experimentou a
violência endêmica do trabalho doméstico e se cansou rápido da de
manda de cuidar de outros que não se importavam com ela. Esther va
gava pelas ruas porque em nenhum outro lugar do mundo havia algo
para ela. Ficava pelas ruas para tentar escapar do sufoco do aparta
mento pequeno de sua mãe,que era lotado de inquihnos, homens que
ocupavam espaço demais e que eram ligeiros com as mãos, homens
12
que podiam molestar uma menina e então pedi-la em casamento.
Ela andou por aí e se divertiu por alguns anos, mas só porque gosta
va de fazer isso. Esther nunca se deitava com um homem apenas por
dinheiro. Ela não era nenhuma prostituta. Depois da decepção de um
casamento breve com um homem que não era o pai de seu menino(ele
tinha se oferecido para se casar com ela, mas ela recusou a proposta),
foi morar com a irmã e a avó, que a ajudaram a criar seu filho. Ela
tinha vários amantes,aos quais era ligada pela necessidade e pelo de
sejo,*® e não pela lei.

247
o único luxo de Esther era a ociosidade,e ela gostava de dizer para
as amigas:“Se você levanta cansada de manhã,volta pra cama e vai pro
teatro de noite”. Com o apoio da irmã e da avó e com a ajuda de ami
gos, amantes, namorados e consortes, Esther não precisava trabalhar
regularmente.Ela pegava uma diária quando estava no aperto 6 aguen
tava seis semanas de “Sim,senhora, pode deixar” quando coagida pela
necessidade. Ela de fato estava indo bem e quase aperfeiçoando a arte
de sobreviver sem ter de esfregar e se curvar. Odiava ser empregada,
como qualquer trabalhadora doméstica.O serviço carregava o estigma
da escravidão;^'^jovens brancas procuravam evitá-lo pela mesma razão
era trabalho de preto, o tipo de trabalho pesado e não especializado
que ninguém mais queria, o tipo de trabalho que tomava a pessoa por
inteiro, não apenas seu tempo de trabalho, mas seu tempo de vida. A
empregada da casa — a figura onipresente da mãe cativa ® era com-
pelida a ser a amiga, a enfermeira, a confidente, a babá e aquela que
esquentava a cama. O insulto era que se esperava que ela fosse grata,
como
se cozinhar e esfregar fossem a rotina de tocar piano da mulher
de cor,i® como se seus únicos talentos fossem a habilidade de “lavar e
passar até os dedos sangrarem e arderem” e a devoção sacrificatória.^^
Se os seus patrões suspeitassem de que quanto melhor a empregada,
mais severo era seu ódio da patroa, Esther não teria sido “encarregada
de cuidar de seus preciosos queridinhos”.^®
Por que ela deveria trabalhar em uma cozinha ou na lavanderia
para sobreviver? Por que deveria se matar de trabalhar? Ela prefe
ria andar pelas largas avenidas do Harlem a ficar em casa encarando
aquelas quatro paredes, gostava de se perder nos cabarés e nos cine-
mas. As ruas ofereciam uma exibição de talentos e ambições. Uma co
reografia cotidiana do possível se desdobrava no movimento coletivo,
que não tinha controle e se espalhava por todos os lados, andarilhos
à deriva em massa,como um enxame ou a ondulação de um oceano;
era um longo poema sobre a fome e a luta negras.“ Era a debandada
desenfreada do serviço doméstico por parte de quem[podia]lutar oufu
gir?^ Era uma forma de andar que ameaçava desestruturar a cidade,
reaver o corpo,quebrar todas asjanelas. As pessoas que caminhavam
lentas pelo quarteirão, davam um tempo nas esquinas e se reuniam

248
nos degraus de entrada dos prédios representavam uma assembléia
dos miseráveis e visionários, dos indolentes e dos perigosos. Todas as
modalidades cantam uma parte nesse coro,“^^ e os refrões eram infinita
mente variáveis. O ritmo e as passadas anunciavam as possibilidades,
ainda que muitas fossem passageiras e várias vezes não realizadas. O
mapa daquilo que poderia ser^^ não se restringia literalmente ao ras
tro das pegadas de Esther nem de mais ninguém, e esse movimento
desregulado encorajava a crença de que algo grandioso poderia acon
tecer apesar de tudo o que se sabia, apesar da ruína e dos obstáculos.
Aquilo que poderia ser era imprevisto, e a improvisação era a arte
de lidar com o acaso e com o acidente. O caminho dela era errante
24
pelo coração do Harlem em busca de uma cidade aberta, Vouverture^
dentro do gueto. Vagar à deriva era a forma como Esther se engajava
com o mundo, a forma como ela o compreendia; esse repertório de
práticas compunha seu conhecimento.Seus pensamentos eram indis
nessa
tinguíveis da fuga e do tráfego transitórios das pessoas negras
cidade-dentro-da-cidade. Tal fluxo a todos conduzia,impulsionando
e encorajando-os a seguir adiante.
Enquanto Esther perambulava pelas ruas, milhares de idéias de
quem ela poderia ser e do que poderia fazer passavam por sua cabeça,
mas ela não sabia ao certo o que fazer com elas. Seus pensamentos
eram incompletos, fragmentados, loucos. Como poderíam se tornar
um esquema para algo melhor era incerto. Esther era tremendamen
te inteligente. Ela tinha um rosto alegre e alerta e olhos penetrantes
que anunciavam seu interesse pelo mundo.Isso,somado a um orgulho
notável, fazia a jovem de dezessete anos parecer substancial, dota
da de uma força toda dela. Mesmo as professoras brancas na escola
de treinamento, que desgòstavam dela e se mostravam relutantes em
conceder a umajovem de cor qualquer tipo de elogio imerecido,reco
nheciam que ela era muito esperta,embora irritável, por ser orgulho
sa demais. Esther insistia em não ser tratada de forma diferente das
jovens brancas, então diziam que ela se comportava mal. O problema
não era sua capacidade; era sua atitude. A violência que ela experi
mentou na Hudson Training School for Girls a ensinou a revidar, a
atacar.^ As professoras disseram às autoridades que Esther tinha li-

249
berdade demais. Isso a teria arruinado, transformara Esther no tipo
dejovem que não hesitaria em acabar com tudo?^ A liberdade em suas
mãos,se não um crime,era uma ofensa e ameaçava a ordem pública e
a decência moral. A liberdade em excesso estragara Esther. E a assis
tência social concordou:“Na ausência de considerações sociais para
í ; restringi-la, ela era ingovernável”.

Esther Brown desejava um outro mundo. Ela ansiava por mais, por
algo diferente, algo melhor. Ela tinha fome de beleza. Em seu caso.
a estética não era um reino separado e distinto dos desafios cotidia
nos de sobrevivência; pelo contrário,a ideia era fazer da subsistência
uma arte.Ela não tentou criar um poema,uma canção ou uma pintura.
O que ela criou foi Esther Brown.Essa era a oferta, um pouco de arte
que não podia partir de ninguém mais. Ela iria lapidar e aperfeiçoar essa
arte. Ela celebraria ofato de que todos os dias algo tentava matá-la e
falhava?^ Ela construiría uma vida bela. E o que é a beleza senão “a
intensa sensação de sermos atraídos pela animadora força da vida?”.
Ou o desejo de “relacionar as coisas [...] com uma urgência tal,como se
a vida de alguém dependesse disso”?^» Ou o amor das pessoas negras
comuns? Ou a capacidade de transformar o quefazemos e cowofazemos
em sustento e escudo? Que pessoa negra não sabe que alguns versos de
uma canção podem ser capazes de alimentar a fome de viver, podem
ser o conhecimento libertário que nos conduz para fora da clausura?
Que nos ressuscita ou nos mata pela segunda vez. Quem podería não
compreender a busca por uma saída, o habitar a brecha do refúgio* e
■i' I
I nl .
o escapar de uma vida imposta como qualquer outra coisa, qualquer
outra coisa senão belezcfí
Aos olhos do mundo, os pensamentos loucos de Esther, seus so-
nhos por algo diferente, um outro lugar, seu desejo de fugir da labu
ta, muito provavelmente levariam ao tumulto e ao levante, à franca
rebelião. Esther não precisava de um marido, de um pai ou de um

* Referência à obra Incidentes na vida de uma menina escrava (-iSSi), por Harniet
Ann Jacobs.

250
patrão para lhe dizer o que fazer. Mas umajovem que pulava de em
prego em emprego e de amante em amante era considerada imoral
e passível de se tornar uma ameaça à ordem social, um perigo para
a sociedade. Foi o que o detetive da polícia alegou quando prendeu
Esther e suas amigas.

O que a lei apontava como crime eram os modos de vida elaborados pelas
5
jovens negras na cidade.Os modos de intimidade e afiliaçào criados,a
recusa ao trabalho,asformas cotidianas de se reunir e de estarjunto,as
práticas de subsistência e de se virar como podiam se encontravam sob
vigilância e eram visadas não apenas pela polícia, mas também pelos
sociólogos e reformadores,que reuniam informações e montavam um
caso contra elas,forjando suas vidas como biografias trágicas de crime
e patologia. A subsistência—a arte de sobreviver e superar—exigia
o esforço contínuo de viver em um contexto no qual a privação era
garantida e o trabalho doméstico ou o serviço geral definiam as únicas
oportunidades disponíveis parajovens e mulheres negras. Os atos da
rebeldia—os pensamentos loucos,os sonhos imprudentes,os protestos
intermináveis,as greves espontâneas,o comportamento indisciplinado,
a não participação, a teimosia e a recusa audaciosa — redistribm'am
o peso da necessidade e do desejo e buscavam uma linha de fuga da
dívida e do dever na tentativa de criar um caminho em outro lugar. 1 í

A mera sobrevivência era uma façanha^ em um contexto tão bru


tal. Como uma pessoa poderia melhorar de vida ou falar de suas po
tencialidades quando se encontrava confinada no gueto, quando era
sujeitada diariamente a agressões e insultos racistas, quando era
conscrita à servidão? Como posso viver? Era uma pergunta com a
qual Esther lidava dia após dia. A sobrevivência demandava atos de
colaboração e habilidade,a antecipação do imprevisto. A imaginação
de Esther se voltava à direção do esclarecimento da vida — “aquilo
que sustentaria e melhoraria a vida material,algo que envolvesse mais
do que a reprodução da existência física”.*^ A mutualidade e a criati
vidade necessárias para sustentar a vida num contexto de salários in
termitentes,empobrecimento controlado,exclusão econômica,coer-

251

L.
ção e violência antinegro com frequência beiravam a ilegalidade e o
crime. Os belos e rebeldes experimentos de Esther implicavam uma
“franca rebelião” contra o mundo.

Fazia dois dias que ela trabalhava em uma casa em Long Island, onde
também dormia,quando decidiu voltar ao Harlem para ver o filho e se
divertir um pouco.Era verão e o Harlem estava animado.Esther visitou
o filho e a avó, masficou na casa de sua amiga Josephine,onde sempre
havia bebedeiras e farras. Esther planejara voltar ao trabalho no dia
seguinte, mas um dia se estendeu por vários. As pessoas costumavam
perder a noção do tempo na casa de Josephine.O prédio ficava no olho
do furacão,perto da Fifth Avenue,nas quadras do Harlem submetidas
a batidas policiais frequentes^^ e repletas de cortiços apinhados, que
ofereciam refúgio para domésticas em fuga ejovens negras obstinadas;
com umas oito ou dez pessoas amontoadas em dois cômodos, elas se
reumam e formavam comunidades temporárias,juntavam seus parcos
recursos e compartilhavam sonhos.Ela estavajogando cartas quando
Rebecca chegou com Krause,que disse que gostaria de apresentar um
amigo para Esther.Ela não estava a fim de sair, mas eles continuaram
insistindo,e Josephine a encorajou a dar uma chance para o encontro.
Por que não se divertir um pouco?
Vamos dar uma volta?, Brady perguntou. Rebecca deu uma olhada
nele. Para Esther, tanto fazia. Um sorriso e a promessa de certa di
versão era todo o encorajamento de que Rebecca precisava. Krause
iria para qualquer lugar desde que pudesse beber. Rebecca segurou o
braço de Brady e os outros foram atrás,sem rumo,mas determinados
a se divertir. Se um homem piscasse para Rebecca, elajá se alvoroça
va toda. O desejo fluido dela não se concentrava em ninguém. Tanto
quanto Esther,talvez mais, ela apreciava companhia. Quando estava
na escola, as professoras com frequência a surpreendiam escondida
em um armário ou corredor, agarrada,aos beijos com algum menino.
Ela esteve “por aí” desde os catorze ou quinze anos. Outros poderíam
tê-la chamado de “cocote”,*® pois ela aceitava presentes de seus ami
gos.Todas as garotas aceitavam. Dificilmente ela pedia dinheiro,em-

252
bora nào houvesse nenhuma separação clara entre o desejo e a neces
sidade.^ O sexo não estava apartado da necessidade de viver, comer,
ter um teto em cima da cabeça e roupas para você e sua criança; isso
explicava por que os nomes dos amantes, maridos e pais não eram os
mesmos. Acima de tudo, Rebecca adorava ir ao cinema e ao teatro, e
seus amigos sustentavam tais prazeres. Ela havia se mudado para a
casa de Josephine depois que seu homem, Dink, a pegou no cinema
com outro. Ele a repreendeu, mas ainda assim declarou seu amor,di
zendo que se Rebecca andasse na linha, ele se casaria com ela.®® Mas
ela não fazia o tipo de mulher Ele me bate também, masfazer o quê?Ah,
como eu amo o meu homem.*^^ Ela não era de ninguém.Assim que pôde
pegar suas coisas, Rebecca deixou o apartamento alugado onde eles
moraram juntos nos últimos seis meses e caminhou algumas quadras
pela Madison Avenue,rumo à casa de Josephine.
Brady não queria ir para a casa de Josephine,e disse que qualquer
outro lugar serviria. O corredor de um cortiço era tão bom quanto
com
qualquer sala de estar. Na passagem escura, Brady se agarrava
Rebecca,enquanto seu amigo tentava se entrosar com Esther. Krause
pediu a Brady cinquenta centavos para comprar bebidas. Foi quando
Brady disse que era policial. Krause saiu em disparada, como se sou
besse o que estava por vir assim que o homem abriu a boca. Ele teria
conseguido escapar se Brady não tivesse atirado em seu pé.
Na delegacia, o detetive Brady acusou Krause de escravidão bran
ca (tráfico de mulheres ou meninas com os propósitos de prostitui
ção ou libertinagem) e Esther e Rebecca por violação da Tenement
House Law [Lei de Cortiços]. Sob essa acusação, elas foram levadas
da delegacia para a Vara de Mulheres, no Tribunal Jefíerson Market.
Por contarem então com dezessete anos e nenhum crime precedente,
foram enviadas para o Empire Friendly Shelter, onde aguardaram o
julgamento, em vez de ser confinadas nas celas de prisão adjacentes
ao tribunal. No abrigo, elas fizeram farra, dançaram de forma obsce
na,xingaram outras garotas,gritaram dasjanelas para as pessoas que

* No opiginal, He beaüs me too, what can I do? Oh my man I love him so.Como a autora
aponta em nota,letra de “My Man”, performada por Billie Holiday.

253
passavam, brincaram com o pessoal, notando virtudes e defeitos de
estranhos, censurando aqueles que ousavam parecer ofendidos.

— Onde você vai toda emperíquitada desse jeito?


— Você aí, você aí, aqui não é a Virgínia para você andar por aí que
nem uma caipira com essas botinas.
— Negrinho ordinário.
— Aquela ali se vende por qualquer moeda.
— Ei, docinho,vem cá brincar comigo.
— Àquela vadia metida acha que é bonita.
— Tá olhando o quê?
— Ei, papai,eu podia fazer um estrago em você.

Esther era considerada a pior entre as duas. Mãe solteira, era


tida como uma fora da lei, uma pária por ter procriado fora do ca
samento e trazido ao mundo um bastardo sem sobrenome.Seus pais
haviam dado um exemplo melhor para ela. Tinham se casado, mas
após a morte de seu pai, a mãe e a avó foram forçadas a trabalhar
como domésticas e a residirem no emprego, de forma que ela e a
irmã foram mandadas para o Abrigo de Órfãos de Cor,onde ficaram
quatro anos. Existiam regras e códigos que regulavam as condições
sob as quais as crianças deviam ser concebidas, e ela os tinha viola
do.^’' Esther havia se jogado fora” e dado à luz uma criatura fruto
' do acaso. A gravidez podia ser considerada um delito de status. A
iicgligência materna ou a tutela imprópria eram as formas mais fá
ceis de montar uma acusação” na Sociedade para a Prevenção da
Crueldade contra as Crianças, e a proteção era a rota mais curta
para o reformatório e a prisão.
Uma semana de observação da conduta bárbara de Esther e Re-
becca foi suficiente para convencer a pessoa responsável pela assis
tência social, uma figura declaradamente socialista, de que as duas
jovens deveriam ser enviadas para longe a fim de serem salvas de uma
vida nas ruas. Elas estavam aguardando para comparecer ao julga
mento quando Krause mandou avisar que estava livre. O detetive não
aparecera no tribunal, então as acusações contra ele foram retiradas.

254
Esther e Rebecca nào teriam tanta sorte. Era difícil chamar de au
diência os procedimentos precipitados e a indiferença rotineira da
Vara de Mulheres,pois a corte não contava com um júri, nào produzia
nenhum registro escrito dos eventos, nào exigia nenhuma evidência
a nào ser a palavra do policial, e falhava em considerar as intenções da
acusada ou mesmo a existência de um ato criminoso.“i4 probabilidade
de criminalidadefutura, e não a violação da lei, foi o que determinou
a sentença delas. O magistrado mal olhou para as duas jovens de cor
antes de sentenciá-las a três anos no reformatório.

Até a noite de 17 dejulho de 1917, Esther Brown tivera sorte e conse


guira se esquivar da polícia, embora estivesse na sua mira o tempo
todo. O Harlem fervia de oíiciais da polícia de costumes, detetives
à paisana e bons samaritanos,todos determinados a manter jovens
negras longe das ruas, ainda que isso significasse prender uma por
uma.Fazer muito barulho ou ficar à toa no corredor do prédio ou nos
degraus da entrada eram violações da lei; marcar um encontro com
alguém que você conheceu num clube,transar casualmente ou correr
na ruaS9 eram práticas consideradas prostituição. A mera disposição de
se divertir um pouco ao lado de um estranho era evidência suficiente
de transgressão. O tribunal e a polícia discerniam nesse exercício
da vontade “um esforço de transformar a própria existência”,'*® de se
opor ou desafiar as normas da ordem social, e antecipava que esse
descumprimento e essa desobediência facilmente dariam lugar ao
crime.“O histórico de desobediência”,^^ encenado em cada gesto e
reivindicado na maneira como Esther se movimentava pelo mundo,
anunciava sua disposição de “se arruinar ao se opor àquilo que é ins
tituído como certo pela lei”.
A única forma de contrariar a pressuposição de criminalidade e
garantir a inocência era se comportar de forma impecável. Esther
falhou nisso, como muitas outras jovens que passaram pelo tribu
nal. Elas erraram em não se dar conta de que a disposição ou incli
nação para se divertir era uma evidência suficiente para culpá-las de
prostituição. Não importava que Esther não tivesse abordado Krau-

255
se, nem pedido ou aceitado qualquer quantia. Ela se considerava
inocente, mas a Vara de Mulheres julgava o contrário. A incapaci
dade de Esther de prestar contas para explicar ou justificar a forma
como vivia, ou corrigir suas falhas e desvios, estava entre os delitos
impostos contra ela. Esther prontamente admitiu que odiava tra
balhar, sem se preocupar em fazer distinções entre as condições de
trabalho disponíveis para ela e algum ideal de trabalho que nem ela
nem qualquer outra pessoa conhecida jamais havia experimentado.
Ela foi condenada porque estava desempregada e “levando a vida de
uma prostituta”."^^ Era possível levar a vida de uma prostituta sem
realmente ser uma.
Sem nenhuma prova de vínculo empregatício, Esther foi indicia
da por vadiagem sob a Tenement House Law. A vadiagem era uma
categoria ampla e praticamente universal; como a maneira de andar
em Ferguson, era uma acusação onipresente, que facilitava a prisão
e a acusação de jovens pela polícia sem evidência de crime ou infra
ção da lei. Nas décadas de 1910 e 1920, as leis de vadiagem foram
aplicadas sobretudo para acusar jovens de prostituição.^ E ser acu
sada era ser condenada, pois quase oitenta por cento daquelas que
se apresentavam diante do magistrado eram sentenciadas a cumprir
pena;em alguns anos,a taxa de condenação'^® chegou a 89 por cento.
E não importava se era o seu primeiro encontro com a lei. As leis de
vadiagem e a Tenement House Law tornavam as jovens negras vul
neráveis à prisão. Não importava o que você tinha feito, mas sim o
poder profético que a polícia tinha de prever o futuro'^ e de antever
a foto da ficha policial nos olhos brilhantes e no rosto inteligente de
Esther Brown.

O primeiro estatuto de vadiagem foi aprovado na Inglaterra em 1394.


A escassez de mão de obra que se seguiu à peste negra inspirou o es-
tatuto. Seu objetivo era claro: conscrever aqueles que se recusavam a
trabalhar.47 As leis de vadiagem inglesas foram adotadas nas colônias
da América do Norte e dotadas de nova força e alcance após a Emanci
pação e o término da Reconstrução.Essas leis substitmram os Códigos

256
Negros,* que tinham sido considerados inconstitucionais. As leis de
vadiagem reviveram a servidão involuntária sob disfarces favoráveis
aos princípios de liberdade e igualdade.
No Sul, essas leis substituíram a escravidão,forçando ex-escravi-
zados a permanecerem nas plantations e restringindo radicalmente
seus movimentos. No Norte, os mesmos estatutos se destinavam
a obrigar pessoas desocupadas a trabalharem, e, mais importante, a
controlar os despossuídos ao negar-lhes o direito de subsistir e esca
par ao contrato. Aqueles que não tinham prova de vínculo emprega-
tício eram considerados propensos a praticar ou a se envolver com o
vício e o crime. Os estatutos de vadiagem forneciam meios legais de
dominar os recém-libertos. As origens do trabalho forçado e da casa
de correção podem ser traçadas desde esses esforços para obrigar
aqueles relutantes ao trabalho, para administrar e regular o ex-servo
e o ex-escravizado quando a senhoria e a servidão assumiram uma
forma mais indireta.
A vadiagem era um status, não um crime. Era o não fazer, a nega
ção, a não participação, a recusa em se estabelecer ou em se prender
por contrato a um empregador (ou marido). O direito consuetudi-
nário definia o vadio como um “indivíduo que perambula sem meios
visíveis de sustento”."^ William Blackstone, em seu Commentaries on
theLaw ofEngland[Comentários sobre as leis da Inglaterra] de 1765,
definiu os vadios como aqueles que “fazem vigília à noite e repousam
durante o dia, se refugiam em tabernas e cervejarias e são dados à
ociosidade; e nenhum homem sabe de onde vieram nem para onde
vão”.*^® Os estatutos miravam naqueles que possuíam noções libertá
rias excessivas e imaginavam que a liberdade incluía o direito de não
trabalhar. Em suma, os vadios eram os desarraigados — migrantes,
andarilhos,fugitivos, deslocados e estranhos.
Os delitos de status foram cruciais para que se refizesse uma or
dem racista no encalço da Emancipação, e aceleraram a crescen-

* Em inglês, Black Codas,um cor\junto de leis, promulgadas entre 1865 e i866,que


restringiam liberdades e direitos civis de pessoas negras com o objetivo de assegurar
a supremacia branca após a Abolição nos Estados Unidos.

257
te disparidade entre as taxas de encarceramento de pessoas negras
e brancas nas cidades nortistas no início do século 20. Enquanto a
transformação legal de escravidão em liberdade é com frequência
narrada como a mudança do status para a raça, da propriedade para
o sujeito, do escravo para o negro, os estatutos de vadiagem tornam
aparentes as continuidades e os enredamentos entre uma ampla gama
de estados não livres — de escrava a empregada, de empregada a va
dia, de doméstica a prisioneira, de desocupada a condenada e crimi
nosa.®® A servidão involuntária não era uma condição escravidão
por posse nem era algo fixado num tempo e espaço; em vez dis-
so.
era um modo continuamente cambiante de exploração, domínio,
acumulação(a dissolução da vontade,o roubo da capacidade, a apro
priação da vida)e confinamento.O racismo antinegro moldou funda
mentalmente o desenvolvimento da “criminalidade de status”. E, por
sua vez, a criminalidade de status foi atrelada de forma inexorável à
negritude.

Esther Brown foi confrontada com uma escolha que não era de jeito
nenhum uma escolha:se voluntariar à servidão ou ser comandada pela
lei. Os estatutos de vadiagem foram implementados e expandidos para
recrutarjovens negras para o trabalho doméstico e ajustá-las em lares
apropriados—a maioria casas de famílias brancas,ou lares chefiados
por homens, que tivessem um ele de fato, não simplesmente alguém
que se passasse por marido ou que se vestisse como um homem, não
amantes que passavam por irmãs ou uma pretensa senhora amigada
com um inquilino, nem famílias compostas de três mulheres e uma
criança. Para as autoridades, os lares negros eram desajustados por
serem
casas maculadas pela promiscuidade e pela ilegalidade. O am-
biente doméstico era o lócus da prostituição e da criminalidade. Este
homem é seu marido? Onde está o pai do seu filho? Por que você deixa
sua filha sozinha? Tais perguntas,se não respondidas adequadamente,
poderíam condenar você ao asilo ou ao reformatório.O poder arbitrário
de discernir crimesfuturosconcedido à polícia teria um impacto enorme
na vida social negra e na construção de uma nova ordem racial.

258
*

A carta que seu ex-marido enviou não dizia se o artigo apareceu na


coluna local áoAmsterdamNews^ no “Resumo da Cidade de Nova York”
Chicago Defender,ou na seção de notícias da cidade no New York Herald,
apenas algumas linhas dedicadas ao quando,onde e como,apenas os
fatos frios e concretos. Não foi uma manchete pomposa e sensacionalista
como “Seda e brilho®^ são os culpados pela delinquência dasjovens no
Harlem” ou “Fascínio pela elegância colocajovem na cadeia” ou ainda
uma grande reportagem sobre a crise morale o pânico sexualfabricados
por comissões dedicadas ao vício e pelos reformadores urbanos.Se os
detalhes eram especialmente sórdidos, uma ou duas colunas podiam
ser dedicadas às particularidades da queda de umajovem.
Tudo o que seu ex-marido disse foi que “uma onda de tristeza e
sua
descrença” se abateu sobre ele enquanto tentava entender como
Esther, sua querida, acabou se envolvendo em tamanho problema.
Ele a encorajou a ser uma boa menina e prometeu cuidar dela quando
fosse solta, algo em que ele fracassou nos poucos meses em que vive
ram juntos como marido e esposa na casa da mãe dela. Agora que ja
era tarde demais,ele tentava ser sensato.
A carta foi escrita em um papel de carta do exército dos Estados
um
Unidos e era repleta de juras de amor, promessas sobre tentar ser
homem melhor e súplicas para que ela se esforçasse para melhorar.
Você não vai serfeliz, ele alertou, até[o seu] mundo louco acabar, Ele
esperava que Esther tivesse aprendido uma lição há muito perdida no
52
mundo louco da diversão e do prazer.
A avó e as irmãs de Esther não sabiam que ela tinha sido presa até
ver o nome dela no jornal. Elas não puderam acreditar. Aquilo não
era verdade. Não podia ser. Todo mundo no Harlem sabia que os ca-
guetes eram pagos para mentir.Todo mundo sabia que Krause estava
trabalhando para os guardas. Ele venderia a própria mãe por um dó
lar. Apareciam histórias nos jornais sobre os caguetes que acusavam
jovens e mulheres de meia-idade inocentes, às vezes para extorquir
dinheiro delas ou para serem pagos diretamente pela polícia.®® Além
disso, se havia alguém a quem culpar pelos problemas de Esther, sua

259
Hhiôhtfii of(íplumbus
OVERSEAS. SERVICE
ON ACTIVE SERVICE WITH
AMERICAN EXPEDÍTIONARY FORCES

A.P.O

DATE. J

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avó pensou, esse alguém era a mãe dela. Rose. Ela tinha ciúmes da
menina, principalmente pela atenção que Esther recebia por parte
dos inquilinos que alugavam quartos no seu apartamento. Rose vivia
com um deles como marido,embora a relação, para ser mais precisa,
estivesse fora dos limites da lei.
Quando Rose ouviu as notícias sobre a filha,aquilo em que acredi
tava se confirmou:a menina estava atrás de problemas.Umatempora
da no campo,sem suas perambulações pelas ruas, podería endireitar
Esther, ela confidenciou para a pessoa responsável pela assistência
social, direcionando o destino de sua filha. O que se passou por zelo
materno era uma longa lista de reclamações sobre o estilo de vida de
Esther. Rose disse para a oficial da condicional, uma mulher de cor
chamada srta. Grace Campbell, que a filha “mmca tinha trabalhado
mais do que seis semanas direto e só parava em um lugar por algu
mas semanas”.Esther simplesmente não conseguia se estabilizar nem
manter um emprego. Ela tinha um bom marido e o abandonara. Era
jovem e volúvel e não queria ficar presa a um marido,a um homem,a
qualquer homem.O que mais havia para dizer? Esther só queria fazer
as coisas do jeito dela.
Os vizinhos contaram uma história diferente. A mãe era quem de
via ser mandada embora dali. Todo mundo sabia que Rose Saunders se
relacionava com um dos homens que se alojavam no apartamento dela.
»54
“Que tipo de exemplo isso dá pra uma menina? Isso não é certo.
A carta da namorada de Esther não foi nada parecida com a do
marido. Não implorava que ela fosse uma boa menina, não suplicava
que deixasse aquele mundo louco para trás nem dizia a ela que andas
se no caminho certo, mas, em vez disso, lembrava Esther de todos
os prazeres que a esperavam quando ela recebesse os documentos de
soltura, o amor de Alice entre eles:

Minha querida menina^ escrevo algumaslinhaspara vocêsaber quetudo vai


bem. Você deve pensar que eufui uma tola por ir embora de Peekskill, mas
não aguentei o trabalho. Não estou acostumada a trabalhar tanto quando
estoufora de Bedford, e por quefazer isso quando não preciso?Fique onde
você está e espere» que vamos morarem Nova York quando vocêforsolta[...].

261
Você não vai acreditar, vou me casar mês que vem, não que eu goste muito
[dele], masporproteção. Estive em Nova York no domingo e vi um monte de
amigos efiqueisabendo de todo o escândalo e então alguns[...]. Nova York
égrande, tem muita coisafina & tudo o que você quiser, então se anima,
que tempos bons te esperam. Então, encerro com o mesmo amor de sempre e
desejando tudo de bom para você.^

Algumas semanas após a soltura de Esther, ela e Alice se reconec-


taram com sua amiga, Harriet Powell. As duas ficaram na casa dela
até conseguirem encontrar um lugar só para si. A mãe de Harriet
recebeu bem as duas meninas, sem se importar que uma delas fosse
branca. Passaram um tempo muito divertido na cidade, recompen
saram
os 25 meses roubados, dançaram até quase amanhecer,foram
ao teatro e ao cinema,comeram em restaurantes chineses e andaram
na companhia de quem bem entendessem, pelo menos até a oficial
da condicional encontrá-las. “As duas eram muito soltas e nenhuma
prestava, a srta. Murphy disse para suas empregadoras no hotel do
centro da cidade, certificando-se de que a camareira-chefe soubesse
exatamente o tipo dejovens que elas eram. Ela iniciou seu depoimen
to com a palavra perigosas.

Pouco menos de dois séculos depois da conspiração que eclodiu em um


^ botequim dessegregado chamado Hughsorfs Tavern e que tinha por fim
queimar Nova York,a elite governante da cidade ainda vivia com medo de
assembléias negras e da ameaça de revolta.O Estado estava igualmente
empenhado em prevenir os perigos e as consequências representados
por um grupo de negros reunidos de maneira desordeira. No século 18,
escravizados e negros livres que se reunissem em assembléias ilegais
eram açoitados.Em 1731» uma lei chamada“Law for Regulating Negrões
& Slaves in Night Time”[Lei para a regulação de negros e escravos no
período noturno] proibia negros, mulatos ou indígenas escravizados
maiores de catorze anos de andar à noite sem uma lamparina ou vela
acesa, de forma que pudessem ser vistos nitidamente. Mais de três
pessoas escravizadas não podiam se reunir, sob pena de levarem até

262
quarenta chicotadas.Por “jogar ou fazer qualquer tipo de agitação ou
barulho desordeiro”,a pena era vinte chicotadas.s7 Qualquer encontro
social fornecia a oportunidade para uma possível conspiração.
No século 20, o movimento desregulado e a assembléia de pessoas
negras continuaram a ser questões de segurança pública. Reuniões
muito barulhentas, desordenadas ou queer — ou locais como hotéis
e cabarés que recebiam fregueses negros e brancos; botequins desse-
gregados frequentados por chineses e jovens brancas, mulheres ne
gras com seus amantes italianos ou mulheres que preferiam dançar
umas com as outras — eram consideradas desordeiras, promíscuas e
moralmente depravadas. Essas formas de livre associação e de gran
des reuniões ameaçavam o bem público, pois transgrediam a linha de
cor e se abstinham dos costumes dominantes. A elite governante, ao
mirar nessa sociabilidade promíscua,fabricou um pânico moral para
justificar o emprego extravagante da força policial.
Cidadãos ricos por bens particulares, dotados de autoridade es
tatal e que conduziam a polícia, organizaram o Comitê dos Catorze
(uma comissão de costumes composta de nova-iorquinos abastados
e reformadores) e chefiavam o Conselho Estadual de Caridades®® e
a Comissão Penitenciária Estadual. Um dos objetivos centrais, além
de dominar os trabalhadores, era impor a segregação racial diante
da inexistência de um decreto legislativo estadual ou municipal. A
segregação era vista como uma maneira de manter a saúde e a mo
ralidade do corpo social e o poder de polícia era crucial para o alcan
ce desse objetivo. Em termos mais gerais, o poder de polícia dota o
Estado da capacidade de regular comportamentos e reforça a ordem
a serviço do bem público. Policiar a negritude era considerado bási
co para garantir a saúde do corpo social e minimizar os perigos. Aos
olhos da elite governante da cidade,a segregação racial era sinônimo
de bem público,e a imposição da linha de cor, umaforma de controlar
o crime, direcionando a prostituição, asjogatinas,as drogas e outros
vícios para as vizinhanças negras e contendo tudo em seu interior.
Em 1912, o Comitê dos Catorze se recusou a conceder uma licen
ça de venda de bebidas alcoólicas para o Marshall Hotel, um local
de encontro de intelectuais progressistas, artistas e músicos. Paul

263
Laurence Dunbar morava no hotel. W. E. B. Du Bois, Mary White
Ovington e outros membros da naacp se reuniam lá para conversar,
beber e planejar a dissolução da linha de cor. Uma carta de Du Bois
que declarava o hotel como um lugar de conferências respeitável e
que assegurava ao comitê que não havia nada de ilegal ou inadequa
do nos encontros e nas reuniões inter-raciais que aconteciam ali não
foi suficiente para persuadir o comitê. O Marshall Hotel era um dos
poucos estabelecimentos decentes na cidade que recebiam ou tolera
vam uma clientela mista. Du Bois não foi capaz de convencer o comi
tê de que o Marshall Hotel não era um refúgio para os degenerados.
A intimidade inter-racial e a amizade para além da linha de cor
não a prostituição — eram os problemas que mais preocupavam o
comitê. Conforme o secretário executivo, Frederick Whitten, ex-
plicou em sua resposta: o Marshall Hotel encorajava “a lamentável
mistura de raças, a qual, quando os indivíduos pertencem às classes
mais humildes, sempre significa perigo”. Quando Du Bois se opôs a
essa defesa moral da linha de cor, especialmente por violar as leis de
direitos civis do estado de Nova York, o secretário apenas afirmou o
posicionamento do comitê: “Se julgamos que a associação das duas
raças sob determinadas circunstâncias resulta em condições desorde
nadas e que sua separação resulta na discriminação baseada em raça
ou cor, devemos escolher uma ou outra face do dilema [...]. A desordem
épior que a discriminação”P

A Tenement House Law foi o principal instrumento legal empregado


na vigilância e na prisão de jovens negras por vadiagem e prostitui
ção.®® O interior negro caiu inteiramente dentro do escopo da policia.
Policiais à paisana e investigadores particulares monitoravam a vida
privada e o espaço doméstico,concedendo poder legal à noção de que
o lar negro era o lócus do crime,da patologia e dos desvios sexuais. O
Tenement House Act(1901)foi elaborado por reformistas progressis
tas,amigos oficiais do negro,e por filhos e filhas de abolicionistas que
tinham a intenção de proteger os pobres e aliviar os efeitos brutais do
capitalismo com banheiros limpos,água quente,calefação e saídas de

264
incêndio.Desde o início,o esforço de proteger os moradores dos cortiços
de condições decrépitas e inabitáveis esteve intimamente vinculado à
erradicação do crime e dos vícios sociais. A lei tomou como certa a cri
minalidade entre os pobres e identificou o lar doente como incubadora
de crimes.®^ Intelectuais progressistas e reformistas acreditavam que os
males sociais emanavam do gueto,e não das condições estruturais da
pobreza,do desemprego,do racismo e do capitalismo. Enquanto a lei
fora designada para prevenir a superlotação—que era afonte prolífica
da imoralidade sexual .62 e para melhorar as condições habitacionais
dos mais pobres — insuficiência de ar e luz devido a vãos ou saídas de
ar estreitos demais,corredores escuros sem iluminação oujanelas,su
perlotação de edifícios em lotes,riscos de incêndio,falta de sanitários
e lavanderias individuais, superlotação e porões e pátios imundos ,
os benefícios e a proteção que a lei oferecia eram ofuscados pelo abuso
e o assédio que acompanhavam a presença policial dentro dos lares.
Além de ter feito pouco para melhorar as condições de moradia
das pessoas negras e pobres (com a aplicação irregular de códigos
habitacionais ou processos legais contra os proprietários), a lei con
solidou o significado de prostituição®* e vinculou a negritude à crimi
nalidade ao colocar a vida doméstica negra sob vigilância. O espec
tro da prostituição, antes atribuído ao influxo de imigrantes judeus,
agora se tornava um problema do negro.Em 1909,o Tenement House
Act foi emendado e revisado,ganhando uma série de artigos voltados
particularmente à erradicação da prostituição e com um entendimen
to do “vadio como um embrião de qualquer criminoso A lei definia
a vadiagem como:

Uma mulher que sabidamente reside em uma casa de prostituição ou


em um cortiço onde ocorram encontros amorosos de qualquer tipo; que
pratica prostituição ou expõe sua pessoa de forma indecente com o fim
de prostituição; que atrai qualquer homem ou menino para uma casa de
prostituição ou para um quarto de cortiço com o propósito de prostitui
ção,deve ser considerada vadias e após condenação deverá ser conduzi
da para a prisão do condado por um período de até seis meses,a contar
da data da condenação.

265
Qualquerjovem que morasse num cortiço e que convidasse um ho
mem para sua casa corria o risco de ser acusada de prostituição. A
Tenement House Law expandiu as provisões do Código Penal,trans
formando a vadiagem em uma categoria elástica, indiscriminada e
abrangente.
Em 1914, “a maioria das acusações de prostituição foram execu
tadas por meio da cláusula de vadiagem da Tenement House Law”.®®
Trinta e seis por cento das pessoas condenadas eram mulheres ne
gras.®® Elas representavam o maior grupo processado sob essa rubri
ca. Sob o pretexto da reforma habitacional, a polícia teve bastante
liberdade na vigilância e na prisão de mulheres negras e de morado
res de cortiços.®^ A maior parte das prisões foi justificada menos por
aquilo que tinha sido feito e mais pela suspeita de quem essas jovens
poderiam se tornar.
Em 1915» o código penal foi mais uma vez emendado para “simpli
ficar ou otimizar os requisitos probatórios, o que facilitou a prisão e
o processo dejovens sob suspeita de prostituição. Para assegurar uma
condenação,era necessário apenas o testemunho do policial. No esta
tuto anterior,era requerido um ato declarado de prostituição abor-
dagem ou transação monetária. Agora,apenas a disposição para fazer
sexo, o envolvimento em práticas “lascivas”®® ou a aparente probabi
lidade de fazê-lo eram suficientes para alguém sofrer um processo.
A maioria das mulheres condenadas por prostituição foi acusada de
vadiagem.
Batidas policiais de surpresa eram comuns. Em uma “batida sur
presa”, policiais à paisana, depois de terem identificado uma pessoa e
um lugar suspeitos, batiam na porta de uma residência particular e,
quando a porta era aberta, forçavam a entrada no local, ou seguiam
uma mulher que estivesse entrando em sua casa. Era comum ver as
portas de quartos e apartamentos alugados marcadas, quebradas e
pendendo das dobradiças apos oficiais de polícia entrarem nos lares a
69
força e sem mandado.
Em seu relatório anual, o Comitê dos Catorze endossou a batida
surpresa como uma resposta razoável à presença negra na cidade.
Geralmente uma batida policial sem mandado^® poderia ser um “pro-

266
cedimento perigoso” pois violava liberdades civis básicas, e o uso
irrestrito dessa prática provavelmente acarretaria a opressão poli
cial”, porém o Comitê entendeu que tais medidas eram justificadas.
Segundo a avaliação deles, a polícia exercia um bom julgamento na
condução de tais práticas, pois “as condições encontradas nas estân
cias invadidas justificam plenamente as ações tomadas”. Para quem
se encontrava sob vigilância policial, não havia diferença alguma en
tre um “bom julgamento” e a opressão policial.
Inquilinos negros eram policiados com mais intensidade e violên
como
cia do que seus vizinhos brancos, então não surpreende que,
resultado desses encontros regulares com a lei, os prédios nos quais
residiam contivessem mais “lares desajustados” e “pessoas desajus
tadas”. Os esforços conjuntos dos reformadores sociais e da pohcia
tiveram um efeito precipitado na formação do gueto negro, uma vez
que os senhorios de inquilinos negros eram mais passíveis de serem
processados por violações da Tenement House Law e multados em
até mil dólares. Isso contribuiu para a relutância dos senhorios bran
cos em alugar para pessoas negras,e ainda assim alugavam apenas as
piores e mais miseráveis habitações pelos valores mais exorbitantes.
Uma agenda policial ilustra a típica varredura de cortiços no Har-
lem e as prisões de rotina. Uma vez que a polícia entrava em um ap^-
tamento, qualquer pessoa que se encontrasse no local estava sujeita
à prisão. Billie Holiday foi presa em uma dessas varreduras, quando
mais de uma dúzia de mulheres foi presa em um raio de cinco quadras.
A ironia foi que a mãe de Holiday a havia hospedado na casa de Flo-
rence Johnson para manter a filha longe de ameaças e protegê-la do
perigo das ruas.
Mãe e filha foram presas, mas não revelaram sua relação para a
polícia por medo de que isso levasse a uma punição mais severa.
Mulheres eram presas na porta de casa e dentro de seus aparta
mentos, ao desembarcarem de táxis, flertarem em salões de dança ou
aguardarem o retorno do marido,ao voltarem para casa depois de uma
noite no cabaré na companhia das amigas, desfrutarem de um ato ín
timo com um amante, quando estavam no lugar errado e na hora erra
da.’^ Em suma,se umajovem negra encontrasse a polícia em qualquer

267
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lugar e a qualquer hora, ela estava em risco. Billie Holiday descreveu a
década de 1920 como uma época horrível por isso:“Eram dias terríveis.
Mulheres que nem a minha mãe, que trabalhavam como empregadas,
limpando prédios de escritórios, eram pegas na rua a caminho de casa
depois do trabalho e acusadas de prostituição. Se elas podiam pagar,
eram soltas. Se não podiam,iam parar no tribunal,onde valia a palavra
de algum guarda sujo e corrupto contra a delas”.’^

Em 1922,Trixie Smith gravou sua primeira música,“My Man Rocks Me


with One Steady RoU”[Meu homem me balança com um gingado firme]
para a gravadora Black Swan Records. A letra celebrava a liberdade
sexual da época em detalhes explícitos:

Meu homem me balança com um gingado firme


Quando quer, ele não larga a pegada
Eu olhei o relógio e o relógio batia a uma
Eu disse: vamos nos divertir, querido
Oh,ele me balança com um gingado firme”*^

Smith tinha acompanhado Fletcher Henderson em diversos es


tabelecimentos notáveis do Harlem e gravado com ele na Paramount
Records;tinha se apresentado na Broadway e estava no caminho cer
to para se tornar uma das cantoras de blues clássicas, quando um po
licial entrou em seu apartamento e a prendeu junto com sua amiga
Nettie Berry, uma artista de palco e atriz de cinema.O detetive vinha
observando Smith por várias semanas.Ele a encontrou pela primeira
vez em um cabaré no Harlem e então entrou na casa dela acompa
nhado por um conhecido, um informante pago, que o ajudava a “co
nhecer mulheres” e que apresentou os dois. O agente secreto voltou
uma semana depois. Nessa visita, ele pediu um copo de gim e então

* No original, My man rocks me, with one steady roll/There’s no slippiríwhen he wants
take ho/d// looked at the clock, and the clock struck one/1 said now,Daddy,ain’t we
got fün/ Oh, he was rockln’me, with one steady roii.

269
53^

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prendeu Trixie Smith e Nettie Berry. Smith foi acusada de alugar um


quarto com fins de prostituição e, Berry, de ser uma prostituta. As
duas crianças pequenas de Trixie Smith estavam em casa no momen-
to que o suposto ato fora cometido; nesse caso, o ato compreendia
a disposição de entreter o detetive à paisana e oferecer um drinque
para ele. As duas artistas foram acusadas no Tribunal Jefferson Mar-
ket nas primeiras horas da manhã.
A manchete publicada algumas semanas depois no Afro-Ameri-
can dizia: “Artistas de raça alegam incriminação policial”. Somente
os contratos exibidos pelo agente delas e a indignação da comunida
de diante do fato de que duas artistas distintas podiam ser tratadas
com tamanha injustiça resultaram na rejeição das acusações alegadas
contra as duas. Elas conseguiram “testemunhas para provar que am
bas exerciam suas profissões e guardavam uma reputação de mem-
bros respeitáveis da comunidade”.^^^

270
A prostituição era uma acusação empreendida com o fim de ex
trair informações, extorquir dinheiro, assediar e abusar, e de esta
belecer os limites daquilo que uma mulher negra podia fazer. O New
York Age e o Amsterdam News alertavam as mulheres sobre os perigos
representados por policiais corruptos e caguetes, aconselhando-as a
evitar encontros com estranhos. Conversar com homens na rua ou
convidá-los para sua casa representava um risco muito grande,assim
como aceitar encontros com estranhos. A ameaça de pimição não era
suficiente para evitar que jovens se associassem a“más companhias”
ou para desviá-las do mau caminho, mesmo se houvesse consequên
cias em jogo.

A sobrevida da escravidão se desdobrou no corredor de um cortiço e


pôs as mãos em Esther Brown.Ela e as amigas não se esqueciam nunca
de que a lei pretendia mantê-las em seu lugar, mas se recusavam a viver
a
de acordo com suas cláusulas e parênteses?^ O problema do crime era
ameaça representada^® pela presença negra nas cidades nortistas; o
os
problema do crime era o experimento louco de liberdade negra, e
esforços empreendidos para administrar e controlar essa crise for
neceram os meios de reprodução da ordem branco-sobre-negro que
definia o espaço urbano e a vida cotidiana. Com uma perversidade
incrível,a vigilância estatal e aforça policial agiram deforma a moldar
e regular a vida íntima. A violência estatal, a servidão involuntária,a
pobreza e o confinamento definiam o mundo que Esther Brown queria
destruir. E isso a transformou no tipo de garota que não hesitaria em
acabar com tudo.

271
A vida interrompida de Eva Perkins''

Era a primeira noite de agosto e a terceira seguida em que a tempera


tura atingia quase 38 graus. Fazia calor demais para dormir. Às onze
e meia, Eva Perkins caminhou até a 135*^ Street com a Lenox Avenue
e pegou o jantar de Aaron no café, três sanduíches e duas fatias de
torta. Sua rotina vinha sendo a mesma há quase um ano,a não ser pe
los dois dias em que ela estivera no hospital ao perder o bebê. Geral
mente, ela ia até o prédio onde Aaron trabalhava como ascensorista
durante a madrugada. De dia,todos os elevadores eram operados por
mulheres, mas a lei não permitia que elas trabalhassem no período
noturno. Às vezes, o ascensorista do prédio vizinho se juntava a eles
para jantar e conversar. Depois de uma ou duas horas, Eva voltava
para o apartamento deles. Quando Aaron terminava seu turno e che
gava em casa pela manhã, Eva já estava na fábrica, então desfruta
vam do jantar à meia-noite.
Era quase uma e meia da manhã quando Eva se colocou diante da
porta de seu apartamento. Ela segurava um sanduíche que havia so
brado em uma mão e as chaves na outra. No corredor, Eva notou a
presença de um homem que nunca vira ali no prédio.“Quer se divertir
S9 U
Não es-
um pouco?” o homem lhe perguntou.“Te dou dois dólares,
tou interessada”, ela respondeu e deixou por isso mesmo.Quando Eva
abriu a porta do apartamento,três detetives forçaram a entrada atrás
dela. Eles piscaram para o homem de cor e lhe disseram para sumir
dali antes que o acusassem de alguma coisa também.

273
“Diga onde Shine está.” Eva não sabia nada de Shine, apenas que
ele morava no andar de cima. Diziam os rumores que estava na França,
mas Eva não contou isso aos policiais.“Eu não sei de nada”,respondeu,
tentando explicar que havia acabado de voltar para casa depois de levar
o jantar para o marido. “Marido? Você não é casada”, um deles disse,
rindo na cara dela.“Você é só mais uma mulher do Kid Happy.” Será que
ele disse mulher ou algo pior?
Os detetives chamaram Aaron pelo seu nome de guerra, como se
fossem amigos dele em vez da lei que tinha acabado de invadir sua
casa para assediar e ameaçar sua mulher. Todo mundo conhecia Aa
ron porque ele havia lutado boxe na maioria dos clubes do Harlem e
em eventos beneficentes dos soldados e da Cruz Vermelha. O detetive
disse que conhecia Kid; então ladrou:“Vamos, pode ir falando”.“Não
sei nada do Shine”, Eva repetiu. Foi quando um deles disse: “Melhor
você vir conosco”. O outro riu e disse: “Enquadra ela na Tenement
House. Antes que a arrastassem para fora, Eva pediu para deixar um
bilhete a Aaron. Quando chegou em casa pela manhã,ele encontrou o
papel em cima da mesa.E tudo o que dizia era: Estou presa.
No Harlem, a polícia primeiro prendia e depois encontrava uma
desculpa. Após o levante de 1905 em San Juan Hill, o comissário deu
aos policiais um alerta severo: eles não podiam espancar negros sem
antes acusá-los de um crime; isso não caía bem. Agora,se decidissem
arrastar você até a delegacia ou te dar uma surra, eles acusavam você
de conduta desordeira, perturbação pública, tumulto ou com a Tene
ment House Law.Eva não sabia nada de Shine. Metade dos negros do
Harlem era Kid Alguém. Kid Happy. Kid Chocolate. Kid Midnight.
Quando não eram Kid, eram Sheik ou Shine. Era difícil saber se o
“crioulo mau” que a polícia procurava sequer existia; se era um ho
mem ou uma composição, um monstro para eles e um herói para nós;
ou se era uma figura que as pessoas de cor inventaram, apenas um
punhado de habilidades dotadas de um nome, um herói fodão de ta
lentos extraordinários, um Stagger Lee,* um filósofo de esquina, um

* Figura do imaginário afro-estadunidense,símbolo da persona do “homem mau,um


anti-herói que rendeu diversos blues, canções folclóricas e histórias.

274
trabalhador miraculoso que conseguiu se desvencilhar do domínio
dos brancos e escapar aos desastres cotidianos da linha de cor. Que
conseguiu desafiar um mundo incapaz de ver os negros como qual
quer outra coisa que não instrumentos do brilho — engraxe meus sa
patos, lave minhas roupas e me adore. Shine, o Brilho, era um mito
belo sobre um negro capaz de sobreviver a toda e qualquer coisa que
um homem branco colocasse em seu caminho,e ainda resistir à catás
trofe da vida na era Jim Crow.
Shine era o herói de milhares de baladas populares; o alter ego do
ex-homem de cor; o líder de uma República negra que nunca existirá;
ele era cada figurão do Harlem ou trabalhador dotado de um sonho;
era todo homem que queria mais e falhou.^ Você podia encontrá-lo em
quase todos os cortiços do Harlem. As histórias eclipsavam e sobre
pujavam qualquer pessoa ou mero mortal, então era difícil discernir
as mentiras da verdade,a fantasia dos fatos. Ele foi o úmco passagei
ro sobrevivente do Titanic? Ele ainda era um soldado na França ou
apenas um fugitivo em sua rota? Ele era um negro fugido do Harlem
ou um rebelde do gueto dotado com a dádiva de nove vidas?
E o que foi feito da mulher de Shine — sua parceira,sua amiga,sua
irmã, sua companheira? Shine, como Calibã, foi lançado na batalha
sem uma companhia feminina. A ausência mais significativa de todas
na dramaturgia da luta,® na estilhaçada história cósmica da vida negra,
no desenrolar da trama dos miseráveis, se abateu sobre essa mulher.
Estaria o filho nativo sempre acompanhado de uma filha nativa? Ou
não havia ninguém ao seu lado enquanto ele enfrentava o mundo? En
quanto o mundo o enfrentava? E eu não sou uma aliada e uma irmã?
Eu não estou aqui? Sou uma presença ausente?^ Se o texto do humano
foi escrito e reescrito contra ele, ela foi totalmente deixada de fora da
ordem de representação. Nem sujeito nem objeto, mas uma coisa muda
e silenciada, como uma metáfora impossível, uma baleia encalhada ou
uma forma ainda por ser nomeada. Sua maturidade tem sido indefim-
damente adiada. Que lugar houve para Eva nos assuntos do mito e da
imaginação? Poderíam a Chegada de Eva Perkins ou seu trágico eclipse
algum dia servir como uma alegoria da raça,como o conto representa
tivo da negritude? No drama entre o mundo e ele, ela desaparece, ela

275
I
cai no buraco negro; ela é o buraco negro, uma pessoa sem valor. Anô
nima, ela aguarda nos bastidores, mas sem um papel para interpretar,
a catalisadora do nada. O que ela tem a ver com as questões de vida e
morte? E o que dizer de seu desejo e coragem? Ou ela foi “reduzida a
não possuir nenhuma vontade e desejo, a não ser aqueles prescritos”°
pelo senhor e pela senhora ou coagidos por um amante?
Qual é o texto de sua insurgência? Ele também possuía o conheci
mento da liberdade as miraculosas e insondáveis formas de fugir
do domínio dos brancos? Como ela revidou e atacou? Ela também
tinha sobrevivido a mil mortes, então por que não existem baladas
populares sobre ela ou relatos exagerados de sua resistência?
Por que não existem histórias sobre a forma como ela abriu cami
nho sem ter saída? Seria seu destino ficar para sempre presa no remo
empobrecido do realismo, ou pior, confinada à imaginação socioló-

276
gica, capaz apenas de reconhecê-la como um problema? E,ainda que
na ausência de qualquer evidência de transgressão, sempre julgá-la
culpada? Sim,a culpa era sempre dela.
Ela não tinha nada a dizer sobre a forma como o mundo fazia uso
dela? Nenhuma forma de responder ao poder? Quanta raiva pode um
corpo conter antes de explodir? Que palavras duras ela foi forçada a
engolir ou quais maldições proferiu, quais orações sussurrou? A recu
sa, a não participação e a dissimulação® eram suas linicas formas de
lutar? Seria a aquiescência a máscara da retribuição e da destruição?
Vença-os com sinsesorrisos bem abertos[...] concorde com eles atéa morte
e a destruiçãoP “Sim,senhor”, até o inferno e de volta.
Eva odiava os policiais que invadiram sua casa e a prenderam sim
plesmente porque podiam fazer isso, porque Shine havia escapado
deles e ela podia ser levada em seu lugar. Na próxima, ela daria um
motivo.Em silêncio, acolheu o protesto e a queixa. Nenhuma respos
ta, nenhum impropério — nem mesmo um sussurro. Eva fez um voto
de silêncio.

277
1
Revolta e refrão

Os repórteres estavam mais interessados no que aconteceu com as


jovens brancas. Ruth Carter, Stella Kramer e Maizie Rice foram os
nomes que apareceram nosjornais.^ Ruth foi a primeira a relatar para
a Comissão Penitenciária Estadual as coisas terríveis que fizeram
com elas em Bedford Hills: eram algemadas nas celas de Rebecca Hall,
eram espancadas com mangueiras de borracha e algemadas em seus
catres, eram penduradas nas portas de suas celas com os pés quase
sem tocar o chão, recebiam o “tratamento da água fria” com o rosto
imerso a ponto de mal conseguirem respirar, eram isoladas por se
manas e meses, confinadas às celas do Prédio Disciplinar.^ As gros
sas portas duplas de madeira bloqueavam toda a luz, e a falta de ar
tornava insuportáveis o cheiro úmido da câmara escura, o fedor de
seus excrementos e dos corpos malcheirosos e sujos. O mau cheiro, a
privação sensorial e o isolamento tinham o propósito de arruiná-las,
ordenar a desordem,arrancar a obediência da anarquia.
Lá havia 265 detentas® e 21 bebês. A idade das jovens variava dos
catorze aos trinta anos,a maioria garotas da cidade exiladas no campo
para passarem por uma reforma moral. Elas vinham de cortiços abar
rotados no Lower East Side,'^ de Chinatown, do Tenderloin, do Har-
lem,e de tudo aquilo que esses distritos implicavam. Oitenta por cento
dasjovens em Bedford já havia sido sujeitada a algumaforma de puni
ção —confinadasem seu quarto por uma semana,nas celas de Rebecca
Hall® ou no Prédio Disciplinar. Mesmo a Comissão Penitenciária Esta-

279
dual foi forçada a reconhecer que essas eram punições cruéis além da
conta.® O lugar era um reformatório apenas no nome,e nào havia nada
de moderno ou terapêutico em suas medidas disciplinares.
O objetivo era a morte civil: a mortificação do eu,^ tudo o que uma
jovem tinha sido ou poderia ser se anulava ao passar pelos portões.
Os números designados substituíam seu nome, possuíam seu corpo
e indicavam a dominação do Estado. Na fotografia de identificação
encontrada nos autos, os números aparecem presos em um macacão
xadrezinho comum, transformando uma vida singular em um perfil
estatístico, prendendo-a uma segunda vez.
Os números impunham uma identidade e a definiam, separada
da família e dos amigos, sequestrada do mundo. presa no organismo
do Estado e vulnerável à violência gratuita. Seus gostos e desgostos,
suas habilidades e talentos não mais importavam: agora ela é um
agregado estatístico, membro de uma categoria social abstrata; ela é
uma detenta, uma prisioneira. Não há nenhum objeto de cena na foto-

280
grafia, apenas uma austera parede branca atrás dela. Ela olha para a
frente sem expressão,com um olhar severo,retendo tudo sem possuir
nada. Sua vida e seu trabalho agora pertencem ao reformatório. Seu
“antes” foi destruído quando a sra. Engle a conduziu pela entrada e
a escoltou até a recepção. Mesmo um século depois, ao repassar os
materiais reunidos nos autos e ler atentamente suas cartas,sou proi
bida de dizer o nome dela, menos para protegê-la e mais para garan
tir seu desaparecimento. O Estado nunca a libertou, mas reivindica
eternamente essa parte da vida dela como propriedade. A fotografia,
cujo objetivo é classificar, medir,identificar e diferenciar, não ofere
ce nenhuma pista da rebelião nem de seu papel nela, mas sou incapaz
de olhar para seu rosto sem antecipá-la, sem apurar os ouvidos para
ouvir sua música.
Quando perguntaram a uma supervisora se pendurar as jovens,
algemá-las, prendê-las aos catres e espancá-las com mangueiras
eram práticas abusivas,ela respondeu:“Se você não domá-las,se não
governá-las com mão de ferro, não dá pra viver com aquela gente .®
Quando lhe perguntaram por que ela deixou de mencionar tais puni
ções, a superintendente do reformatório, srta. Helen Cobb, respon
deu que não havia discutido sobre tais práticas por considerá-las “tra-
tamento,não punição”.®
As menores infrações incitavam a brutalidade: uma reclamação
sobre o jantar, uma caixa de artigos de papelaria encontrada embaixo
de um colchão, ou um bilhete passado para uma amiga de outro alo
jamento eram transgressões passíveis de punição como uma semana
de isolamento dentro do quarto ou de confinamento em Rebecca Hall
ou ser despida e amarrada à porta de uma cela no Prédio Disciplinar.
Asjovens negras sofriam punições mais severas e em maior quantida
de. Esther e as amigas eram disciplinadas por falar alto demais e por
dançarem o black bottom e o shimmy, danças que as supervisoras bran
cas consideravam obscenas; eram punidas quando reclamavam por
terem sido incumbidas do trabalho na cozinha ou na lavanderia ou se
questionavam por que tinham de cumprir as tarefas mais pesadas do
reformatório;eram punidas quando protestavam, dizendo que não era
justo que fossem impedidas de frequentar as poucas aulas que havia ou

281
cursos de secretariado;eram punidas quando se mostravam muito ami
gáveis com as garotas brancas.^® Eram punidas se, no dia de visita,suas
irmãs, mães ou maridos respondessem às supervisoras que ouviam
suas conversas e interrompiam sempre que desejassem,censurando as
suntos que considerassem inapropriados,sem nunca permitir a elas um
momento de privacidade.^^ Em Bedford, era esperado que uma jovem
12
de cor trabalhasse como uma serviçal e fosse tratada como inferior.
A maioria das mulheres negras era rotulada como “dotadas de
mente fraca”.^® Pouco importava se eram inteligentes, leitoras ávidas
ou compositoras. Ryan Lane, uma poeta viciada em ópio, escreveu
uma peça em versos em um ato,In the Woods[Na floresta], e compôs
letras profundas e melancólicas. Nada disso importava, somente os
resultados da batería de exames de inteligência aos quais ela foi sub
metida. Ela foi diagnosticada como um caso limítrofe de deflciência
mental, com idade mental de onze anos. O teste Binet-Simon forne
cia provas científicas” de inferioridade e as colocava além da possi
bilidade de civilização; além disso, aquelas de mente fraca corriam o
risco de ser confinadas à custódia dos hospitais públicos pelo resto da
vida,^'^ sem nunca poder voltar para casa.
Raramente as mulheres negras recebiam liberdade condicional,
ainda que o marido trabalhasse ou que seus filhos as aguardassem em
casa,ou que tivessem mãe ou tia que morassem em um lugar decente
e pudessem acolhê-las. O Estado não considerava nenhum lar negro
realmente adequado. Uma “garota Bedford” só servia para fazer ser
viços domésticos, e a demanda por esse tipo de trabalho era gran
de.*® Katherine Davis, a primeira superintendente do reformatório,
admitiu isso:

Quando se colocava uma mulher lá[em um reformatório]só há um caminho


aberto para ela, o serviço doméstico. As condições econômicas atuais
são tais que nem podemos atender à demanda pelo serviço. Geralmente,
tenho listas de espera para cozinheiras,jovens empregadas e domésticas
de todo tipo. A demanda é tão grande, particularmente para o serviço
geral, que uma senhora me disse:“Não me importa que tenha cometido
todos os crimes do decálogo, desde que ela saiba lavar uma louça”.

282
Esse não era o caso em qualquer outra transação ou emprego.
Cumprir pena em Bedford transformava a “interna” em uma pária so
cial sem nenhuma instrução.
Depois de dois ou três anos confinadas em alojamentos segrega-
dos,^® as mulheres negras eram enviadas para as casas de famílias
brancas no norte do estado de Nova York, onde eram forçadas a tra
balhar como empregadas domésticas e a residir no emprego. Estar
em condicional significava ser barrada na cidade,separada da família
e dos amigos e forçada a realizar o penoso trabalho que transforma
va o senhor e a senhora da casa em inspetores estatais, burocratas e
supervisores do espaço doméstico. O trabalho de casa era a segunda
sentença que as aguardava depois do cumprimento da primeira. Aos
olhos das domésticas conscritas, o lar da família branca era uma ex¬
tensão da prisão.
Após 22 meses e três semanas no reformatório,Eva recebeu liber
dade condicional,^^ mas não foi autorizada a voltar para casa. Aaron
estava alugando um quarto na casa de alguém, o que não definia um
lar apropriado na opinião da srta. Cobb, a superintendente, embora
quase metade das pessoas no Harlem vivesse dessa forma.^® Então
Eva foi impedida de se juntar ao marido; a certidão de casamento
com o carimbo oficial e a assinatura do escrivão não fizeram nenhu
ma diferença. As exigências da condicional a forçaram a trabalhar
como doméstica e a morar na casa de uma família branca no norte do
estado de Nova York.
Sr. e sra. Outhouse literalmente “fora de casa”, o sobrenome de
les fornecia uma alegoria cruel da condição de Eva. O casal era dono
de uma pensão, e além de tomar conta deles e de seus dois filhos,
Eva também tinha de cozinhar e limpar para oito hóspedes. A sra.
Outhouse fazia Eva trabalhar até a exaustão; ela trabalhava desde a
hora em que acordava até cair na cama — os deveres só terminavam
quando seu corpo atingia os lençóis. Então havia os hóspedes e suas
demandas, suas propostas — uma foda por cinquenta centavos ou
um oral por 75. E as mãos que ela tinha que evitar.“Homens que não
abordariam umajovem empregada respeitável”,reconheceu Katherine
Davis,“acham que as garotas [de Bedford] são um alvo fácil porque

283
estiveram em uma instituição e presumivelmente cometeram algum
crime”. Não surpreendia que muitas das jovens de Bedford duvidas
sem das recompensas que ganhariam ao andar pelo caminho certo.
“Pra quê?”,se queixavam.“Acha que eu sou boba de querer ser empre
gada e trabalhar duro pra ganhar quatro ou cinco dólares por semana
quando estou acostumada a gastar mais dinheiro em uma semana do
que se pode ganhar num mês?”^®
Eva escreveu para a srta. Cobb implorando para ser mandada para
outro lugar, mas,após meses sem resposta, ela decidiu deixar os Out-
house. Empacotou suas roupas de sair, dois vestidos de trabalho e
dois conjuntos de roupas de baixo, calçou seu único par de sapatos e
foi embora.^® Isso violava sua condicional. Agora ela estava em fuga
— fugitiva dajustiça e doméstica fora da lei. O investigador a encon
trou alguns meses depois.
Ser novamente confinada em Bedford agravou a injustiça de sua
prisão inicial e estendeu o tempo roubado. Como aquilo podia ter
acontecido com ela? Como qualquer outra mulher encarcerada, ela
tinha jurado que, uma vez que tivesse saído de Bedford, nunca mais
voltaria para lá. Era difícil escapar ao Estado quando a servidão e o
confinamento eram os papéis para os quais você tinha sido escalada.
Permanecer em liberdade tinha se provado quase impossível. Eva
nunca conseguiu se adequar ao reformatório, que supostamente de
veria ser chamado assim, mas, na verdade, era uma prisão. Nem du
zentos acres de terra cultivável e um lago podiam mascarar tal fato. A
beleza de Hudson Valley não diminuía a violência do confinamento.
O sistema de alojamentos^* havia sido planejado para providenciar
um
ambiente doméstico agradável”, algo de que as jovens pobres —
um desperdício econômico e humano” — careciam. Os alojamentos
não tinham grades, mas ninguém se esquecia de que eram celas. Uma
supervisora trancava você à noite e soltava pela manhã, e ainda as
sim você supostamente tinha de enxergá-la como uma figura materna
que guiaria você pelo caminho certo. As mulheres brancas mal pagas,
empregadas para conduzir e instruir, variavam desde incompetentes
a cruéis. Ninguém no alojamento Lowell Cottage confundia o lugar
com uma casa. Tecnicamente, os únicos prédios de detenção eram os

284
de Rebecca Hall, que contavam com celas tradicionais de dois metros
por três, grades de ferro, colchões no chão e uma dieta de pão e água,
e o Prédio Disciplinar,com suas dez solitárias^^ “desprovidas de qual
quer mobília, sem janelas, onde a luz entrava por um vidro no telha
do” e portas duplas — a porta externa de madeira maciça deixava o lu
gar escuro como um caixão,embora houvesse mais ar em um túmulo.
O Prédio Disciplinar era uma masmorra medieval, uma tumba para
os vivos, um laboratório de automortificação.
Ainda que Eva tivesse se resignado à crueldade e à privação, cor
rendo o risco de se tornar complacente,uma carta irada de Aaron rea
nimou sua raiva. Seu cativeiro prendera os dois, suspendeu a vida de
ambos,e destruiu a visão de tudo aquilo que acreditavam ser possível.
O glamour e a beleza angular e contundente do Harlem viravam a ca
beça deles,faziam o coração acelerar e os catapultavam para a afluên
cia da vida na rua.Juntos,eram livres e viviam uma vida boa. Não im
portava que estivessem à margem;estavam bem perto de se comparar
com gente bem-apessoada—celebridades,políticos, donos de clubes
e gângsteres. O senso de possibilidade era alimentado pela visão dos
outros lutadores, que andavam pelas ruas, dançavam nos cabarés,
ouviam discursos sobre a revolução e sobre o novo dia nas esquinas,
assistiam aos desfiles e contemplavam os carros elegantes deslizando
pela Seventh Avenue: tudo isso fazia do Harlem uma meca, não um
gueto, e como residentes da capital negra, eles se encontravam entre
os afortunados. Tudo isso adoçou ainda mais o romance deles e os
convenceu a contratar um pastor e ir até a prefeitura conseguir uma
certidão.
O amor era sua âncora — não a escritura de uma casa, não uma
propriedade herdada dos pais, não uma hipoteca ou as parcelas de
um carro, nem cinco acres desconexos na Virgínia ou na Carolina do
Norte.
Mas o amor não tinha valor aos olhos da lei. O amor não importava
para a superintendente do reformatório nem para o conselho da con
dicional. Não importava que fossem felizes, embora não vivessem me
lhor que a média das pessoas do Harlem,lutando para seguir adiante.
As cartas de Aaron eram livros dos sonhos de uma outra vida, outro

285
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lugar que eles em breve experimentariam; eram longas lamentações,


animadas por reclamações de três séculos atrás, acordos de abolição,
promessas de uma boa vida. Ele incluía cartões de visitas de seus úl
timos empreendimentos, bem como aqueles de empresas falidas das
quais seguia se orgulhando — escrivão, agente de empregos, produtor,
corretor de imóveis e boxeador. Em suas cartas, compartilhava planos
para o futuro; Aaron não tinha medo de sonhar, ainda confiante de que
poderiam construir uma boa vida. Assim que Eva fosse solta, ele pre
tendia se mudar com ela para uma boa casa em Washington D.C., onde
ela vivería uma vida respeitável entre algumas das pessoas de cor mais
sofisticadas do mundo. Eva riu ao pensar nisso — ela em companhia
das pessoas de cor mais sofisticadas do mundo. Em outra carta, ele in
sultou a superintendente pelo desprezo que ela demonstrava por sua
esposa,e advertiu a srta. Cobb para que ela se cuidasse, pois ele não era
um prisioneiro, mas um homem livre com acesso a advogados, funcio
nários públicos e a figuras importantes do Harlem.

286
Aaron e Eva queriam coisas boas, como todo mimdo, mas, como
a maioria das pessoas negras, eles não adoravam a propriedade, não
acreditavam nela como um princípio semelhante à liberdade,ao amor
ou a Jesus, nem a idolatravam ou veneravam como os brancosfaziam.
O que Aaron e Eva estimavam era a autonomia, o que buscavam era
um escape da servidão. Possuir coisas,terras e pessoas nunca assegu
rou o lugar deles no mundo. Eles não precisavam ter outros embaixo
da sola do sapato para firmar seu valor. Para os brancos — coloniza
dores e senhores e donos e patrões —,a propriedade e a posse eram
23
os princípios da fé.Ser branco significava possuir a terra para sempre,
Isso definia o que eles eram e o que valorizavam; e moldava sua visão
de futuro. Mas as pessoas negras haviam sido possuídas e, enquanto
objeto de propriedade^ se desencantaram de forma radical com a ideia
de propriedade.^'^ Se o passado deles lhes ensinou algo foi que a tenta
tiva de possuir a vida destrma a vida, violentava a terra e passava por
cima de toda a criação de Deus por um dólar. Como itens de carga,
as pessoas negras experimentaram em primeira mão a feiura e a vio
lência do mundo visto através do livro-razão e de contabilidade. Elas
sustentaram a vida da mercadoria.
Elas foram disseminadas e colhidas como qualquer outra safra,
tratadas de um jeito em nada diferente das ferramentas e dos animais
possuídos pelo senhor. Sabiam que uma corporação não era uma pes
soa, que não era feita de carne e osso, e que um pedaço de papel não
assegurava nada que um homem branco fosse obrigado a respeitar;
sabiam que os salários de fome não significavam liberdade, que eram
outro tipo de escravidão. As coisas que elas mais valorizavam não ti
nham preço.
No fluxo constante de cartas que Aaron escreveu para a diretora
da prisão, ele sustentou a injustiça do confinamento de Eva,debateu
questões legais, desafiou a desvalorização da vida deles por assis
tentes sociais e oficiais de condicional, expressou o arrependimento
de Eva, ameaçou levar a superintendente para o tribunal por reter
suas cartas, denunciou os oficiais da prisão por mantê-los separa
dos, questionou a decência e a autoridade da sita. Cobb depois que
ela perturbou Eva ao dizer que mesmo que sua mãe estivesse no leito

287
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de morte, ela não seria liberada para vê-la. Enquanto vivesse, Aaron
jurou, isso nunca aconteceria. Em uma carta, ele perguntou se Eva
estava sendo usada para propósitos imorais. Ele havia acabado de ler
um livro que contava que coisas do tipo aconteciam na prisão, e pre
cisava ter alguma garantia de que sua esposa não era uma vítima de
tais abusos. Todas as cartas insistiam que ele era apenas um homem,
como os outros, e como tal deveria ter permissão de prover para sua
esposa, e apesar daquilo que os carcereiros acreditavam, Eva não era
uma vagabunda nem uma puta. Que direito o Estado tinha de inter
ferir em suas vidas? Que autoridade tinham os assistentes sociais e
burocratas para decretar que a vida que ele e Eva haviam criado não
era boa o suficiente para que Eva pudesse ser libertada e voltar para

288
casa,como se fosse sozinha no mundo,sem lar,sem mãe,sem marido,
como se a vida deles não fosse nada? Tudo isso os destruiu.
Em suas cartas para Eva,Aaron prometia que ia encontrar um lu
gar só deles em vez de quartos alugados na casa dos outros. Mas isso
era quase impossível com trinta dólares por mês. A média de aluguéis
no Harlem era de vinte ou vinte e cinco dólares por mês por dois ou
três pequenos cômodos com um banheiro no corredor.Se pudesse ga
nhar mais, cinquenta ou sessenta dólares por mês,então conseguiría
dar um jeito. Quando lutava boxe ele conseguia, mas não podia con
tar com isso.
A verdade era que ele só conseguia cuidar de Eva se ela estivesse
livre e trabalhando também. Suas cartas ostentavam uma confiança
no futuro, mas cada assertiva ressonante daquilo que seria ou pode-
ria ser mascarava a dúvida à espreita em cada linha: Gomo viveríam?
Algum dia seriam capazes de fazer algo melhor que lutar para sobre
si
viver? Ou viver a boa vida que nunca pararam de imaginar para
mesmos? Lendo as cartas de Aaron,Eva não sabia se ria ou chorava:

Vou conseguir a casa e não vou precisar da ajuda de ninguém.Vai ser minha
casa, no meu nome, meus móveis,tudo novinho em folha: uma cama de
latão,um tapete, uma sala de estar completa,uma mesa de cozinha com
quatro cadeiras, um armário, quatro quadros grandes na sala. Vai 25 ser
um lar para você. E vou fazer isso porque é meu dever como homem.

Que tipo de homem não podia dar uma casa para a mulher que ama
va? Que tipo de mulher podia ser tratada como uma mula ou uma
serviçal, reduzida às mãos e à bunda, trabalhar como um homem e
ser tratada como uma escrava? Não havia nenhuma dúvida ou ques
tão sobre ele e seu lugar no mundo que não repercutisse nela nem lhe
custasse igualmente caro.Talvez se pudessem encontrar seu caminho
para além dessa linguagem de homem e de mulher, essa gramática
do humano que considerava ambos como monstros e desviantes,e se
libertar de um esquema que nunca foi criado por eles, mas imposto
com indiferença e crueldade, então talvez eles pudessem encontrar
um caminho para outro tipo de amor e amparo, capaz de resistir às

289
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* 1

agressões diárias de um mundo que se opunha decididamente a eles.


Por que deveriam se prender à noção dos brancos sobre o que ou quem
eles deviam ser? As noções responsáveis pela prisão de Eva e por to
das as dúvidas incômodas que tinham sobre a validade desse amor.
Será que ele se tornaria alguém? Que ela podia confiar nele? Que ela
também o apoiaria e respeitaria? Que ele podia confiar nela? Seriam
eles capazes de não ferir um ao outro como sua única linha de defe
sa? Era possível recusar os papéis impostos pelo mundo? E será que

290
isso era necessário para nào ferir um ao outro e para se agarrar a algo
tão frágil quanto o amor no mundo do homem branco? O barracão,
o porão do navio e a plantation haviam mudado tudo irremediavel
mente,e o gueto exacerbaria a diferença entre a vida íntima deles e a
dos brancos, evidenciando que promessas e contratos não poderíam
proteger a eles nem a suas crianças.
Eva e Aaron foram corajosos em ousar arriscar o amor. Por que
tentar se agarrar um ao outro quando a lei podería capturar você por
puro capricho? Para que se importar? O fracasso em viver como os
brancos era apenas algo injurioso? Ou havería também um dom que
residia no “desvio do adequado”? Certamente, a crioula ocupava um
tipo de existência^® diferente daquele próprio da senhora ou da dona
da casa, o próprio termo assinalava uma ruptura ou fissura na vida
da espécie,uma variante do humano,um antagonismo ou dimoríismo
mais fundamental que homem e mulher. Ainda assim, havería algu
em
ma oportunidade na infidelidade ao que tinha de ser? Na recusa
emular e imitar os padrões de quem ou do que você foi direcionada ou
ordenada a ser(mas nunca seria)? Era difícil colocar essa noção vis
ceral e persistente de existir de outra forma,em desacordo com o que
é dado,em palavras. Eles não tinham passado os últimos séculos a se
perguntar: Eu sou de carne e osso?Eu não sou um homem e um irmão?
Eu não sou uma mulher? perguntas e apelos foram impostos,afir
mações desesperadas que a circunstância e a necessidade os força
ram a dizer e habitar. A humilhação de ter que provar e afirmar uma
e outra vez, eles são de carne e osso. Com que fim? Que oportunidade
poderia ser encontrada em nunca mais pronunciar essas perguntas?
Que possibilidade havia de viver uma existência totalmente diferen
te? Tais noções loucas se provaram quase impossíveis de articular ou
de abraçar de maneira consciente e sem reservas, ainda que eles so
fressem a verdade delas,ainda que pagassem seu preço.
Eva e Aaron estavam casados fazia menos de um ano quando ela
foi presa. Quando se mudou do apartamento deles à procura de um
lugar menor e mais barato, ele guardou o armário dela num depósito
porque nunca pretendeu que outra mulher usasse suas roupas. Aaron
empacotou cada item com todo o cuidado,inclusive as melhores rou-

291
pas dela:três vestidos de baile, um casaco de noite e duas sombrinhas,
guardando as peças num baú de cedro para mantê-las em segurança
até que sua esposa fosse libertada. Ele prometeu ser sincero, assim
jurou para Eva e para a srta. Cobb.
Eva amava Aaron, mas também o culpava:“Se o meu marido usas
se a cabeça e conseguisse uma casa,eu não estaria passando por tudo
isso”.^^ Ela estaria livre e em sua própria casa. Em outras vezes, Eva
se sentia sortuda simplesmente por Aaron amá-la. Ele era um homem
elegante, bonito e um sonhador resoluto, um idealista inabalável. Por
três anos, Aaron nunca deixou de tentar libertá-la, e na maior parte
do tempo ele conseguiu convencê-la de que encontraria um jeito. Ele
escrevia sempre. Suas cartas eram sinceras, apaixonadas,^® e descre
viam milhares de outras vidas que poderíam criar se desejassem. A
letra era trabalhada e quase perfeita, como se cada carta tivesse sido
pensada para ser um documento público. O tom das cartas era desa
fiador, e por tudo isso elas foram confiscadas, dadas como perdidas,
retidas e destruídas pelas autoridades penitenciárias. Eva escreveu
para ele, perdida de amor e se sentindo culpada, reconhecendo que
quando Aaron disse Eu aceito”, ele não contava com tudo aquilo. Ela
brincou, dizendo que o blues e a tristeza haviam se tornado a compa
nhia constante de Aaron:“Aposto que meu marido está cantando:‘Às
vezes você encontra uma boa pessoa, às vezes não’.* E eu ri. Muitos
beijos para você, meu querido”.^^

Atitudediantedasituação:Mostra-se bastantecontrariada com seu compromisso


com Bedford. Dizquesua prisão éarranjada e que é um ultraje mandar uma
jovem inocentepara a prisão.

Nota sociológica: Sinto que provavelmente ela se prostituía, embora não


tenhamos nenhum atestado concreto.'^

* Em Inglês no original: Sometimeyou get a good one and sometimes you dorít. Letra de
“Sometimes You Get A Good One And Sometimes You Don’t"(igi6) comoosta oor
HarryVonTIIzer.

292
Loretta Michie foi a únicajovem de cor citada no artigo de jornal. As
autoridades penitenciárias se ressentiram com a mera nomeação das
detentas.Diante dos abusos,isso alimentou a histeria pública e concedeu
um rosto e uma história paratodas aquelas atrocidades.Loretta e várias
outras mulheres negrastestemunharam diante da Comissão Penitenciária
Estadualsobre aformacomo a srta.Cobb e a srta.Minogue astratavam.
Talvez os cabelos cacheados,os olhos castanho-escuros e o rosto bonito
dajovem de dezesseis anos tenham chamado a atenção dos repórteres,
fazendo com que se lembrassem de seu nome.Talveztenha sido o relato
gráfico da violência o que tornou suas palavras mais dignas de nota que
as outras. Será que ela descreveu mais vividamente a solidão absoluta
da masmorra? Como se sentiu ao ser apartada do mundo e expulsa mais
uma vez,presa na escuridão,como o ato de gritar para as outras e ouvir
a voz delas foi sua tábua de salvação; ou como seu coração acelerava
com medo de se afogar, ainda que soubesse que era apenas um balde
d’água, mas podia muito bem ser o Atlântico. A batalha para respirar
foi travada novamente. Quanto tempo se pode viver embaixo d’água?
O mundo escurece e, ao abrir os olhos, você está encalhada no chão
escuro da solitária.Será que o corpo pendurado na porta da cela vizinha
era seu também? Ou será que a sensação da dor que irradia dos braços
erguidos até as escápulas e a corta por dentro como se sua carne tivesse
sido transformada em um instrumento do carcereiro podia ser sentida
por todas as outras confinadas nas dez celas do Prédio Disciplinar,e a
sensação de que essas celas estavam conectadas atodas as outras quejá
existiram e a consciência de estar presa e naufragada podia fazer uma
menina de catorze anos acreditar que era velha?
Os jornais ofereceram uma descrição simplificada: Loretta tes
temunhou que tinha sido “algemada às grades de sua cela, com os
dedões do pé tocando o chão, por tanto tempo que ela caiu quando
foi solta”.®^ As jovens de cor, ela observou, recebiam um tratamento
pior e eram encarregadas das tarefas mais pesadas e desagradáveis
na cozinha,na lavanderia e na unidade psiquiátrica. Outras mulheres
relataram que foram despidas e amarradas nuas aos seus catres; elas
eram alimentadas com pão e água por uma semana;amarradas e pen
duradas em suas celas, e lhes era negado mesmo o pequeno alívio de

293
poder tocar os dedos dos pés no chão. Sua boca era amordaçada com
trapos imundos ou lavada com água e sabão.
Eva podería ter contado aos repórteres sobre Rebecca Hall e sobre
o hábito de Peter Quinn de dar tapas e chutes nas garotas se tivesse
sido chamada a testemunhar, se não fosse uma fugitiva (procurada
pela violação da condicional). Mas Peter Quinn não precisou de nin
guém para testemunhar contra ele. Foi um dos poucos guardas que
confessou algumas das coisas terríveis que fez, principalmente para
manchar aimagem da srta. Cobb.Peter admitiu que ajudou a amarrar
as garotas umas cem vezes.^^ Foi ele quem “ensinou a srta. Minogue a
algemar uma garota às grades da cela com as mãos para trás”, e ele sa
bia que naquela época,os pés sempre ficavam inteiros no chão”.^^ Sob
a direção da srta. Minogue,a prática “subiu de nível” e elas passaram
a ser suspensas um pouco mais alto.^
Em dezembro de 1919, as mulheres em Lowell Cottage fizeram
suas vozes ser ouvidas mesmo que ninguém quisesse escutar.^ Lowell,
Gibbons, Sanford, Flower e Harriman eram os alojamentos reserva
dos para as jovens de cor. Depois que os escândalos sobre relações
sexuais inter-raciais e amor lésbico vieram à tona em 1914,a segrega
ção foi imposta e os alojamentos, separados por raça, idade, status,
vícios e capacidades. Uma disposição especial das Leis de Caridade
permitia ao Estado praticar a segregação racial enquanto o protegia
das reivindicações legais de que tais práticas eram inconstitucionais
e violavam as leis dos direitos civis de Nova York. As autoridades es-
tatais justificavam a segregação com base em uma antipatia racial
natural, quando na verdade era a intimidade inter-racial o amor e
a amizade o que eles esperavam eliminar.
O New York Times descreveu o levante e a resistência do Lowell
Cottage como uma revolta sônica, um “protesto sonoro”, a “algazar
ra de um coro infernal”.^® Coletivamente, as detentas se cansaram da
violência gratuita e de serem punidas por ninharias, então buscaram
uma resposta no barulho e na destruição. Elas arremessaram col
chões, quebraram janelas, atearam fogo. Quase todas no alojamento
gritaram e berraram para quem quisesse ouvir. Esmurraram as pa-
redes, encontrando um ritmo compartilhado e firme que, elas espe-

294
1 V.

í|

ravam, pudesse derrubar o alojamento, desmoronar as paredes, es


magar os catres, destruir o reformatório, de forma que o lugar nunca
mais pudesse manter outra “garota inocente no cárcere”.^^ O “coro la
mentoso e estridente” protestou contra as condições da prisão e insis
tiu que elas não tinham feito nada que justificasse seu coníinamento;
recusavam-se a ser tratadas como se não fossem humanas.^® O New
York Tribune relatou: “O barulho era ensurdecedor [...] Quase todas
asjanelas do alojamento estavam abarrotadas de mulheres negras aos
gritos, raivosas e rindo histericamente”. “A algazarra tumultuosa^^
que emanava do alojamento golpeava as orelhas dos investigadores
antes que eles pudessem avistar o prédio.” Canções e gritos eram os
instrumentos de luta. Termos como “protesto sonoro” e “surto vocal”
descreveram a paisagem auditiva da rebelião e da recusa.

295
o coro falou a uma só voz.'^ Todas gritavam e berravam a injus
tiça de terem sido sentenciadas a ir para Bedford e de ser vítimas de
armações, a injustiça dos três anos de vida roubados. Elas nào eram
nada nem ninguém? Será que poderíam ser capturadas e descartadas
e ninguém no mundo daria a mínima? Eva se preocupava com a irmã
mais nova. Viola,que fora mandada para Bedford um ano depois dela.
Será que estava em segurança? Será que seu alojamento estava em re
belião? Harríman, Gibbons, Sanford e Flower também estariam em
pé de guerra?
Um mês depois que a srta. Minogue a estrangulou, bateu na cabe
ça dela com um molho de chaves e a espancou com uma mangueira de
borracha, Mattie Jackson sejimtou ao coro.'^^ Pensar no filho e em que
condições ele crescia sem ela a fez lamentar e gritar mais alto. Não que
ela ou nenhuma das outras imaginassem que seus apelos e queixas se
riam ouvidos fora do alojamento, ou que as descobertas da Comissão
Penitenciária Estadual fariam qualquer diferença para elas. Aquele le
vante, como os outros que o precederam e aqueles que se seguiríam,
não era incomum.Incomum foi o levante ter sido noticiado. A investi
gação estatal de abusos e tortura no reformatório transformou aquelas
mulheres negras rebeladas em um assunto interessante.
Loretta, ou Mickey, como algumas de suas amigas a chamavam,
bateu nas paredes, berrou, praguejou e gritou.''^ ^os catorze anos,
antes de sua primeira menstruação, antes de ter vivido uma relação
amorosa, antes de escrever linhas como “meu bem, eu te chamo em
sonhos , antes de ter recebido a primeira carta de amor que delinea
va em detalhes vividos o que ela faria e o que recebería, ela foi con
finada em Bedford Hills com uma sentença indeterminada. Mickey
travava uma pequena batalha contra a prisão, a maldita polícia, as
supervisoras, os oficiais da condicional e os assistentes sociais. Ela
não estava disposta a fingir que seus tutores eram qualquer outra coi
sa. Os alojamentos não eram casas. A srta. Cobb não dava a mínima
para ela e a srta. Minogue era um brutamontes de saia. As superviso
ras eram brutas e não estavam ali para guiar, aconselhar nem ajudar
as jovens a trUhar uma vida melhor, mas para fiscalizar e controlar,
punir e infligir danos. Deixavam bem claro o que pensavam: Você era

296
bem tratada demais, cada punição cruel era merecida, e a violência
era a única forma de comunicação com as detentas, especialmente as
jovens de cor. A srta. Dawley,"*^ a socióloga, as entrevistava. Pergun
tava se gostavam da escola ou se preferiam trabalhar,com quem tive
ram sua primeira relação amorosa, como se sentiam com relação aos
pais,se gostavam de frequentar bailes ou o teatro,sefumavam,bebiam
ou haviam experimentado drogas;com diligência a srta. Dawley escre
a mesma:a
via tudo o que diziam, mas sua recomendação era sempre
prisão é o único lugar para ela.
Mickey se rebelou sem ter ciência das coisas horríveis que os un
— era sim-
cionários do reformatório diziam dela em suas reumões
plória e mentirosa, pensava demais em si mesma,“ela esteve com um
bom punhado de homens”.'^® A psicóloga, dra. Spaulding, notou que
ela tentava parecerjovem e inocente,algo que claramente não era.^
possível que só tenha catorze anos?” A srta. Cobb resolveu a questão.
“Vamos considerar que ela tem dezoito”. Era evidente que todos acre
ditavam que a prisão era o melhor lugar para ela, uma jovem negra
num caminho errático.
Passar a noite fora em um baile com as amigas,furtar dois dólares
para comprar um vestido novo e poder se apresentar no palco foram
razões suficientes para confiná-la. Mickey praguejou e esmurrou a pa-
estivesse. Ela
rede e se recusou a parar, não importava quão cansada
não se importava se eles ajogassem no Prédio Disciplinar todos os dias
— ela nunca deixaria de lutar contra eles,jamais se submetería.

Relatório disciplinar: Muito problemática.Já esteve no Rebecca Hall e «o


Prédio Disciplinar.Punida continuamente.Amizade com asjovensbrancas.

Mickey passou pelo Prédio Disciplinar mais vezes do que o relatório


revelou. No Rebecca Hall,ela conspirava,tramava e incitava as outras
garotas à rebeldia e ao tumulto. Sentia orgulho de ter sido a causa de
uma agitação considerável durante o tempo que passou em Bedford.
Elafez tanta confusão lá que mesmo anos mais tarde,depois de ter sido
libertada e após a nomeação de uma nova superintendência,todo mun
do se lembrava de seu nome,e ele era sinônimo de desordem.

297
99
Singer Too “Tight
For Reformatory
^E« vV YORlvt-»—XíOretta Jackson.
a cabaret síngrer who was servfng
a term In the new Bedford ReCorm-
atory for Women for vlolating: the
Suilivan law. was transferred Lo
lhe penitentiary to flnlsh an inde>
terminate aentence of from slx
nionths to three yoars. The changre
was rçquested by the superintend
em of the reformatory who com*
plained that lhe prisoner was in-
corrlglblc.
Miss JackSoH was arrested on
141st Street -recently when a detec-
tive learned that she was out gun-
ning £or a íormcr lover. She plead*
ed guilty tò the charge ànd was sènt
to Bcdfordí.where it is charged that
she immedíately began stirring up
strife among the inmates. Amos
Baker, the superlntendeht. recalled
that while servlng a sentence in
10Í7 the yòung woman acted slral-
larly. MIss Jackson .is sald to bè
well knówn in musical comedy cir-
cles.

Quando confinada, ela conseguia enviar algumas cartas para a


namorada. A carta de amor apreendida pela supervisora foi escrita a
lápis em um pedaço de papel higiênico, porque no confinamento não
eram permitidos caneta e papel. A missiva endereçada à namorada,
Catherine, mencionava as primeiras revoltas de 1917 e 1918 e expres
sava o espírito de fúria e resistência que alimentava a ação de dezem
bro no alojamento Lowell:

Estou tão indignad(f^ com esses policiais de m__ que podia matar eles. Eles
podem mandarem Bedford eem algumasdas bonecasdeBedford, mas nunca
vão mandar em Loretta Michie [...]. Não vale a pena se comportar bem num
chiqueiro desses, mas não me arrependide nada do quefizquandofui mandada
para aprisão[Rebecca Hall]três vezesepara oP.D. uma veze daquiapouco

298
já vou de novo e algumas outras e eu mesma sempresomos mandadaspara o
Buraco. Toda vez que a prisão se rebelava em igi8 ou 1917a polícia vinha
se nós estivéssemos nos rebelando ou não e nós estávamos[lá][...]. Sempre
nos penduravam ou nos prendiam com lençóis, mas nós nos rebelávamos
mais ainda. Foram nesses dias queJ. M.[Julia Minogue]foiforçada aficar
acordada a noite toda e nós esperamos 0 dia inteiro até ela ir para a cama
lá pela uma da manhã e então nós começamos e entãoficamosem silêncio lá
pelas quatro e começávamosde novo àsoito da manhã[...\.Tinha umagangue
boa aqui e nóspodíamos ter aqueles dias de volta se tivéssemos as mulheres,
mas não temos, então para que se preocupar [...]. Eu só tenho mais um dia,
mas quando vocêjáfoi castigada tanto quantofui, nem se importa com isso.
Bom, as Luzes estão apagando então Boa Noite e Bons sonhos. Leal e sua,
Olhos Negros ou Mickey

O Lowell Cottage rugia com os sons da revolta. As detentas acabaram


com as janelas do alojamento. Janelas destnudas e vidro quebrado
sào a linguagem do levante. A mobília foi destroçada. As paredes fo
ram desfiguradas. Incêndios foram provocados. Elas gritaram a noi
te toda. Cantaram. Berraram. Esses gestos seriam repetidos em anos
futuros como táticas essenciais do levante.'^ Como Esther Brown,
Mickey não hesitou em acabar com tudo. Suas colegas de alojamento
berraram, gritaram e praguejaram por horas. Cada voz se misturava
às outras em uma língua comum.Cada protesto e cada grito tornava a
verdade evidente: a revolta era o único remédio ao alcance.

Era a perigosa música da franca rebelião.Em massa,elas anunciavam


aquilo que haviam suportado,o que queriam,o que pretendiam destruir.
Brados, gritos, xingamentos e o bater de pés fizeram o alojamento
tremer, reunindo as jovens em uma grande formação única e pulsan-
te, um conjunto em deleite diante da beleza do protesto. As jovens
penduradas nas janelas, aglomeradas em soleiras e amontoadas em
camas compartilhadas ressoavam uma revolução total,uma quebra com
aquilo que foi dado,a destruição e a refação de valores,e colocavam a
propriedade,a lei e a ordem social em crise. Elas buscavam um canú-

299
nho parafora daqui,para longe do agora,parafora da cela, para além da
captura^^ Seus chamados e apelos as transformaram de prisioneiras
em manifestantes,de abstrações sem rosto,capturadas por uma série
de números presos a um macacão de algodão, em um corpo coletivo,
uma reunião indisciplinada,ainda que tenha durado apenas treze horas.
Na assembléia dissonante, elas encontraram escuta umas nas outras.
O clamor negro que emanava do Lowell Cottage expressou a raiva e
o desejo delas. Tomou manifesta a rebelião latente que fervilha sob a
superfície das coisas. Forneceu a linguagem por meio da qual “elas la
mentaram sua sina e o que chamavam de injustiça por parte de seus tu
tores em alto e bom som”. O levante sonoro foi uma tática, um recurso
criativo da revolta,em dezembro e emjaneiro,e mais uma vez emjulho,
quando um conflito irrompeu nas dependências da lavanderia entre um
grupo formado em sua maioria porjovens negras,incluindo suas ami
gas e amantes brancas, e um grupo de jovens brancas que odiavam as
amantes de negros tanto quanto asjovens negras. Quando a pohcia eas
tropas estatais chegaram,a batalha mudou e as garotas lutaram contra
eles. As autoridades do governo e osjornalistas ansiaram por rotular o
conflito como uma revolta racial,®® mas ainda assim eles descreveram
o som da luta contra o Estado nos termos da música negra. Para aque
les fora,do círculo,foi uma algazarra sem melodia nem centro. O New
York Times teve dificuldade em decidir qual manchete sensacionalista
usar
para o artigo,então lançou três:“O coro demoníaco dasjovens re
beldes , Bedford ouve uma confusão de gritos e grunhidos,inspirando
uma série dejaz(z)infernal”e “Insurreição à capela”. Como o inferno de
Dante soaria quando transposto para uma suíte dejazz? Para os repór
teres, ojazz era sinônimo de um som primitivo, um impulso irrestrito,
modernismo selvagem. Era energia e emoção puras, toHce e conversa
fiada, pura retórica, excesso, desejo carnal. Era uma gíria para a cópu-
la,desordem social conjurada e amor livre. Talvez fosse uma referência
obhqua à dimensão sexual da revolta. A improvisação as possibilida
des estéticas que residiam no imprevisto, a colaboração no espaço do
enclausuramento, os ritmos secundários da vida social sendo capazes
de criar uma abertura onde não havia nenhuma —excedeu a grade
interpretativa das autoridades estatais e dosjornalistas.

300
Me pega pela gravata^
Me pega pelo pescoço
Que eu vou te provocar
Até você gritar*

Tumulto e levante sônicos — a resistência enquanto música. Um


protesto sonoro. No sentido mais básico, os sons que emanaram do
alojamento Lowell eram a música livre daquelas que se encontravam
cativas,a filosofia abolicionista expressa no interior do círculo,o gri
to e a música falada da luta. Se a liberdade e a criação mútua caracte
rizavam a música, essas também definiam o protesto e a revolta das
prisioneiras do Lowell.“O blues do reformatório”, rótulo superficial
cunhado pelosjornais para descrever a recusa coletiva das condições
penitenciárias, era Dante filtrado por Ma Rainey e Buddy Bolden.(A
revolta sonora do Lowell Cottage ecoou como uma pequena amostra
da longa história do som negro — gritos e berros, agudos e grunhi
dos, músicas tristes e blues.)
Os cantos e gritos escaparam aos confins da prisão, ainda que os
corpos tenham permanecido:“Quase todas asjanelas[do alojamento]
estavam abarrotadas de mulheres negras aos gritos, raivosas e rin
do histericamente”. Poucos fora do círculo compreenderam as ori
gens profundas desse clamor público. A herança estética da “tolice
e conversa fiada”®^ não era nada mais que uma filosofia libertária que
remontava às canções de escravos e às rodas de dança os dons so
noros da luta e da fuga, da morte e da recusa, se transformaram em
música ou lamento,em gritos de alegria ou sons desafinados.
Para aquelas dentro do círculo, cada gemido e cada choro, cada
xingamento e cada grito insistiam que o tempo da escravidão havia
acabado. Elas estavam cansadas de ser abusadas e confinadas; que
riam ser livres. Aaron escreveu quase as mesmas palavras em uma de
suas cartas:“Preciso dizer,sita. Cobb,que o tempo da escravidão das

* No original, Vou can take my tie/ You can take my collar/ But Hljazzyou/Tillyou
holler. Como a autora explica no próprio texto,aqui Jazz carrega o significado de
“provocar",“excitar"

301
pessoas de cor já passou”.®^ E o mesmo fez a mãe de Mattie. Todos
eles podiam muito bem ter gritado: A escravidão acabou. Aboliçãojá.
No disparate surreal e utópico de tudo isso^^^ e no coração do levante,
estava a anarquia dasjovens de cor: traição em massa, tumulto, agru
pamento, a colaboração mútua necessária ao enfrentamento das au
toridades penitenciárias e da polícia,a disposição de se perder e de se
transformar em algo maior — um coro, um enxame,uma assembléia,
uma sociedade de ajuda mútua. Em lugar de uma explicação ou de
um apelo, elas gritaram e berraram. De que outra forma poderíam
expressar o desejo de serem livres? De que outra forma poderíam evi
denciar sua recusa em serem governadas? Essa era a trilha sonora de
uma história dolorosa.
Quem via de fora descrevia a algazarra como uma derradeira mú
sica, para assinalar que a derrota delas era certa e que elas voltariam a
sua antiga condição de prisioneiras sem voz no mundo,como pessoas a
quem se podia fazer qualquer coisa.®® Havia pouca tristeza nos cantos,
nos xingamentos, nos gritos e nas queixas. A manifestação coletiva
não era canto fúnebre. Amontoadas nas janelas do alojamento, algu
mas penduradas para fora e outras espiando pelos cantos, elas liber
taram da clausura a perigosa música da vida negra; uma manifestação
estrondosa e polifônica que soou bela e terrível. Antes de ser reprimida,
a revolta tocou todas as pessoas que estavam no terreno da prisão, foi
longe e alcançou os cortiços,quartos alugados e pensões arruinadas no
Harlem,no Brooklyn,em White Plains e Staten Island.
O rmdo expressou a derrota e a aspiração, a beleza e a desventu
ra, que de outra forma eram inaudíveis aos ouvidos do mundo;revelou
uma sensibilidade em desacordo com o realismo brutal da instituição.
O que explica o impulso utópico que lhes permitiu acreditar que al
guém se importaria com aquilo que tinham a dizer? O que as convenceu
de que a força de sua manifestação coletiva era capaz de transformar
alguma coisa? O que as forçou a criar um reservatório de vida no cerne
da morte mandatória da prisão? O que as tornou incansáveis? Em ja
neiro, as mulheres confinadas em Rebecca Hall fizeram outro protesto
sonoro. Loretta Michie e outras que haviam testemunhado contra as
autoridades penitenciárias estavam entre elas. “As prisioneiras come-

302
çaram a sacudir as grades das celas,jogar os móveis nas paredes,gritar,
cantar e proferir blasfêmias.” Elas gritavam e choravam.Elas“seguiam
adiante” pela voz.“A miscelânea de sons,‘o blues do reformatório’”,um
jornalista gracejou, “ainda pode se tornar um sucesso na Broadway,
ainda que os policiais, ao que parece, desdenhem do jazz”.®^ As jovens
trancadas nas celas do alojamento seguiram adiante a noite inteira.
Os cantos e gritos insistiam: queremos ser livres. O protesto lançou
seus questionamentos: Por que estamos trancadas aqui? Por que vocês
roubaram nossas vidas? Por que vocês nos tratam como cachorro? Nos
deixam passar fome? Arrancam nossos cabelos? Nos amordaçam? Nos
batem na cabeça? Nada disso é certo. A maioria de nós não fez nada
para merecer ficar trancada aqui. Ninguém merece ser tratada assim.
Tudo o que aqueles que ouviam de fora podiam discernir eram
“vendavais de vaias, furacões de gritos, ciclones de raiva, tornados
de guinchos”. Os sons deram voz a um “coro dos diabos de arrepiar os
cabelos e desafiar os ouvidos”.®® Aquelas de dentro do círculo ouviam
amor e decepção, desejo e indignação que alimentavam a manifesta
ção coletiva. Elas canalizaram os medos e as esperanças daqueles que
as amavam,os sonhos ruins e os pesadelos sobre as crianças roubadas
e levadas pelos homens brancos na traseira de carroças ou perdidas
no mar.®® Os refrãos evocaram todos os planos adoráveis que elas,
uma vez livres,fariam. E todos esses sons viajaram pelo ar da noite.

303
* «
o socialista dá uma palestra sobre amor livre

Em sua palestra, o Socialista questionou se os humanos seriam mo-


nogâmicos por natureza ou se eram forçados a tais arranjos pelas
convenções sociais, enfatizando “a diferença entre aquilo que gosta
mos de dizer e aquilo que gostamos de fazer”.^ Em fevereiro de 1917,
Hubert Harrison apresentou uma série de palestras que desafiaram a
propriedade e a respeitabilidade da classe média por se perguntarem
se o casamento nào seria uma instituição estimada principalmente
em nome da propriedade privada, sugerindo que a monogamia não
era natural, mas imposta pelas leis estatais e pelos regulamentos so
ciais, além de inadequada para os nossos desejos eróticos. No tópico
“Is Birth Control Hurtful or Helpful?”[O controle de natalidade é da
noso ou proveitoso?], ele detalhou o que toda mulher deveria saber
para se proteger, e defendeu o amor livre. A poucas quadras do lugar
onde a polícia prendeu Harriet Powell na pista de dança e levou Es-
ther Brown e sua amiga Rebecca por sua disposição de fazer amor
com estranhos,e a quinze quadras de onde a polícia prendeu Eleano-
ra Fagan e outras quatro jovens em uma batida surpresa numa casa
de tolerância, o brilhante orador e libertino furtivo deu expressão
política à maneira como todas elas tinham escolhido viver. Não que
as jovens precisassem dele para justificar qualquer coisa, mas suas
palavras amplificaram a qualidade radical de suas ações.
Teriam ficado surpresas em ouvir suas vidas descritas nesses ter
mos, mas teriam apreciado a disposição de Harrison de defender o
caminho errante que elas compreendiam como liberdade.

305
VONVr
48tOKBl£
AU^vreo.

E possível que ele tenha visto o rosto delas^ nos confins da multi
dão reunida na esquina da 125'^ Street com a Seventh Avenue ou na
esquina da 135'^ Street com a Lenox Avenue enquanto discursava em
cima de um caixote, ou mesmo que tenha percebido Mabel e Ismay
entre a platéia reunida no Templo da Verdade em um fim de tarde de
domingo. Dada a sua natureza amorosa, ele teria notado as jovens
atraentes e soltas demais reunidas nas esquinas do Harlem, especial
mente aquelas que tinham a prática de vagar pela Seventh Avenue na
companhia das amigas a qualquer hora da noite.
Não restam registros datilografados nem anotações de suas pales
tras sobre 0 sexo e os problemas do sexo,^ então é necessária alguma
especulação para recuperar e esboçar suas idéias. Seria possível que
as palestras de Hubert Harrison tenham exaltado a vida erótica do in-

306
=

iS . ●i»' ’i.'' ã

governável? Teria ele advogado a favor dos relacionamentos em série


que desafiavam a monogamia, a união conjugal e a lei? Ou defendido
os modos de vida errantes e sem remorsos de Mamie Sharp e Esther
Brown? Teria sua curiosidade sexual encontrado reflexo nas paixões
poliamorosas delas? Ele teria sido capaz de compreender as cartas do
marido de Esther e aquelas escritas por Alice, sua namorada? Suas bo
chechas esquentaram ao ler a carta de Francês Rabinowitz para Lee
Palmer, descrevendo em detalhes imagéticos o que uma mamãe loira
faria por seu papai negro? Teriam suas andanças eróticas feito dele o
ouvinte perfeito, ou ansiaria por mais detalhes? Será que suas idéias
sobre a luta contra o capitalismo e a linha de cor foram abrangentes o
suficiente para descrever as práticas sexuais rebeldes sem lançar mão
de palavras como inversão, patologia ou prostituiçãoí^ Teria ele abraça-

307
do o desvio sexual delas enquanto permanecia em silêncio sobre o pró
prio? Ou seus discursos capturaram apenas os contornos mais amplos
da vida dessas jovens, mas deixaram escapar a verdade, aplicando o
mesmo princípio de dois pesos e duas medidas de que ele se utilizava
quando castigava as filhas por terem ficado fora de casa até tarde ou
passado dos limites daquilo que se considerava apropriado? Será que
foi tão cego quanto outros socialistas e tentou salvar as jovens da rua
ao tomá-las mulheres respeitáveis? Será que enxergou os gestos de re
cusa delas como uma resposta “ao chamado para a batalha contra a‘Li
nha de Cor’do homem branco”? Seria ele culpado de confundir umex-
perimento de vida com uma crônica de transgressões, ou era capaz de
reconhecer os anseios e as paixões delas? Terá entendido que elas tam
bém estavam envolvidas em um projeto radical? Harrison certamente
teria feito objeções e denunciado o assédio policial sofrido pelasjovens
de cor e a marcação dos cortiços do Harlem pela delegacia de costumes
e pelos policiais. Sem dúvida ele teria explicado tudo isso como abusos
da linha de cor,como parte integrante do esforço da lei em subjugar a
raça,controlar suas aspirações e desejos, e restringir a vida dosjovens
a uma variação da plantation, impedindo e obstruindo toda tentativa
de fuga. Os protestos e a luta encenados nas ruas do Harlem podiam
ser frustrados, mas eram impossíveis de cessar ou de ser erradicados.
Para ele, havería razões pessoais também. Como todos seus ami
gos sabiam,ele podia ser abrangente em questões sexuais, mas católi
co no gosto, muitas vezes atribuindo um peso maior à prerrogativa de
liberdade do que à faculdade de discernimento. Isso fazia dele meio
piada, e por pouco ele escapou de ser citado no processo de divórcio
de Marcus Garvey* por conta de seu caso apaixonado com Amy Ash-
wood,um entre pelo menos dez casos que teve durante o casamento.
Enquanto a vida de Esther,Harríet e Rebecca era descrita como trá
gica, as fraquezas e contravenções sexuais dele eram feitas da matéria
da farsa. Nenhuma dessas visões é adequada ou capaz de compreender
a pura necessidade ou as paixões insurgentes que ansiavam por des
truir o mundo (do homem branco). Claude McKay, menos conhecido
por suas indiscrições do que pela facilidade e habilidade com que ele as
ocultava,zombou de Harrison,fazendo piada de seus apetites eróticos

308
em impressos. Embora cruel, McKay foi afetuoso em sua descrição do
sátiro-socialista, ao descrevê-lo como um homem “eroticamente in
discriminado”. Um relatório da inteligência do governo arquivado em
1921 descreveu Harrison em termos similares, observando que uma das
principais razões para as falhas daquele homem estudioso, inteligente
e altamente educado era o seu “sexualismo anormal”,® que era constan
te, embora ele tivesse uma esposa e fosse pai de várias crianças. O re
latório do governo insinuou mais do que infidelidade. Harrison nunca
tentou esconder sua paixão pelos bailes de drag que frequentava regu
larmente. Em seus diários, descrevia a beleza das mulheres que encon
trava lá. Cada mulher era um mundo à parte,uma descoberta. Uma mão

309
apoiada em um quadril coberto de lantejoulas podia fazer um homem
se curvar, o gesto casual que delineava os contornos do corpo,o tecido
adornado e brilhante convidando o olhar do observador, desafiando-o
ao toque,a imaginar o que podería ser possível; o deleite dessa atitude
era um convite que elejulgava impossível recusar.Será que ele amou al
guma dessas mulheres? Que se abriu para o experimento do baile? Será
que foi guiado pela curiosidade e pelo desejo de explorar intimidades
não definidas pelas polaridades da identidade? Será que acreditava que
as práticas eram flexíveis e cambiáveis?
Sua extensa coleção de literatura erótica® encheu sua cabeça com
uma gama de variações adoráveis e ofereceu diversos esquemas do pos
sível; não havia outra biblioteca adulta igual em Nova York. Julgando
imperativo “traduzir suas idéias sobre a cultura e a superioridade do
homem negro para o idioma do Harlem e por meio dele arengar os ho
mens na rua em cima de um caixote em qualquer esquina conveniente’7
ele vendeu sua biblioteca erótica. Com toda a certeza,a necessidade de
dinheiro o forçou a isso. Na maior parte da vida, ele viveu em extrema
pobreza. E assim foi desde 1911, quando Harrison foi demitido de seu
emprego nos correios depois de ter escrito para o Sun uma carta crítica
a Booker T. Washington,à máquina de Tuskegee® e aos líderes negros
escolhidos a dedo pelos brancos.(A carta, intitulada “Insistence upon
Real Grievances, the Only Course ofthe Race” [Insistência em injus
tiças reais, o úmco caminho para a raça], condenava Washington por
negar as realidades do ódio pela raça, a desapropriação e a exclusão
social dos negros,enquanto se desculpava pela democracia Jim Crow e
insistia que as pessoas negras deviam ser gratas.)
O jovem Henry Miller era apaixonado por Harrison e se maravi
lhava com suas habilidades como orador de botequim. O consenso era
que Harrison, o Sócrates negro, era o orador mais brilhante de Nova
York.É incerto se Miller estava a par dos rumores sobre a vida pessoal
dele, mas talvez suspeitasse,já que percebia a intensidade da paixão e
o espírito de aventura erótica na força da retórica política de Harrison.
Miller considerou esses ensinamentos em Trópico de câncer e reconhe-

* Como Du Bois chamou a rede de influência comandada pop Booker T. Washington.

310
ceu sua dívida em Plexus, insistindo que a liberdade sexual era tão ne
cessária quanto a econômica, e que a força vulcânica de um orgasmo
poderia com justiça ser comparada a uma revolta. Nada disso era no
vidade. Emma Goldman disse isso; Ma Rainey, Bessie Smith e Lucille
Bogan disseram melhor ainda, mas quando o menino branco disse, o
mundo ouviu, e a coisa se tornou uma filosofia, não entretenimento.
Poucos suspeitariam das linhas de conexão entre Trópico de câncer e
The Negro and the Nation[O negro e a Nação], ou perceberam a dívida
de Miller e o tributo a Harrison. As linhas de afiliação e os enredamen-
tos compartilhados se mostram na análise radical e na prosa em fluxo
de consciência, escritas em oposição aos relatórios policiais e às leis
estatutárias, numa batalha contra o império e a barbárie da civiliza
ção. Os dois homens se firmaram como ícones do espírito radical da
época. Os outros — os garotos que gastavam suas economias de um
ano de salário tentando ser a Gloria Swanson negra no Webster Hall ou
no Hamilton Lodge Bali, os tipos ligeiros que enganavam os olhos de
detetives particulares e erguiam barricadas contra a polícia em apar
tamentos no Harlem de forma que as amantes de mulheres pudessem
flertar e dançar sem medo,as jovens trabalhadoras e as madames que
ofereciam refúgio às anarquistas e sapatões, as domésticas obstinadas
e as lavadeiras sonhadoras que andavam na companhia de celebridades
e coristas, as crianças indomáveis que frequentavam religiosamente
os botequins e os cabarés da Jungle Alley, que dançavam até não poder
mais no Garden ofJoy e que,imaginando a si mesmas como libertado
ras,encheram os bolsos de pedras em uma tarde de março,depois que o
primeiro tijolo foijogado na vitrine da Kress Five and Dime —*todos
eles permanecem desconhecidos.Eles eram os rostos na multidão e de
sejavam um outro mundo tão avidamente quanto o fervoroso orador
de botequim.

* Em ig de março de 1935, Uno Rivera foi surpreendido ao furtar um canivete e ameaçado


por um funcionário da loja. A polícia foi chamada e,ao chegar no local,encontrou uma mul
tidão reunida na frente do estabelecimento.Com medo do que as pessoas poderiam f^zer
se Uno fosse preso,o gerente solicitou que os policiais o liberassem. Logo se espalharam
rumores de que Lino teria sido morto pela polícia e então as pessoas foram às ruas para
protestar contra a violência policial, dando início à revolta do Harlem de 1935.

311
TN

«. /» '
-yi
--r ●
A beleza do copo

No Verão Vermelho de 1919,^ nada parecia mais improvável e in


tempestivo do quejovens negras que ainda não estavam arruinadas
pela necessidade e pela privação, e que sonhavam com o que talvez
fosse possível. Apesar das quarenta revoltas raciais que haviam er
radicado os últimos sinais do otimismo pós-guerra; dos brancos em
sua fúria assassina de Chicago ao Texas; das pessoas negras devol
vendo com violência, lutando contra eles por suas vidas, determi
nadas a provar, ainda que umas para as outras, que a liberdade não
era brincadeira; das tabelas e imagens detalhadas de corpos lin
chados publicadas mês a mês na The Crisis: A Record ofthe Darker
Races\ da linha de cor que cerceava a cidade e solidificava os mu
ros do gueto negro emergente; da inevitável servidão do trabalho
doméstico e da violência íntima de coisas dolorosas feitas por trás
de portas fechadas, Mabel Hampton^ ainda acreditava que poderia
viver uma bela vida.
Aos dezessete, ela estava tão cansada do trabalho doméstico
quanto de Jersey City. Nos últimos dois anos,desde que se formara na
escola, vinha trabalhando como doméstica na casa dos Parker, além
de cuidar dos filhos deles. A família era boa gente; Mabel teria larga
do o emprego antes de se permitir sofrer algum abuso. Mesmo assim,
odiava o trabalho. Servidão era servidão. Não fazia diferença se cha
mavam de serviço doméstico,trabalho do lar ou se alegavam que você
tinha sido “treinada” para isso; Mabel,como a maioria de seus pares.

313
ansiava por algo melhor, por outra arena que nâo a cozinha ou o quar
to, onde pudesse exibir suas habilidades e talentos.
Se continuasse em Jersey, nenhuma perspectiva melhor que o
trabalho doméstico a aguardava, e ela queria mais que uma vida de
empregada. Mabel era agradável aos olhos e tinha uma voz adorável.
Todo mundo lhe dizia isso. Seu tio foi o primeiro a tirar vantagem
de seu talento. Quando Mabel tinha nove anos, ela se arrastava atrás
dele pelas ruas do sul de Manhattan,cantando por obrigação nas vie
las e pátios do Greenwich Village. Pessoas nas janelas, pendurando
lençóis molhados e roupas de baixo no varal e descansando em saídas
de incêndio se maravilhavam com a pequena e jogavam moedas aos
seus pés. Seu tio George enchia os bolsos com os trocados e então a
arrastava para o próximo quarteirão. Ele nunca disse que Mabel tinha
uma voz adorável, nem chegou a oferecer um centavo para ela, mas
ainda assim ela tinha ciência de que sabia cantar. Na esperança de
que esse dom pudesse lhe fornecer uma rota de fuga do trabalho de
limpar uma casa e cuidar de crianças, ela fez aulas de canto e dança,
sempre imaginando uma vida melhor do que aquela que conhecia, e
outra vocação que não o serviço doméstico ao qual fora sentenciada.
Como os milhares de outras pessoas que tinham o Harlem como des
tino, Mabel desejava uma parcela maior do mundo do que aquela que
lhe havia sido atribuída.
Sua amiga Mildred Mitchell a encorajou a fazer uma audição para
o coro de um teatro de revista em Coney Island e, para o seu delei
te, ela conseguiu um papel no espetáculo. Mabel não era a melhor
dançarina; mas tinha entusiasmo, seu cabelo ficava lindo quando re-
cém-alisado e era magra o suficiente para caber no figurino de velu
do que havia sido usado pela garota que substituiu. Mabel se gabava
para as amigas. Viola Bellfield e Maud Brown,dizendo que estava de
mudança para o Harlem para buscar uma vida nos palcos. Essa era a
verdade nos detalhes, mas estava infiada de esperanças disparatadas
com relação ao futuro que a fileira do coro reservava e às liberdades
proporcionadas pelo Harlem. A visão de uma vida desse tipo seduzia
Mabel e as amigas, que embarcavam regularmente no trem de Jersey
City para Manhattan à procura de romance e aventura. Com exce-

314
çào de Mildred,todas as garotas que Mabel conhecia trabalhavam em
cozinhas, fábricas ou em bordéis. Mildred e ela eram duas sortudas.
Coney Island lhe forneceu um escape da servidão, e o palco era um
território livre. Dançar e cantar alimentaram a esperança radical de
viver de outra forma, e, nesse sentido, a coreografia era apenas ou
tro tipo de movimento pela liberdade,outra oportunidade de fugir ao
serviço, outra elaboração da greve geral. Participar do coro envolvia
muito mais que a sequência de passos ou o arranjo de danças no palco
de um salão ou na pista de um cabaré. Como a fuga da plantation, o
escape à escravidão, a migração do Sul, a debandada para a cidade
ou as perambulações pela Lenox Avenue,a coreografia era uma arte,
uma prática de se movimentar mesmo quando não havia outro lugar
para ir, nenhum lugar para onde fugir. Era um arranjo do corpo que
escapava à captura, um esforço para tornar o inabitável habitável,
para escapar ao confinamento de um mxmdo cercado por quatro pare
des, um cômodo apertado e abafado. Tumulto,levante,fuga — eram
as formas de articulação para se viver livre, ou ao menos tentar,eram
formas de insistir:Eu não estou aquipara servir. Eu me recuso.
Como outras domésticas fugitivas e jovens coristas, Mabel queria
ser livre. Ela não queria ganhar a vida esfregando o chão,lavando rou
pa nem cuidando dos filhos dos outros. Não queria estar presa a um
casamento. Não queria um homem metendo dentro dela e fazendo
bebês. Não queria se matar para alimentar e criar os próprios filhos.
Não queria suportar a mágoa e a vergonha de ser incapaz de proteger
uma criança. Então, Mabel se mudou para o Harlem determinada a fu
gir de tudo isso — da trama conjugal: papai, mamãe e filhinho; de uma
existência de joelhos —,determinada a construir uma vida totalmen
te nova, e aos dezessete acreditava que isso era possível. Se não fosse
possível no Harlem, então não seria possível em nenhum outro lugar.
Aquela cidade-dentro-da-cidade fornecia um refúgio necessário para
sonhadores, artistas, manifestantes, migrantes, socialistas, campone
ses sem terra,anarquistas,desocupados,bichas,comunistas,lésbicas e
todas as outras pessoas determinadas a moldar uma vida que não fosse
brutalmente cerceada pela linha de cor, arruinada pela servidão, inti
midada pela violência branca,nem dominada por um homem.

315
?TF

Três pequenos cômodos só dela


no porão de uma pensão no Har-
lem era um luxo inacreditável. Mabel se deleitava por não ter que
cuidar de ninguém além de si mesma,por não ter que se defender de
tios e padrastos.Tinha se livrado daquele uniforme engomado de em
pregada de gente branca para sempre, e adentrara um mundo onde
todas as pessoas belas eram negras. Seu apartamento ficava na 122nd
Street, entre a Seventh Avenue
e a Lenox, e ela pagava dez dólares
por semana,poucos dólares a menos que seus ganhos semanais como
dançarina. A Broadway negra,como todo mundo chamava a Seventh
Avenue, ficava bem na sua porta. Era uma rua “fervilhante de vida
e ardente de cores”, onde a
que pulsava pelas ruas exempli-
ficava a vitahdade do ordinário. As quadras de cortiços no HarL
tmham a maior densidade populacional da cidade ^ e sua população
tripUcaria em 1930. Cinco anos depois,tudo explodiría.
A Lenox Avenue era uma grande rota de passagem onde todos os
elementos podiam ser vistos —
mulheres ligeiras, ladrõezinhos, pre-
gadores itinerantes, mascates
e jovens ascensoristas, cozinheiras e
empregadas domésticas, artistas da pintura e da escrita, socialistas e
nacionalistas negros; e os esnobes: a elite negra, os empreendedores e
profissionais.Todas as tonalidades de gente negra desfilavam pela ave
nida-dos bolas pretas*(o negro mais negro)a negros que mal podiam
ser reconhecidos como tal. ou. como W. E. B. Du Bois os descreveu,
brancos com sangue negro. Sem dúvida, o coração belo e pulsante do
H«lem era o povo negro: os radicais das índias Ocidentais** empolel-
rados em caixotes na Lenox Avenue que discursavam sobre a violência
I da exploração capitalista e a injustiça da guerra imperial; os naciona
listas no Liberty HaU que derramavam os sonhos de um país de homens

dadlIT ■ P»Jo™«va a pesaoaa reílntaa advinda do nome


1";““eWyofHartam S/ang(.94=), a antropóloga
zo™ Neala Hurston (189.-.960)aponta o tarmo como uma girla corranta no Harlem
**
I a sfhaT f «dP compreendam as Antilhas
H esses migrantes forem pensadores pioneiros s
«spelto da situaçso social, política e econamiea de seu grupo no Harlem,em Nova York.
O movimento Impulsionou diversas modificações no comércio. rellgISo e sociologia da
«'egiao.(n.e.)

316
negros; os espiritualistas que induziam a melancolia e a nostalgia para
falar com seus entes queridos que partiram; os migrantes sulistas ven
dendo inhame assado e pés de porco em conserva na esquina da Fifth
Avenue com a 132"'^ Street; as domésticas,exaustas e quase mortas,que
se arrastavam para casa à luz da noite com os uniformes embolados
em sacos de papel, ansiosas por serem reanimadas com um banho, um
pó facial e um vestido novo comprado na loja de departamentos Klein
para a única noite na semana em que elas não tinham de trabalhar;a so
cialista que declarava em uma cadência nítida e firme o idioma formal
inculcado pela faculdade e pela igreja negras, assim como pela escola
colonial, que um novo mercado de escravas havia substituído o antigo
e que as mulheres negras ainda eram forçadas a vender seu corpo e seu
trabalho para quem oferecesse o maior lance; as criançasjogando bola
na rua quando o tráfego permitia e até que o entardecer desse lugar
à noite e elas fossem chamadas para casa; galanteadores muito bem-
-vestidos que cruzavam a Fifth Avenue com uma garota de pele clara
pendurada em um braço e uma jovem mais escura no outro. Os agen
ciadores da noite ainda dormiam nos cortiços, pois raramente davam
as caras antes da madrugada ou iam descansar antes das cinco da ma
nhã. Esta era a multidão: os coadjuvantes, os figurantes, gente comum
cujas lágrimas e risadas definiam a vitalidade do Cinturão Negro, o
coração e a alma da beleza e da decepção que era o Harlem. Andando
pela Seventh Avenue, Mabel se deleitava em se perder na multidão,em
ser carregada pelo fluxo de corpos pretos, marrons e acastanhados,em
fazer parte do coro.

No pequeno espetáculo em Coney Island, o coro era composto de oito


garotas, incluindo Mildred e ela. O famoso Hendersofis Music Hall
ofuscava o pequeno musical de revista; mas ainda era teatro e era isso
que importava. A carreira de Mabel estava apenas começando e, sem
dúvidas,ela rumaria para lugares melhores e atuaria em espetáculos de
verdade no Gherry Lane Theatre,Lafayette Theater, Garden ofJoy,
Alhambra e Carnegie Hall. Toda a vez que pisava no palco, sentia-se
como uma versão maior e melhor de si, às vezes até como se não fosse

317
Mabel,e ambas as experiências afaziam se sentir maravilhosa. Mabel
se lembrava da primeira vez que se sentou na platéia de um teatro vau-
deville e assistiu aos artistas no palco: ficou fascinada, como se uma
parte dela há muito tempo adormecida tivesse despertado, como se
pudesse sentir profundamente e não temer nada. Apreciou com inten
sidade as cantoras e os atos musicais^ mas era mais que isso. Aquilo era
o anseio por estar viva e presente em cada parte de seu corpo, por ser
tomada por aquele fluxo de sensações, pelo despertar da percepção.
Naquele momento,Mabel pensou:quero subir neste palco. Eu consigo.
Era um emaranhado de emoções difícil de distinguir. Por intuição,
ela sabia que adentraria outro arranjo do possível, o figurino de uma
outra existência, habitaria um corpo diferente daquele que foi violado
em um depósito de carvão. Essa outra persona podería lhe permitir
viver com mais intensidade no mundo,habitá-lo sem ser machucada,
ou ao menos ser capaz de suportá-lo. Quando as luzes da platéia di
minuíram, Mabel se deleitou nessa outra existência, que não era ela
dejeito nenhum,como se o palco tivesse a capacidade de transformar
seu cálculo pessoal, ampliar a noção básica de quem ela era de modo
que todas as partes se somavam para formar alguém muito maior do
que elajamais fora. Não
eram apenas as luzes, os figurinos de veludo
e os ritmos pulsantes do último rag^ mas a beleza de se transformar
junto a outras sete garotas, o que acontecia em público,sob a pressão
e o encorajamento dos olhares de estranhos.
Depois da última apresentação da noite, a mãe de MUdred buscava
as duas jovens e as escoltava na longa viagem de metrô de Coney Is-
land ate o Harlem. No trem, Mabel e Mildred falavam sobre a vida de
glamour pela qual ansiavam e imaginavam se e quando elas deixariam
o coro por coisa melhor. Depois de dançar por horas em Coney Island,
lani para algum clube noturno no Harlem e dançavam mais. Geralmen
te,iam em alguns dos cabarés naiss* Street,o Conner’s,o Parker’s ou o
Edmond s Cellar,qualquer lugar que não fosse ostentoso,onde elas não
fossem escuras demais para serem aceitas. A noite passava enquanto
se divertiam na pista de dança e viam os casais dançando o slow drag,
um baUado suave e sensual^ no qual o par.com os quadris colados, mal
saía do lugar ou,se convidada, Mabel seguia um estranho até a pista e

318
dançava o turkey trot, uma marcha rápida e de estilo livre na qual um
dançarino se movia de forma autônoma, mas conduzido pelos ritmos
do outro.Para ela, nada de danças sensuais.
Dançar no cabaré era diferente de dançar no palco. Nas apresen
tações, quando as luzes iluminavam o palco, você se tornava outra, e
essa pessoa guiava seus movimentos,direcionava seus gestos. O coro,
antes uma fileira de dançarinas separadas, se transformava em um
corpo compartilhado à procura de um ritmo comum. E esse corpo se
movimentava como um só,apagava as fronteiras do eu limitado, sen
tia e se movimentava em comum acordo, comunicando-se com o pú
blico por meio da cadência de vozes, gestos, variações de movimento
e do ritmo das palmas e dos passos. As pernas chutavam,se erguiam
e giravam como se todas estivessem coordenadas, encontrando e ha
bitando um lugar na música,direcionadas pelos ditames de um corpo
comum. As dançarinas também se movimentavam de maneira inde
pendente, orbitando uma a outra como pequenos planetas, um corpo
que se afasta dos demais, mas ainda assim permanece conectado pela
força, gravidade e propulsão,e então volta a se reunir na fileira, mais
uma vez envolvido na composição coletiva e no movimento colabora-
tivo. O coro se deslocava pelo palco, deliciava os espectadores,fazia-
-os desejar que estivessem ali em cima também.
No cabaré, não era fácil para Mabel perder sua pele individual.
O cabaré era tão diferente do palco quanto das festas privadas e dos
bares clandestinos(um clube que funcionava até altas horas em resi
dências particulares, o tipo de lugar onde o “gim era servido de jarras
de leite”).® Cada espaço tinha seu próprio roteiro e conjunto de requi
sitos, ditava os termos da possibilidade, decidia os arranjos e com
portamentos. O desafio era improvisar dentro dos limites do espaço,
flexibilizando e quebrando as regras sem quebrar aforma. No cabaré,
Mabel e Mildred dançavam com homens porque as danças de casais
ou em pares haviam substituído a dança em grupo dos botequins® e
das casas de oração. Mabel preferia dançar com mulheres, mas mes
mo em lugares como o Garden of Joy ou a Ciam House, repletos de
veados, bichas, amantes de mulheres e sapatões, ela não se sentia se
gura dançando com uma mulher nos braços.

319
Fora do palco, era extremamente cuidadosa para não convidar o
escrutínio dos homens e dissuadia a perseguição deles. Em mais de
uma ocasião,ao se esquivar das investidas de um pretenso admirador,
o homem perguntou alto:“Qual é o seu problema?”,ou entoou em uma
voz que era parte ameaça e parte convite: “Posso ver nos seus olhos.
Eu sei o que você quer”. Na única vez que fingiu interesse e entrou no
papel, Mabel pagou muito caro. Ela nunca contou a ninguém a razão
de não ter ido ouvir Fletcher Henderson e sua Club Alabam’ Orches-
tra naquele verão ou o motivo de seu desaparecimento. Por que todo
mundo tinha que saber da sua vida?^
As festas privadas organizadas por amigos em apartamentos no
Harlem eram os únicos lugares onde se sentia confortável, segura.
Essas reuniões tinham uma série de arranjos totalmente diferente.
Não havia gente branca para observá-la como se fosse uma espécie
rara ou um tipo estranho de ser humano. Nenhum homem disposto a
invadir ou coagir uma garota, a não ser que um marido irado® apare
cesse. Nada daquele pessoal do centro, ansioso para se espantar com
bichas e negros, apenas esposas e namoradas brancas das sapatões e
amantes de mulheres. A maioria de suas amigas era do teatro, e me
tade era entendida e amante de mulheres.® Com certeza^ o Harlem era
tão queer quanto negro

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INFECitCUS

320
No teatro, no cabaré e nas festas particulares, Mabel dançava para
tentar se sentir livre, para compor uma vida emocionante e bela, para
se colocar em um caminho errante que poderia guiá-la para as ma
ravilhosas experiências oferecidas pelo Harlem. Qualquer passo exe
cutado na pista de dança era um esforço para escapar às proibições
e punições que cada vez mais circundavam o gueto e aguardavam as
jovens que ousavam viver fora dos limites do casamento e da servi
dão,ou que ousavam andar pela cidade sem a companhia de maridos
e irmãos. Mildred e Mabel arriscavam o perigo para desfrutar da pe
quena liberdade que podiam reivindicar.
Na pista de dança,recusavam o mundo que as recusava: para o in
ferno com as ruas onde os negros não podiam viver, os restaurantes
que se negavam a servi-los, as lojas que preferiam fechar as portas a
contratá-los. Malditos sejam os negros esnobes e os clubes e bodegas
que as barravam na porta por serem negras e pobres demais.
A aspiração que alimentava esses corpos em movimento e permi
tia sua reunião conectava a fileira do coro aos corpos amontoados na
pista do cabaré, cruzava a Seventh Avenue e lutava para sobreviver
em apartamentos no Harlem. Todos aqueles corpos suados reunidos
na pista do cabaré buscavam escapar da rotina de trabalho maçante e
das novas formas de captura à espera bem ali fora e, às vezes, dentro
do clube. Mabel se movia com os demais,abarrotados e apinhados na
pista de dança. Por algumas horas depois do trabalho, ou até o rom
per da aurora, a ela era permitido um pequeno alívio do medo e do
horror que residiam fundo no corpo; cintilante e extasiada, ela esca
pava da solidão.
Nas mesinhas amontoadas no espaço ao redor da pista de dança,
os informantes e oficiais da polícia de costumes procuravam se mis
turar na multidão,tentavam se perder no enxame.Anotavam a dispo
sição do clube, os nomes dos clientes regulares e tentavam adivinhar
quem é que fazia algo errado e quem só se divertia. As anotações ra
biscadas nas folhas de um bloquinho de papel pautado descreviam os
movimentos sugestivos das jovens como “sem classe” e “obscenos”, e
um sorriso aberto demais ou um convite para tomar uma bebida eram
as provas necessárias para garantir uma prisão na noite seguinte.

321
Os relatórios solicitados pela comissão de bons costumes taxavam
de prostitutas jovens como Mabel e suas amigas, e descreviam o ca
baré como “um lugar de encontro para viciados em cocaína, vagabun
dos, bichas e cafetões. Negros e brancos frequentam o lugar, embora
uma placa na entrada diga:‘Apenas pessoas de cor’”.^’
No círculo imperfeito da pista de dança, Mabel e suas amigas esta
vam a um passo da liberdade. Aquele algo a mais, a improvisação de
estar junto, o convite à reunião, os passos de dança que anunciavam
a luta contra uma vida imposta, o abraço sensual de um corpo não
marcado pelo estigma e indisciplinado pela servidão.
Não importava se era um botequim subterrâneo ou uma sala de
concertos. Em seu sentido mais amplo, a coreografia essa prática
de corpos em movimento era um chamado de liberdade. Os giros
dos quadris, a elegância travessa no balanço do shimmy, o mesmo cãm-
biante do movimento coletivo,’^ a repetição, a improvisação do escape
e da subsistência, concretizavam o sonho compartilhado entre empre
gadas, jovens ascensoristas, prostitutas, galanteadores, estivadores,
coristas e moradores de cortiços o sonho de não serem aprisionados
à margem,de não serem cerceados no gueto. Toda dança era um ensaio
de fuga. Os ritmos dançantes de um ragtime os encorajavam a acreditar

322
que poderíam escapar à mão de ferro das leis sociais e da prisão dos du
ros fatos. As chances não estavam a seu favor,e era muito provável que
continuassem exatamente ali: presos no mesmo lugar, vivendo com
pouco e sem quase nenhum sinal de mudança no horizonte.
Na pista de dança,ficava evidente que a existência não era apenas
uma luta, mas também um belo experimento. Era uma investigação
sobre como viver quando o futuro se encontrava impedido. Como era
possível prosperar sob ataque? Poderia a alegria proporcionada pelo
cabaré atenuar a agressão do racismo? Ajudar os dançarinos a se li
vrar do sufoco da pobreza por algumas horas? Poderia silenciar qual
quer dúvida sobre a vida em perigo? Ou seria um experimento para
recriar o mundo que tomou por missão agir contra você e os seus?
Quando Chandler Owen publicou seu ensaio “The Cabaret as a
Useful Social Institution”[O cabaré como uma instituição social útil]
na edição de agosto de 1922 da The Messenger, o mais radical entre os
periódicos negros (descrito em um memorando do governo pelo ar
quiteto da Ameaça Vermelha,o procurador-geral A. Mitchell Palmer,
como “a mais capaz e perigosa de todas as publicações negras”), ele
identificou o cabaré como a única instituição democrática dos Esta
dos Unidos.Era a única que não se definia pelas leis Jim Crow e que se
recusava a abraçar a segregação. Sem dúvida, Owen tinha em mente
jovens como Mabel e Mildred e sua avidez por um novo conjunto de
arranjos sociais. O jovem socialista traçou claramente as conexões
entre o apetite sexual e os movimentos na pista de dança — e a pró
pria pista como um movimento contra o racismo e um instrumento
da reconstrução da democracia estadunidense. Para ele, o cabaré era
uma instituição que se opunha ao confinamento do gueto e à segre
gação racial impostos pela linha de cor. O cabaré provou ser o único
lugar capaz de resistir à violência e ao ódio da revolta racial. Apenas
no cabaré,ele escreveu, nós podemos encontrar “centenas de homens
brancos e de cor [...] mulheres brancas e mulheres de cor, sentados
às mesas, conversando e bebendo, desfrutando da música, dançan
do quando quisessem”.^® Essa sociabilidade inter-racial era policia
da e punida pela comissão de bons costumes numa época que Emma
Goldman caracterizou como infestada por “uma epidemia da virtu-

323
de”.*'^ Owen foi longe, e descreveu a proibição do convívio social e da
intimidade inter-raciais como uma revolta racial no reino do prazer.
Além dos mais radicais e militantes, de artistas e libertinos, poucos
ousavam romper com a linha de cor.
Se soubesse das festas que Mabel e seus amigos organizavam em
apartamentos no Harlem,se tivesse observado a multidão reunida na
pista de dança onde os xeiques mais belos eram às vezes chamados
de Jackie e Bobbie,se tivesse discernido as formas como a recusa dos
códigos de gênero era um ataque frontal à linha de cor, então Owen
poderia ter sido capaz de considerar o que acontecia nas reuniões
sociais privadas que aconteciam nos cortiços do Harlem como outro
esforço para a reconstrução de tudo. As festas privadas e os bares
clandestinos eludiam o escrutínio da polícia e do Estado com mais
habilidade. As amantes de mulheres que se reuniam em apartamen
tos no Harlem criavam liberdade em zonas isoladas além do alcance
de investigadores particulares, dos voyeurs e do pessoal do centro da
cidade que ia visitar o gueto. Lares privados e cortiços forneciam um
espaço clandestino, a brecha do refúgio dentro das zonas altamente
policiadas e vigiadas dos guetos do Harlem.
Passar uma noite na companhia de Mabel e de outras jovens ne
gras determinadas a desafiar as proibições das elites dominantes e
dos líderes da raça(que haviam entrado em um acordo de cavalheiros
sobre a segregação e respeitavam os valores do lar patriarcal) poderia
ter diminuído o desconforto de Owen^® com relação às mulheres mas-
culinizadas e permitido que ele reconhecesse na fidelidade às normas
de gênero e na punição do desvio sexual outras formas de se manter e
policiar a linha de cor.

Lugares como o Edmond’s Cellar eram repletos de luxúria e desejo, e


essa intimidade pública era indiferente à privacidade e à linha de cor.
Os gemidos e lamentos do slow drag em sua crueza de estilo confun
diam a distinção entre balançar o corpo e fazer sexo,entre a dança e o
crime, como qualquer um que ouvisse as conversas na pista de dança
poderia atestar:

324
“Ei, querida, manda ver!”
“Posso fazer isso, sim”, ela disse.
“É,você tá com tudo,tá prontinha.”
“Pode até ser pouco, masjá dá pra acabar com você”, ela respondeu.
“É,eu sei.”
“Bom,eu te mostro.”
“Que foi, docinho? Não quer provar um pouco da belezinha aqui?”
“Quanto custa?”
“Cobro cinco de homens brancos, mas dos negros só três”, ela res
pondeu.^^
Nas primeiras horas da manhã,as duas coristas exaustas voltavam
para a casa de Mildred suadas e animadas. Na cama,elas se beijavam
e se abraçavam como se fossem marido e mulher,como se Mabelfosse
o sr. Hampton.

A sra. Mitchell acolheu a garota sem mãe como uma hlha. E gostava
especialmente de Mabel porque ela era inteligente e charmosa,a manei
ra exata como Mabel desejava ser vista, então ela aceitou as atenções
da sra. Mitchell de imediato,feliz em ser tratada como uma segunda
filha. Desde os dez anos,a vida de Mabel dependera da habilidade de
conquistar com seu charme as famílias de estranhos e de amigos. Foi
uma técnica aprimorada pela perda. A mãe morreu quando ela tinha
apenas um ano,então a avó cuidou dela até os oito,o último ano em que
foi uma criança. O baque do corpo da avó caindo no chão da cozinha
foi um som que a acompanharia pelo resto da vida. Quando ficou claro
que a avó não se recuperaria do derrame,sua tia Nancy veio de Nova
York. Mabel mal se recordava do funeral, mas se lembrava de que a tia
embalou a casa inteira e vendeu tudo em dois dias. Sabendo que nunca
mais voltaria a ver a casinha com fachada de ripas de madeira e sua
bela cerca de roseiras, os pés de caqui ou os bordos-negros, as casta-
nheiras e os arbustos carregados de amoras que povoavam os bosques
nos quais ela brincava com os amigos,nem sentiria o cheiro denso das
uvas maduras que se decompunham no caramanchão do quintal, Mabel
chorou de soluçar durante toda a viagem de trem da Carolina do Norte

325
até Nova York.A tia não tentou confortá-la. Na viagem,ficou evidente
que não se importava nem um pouco com Mabel. Em Winston-Salem
ela se gabara por criar a filha de sua irmã falecida, mas na verdade ela
só se importava com o dinheiro da avó de Mabel. Quando finalmente
chegaram na Pennsylvania Station,o marido de sua tia estava à espera
para acompanhá-las até em casa. Mabel, esse é o seu tio, o reverendo
George Mills. Ele era um homem alto de traços bem-feitos e um cabelo
bonito e ondulado. Mas ao olhá-lo, Mabel sentiu medo.
Os paralelepípedos de granito e tijolos vermelhos que pavimenta
vam a entrada e o pátio do prédio da tia de Mabel eram lindos. Quando
ela olhava pela janela, os lençóis e as roupas penduradas no varal obs-
trmam o céu e lançavam sombras no quintal. Greenwich Village não se
parecia em nada com Winston-Salem. Eles moravam em um pequeno
apartamento térreo com uma sala de estar, sala de jantar e um quar
to. Mabel não tinha uma cama só dela como na casa da avó. Seu tio a
obrigava a dormir no chão da cozinha ou no depósito de carvão, e sua
tia não dizia nada para evitar uma agressão. Aos domingos,a pequena
congregação do reverendo Mills se reunia na sala de estar. Mabel ajeita-
va
as cadeiras para que o apartamento parecesse uma igreja. Ela havia
frequentado uma igreja de verdade com a avó, com um pastor de ver
dade que jantava na casa delas todo domingo, então não achava que a
sala de estar de George Mills parecia uma igreja. Durante a semana,ela
acompanhava o tio pela cidade enquanto ele pregava a estranhos e ela
cantava
músicas e hinos religiosos. Em seu retorno pela Eighth Street,
Mabel rezava para que a tia estivesse em casa, não porque ela fosse ca
paz de proteger Mabel,mas ao menosfornecia outro objeto para a fúria
dele. A janela do quarto abria para o pátio,e, às vezes,o medo de que os
vizinhos pudessem ouvir era a única coisa que fazia o reverendo parar.
Ele prendia os braços de Mabel na cama e abafava seus gritos com as
mãos. Ela esperneava e se encolhia sob o peso dele. Da cama,ela podia
ver o pátio e tentava tornar seu coração tão duro quanto aquelas pedras.
Elejá tinha matado um homem branco» então não pensaria duas vezes em
matar uma negra. Mabel sabia que não devia dizer nada a ninguém.

326
Aida Overton Walker ou Ethel Waters? Ethel Williams ou Inez Clough?
Sobre os pratos pesados e repletos de frango frito, salada de batata e
couve,as garotas discutiam sobre quem era a melhor cantora. Elas se
empanturravam, diziam palavrões e contavam histórias indecentes
quando a sra. Mitchell não estava em casa. Mabel, Mildred e as ou
tras garotas do coro cabiam ao redor da mesa, mas soavam como se
estivessem em umas vinte, agiam como adultas,falavam ao mesmo
tempo, o chão cedendo às mais barulhentas. Tentavam chocar e im
pressionar umas às outras com quanto sabiam sobre os homens.O que
importava era o tamanho ou a grossura? Eu sei que você não chupou
aquele preto. Menina, você tá mentindo. Não faz nenhuma diferença
se ele só pensa em si e não dá a mínima pra você. Elas comparavam os
amantes às amantes e concordavam que as mulheres eram mais gentis
que os homens,embora às vezes aferramenta fosse necessária. Dedos
dão conta do recado! As risadas irromperam.Mabel ficou em silêncio.
Sentia vergonha de admitir que nunca tivera amantes.Apenas quando
reclamavam da vida no teatro, maldizendo os gerentes e produtores
que sempre encontravam uma desculpa para colocar a mão onde não
eram chamados,ou que tentavam atrair e assediar uma garota para que
ela aceitasse dar uma rapidinha embaixo do passadiço,é que Mabel se
sentia livre para falar com tanta autoridade quanto as demais.Estava
cansada de homens tentando enfiar as mãos por baixo de sua saia para
sentir sua buceta. Todas se mataram de rir, pois não esperavam que
a pequena e doce Mabel falasse como um marinheiro. Elas se preo
cupavam, pensando em qual lugar trabalhariam quando a tempora
da chegasse ao fim.Além de se apresentar em Coney Island, Mildred
também dançava em um cabaré no Harlem. Às vezes havia trabalho
no Lafayette Theater, mas a menos que você fosse uma P.C., eles nem
olhariam para você. p.c.? Bem-vinda ao teatro negro. Elas ensinaram
os códigos de cor para Mabel: P.R. = preta retinta/preta(nunca havia
lugar para garotas retintas no coro); M.E. = mulata escura/marrom;
P.C = pele clara. Praticamente todas as protagonistas e dançarinas dos
clubes mais chiques do Harlem frequentados pelo pessoal do centro
eram claras, radiantes e quase brancas. M.c. = mulata clara. Havia
muita discussão sobre as mulatas claras,se tinham a pele mais escura

327
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■ '»»»

com um tom avermelhado ou se tinham a pele muito clara, com olhos


ou cabelos claros. Mas não importava. O ponto era: sua pele decidia
onde você podería se apresentar e quem te olharia de baixo para cima
ou de cima para baixo. Elas discutiam sobre o melhor creme de rosto
para clarear a pele e concordavam que o pó facial de Madame Walker
podia fazer qualquer garota de pele escura se parecer com uma de pele
amarelada, clareava pelo menos uns dois ou três tons. Você não preci
sava ser clara, só parecer.Qualquer uma podia se passar por mulata
se a iluminação da casa fosse forte o suficiente.
Quando a sra. Mitchell entrou em casa com sua amiga Gladys,
o tom da conversa mudou. Mabel não falou quase nada, mas ago
ra por motivos diferentes. Gladys era quase da mesma idade que a
mãe de Mildred, talvez até mais velha, mas era bonita e elegante,
um deslumbre de mulher que sugeria problema. Quando Mabel viu
Gladys,começou a se sentir estranha, então baixou os olhos, mas ao
erguer o rosto de novo, aquela bela mulher,alta e acobreada de cabe
lo grisalho, estava olhando para ela, e um arrepio percorreu Mabel
como eletricidade. Gladys dançava em Goney Island, mas em um ato
diferente. A maioria das garotas do coro não era muito mais velha

328
que Mabel, que, aos dezessete, ainda parecia uma criança, pois era
muito miúda. Ela ficou desconcertada com aquela mulher e tentou
descobrir o que a fez se sentir tão desconfortável. Seria a dor no
fundo do estômago ou o calor em suas partes íntimas? Sentiu-se im
potente, e isso a assustou; mas ainda assim ela não conseguia pa
rar de olhar para aquela mulher. Mildred percebeu, e a sra. Mitchell
também. Com certeza Mabel devia ter parado de encará-la depois
que a sra. Mitchell olhou de uma para a outra, mas ela não conse
guia, e durante todo esse tempo Gladys a olhava também. Mabel
acreditava que era possível saber tudo ao olhar alguém nos olhos,se
essa pessoa era boa ou má,se tinha a capacidade de amar ou se po-
deria machucar você. Os olhos daquela mulher eram como um ímã,
atraíam Mabel e impediam que ela desviasse o olhar. Mabel ficou
calada pelo resto da noite.
No dia seguinte,após o ensaio, Gladys abordou Mabel. A primeira
coisa que disse foi:“Agora me diga a verdade. Quando eu te olho,você
se arrepia toda, não é?”.
“Acho que sim”, Mabel respondeu, balançando a cabeça e concor
dando o tempo todo,sem palavras e sem saber ao certo se alguma coi
sa tinha escapado de sua boca.
“Preciso dar um jeito nesse arrepio”, Gladys sussurrou no ouvido
de Mabel.

Talvez ela tenha se permitido por causa da visão de todos aqueles


amantes que buscavam proteção embaixo do passadiço ou o estímulo
dos corpos muito juntos e espalhados pela praia, os membros pe
gajosos e entrelaçados, corpos próximos demais, mal respeitando o
limite da decência.
As pessoas chegavam aos montes em Coney Island, vindas de toda
a Nova York para fazer amor na praia. Ninguém se importava com
isso, a não ser que elas formassem o tipo errado de casal: um negro
ou chinês com uma jovem branca, ou uma jovem de cor suspeita de
prostituição, ou um veado e seu namorado. As pessoas transavam por
toda a praia.*® Isso era tão maravilhoso quanto o oceano.

329
Em uma novela ou em uma peça, o romance de uma corista teria tudo
a
ver com ambição. Mas a atração que Mabel sentia por Gladys tinha
pouco a ver com o glamour do palco ou com algum desejo de assumir
o papel de Gladys. Quando Gladys disse:“Você vai ter que encontrar
outra namorada”,’^ Mabel ficou arruinada.

330
A sra. Mitchell se sentiu responsável pelo que aconteceu, porque
tudo começou em sua casa.“Mabel é como uma filha pra mim”, disse
para Gladys antes que seu caso com Mabel começasse. “Então não
faça mal a ela. Não brinque com Mabel. Se você não pretende ficar
com ela, então melhor deixar a menina em paz”. A sra. Mitchell sabia
que Mabel não tinha a quem se agarrar, como é que Gladys poderia
mudar isso?“Me promete que você vai deixar a menina em paz.” Gla
dys concordou, mas alguns dias depois quebrou a promessa. Incapaz
de resistir ao ardor de uma primeira paixão, ela tomou Mabel; e to
mou tudo o que pôde dela.
Mildred tentou convencê-la a terminar o caso antes que começasse,
antes que Mabel tivesse usado a palavra amante como se lhe pertences
se, antes que tivesse se acostumado com essa palavra. Minha amante.
Era uma palavra nova, mas não incomum como as outras que Gladys
ensinou a Mabel, palavras que Gladys oferecia em vez de explicar por
que as duas não tinham futuro; ou que transmitia como um pedido de
desculpa por um crime prestes a ser cometido,ou como um termômetro
para as coisas ruins que estavam por vir. Expressões como acabarcom a
vida confessavam o desejo e o risco,tríbadevmhai repleta de promessas
de prazer, enquanto a palavra léshica^^ que Mabel tinha lido num livro
de Havelock Ellis, não significava nada para ela, tinha pouco a ver com
aquelas que desejava e com a forma como as desejava. Ela nunca tinha
ouvido ninguém falar a palavra lésbica até Gladys dizê-la, pronuncian
do para tentar afastar Mabel. Ela insistiu tarde demais: “Não pode
mos”.“Sou casada.”“Não quero acabar com a sua vida.” Mabel pensou,
mas não disse:“Vocêjá acabou com ela”.
Seria insensato esperar que alguém pudesse amá-la de verdade?
Seus tios nunca a amaram. Ellen White, sua irmã adotiva, a amou.
Ela foi a única pessoa quejá havia tentado protegê-la. Quando Bessie,
a irmã mais velha de Ellen, encontrou Mabel, então com dez anos,
abandonada num parque de Jersey City, ela a levou para casa. Na pri
meira noite, Ellen disse para Mabel não ter medo, ninguém iria ma
chucá-la. Mabel estava tão faminta que devorou três ovos e um pão,
mas mesmo com toda a bajulação da sra. White, se recusou a dizer
qualquer outra coisa que não seu nome e que sua tia lhe pedira para

331
ficar esperando e então tinha ido embora. Não,ela nunca mais voltou.
Mabel não mencionou o tio. No jornal, nunca foi publicado nenhum
anúncio de uma garota desaparecida que batesse com a descrição
dela. Nenhum policial ou detetive particular apareceu para procurá-
-la e Mabel nunca disse uma palavra sobre seu passado. E não contou
a ninguém,nem mesmo para EUen,o que seu tio tinha feito. Era hor
rível demais para as pessoas acreditarem. Será que a culpariam?
Depois que Ellen faleceu no parto e o bebê se foi algumas sema
nas depois, Mabel começou a sonhar com a mãe que nunca conheceu.
Anos mais tarde, diria que um anjo da guarda olhava por ela, sem
pre evitando que se metesse em problemas. Mabel imaginava a mãe
como esse anjo. Ela não sabia nada sobre a mãe, nem mesmo o seu
nome,Lulu Hampton ou Simmons,até completar vinte anos. Sua avó
se recusava a dizer o nome da filha morta ou a deixar uma fotografia
a mostra em qualquer lugar da casa, como se mesmo esse pequeno
gesto pudesse ser confundido como uma aceitação relutante da vida
que Lulu escolhera. Ela tinha infringido a lei, e a criança, Mabel, era
prova disso. Não havia notícias de nenhum pai. Mabel tentava não
pensar como sua vida teria sido se a mãe não tivesse morrido quando
ela era um bebê. Ela amava a avó, mas a mulher era fria e dispensa
va sua afeição com uma colher de cabo longo. Com os livros, Mabel
aprendeu o que uma mãe deveria ser, como sua devoção e proteção
salvaguardavam a criança, e que os laços entre mãe e filha eram in
quebráveis. Em sua vida, Ellen foi a pessoa mais próxima de uma mãe
para ela. A maneira como Ellen a segurava e dava beijos em seu rosto
e nos lábios fazia Mabel se sentir amada. Quando Ellen, então com
dezessete anos,segurava Mabel nos braços, ela se sentia quase segu
ra. Em várias noites adormecia nesses braços.

Gladys a abandonou como todas as pessoas que Mabel havia amado.


Ser tão vulnerável e totalmente sem defesa era insuportável.Isso ater
rorizava Mabel.O que ela mais queria—o abraço apaixonado de uma
mulher, pele contra pele, o calor e o volume do corpo de uma amante
se elevando embaixo dela, as batidas do coração acelerado de Gladys

332
ecoando em seu peito, o nó suarento de membros entrelaçados — a
destruiu. Não que ela fosse uma pária, mas o amor sugava e esvaziava
o que havia dentro dela,tornando quase impossível a Mabel se aguen
tar ou viver sem sua amada. Gladys ensinou tudo para Mabel, da for
ma certa de dançar até como dar prazer a uma mulher. À noite, iam
a vários lugares,frequentavam festas e cabarés, e todas as aventuras
culminavam na cama de Gladys. Certa noite, as meninas pregaram
uma peça nelas e trancaram a porta da frente, de forma que elas tive
ram de tocar a campainha e acordar a senhoria para entrar. As outras
esperavam envergonhá-las, pegá-las no pulo, mas não se importaram.
Na cama,parecia que só existiam as duas no mundo,na vasta quietude
das profundezas da noite. Naquelas poucas horas antes do crepúsculo,
não havia marido nenhum a temer.
A experiência no exercício de perder as pessoas que amava não di
minuiu a dor do rompimento com Gladys. A mãe de Mabel falecera
quando ela era um bebê,incapaz de discernir aquele corpo de seu pró
prio, antes do surgimento do eu, marcado,separado, apartado de uma
plenitude materna, o que, em seu caso, aconteceu de maneira abrupta
e severa, prematura como a morte de sua mãe. Uma pontada leve que
a acompanhava desde a morte da avó e que alertava: Cuidado,quando
você menos esperar, alguma coisa horrível vai acontecer. O olhar da
avó no leito de morte,olhos vazios e vidrados que fitavam através dela;
quando a tia terminou de trançar seus cabelos,a avójá se fora. E então
EUen. Ela estaria viva se os pais não a tivessem forçado a se casar com
um homem que ela mmca amou.Mabel não seria poupada por ninguém.
Doente. Esgotada. Sozinha. Estava arruinada, e não porque fora
para o Harlem e se perdera na vida, não por ser perseguida por al
gum homem na Fifth Avenue ou na Madison, não por causa das coi
sas terríveis que previu; Mabel estava acabada porque o amor a havia
destroçado,e apesar disso,ela desejava e desejava e desejava?"^ Gladys
alertara Mabel sobre o preço de amá-la, mas a seduziu mesmo assim.
Não importava que tivesse um marido. Não importava que Mabel ti
vesse dezessete anos. Não importava que Gladys tivesse prometido
para a mãe de Mildred que não mexeria com ela. Mabel se esforça
va para não pensar nas coisas que haviam feito, nem no peso daquela

333
pele escura e linda descansando contra o seu corpo, flutuando acima
dela. Mabel tentou não pensar naquilo que um marido era capaz de
fazer e ela não, nem imaginar se um dia voltaria a ver Gladys ou se
havia sido tola por esperar que Gladys o deixaria, que ela nunca mais
voltaria para a Filadélfia, decidida a viver ao lado de uma dançarina
de cabaré de dezessete anos em um apartamento de três cômodos na
Seventh Avenue.
A partida de Gladys não pareceu marcar o fim do caso delas, mas
o fim de Mabel. O que sobrou ou quem ela podería ser era algo con
fuso, incerto. Será que aquele amontoado de sentimentos e impulsos
poderíam alguma vez consistir de novo numa pessoa? Ela um dia con
seguiría dizer “eu” com alguma autoridade, ou fingir que era dona de
seu malfadado ego? A dor de amar alguém sem reservas, tão incon
dicionalmente, quase a destruiu. Mabel quisera tudo de sua amante
os lábios dela contra os seus,as mãos em toda parte e então a boca
dela. O desprezo do corpo pelo dever e o ter que a fez se sentir enver
gonhada. O prazer guerreava com o senso comum, e mesmo com a
autopreservação. Os sentimentos liberados por sua primeira amante
forçaram Mabel a se recolher na cama,a recuar diante da sensação de
desamparo. Ela passou tanto tempo temendo aquilo que os homens
podiam lhe fazer, que nunca parou para pensar naquilo que uma mu-
lher faria. Como uma mulher pode machucar você? Como algo tão
maravilhoso pôde destruí-la daquele jeito?
Mildred esmurrou a porta até Mabel deixá-la entrar. Ela tentou
explicar, mas não conseguiu.Tudo o que Mabel disse para a amiga foi:
Eu não aguento. É forte demais. Não quero isso pra mim”.^^ Não era
nada bom querer tanto alguém. O coração dela estava aos pedaços.
Que todo mundo fosse pro inferno. Ela tinha perdido a mãe,então de
quem é que ela precisava? De ninguém.

A cidade parecia muito mais glamourosa e excitante do banco de pas


sageiro do lustroso Touring Roadster cinza. Sua nova amante, Ruth,
estava elegante e esplêndida.Suas amizades eram em grande parte cele
bridades,artistas e pessoas que viviam a boa vida. Nos anos 1920, Nova

334
York era um lugar bárbaro.A amante de Ruth era dona de um bordel,ela
conhecia todo mundo e levava Mabel para os melhores clubes,cabarés
e bares clandestinos do Harlem, Greenwich Village e Brooklyn. Ruth
nunca se importou se as pessoas as encaravam enquantojantavam em
um restaurante,nem se todos os vizinhos de Mabel esticavam o pescoço
para olhar quando ela se jogava no banco da frente de seu carro — e
tudo isso porque não estavam acostumados a ver um par desse tipo,
uma bela mulher branca com uma negra, que não era sua empregada,
ao lado. A maioria das pessoas, negras e brancas, acreditava que elas
estavam fadadas a ter problemas e que havia algo imoral e suspeito na
intimidade inter-racial. Poucas suspeitavam que fossem amantes — a
amizade entre as duasjá chocava o bastante.
Na primeira vez que Ruth foi buscá-la em Jersey City, a senhoria
de Mabel, a Velha Rabugenta, ficou estarrecida. As pessoas não sa
biam o que pensar quando a motorista, muito galante, abriu a porta
para Mabel. Os vizinhos dela ficaram de boca aberta, aqueles negros
ignorantes não sabiam o que dizer ou como cumprimentar uma pes
soa e dizer olá. Ninguém disse palavra, a não ser a Rabugenta, que
gritou escada acima para chamá-la depois que Ruth disse que estava
à procura da srta. Hampton. Sua vizinha, Maude Brown, se empo
leirava na escada como o gato que ri.“Quem é aquela branca no car
ro?” perguntou. A próxima pergunta foi se podia dar um passeio com
elas. Ruth riu e disse que podia passar uma tarde com elas na praia em
Coney Island. Os outros ficaram curiosos, mas, no fim,a desaprova
ção venceu. Nada de bom podia vir disso. A Rabugenta disse:“Mabel,
melhor tomar cuidado. Isso não parece certo”. Aqueles intrometidos
teriam desmaiado se Ruth,além de tudo,estivesse usando calças.
Mabel não era mais inocente. Ela tinha uma série de amantes —
brancas e negras, casadas, bissexuais e aquelas que chamava de lés
bicas de verdade. Muitas eram casos passageiros; alguns deles eram
com amigas queridas, como Mildred e Viola, com artistas que traba
lhavam nos mesmos espetáculos e flertes com mulheres que entravam
e saíam de sua vida. Mabel aprendera a dar e receber prazer. Peram-
bular pela cidade do Village até o Harlem na companhia de Ruth,fazer
amor a tarde inteira, ir ao teatro, frequentar festas e se divertir nos

335
cabarés até as primeiras horas da manhã foram coisas que transfor
maram Mabel. Ela cultivava os prazeres aos quais Ruth a havia intro
duzido.Beber champanhe,fumar,satisfazer suas vontades como bem
entendesse,aprender a navegar pela cidade de maneira a nunca ter de
ficar sozinha. As pessoas que agora chamava de amigas faziam parte
do glamouroso mundo cujas portas Ruth lhe abrira: Gladys Bentley,
Jackie Mabley e as duas Ethels, Ethel Waters e sua namorada, Ethel
Williams.
Bentley a ajudou a conseguir um trabalho de dançarina no Garden
um clube noturno do Harlem que abrigava um público diverso.
Mamie Smith era dona do lugar, e todo mundo conhecia Mamie por
que ela tinha gravado o primeiro blues,“Crazy Blues”, que vendera 75
mil cópias no primeiro mês de lançamento. O Garden ofJoy era um
pavilhão de dança a céu aberto, e, em algum momento da noite, os
boêmios e as figuras notáveis do Harlem apareciam por lá, músicos e
atores, além dos tipos literários. Bentley se apresentava lá; para onde
quer que fosse, tinha muitos seguidores, e os brancos do centro iam
até o Harlem para ver Bentley cantar músicas obscenas em um ele
gante fraque branco. Trabalhar em um cabaré frequentado por lésbi
cas, gays, crossdressers e bichas deu a Mabel algum espaço; ela podia
se
movimentar sem ter de se preocupar se havia algum homem atrás
de si. O Garden of Joy lhe forneceu tempo e lugar necessários para
florescer como uma amante de mulheres. Por dois anos ela dançou,
' atendeu as mesas,recepcionou as pessoas e serviu as bebidas.
Agora andava com um “grupo seleto”, composto em sua maioria
de pessoas do teatro, dançarinas, cantoras, comediantes e quase to
das elas estavam na vida intensamente. Ruth apresentou Mabel para
Bentley e a levou para sua primeira festa na casa de Jackie Mabley.
Ruth conhecia todo mundo que era alguém,artistas, atletas, políticos
e os mais abastados. Ela era bem relacionada graças à sua namorada.
Todo mundo que vivia a boa vida passava pelo bordel para ouvir mú
sica, tocar piano ou cantar, se prostituindo antes de fazer um nome,
ou limpando a casa se ainda não estivesse pronta. Ruth se sentia con
fortável com as pessoas de cor e apresentou Mabel para muitas mu-
lheres negras que também amavam mulheres. Mabel era apenas uma

336
menina com quem ela se divertia, apenas uma amante temporária,
mas Mabel estava feliz em embarcar nessa viagem.
“Quer dar uma volta no gueto?” Ruth perguntou. Claro, Mabel res
pondeu.“Dar uma volta no gueto” não era como ela e suas amigas ne
gras costumavam descrever a vida noturna no Harlem. Era algo que
os brancos diziam para descrever sua busca por prazer na região norte
da cidade e seus encontros com negros, mesmo quando as pessoas ne
gras que viam eram ricas,educadas ou bem-sucedidas. Mabel não dava
a mínima para isso,desde que pudesse se divertir. Enquanto aguardava
no saguão de entrada do apartamento elegante de A’lelia Walker,ficou
claro para Mabel que aquilo era o oposto de dar uma volta no gueto.
Antes de entrarem,Ruth disse:“O que quer que você veja, não repita”.
Um mordomo negro conduziu as duas para dentro do apartamento
majestoso e pediu que aguardassem. Um homem branco e alto apare
ceu,deu uma olhada em Mabel e perguntou se Ruth estava bem. Ruth
disse, sim,eu a conheço. Ela é minha amiga; é boa pessoa. O homem
branco instruiu Mabel a segui-lo. Eles passaram pelo saguão de en
trada,e então ele a conduziu para uma sala privada e disse para tirar
a roupa. Mabel despiu seu casaco de pele branco e o vestido de jérsei
cinza acinturado. Ela estava nervosa. E por sorte, estava usando um
belo conjunto de roupas de baixo.^^ O homem branco a conduziu pelo
saguão e pela sala de jantar e abriu uma terceira porta que dava para
outra sala. Por um momento, Mabel congelou; ela se deteve e olhou
pasma para as pessoas no recinto. Torceu para que ninguém tivesse
notado. Ninguém ali trajava uma peça de roupa sequer, a não ser ela.
Ruth, nua, passou o braço ao redor da cintura de Mabel. Você está
bem? Sim,ela respondeu e olhou ao redor. Umas catorze pessoas nuas
se recostavam em almofadas espalhadas pelo chão. Os convidados —
voyeurs, exibicionistas, meros curiosos, queers, poliamorosos e mais
liberais relaxavam, bebiam, copulavam. O que primeiro chamou
a atenção de Mabel foi um homem chupando uma mulher. Nunca ti
nha visto isso antes. Enquanto fitava os dois, outros lançavam olha
res para a atraente recém-chegada, ainda de meias, sapatilhas e uma
combinação.(Tinham permitido que permanecesse com suas roupas
íntimas porque era sua primeira vez.)

337
Um rapaz branco convidou as duas para se sentarem. Ela e Ruth
beberam várias garrafas de champanhe. Fumaram maconha, Fize-
ram amor. A tarde virou noite e entào a madrugada virou manhã e
a manhã virou tarde. Ninguém parecia se preocupar com o tempo.
As pessoas conversavam,faziam amor,comiam,relaxavam e ouviam
música. Num primeiro momento, foi difícil para Mabel fazer qual
quer coisa ou mesmo ficar excitada ou estimulada, tão concentrada
estava em observar os outros. Vê-los envolvidos em atos íntimos pa
receu chocante e divertido, mas, conforme o passar das horas, nada
mais lhe parecia incomum. As pessoas entravam na casa de Alelia
acompanhadas de um marido e saíam com uma esposa. A luxúria co
letiva inundava todo o seu ser; reivindicava; desafiava;transformava.
Mabel estava num porre só e tudo parecia adorável e desprendido,
mão ela começou a relaxar e conseguiu se sentir confortável com
Ruth. As duas podiam fazer o que sentiam vontade, e ninguém se im
portava nem as incomodava.Elaspassaram um tempo muito agradável.
Quando Alelia Walker chegou,a sala toda respondeu num alvoroço.
Ela conversou com
os convidados vestida num conjunto de seda curto
que podería muito bem ser um casaco de pele de arminho; ela se com-
portava como uma rainha e ostentava o traje leve e curto com um ar
imponente. Mesmo sem seu infame chicote de equitação,^ ainda havia
^de proibido e perigoso nela. A’lelia fumava e bebia com seus convi-
a os,jogava conversafora. Ela era uma mulher alta e impressionante,
que vivia cercada de belas mulheres (Ethel Waters, Nora Holt, Edna
fhomas)e homens gays. Era generosa com seus afetos e suafortuna. A
mãe dela. Madame C.J. Walker,havia popularizado os pentes quentes
e desenvolvido
uma linha de produtos de beleza; todas as garotas do
Harlem com cabelos aUsados, penteados para trás, chanel e ondulados
lhe devia agradecimentos. Os
mais esnobes chamavam Alelia pelas
costas de“a rainha do alisamento” para menosprezá-la,para deixar cla
ro que ela não era uma herdeira legítima nem merecia um lugar entre
a aristocracia da raça. Nem é preciso dizer que essas pessoas tinham
inveja. A casa de Alelia na 136*^ Street era considerada uma das mais
belas propriedades do Harlem. Também era dona de um casarão no
Hudson,a Villa Lewaro;ela financiava o Dark Tower, um salão literá-

338
rio abrigado em sua casa de trinta cômodos,embora houvesse rumores
de que não costumava ler livros, apenas apoiava os autores. Ela bebia
em excesso,jogava cartas com seus amigos mais íntimos e se empan
turrava de comida cara. O apartamento no número 8o da Bdgecombe
Avenue era imponente,mas se tratava apenas de um antro de prazeres,
não se pretendia como um local de atrações,embora a mobília luxuosa,
os tapetes persas, as almofadas de seda e cetim, os cobertores de pele,
os tecidos pesados de veludo e brocado espalhados pelo apartamento
fossem mais fabulosos que qualquer outra coisa que Mabeljá tinha vis
to. A luxúria a envolveu e,como as garrafas de champanhe,afizeram se
sentir extraordinária. Ainda que não gostasse especialmente do sabor
de caviar, ela adorou a ideia de comê-lo. Alelia servia champanhe e ca
viar para os convidados negros,enquanto os brancos se banqueteavam
com pés e tripas de porco e bebidas caseiras, e era exatamente isso o
que eles esperavam e desejavam quando iam ao Harlem, sentir o deli
cioso gosto do outro.
Ruth não levou Mabel para a casa de Alelia para assistir a nenhuma
atração, mas para aprimorar o prazer delas. A visita se pretendia como
mais uma lição na educação sexual de Mabel Hampton,mas acabou por
ser mais do que isso para ela.A intimidade compartilhada no número 8o
da Edgecombe Avenue não era nada parecida com as exibições sexuais
grosseiras vistas em um bar clandestino. O sexo público e as transas
coletivas,tal como o ambiente,eram belos,vividos e um testemunho de
uma vida moderna distinta. No apartamento elegante, as sutilezas do
prazer, os gemidos, os sussurros e as risadas preenchiam a sala, a res
piração ofegante do orgasmo rompia com os limites do eu, apagava as
linhas de divisão social e desfazia homens e mulheres. A dissolução to
tal do eu limitado e individual era concedida. Os gays rebeldes e queers
saboreavam esse refúgio da luxúria; apreciavam a chance de rejeitar a
propriedade. Os convidados se misturavam para além das divisões de
raça e classe, estranhos se tornavam íntimos, uma aristocrata inglesa
se apaixonava por uma atriz negra.
A abertura e a possibilidade da época pareciam nítidas e palpáveis
para Mabel, naquela sala adorável na companhia de gente de todos
os tipos e inclinações, refestelada em almofadas de veludo. O êxtase

339
do sexo era bem-vindo, e mais ainda a experiência de ser libertada
de todos os detalhes e incumbências que organizavam sua vida, que a
prendiam no tempo e no espaço. Aquilo lhe permitia uma habitação
profunda,não do eu exatamente,mas da respiração, do toque,do gos
to, uma acuidade dos sentidos, um aperfeiçoamento do aparato per-
ceptivo, de modo que ela podia discernir as variedades da escuridão
numa sombra e o mundo que ali se desdobrava; podia perceber como
a luz refletindo em um prédio vizinho avançava devagar ao longo do
peitoril da janela até se espalhar pelas cortinas, e pouco importava
quem recebia e quem dava uma vez que as roupas eram despidas.
O toque agradável das almofadas de seda roçando em suas costas
ou presas entre as palmas das mãos.A luz âmbar e suave a embalava em
uma paz preguiçosa, e os tapetes exuberantes silenciavam os passos,
amorteciam os pés, parecia que ela era carregada ou flutuava,ou afun
dava ainda mais no ir e vir arenoso das ondas, puxada para o oceano,
boiando,leve,à deriva. Era tudo tão bonito; e tudo a fazia ficar bonita.
As taças de champanhe de cristal e a decoração adorável da generosa
fortuna de Alelia Walker. Belas garotas nuas serviam comida e bebida,
conversando casualmente com os convidados. A música — rags toca
dos no piano davam lugar a sonatas,James P.Johnson para Rachmani-
noflf. Não havia nada feio, cafona ou fora do tom. Essa intimidade am
pliada o luxo e suntuosidade da paixão compartilhada,como se atos
íntimos nunca tivessem sido destinados ao particular, a ser possuídos
como propriedade. No antro maravilhosamente guarnecido, mesmo a
excitação era silenciosa e refinada. A troca de olhares, a mirada curio
sa de um estranho, o fluxo compartilhado de sensações, a respiração
entrecortada do desprendimento acentuavam o prazer de todos os pre
sentes,fazendo de eros um luxo comunitário.

Em 1924,parecia que a maravilhosa sorte do coro seria para sempre de


Mabel. Ela conseguiu um papel no famoso coro de Come Alonga Mandy
[Venha comigo,Mandy].Era o programa usual do teatro negro rostos
maquiados com rolha queimada,esquetes cômicas,músicas agradáveis,
uma trama implausível e atrapalhada e coristasjovens. Havia vinte ga-

340
rotas, e quando elas se apresentavam, quase nenhum crítico deixava de
notar que praticamente todas eram retintas, sendo chamadas de coro
de bronze, coro marrom,coro sépia, o coro não tão belo assim. No The
Messenger, Theophilus Lewis exclamou em uma crítica radiante.Final
mente um coro ãe cor^^ e com isso ele quis dizer reconhecivelmente negro,
e não com as coristas de pele clara e quase brancas de sempre,que tinham
lugar garantido nas melhores casas e nos maiores espetáculos. Quando
as luzes diminuíam na casa, Mabel e as outras coristas cruzavam o pal
co em figurinos cintilantes que brilhavam no escuro. As luzes do palco
eram desligadas para intensificar o efeito das roupas deslumbrantes e
luminescentes,as dançarinas pareciam vaga-lumes,flutuando etéreas no
palco do Lafayette Theater. O fascínio silencioso da platéia era palpável.
Quase dava para ouvir as pessoas respirarem fundo. O coro ameaçava
roubar a cena,apesar da compleição pálida e afrancesada de Jean Starr,

LAFAYETTE
7lb MEIUE AT DieECTlOKOF
132eá$TIEET THEATER coLENii esos.
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WEEK OF DECEMBER 24
Mittcnthal Brothers Presont
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COME ALONG, MANDY 4 '
A NEW AND UP-TO-DATJE MUSICAL COMEDY

10—BIG, SCENES—10
I 50—PEOPLE—50
MATINEE: TUESDAY. THURSDAY, SATURDAY
MIDNICHt' SHOW FRIDAY

341
a protagonista. A potência e a força das vozes e o frenesi coletivo dos
movimentos do charleston conquistaram o público e a crítica.
As fileiras de pessoas negras que enchiam a platéia riam até as lá-
gnmas ao assistir aos comediantes Whitney e Tutt que, segundo al
guns, rivalizavam cora Bert Williams e George Walker.
Os negros não tinham reeeio de demonstrar sua admiração, e a
Piateia batia os pés, aplaudia e assobiava para o coro. Mesmo as críti-
cas mais indiferentes à produção,
como uma publicada no Baltimore
Afro-American, observaram
como 0 grupo trabalhava bem em con-
junto, e escolheram o coro como foco de elogios. "O elenco merece
o maior mérito, e o coro, embora não seja especialmente dotado de

342

À
beleza, é um grupo de jovens [dançarinas] munido de grande ânimo,
de forma que, quando ganharem experiência, se portarão da maneira
mais digna de crédito.” ComeAlong, Mandy foi positivamente compa
rado com Shiiffle Along, que teve um desempenho incrível na Broad-
way. O figurino foi aclamado como o mais bonito da temporada. Em
seus trajes opulentos, Mabel e as outras dançarinas pareciam anjos
caídos ou bonecas sépia e douradas. No Chicago Defender:“O melhor
coro de beleza da cidade foi reunido para entreter o Harlem na pró
xima semana”. No Atlanta Constitution: o musical “se mostrou como
um grande sucesso em todas as cidades sulistas onde foi apresenta
do para platéias brancas”. No New Journal and Guide:''Come Along,
Mandy é o mais novo sucesso de Nova York. Uma companhia grande
e seleta, em sua maioria formada por mulheres jovens, apresentará
a comédia. Melodias afinadas, turbilhões de danças e uma comédia
irresistível serão os destaques, apresentados com figurino e cenário
de beleza excepcional”.
O Chicago Defender:"O belo e famoso coro de bronze demonstrou
grande habilidade. Todos os números de canto e dança foram bem re
cebidos e vários renderam salvas de palmas incomuns. Alguns dos fi
gurinos do coro eram muito elaborados e chamativos,típico do apre
ço do negro por trajes altamente coloridos. Um conjunto de figurinos
do coro que se mostrou particularmente bem foi aquele usado em ‘On
Parade’[No desfile]. As luzes da casa e do palco foram desligadas du
rante a dança e os ornamentos luminosos dos figurinos surtiram um
efeito atrativo”.^^
Na superfície, a vida de Mabel era parecida com a de qualquer
corista, e se ela tivesse sorte, o canto e a dança poderiam conduzi-la
para algo maior. O glamour do palco poderia tê-la embalado na cren
ça de que o prazer e as liberdades de que ela desfrutava seriam du
radouros, e não provisórios. Esse talvez fosse o caso se ela estivesse
contente em ser corista ou se tivesse aspirado a ser uma estrela. Mas o
caso não se deu de nenhuma dessas formas, pois Mabel ainda buscava
uma forma de viver no mundo que a permitisse se sentir confortável
em sua própria pele. Ela não era mais ingênua nem se interessava em
se passar por uma jovenzinha bonita. Agora, os figurinos glamouro-

343
sos de corista a faziam se sentir ridícula. Ela preferia ternos e saltos
baixos. Ninguém sabia quem ou o que você era se vestisse um terno.27

Mabel ia sempre ao teatro porque lá não se sentia sozinha. Assistir à


atuação de Helen Mencken em La Prisonnière[A prisioneira] foi uma
experiência da qual ela nunca se esquecería. O espetáculo estreou no
Empire Theatre no dia 29 de setembro de 1926. Houve 160 apresen
tações do espetáculo antes de a polícia fazer uma batida no teatro,
prender o elenco por obscenidade e fechar suas portas permanente
mente. Mabel viu a peça várias vezes, e grande parte da platéia era
composta de mulheres entendidas, questionadoras ou que se sentiam
prisioneiras. Muitas levavam violetas presas à lapela e ao cinto.Irène,
interpretada por Mencken,é umajovem torturada pelo amor que sente
por Madame dArguines, mas que finge amar Jacques, o homem com
quem é comprometida.Resignando-se a essa união,Irène diz uma das
frases mais citadas da peça a respeito do casamento:“É como uma prisão
para a qual devo voltar cativa, apesar de mim mesma”. Era a primeira
vez que Mabel via o amor entre mulheres representado em um lugar,
e Mencken interpretava o papel tão bem que com certeza devia amar
uma mulher.Depois de conhecê-la nos bastidores, Mabel teve certeza
de que Mencken fazia parte do “clube das ‘garotas’”, acreditando que
meio mundo era entendido.Provavelmente Irène a lembrou de sua pri
meira paixão tórrida por Gladys e do caso subsequente com Amanda
Drummond,outra mulher grisalha que Mabel amou de paixão e que
também era casada.
A prisioneira, O poço da solidão e Studies in the Psychologp ofSex
[Estudos sobre a psicologia do sexo], de Havelock Ellis, formavam o
repertório textual da vida erótica e psíquica de Mabel.Essa reviravol
ta queer na trama da corista era o segredo conhecido do teatro.
A prisioneira forneceu uma linguagem para o desejo e a vontade,
uma expressão do que significava amar mulheres em uma sociedade
em que a heterossexualidade era compulsória e o casamento,a prisão
que esperavam ser escolhida por todas as mulheres. Ouvir Irène com
prometida com seu amor de forma tão convincente não era apenas

344
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instigante, mas também confirmava que tantas outras amavam como


ela. Pela primeira vez, Mabel viu seu desejo, o desejo por mulheres,
representado de uma maneira nâo atrelada à linguagem punitivista
da “relação indesejável”, à psicopatologia da clínica ou ao desvio da
negritude. Mabel nunca imaginara sua vida como um estudo de caso.
Nem acreditava, como um psiquiatra sugeriu, que as mulheres negras
se tornavam lésbicas porque não eram atraentes e, portanto, eram
incapazes de seguir com sucesso seu destino como mulheres, tornan-
do-se “maridos” por falta de opção.^® Compreender a forma como ela
amava e como preferia viver tornou ainda mais difícil para Mabel se
contentar com as poucas opções disponíveis: dançarina, domésti
ca ou prostituta. Suas ambições estéticas e intelectuais eram muito

345
maiores que as possibilidades oferecidas pelos burlescos rostos pinta
dos e os espetáculos da plantation encenados no teatro negro. Mabel
assistia com frequência a peças dramáticas, óperas e concertos, e lia
romances e obras de não ficção com voracidade, registrando listas de
todos os livros que havia lido.^®

Myrtle Reed,Later Love Letters ofa Musician [Cartas de amor tardias


de um músico]
Marie Corelli, The SecretPower[O poder secreto]
Marie Corelli,Ziska
Marie Corelli,Barabbas:A Dream ofthe World's Tragedy [Barrabás: um
sonho sobre a tragédia do mundo]
Gustavus Hindman Miller, Ten Thousand Dreams Interpreted[Dez mil
sonhos interpretados]
Cyril Falis, Tales ofHqffman:Retoldfrom OffenbacVs Opera [Contos de
Hofíman: recontados a partir da ópera de Offenbach]
Sri Ramatherio, Unto Thee I Grant[A ti eu concedo]. Biblioteca de
Rosicrucian
RadclyfFe Hall, O poço da solidão
Gustav Kobbe, The Complete Opera Book[O guia completo da ópera]
Thomas Dixon, The Clansman[O homem do clã]
Booker T.Washington, Working with theHands[Trabalhando com as mãos]
Otto Weininger,Sex and Character[Sexo e caráter]
D.H.Lawrence,Mulheres apaixonadas
Eugene 0’Neill, ThreePlays[Três peças]

Ela lia os jornais de Nova York, bem como a The Crisis, o Amsterdam
News,o Chicago Defender e o Pittsburgh Courier.

Sua verdadeira paixão era a música, não as canções de espetáculo


que ela cantou em ComeAlong, Mandy e em Blackbirds ofi926,ou os
rags e blues que cantava e dançava nos cabarés do Harlem e em festas
privadas; nenhuma dessas músicas a tocava fundo nem a inspirava.
Mabel amava a ópera,e nos salões de ópera não havia lugares segre-

346
gados. Quando tinha dezesseis ou dezessete,a esposa de um médico
cuja casa ela limpava a levou a sua primeira apresentação. O médico
e a esposa eram judeus vindos da Europa. A senhora sempre tentava
educá-la, colocava um livro em suas mãos,pedia que se sentasse para
ouvir árias e sonatas, como se Mabel fosse responsabilidade dela, e
não sua empregada.Ela leu The Encyclopedia ofOpera[A enciclopédia
da ópera] e conheceu as histórias maravilhosas de Puccini, Verdi e
Bellini. Quando decidiu deixar o coro,forçada tanto pela idade quanto
pelo florescimento de sua masculinidade,ela o fez na esperança de que
pudesse treinar para ser uma cantora clássica e seguir uma carreira
nas salas de concertos.
Mabel adorava Florence Mills®° e a ouviu cantar a música de
William Grant Still no Aeolian Hall. A voz clara e límpida de Mills
preenchia o salão, e Mabel ficou paralisada. Ela acompanhava os ca
sos raros de músicos e cantores negros que atuavam em concertos na
Europa, separava as reportagens dos jornais e colava em seu álbum
de recortes, como se aquelas pequenas notícias pudessem ajudá-la a
traçar seu caminho até a sala de concertos,como se o sucesso impro
vável deles provasse que tais sonhos não eram tolos,e não apenas por
ser mulher, negra e pobre, mas também por não existir uma alma no
mundo com a qual ela pudesse contar.Se Mabelficasse enfurecida por
não esperarem dela nenhum ato de grandeza, esse sentimento teria
sido razoável. Alguns dias, ela sentia vontade de gritar para o mundo
inteiro do telhado de seu prédio, pedindo ao mundo que recuasse e lhe
desse algum espaço para respirar. Ela ouvia William Dawson, Stra-
vinsky e Chopin para conseguir respirar. Frequentava cada uma das
apresentações organizadas por sociedades de ópera negras no Har-
lem,e anos depois assistiu Marian Anderson e Paul Robeson no palco
do Carnegie Hall.
O amor trágico, os temas recorrentes de perda, morte, sedução e
traição, sem dúvida tocavam fundo e forneciam uma linguagem ex
pressiva para a perda da mãe de Mabel, eram um veículo grande o
bastante para conter todo aquele abandono.
A descoberta de que sua mãe havia sido envenenada por uma ri
val que disputava o amor de seu pai apenas confirmou o sentido de

347
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sua vida trágica e aumentou seu apreço por Norma, Carmen e Dido
e Eneias. A música se tornou a paixão de Mabel e transformou cada
mágoa, cada coisa terrível que ela havia vivido em algo magnífico e
espantoso. E a música tomava conta dela, a dominava, curava, como
se os lamentos fossem sua mãe falando com ela, como se os aman
tes traídos e abandonados fossem uma repetição de seus amores e
as heroínas derrotadas à beira da morte fossem a menina presa no
depósito de carvão. A música transmitia e ecoava todas as histórias
que Mabel nunca contara a ninguém, os segredos que jamais reve-
laria, as crueldades que havia suportado, todas as pessoas que havia
perdido. Mefaça lembrar. De todos os desfechos queers.*’ Na sala de
ópera, Mabel não era doméstica, nem prisioneira, não era sapatão,
nem mulher, não era negra, mas apenas um coração grande e aberto.
A música silenciava o turbilhão e a raiva que ressoavam dentro de sua
cabeça. Não havia necessidade de gritar, apenas de ouvir, permitir
que todos os seus sentimentos transbordassem — suas aspirações, o
amor, a jovem partida ao meio, o luto.

348
Sua nova namorada, Ismay Andrews, compartilhava dessas pai
xões. As duas frequentavam concertos e espetáculos e assistiam a
óperas francesas e alemãs. Ismay ocasionalmente compunha para a
Companhia Nacional de Ópera Negra. Caminhar pela Lenox Avenue
e ouvir os oradores de esquina era uma paixão que só perdia para o
seu amor pela música. Ismay tinha um pensamento radical e se iden
tificava com os jovens socialistas e comunistas do Harlem. Enquan
to suas visões políticas apoiavam a abolição da propriedade privada
e saudavam a riqueza comum que todos compartilhariam quando o
capitalismo fosse destruído, como amante ela era possessiva e extre
mamente ciumenta. Se desconfiasse que Mabel estava olhando para
outra pessoa, Ismay se comportava de maneira desagradável. Quan
do iam a alguma festa, Ismay vigiava Mabel como um gavião. Elas
nunca brigavam em público, mas Mabel suspeitava de que Ismay era
capaz de armar uma boa briga. Talvez por ser estrangeira, que era
como Mabel sempre pensava nela, Ismay não tinha uma noção clara
daquilo que Mabel podería desejar, de quem ela deveria ser ou o que
querer. Ismay não achava que Mabel tentava ser superior ou preten
siosa porque amava a ópera. Aos ouvidos de Mabel, a ópera transmi
tia a angústia do blues e compartilhava de sua crônica da catástrofe;e
falava mais profundamente com ela.
Ismay não se considerava estrangeira. Ela havia nascido em La
gos, na Nigéria, mas fora criada nos Estados Unidos. Em um artigo
publicado no Pittsburgh Courier sobre ela, Ismay enfatizou que sem
pre se sentira em casa no Harlem. A maioria de seus amigos eram es
tadunidenses. No apogeu da juventude radical, ela vivia pelas ruas e
nelas adquiriu sua educação política. Ismay ouvia extasiada®^ quando
Asa Randolph, Chandler Owen, Frank Crosswaith e Hubert Harri-
son falavam sem parar nas esquinas, empoleirados em caixotes; ela
era uma de suas admiradoras mais calorosas.
Ismay fazia todas as coisas que a talentosa Mabel almejava fazer,
atuando em operetas e recitais de música clássica. Ela inaugurou uma
trupe de dança africana, a Swahili Dancers,e moldou a dança de con
certo moderna negra. Apresentava-se com companhias teatrais bran
cas e uma vez foi vaiada no palco de um teatro em Washington, D.c.

349
por dar ordens a dois atores brancos em uma farsa. Ela atuou em fil
mes, dividiu o palco com Paul Robeson, dançou e treinou outros dan
çarinos e coreógrafos.
Se Mabel não tivesse perdido a coragem e se não fosse pobre,quem
sabe o que ela poderia ter realizado? As circunstâncias eram diferen
tes para Ismay. Ela fora criada no conforto do lar de um médico,fora
educada e treinada para se tornar enfermeira, e ainda assim morreu
em total privação.

Toda semana o Amsterdam News e o Chicago Defender documentavam


as coisas horríveis feitas às pessoas negras e as coisas grandiosas que
essas faziam. Mabel tentava encontrar um equilíbrio entre os dois ex
tremos,oscilando entre a esperança e o desespero ao ler sobre garotas
e mulheres que haviam sido abusadas, estupradas e raptadas, ou que
eram tão privilegiadas que pareciam princesas em um mundo de fantasia
do qual ela fora banida. Quando o mundo ameaçava sufocá-la, Mabel
abria a boca,não para gritar ou berrar, mas para encontrar seu caminho
e cantar. Bem diante de sua porta estava o perigo que ameaçava tirar
seu fôlego. Algum homem poderia pegar você numa rua do Harlem;
fazê-la experimentar de novo as piores coisas,tirar suas roupas e bater
em você. E com os ouvidos ela buscava tudo isso dentro da música. Aí
ela podia sofrer e chorar abertamente.
Mabel sonhava com um palco de concertos em uma época na qual
mulheres negras eram impedidas de cantar nas maiores salas dos Es
tados Unidos e excluídas dos conservatórios musicais, com exceção
do Oberlin e do New England Conservatory. O que uma pessoa pode
ria esperar nessas circunstâncias? De modo razoável, o que poderia
pensar em realizar? Ela era pobre, negra, amava mulheres e preferia
vestir roupas de homem. Ela precisava da música simplesmente para
sobreviver e suportar a sensação de estar na própria pele.
Seu último trabalho com o coro foi uma apresentação no Alham-
bra Theatre. Mabel estava cansada dos figurinos e daquelas músicas
tolas; estava exausta de ser apalpada e ameaçada e se preocupava com
o aluguel, dado o trabalho incerto e os pagamentos instáveis. Ela não

351
gostava mais de dançar e, se houvesse alternativa que nào a cozinha,
talvez tivesse desistido mais cedo desse caminho. Tolerava o que ti
nha de fazer, mas se recusava a ceder sequer um centímetro a mais.
Sua amiga, Ethel Waters, chutara um gerente pelas costas depois de
ele ter dado um tapa na bunda dela. Só não foi despedida na hora por
que era uma das principais artistas do espetáculo. Mabel não deixaria
ninguém tocar nela. Na turnê de Come Alonga Mandy, passou perto
de ser estuprada por um produtor, mas conseguiu fugir pelajanela do
hotel. Os homens do teatro forçavam as coristas a dormir com eles.
Era a única maneira de seguir em frente,e Mabel“não queria nenhum
pau acabando com ela e lhe dando crianças”.
Mabel se cansou de ser uma mulher negra da forma como era es
perado dela. Ela queria mais. Olhando para as centenas de pessoas
que enchiam o auditório do Alhambra, era difícil acreditar que não
queriam mais também.

Mabelinvejava a liberdade de suas amizades,Jackie Mabley e Gladys


Bentley,que viviam como bem entendiam. Bentley era capaz de “brigar
até com o vento
se a irritassem. Na Ciam House,Bentley ficou famosa
por seus atos vulgares, músicas obscenas e fraques elegantes. Mabel a
admirava, mas não pelos mesmos motivos que Langston Hughes,que
a descreveu como “uma escultura africana viva”.3s Mabel respeitava
Bentley pelos mesmos motivos que respeitava Jackie Mabley—Bentley
e Jackie usavam calças na rua, perambulavam pelo Harlem de braços
dados com suas mulheres e desafiavam qualquer um a dar um pio que
fosse. Bentley acabaria com um homem só de olhar para ele. Bentley
e Jackie vestiam calças compridas e paletós quando poucas ousavam
fazer isso, quando você podia ir presa por usar roupas de homem;
Bentley e Jackie amavam abertamente, flertavam com mulheres e
não se desculpavam por quem eram nem tentavam se passar por algo
que não eram. Todo mundo no Harlem sabia que Ethel Waters era
sapatão, mas com ela era diferente. Quando Ethel ficou famosa,era
como se você não devesse saber disso; de repente tudo passou a ficar
no sigilo, mas todo mundo sabia o que era o quê. Um colunista do

352
Afro-American a acusou sem revelar nomes:“Artistas famosas estão
perseguindo coristas. Algumas se mostraram tão determinadas que as
coristas foram forçadas a trancar os camarins para deter os avanços
das protagonistas”.s4
Bentley não tinha nenhum medo de viver da forma como bem en
tendesse. Ela nunca omitiu seu amor por mulheres ou o fato de ser sa-
patão. Na verdade,Bentley fazia o oposto:esfregava tanto isso na cara
das pessoas que elas ficavam constrangidas e vermelhas de vergonha,e
elas amavam isso e continuavam a frequentar o Garden ofJoy e a Ciam
House para ouvir Bentley cantar suas músicas sórdidas toda apruma
da em seu fraque branco. Mabel aprendeu muito com ela sobre como
reivindicar um lugar num mundo que não lhe concedia lugar algum.
Bentley também lhe deu bons conselhos. Ela foi a primeira a alertar
Mabel: Fique longe de mulheres casadas. Elas vão ser o seu fim.
O tempo que passou na companhia de Bentley e de Jackie fez Mabel
se perguntar quem era e quem queria ser. Ela tinha que ser uma mu
lher? Ela tinha que ser um homem? Tinha que ser qualquer coisa além
de alguém que amava mulheres? O que uma mulher podería ou deveria
ser era algo carregado de tensionamentos, especialmente no caso de
uma mulher negra. Mesmo que usasse vestido ou saia, ela não seria o
mesmo tipo de mulher que uma mulher branca; e não importava quão
duro trabalhasse ou quantas pessoas sustentasse, ela nunca seria equi
parada a um homem,ainda que tivesse de carregar o mesmo fardo.
Mabel se considerava sapatão porque não queria ter nada a ver
com homens e amava mulheres. Ela tinha gostado de garotas a vida
inteira. Seu estilo se tornou mais masculino — sapatos de salto baixo,
chapéus panamás e conjuntinhos —,mas isso nada tinha a ver com
ser homem,era simplesmente uma reivindicação do “ele” que também
a definia. Quando vestia calças, paletó e gravata, ela estava apenas
sendo Mabel. Ela já tinha se sentido como um homem? Era algo que
Mabel não sabia responder. Sentia-se como si mesma. Era simples:
amava mulheres e não ligava para o resto.^ Não importava como as
pessoas a chamavam, se a chamavam de lésbica ou sapatão. Algu
mas de suas amigas a chamavam de sr. Hampton. Ela se chamava de
Mabel. A única coisa que importava era aquilo em que acreditava; o

353
único roteiro que tinha de seguir era aquele que ela mesma havia cria
do. Essa era a esperança.
O que se esperava que uma mulher negra fosse? Se tinham cabelo
chanel ou não,se vestiam calças ou vestidos,se tinham ou não marido,
nada disso parecia importar; todas elas sentiam que se encontravam
entre uma categoria e outra ou que falhavam em se adequar a elas.
Não havia nada que o mundo não faria a uma mulher de cor. Tudo
o que faziam aos homens negros era feito às mulheres negras. Toda
vez que lia os jornais, Mabel era lembrada disso. Elas eram linchadas.
Mutiladas. Espancadas nas ruas. Tinham a casa queimada. As formas
pelas quais você não era considerada um homem eram apenas opor
tunidades para a consumação de outro tipo de violência. Estuprar e
depois matar. Fazer seus filhos assistirem a tudo para que soubessem
que ninguém neste mundo poderia protegê-los.
Pendurá-la e abrir sua barriga como fizeram com Mary Turner.
Quando o bebê caiu de dentro dela, mataram a criança. Linchavam
mães acompanhadas de seus filhos. Estupravam meninas. Ser uma
mulher negra autorizava todo e qualquer ato brutal. Diante disso
tudo, o que se poderia fazer senão recusar categorias?^^

354
*

Ela estava a caminho do Garden ofJoy para encontrar as amigas quando


foi atacada por dois homens na 133^** Street com a Lenox. O homem
que andava na frente dela parou abruptamente e o que estava atrás a
agarrou. Eles a levaram para um quarto na 135*''Street,forçaram Mabel
a se despir,bateram nela,roubaram seu relógio e avaliaram seu corpo
para determinar seu valor. Tentaram torná-la uma propriedade, um
corpo para ser vendido a quem desse o maior lance. Dois estranhos
a sequestraram a algumas quadras de seu apartamento e tentaram
fazer dela uma qualquer com os braços presos na cama,como se fos
se alguma coisa para ser usada e jogada fora quando terminassem
com ela. Eles a estavam levando para outro prédio quando Mabel
se livrou do homem que agarrava seu braço e fugiu para o metrô. O
trem havia acabado de chegar na estação. Ela teve sorte. Um anjo
da guarda a protegeu e olhou por ela. Estava viva. Aqueles homens
podiam tê-la matado ou ter feito com que ela desejasse estar morta.
Eles não davam a mínima para o que ou quem você era. Estava viva e
se sentiu agradecida por isso.

CODA:o MERCADO DE ESCRAVAS DO BRONX

As mais desafortunadas aguardavam sentadas em um caixote ou


num banco à espera de uma oferta que nunca chegava, barganhan
do consigo a menor quantia que estariam dispostas a aceitar por um
dia de trabalho,torcendo pela decência de estranhos, mas sem contar
com ela. Não importava o frio que fizesse, elas ficavam na esquina da
Webster Avenue ou no cruzamento da Simpson com a Westchester
das oito da manhã até o começo da tarde. Quando chovia, encontra
vam abrigo se amontoando nas soleiras das portas mais próximas.
As mais obstinadas e resignadas assumiam uma expressão de quem
“desafia alguém a não contratá-la”. As prostitutas se reuniam em uma
esquina e as domésticas, na outra. O movimento do outro lado da rua
era lento e regular.®^ A maioria daquelas que aguardavam na esquina

355
para vender uma punheta ou uma rapidinha fizera parte da brigada do
saco de papel — as mulheres com a roupa de trabalho dobrada dentro
do saco amassado enfiado embaixo do braço. Agora elas trabalhavam
deitadas ou de joelhos, mas pelo menos não era um trabalho tão pu
xado.E pagava mais. No devido tempo,voltariam a atravessar a rua.^®
No mercado de escravas do Bronx,ninguém perguntava:“Como você
consegue fazer isso?”. Era“problema delas”, disse uma das mulheres à
espera de uma diária. “Se podem fazer isso e se safar, tudo bem pelas
outras.” As domésticas não tinham o que falar das demais mulheres
que trabalhavam na rua; quem elas queriam enxotar da esquina eram
as migrantes e as recém-chegadas, dispostas a trabalhar por quase
nada,que pareciam só saber dizer:“Aceito o que você oferecer”.“Sim,
madame. Eu limpo janelas.” Essas eram as garotas que tornavam as
coisas difíceis para o resto.
Um blues do Harlem captou as mudanças do mercado, o movimen
to que culminou em salários de fome ou em mãos vazias:

Preta, preta,tenho um trabalho pra você


Digam,brancos,o que vocês querem de mim
Tenho uma casa grande pra limpar e esfregar
Louça pra lavar, um chão pra limpar e esfregar
Brancos,digam,quanto vocês vão me pagar
Bem,deixa eu ver, está chovendo hoje
Oh,obrigada, brancos,eujá ouvi isso antes
Saiam daqui,lixo branco,antes que eu me zangue.*^®

Zangada ou não, a empregada doméstica suportava o trabalho bra-


çal que as outras pessoas evitavam. As mulheres negras descreviam
essa livre troca de seu trabalho e a imposição de salários miseráveis
como o mercado de escravas. Ella Baker e Marvel Cooke caracteriza-

* No opígínal, Black Gal, Black Gal, Got some work foryou/ Tell me white folks whatyou
want me to do/ Got a big house to clean and scnub/ Dishes to wash,floors to mop and
scrub/ White folks tell me, how much you going to pay/ Well lemme see now,seeing lt’s
a ralny day/Oh Thankyou white folks, I done heand that before/ Get away you white
trash ‘fone you get me real sore.

356
ram essa nova servidão como “a destruição brutal do negro” por do
nas de casa da classe média, e ofereceram um quadro ilustrativo das
novas condições de escravidão:

A quadra da Simpson Avenue exala a pior pestilência do mercado de escravas.


Não apenas aforça de trabalho humana é barganhada e vendida por salários
escravagistas, mas o amor também é um produto comercializável.Porém,
se é o trabalho ou o amor o que se vende,a necessidade econômica obriga
sua venda. Com o invariável saco de papel,esperam ansiosas que donas
de casa do Bronx comprem sua força e energia por uma,duas horas, ou
mesmo um dia, pela quantia exorbitante de quinze, vinte, ou se a sorte
estiver a favor delas, trinta centavos por hora. Quando não a própria
dona de casa, talvez o marido, o filho ou o irmão, sob o subterfúgio do
trabalho,ofereçam lances maiores pelo tempo'*° dasjovens mais vividas.

Disfarçadas de diaristas, Baker e Cooke ficaram à espera de serem


contratadas,compradas e vendidas—por uma quantia ínfima de vin
te e cinco centavos a hora. A dona de casa “as despia com os olhos en
quanto media a força delas”,'»» julgando a quantidade de trabalho que
poderíam suportar. A humilhação e os salários deploráveis ofereciam
amplas evidências de que as mulheres negras representavam o setor
mais oprimido da classe trabalhadora.
Enquanto esperavam para serem contratadas, um homem passou
por elas e soltou um malicioso “Ei, dondoca”. Ele parecia familiar.
Elas se deram conta de que o homem vinha as seguindo. Embora à
paisana, era óbvio que era um dos “melhores de Nova York” tentando
prendê-las por prostituição. As duas esperaram a manhã inteira enão
conseguiram trabalho, pois o preço delas era muito alto. Quando lhes
perguntavam Quanto você cobra?” não se dispunham a dizer “Aceito
o que você oferecer”.

Dez anos depois de ter se apresentado no palco do Alhambra Theatre


QmBlackbirds0/1926com Florence Mills, Mabel Hampton entrou no
mercado de diaristas. Também ela podia ser encontrada sentada em

358
um caixote entre o grupo de domésticas à espera de donas de casa de
Yonkers e Westchester. Por um curto período depois de ter deixado o
teatro,trabalhou em umafábrica de camisas, mas uma greve forçou seu
retorno para o trabalho doméstico. Após a crise de 1929,era impossível
encontrar um trabalho fixo com uma família. Aquele uniforme branco
era o único vestido que ainda se via forçada a usar.

359
\
o COPO abre caminho

Musas,serviçais, lavadeiras, prostitutas, domésticas, operárias, gar-


çonetes e aspirantes que nunca seriam estrelas formam esta compa
nhia, se reúnem no círculo e se alinham numa formação onde toda
particularidade e distinção se esvaem. Uma pode tomar o lugar de
qualquer outra, pode servir de substituta no enredo, recontar a his
tória do começo,transmitir o conhecimento da liberdade disfarçado
de conversa fiada e de absurdos.Poucos as compreendem,poucos as
estudam como se fossem dignas de alguma coisa, poucos percebem
seu valor inerente. Se escutar com atenção, você pode ouvir o mun
do inteiro em uma nota torta, numa letra de música descartável,
numa melodia singular da manifestação coletiva. Tudo,desde o pri
meiro navio até a jovem que foi encontrada pendurada em sua cela.
E pode se maravilhar com a capacidade delas de habitar a dor de
todas as mulheres como se fosse própria. Todas as histórias já con
tadas fluem de sua boca aberta. Um tomo filosófico em um gemido.
No recesso mais profundo e escuro de uma música opaca,fica claro
que a vida está em jogo.
Ela é uma corista mediana, apenas uma das garotas, ninguém es
pecial, parte da assembléia, engolida pela multidão, perdida na com
panhia de figuras menores. Canções como ela são um enigma,obscu
ras e cheias de significado, vitais e tão antigas e cruas^ como aquelas
vozes que ecoam pela saída de ar do prédio ou as histórias de perdas e
traições berradas de uma janela do segundo andar, os apelos sussur-

361
rados em uma viela ali atrás: Querida, me deixa voltar pra casa. Em
uníssono, as vozes dão forma à tragédia:

Às vezes eu mesinto como uma criança sem mãe


Tão longe de casa, tão longe de casa.*

Vi meu marido morto,


Efuilevada pelo mari^

O amor écomo uma torneira que abre efecha


Quando vocêpensa que conseguiu pegá-lo
Ele sefecha esome.

Blues,porfavor me diga:eu tenho que morrer escrava?


Blues, porfavor me diga:eu tenho que morrer escrava?
Você ouve minhassúplicas, você vai me levarpra sepultura.

Os versos das letras, os refrãos indisciplinados, as composições


de botequim são difíceis de explicar ou de se reduzir a uma coisa só,
como uma música materna que cria e marca você,^ e ainda assim é in-
traduzível.Do bana coba,gene,gene we.'A história excede as palavras,
os versos. Todas as coisas ocultadas e guardadas bem no fundo são
sentidas e exclamadas. É tudo tão terrível e tão belo. O peso do que
aconteceu é palpável, a infinidade da mágoa e da traição articulada
no ritmo do verso, transmitida no tempo da respiração. Viver não é
9-lgo garantido. Se você for capaz de suportar o fardo daquilo que elas
têm para oferecer,então há lugar para você dentro do círculo,e aquilo

* No original, Sometimes / feei like a motherless child,/A long way from home,a long
wayfrom home. Letra do spiritual “Sometimes i Feei Like a Motherless Child”(1918).
composto por Harry Burleigh.
** Trecho de Hécuba (424 a.C.),tragédia de Eurípedes.
*** No original, Love Is like a faucet that tunns ofFand on./ The veny timeyou thinkyou
got it/lt’s turned ofFand gone. Letra de “Ethel Sings’Em”(1924), por Ethel Waters.
**** No original, Blues, please tell me do I have to die
a slave?/ Blues, please tell me do I
have to die a slave?/ Do you hean me pleading, you going to take me to my grave. Letra
de “Slave to the Blues”(1926), por Ma Rainey.

362
que você sofreu faz parte deste inventário. A guerra,o roubo,a desor
dem,o estupro e a pilhagem estão alojados em cada verso.
Se você ousar ouvir e assistir, ou se gritar “Fale... diga agora”, ou
bater palmas, você está dentro e não há escapatória. Agora é impos
sível dar as costas, seguir adiante como se o mundo fosse o mesmo.
Não gaste seu fôlego perguntando por que ela tem de aguentar tudo
o que o resto do mundo não pode, como se você não soubesse, como
se antes você tivesse suposto que as coisas eram de outra maneira,
como se houvesse uma outra dádiva além daquela que ela ofereceu em
suas mãos estendidas; não ouse questionar, nem você nem ninguém
está em posição, exceto aquelas que levam suas roupas de trabalho
em um saco de papel amassado, ou aquelas conscritas à cozinha, ou
as prostitutas da Middle Alley, ou as jovens soltas que dão uma de
tolas no clube ou se movimentam como anjos no palco, ou meninas
presas em um sótão ou estupradas em um depósito de carvão, ou mu
lheres, curvadas sobre banheiras, que limpam e lavam para a cidade
inteira, ou dormem no quarto contíguo à cozinha a fi m de criarem
crianças, cuidarem dos maridos e assegurarem o crescimentofuturei^
de um mundo que se coloca contra elas. O coro bola um plano, elas
esboçam um esquema: estar em movimento, escapar, debandar para
a cidade,largar o trabalho e fugir de tudo aquilo que estiver determi
nado a sugar a vida delas. Um momento de alívio. E então se ver presa
em outro lugar, numa cidade diferente,em um novo ambiente,na casa
de um estranho, no quarto do patrão. Ninguém mais pode imaginar
algo melhor. Então cabe a elas ver as coisas de outra forma; exaustas
como estão, não cedem,tentam abrir caminho sem ter saída,tentam
não ser derrotadas pela derrota.
Quem mais ousaria acreditar que outro mundo seria possível,
quem mais passaria seus melhores dias se preparando para isso e nos
dias ruins derramar lágrimas por que esse mundo ainda não chegou?
Quem mais seria tão imprudente a ponto de sonhar com um futuro de
jovens de cor ou de uma mulher negra? Quem dedicaria uma tarde à
reflexão sobre a história do universo visto de lugar nenhum? Ou seria
convencida de que nada poderia ser dito sobre o problema do negro,
sobre a modernidade, o capitalismo global, a brutalidade policial, as

363
mortes do Estado e o antropoceno se ela não fosse levada em conta?
Se não fosse considerada a renegada geografia do mundo: o barra
cão,o porão do navio,a plantation, o campo,a área de preservação,o
quartinho no sótão, a colônia, o estúdio no sótão, o quarto, os arqui
pélagos urbanos,o gueto e a prisão?
O coro suporta tudo isso por nós. A etimologia grega da palavra
coro remete ao ato de dançar dentro de um espaço cercado? O que arti
cula melhor a longa história de luta, a prática incessante do radicalis
mo negro e da recusa,'^ o tumulto e a revolta da franca rebelião do que
os atos de colaboração e improviso que se desdobram dentro de um
espaço cerceado? O coro é o veículo para um outro tipo de história,
não aquela do grande homem ou do herói trágico, mas uma em que
todas as modalidades desempenham um papel,onde um grupo sem li
derança incita a transformação,onde a ajuda mútua fornece recursos
para a ação coletiva,nem líder nem massa,onde as músicas intraduzí-
veis e aparentemente sem sentido cumprem a promessa de revolução.
O coro impulsiona a mudança. É uma incubadora da possibilidade,
um conjunto que sustenta os sonhos de algo diferente.Em algum lugar
abaixo da Unha, os números aumentam^ a tribo cresce. O coro cresce.
Então» como vocêsegue emfrente?Ela não pode evitar...A luta éeterna.
Alguém maissegue adiante.^
Todos os detalhes da violência moderada ou extraordinária se
'juntam para produzir uma imagem do mundo em toda a sua beleza e
morte.
Nos tons femininos e caprichosos, nas risadas altas e no ir e vir do
corredor, nas garotas dançando nas escadas, há a determinação de
perturbar, de destruir e remontar e isso é tão poderoso que nos tira
o fôlego, tão palpável que nos faz cambalear de dor. Entrar no ritmo
do coro é muito mais que balançar a bunda e cantarolar a melodia, ou
repetir as poucas falas dessa figuração oferecida como um presente
pela historiadora,como quem diz. Veja só,a menina sabe falar,é mais
do que sentir gratidão porque a sociologia deu uma segunda olhada
e reconheceu o exercício de “idéias revolucionárias” na vida de uma
mulher negra comum. Desvendando o mundo e se agarrando ao aca
so, ela engana a lei e transforma os termos do possível.

364
● A.

í.

V"
●■<

-:í^

Os corpos estão em movimento. Os gestos revelam o que está em


jogo a matéria da vida retorna como uma questão em aberto. O
movimento coletivo aponta na direção daquilo que nos espera, do que
ainda está por vir, daquilo que elas antecipam — um tempo e um espa
ço melhores que aqui; um vislumbre de uma terra que não pertence a
ninguém. Então tudo depende delas, e não do herói que ocupa o cen
tro do palco, envaidecido e soberano. Dentro do círculo fica claro que
todas as canções são na verdade uma’só, mas murmurada em varia
ções infinitas, todas histórias alteradas e imutáveis: Como posso viver
assim? Que7'o ser livre. Fique firme.

36B
Agradecimentos

Tanto é devido a tantas pessoas. Este livro não teria sido possível sem
o trabalho e as palavras de tantas mentes brilhantes e criativas. No
mear algumas delas, pensadoras, artistas, planejadoras, rebeldes e
professoras que me vêm mais de imediato à cabeça,tem como conse
quência inevitável o posicionamento de tantas outras nos bastidores,
algo que está em desacordo com a minha intenção mais fundamental.
Dito isso, devo agradecer ao menor e mais imediato círculo formado
por quem tornou este trabalho possível. A influência de Hazel Carby,
Angela Davis,Judith Butler, Édouard Glissant,Jamaica Kincaid, Ab-
bey Lincoln, Toni Morrison, Hortense Spillers, Gayatri Spivak, Mi-
chel-Rolph Trouillot e Patricia Williams foi imensurável.
O companheirismo de pessoas amigas e colaboradoras nutriu este
trabalho. Fui inspirada por conversas e encontros com Elizabeth Ale-
xander,Jonathan Beller,Rizvana Bradley,Dionne Brand,Tina Campt,
Anne Cheng, Huey Copeland, Ann Cvetkovitch, Denise Ferreira da
Silva, Marisa Fuentes, Macarena Gómez Barris, Farah Griffin, Jack
Halberstam, Sarah Haley, Tera Hunter, Arthur Jafa, Robin Kelley,
Thomas Lax, Ralph Lemon, Fred Moten, Jennifer Morgan, Alondra
Nelson, Tavia Nyongb, Okwui Okpokwasili, Deborah Paredez, M.
NourbeSe Philip, Anupama Rao,Evie Shockley, Neferti Tadiar, Kris-
ta Thompson,Ula Taylor,Alexander Weheliye, Mabel Wilson ejawole
Willa Jo Zollar. Os grupos Black Modernities, Engendering Archives,
Subaltern Urbanism e Practicing Refusal forneceram espaços impor-

366
tantes para o desenvolvimento do meu pensamento.Tina Campt,Ha-
zel Carby, Anne Cheng e Christina Sharpe leram um rascunho inicial
do manuscrito e fizeram comentários inestimáveis.
Muitos agradecimentos ao meu agente,Joe Spieler, e ao meu edi
tor, John Glusman, por acreditarem no projeto e apoiá-lo. Seus co
nhecimentos e orientações aprimoraram este livro. Helen Thomaides
concedeu um grande apoio editorial na Norton. Anna Jardine foi uma
revisora notável. O time de design criou o livro adorável que eu que
ria. Tom Jenks me encorajou em uma etapa mais inicial do projeto.
Gostaria de agradecer ao Centro para Estudiosos e Escritores
Dorothy e Lewis B. Cullman da Biblioteca Pública de Nova York por
me conceder um paraíso onde pude pensar e escrever, e à Fundação
Guggenheim pelo apoio necessário à finalização deste projeto.
Um enorme obrigada aos arquivistas da Biblioteca de Livros e
Manuscritos Raros de Columbia; aos do Arquivo Lesbian Herstory;
à George Eastman House; à Universidade Rochester; ao Centro In
ternacional de Fotografia; à Biblioteca do Congresso; à Biblioteca
Beinecke da Universidade Yale; aos Arquivos Municipais da Cidade
de Nova York; à coleção de Livros Raros e Manuscritos da Biblioteca
Pública de Nova York;aos Arquivos do Estado de Nova York;ao Cen
tro de Arquivo Rockefeller; e aos Arquivos Urbanos da Universida
de Temple. Joan Nestle, do Arquivo Lesbian Herstoiy, concedeu um
grande apoio,e Tal Nader,da coleção de Livros Raros e Manuscritos
da Biblioteca Pública de Nova York, me ajudou a localizar materiais
importantes nos arquivos do Comitê dos Catorze.
Gostaria de agradecer Donna Van Der Zee por me ajudar a locali
zar a foto de Kid Chocolate e pela permissão de reproduzi-la.
Autumn Womack,Emily Hainze, Erica Richardson e Eve Eure fo
ram as assistentes de pesquisa deste projeto. Elas fizeram um traba
lho inestimável de coleta de materiais e de localização de documentos
difíceis de encontrar. As horas de conversa sobre fotografia, pesqui
sas sociais, sociologia experimental e, o mais importante, sobre as
vidas contidas e condenadas nesses documentos arquivísticos enri
queceram o livro. Em muito boa hora, Sarah Haley me deu o grande
presente de se voluntariar para cuidar das notas de fim. Eve Eure e

367
Ellen Louis a ajudaram na tarefa. Abbe Schriber foi incansável em
sua busca por imagens e aquisição de permissões.
Este livro evoluiu dentro do laboratório intelectual que é a sala de
aula. Gostaria de agradecer a quem me acompanhou nas disciplinas
Du Bois andHis Circle[Du Bois e seu círculo];Du Bois at150[Du Bois
aos 150]; Feminist Practice [Prática feminista]; Slavery, Coloniality,
and theHuman [Escravidão, colonialidade e o humano];SexualPanic
and CriminalIntimacy[Pânico sexual e intimidade criminosa]; e Race
and Visualiiy[Raça e visualidade]. As trocas semanais e seu compro
metimento rigoroso aprimoraram meu pensamento. Aprendi muito
ao lecionar em colaboração com Tina Campt, Anne Cheng, Robert
Gooding-Williams e Neferti Tadiar.
Fui beneficiada pelo cuidado e pelos conselhos sábios das queridas
amigas Ula, Tina, Anne e Neferti. Essas minhas irmãs me carrega
ram.Meu irmão Peter ficou ao meu lado quando nossos pais deixaram
o mundo.
Este livro não poderia ter sido escrito sem o amor e apoio de Sa
muel Miller. Obrigada por me ler sob demanda, por acreditar em
mim, por me responder perguntas sobre algumas questões obscuras
da lei, e por estar ao meu lado durante o longo curso de produção des
te livro. Obrigada pelas caminhadas no bosque,por todas as refeições
deliciosas, por cuidar de mim, por cuidar de Kasia e da minha mãe,
por ser o pai de plantão em tempo integral, por ser meu alicerce. Mi
nha bela Kasia,obrigada por todo o amor e por todas as risadas, pelas
aventuras bobas, pelas maratonas de dança, pelo tempo no jardim e
pelos milhares de tentativas corajosas de me tirar da minha mesa, me
lembrando que “é só um livro”.

368
Notas

UMA NOTA SOBRE O MÉTODO[PP.11-3]

1. Vep Kevín Mumford,Interzones. Nova York; Columbla University,19971 PP* ■'08,116-7.


A melindrosa “simbolizava a revolução nos valores". Contudo, diferente das mulheres
negras, seus modos de expressão sexual não eram criminalizados.

A TERRÍVEL BELEZA DO GUETO [PP. S3'3^]

1. Kenneth Clark, The Dark Ghetto [1967]. MIddIetown, Connecticut: Wesleyan


University Press, 1989.
2. Edwin Emerson, Harper’s Weekly, 9 jan. 1897.
3. W. E. B. Du Bois, The Philadelphia Negro: A Social Study [1899]* Nova York: Kraus-
-Thomson Organization, 1973, pp. 67,71,178.
4. VIncent Frankiin, “The Philadelphia Riot of 1918", Pennsylvania Magazine ofHistony
and Blography, v. 99, n. 3, jul. 1975, p. 336.
5. The Citizens’ Protective League, Story ofThe Riot. Nova York: CItIzens Protective
League, igoo.
6. Paul Laurence Dunbar, “The Negrões of the Tenderloin”. In: Shelley Fisher Fishkin e
David Bradiey (Orgs.), The Sport of the Gods and Othen Essential Writings. Nova York:
Random House, 2005, pp. 26^^ 267.
7. Id. ibid., p. 267.

UMA FIGURA MENOR [PP. 33-55]

1. Deborah Wlilis e Carla Williams, em The Black Female Body:A Photognaphic History
(Filadélfia: Temple University Press, 2002), me introduziram a essa Imagem. Ver também
Angela Davis, “Reflections on the Black Woman’s Role In the Community of Slaves,
The Black Scholar, v. 2,1 nov. 1981; Thavolia Glymph, Out of the House ofBondage:

369
The Transformation ofthe Plantation Household(Nova York: Cambridge Universlty Press,
20o8):e Tera W.Hunter, To ’Joy My Fneedom:Southern Black Women’s Lives and Labors
aften the Civil \Nar(Cambridge, Massachusets: Harvard Universil^ Press,igg7).Sobre as
possibilidades de uma anotação transformativa,ver Chrístina Sharpe,In the Wake:On
Blackness and Being(Durham,Caroiina do Norte: Duke Universlty Press,2016, pp. ●116-24).
2. Herman Moens, um “cientista" europeu (ele não tinha nem formação científica nem
graduação em medicina) que estudava diferenças raciais, tirou uma série de fotografias
de meninas negras em idade escolar em Washington, D.c. A provisão foi encontrada
porque o doutor holandês fora investigado como um espião aiemão durante a Primeira
Guerra Mundial.
3. Ver Tina Campt, Listening to Images. Durham, Caroiina do Norte: Duke University Press,
2017, pp. 32,109,113.
legenda, escreve Roland Barthes, “parece duplicar a imagem. Isto é, participa de sua
V^notação”. Image, Music, Text. Trad. de Stephen Heath. Nova York: HilI and Wang, 1978, p. 26.
5. Simone Browne, Dark Matters: On the Surveiliance of Blackness (Durham, Caroiina do
Norte: Duke University Press, 2015); Nicole Fleetwood, Troubling Vision: Performance,
Visuality, and Blackness (Chicago: University of Chicago Press, 2011); Kimberly üuanita
Brown, The Repeating Body: Siavery’s Visual Resonance in the Contemporary (Durham,
Caroiina do Norte: Duke University Press, 2015); Shawn Michelle Smith, AmeWcan
Archives: Gender, Race, and Class in Visual Culture (Princeton, Nova Jersey: Princeton
University Press, 1999); Christina Sharpe, Monstrous Intimacies: Making Post-Slavery
Subjects (Durham, Caroiina do Norte: Duke University Press, 2010); Huey Copeland,
Bound to Appear. Art, Slavery and the Site of Blackness in Multicultural America
(Chicago: University of Chicago Press, 2013); Nicholas MirzoefF, The Right to Look:
A CounterhistoryofVIsuality (Durham, Caroiina do Norte: Duke University Press, 2011).
6. Audre Lorde, “A Litany for Survival”. In: The Black Unicom. Nova York: W. W. Norton,
-1995. P. 255 [ed. bras.: “Uma litania pela sobrevivência” In: A unicórnia preta. Trad. de
Stephanie Borges. Belo Horizonte: Relicário, 2020].
7. Gwendolyn Brooks, “Boy Breaking Glass”. In: In the Mecca. Nova York: Harper & Row, 1968.
8. Roy DeCarava, The Haliway, Imageworks, Art, Architecture and Engineering Library.
Ann Arbor: University of Michigan Press, 1953.
9. Ver Tina Campt, Listening to Images, op. cit., pp. 49,75.
10. “O resíduo da exploração sexual do corpo de mulheres escravizadas é a imagem
persistente da diáspora negra, a punção do passado materializada no presente [...]. Algo
que pressupõe uma aberração temporal, uma invasão incessante do momento presente
pelo passado.” A imagem persistente é uma figura do legado sexual da escravidão inscrita
no
corpo das mulheres negras. Ver Kimberly üuanita Brown, Repeating Body. op. cit.,
pp. 18-9,56. Sobre a anotação como uma forma de lidar com a violência e a antinegritude,
ver Chrístina Sharpe, In the Wake, op. cit. Sharpe escreve que: “A anotação negra [é uma]
forma de imaginar algo diferente”. É uma espécie de obra do despertar e faz parte de
uma longa história de imaginar esse algo diferente, “mais do que a contenção de uma
história longa e brutal”. É “uma réplica ao abandono, um outro esforço para tentar
enxergar, para tentar ver de verdade”, pp. 126,112,115.
11. Minha leitura dessa fotografia e da experiência da menina no estúdio é baseada
em Susan Daly e Cheryl Leibold, “Eakins and the Photograph: An Introduction”; Anne
McCauley, “The Most Beautiflil of Nature’s Works’: Thomas Eakins’s Photographic Nudes In
their French and American Contexts”; Elizabeth dohns, “An Avowal of Artistic Community:
Nudity and Fantasy In Thomas Eakins’s Photographs”; Mary Panzer, “Photography, Science,

370
and the Tnaditional Apt ofThomas Eakins". In:Susan Daly e Cheryl Leibold (Orgs.),
Eakins and the Photograph: Works by Thomas Eakins and His Circie In the Collection
ofthe Pennsylvania Academy ofthe FineArts(Filadélfia: Pennsylvania Academy ofthe
Fine Arts,1994); Jennifer Doyle,“Sex,Scandal,and Thomas Eakins’s The Gross Clinlc”,
Repnesentations,v.68,outono,*1999, pp.1-33; Kathleen A. Fostep e Chepyl Leibold, Writing
About Eakins:The Manuscripts in Charles Bregler’s Thomas Eakins Collection (Filadélfia:
Pennsylvania Academy ofthe Fine Apts,1989); Henpy Adams,Eakins Revealed:The Secret
Life ofan American Artist(Nova Yopk: Oxfopd Univepsity Ppess,2005);Fped Moten,“Taste
Dissonance Flavop Escape: Ppeface fop a solo by Miles Davis”, Women & Performance:a
Journal ofFeminIst Theory,v.iy, n.a,jul. 2007, pp.217-46; Debopah Wlllls e Capla Williams,
The Black Female Body:A Photographic H/süory(Filadélfia:Temple Univepsity Ppess,2002);
Alan Bpaddock,Thomas Eakins and the Cultures ofModernity(Bepkeley: Univepsity of
Califopnia Ppess,2009); Willíam Innes Homep,Thomas Eakins:His Life andArt(Nova Yopk:
Abbeville Ppess,1992):Thomas Eakins, Thomas Eakins:His Photographic Works(Filadélfia:
Pennsylvania Academy ofthe Fine Apts,1969);Sidney D. Kipkpatpick, The Revenge of
Thomas Eakins(New Haven,Connecticut:Yale Univepsity Ppess,aoo6);e Thomas Eakins,
“Notes on a DifPepential Action of Ceptain Muscles Passing Mope than One Joint”.
In: Thomas Eakins,A Drawing Manual(Filadélfia: Philadelphia Museum of Apt,2005).
12. Essa é a definição de popnogpafía segundo Roland Bapthes, Camera Lúcida:Refiections
on Photography.Tpad.de Richapd Howapd [1979]- Nova Yopk: HilI & Wang,2010, p.59
[ed. bpas.: A câmara clara:nota sobre a fotografa. Rio de Janeipo: Nova Fponteipa,2018].
●13. HazeI Capby descpeve esse pepíodo como a “epa da mulhep” em viptude da atividade
litepápia e política das mulhepes negpas. Vep Reconstructing Womanhood: The Emergence
oftheAfro-American Woman Novelist. Nova Yopk: OxfoPd Univepsity Ppess, 1989.
14. Mapy Odem, Delinquent Daughters, Protecting and Policing Adolescent Female
Sexuality In the U. S. 1885-1920 (Chapei HilI: Univepsity of Nopth Capolina Press, 1995.
PP- 25-31,33,35); Capolyn E. Locca, Jaiibalt: The Politics ofStatutory Rape Laws (Albany:
State Univepsity of Nova Yopk Ppess, 2004, pp. i4"S); Michelie Obepman, “Regulating
Consensual Sex with Minops: Defining a Role fop Statutopy Rape, BufFàlo Law Review,
V. 48,2000, pp. 703-84; dane E. Lapson, “Even a Wopm WilI Tupn at Last: Rape Refopm in
Late Nineteenth Centupy Amepica”, Yale Journal ofLaw and the Humanities v. 9, n. 1,
●'997i PP- 70-1; Ruth M. Alexandep, The “GirI Problem": Female Sexual Delinquency in
New York, 1900-1930 (Ithaca, Nova Yopk: Copnell Univepsity Ppess, 1995)-
Os pefopmadopes afpo-estadunidenses epam muito cautelosos com pelação
às leis estatutápias de estuppo. Eles estavam cientes de que essas leis falhapiam
em ppotegep jovens negpas enquanto epam emppegadas papa cpiminallzap homens
negpos. Papa uma análise da pelação entpe estuppo e violência pacial, vep Ida B. Wells,
Southern Horrors, Lynch Law in All Its Phases, A Red Record and Mob Violence in
New Orieans. In: Jacqueline Roystep (Cpg.), Southern Horrors. Boston: Bedfopd/
St. Maptin's Ppess, 1997.
15. A negação da lei diante da individualidade negpa falhava em peconhecep a agpessão
sexual. Vep Scenes ofSubJection (Nova Yopk: Cxfopd, 1997, PP- 79-n2); Danielle McGuipe,
At the Dark End ofthe Street: Black Women, Rape, and Resistance A New History of
the Civil RIghts Movement (Nova Yopk: Vintage, 2010).
16. Fpancis Beale, “Double deopapdy: To Be Black and Female". In: Toni Cade Bambapa (Opg.),
The Black Woman: An Anthology. Nova Yopk: New Amepican Libpapy, 1970.
17. Vep Ethel Wateps, His Eye Is on the Sparrow: An Autobiography. Gapden City, Nova
Yopk: Doubleday, 1951, p. 23.

371
i8. Audre Lorde,Sisten Outsider:Essays and Speeches[1984]. Berkeley, Califórnia:
Crossing Press,2007,P* ■'29 [ed. bras.: Irmã outsider: ensaios e conferências. Trad. de
Stephanie Borges. São Paulo: Autêntica, 2019].
i9. Audre Lorde, “A LItany for Survival”, op. cit., p. 255 [ed. bras.: “Uma litania pela
sobrevivência". In: A unicórnia preta, op. cit.].
20. Arieila Azoulay, “Potential History: Thinking through Vioience”, Criticai Inquiry, v. 39,
n. 3, abr. 2013, p. 548.
21. Para uma discussão sobre os paradoxos e contradições desse período, ver Hazei Carby,
“On the Threshold of the Women’s Era”, Criticai Inquiry, v. 2, n. 1, out. 1985, p. 262; e “Policing
the Black Woman’s Body in an Urban Context”, Criticai Inquiry, v. 18, n. 4, jul. 1992, p. 738.
22. «James Q. Whitman, Hitler’s American Model: The United States and the Making of
Nazi Race Law. Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 2017, pp. 59"68,113-24.
23. Marguerite Duras, The Lover. Trad. de Barbara Bray. Nova York: Harper Perennlal, 1992
[ed. bras.: O amante. Trad. de Denise Bottmann. São Paulo: Tusquets, 2020].

UMA MULHER MAL-AMADA [PP. 57-61]

1. Ida B. Wells, Miriam DeCosta-Willis (Org.), The Memphis Diaryofida B. Wells. Boston:
Beacon Press, 1995, pp. 77-9. Esse retrato é devido a maravilhosa biografia de Paula
Giddings, ida: A SwordAmong LIons — Ida B. Wells and the Campaign Against lynching.
Nova York: Amistad, 2009.
2. Mary Church Terrell, A Colored Woman In a White World. Washington, d.c.: Randall Inc.,
Printers and Pubiishers, 1940, pp. 296-7.
3. Brown v. Memphis & Co., 5 Fed. 499 (1880), U. S. App. 2696.
4. Em Black Reconstruction, 1860-1880 [1935] (Nova York: Free Press, 1998), Du Bois
escreve
que a escravidão prejudicou a reputação do negro enquanto ser humano.
Defensores da segregação raciai continuariam a duvidar do status do negro como ser
humano e a afirmar que crimes cometidos contra as pessoas negras eram socialmente
toleráveis porque “não havia humanos envolvidos”. Ver Aimé Césalre, Discourse on
Colonlallsm (Nova York: Monthly Review Press, 2000) [ed. bras.: Discurso sobre o
' ' colonialismo. Trad. de Cláudio Willer. São Paulo: Veneta, 2020]; Sylvia Wynter, “No Human
Involved: An Open Letter to My Colleagues” (Stanford, Califórnia: Institute n.h.i., 1994);
e Alexander Weheliye, Habeas Viscus: Raclalizing Assemblages, Blopolitics and Black
Feminist Theorles ofthe Human (Durham, Carolina do Norte: Duke University Press, 2015).
5. Ver NelI Painter, Sojourner Truth:A Life, a Symbol. Nova York: W. W. Norton, 1997,
pp. 286-301.
6. Paula GIddIngs, Ida: A SwordAmong LIons, op. cit., p. 318.
7. Wells se descrevia nesses termos. Ver Alfreda Duster (Org.), Crusade fbr Justice:
The Autobiography ofida B. Wells. Chicago: University of Chicago Press, 1970, p. 18.
Para um estudo da campanha antilinchamento de Wells, ver Crystal Feimster, Southern
Horrors: Women and the Politics ofRape and lynching; Hannah Rosen, Terror in the
Heart ofFreedom: Citizenship, Sexual Vioience and the Meaning of Race In the Posteman-
clpatlon South (Chapei HilI: University of North Carolina Press, 2009); e Mia Bay, To Tell
the Truth Freely: The Life ofida B. Wells (Nova York: HilI and Wang, 2010). Sobre feminismo
e teimosia, ver Sara Ahmed, WilIfuI Subjects (Durham, Carolina do Norte: Duke University
Press, 2014).

372
8.Ida B. Wells,Southern Hornors:Lynch Law in AH Its Phases[-1892]. Boston: Bedfbrd/
St. Maptln’s,i997, p.55.
9. Fannie Bappien Williams,“The Coloped GIpI”, Voice ofthe Negro,v.2, n.6,1905, pp.400-3,
peimpp.em Mapy Jo Deegan (Opg.), The New Woman ofColor:The Collected Writing of
Fannie Barrier Williams. DeKaIb: Nopthepn Illinois Univepsity Ppess,2002,p.63.
10. Esses incidentes são descpitos em Ida B. Wells,Southern Horrors:Lynch LawinAII
Its Phases,op.cit., pp.58,59,71.

UMA HISTÓRIA ÍNTIMA DE ESCRAVIDÃO E LIBERDADE[PP.63-94]

●1. lístópia começa antes da peunião dos autos,com a debandada dela papa a cidade,
>appotada em um navio a vapop com centenas de outpas pessoas em busca de uma vida
melhop. A histópía começa em meio a um expepimento de libepdade. É uma histÓPia que
excede o acq.uivo. ' '
2. Esse é um pelato especulativo da jopnada de Mattie de Vipgínia papa Nova Yopk. A Old
Dominion epa o ppincipal meio de tpanspopte de Nopfolk, Richmond e de fbpma mais gepal
pela costa leste até a cidade de Nova Yopk. Havia navios menopes que tpanspoptavam
passageipos de Hampton papa Nopfolk. Vep “Steamship Monpoe, ofthe Old Dominion
Une", Marine Engineering, v. 8, n. 8, ago. 1903, p. 396; e The Offícial Railway. Nova Yopk:
National Railway Publlcatlon Company, 1908, p. 1077. Sobpe migpantes da Vipginia na
cidade de Nova Yopk, vep W. F. Osbupg, “The Richmond Negpo In New Yopk” (disseptação de
mestpado, Columbla Univepsity, 1909); Beryamin H. Locke, “The Community Life of a
Haplem Gpoup of Negpoes” (disseptação de mestpado, Columbla Univepsity, i9í3. P- 6);
Robept Z. Johnstone, “The Negpo in New Yopk” (disseptação de mestpado, Columbla
Univepsity, 1911, p. 8); e Paul Seymoup, “A Gpoup of Vipginia Negpoes In New Yopk City"
(disseptação de mestpado, Columbla Univepsity, 1912).
^3. Fpedepick Douglass descpeve o ambiente doméstico da plantatlon como se segue:
“toda cozinha epa um bopdel” em “Love of God, Love of Man, Love of Countpy: An Addpess
Deliveped in Sypacuse, New Yopk, on Septembep 24,1847”, Frederick Douglass Papers,
V.1
: 1842-Í852 (New Haven, Connecticut: Yale Univepsity Ppess, 2009, p. 93). Vep também
Chpistina Shappe, Monstrous Intimacles, op. cit. Isso não epa menos vepdadelpo no século
20. Vep Kathepine McKittPick, “Plantatlon Futupes”, SmallAxe, v. i6._ n. 3, nov. 2013, pp. 1-15-
W. E. B. Du Bois também obsepvou que “a cozinha contém toda uma histÓPia social” em
The Negro American Family: Report ofa Social Study Made Principally by the College
Classes oftgog & -ig-io ofAtlanta University. Atlanta, Geópgia: Atlanta Univepsity
Publications, 1908, p. 66.
4.0 “lap da sepvidão” llustpa a sobpevida da escpavidão, a sepvidão doméstica das
mulhepes negpas e a ppostituição. Vep Tpavolia Glymph, Out ofthe House ofBondage,
op. cit.; Octavia V. Rogeps Albept, The House ofBondage or Charlotte Brooks and Other
Slaves (Nova Yopk: Hunt and Eaton, 1891); e Reginald Wpight Kauffman, House ofBondage
(Nova Yopk: Gposset & Duniap, 1921).
5. Sobpe a segpegação no navio a vapop da Old Dominion, vep Apthup Bpowne, One
Righteous Man: Samuel Battie and the Shattering ofthe Colored Une in New York
(Nova Yopk: Beacon Ppess, 2016): “Ninguém sabe como acontecia, mas em todos os navios
da Old Dominion Steamship atpacados lá havia de duzentos a tpezentos negpos que
desembapcavam em Nova Yopk", p. 16; e Gllbept Osofsky, Harlem: The Making ofa Ghetto:
Negro New York, 1890-1930. Chicago: Ivan R. Dee, 1996, p. 30.

373
6.John Bergen,A Seventh Man:A Book ofimages and Words about the Expenience of
Migrant Workers in Europa. Baltimore: Penguln,igyg; reímpr. Nova York: Verso,2010, p.33.
rn *igoo, Mattie tinha só dois anos de idade e dava seus primeiros passos; nesse ano,
estado da Virgínia aprovou uma lei que ordenava a segregação social no transporte
público, restringido as formas pelas quais ela poderia se movimentar pelo mundo e
fixando seu lugar nele — Mattie fora consignada ao degrau mais baixo, uma eterna
estrangeira, a governada, mas nunca cidadã. Em 1882,o Chicago Tribuna começou a
coletar estatísticas de linchamentos. Na época em que Mattie chegou na cidade de
Nova York, no outono de 1314,quase 3 mil homens, mulheres e crianças negras tinham
sido enforcados,queimados,castrados e desmembrados por todo o país. Embora a
maioria desses atos ocorresse no Sul, pessoas negras eram assassinadas de Nova Jersey
até o Texas, do coração da confederação até o local de nascimento de Lincoln. O cálculo
de pessoas linchadas publicado no Tribuna a na Tha Crisis:A Record oftha Darkar Racas
falhou em dar conta do terror cotidiano da vida sob as leis Jlm Crow; ninguém compilou as
estatísticas do dia a dia e dos atos de violência banais, nem levou em conta as agressões
sexuais e insultos ou registrou as humilhações diárias causadas pela linha de cor.
8.Sobre as chegadas no cais de Nova York,ver o relatório anual de igio da Liga Nacional
para a Proteção das Mulheres de Cor iig^o Annuai Raport, Nova York,igii), Schomburg
Center for the Research in Black Culture, Biblioteca Pública de Nova York; Francês Kellor,
“The Problem ofthe Young Negro GirI from the South", New York Times(ig mar.igog,
p.8); Francês Kellor,“Opportunities for Southern Negro Women in Northern Cities",
Voice oftha Negro(Atlanta, Geórgia,Jul.1305); Victoria Earle Matthews,“Some ofthe
Dangers Confronting Southern GIrIs in the North”, Hampton Negro Conlarence,v. 2,
jul.i8g8,e reimpr.em Shirley Wilson Logan, l/l/e Are Corning: The Persuasive Discourse of
Nineteenth-Century Black Women (Carbondale:Southern Illinois University Press,iggg,
pp.215-20);“Migration of Colored Giris from Virginia", Hampton Bulletin: Ninth Annual
Raport oftha Hampton Negro Conference(set.1305, pp.57-9);e Kelly Mlller,“Surplus
Negro Women",Southern Workman (out.1305, pp.522-8).
3.Sobre a migração de mulheres negras,ver nota anterior e W.E. B. Du Bois,Philadelphia
Negro,op.cit.,e New York Colored Mission, Report ofthe New York Colored Mission
(Nova York: New York Colored Mission,1871-1966).
10.Victoria Earle Matthews expressa suas opiniões sobre o pessimismo de Dunbar em
um editorial do New York Sun,14 set.1897.
11
.Id.,“Some ofthe Dangers Confronting Southern Giris in the North”,op.cit., p. 220.
12
.Everyday Life at Hampton Institute. Hampton,Virgínia: Hampton Institute,1909.
13. Christina Sharpe,Monstrous Intimacies,op.cit.; Édouard Glissant, Caribbean
Discourse:Selected Essays.Trad. de d. Michael Dash.Charlottesville: University Press of
Virgínia,1989, p.80.
14.“Foram sua personalidade e os dotes naturais,físicos, que lhe deram acesso a lugares
e condições no Sul Inacessíveis para a maioria das outras mulheres”. Elizabeth Lindsey
Davis,LiftingAs They Climb. Nova York: G. K. Hall,1996, p.22.
15. A Guerra Hispano-Americana foi central para a criação de uma nação branca
reunificada no período pós-Guerra Civil. Os soldados cidadãos do Norte e do Sul foram
reconciliados no palco da guerra imperial. Em 1898,os pais de Mattie estavam em Cuba.
Vinte e cinco por cento dos soldados do exército estadunidense eram afro-americanos.
Robin D.G. Kelley,“Mike Brown’s Body: Meditations on War, Race and Democracy”, Tonl
Morrison Lectures,13 abr. 2015, Princeton University, Princeton, Nova Jersey; Amy
Kaplan,“Black and Blue on San Juan Hill". In: Amy Kaplan e Donald E. Pease (Orgs.),

374
Cultures of United States Impenialism. Durham,Carolina do Norte: Duke Uníversity
Press, pp.219-36.
16. A carta foi escrita pela srta. Hattie Morehouse,uma professora branca de Jacksonvílie,
Flórida, pedindo a ela que encontrasse uma jovem que logo chegaria no navio a vapor.
AJovem foi encontrada vários dias depois,após uma cuidadosa busca que envolveu
detetives policiais, mas então,ela Já havia se tornado uma versão arruinada de seu antigo
eu. Victorla Earle Matthews,“Some ofthe Dangers Confronting Southern Giris in the
North”. In: Shirley Wilson Logan (Org.), l/l/e Are Corning:The Persuasive Discourse of
Nineteenth-Century Biack Women.Carbondale, Illinois: Southern Illinois University Press,
“«999. PP- 215-20.
17. Id. Ibid., p.215.
18. Id.,“The Awakeníng ofthe Afro-AmerIcan Woman"[1897]. In: Shirley Wilson Logan
(Org.), With Pen and l/b/ce;A Criticai AnthologyofNineteenth-CentuiyAfrican-
-American Women.Carbondale,Illinois: Southern Illinois University Press,1995, p.151.
19. Id.,“Some ofthe Dangers Confronting Southern Giris",op.cit., p.219.
20.Ver Erving Goffman,Stigma: Notes on the Management ofSpoiled Identity. Nova York:
Simon & Schuster,1963, pp.34,42.
21. Aqui eu parafraseio Erving Goffman,que define da seguinte maneira a luta impossível
para se livrar de um estigma:“a transformação do eu de alguém com uma mácula em
particular para alguém com um histórico de ter reparado uma mácula em particular”.
Id. Ibid., p. g.
22. Id. Ibid., p.6.
23. É assim que ela é descrita nos autos.Ver Autos de Bedford Mills #2466. Bedfbrd Mills
Correctional Facility Collection,14610-77B; autos de detentas,ca.1915-193O1 fSSS^^sSSi
registros do Departamento de Serviços Correcionais,Arquivos do Estado de Nova York,
Albany, Nova York. De agora em diante, referidos como Autos de Bedford Mills.
2^^ Paul Laurence Dunbar,Sport ofthe Gods,op.cit.
25. Philadelphia Mousing Authority,“Negro Migrant Study",s.d., Philadelphia Mousing
Authority Papers, Urban Archives,Temple Universityi Filadélfia; e The Chicago
Commission on Race Relations,“The Migration of Negrões from the South", The Negro
in Chicago:A Study ofRace Reiations and a Race Riot. Chicago: University of Chicago
Press,1922, pp.79-105.
26.Todos os motivos sentimentais mais comuns detalhados em estudos sobre migrantes e
relatórios de comissões de levantes explicam a presença dela em Nova York:liberdade de
movimento,o desejo de oportunidades melhores, um escape da violência racista, uma saída
da escravidão — motivos declarados e reproduzidos em canções, poemas,cartas,rumores
e fofocas.Ver “The Chicago Commission on Race Relations", The Negro in Chicago,ibid.
27.A biografia de Mattie que se segue é baseada nos Autos de Bedfbrd Mills. Os arquivos
são bem detalhados, particularmente no período de 1917 e 1920, porque o Laboratório de
Migiene Social conduzia uma extensa série de entrevistas com jovens e mulheres(entre os
catorze e trinta anos)quando chegavam ao reformatórlo.O processo de admissão Incluía
entrevistas pessoais; históricos familiares; entrevistas com vizinhos,empregadores e
professores;testes psicológicos,exames fisiológicos e teste de inteligência;além de
relatórios de investigadores sociais e oficiais de condicional. Depois de duas semanas de
avaliação dos materiais compilados, médicos, psicólogos,assistentes sociais,sociólogos
e superintendentes prisionais se encontravam para discutir cada caso individualmente.
Os arquivos também contêm correspondências pessoais,discussões sobre sexualidade,
experiências de vida e a história pessoal, bem como fotografias das prisioneiras e dos seus

375
filhos; alguns arquivos incluem poemas, peças e cartas de amor escritas pelasjovens; eles
também trazem observações sobre os sentimentos e atitudes das mulheres com relação
às suas prisões.Os autos se pretendiam como um registro abrangente do indivíduo,que
era fundamental para a prática de punição e reforma do Estado, para a administração
dos pobres e a manutenção da linha de cor.Os autos tinham por objetivo produzir um
profundo conhecimento da vida individual,o que era central para o discurso de reforma
prisional e para a ideia de que o encarceramento e a liberdade condicional precisam ser
contrapostos ao perfil do criminoso.Isso foi responsável pela transformação da sentença
indeterminada,que passou a ser vista como uma abordagem punitivista “humana”e
“científica”. A modalidade do arquivo era baseada na hermenêutica da suspeita e num
horizonte de reformas.Os autos eram um produto do estado terapêutico.Ver Michel
Foucauit,Discipline and Punish:The Birth ofthe Prison.Trad. de Alan Sheridan(Nova York:
Vintage,igg^[ed. bras.: Vigiar e punir:nascimento da prisão.Trad.de Raquel Ramalhete.
Petrópolis: Vozes,zoig]; David Rothman,Conscience and Convenlence: The Asyium and
Jts Alternativas In Progressive America(Nova York; Aldine Transactions,2002,capítulo 2);
On the Case”,ed.especial. Criticai Inquiry, v.33,n.4,verão,2007; Karen W.Tice, Taies of
Wayward Giris and Immoral Women:Case Records and the Professionalization ofSocial
Work(Urbana: University of Illinois Press,igg8).
28. Ver Nayan Shah,Contagious Divides:Epidemics and Race in San Francisco's
Chinatown. Berkeley: University of Califórnia Press,2001;e Mary Ting Yi, The Chinatown
Trunk Mystery:Murder, Miscegenation,and Other Dangerous Encounters in Turn-of-the-
-CenturyNew York City. Princeton: Princeton University Press,2007.
2g.Tonya Foster,A Swarm ofBees in HIgh Court. Nova York: Belladonna,2015, p.68.
30.Toni Morrison,Sula. Nova York: Vintage,1373, p.121.
31. Audre Lorde,“Poetry is Not a Luxury”. In: Sister Outsider,op.cit., p.38[ed. bras.: Irmã
outsider,op.cit., p.45].
32. Ver W.E. B. Du Bois,“Ofthe Faith ofthe Fathers”. In: The Souls ofBlack Folk [1303].
Nova York: Penguin,1383, pp.153-60[ed. bras.:As almas do povo negro.Trad. de
Alexandre Boide.São Paulo: Veneta,2021];e Id., Negro American Family,op.cit.
33- O pensamento posto em ação é crítico para a prática anarquista. É a fundação da
prática feminista negra,que compartilha muito com o anarquismo em sua crítica à
violência do Estado e na luta contra o enclausuramento na plantation e na cidade. As
jovens neste livro são pensadoras e radicais dessa tradição. Ver também Erin Manning
'' e Brian MassumI, Thought in the Act:Passages in the Ecology ofExperience. Mineápolis:
University of Minnesota Press,2014.Sobre a relação entre a sexualidade e o surgimento
do racismo e da coionialidade,ver Ann Stoler, Carnal Knowledge and Imperial Power
(Berkeley: University of Califórnia Press,2010); e Kevin Mumford,interzones,op.cit.
Michel Foucauit diz que a sexualidade é “um denso corjunto de pontos de transferência
nas relações de poder”,em History ofSexuality.Trad. de Robert Hurley. Nova York:
Pantheon Books,1378, p.g6[ed. bras.: História da sexualidade.Trad. de Maria Thereza
da Costa Albuquerque e d. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Paz e Terra,2020].
34.Ver HazeI Carby,“Policing the Black Womarfs Body”,op.cit.; Sarah Haley, No MercyHere:
Gender,Punishment,and the Making ofJim Crow Modernity(Chapei HilI: University of
North Carolina Press,2016); Cheryl Hicks, Talk With You Like a Woman:African American
Women,Justice,and Reform in New York, ■fS’90-1935 (Chapei HilI: University of North
Carolina Press, 2010); Kaii Gross, Colored Amazons: Crime, Violence and Black Women in
the City of Brotherly Love, iBBo-igio (Durham, Carolina do Norte: Duke University Press,
2006); Cynthia M. Blair, /Ve Got to Make MyLivin’: Black Women’s Sex-Workin Turn-of-the-
-Century Chicago (Chicago: University of Chicago Press, 2010); e Emily Hainze, “Wayward
Reading” (tese de doutorado não publicada, Columbia University, 2017).

376
35* Os autos de Bedford classificam a reunião de rumores e l^tos feita pela Estado como
uma “História Verificável”. Os relatos das mulheres são chamados de “Statement ofthe
Glrl”[Depoimento da jovem].
36. Frantz Fanon, The Wnetched ofthe Earth.Trad.de RIchard Phllcox. Nova York: Grove
Press,2005, p.2[ed. bras.: Os condenados da terra.Trad. de Enilce Albergaria Rocha e
Lucy Magalhães.Juiz de Fora: ufjf,200^.
37.0feminismo negro é o desejo pelo fim do mundo como conhecemos.Vér Denise
Ferreira da Silva,“Toward a Black Feminist Poetics:The Question of Blackness towards
the End ofthe World",Black Scholar,v.^n. 2,verão,2014, pp.81-97; Hortense Spillers,
Black, White & In Color:Essays on American Literature and Culture(Chicago: University
of Chicago,2003):e Alexander Weheliye,Habeas Viscus:Racializing Assemblages,
Biopolitics and Black Feminist Theorles ofthe Human(Durham,Carolina do Norte:
Duke University Press,2014).
38. Mattie usou todas essas frases para descrever sua relação com Herman Hawkins.
39.Sobre a disposição de habitar e abraçar o desvio,ver Cathy Cohen,“Deviance as
Resistance”,Du Bois Review,v.1, n.1,2004, pp.27-45.
40. Frantz Fanon,“Grandeur and Weakness of Spontaneity” In: The Wretched ofthe
Earth,op.cit.[ed. bras.: Os condenados da terra,op.cit.]
41. Laurent Berlant,“Intimacy: A Special Issue”, Criticai ínquiry.Inverno,1998, p.285.
42.“A mãe ofereceu restituir o valor, mas o detetive solicitou que uma queixa fosse feita."
Autos de Bedford Mills #2466.
43.“Sua vida imoral representa ofato,o crime pelo qual ela é sentenciada à instituição,
aquilo que configura crime aos olhos da Lei." Katherine Davis,“Preventiva and Reformatory
Work:The Fresh Air Treatmentfor Moral DIsease”.In:Informal and Condensed Report of
the American Prison Congress.Albany, Nova York,1906, p.24-
44. Em dezembro,os abusos em Bedford iriam a público.Torturas e abusos vinham sendo
relatados desde 1913.Ver “Bedford Cruelty Charges Against Officials Upheld", New York
Tribune,19 mar.1920.
45.Ver Katherine Davis,“The Reformatory Plan”,Proceedings ofthe National Conference
ofCharities and Corrections, Boston,1916.As visitas supervisionadasforam discutidas no
Annual Reports ofthe State Commission on Prisons. Albany, Nova York,1915,1920,1921.
46.Sobre o propósito das cartas de prisão,ver Sora Han,“The Purloined Prisoner”,
Theoretical Criminology,v.16, n.2, maio 2012, pp.157"74*
47. C.L R.James,The Black Jacobins: Toussaint UOuverture and the San Domingo
Revolution [1938]. Nova York:Vintage,1989, p.88.

UM ATLAS DA REBELDIA[PP.99-137]

1. Esse retrato de W.E. B. Du Bois se deve ao trabalho de vários estudiosos.A biografia


magistral de David Levering Lewis em dois volumes,\N. E B. Du Bois:Biographyofa Race,
1868-1919(Nova York: Henry Holt,1993)e W.£ B. Du Bois:The FIght for Equallty and
the American Century,1919-1963(Nova York: Henry Holt,2000)forneceram elementos
valiosos para a minha contranarrativa.Tão importante quanto foi a literatura crítica
secundária sobre os estudos de Du Bois: Nahum Dimitri Chandier,X— The Problem of
the Negro as a Problem ofThought(Nova York: Fordham,2014); Robert Gooding-Willlams,
In the Shadow ofDu Bois:Afro Modern Política!Thought in America(Cambridge,
Massachusets: Harvard University Press,2009); Aldon Morris, The Scholar Denled: W,E. B.

377
Du Bois and the Birth ofModern Sociology(Oakiand: Universil^ of Califórnia Press,aois);
Lawrie Balfour, Democracy’s Reconstruction: Thinking Politlcally with W.E. B. Du Bois
(Nova York: Oxford University Press,20ii); HazeI Carby,Race Men (Cambridge, Massa-
chusets: Harvard University Press,1998); Farah Jasmine Griffin,“Black Feminists and Du
Bois: Respectability,Protection,and Beyond". In:“The Study of African American
Problems: W.E. B. Du Bois’s Agenda,Then and Now”,ed.especial, Annais ofthe American
Academy ofPoiiticai and Social Science 568(mar.2000, pp.28-40); Lewis Gordon,“Du
Bois’s Humanistic Philosophy ofthe Human Sciences”. In:“The Study of African American
Problems: W.E. B. Du Bois’s Agenda,Then and Now”,Annais ofthe American Academy of
Poiiticai and Sociai Science 568(mar.2000, pp.265-80); Lucius Outiaw,“W. E. B. Du Bois
on the Study of Social Problems”. In:“The Study of African American Problems: W.E. B.
Du Bols’s Agenda,Then and Now”,Ibid., pp.281-97; Cedric Robinson, Biack Marxism:The
Making ofthe Biack Radicai Tradition (Londres:Zed Books,1983); Kwame Anthony Appiah,
“The Uncompleted Argument: Du Bois and the lllusion of Race”, Criticai inquiry, v.12, n.1,
■'985» PP" 21-37; Robert Stepto, From Behind the l/e/7; A Study ofAfro-American Narrative
(Urbana: University of Illinois, 2001); Kwame Anthony Appiah, “lllusions of Race”. In: in
My Father’s House (Oxford: Oxford University Press, 1992); Id., W. E. B. Du Bois and the
Emergence ofidentity (Cambridge, Massachusets: Harvard University Press, 2014);
Anthony Bogues, Black Heretics, Biack Prophets (Nova York: Routiedge, 2003); Joy James,
Transcending the Taiented Tenth: Biack Leaders and American inteliectuals (Nova York:
Routiedge, 1996); Karen E. Fields e Barbara Fields, “Individuality snd the Inteliectuals: An
Imaginary Conversation Between Emile Durkhelm and W. E. B. Du Bois”. In: Racecraft: The
Soui ofinequaiity in American Life (Londres: Verso, 2012, pp. 225-60); Shatema Threadcraft,
intimate Justice: The Black Female Body and the Body Politic (Nova York: Oxford
University Press, 2016); Cornei West, The American Evasion of Philosophy (Madison:
University of Wisconsin Press, 1989); Shamoon Zamir, Dark Voices, W. E. B. Du Bois and
American Thought, 1888-1903 (Chicago: University of Chicago Press, 1995).
2. Patrick Chamoiseau, Texaco. Trad. de Rose-Myriam Réjouis e Vai Vinokurov. Nova York:
Pantheon, 1997.
3. A Igreja Metodista Africana Bethel foi estabelecida depois que oficiais da St. George,
a igreja metodista branca, negavam aos fiéis negros indesejados até mesmo o direito
, de orar.
4. W. E. B. Du Bois, TheAutobiographyofW. E B. Du Bois: A Soliloquyon Viewing MyLife
from the Last Decade ofits First Century. Nova Yorlc International Publlshers, 1968, p. 194.
5. Id., The Philadeiphia Negro: A Social Study op. cit., p. 241. Os patrocinadores do
estudo esperavam isolar e erradicar as ameaças que o distrito representava. Lideres
civis alertavam que os negros eram um “elemento Incorrigível da destruição social”
e que deveríam ser impedidos de “acumular rápido demais” ou contaminar o elemento
respeitável que vive “do lado de fora da porta do asilo”. Biographyofa Race, op. cit.,
p. 188. Ver também The Autobiography ofW. E. B. Du Bois, ibid., pp. 194-204.
6. Id., The Autobiography ofW. E 8. Du Bois, ibid., p. 195.
7. Du Bois criticava muito a fi lantropia. Ele descreveu o “desejo cego e sem objetivo
de fazer o bem”, que caracterizava vários dos esforços de caridade e a reforma social.
A “filantropia sem objetivo” acha mais fácil “trabalhar às cegas” do que uma “espera
inteligente”. W. E. B. Du Bois, “The Development of a People”, The Problem ofthe Color
Une at the Turn ofthe Twentieth Century: The Essential Early Essays, org. Nahum Dimitri
Chandier. Nova York: Fordham University Press, 2015, p. s»/|/|
8. Id., The Philadeiphia Negro, op. cit., p. 62.

378
g. W.E. B. Du Bois foi o primeiro a empregar o termo gueto para descrever o cerco
raciaiizado das pessoas negras. A coluna intitulada “The Ghetto"[O gueto]era uma
matéria regular da The Cnisis:A Record ofthe Darker Races e documentava os
aparatos legais e sociais da segregação racial, que se encontravam em expansão,e a
violência cotidiana da linha de cor. James Baldwin observou a impossibilidade de
respirar no gueto em linhas que anteciparam a descrição dos bairros dos nativos em
Os condenados da terra. Baldwin escreve que o gueto é permeado por uma sensação
de congestão,“o iatejar insistente,enlouquecedor e claustrofóbico na cabeça,que
ataca quando se tenta respirar em um cômodo muito pequeno com todas asJanelas
fechadas”.Zygmunt Bauman ecoa Baldwin e de maneira simiiar observa que o “gueto é
uma prisão sem muros [...] há uma troca populacional contínua entre a prisão e o gueto
e o espaço urbano transformado em cerco”. Ver Community:Seeking Safety in an
Insecure World. Cambridge: Pollty Press,200i, p.120. Ver também Loic Wacquant,
“From Slavery to Mass Incarceration: Rethinking the ‘Race’ Question in the US”, New
Left Review, v.i, -i Jan. 2002.
10.Philadelphia Inquirer,3 dez.1835 e 17Jun.1895,citado em Roger Lane,Roots of
Violence(Cambridge, Massachusets: Harvard University Press,1986, p.148); W.E. B.
Du Bois, The Philadelphia Negro,op.cit., p.313.
●ti. Kelly Miller, “Surplus Women”. In; Race AdJustment: Essays on the Negro in America.
Nova York, Neale Publishing, igo8, pp. 170-i; Charlotte Perkins Gllman, “The Duty of
Surplus Women”, New York /ndependent, Jan. 1905.
i2. W. E. B. Du Bois, Negro American Family, op. cit., p. 41.
i3. Id., The Quest ofthe Sllver Fleece. Chicago: A. C. McCIurg, igii.
i4. Id., “Sociology Hesitant”. In: Problem ofthe Color Une: Negro American Family,
op. cit., p. 42.
i5. Loic Wacquant, “What Is a Ghetto? Building a Soclological Concept”, Revista
de Socioiogia e Política, i nov. ^oo^^ p. Í55; Loic Wacquant, “From Slavery to Mass
Incarceration: Rethinking the ‘Race’ Question in the US”, New Left Review, v. 1, i Jan. 2002;
Erving GofPman, Asyium: Essays on the Sociai Situation ofMentai Patients and Other
Inmates (Chicago: Aldine, igSi); Kenneth Clark, The Dark Ghetto. Nova York: Harper & Row,
1965; Middietown: Wesleyan University Press, ig8g); Mitchell Dunier, The Ghetto: The
Invention ofA Place, the HIstoryofan Idea (Nova York: Farrar, Straus & GIroux, 2016);
Tommie Sheiby, Dark Ghettos: lr\justice, Dissent, andReform (Cambridge, Massachusets:
Belknap/Harvard University Press, 2016); E. Frankiln Frazier, The Negro Family In Chicago
(Chicago: University of Chicago Press, i932); St. Clair Drake e Horace R. Cayton, Black
Metropolis; A Study of Negro Life in a Northern City (Nova York: Harcourt, Brace, 194^.
i6. Sobre o processo pelo qual os imigrantes europeus se tornam brancos, ver W. E. B.
Du Bois, “The Souls of White Folk". In: Darkwater [igao] (Nova York: Washington Square
Press, 2004); NelI Irvin Painter, The Historyof White People (Nova York: Norton, 20ii);
David Roediger, Wages ofWhiteness: Race and the Making oftheAmerican Working
Class (Nova York: Verso, 1991); Noel Ignatiev, How the Irish Became White (Nova York:
Routiedge, 1995); Michael Rogin, Blackface, White Noise: Jewish Immigrants in the
Hollywood Melting Pot (Berkeley: University of Califórnia Press, 1998); Eric Lott, Love
and Theft: Blackface MInstrelsy and the American Working Class (Nova York: Oxford
University Press, iggg); Matthew Frye Jacobsen, Whiteness ofa Different Color
(Cambridge, Massachusets: Harvard University Press, ig39)í Thomas Lee Philpott,
The SIum and the Ghetto (Nova York: Oxford University Press, 1978); Douglas Massey
e Nancy Denton, American Apartheid: Segregation and the Making ofthe Underciass

379
(Cambridge, Massachusets: Hanvard Unlversity Press,1993);Toni Morríson,Playing
in the Dark: Whiteness and the Literary Imagination(Nova York: Vintage,1993).
i7. W.E. B. Du Bois,Souls ofBlack Folk,op.cit., pp.i8,25,34[ed. bras.: As Almas do Povo
Negro.Trad.de Alexandre Boíde. Veneta,2021].
●18. Id., The Phlladelphia Negro, op. cit., p. 81.
19. Ernest Hogan se apropriou da música “All Pimps Look Alike to Me” reescrevendo-a
como a famosa “All Coons Look Alike to Me”, que vendeu mais de 1 milhão de cópias e foi
a desgraça da existência negra na década de i8go. Hogan ganhou quase 30 mil dólares
de direitos autorais, mas em seu leito de morte expressou arrependimento por ter
composto a música.
20. Verso de Me’Shell Ndegéocello, “Deuteronomy: Niggerman”, Peace beyond Passion,
Maverick Records, 1996.
21. Kelly Miller, “Surplus Women”. In: Race Adjustment, op. cit., p. 171.
22. W. E. B. Du Bois, “Damnation of Women". In: Darkwater, op. cit., p. 115.
23. Id., “Of Our Spiritual Strivlngs”. In: Souls of Black Folk, op. cit., p. 9.
24. Na introdução a The Phlladelphia Negro, Du Bois escreve: “Ele deve sempre vacilar
com receio de que alguma inclinação pessoal, alguma convicção moral ou tendência
inconsciente de pensamento [...] tenha distorcido a imagem refietida em sua visão".
A Imoralidade sexual da comunidade negra com frequência fazia Du Bois “estremecer”
e “vacilar”. Para uma leitura sobre sua política sexual, ver HazeI Carby, “The Souls of
Black Men”. In: Race Men (Cambridge, Massachusets: Harvard UniversIty Press, 1998,
pp. 9-44); Melinda Chauteauvert, “Framing Sexual Citizenship: ReconsiderIng the
Discourse on African American Families”, Journal ofAfrican American History, v. 93, n. 2,
primavera, 2008, pp. ig8-222; Cathy Cohen, “Deviance as Resistance”, Du Bois Review, v. 1,
n.i , 2004, pp. 27-45; Farah Jasmine Griffin, “Black Feminist
and Du Bois: Respectability,
Protection and Beyond”, Annals of the American Academy ofPolltical and Social Science,
n. 568, mar. 2000, pp. 28-40; Roderick Ferguson, Aberrations in Black: Toward a Queer
of Color Critique (Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003).
25. W. E. B. Du Bois, The Souis of Black Folk, op. cit., p. 57 W. £ B. Du Bois: Biography ofa
Race (Nova York: Henry Holt, 1993). Ver HazeI Carby, “The Souls of Black Men”. In: Race
Men, ibid., pp. 9-44.
26. Herbert Aptheker observa que se Du Bois passava vinte minutos com cada família
(2.500 famílias), então as entrevistas para a pesquisa terlam somado 835 horas, ou cerca
de 104 dias. Ver introdução de W. £ B. Du Bois in Phlladelphia Negro. Em “My Evolving
Program for Negro Freedom”. in: What the Negro Wants, org. Rayford Logan [1944]
(Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2001), Du Bois diz que entrevistou 5 mil
pessoas. Em sua AutobiographyofW. £ B. Du Bois, ele alega ter entrevistado io mil.
27. Em sua Autobiography ofW. £ B. Du Bois, ele escreveu: “As pessoas de cor da Filadélfia
nao foram nada receptivas. Elas tinham uma aversão natural de serem estudadas como
uma espécie estranha” (p. 198). Ver também Levering Lewis, W. £ B. Du Bois: Biography
ofa Race. Nova York: Henry Holt, 1993, p. -igo.
28. Id., W. E. B. Du Bois, A Program for a Sociological Society 1897, Rolo 80, p. &i, W. £ B.
Du Bois Papers. Amherst: Universidade de Massachusetts.
29. Id., “My Evolving Program for Negro Freedom”. In: What the Negro Wants, op. cit.;
Autobiography ofW. E. B. Du Bois, op. cit.
30. Id., The Phlladelphia Negro, op. cit., p. 136.
3i. “lntroduction:The Context ofthe Phlladelphia Negro”, in: Michael Katz eThomas
Sugrue (Orgs.), W. £ B. Du Bois. Race and the City. Filadélfia: University of Pennsylvania

380
Press,igg8, p.io.Ver Isabel Eaton,“Special Report on Negro Domestic Service in the
Seventh Ward”,suplemento de Id., The Philadelphia Negro,op.cit., p.454.
32. W.E. B. Du Bois, The Philadelphia Negro,op.cit., p.-133,136;Tera Hunter,“The
‘Brotherly Love’for which This City Is Proverbial Should Extend to All:The Everyday Llves
of Working Class Women in Philadelphia and Atlanta in the i8go’s". In: W.E. B. Du Bois,
Race and the City,op.cit., pp.13-1-2.
33. Id.,“The Development of a People”. In: Problem ofthe Color Une,op.cit., pp.254-5;
“Family struggling to recover from debauchery of slavery”. In: ibid, p.257.
34- Entre 54,5 e 53,2 por cento das mulheres negras entre os vinte e gg anos se
declaravam viúvas. Id., The Philadelphia Negro,op.cit., p.70; Levering Lewis,The
Biography ofa Race,op.cit., p.205.
35. W.E. B. Du Bois, Negro American Family,op.cit., p.gg.
36. Id., The Philadelphia Negro,op.cit., pp.60,138.
37. Id.,“The Development ofa People”. In: Problem ofthe Color Une,op.cit., pp.246,355-
38. Id. Ibid., p.235.
gg.Id. Ibid., p.241. A criminaiidade na Filadélfia havia aumentado continuamente desde
1880. Para uma crítica sobre o engs^amento de Du Bois com o discurso da criminalidade
negra e sua reprodução,ver Kevin Gaines, Uplifting the Race:Black Leadership,Politics
and Culture in the Twentieth Century(Chapei HilI: University of North Carolina Press,
●1996); Khalil Muhammed, The Condemnation ofBlackness: Race, Crime and the Making
of Modern America (Cambridge, Massachusets: Harvard University Press, 2011); e Fred
Moten, “Upllft and Criminality”. In: Next to the Color Une: Gender, Sexualltyand Du Bois
(Minneapolis: University of Minnesota, 2007, pp. 317-43).
40. Monroe Work, “Crimes among Negrões of Chicago”, Journal ofAmerican Sociology,
V. 6, set. igoo, pp. 204-23; The Nation, 1 jul. 1837, pp. 6-7.
41. Du Bois aceitava o fato da criminalidade negra, influenciado pela ideia de que os
negros cometiam mais crimes e que as razões para tanto tinham de ser explicadas.
Ver Khalil Muhammed, The Condemnation ofBlackness, op. cit.; Kevin Gaines, Uplifting
the Race, op. cit.; e Fred Moten, “Uplift and Criminality”, op. cit.
42. W. E. B. Du Bois, The Philadelphia Negro, op. cit., pp. 254,351.
43. Id., Black Reconstruction: An Essay toward a History of the Part which Black Folk
Played in the Attempt to Reconstruct Democracy in America, t86o-i88o [1335]. Nova
York: Free Press, iggg, p. 67.
44. T. d. Woofter dr., ‘The Negro on Strike”, The Journal of Social Forces, v. 84,1323-1324,
pp. 84-8.
45- W. E. B. Du Bois, Black Reconstruction, op. cit., p. 383.
46. Isabel Wilkerson, The Warmth ofOther Suns: The Epic Story ofAmerica’s Great
Migration. Nova York: Random House, 2010.
47. Sobre o linchamento de Sam Hose, ver “Science and Empire”. in: Dusk ofDawn. Nova
York: Oxford University Press, 2014. Ver também Ida B. Wells, Southern Horrors, A Red
Record e Mob Violence in New Orleans. In: dacqueline Royster (Org.), Southern Horrors,
op. cit.
48. Du Bois descreve a greve geral como um “grande experimento humano”. Ver Black
Reconstruction, op. cit., p. 383. Em The Philadelphia Negro, Du Bois produz uma pesquisa
cqjo intuito é modificar as relações raciais ao abordar a ignorância dos brancos. O
majestoso Black Reconstruction tenta fazer muito mais que isso, se empenhando em

381
transformar radicalmente nosso entendimento da democracia ao abordar o estado das
pessoas escravizadas e se referir à greve e à fuga dos escravizados como a reconstrução
da democracia estadunidense. Para tanto,Du Bois precisou se colocar em primeiro plano
e imaginar visões,aspirações e práticas que nunca foram arquivadas.
49- “Of Beauty and Death". In: Darkwater,op.cit., p.184.
50.Id., The Phlladelphia Negro,op.cit., pp.3g7-g.
51. Amiri Baraka,In Oun Terribleness. Nova York: Bobbs, MerilI,1970.Sobre o emprego de
gráficos visuais por Du Bois,ver Alexander Weheliye,“Diagrammatics as Physiognomy”,
CR:The New Centennial Review,v.15, n. a,2015, pp.23-58.
52.W.E. B. Du Bois, The Phlladelphia Negro,op.cit., pp.163,319,388.
53.Ver Frederick L Hoffman,Race Traits and Tendencies ofthe American Negro, uma
publicação da American Economic Assoclation ii, n.1-3,1896, pp.1-329. HofFman era
um atuário de seguros cujos argumentos eram que os negros enquanto raça estavam
morrendo e seriam extintos.Sua previsão foi baseada em uma análise estatística das
taxas de mortalidade na cidade.
54.W.E. B. Du Bois, The Phlladelphia Negro,op.cit.193.
55.Id. Ibid., pp.259-67.
56.dean Toomer,“Karintha”. In: Cane [1923]. Nova York: W.W. Norton,2011, pp.1-2.
57- W.E. B. Du Bois,“Ofthe Meaning of Progress”. In: The Souls ofBlack Folks,op.cit., p.52.
58. Quando descreve as classes das pessoas negras,Du Bois caracteriza as pobres e
decentes como pessoas sem nenhum traço de imoralidade. Ele descreve o sr. Dowell
como um homem “calmo e Ignorante,sem nenhum traço de vulgaridade”. Ver The Souls
ofBlack Folk,op.cit., p.53.
59. Id., Darkwater,op.cit., p.102.
60.A primeira vez que Du Bois escreveu sobre Josle foi em um ensaio pessoal,“A Negro
Schoolmaster In the New South”.In: The Atlantic /Wonth/y,jan.1899.v.83. n.495.PP- 99-«05-
Josie voltaria a figurar em The Souls ofBlack Folk,Dusk ofDawn e Autoblography of
W.E. B. DuBois. David Levering Lewis descreve a experiência de Du Bois no lar dos Dowell
como um “divisor de águas sexual” em Biographyofa Race, W.E. B. Du Bois,op. cit., p.71.
.61. W.E. B. Du Bois,Autoblography ofW.£ B. Du Bois,op. cit., p. 280.
62. Id.,“The Talented Tenth”. In: Problem ofthe Color Une,op.cit., p.212.0 compromisso
de Du Bois com a ideia de liderança da raça pela elite persistiu por décadas.Ainda em
1944 ele escreve sobre uma “liderança previdente” e sobre as elites,“aqueles indivíduos e
classes entre os negros cujo progresso social é ao mesmo tempo a prova e a medida das
capacidades da raça”. Ver"My Evolving Program for Negro Freedom”[1944], Clinicai
Soclology Review,v.8,n.1,1990, pp.51,55,
63. \d., Autoblography OfW. E. B. Du Bois,op.cit., p.280.Em “The Development of a People”,
Du Bois também se utiliza do termo “estremecer” para descrever a libertinagem e as
crianças sem sobrenome em lares negros:“Há aqui um problema com relação ao lar
e à família. É quase inevitável estremecer diante dele”. Ver Id., The Problem ofthe Color
Une,op.cit., p.249.
64.Ver Adolf Loos,“Crime and Ornament”. In: The Architecture ofAdoIfLoosiAn
Arts Council Exhibition. Londres: London Arts Council,1985, p.101.“A conquista do
progresso é assim equiparada à supressão e ao apagamento do excesso material erótico,
considerado domínio exclusivo dos primitivos sexuais e selvagens”,tais como “negros,
árabes e camponeses”. Para uma relação brilhante entre Loos, raça e modernismo,ver

382
Anne Cheng,Second Skln:Josephine Baker and Modenn Surface. Nova York: Oxford
Uníversity Press,2013, pp.24-5,72-8.
65.Zora Neale Hurston,The Sanctifíed Church.Berkeley,Califórnia:Turtie Island,ig8i, p.50.
66.Alexander Crummell,“Common Sense in Common Schooling” In: CMlization and Black
Pnogress. Charlottesville: University of Virginia Press,1395, p.140.
67.Zora Neale Hurston,“Characteristics of Negro Expression”. In: The Sanctifíed Church,
op.cit., p.,52.
68.dane Addams,The Spirit ofYouth and City Streets. Nova York: MacMillan,igog, pp.8-9.
69.Id.lbid., p.2.
70. W.E. B. Du Bois, The Philadelphia Negro,op.cit., p.162.
71. Id., AutobiographyofW. E. B. Du Bois,op.cit., p. 281.
72. Id. Ibid.
73- Id. Ibid.

UMA CRÔNICA DE NECESSIDADE E DESEJO[PP.139-69]

●1. Ver Diary ofHelen Parrish, Re9istros da Octavia Hiii Association (Filadélfia, Pensilvânia),
SCRC 29, URB 46, Caixa 1, Speciai Coliections Research Center, Temple University
Libraries. Helen Parrish escreveu que Fanny Fisher xingava e fazia uso de uma linguagem
obscena. No entanto, Parrish não registrou as obscenidades em seu diário. O diálogo é
recriado com base no relato detalhado de Helen sobre a interação delas. Muitas vezes
Helen parafraseava suas conversas com os inquilinos. Quando uma linguagem chula era
utilizada, Helen observava que o inquilino havia fóiado com eia de uma forma ofensiva e
repugnante, ou que a havia xingado ou praguejado com ela. Eu transformei esse discurso
indireto em discurso direto. Minha abordagem especulativa e imaginativa é baseada em
pesquisas de arquivos e em uma atenção rigorosa às fontes.
2. Diary ofHeien Parrish, 1 de Juiho e 8 de julho, 1888, ibid.
3. Sobre endividamento, ver Saidiya Hartman, Scenes ofSubJection: Terror, Slavery. and
Self-Making in Nineteenth CenturyAmerica (Nova York: Oxford University Press, 1997);
e Denise Ferreira da Silva, “Accumulation, Dispossession, and Debt: The Racial Logic of
Global Capitalism — An Introduction", American Quarterly, v. 64, n. 3, set. 2012, p. 361.
4. John Sutherland, “Reform and Uplift among Philadelphia Negrões: The Diary ofHelen
Parrish, 1888”, Pennsyivania Magazine ofHistoryand Biography, v. 94, n. 4, out. -1970, p. 499;
Allen F. Davis e Mark Halier, The Peoples ofPhiiadeiphiaiA HistoryofEthnic Groups and
Lower Class Life -t7go-ig40 (Fiiadélfia: University of Pennsyivania Press, 1998).
5. Fourth Annual Report ofthe College Settlement Association, de ^ set. 1892 a 1 set. 1893.
Filadéifia: College Settlement Association, pp. 22-3.
6. Hannah Fox, Draft ofan Address Talked, not Read before the C/v/c Federation,
Washington, d.c., 1913, p. 2 (não publicado, Octavia HilI Association Collection, Urban
HistoryArchives, Temple University, Filadélfia).
7. As duas pretendiam transformar a condição dos pobres por meio da melhoria de
suas moradias e de seu ambiente físico, bem como pelo fornecimento de um modeio de
conduta moral ao qual os menos afortunados deveriam ambicionar. Os pobres não eram
imorais ou criminosos por natureza, mas por sua condição. O plano de Fox e de Parrish,
apoiado por uma riqueza que vinha de família, era baseado no trabalho da refórmadora
habitacional inglesa Octavia HilI junto às pessoas pobres em Londres. HilI acreditava na

383
mutualídade de interesses entre os ricos e a classe trabalhadora e defendia uma política
de reforma do gueto que unia princípios da filantropia ao investimento capitalista.
Em suma,as classes mais altas deveriam melhorar as condições de moradia dos pobres
e inculcar nos realmente desfavorecidos os valores de parcimônia,temperança,
responsabilidade e domesticidade dos quais careciam gravemente. Pelo cumprimento
de seus deveres sociais,os senhorios conscientes receberíam um pequeno lucro de
cinco por cento sobre seu investimento inicial. O experimento presumia que interesses
e afeições mútuas poderiam diminuir a distância entre os proprietários e aqueles sem
propriedade e aliviar o antagonismo de classe.
8. Herbert Aptheker,“Introdução”, The Philadelphia Negro,op.cit., pp.8,-lo.
g.Jane Addams,“Subjective Need for Social Settlements”[i8ga]. In: Twenty Years at HuU
House. Nova York: Macmillan,igio, pp.g4-ioo.
io.As últimas quatro linhas foram reproduzidas literalmente do diário de Helen Parrish,
mas reformuladas na terceira pessoa.
-11. Diary ofHelen Parrish,op.cit., ag de agosto.
12. W.E.8. Du Bois, The Philadelphia Negro, p.171.
13. Na entrada do diário de Helen Parrish consta:“Quando eu estava no n.3, Katy Clayton
entrou e,sem ser provocada,começou a me insultar por eu ter escrito mentiras ao pai
dela. Eu a acalmei e fui fazer minhas rondas [...]. Desci para encontrar Gallen. Ele disse
que, no sábado à noite, Katy,três Gallaghers e outras pessoas se reuniam nos degraus da
frente. Quando Gallen voltou,ele viu dois Gallaghers saindo, mas não Jim.Os degraus
estavam vazios. Ele enfiou a chave na porta,ouviu um alvoroço no pátio e viu que Jim
estava lá. Gallen mandou Jim sair dali e o fez ir embora.Jim saiu. Havia outros dois no
pátio. Gallen diz que os policiais estão de olho em Katy,que se for surpreendida no
ato,ela vai ser presa. Diz que ele Já acreditou nela, mas que está convencido de que há
algo errado eu disse a ele que ia consultar o tenente e aproveitaria para ftlar sobre
Mary Brown”.
14. Helen escreveu a maioria das entradas, mas outro coletor que a substituía em sua
ausência fez várias também.Talvez não surpreenda o quão pouco a perspectiva ou a voz
muda nessas entradas.
15. Paul Laurence Dunbar,Sport ofthe Gods,op.cit.
‘ 16. Stephen Grane, Maggie and Other Tales ofthe Bowery. Nova York: Modern LIbrary,
2001.

17. James Baldwin,Sonny's Blues Going to Meet the Man bg^Sl Nova York: Vintage Books,
'I995. P- i29-
18.“Shot In the Neck:The Mysterlous Affray That Startied LIsbon Street",Philadelphia
Inquirer,4 out.1888.

EM UM MOMENTO DE TERNURA O FUTURO PARECE POSSÍVEL


[PP.i7-i-a]

1. A mãe,Sarah Jane,faz essa pergunta no que diz respeito à filha Isabelle e ao noivo dela,
Sylvester. Corpo e alma (igag)foi dirigido por Oscar Micheaux.
Essa leitura de Corpo e alma é devida a Charles Musser,que observa o caráter
indefinido e inconclusivo da trama em camadas do filme. Aproveito-me do caráter
fragmentado do filme para produzir essa contranarrativa. O “real” é abreviado e difícil

384
de distinguir da longa sequência de sonho ou pesadelo.“To Redream the Dreams of
White Playwrights: Reappropriation and Resistance in Oscar Micheaux*s Body and Soul”
In: PearI Bowser,Jane Gaines e Charles Musser(Orgs.), Oscar Micheaux& His Circie.
Bloomington: Indiana University Press,aooi;Ver também HazeI Carby,Race Men:The
Body and Soul ofRace, Nation and Manhood,op.cit.; PearI Bowser, Writing Himselfinto
History: Oscar Micheaux, HIs Silent Films and His Audiences(New Brunswick: Rutgers
University Press,2000);e Jane Gaines,Fire and Desire: Mixed Blood Relations in Silent
Cinema(Chicago: University of Chicago Press,2000).
2. Christina Sharpe descreve o clima como a abrangente atmosfera da antinegritude.
Aqui,vale pensar sobre a precariedade da vida negra e do amor posto em perigo no
contexto da antinegritude,da vioiência racista e da precariedade econômica.Ver “The
Weather”. In: In the Wake:On Blackness and Being. Durham,Carolina do Norte: Duke
University Press,2016, pp.102-34,

●1900. O TENDERLOIN. 44^ STREET WEST, 24^ [PP- ^75-8s]

1. Hortense Spiliers, “Interstices: A Small Drama of Words”. In: Black, White and In Color:
Essays on American Literature and Culture. Chicago: University of Chicago Press, 2003,
p. 153. Spiiiers escreve: “As mulheres negras são as baleias encalhadas do universo sexual,
silenciadas, mal-vistas, imobilizadas, à espera de seu verbo”.
2. Henry Louis Gates, “The Trope of the New Negro and the Image of the Black”,
Representatlons, v. 24, outono, 1388, pp. 123-55; Henry Louis Gates e Gene Jarrett,
Readings on Race, Representatlon and African American Culture (Princeton, Nova Jersey:
Princeton University Press, 2007); Booker T. Washington (Org.), A New Negro for a New
Century (Chicago: American Publishing House, igoo); Alain Locke (Org.), The New Negro:
Voice of the Harlem Renaissance [192^- Nova York: Touchstone, 1936.
3. “Race Riot In New York City: Ten Thousand White People Spread Terror in the
Tenderloin District”, New York Age, 23 ago. igoo. Essa descrição de Thorpe foi fornecida
pelo irmão dele. Ver “Foresaw Brothers End”, New York World, Nova York, edição
vespertina, 16 ago. igoo.
4.0 amigo dele, George, disse para May ir embora daii e ela foi correndo para casa. Um
homem branco que fumava na viela perto do teatro viu uma mulher negra de pele clara
com um olho roxo correr pela rua. Foi ele quem disse à poiícia onde poderiam encontrar
May. Essa versão é conflitante com a versão de Arthur Harris. Ver Transcrição do
julgamento. Caso #32015,0 povo v. Arthur Harris, Condado de Nova York, Caixa 608,
Documentos de Acusação da Promotoria Pública, Condado de Nova York, Tribunal de
Sessões Gerais, Arquivos Municipais da Cidade de Nova York.
5, Hortense Spiliers, “Interstices: A Small Drama of Words”. In: Black, White and In Color,
op. cit. Ver também “A Woman’s Lot: Black Women Are Sex Objects for White Men". In:
Id. Black Women In White America: A Documentary History. Nova Yorlc Vintage, 1992.
6. New York Tribune, 17 ago. 1900; The Sun, Nova York, 16 ago. 1900.
7. Bryan Wagner alega que o blues surge no confronto com a força policial. Para sustentar
essa afirmação, ele discute uma história originária recontada pelo músico Jeily Roil Morton
sobre o herói rebelde Robert Charles e uma canção popular sobre ele que nunca foi
gravada. “The Black Tradition from Ida B. Wells to Robert Charles”. In: Disturbing the
Peace: Black Culture and Poiice Power after Slavery (Cambridge, Massachusets: Harvard
University Press, 2009). Sobre a representação pública do personagem de May Enoch, ver

385
Judith \Ne\senfe\d,Afhican American Women and Christian Activism (Cambrídge: Harvard
Univepsity Press,1998)e Cheryl Hicks, Talkwith You Like a Woman,op.cit., pp.53-90.
8.Transcrição dojulgamento.Caso #32015,People v. Arthur Harris, Condado de Nova
York,Caixa 608,Documentos de Acusação da Promotoria Pública,Condado de Nova York,
Tribunal de Sessões Gerais,Arquivos Municipais da Cidade de Nova York.
9.Transcrição doJulgamento.Caso #32015,People v. Arthur Harris, Condado de Nova
York,Caixa 608,Documentos de Acusação da Promotoria Pública,Condado de Nova York,
Tribunal de Sessões Gerais,Arquivos Municipais da Cidade de Nova York.
10. New York Herald,6 ago.1900;17 ago.1900.
11. Lucius Shepherd,“Miles Davis”, The Nation,ajul. 2003.
12.“Assim ele vivia e teria morrido se não tivesse levantado a mão para demonstrar
indignação diante da agressão gratuita e da prisão ilegal naquela fatídica segunda-feira.
Isso fez dele um fora da lei, e sendo um homem de coragem,ele decidiu morrer cara a
cara com o inimigo.” Linhas de Ida B. Wells, Mob Ruie in New Orleans[1900]. In: Jacqueline
Royster(Org.),Southern Horrors and Other Writings,op.cit., p.202.
13.The Citizens’ Protective League,Storyofthe Riot,op.cit., p.31.
14. Id. Ibid. p.34.
15.Irene era viúva, doméstica, passadeira e trabalhadora. Era uma mulher totalmente
respeitável. Id. Ibid., p.39.
16. Id. Ibid.
17. Id. Ibid., p.41-2.
18. Id. Ibid., p.49.
19. Id. Ibid.
20.Id. Ibid., p.53.
21. Id. Ibid.

22. NettieThreewitts relatou:“Fiquei detida na delegacia só de camisola por duas horas


quando uma mulher que mora na 41»'’ Street me deu uma anágua,que eu vesti". Id. Ibid.,
p.60.
23.Id. Ibid., p.48.
24. LeAndrIa Johnson,“Jesus”, TheAwakening ofLeAndria Johnson, Music World
Gospel,2012.

25. Citizens’ Protective League, The Storyofthe Riot,op. cit., pp.64-5.


26. Reverend Cuyler,“Colored Pastor’s Demand”,New York Times,20 ago.1900.
27. Em 1910,as pessoas negras somavam 1,9 por cento da população da cidade. Ver
Gilbert Osofsky,Hariem,op.cit.; e Id.,“Race Riot,1900: A Study of Ethnic Violence”,
Journal ofNegro Education,v.32, n.1,inverno,1963, pp.16-24. Ver também Marcy Sacks,
Befiore Hariem:The Black Experience in New York City Befbre World War /. Filadélfia:
University of Pennsylvania Press,2006, pp.72-106.
28.Ver Kevin McGruder sobre a Associação Protetora de Proprietários do Hariem,“From
Eviction to Containment”.In: Race and Real Estate: Confilct and Cooperation in Hariem,
iBgo-igso. Nova York:Columbia University Press,2017, pp.62-97; David Levering Lewis,
When Hariem Was In Vogue(Nova York: Penguin,1997, p.25);e Lewis Thorin Tritter,“The
Growth and Decline of Harlem’s Houslng” Afro-Americans In New York Life and History,
V. 22, n.1,31jan.1998;“$20000to Keep Negrões Out”,New York Times,8 dez.1910.
29. Como escreve Matthew Frye Jacobsen:“Não se trata apenas do fato de que o
sucesso de vários grupos de imigrantes brancos tenha se dado à custa dos não brancos.

386
mas que eles devam sua própria branquitude agora estável e amplamente reconhecida
a esses grupos”. Whiteness ofa DifFérent Color,op.cit., pp.7-8. A Lei de Imigração
Johnson-Reed de 1924 solidificou essa noção de branquitude.
30.0 Tenderloin era o distrito perigoso da cidade.Sua área se estendia entre as 20*^ e
53"* Streets,a oeste da Sixth Avenue e indo até a orla. Ver Kenneth Jackson (Org.), The
Encyclopedia ofNew York. New Haven,Connecticut:Yale University Press,2010, p.1289.
31. New York Times,“Paul L Dunbar Drugged”,20 ago.1900.
32. Paul Laurence Dunbar,“To the South on Its New Slavery”.In: The Complete Poems
ofPaul Laurence Dunbar. Nova York; Meade & Dunbar,1913, p.82.

1909. STREET WEST,601.UMA NOVA COLÔNIA PARA PESSOAS


DE COR,OU MALINDY NA PEQUENA ÁFRICA[PP.191-205]

Mary White Ovington,Halfa Man:The Status ofthe Negro In New York. Nova York:
Longmans,Green,and Co.,1911. Ver também Carolyn WedIin,Inheritors ofthe Spirit:
Mary White Ovington and the Founding ofthe naacp. Nova York,John Wiley,1998, p.93.
2. Id. Ibid., p.149.
3.“Vacation Days in San duan HilI”, Southern Workman,v.38, nov.1909, p.628.
4.“An Admonition", New York Times,29 abr.1908; Carolyn WedIin,Inheritors ofthe Spirit,
op.cit., pp.96-8.
5.“Dinner Minus Color Une: White Men of Club DIne with Negro Women and Decry
Caste”, New York Times,28 abr.-1908;“An Admonition”, New York Times,29 abr.1908;“Race
Equality Feast”, l/!/ash/ngüon Post,29 abr.1908;“Inter-Raclal Dinners to be Given Monthly”,
St. Louis Post-Dispatch,20 abr.1908; The Savannah News,29 abr.1908,descreveram
Ovington como a “suma-sacerdotisa [...] cqjo pai é rico e que se encontra cinco dias por
semana com um negro e aos domingosjanta na companhia deles em sua casa no Brookiyn.
Balançando a bandeja de pão,ela podería reunir até mil negros no bacanal. Mas o horror
de tudo isso é que ela pode levarjovens para dentro daqueie covil”. Citado em Carolyn
WedIin,ibid., p. g8.
6. Mary White Ovington,“Living on San Juan HilI". In: Ralph Luker (Org.), Black and
l/l/h/te Sat Down Together:The Reminiscences ofan naacp Founder. Nova York: Feminist
Press,igg6.
7. Id., Halfa Man,op.cit., p.32.
8.“Vacation Days in San Juan Hiil”, op.cit., p.627.
9. Mary White Ovington,“Living on San Juan HilI”, op.cit., p. 26.
10.Id., Halfa Man,op.cit., p.39.
11. Id. Ibid.
12. New York Times,-14 ago.-1905.
ig.Thomas Lee Phiipott,SIum and the Ghetto,op.cit. John R. Logan,Weiwei Zhang e Miao
Chunyu,“Emergent Ghettos: Black Nelghborhoods in New York and Chicago,i88o-í94o”,
American Journal ofSociology,v.120,n.4,jan.2015, pp.Í055-94. Ver Massey e Nancy
Denton,American Apartheid. Cambridge, Massachusets: Harvard University Press,1993.
i4. EIlie Alma Wallis,“The Delinquent Negro GirI in New York, Her Need of Institutional
Care”(dissertação de mestrado,Coiumbia University,1912).

387
●15- Ver Ryan Lane, Bedford Mills, Pasta #2778. Ela cresceu do outro lado da rua do cortiço
modelo de Ovington.
16. Comitê dos Catorze, pesquisa de Rockefeller sobre prostituição. Grande Júri
da Escravidão Branca, Relatório de Investigação, Série v. Caixa 28, igio. Arquivos do
Comitê dos Catorze, Seção de Arquivos e Manuscritos, Biblioteca Pública de Nova York.
-17. Carolyn Wediin, Inheritors ofthe Spirit, op. cit., p. 117; Ralph Luker (Org.), Black and
White Sat Down Together, op. cit., p. 61.
18. Ver Doris Garroway, The Libertina Colony (Durham, Carolina do Norte: Duke
University Press, 200^; Ann Stoler, Carnal Knowledge and Imperial Power, op. cit.; Achille
Mbembe, On the Postcolony (Durham, Carolina do Norte: Duke University Press, 2001); e
dared Sexton, Amalgamation Schemes: Antiblackness and the Critique ofMultiraclalism
(Mineápolis: University of Minnesota Press, 2008). Todos analisam a fantasia sexual
e a economia libidinal do colonialismo e os investimentos eróticos que figuram na
manutenção da diferença racial, do poder colonial e da antinegritude.
19. Kevin Mumford descreve a interzona como uma área de trocas culturais, sexuais
e sociais. Interzonas são distritos interraciais, espaços sociais estigmatizados e
caracterizados pelo vício e pela prostituição. Ver Kevin Mumford, Interzones, op. cit.,
p. 23. Ver Hortense Spiller, “Interstices”. In: Black, White and In Color, op. cit., pp. 156-7.
20. “Vacation Days in San Juan Hlll”, op. cit., p. 628.
21 . Ethel Waters, His Eye Is On the Sparrow (Nova York:
Da Capo Press, 1992, p. 130); Nat
Hentoff e Nat Shapiro, Hear Me Talking to Ya (Nova York: Dover Books, 1996, pp. 224-5).
Ver também Shane Vogei, The Scene ofHarlem Cabaret. Chicago: University
of Chicago, 2009, pp, 87-90.
22. Eliie Wallls, “Delinquent Giris In Nova York” (dissertação de mestrado), Nova York:
Columbia University, 1920, p. 31).
23. “Vacation Days In San Juan HilI”, op. cit., p. 633.
24. Ibid., p. 630.
25. Hortense Splllers, “Interstices”. In: Black, White and In Color, op. cit., pp. 156-7.
26. Mary White Ovington, Halfa Man, op. cit., p. 164.
27. Ver Tera Hunter, Bound In Wedloch Slave and Free Black Marriage in the Nineteenth
Century. Cambridge, Massachusets: Harvard University Press, 2017, pp. 9-10.
28. Hortense Splllers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe” e “Notes on Brooks and the Feminine”.
In: Black, White and In Color, op. cit., pp. 149,207-24.
29. Segundo Ovington, a recusa das mulheres negras ao trabalho era ainda mais
ameaçadora, pois facilmente dava lugar à promiscuidade sexual e à prostituição. Ver
“The Colored Women in Domestic Service", Bulletin ofthe Inter-Municipal Committee on
Household Research, v. 1, n. 7, maio 1905, p. 11.
30. Mary White Ovington, Halfa Man, op. cit., p. 148.
31. Ver David Levering Lewis, W. E. B. Du Bois: Biographyofa Race, op. cit.
32. Sobre o caso, ver Carolyn Wediin, Inheritors ofthe Spirlt, op. cit., pp. 68-70; e Linda
Lumsden, Inez: The Life and Times ofinez MIlholIand. Bloomington: Indiana University
Press, 2016, p. 25.
33. Mary White Ovington, Halfa Man, op. cit., p. 153.
3/p Id. Ibid., p. 168.
35. Id. Ibid., p. 162.
36. Id. Ibid., p. 166.

388
37- Ver Deborah Gray White, Too Heavy a Load:Black Women in Defense ofThemselves,
■#894-1994. Nova York: W. W. Norton, iggg.
38. Mary White Ovington, Halfa Man, op. cit., p. 168.
3g. “Vacation Days ín San Juan Htll”, op. cit., p. 632.
40. Id. Ibid.
41. Mary White Ovington, Halfa Man, op. cit., p. 157.
“Vacation Days in San Juan HilI”, op. cit., p. 632.

MISTAH BEAUTY, A AUTOBIOGRAFIA DE UMA MULHER EX-DE COR.


CENAS SELECIONADAS DE UM FILME NUNCA LANÇADO DE OSCAR
MICHEAUX, HARLEM, ANOS 1920 [PP. 207-15]

i. Essa esquete é baseada no ensaio autobiográfico de Bentiey, “I Am a Woman Again”,


Ebony Magazine, ago. igs2.
2. Nesta seção, uso o pronome mascuiino para me referir a Bentiey em respeito a
sua identificação mascuiina. Eie não se sentia como uma mulher nem se via como uma
mulher durante aquelas décadas. Em “I Am a Woman Again" [Voltei a ser uma mulher],
ele descreve a terapia hormonal da qual precisou se valer para se transformar em uma
mulher. Para mim, isso deixa claro que ele havia abandonado as categorias “mulher”
e “feminino” décadas antes, e justifica o uso de “ele".
3. Essa lista de características queers foi tirada de George Henry, Sex Vanlants:A Study
ofHomosexual Patterns, 2 vol. Nova York: Hoeber, ig4‘^*
4. Oscar Micheaux com frequência usava “fatos” ou filmagens documentais em seus
filmes. O emprego da realidade lhe permitia arquivar diferentes práticas culturais e
assembléias sociais.
5. Ver Wilson Harris, “The Limbo Dance". In: Andrew# Bundy (Org.), Selected Essays of
Wilson Harris. Nova York: Routiedge, -iggg, pp-156-8; e Sterling Stuckey sobre o ring
shout, “Introduction: Slavery and the Circie of Culture”. In: Slave Culture. Nova York:
Oxford University Press, ig87.
6. Rebecca Soinit, River ofShadows (Nova York: Penguln, 2004); Charles Musser, The
Emergence of Cinema: The American Screen to 1907 (Berkeley. University of Califórnia
Press, 1994); Marta Braun, Muybridge (Londres: Reaktlon Books, 2010).
7. Tina Campt, artigo não publicado, “Black Flow”, apresentado na Yale University, fev. 2018.
8. Ver Jacqueline Nqjuma Stewart, MIgratIng to the Movies (Berkeley: University of
Califórnia Press, 2005, p. 94), sobre as formas pelas quais o cinema negro, incluindo os
filmes de Micheaux, tornou possível uma “audiência reconstrutiva, uma formulação que
explica as formas pelas quais os espectadores negros tentam reconstituir e se afirmar
com relação às operações racistas e sociais do cinema”. Leigh Raiford amplia essa linha de
raciocínio em sua leitura das fotografias de linchamentos em Imprisloned in a Luminous
Glare: Photography and the Airican American Freedom Struggle (Chapei HilI: University
of North Carolina Press, 2013).
9. “Dói tanto que temos de celebrar.” Fred Moten, Black and Blur (Durham, Carolina
do Norte: Duke University Press, 2017, p. xii); AmirI Baraka, In Our Terribleness, op. cit.
10. Wilbur Young, wpa, Negrões of New York, Sketches of ColorfuI Harlem Characters,
“Gladys Bentiey”, 29 set. 1938, Schomburg Collection, Biblioteca Pública de Nova York.

389
11. Langston Hughes,The Big Sea(Nova York: HilI and Wang,iggg); Anne Aniin Cheng,
Second Skin:Josephine Baker and Modenn Suiiace(Nova York: Oxford University
Press,2013); dack Halberstam,Trans*:A Quick and Quirky History ofGenden Variance
(Berkeley: University of Califórnia Press,2018); Lucas Crawford,“Breaklng Ground on
a Theory ofTransgender Architecture”,Seattie Journalfor Social Justice, v.8, n. 2,
(primavera/verão,2010); Robert Farris Thompson,African Art in Motion (Berkeley:
University of Califórnia Press,1973).
12. Enredo de vários fílmes de Micheaux: Nos limites dos portões,Scar ofShame
[A marca da vergonha].Dez minutos de vida e Swing.
13. Lucille Bogan,“B. D. Blues”:
B. D. Women,they all done learnt their plan
B. D. Women,they ail done learnt their plan
They can lay theirjivejust llke a natural man
Citado de ’Em Dry:The Best ofLucille Bogan (Sony,2004). Sobre a política radical
das mulheres do blues,ver também Angela Davis, Blues Legacles ofBlack Feminism (Nova
York: Vintage,iggg); HazeI Carby,“It Just Be’s that Way Some Time:The Sexual Polltics of
Women s Blues”. In: Robert 0’Meally(Org.), The Jazz Cadence ofAmerican Culture(Nova
York: Columbia University Press,1996); Anne Ducille,“Blue Notes on Black Sexuality:Sex
and the Texts of Jessie Fauset and Nella Larsen”,Journal ofthe History ofSexuality,v.3,
n.3,jan.1993,PP- 418-44; Farah Jasmine Griflfin, IfYou Carít Be Free, Be A Mystery:In
Search ofBillie Hollday(Nova York: One World,2002); Erin Chapman,Prove It on Me:New
Negrões,Sex and Popular Culture in the -tgso’s(Nova York: Oxford University Press,2012).
14.“A Intimidade,como a história do Harlem afirma,é um tipo de transgressão:os efeitos
da Intimidade no cabaré tornam conscientes as fronteiras entre o eu e o outro, bem
como as condições de sua travessia.” Ver Shane Vogei, The Scene ofHarlem Cabaret:
Race,Sexuality,Performance.Chicago: University of Chicago Press,2009, pp.41-2.
15.Termo emprestado de Michelle Mitchell para descrever os arranjos conjugais
considerados essenciais para a propagação da raça. Ver Righteous Propagation:African
Americans and Destiny after Reconstruction(Chapei HilI: University of North Carolina
Press,2004). Ver também Kevln Gaines, Uplifting the Race,op.cit. e Evelyn HIggInbotham,
Righteous Discontent:The Women’s Movement In the Black Church.Cambridge,
Massachusets: Harvard University Press,1934.
16.V^r Alfred Duckett,“The Third Sex”, Chicago Defender,2 mar.1957. Duckett faz
referência às esposas de Bentiey. Um casamento em uma cerimônia civil em Nova Jersey
era de conhecimento público, mas eu não consegui encontrar nenhuma confirmação
disso na imprensa.
17. Gladys Bentiey,“I Am a Woman Again”,Ebony Magazine,v.7, n.10,ago.1952, pp.92-8.
Ver Eric Garber,“Gladys Bentley:The Bulldagger Who Sang the Blues”, Out/Look,v.1,
n.1, primavera,1988, pp.52-61. Ver também “Spectacle in Color:The Lesbian and Gay
Subculture of Jazz Age Harlem”. In: Martin Duberman et al.(Orgs.), Hidden from History:
Reclaiming the Gay and Lesbian Past(Nova York: Meridien,1990); David Serlin,“Gladys
Bentiey and the Cadillac of Hormones”. In: Replaceable You:Engineering the Body in
PostwarAmerica (Chicago: University of Chicago Press,2004, pp.111-58); Carmen
Mitchell,“Creatlons of Fantasles/Constructions of Identities:The Oppositlonal Lives
of Gladys Bentiey.In: Delroy Constantine-Simms(Org.), The Greatest Taboo:
Homosexualityin Black Communities(Los Angeles: Alyson Books,2000, pp.211-25);e
James F. Wilson,Bulldaggers,Pansies and Chocolate Babies(Ann Arbor: University of
MIchigan Press,2011).Sobre masculinidade feminina,ver Jack Halberstam,Female
Mascullnity(Durham,Carolina do Norte: Duke University Press,1998).Sobre análises de
transgeneridade negra e Identidade,ver C. Riley Snorton,Black on Both SIdes(Mineápolis:

390
University of Minnesota Press,2017); Kai Green,“Troubling the Waters: Mobilizing a
Trans* Analytic”. In: E Patrick Johnson (Org.), No Tea, No Shade:New Wnitings in Black
Queer Studies(Durham,Carolina do Norte: Duke University Press,2016); Matt Richardson,
The Queer Limit ofBlack Memory(Columbus:Ohio State University,2016).
i8. Luciiie Bogan,“B. D. Biues”,op.cit.

ÁLBUNS DE FAMÍLIA,FUTUROS ABORTADOS:UMA ESPOSA


DESILUDIDA SE TORNA ARTISTA,SEVENTH AVENUE,1890[PP.2^7-27]

1. Esse perfil de Edna Thomas é baseado em recortes dejornais e em uma entrevista


confidencial conduzida pelo dr. George W.Henry em seu extenso estudo de caso sobre
homossexuais,Sex Variants:A Study ofHomosexual Patterns(Nova York: Hoeber,
i94i). O projeto foi financiado pelo Comitê para o Estudo de Variantes Sexuais,e as
entrevistas foram conduzidas nos anos -1930. Jan Gay coletou mais de trezentos relatos
de mulheres lésbicas na esperança de combater a discriminação e a criminalização da
sexuaiidade queer.O Comitê para o Estudo de Variantes Sexuais tinha por objetivo
descriminalizar a homossexuaiidade,embora a definisse como uma sexuaiidade anormai
e como resultado de famílias falhas e desajustadas e/ou uma inconformidade de gênero
dos pais. No contexto de sua coiaboração com o comitê,o papel de Jan Gay como
iniciadora do projeto e como principal pesquisadora foi extremamente minimizado,se
não apagado,e seu trabaiho não recebeu o devido reconhecimento. Gay foi responsável
pela inclusão de um bom número de artistas e ativistas da esquerda no estudo.(Ela
era filha de Ben Reitman,que abandonou sua família para se tornar amante de Emma
Goldman.)John Katz identificou Edna Thomas peia primeira vez como PearI M.em Gay/
Lesblan AlmanaciA New Documentary(Nova York: Harper & Row,1983, pp.526-8).
Edna Thomasjá havia sido citada como Mary Jones em “Psychogenic Factors in Overt
Homosexuality”,American Journal ofPsychiatry, v.93, n.4,jan.1937, pp.889-908. Para
uma extensa discussão sobre esse estudo e uma ieitura perspicaz das entrevistas,
ver Henry Minton,Departing from Devlance:A HIstory ofHomosexual RIghts and
Emancipatory Science in America (Chicago: University of Chicago Press,2001)e
dennifer Terry,An American Obsession:Science, Medicine and Homosexuality in Modern
Society(Chicago: University of Chicago Press,2014). Ver também George Hutchinson,
In Search ofNella LarsemA Biography ofthe Color Une(Cambridge, Massachusets:
Harvard University Press,2006); Verene D. Mitchell e Cynthia Davis, Literary Sisters:
Dorothy West and Her Circie(New Brunswick: Rutgers University Press,20Í2); Verene
Mitcheil e Cynthia Davis, Dorothy West: Where the Wild Grape Grows(Amherst:
University of Massachusetts Press,200^; Bruce Keilner (Org.), The Harlem Renaissance:
A Historical Dictionary(Nova York: Metheun,1984); Dariene Clark HIne, Black Women
in White America (Brookiyn: Carison Press,1993); AMelia Bundies,On Her Own Ground:
The Life and Times ofMadame C. J. Walker(Nova York: Washington Square Press,200i);
Cary Wintz e Paul Finkelman (Orgs.), Encyclopedia ofthe Harlem Renaissance,vol.2
(Nova York: Routiedge,2004).
2. W.E. B. Du Bois,“The Servant in the House”.In: Darkwater,op.cit., p.92.
3. Christina Sharpe usa esse termo para explicar os “extraordinários campos de
dominação e intimidade,a escravidão e a Passagem do Meio [que] representaram
rupturas e uma suspensão do mundo conhecido que deram início a enormes e contínuas
violações psíquicas,temporais e corpóreas”.Isso abrange a “série de repetições de

391
metanarrativas de violência e submissão forçada que são lidas e reescritas como dotadas
de consentimento e sedução:íntimidades que envolvem vergonha e trauma e sua
transmissão transgeracional”. Christina Sharpe, Monstnous Intimacies,op.cit., p.
4. Hortense Spillers,“Interstices" In: Black, White and In Color,op.cit., p.155.
5.Ver W.E. B. Du Bois,“The Servant in the House”. In: Darkwater,op.cit., p. gz;e The
Negro American Family,op.cit., p.66.
6.Id.,“The Servant in the House”. In: Darkwater,ibid., p.gz.
7. Darlene Clark Hines,“Rape and the Inner Lives of Black Women in the Middie West",
Signs,V.i4, n. verão,igSg, pp.giz-zo.
8.Sobre linhas de descendência perversas,ver Édouard Glissant, Caribbean Discourse:
Selected Essays,op.cit. Sobre a “sobrevida da escravidão”, ver Saidiya Hartman,Lose
Your Mother. Nova York: Farrar,Straus & Giroux,Z007, pp.45,73,107[ed. bras.:Perder a
mãe:umaJornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo,zozi].
9.Ver “Case of PearI M”.In: George W.Henry,Sex Varlants,op.cit., pp.563-70.
■10. Enquanto PearI diz que sua família se mudou para Fiiadéifía, a atriz Edna Thomas
relatou que cresceu em Boston,
■li. A homossexualidade sempre tornará uma pessoa perdida para um mundo de
imperativos, códigos e leis heterossexuais [...]. Perder-se não se trata de se esconder
no armário ou de performar um simples ato (ontológico) de desaparecimento, mas se
desviar do caminho da heterossexualidade. Libertos em fuga da escravidão também se
perderam. Jose Munoz, Crulsing Utopia: The Then and There ofQueer Futurity. Durham,
Carolina do Norte: Duke University Press, zoog, pp. 66,73.
iz. Ver “Case of PearI M”. In: Georg W. Henry, Sex Varlants, op. cit., pp. 563-70.
i3. Ver David Levering Lewis, When Harlem Was in Vogue, op. cit.; George Hutchinson, In
Search ofNella Larsen:A Biography ofthe Color Une (Cambridge: Harvard, zoo6, pp. igg,
Z04, Z56); e A’ielia Bundies, On Her Own Ground: The Life and Time ofMadame C. J.
Walker, op. cit, p. Z38.0 Harlem era um centro da cultura e da vida social queer. Caska
Bonds, Waliace Thurman e Jimmy Daniels estavam entre seus melhores amigos. Sobre o
Harlem queer, ver George Chauncey, Gay Nova York: Gender, Urban Culture and the
Making ofthe Gay Male World (Nova York: Basic Books, iggg); Michael Henry Adams,
“Queers In the Mirror. Old Fashioned Gay Marriage in Nova York, Part ii”, Huffíngton Post,
7 jul. zoog. Disponível em inglês em: https:/'www.huffingtonpost.com/michael-henry-
adams/queers-in-the-mirror-a-br_b_zz7473.html.
i4. Cary D. Wintz e Paul Finkelman (Orgs.), Encyclopedia ofthe Harlem Renaissance,
op. cit., p. 1176.
15. W. E. B. Du Bois, “Criteria of Negro Art”, The Crísis:A Record ofthe Darker Races [igz6].
i6. “The World Has Us Guessing,’ Says Clever Luiu Belle Star”, PIttsburgh Courler, io mar.
igz8. Essas suposições se relacionam fündamentalmente com a pergunta “Eu não sou
unia mulher?” e também com a dúvida e a negação contidas em tal pergunta que, como
Spillers escreve, tem um peso quase Insuportável. “Interstices”. In: Black, White and In
Color, op. cit., p. 157.

REVOLUÇÃO EM TOM MENOR [PP. S31-9]

1. Ver Waliace Thurman, “Cordelia the Crude, a Harlem Sketch”, Flrell, v. 1, n. i, iga6,
pp. 5-6.

392
2. Os sentimentos sobre a Primeira Guerra Mundial se dividiam. A maioria dos negros
se mostravam relutantes em lutar na guerra do homem branco em um exército
segregado,especialmente quando eram linchados e agredidos de uniforme. Período
ofícial de envolvimento dos Estados Unidos na Primeira Guerra:6 de abril de -1917 a ü de
novembro -19-18.
3. Micheile Stephens,Black Empine: T/ie Masculine Global Imaginary ofCaribbean
Intellectuals In the United States,-19-14-1962(Durham,Carolina do Norte: Duke University
Press,2005); Barbara Foley, Spectnes of-19-19: Class and Nation In the Making ofthe New
Negro(Urbana: University of liiinois Press,2008): Brent Hayes Edwards, The Pnactice of
DIaspona:Literature, Translation, and the Rise ofBlack Intennationallsm (Cambridge:
Harvard University Press,2003).
4.WalIaceThurman,“Cordelia the Grude”,op.cit., pp.5-6.
5. Autos de Bedford Mills #2682.
6. Esse é o mesmo endereço da casa de Josephine Schuyler.Todas asjovens eram
conhecidas e amigas de Josephine Schuyler e passavam um tempo em sua casa,que era um
antro de apostas,um bar clandestino e espaço coletivo. A cartografia da vida negra e seus
espaços de experimento incluem a viela,o telhado,o corredor,o lar desqjustado,o cabaré,
o botequim dessegregado etc.O alojamento da prisão é a extensão e a continuação do
gueto enquanto uma zona de cerco racial. A prisão e o confínamento definiram os esforços
para erradicar essa sociabilidade desregrada e promíscua.O universo conservador via
esses lugares como um mundo obscuro ou submundo.Os cabarés, botequins e salões de
dança eram espaços subterrâneos e fugitivos que escapavam à polícia.
7. A escravidão foi a fonte da imoralidade das mulheres negras,considerou Francês Kellor,
observando que “era esperado que as mulheres negras[fossem]imorais e elas[tinham]
pouco incentivo para ser de outra forma”. Ver Francês Kellor,“Southern Colored Giris In
the North”, Bulletin ofthe Inten-Municipal Committee on Household Research,v.-1, n.7,
maio 1905. Jane Addams escreveu:“As mulheres negras cediam mais facilmente às
tentações da cidade que as outrasjovens”.Os negros se encontravam a “várias gerações
atrás da raça anglo-saxã com relação a agências e processos civilizatórios”. Ver “Social
Control”, The Crisis:A Record ofthe Darker Races.jan.igii, p.aa.
8.Id. Ibid.
9. W.E. B. Du Bois, Negro American Family,op.cit.
10.Jovens entre catorze e trinta um, mas às vezes meninas de doze anos,eram
sentenciadas ao reformatório por visitar ou residir em uma casa de má reputação, por
suspeita de prostituição,ou ter amigos ou vizinhos que eram ladrões ou prostitutas,
ou por associar-se a pessoas imorais e criminosas,ou ainda por promiscuidade. Cheryl
Hicks, Talk with You Like a Woman,op.cit., p.184.
11. Ver HazeI Carby,“Policing the Black Woman’s Body”,Criticai Inquiry^v.i8, n.4,verão,
1992;Sarah Haley, No Mercy Here: Gender,Punishment,and the Making ofJim Crow
Modernity(Chapei HilI: University of North Carolina Press,2016); Cheryl Hicks, Talk with
You Like a Woman,ibid.; Cynthia M.Blair, Tve Got to Make My Livirí, op.cit.; e LaShawn
Harris,Sex Workers,Psychics, and Number Runners:Black Women In New York City’s
Underground Economy(Bloomington: University of Illinois Press,20í6).
12.Ver Seção viiA do Código de Processo Penal,seção 913a. Ver também Raphael Murphy,
“Proceedings In a Magistrate’s Court Under the Laws of Nova York",Fordham Law Review,
V.24, n.11955.Em -1925,o Wayward Minors Actfo i expandido para incluir pessoas do
gênero masculino.Ver Capítulo 389, Leis 1925,que estendem as disposições da lei. Clinton
McCord,“One Hundred Femaie Offenders: A Study ofthe Mentality of Prostitutos and

393
‘Wayward’GípIs”, Journal ofthe American Institute ofLawand Criminality, v.6, n. 3,
set.i9i5,pp.385-407.
13. Willoughby Cypus Watepman,Prostitution and Its Repression in New York City,
-1900-193-1(Nova Yopk: Columbia Unívepsity Ppess,-1932, pp.40-1);Timothy Gilfoyle, City
ofEros: Nova York,Prostitution and the Commercialization ofSex,1790-1920(Nova Yopk:
W.W.Norton,1994).
14. Willoughby Cypus Watepman,Prostitution and its Repression in New York City,
ibid., p.39.
15. Julia Blackbupn, With Biiiie(Nova York: Pantheon,2005, pp.61-2),e Donald Clarke,
Wishing on the Moon:The Life and Times ofBiiiie Hoiiday(Nova York: Viking,1994, p.38).
Vep também LadySings the Biues,que oferece um relato completo sobre prostituição,
bem como sobre a experiência de ser enquadrada e visada. Biiiie Hoiiday,Lady Sings the
Biues[1956]. Nova York:Three Rivers Press,2006, pp.28-9.
i6. Ver Michel Foucault,Security, Territory, Popuiation:Lectures at the Coiiège De France,
■*977"7S (Nova York; Picador, 2009, p. 198); Michel Foucault, HistoryofSexuaiity, vo/. 2;
The Use ofPieasure (Nova York: Vintage Books, 1988) [ed. br as.: História da sexualidade,
vo/. 2; O uso dos prazeres. Trad. de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2020].

REBELDIA: UMA BREVE INTRODUÇÃO AO POSSÍVEL [PP. 241-2]

●1. Ver C. Riley Snorton, Nobody Is Supposed to Know: Black Sexuality on the Down Low.
Mineápolis: University of Minnesota Press, 2014.
2. Esta entrada sobre a rebeldia está em diálogo com as noções de respeitabilidade, o
queer e a teimosia. Ver Evelyn Brooks Higginbotham, Righteous DIscontent: The Women’s
Movementin the Black Baptist Church (Cambridge, Massachusets: Harvard University
Press, 1994); E. Patrick Johnson, No Tea, No Shade: New Writings in Black Queer Theory,
op. cit.; Eve Sedgwick, Tendencies (Durham, Carolina do Norte: Duke University Press,
●>993); dack Halberstam, The Queer Art ofFailure (Durham, Carolina do Norte: Duke
University Press, 2011); e Sarah Ahmed, Wilifül Subjects (Durham, Carolina do Norte:
Duke University Press, 2014).

A ANARQUIA DAS GAROTAS DE COR REUNIDAS NA DESORDEM


[PP. 243-7-1]

1. Bessie Smith, vocalista, “Reckiess Biues”, de Fred Lon9shaw e Jack Gee, gravada em
1925, Columbia 14056D, LP10 pol.
2. Emma Goldman, “Anarchism: What It Really Stands For”, in: Anarchism and Other
Essays, 2. ed. rev. Nova York: Mother Earth Publishing Association, 1910.
3. Sobre a vida e obra do radical do Harlem, ver Jeffrey Perry, Hubert Harrison: The Volce
ofHarlem Radicalism, 1883-1918 (Nova York: Columbia University Press, 2010); e Shelley
Streeby, Radical Sensations: l/l/br/c/ Movements, Violence, and Visual Culture (Durham,
Carolina do Norte: Duke University Press, 2013).
4- [●●●] como os quashees (negros livres da Jamaica) se contentam em produzir apenas
o estritamente necessário para o consumo próprio, e, ao lado desse “valor de uso”.

394
consideram a vadiagem (indulgência ou ociosidade)como o verdadeiro bem de luxo;como
não dão a mínima importância para o açúcar e para o capital fíxo investido nas plantações,
mas observam a falência iminente do agricultor com um sorriso irônico de prazer malicioso
KarI Marx,Grundrisse:Foundatíons ofthe Critique ofPolitical Economy [-iggg].
Londres:Penguin,2005, pp.325-7[ed. bras.; Grundrisse — manuscritos econômicos de
1857-1858:esboços da critica da economia po/ife/ca.Trad. de Mario Duayer e Nélio Schneider.
São Paulo: Boitempo,20íí].
5. Id. Ibid.
6. Rosa Luxemburgo,“The Russian Revolution”.In: Reform or Revolution and Other
Writings. Nova York: Dover Books,2006, p.215[ed. bras.: Reforma ou revo/ução?.Trad.de
Livio Xavier.3.ed.São Paulo: Expressão Popular,aoig].
7.Piotr Kropotkin,Mutual Aid [1302]. Boston: Extending Horizons Books,1355)[ed. bras.:
Ajuda mútua:um fator de revo/ução.Trad.de Waldyr Azevedo Jr.São Sebastião: A Senhora
Editora,2009]; Darlene Clark Hine,“Mutual Aid and Beneficiai Association”. In: Black Women
in America,3vols.(Nova York:Oxford University Press,2005): Jacqui Malone,“African
American Mutual Aid Societies”. In: Stepping on the Blues:The Visible Rhythms ofAfrican
American Dance(Urbana: University of Illinois,tggS, pp.167-86); Ron Sakoisky,“Mutuai
Acquiescence or Mutual Aid?" TheAnarchist Library, nov.2012. Disponível em inglês em:
https:/'theanarchistlibrary.org/library/ron-sakolsky-mutual- acquiescence-or-mutual-aid;
Avery Gordon,The Hawthorne Archive(Nova York: Fordham University Press,2017).
8. Ella Baker, The Crisis:A Record ofthe Darker Races, nov.-1935; Claudia Jones,“An End
to the Neglect ofthe Problems ofthe Negro Womanl",Politicai Afíeirs, v. 28,jun.1949,
pp.51-67; Carole Boyce Davies,Left ofKarI Marx:The Political Life ofBlack Communist
Claudia Jones(Durham,Carolina do Norte: Duke University Press,2007).
9.W.E. B. Du Bois,“The Servant in the House”. In: Darkwater,op.cit., p.90.
10.“Giris on ‘Noise’Strike”, New York Times,25jan.1920;“Vocal Hostilities of Bedford
Giris Finally Halted", New York Times,27jan.1920.
11. Narrativa extraída de “Information concerning the Patient”,12 ago.1917; e
“Information concerning the Patient”,15 set.1917; Bedford Mills Correctional Facility,
Autos da Detenta,Série 14610-77B, registros do Departamento de Serviços Correcionais,
Arquivos do Estado de Nova York,Albany,Autos de Bedford Mills #2507 e #2505.Ver
também Elizabeth Ross Maynes,“Negrões in Domestic Service”,Journal ofNegro History,
V.8,n.4,out.1923, p.396.
12. Ver “Marlem Elopers are Thrust in Cell”, Afro-American,30Jun.1928.
13.“Statement ofthe GirI, Work MIstory”,12 ago.1917,Autos de Bedford Mills #2507.
14. Ver Sophonisba Breckinrldge,“The Legal Relation of Mistress and Maid,wlth Some
Comment Thereon”, Bulletin ofHousehold Research,v.1, n.2,1904, pp.7-8. Breckinrldge
compreendeu as continuidades entre o trabalho doméstico e a escravidão e detalhou as
características da servidão involuntária produzidas pelo contraste entre a senhora e a
empregada.“Ainda não existe nenhuma legislação que defina a carga horária ou preveja
tratamento humanitário e condições sanitárias” para as trabalhadoras domésticas.
“Não existe lei que proíba crianças de trabalharem na cozinha; e em algumasjurisdições,
crianças delinquentes são habitualmente destinadas ao trabalho doméstico por oficiais
de condicional. A legislação que visa a melhoria das condições do trabalho doméstico
se confina, no momento,à obrigação do pagamento de um salário, quando há um."Ver
também Margaret Livingston Chanier,“Domestic Service”, Bulletin ofthe Inter-Municipal
Committee on Household Research,v.1, n.6,a br.1905, p.7.
15.doy James,“Captive Maternal Love: Octavia Butier and Scl-Fi Family Values”. In: Robin
Truth Goodman (Org.),Literatura and the Development ofFeminist Theory(Cambridge:

395
Cambridge Universíty Press,2015, pp.185-99).Sobre mulheres negras excedentes,
ver Rízvana Bradiey,“Reinventing Capacity: Black Femininlty’s Lyrícal Surplus and the
Cinematic Limits of12 Years A Slave”, Black Camera,v.7, n.1,outono,2015, pp.162-78.
16. Uma doméstica gostava tanto de lavar roupa que ela se referia às segundas como o
“dia de tocar piano”. Ver Mary White Ovington,“The Colored Woman in Domestic Service
in New York City”, Bulletin, v.1, n.7, maio 1905, p.10.
17. R. R. Wright,“Negro Household Workers”,Bulletin ofthe Inter-Municipal Commiütee
on Household Research,v.1, n.7, maio 1905; Kelly Miller,“Surplus Negro Women”,op.cit.
18. Hutchins Hapgood,An Anarchist Woman. Nova York: Duffield,1909, p.40.
19. W.E. B. Du Bois descreve a ação coletiva da greve geral como um enxame ou uma
ondulação. Ver Black Reconstruction. No capitulo “The General Strike”[A greve geral],
ele usa o termo “enxame” repetidamente para descrever o movimento do escravizado
e do fugitivo.
20.Esse verso é o refrão de um poema longo de Certeau sobre caminhada.Ver Michel
de Certeau, The Practice ofEveryday Life. Berkeley: University of Califórnia Press,1984,
p.101 [ed. bras.:A invenção do cotidiano.Trad. de Ephrain F. Alves. Petrópolls: Vozes,2014].
21. W.E. B. Du Bois,“The Servant in the House". In: Dankwaten, p.92.
22.
Michel de Certeau,The Practice ofEveryday Life, op.cit., p.99.
23. Saidiya Hartman,“Venus In Two Acts”,SmallAxe,v.12, n.2,jun.2008, pp.1-14; Ula
Taylor,“Street Strollers: Grounding the Theory of Black Women Intellectuals”,Afro-
-Americans in New York Life and History,v.30, n. 2,jul. 2006, pp.153-71;Sarah Cervenak,
Wandering:Philosophical Performances ofRacial and Sexual Freedom (Durham,Carolina
do Norte: Duke University Press,2015, p.2);e Glullana Bruno,Streetwalking on A Ruined
Map:Cultural Theory and the City Films ofElvira Notari(Princeton, Nova Jersey:
Princeton University Press,1993).
24.Louverture é uma outra forma de pensar sobre o tumulto,o levante e a prática
radical do cotidiano. É também uma referência à prática revolucionária do escravizado.
25.Sobre discriminação contra jovens negras e segregação na Hudson Training School,
ver “inquiry Board Hits Negro Segregation”, New York Times,20 nov.1936, p.9;e “Hits
Race Discrimination”, New York Vmes,7 ago.1936. Ver também Weekly Comment,
.. Chicago Defender,28jun.1919;e “Demand Unabated in Child Welfare”, New York Times,
J14 set.1933. Uma ex-superintendente lembrou que,ao assumir a Hudson Training School,
ela fez uma fogueira com as algemas,lençóis de contenção e camisas de força que
tinham sido usados na instituição”.
26.“Notes ofthe StaflF Meeting”,29 set.1917,Autos de Bedford Hilis #2507:“Ela é o tipo
dejovem que não hesitaria em destruir";“a indisciplinada que quebra janelas e destrói
a mobília :State Commission of Prisons,“Investigation and Inquiry into Allegations of
Cruelty to Prisioners in the New York State Reformatory for Women,Bedford Hilis”.
In: Twenty-Sixth Annuai Report ofthe State Commission ofPrisons for the Year igao,
12 mar.1921, p.93;jovens “destruindo coisas e gritando”,State Commission of Prisons,
“Investigation and Inquiry into Allegations of Cruelty”, p.94.Ver também M.Fleming,
“Ungovernability:The Uryustifiable Jurisdiction”, Yale Law Journal, v.83, n.7,jun.1974,
pp.1383-1409.
27. Gwendolyn Brooks, MaudMartha:A Novel[1953]. Chicago:Third World Press,1993,
p.22.
28. Elaine Scarry, On Beauty and Being Just. Princeton, Nova Jersey: Princeton University
Press,1999, p.30.

396
29. Kapl Mapx sobpe fopmas e modos de vida,vep German Ideology(Nova Yopk: Intepnational
Publisheps,1970)[ed. bpas.: A ideologia alemã.Trad.de Luciano Cavini Maptopano, Nélio
Schneidep e Rubens Endeple.São Paulo: Boitempo,2007]e Economic and Philosophic
Manuscrípts of-i844(Nova Yopk: Intepnational Publisheps,1964)[ed. bpas.: Manuscritos
econômico-fílosófícos.lrad. de Jesus Raniepi.São Paulo: Boitempo,2004].
30.Saidiya Haptman,"Belly ofthe Wopld",Souls: A Criticai Journal ofBlack Politics,
Culture, and Society,v.i8, n.1,jan./map.2016, pp.166-73.
31. Rodepick Fepguson,“The Epotic Life of Diaspopa: Black Queep Fopmations In the
Histopy of Neolibepalism", palestpa não publicada,Institute fop Reseapch on Women,
Gendep,and Sexuality,Columbia Univepsity, Nova Yopk,2013.
32.Stephen Robeptson,“Disopdeply Houses: Residences,Ppivacy,and the Supveiliance
of Sexuality in i92o's Haplem”,Journal ofthe History ofSexuality,v. 21, n.3,set.2012,
p. CV57. Vep Capby,“Pollcing the Black Body in an Upban Context”,Criticai Inquiry,v.18,
n. vepão,1992, pp.738-55*
33. Kathy Peiss, Cheap Amusements. Filadélfia:Temple Univepsity Ppess,1986, pp.110-2.
34.Sobpe as estpatégias de sobpevivência dejovens negpas,vep Aimee Cox,Shapeshifters.
Dupham,Capolina do Nopte:Duke Univepsity Ppess,2015, p.171.
35. Relato baseado em “Statement ofthe GípI”,10 ago.1917,Apquivo de Bedfopd #2505.
36. Billie Holiday,“My Man",The Billie Hollday Songbook. Nova Yopk:Vepse,1986.
37. Vep Ruth Reed, Negro lllegitimacy In New York. Nova Yopk:Columbia Univepsity Ppess,
1926, pp.48,68.
38.Geopge E.Wopthington e Ruth Topping,Specialized Courts Dealing with Sex
Delinquency:A Study ofthe Procedure In Chicago, Boston,Philadelphia,and New York
(Nova YopIc Fpedepick Hitchcock Publishep,192^:Chpistophep Tiedeman,A Treatise on the
Limitations ofPollce Power in the United States(St. Louls: F. H.Thomas Law Book Company,
1886);Saidiya HaPtman,Scenes ofSubJectIon,op.cit., pp.63,69,186-206; Bpyan Wagnep,
Disturbing the Peace(Cambpidge, Massachusets: Hapvapd Univepsity Ppess,2009).
39. No caso de delito de status,é o status,e não a conduta,que detepmina se o ato é
uma tpansgpessão da lei. Vep Cynthia Godsoe,“Contempt,Status,and the Cpiminalization
of Non-Confopmíng GípIs", Cardozo Law Review,v.35,n.3,fev. 2014, pp.iogi-116;
“Ungovepnability:The Ur\justifiable Jupisdiction", Yale Law Journal,v.83, n.7,Jun.1974,
pp.1383-409.
40.A teimosia é um esfopço papa existip ou tpansfopmap uma existência. Vep Sapah Ahmed,
“Wiilfülness as a Style of Politics”. In: Wilifül Subjects,op.cit., p.133.
41. Id. Ibid., p.137.
^^2. Vep Geopge J. Kneeland,Commercialized Prostitution in New York City. Nova YopIc
Centupy Co.,1913.Sobpe os 647 casos analisados no estudo do Refopmatópio de Bedfopd
Mills, Kathepine Bement Davis escpeve:“nem todas fopam condenadas pop ppostituição,
mas todas levavam uma vida de ppostituta”. In:“A Study of Ppostitutes Committed
fpom New Yopk City to the State Refòpmatopy at Bedfopd Mills”, apêndice de Kneeland,
Commercialized Prostitution In New York City, p.190.
43. Divisão de Dipeitos Civis, Divisão do Depaptamento de Dipeitos Civis dos Estados
Unidos e Theodope M.Shaw,The Ferguson Report,Department ofJustice Investigation
ofthe Ferguson Police Department. Nova YopIc New Ppess,Jun.2015.
44.Em 1917,as leis de vadiagem e as Tenement Mouse Lawsfopam os ppincipais veículos
utilizados papa a ppisão e acusação dejovens como ppostitutas.
45.Wopthington e Topping,Specialized Courts Dealing with Sex Delinquency, pp.217-8,
245,274,276,287,397-403t 418-9; Fpedepick Whitin,“The Women’s Night Coupt in New

397
York City”,Annals ofthe American Academy ofPolitical and Social Science,v. 52, mar.
1914, p.183.
46.A antecipação de criminalidade futura se encontrava no coração das leis de vadiagem
e na inscrição da negritude como criminalidade.
47. Jovens entre catorze e trinta um,mas às vezes meninas de doze anos,eram
sentenciadas ao reformatório por visitar ou residir em uma casa de má reputação, por
suspeita de prostituição,ou ter amigos ou vizinhos que eram ladrões ou prostitutas,ou
por associar-se a pessoas imorais e criminosas,ou por promiscuidade. Ver Cheryl Hicks,
Talk with You Like a Woman,op.cit., p.184.
48.Wiiliam J. Chambliss,“A Sociological Analysis ofthe Law of Vagrancy”,Social Pnoblems,
V.12, n.i,verão,1964, pp.66-77.
49.Christopher Tiedeman, Treatise on the Limitations ofPolice Power,op.cit., p.ü8.
50. Id. Ibid., p.ii7.
51.“Silks and Lights Blamed for Harlem Giris’ Delinquency”,Baltimore Afro-American,19
maio 1928;“Lure for Finery Lands Girl in Jail”, New York Amsterdam News,14 ago.1926.
52. Ver carta do marido para Esther Brown,Autos de Bedford Hills #2507.
53.“Frame-up and Blackmail”, New York Age,7jan.1928;“Be CarefuI Giris”,Amsterdam
News,14 maio igeo.
54.A sra.Scott, uma senhora que cuidava do filho de Esther,culpou a mãe de Esther
pelo que aconteceu com ela e disse para a assistência social que Rose Saunders se
relacionava com um dos homens que se alojavam no apartamento dela”.
55. Carta em Autos de Bedford Hills #2507.
56.0 governador de Nova York,lorde Cornford (primo da rainha Ana),emitiu uma
proclamação severa com o fim de “lançar mão de todos os métodos para confiscar
apreender todos os negros queforem apanhados em reuniões e se qualquer um deles se
recusar a se submeter,atirem neles, mate-os ou destruam-nos se de outra forma não
puderem ser capturados [...]. Muitos negros no Condado de Kings se reuniram de maneira
desordeira,o que,se não for prevenido, pode causar prejuízos”.Como uma precaução
contra conspirações,assembléias de pessoas escravizadas eram severamente restringidas.
Quando não estavam a serviço do senhor, não mais que três escravizados podiam se reunir
sob pena de levarem não mais que quarenta chicotadas. Não mais que doze escravos,além
dos carregadores do caixão e dos coveiros, podiam se reunir em qualquer funeral sob
pena de açoitamento público. Outro decreto proibia a reunião de escravizados depois
de anoitecer.Ver Roi Ottley e Wiiliam d. Weatherby(Orgs.), The Negro in New York:An
Informal Social History,1626-1940. Nova York: New York Public Library,1967, p.22.Códigos
de escravos na Nova York colonial visavam assembléias negras. Ver Edwin Olson.“The Slave
Code in Colonial New York,Journal ofNegro History,v. 29, n.2,abr.1944, pp.147-65; Ira
Berlin e Leslie Harris,Slavery In New York. Nova York: New York Historical Society,2005.Ver
Simone Browne,Dark Matters(Durham,Carolina do Norte: Duke University Press,2015).
57. Ver Colonial Laws of New York,1,520,citadas em Edwin Olson,“The Slave Code in
Colonial New York”,ibid. Ver também Ira Berlin e Leslie Harris,Slavery in New York,ibid.
58.Sobre o papel da filantropia em produzir uma ordem racializada, ver Alice 0’Connor,
Poverty Knowledge:Social Science, Social Policy, and the Poor in Twentieth-Century U.S.
History(Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press,2001); Paul Boyer, Urban
Masses and the Moral Order in America,1820-1920(Cambridge, Massachusets: Harvard
University Press,1992); Ralph Luker,Social Gospelin Black and White:American Racial
Reform,1885-1912(Chapei HilI: University of North Carolina Press,1991); David Rothman,
Conscience and Convenience:the Asyium and its Alternatives In Progressive America
(Boston: Littie Brown,1980); Michael McGerr,A Fierce Discontent: The Rise and Fali of

398
the Progressive Movement in America(Nova York: Free Press,2003); Richard Hofcstadter,
Age ofReform (Nova York: Vintage Books,1955). Robert Allen, Reluctant Reformers:
Racism and Sociai Reform Movements(Washington, D.C.: Howard University Press,1974).
59. Frederick Whittin para Du Bois,10 out.1912,caixa 11(Du Bois igi-i-igia) pasta,
“Correspondência de W.E. B. Du Bois”. Frederick Whittln para Du Bois,io out.1912, caixa 2
(Correspondência Geral) pasta. Correspondência de W.E. B. Du Bois,ii-20 out.1912.
Para um estudo sobre o trabalho do comitê na Cidade de Nova York,ver Jennifer Fronc,
New York Undercover:Private Surveiliance in the Progressive Era. Chicago: University
of Chicago Press,2009.
60.Ver Willlam Fryer, Tenement House Law ofthe City ofNew York(Nova York:The
Record and Guide,1901); Robert de Forest e Lawrence Veiiler(Orgs.), The Tenement
House Problem (Londres: Macmlilan,igog);e The Tenement House Law ofthe State of
New York e Capítulo xix do Greater New York Charter(Nova York:Tenement House
Department,1912).
6i. A lei também estabelecia diretrizes para a melhoria de prédiosjá existentes e para
a construção de novos cortiços; no entanto,o apoio da lei se provou difícil. Muitos
reformadores sociais acreditavam que os problemas sociais eram determinados por
condições ambientais precárias,e assim,ao melhorar as condições habitacionais se
melhoraria a moralidade e as chances das pessoas pobres por meio da transformação da
ecologia do gueto.“The Tenement Law ofthe City of New York”,Seção 141,“Vagrancy”;
William John Fryer (Org.), The Tenement House Law ofthe City ofNew York. Nova York:
Clinton W.Sweet,igoi.
62.Committee of Fifteen, The Sociai Evii: With Special Reference to Conditions Existing
in the City ofNew York. Nova York: G.P. Putnam,1902, pp.173-4.
63.Ver Kevin Mumford,Interzones,op.cit.; Jennifer Fronc, New York Undercover,op.cit.;
Timothy Gilfoyle, City ofEros: New York City, Prostitution,and the Commercialization of
Sex,1790-1920(Nova York: W.W.Norton,1992);e Jessica R. Pliley, Poiicing Sex Districts:
The Mann Act and the Making ofthe FBI(Cambridge, Massachusets: Harvard University
Press,2014); Willoughby Cyrus Waterman,Prostitution and Its Repression in New York
City,op.cit., p.39.
64.Christopher Tiedeman,Treatise on the Limitations ofPolice Power,op.cit., p.117.
65.1099 pessoas foram presas por essa violação.“Committee of Fourteen”, Committee
ofFourteen Annual Report 1914. Nova York,1914.
66.“Committee ofFourteen”, Committee ofFourteen Annuai Report 1914, pp.32-3; Vai
Marie Johnson,“Defining Social Evil: Moral CItizenship and Governance in New York City,
1890-1920”(tese de doutorado,The New School for Social Research, Nova York,2002,
pp.396~7i fn.i2i). O Comitê dos Cortiços e o Comitê dos Catorze visavam senhofios
cujos principais inquilinos eram afro-estadunidenses. Em 1910,as mulheres negras
somavam i,g por cento da população da cidade,entre as quais oito por cento tinham
sido acusadas de prostituição,e 7,6 por cento de conduta desordeira. Em 1914,a grande
maioria das mulheres foi acusada de prostituição por meio da cláusula de vadiagem da
Tenement House Law. Embora as mulheres afro-estadunidenses somassem pouco menos
que dois por cento da população da cidade,elas compunham trinta e seis por cento das
pessoas presas por violação da Tenement House Law. Mulheres estrangeiras compunham
vinte e quatro por cento das presas,embora somassem 40,8 por cento da população da
cidade. Por conta do mercado de trabalho segregado,as mulheres negras eram com
frequência empregadas em locais de sexo, mas em trabalhos não sexuais,como zeladoras,
camareiras e lavadeiras. Em 1928,o número de mulheres negras no tribunal era quatro
vezes maior que o número de brancas. Em 1930, houve um crescimento dramático nas

399
taxas de prisão.Três mulheres negras eram presas para cada duas mulheres brancas,
mesmo onde havia uma mulher negra para cada oito mulheres brancas na cidade de
Nova York.A “relação da polícia” tinha tudo a ver com essa disparidade. Ver Sophia
Robison,An Inquiry into the Pnesent Functioning ofthe Women’s Count in Relation to
the Problem ofProstitution in New York City. Welfare Council of Nova York, Research
Bureau, maio iggs.
67.“Houve um aumento,em comparação aos anos de ig'i3-igi4, de casos localizados em
cortiços em East Side e no Harlem,enquanto reduções foram observadas na área central
da cidade,incluindo o [...] Tenderloin. Essa última redução, bem como o aumento no
distrito do Harlem,talvez possa ser explicada pelo deslocamento dos negros de uma
área para a outra.” George J. Kneeland, Commerciaiized Prostitution in New York City,
op.cit., p.165; ver também Commíttee of Fourteen, New York CityAnnual Report,
1915-^916, pp.32,42,55,58.
68. A Seção 887 do Código Penal definia o vadio como segue:“Qualquer pessoa que(a)
se oferece para cometer prostituição; ou (b)que oferece ou se oferece para obter uma
pessoa do sexo feminino com o propósito de prostituição ou para qualquer outro ato
lascivo ou indecente;ou (c) que se demora em qualquer via pública ou em qualquer lugar
público ou privado com o propósito de induzir, aliciar ou corromper outra pessoa a
cometer atos iascivos,fornicação, relação sexual ilegal ou qualquer ato indecente;ou
(d)que de quaiquer forma induz,alicia ou corrompe uma pessoa que esteja em qualquer
via pública ou em qualquer lugar público ou privado a cometer quaisquer atos do tipo é
considerado um vadio”. Em ig2i,a definição foi mais uma vez expandida em People versus
Breitung,embora o primeiro item tenha permanecido inalterado desde o século 14;
Uma pessoa que não possua meios visíveis para se manter,que vive sem emprego”.
N.Y. LEI PENAL § 240.20(Código Penal de ny.Seção 240.20).Conduta desordeira;
Uma pessoa é culpada de conduta desordeira,com intenção de causar inconveniência
pública, perturbação ou alarme,ou de forma imprudente criar um risco disso se:1.
Ele(a)se envolver em uma briga ou apresentar comportamento vioiento,tumultuoso
ou ameaçador;ou 2. Ele(a) produzir barulho irrazoável;ou 3. Em espaço público,ele(a)
fizer uso de linguagem abusiva ou obscena,ou fizer um gesto obsceno;ou 4.Sem
autoridade legal,ele(a) perturbar qualquer assembléia legal ou reunião de pessoas;
ou 5. Ele(a) obstruir o tráfsgo veicular ou de pedestres;ou 6. Ele(a)congregar com
» outras pessoas em um espaço público e se recusar a cumprir com uma ordem legal
da polícia para se dispersar; ou 7. Ele(a)criar uma condição perigosa ou fisicamente
ofensiva por qualquer ato que não sirva nenhum propósito legítimo.
Lar Desqjustado, Lei Penal,Seção 1146: Uma pessoa que mantém uma casa de má
reputação ou bordel de qualquer tipo,ou uma casa ou lugar próprio para a visitação
de pessoas com o fim de praticar relações sexuais ilegais,ou para qualquer propósito
lascivo,obsceno ou indecente,ou lar desqjustado,ou uma casa comumente conhecida
como um botequim ilegal,ou qualquer local de estância pública que habitualmente
perturbe a paz,o conforto ou a decência de uma vizinhança,ou que convida,assessora
ou alicia qualquer mulher a habitar qualquer casa ou lugar do tipo,ou que,enquanto
agente ou proprietário,ceder um edifício ou qualquer parte dele,ciente de que o local
se destina a ser usado por qualquer pessoa especificada nesta seção,ou que permite que
um prédio ou parte de um prédio seja assim utilizado,é culpado de contravenção. Esta
seção deve ser interpretada como aplicável a qualquer parte ou partes de uma casa
utilizada com os fins aqui especificados.
Código de Processo Penai,Seções 8gg,gii.4. Mantém casas indecentes ou casas para
estâncias de prostituição, bêbados, beberrões,jogadores,criminosos habituais ou outras
pessoas desqjustadas.(Pessoas desqjustadas coincidem com o significado do vadio.)

400
A seção gii do Tribunal também pode condenar [ela] à prisão; a natureza e a duração
da prisão. O tribunal também pode,a seu critério,ordenar que uma pessoa condenada
como uma pessoa dessyustada seja mantida na cadeia do condado ou na cidade de Nova
York, na prisão da penitenciária dessa cidade, por um período não superior a seis meses
de trabalho forçado.
Perturbação Pública, Lei Penal,Seções 1530 e 1532:
Seção Í530: Uma perturbação pública é um crime contra a ordem e a economia do
Estado e consiste na prática ilegal de um ato ou omissão no cumprimento de um dever,
cqjo ato ou omissão:
i)Incomode,fira ou ponha em risco o conforto,o repouso,a saúde ou a segurança
de qualquer número considerável de pessoas;ou,
2)Ofenda a decência pública; ou
3)(Na verdade, ponto 4)De qualquer maneira,torne um número considerável de
pessoas inseguras na vida ou no uso de sua propriedade.
Seção 1532. Mantenimento da perturbação. Uma pessoa que cometa ou mantenha
uma perturbação pública,cuja punição não é especialmente prescrita,ou que
intencionalmente se omita ou se recuse a cumprir qualquer dever legal de remover
tal perturbação pública,é culpada de contravenção.
6g.Ver Grace Campbell,“Tragedy of Colored GirI In Court”,New York Age,25 abr.igas;
“Women OfFenders and the Day Court”, New York Age,i8 abr.-igag.Ver Grace Campbell
apud “Harlem Love Giris Get 25 cents, Whites $5",A/ho-Amer/can,agjan.-iggS.
70.Committee of Fourteen,Annual Report ofthe Committee ofFourteen igis-igi6.
Ti. Pat James e multas outras mulheres foram presas por prostituição em táxis. Ela saiu
do clube a uma e meia da manhã. Dois homens entraram no táxi atrás dela. Ela começou a
gritar e a lutar com eles,com medo de que fossem roubá-la, mas em vez disso,foi presa
por prostituição. Autos de Bedford Mills #348g. Nancy Lacewell foi presa no corredor.Os
policiais primeiro a acusaram de roubo e então mudaram a acusação para prostituição.
Autos de Bedford Mills #3501. Menrietta Dawson foi presa por prostituição depois de
aceitar um encontro com um homem que havia conhecido em um clube no Marlem.Sua
criança mestiça convenceu a corte de que ela vinha levando uma vida de prostituta.
Autos de Bedford Mills #34gg.
72. Billie Moliday,Lady Sings the Blues[igsB]. Nova York;Three Rivers Press,2006, p.27.
73.Trixie Smith,igz2,“My Man Rocks Me(Wlth One Steady Roll)”, Black Swan Records,
14127-B.
74- “Race Actresses Said Framed by Cop”,Baltimore Afro-American,26 dez.igag, p.5.
75. Anne Winters,“MacDougal Street,Old Law Tenement”, The Displaced ofCapital.
Chicago: University of Chicago Press,2004.
76.Ver Christopher Muller,“Northern Migration and the RIse of Racial Disparity In
American Incarceration”,American Journal ofSoclology,v.ii8, n.2,set.20i2, pp.281-326;
Khalil Muhammed,Condemnation ofBlackness,op.cit.; Bryan Wagner,Disturbing the
Peace,op.cit.; e Michelle Alexander, The New Jim Crow. Nova York:The New Press,2012.

A VIDA INTERROMPIDA DE EVA PERKINS[PP.273-7]

1. Esse relato de Eva Perkins é baseado em Arquivo de Bedford Mills #2504.


2.Ver James Weldon Johnson,Autobiography ofAn Ex-Colored Man [igia]. Nova York: W.W.
Norton,2015;e Sutton Griggs,Imperium In Império[i8gg]. Nova York: Random Mouse,2007.

401
3* Sylvia Wynter,“Beyond Miranda’s Meanings: Un/silencíng the Demonic Ground of
Calíban’s Woman”,Out ofthe Kumbla:Caribbean Women and Literatura.Trenton, Nova
Jersey: África World Press,iggo, p.363.
Evelynn Hammonds,“Black(W)holes and the Geometry of Female Sexuallty”,
difPerences:A Journal ofFeminist Cultural Studies, v.6, n. a~3,igg4, pp.127-45. Katherine
McKittrick,Demonic Grounds:Black Women and the Cartographies ofStruggle.
Mineápolis: University of Minnesota,2006, pp.37-64.
5.Sylvia Wynter,“Beyond Miranda’s Meanings”,op.cit., p.363.
6. Darlene Clark Hine,“Rape and the Inner Lives of Black Women",Signs:Journal of
Women In Culture and Society, v.14, n.4,verão,ig8g, pp.912-20.
7. Ralph EIlison, Invisible Man [1352]. Nova York: Vintage,igg5, p.16[ed. bras.: Homem
invisível.Trad.de Mauro Gama.Rio de Janeiro: José Olympio,2020].

REVOLTA E REFRÃO[PP.279-303]

1. GirI Chained, Bed to Crash If She Moved”,New York Tribune,13 dez.1913. Ver também
“Screaming GirI Manacled to Cell", Washington Post,7 dez.1919;“GirI'Strung Up’ Before
Prison Inquiry Board”,New York Tribune,7 dez.1919;“‘Stringing Up’ Bedford GIrIs Called
Useless", New York Tribune,21 dez.1919;“Expert Condemns Stringing Up GIrIs”, New York
Times,14 dez.1919;“Handcuff Giris at Reformatory”, Los Angeles Times,4jan.1920;e
“Marsh Penalty Meted to Giris”, Louisville Courier Journal,4jan.1920.
2.“Doctor Assails Stringing Up of Bedford Giris”, New York Tribune,14 dez.1919,
p.14; New York Department of Efficiency and Economy,Annual Report Concerning
Investigations ofAccountIng,Administration and Construction ofState Hospitais
for the insana, State Prisons and State Reformatory and Correctional Institutions
(Albânia, Nova York: J.B. Lyon Company,1915, pp.932-3); State Commission of Prisons,
“Investigation and Inquiry into Allegations of Cruelty”, p.74.
3. State Commission of Prisons,“Investigation and Inquiry into Allegations of Cruelty
to Prisioners In the New York State Reformatory for Women,Bedford Mills”. In: Twenty-
-Sixth Annual Report ofthe State Commission ofPrisons for the Year tgso,21 mar.1920,
p.146.
4. Katherine Davis,“Preventive and Reformatory Work”e “Salient Facts about the New
York State Reformatory for Women,Bedford Mills, New York”, panfleto, Women Prison’s
Association of New York, Rare Books and Manuscripts, Biblioteca Pública de Nova York,
PP- 4-5-
5. State Commission of Prisons,“Investigation and Inquiry into Allegations of Cruelty”,
p.78.
6. Id. Ibid., p.68.
7. Erving Goffman,Asylums:Essays on the Social Situation ofMental Patients and
Other Inmates(Nova York: Anchor Books,1961); Colin Dayan,“Civil Death”, The Law is
A White Dog(Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press,2013); Frank Wilderson,
“The Prison Slave as Megemony’s(Sllent)Scandal”, Social Justice, V. 30, n.2,2003.
8.State Commission of Prisons,“Investigation and Inquiry into Allegations of Cruelty”,
p.78.
g. Id. Ibid., p.72.

402
IO. No Caso #2503,“amizades com jovens brancas”foram listadas como uma infração
disciplinar. A intimidade interracial e as relações sexuais indesejáveis vêm preocupando
as autoridades e o público desde -1914. Em igi6,dois alojamentos segregados foram
construídos para mulheres negras porque o temor do Estado era:“relações sexuais
indesejáveis nascem dessa mistura entre as duas raças”. Ver “Annual Report ofthe State
Board of Charitíes for the Year igig”(Albânia igi6, pp.32,854-67). Para uma análise
crítica dessas questões,ver Regina KunzeI, Criminal Intimacy:Prison and the Uneven
History ofModern American Sexuality(Chicago: University of Chicago,2010); Sarah
Potter,“Undesirable Relations: Same-Sex Relationships and the Meaning of Sexual Desire
at a Women’s Reformatory”,Feminist Studies,v.30, n.2,verão,2004,pp.394-4-15; Estelle
B. Freedman,“The Prison Lesbian: Race,Class,and the Construction ofthe Aggressive
Female Homosexual”,Feminist Studies,v. 22, n.2,verão,-1996, pp.397-423;e Cheryl Hicks,
Talk With You Like a Woman,op.cit., pp.204-33.
11. Mattie Jackson foi punida por reclamar da comida:“Disciplinary Report”,Autos
de Bedford Hills #2466;as mulheres eram punidas por “infrações insignificantes”:
Commission of Prisons,“Investigation and Inquiry into Allegations of Cruelty”, p.91;
sobre educação,ver State Commission of Prisons,“Investigation and Inquiry into
Allegations of Cruelty”, p.81;sobre discriminação contra Jovens de cor e negação de
educação,ver “Doctor Assails Stringing Up”,op.cit.
12.State Commission of Prisons,“Investigation and Inquiry into Allegations of Cruelty”,
pp.80,Í48.
13.A falha do reformatório foi atribuída à fraqueza mental das prisioneiras. Quase todos
os relatos de Bedford caracterizam asJovens de cor em Bedford como pessoas de mente
fraca: ver “State Board of Charities Annual Report”.Osfiincionários penitenciários
constantemente estabeleciam uma relação entre o comportamento indisciplinado e a
fraqueza mental.Ver Edith R.Spaulding,“The Problem ofthe Psychopathic Hospital
Connected with a Reformatory Institution”, Medicai Record:A Weekly Journal ofMedicine
and Surgery,v. gg, n.20,14 maio 1921, p.819.AlgumasJovens escaparam de Bedford depois
que outras foram confinadas na unidade psicopatológica.Com maisfrequência asJovens
negras eram classificadas como “intelectualmente inferiores” e afirmava-se que elas
tinham a habilidade mental de crianças de dez a doze anos.Ver “Brief Case Histories of
Twenty One Women Recommended for Custodiai Care”,Committee of Fourteen Records,
Manuscripts and Archives Divislon, Biblioteca Pública de Nova York; no Twenty-Sixth
Annual/?eport,funcionários penitenciários estabeleceram uma relação entre
comportamento indisciplinado e mente fraca.
●14. A maioria das mulheres negras que saíram de Bedford em liberdade condicional foram
obrigadas a realizar “serviços domésticos”: Twenty-FIrst Annual Report ofthe New York
State Reformatory for Women, Legislativo Report ofthe State of New York (Albânia,
Nova York: J. B. Lyon, 1922, p. 25). A maioria das mulheres negras que viviam em liberdade
condicional e realizavam serviços domésticos reclamavam do peso do trabalho; algumas
delas preferiam voltar voluntariamente para Bedford em vez de se submeter ao trabalho
doméstico.
i5. Katherine Davis, “Preventiva and Reformatory Work”. In: Informal and Condensed
Report oftheAmerican Prison Congress, op. cit., p. 25. Davis reconheceu que as Jovens
corriam um risco social maior depois de terem sido sentenciadas a Bedford: “As Jovens
que Já passaram por aqui são consideradas um alvo fócil por quase todos os ‘traficantes
de mulheres brancas’ do estado, e assim elas são confrontadas duplamente com as
tentações que se colocam diante das Jovens que nunca estiveram aqui”. “Woman Defines
Virtue”, New York Tribune, 27 abr. ig-ig.

403
i6.Em igi7,o alojamento segnegado foi introduzido em Bedford pana evitar uma
“intimidade danosa” ou amizades e relações sexuais ínter-raciais.
i7. Arquivo de Bedford Hilis #2504.
i8.Ver Ira De A. Reid, Twenty-Foun Hundred Negro Familles in Hanlem:An Interpnetation
ofthe Living Conditions ofSmail Wage Earners. Nova York: National Urban League,
maio ig27.
●ig. Katherine Davis, “Preventive and Reformatory Work", op. cit., pp. 205-6.
20. Quando liberadas de Bedford Hilis, as Jovens recebiam esses itens. Ver Twenty-Sixth
Annual Report ofthe State Commission ofPrisons, 12 mar. igai, p. 105.
2i. Ver Eugenia C. Lekkerkerker, Reformatories for Women in the United States (The
Hague: J. B. Wolters, -iggi, pp. 101-11); e Katherine Davis, “Salient Facts about the New
York State Reformatory for Women”, op. cit.
22. Annuai Report ofthe New York State Department ofEffíciency and Economy
Concerning Investigations ofAccounting, Administration and Construction of State
Hospitais for the insane, State Prisons and State Reformatory and Correctional
institutos, fev, 1,1915. Albânia, Nova York, 1915, p. 932.
23. W. E. B. Du Bois, “The Souls of Whlte Folks”. in: Darkwater, op. cit.
24. Patrícia Williams, “On Being the Object of Property”, Aichemy ofRace and Rights.
Cambridge, Massachusets: Harvard University Press, igga.
^25. Arquivo de Bedford Hilis #2504. Sobre negritude não binária, ver Toni Cade Bambara,
On the Issues of Roles”. In: Id. (Org.), The Black Woman: An Anthology [1970]. Nova York:
Washington Square Press, 2005, pp. 123-35.
26. Sobre crioula, ver Hilton Ais, The Women (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1996);
Huey Copeland, “In the Wake ofthe Negress”. In: Modern Women: Women Artists at
the Museum of Modern Art (Nova York: Museum of Modern Art, 2010, pp. 480-97).
Sobre a crioula, Copeland escreve: “Uma figura, tática, sqjeita, uma posição estrutural e
um meio de criação de padrões, a crioula se encontra na fronteira entre os discursos
hegemônicos e de resistência [...]. Compreender a crioula e conjurar sua existência é
quebrar com um limite, ó se aproximar insuportavelmente do mundo, é performar uma
alquimia que transmuta sqjeitos em objetos e vice-versa. Tais transformações sao
possibilitadas pelos fluxos de corpos que têm transformado as mulheres negras em uma
propriedade fungível, p. 484- Janell Hobson, Venus In the Dark: Blackness and Beauty In
Popular Culture (Nova York: Routiedge, 2005); T. Denean Sharpley-Whiting, Black Venus:
Sexualized Savages, Primai Fears, and Primitive Narrativos in French (Durham, Carolina
do Norte: Duke University Press, 1999, p. 56).
zrj. Carta de 7 de Julho de 1919, Arquivo de Bedford Hilis #2504.
28. Essa descrição das cartas de Aaron é baseada nas mais de sessenta cartas que ele
enviou às autoridades penitenciárias. Seu desejo por uma vida diferente e seu tom
desafiador e sem remorsos são evidenciados em todas as cartas.
29. “Carta de Eva para Aaron”, Arquivo de Bedford Hilis #2504.
30. Arquivo de Bedford Hilis #2504.
31. “Doctor Assails Stringing Up”, op. cit.
32. State Commission ofPrisons, “Investigation and Inquiry into Allegations of Cruelty”,
p.88.
33. Id. Ibid., p. 87-8.
34. Id. Ibid., p. 88.

404
35- De acordo com os repórteres,o alojamento “podia ser ouvido antes de ser visto”
Ver “GirI Chained,Bed to Crash If She Moved”,New York Tribune,13 dez.1919, p.22.
No ano seguinte,o Fiower Cottage se rebelou.Ver “Bedfòrd in Tumult under Ruie of Man”,
New York Times,24jul.1921.
36."Giris on ‘Noise’ Strike”, New York Times,25Jan.1920.“Vocal Hostilities of Bedfòrd GirI
Finally Halted”, New York Tribune,27Jan.Í920.
37.Carta de Aaron Perkins,Autos de Bedfòrd Mills #2504.
38.“GirI Chained,Bed to Crash If She Moved”,New York Tribune,i3 dez.Í919, p. 22.
“GirI Prisioners Mutiny”, New York Times,3Jan.1920.
39.“GirI Chained, Bed to Crash If She Moved”,ibid.
40.Eva não estava em Bedfòrd no mês de dezembro, mas em levantes anteriores. Em
Rebecca Hall, Michie incitou as outras Jovens à revolta. Eva voltou para Bedfòrd e estava
lá nos levantes posteriores. Eu condensei o tempo para posicionar essas histórias lado
a lado.
4i. Autos de Bedfòrd Mills,#2466;State Commission of Prisons,“Investigation and Inquiry
into Allegations of Cruelty", p.74;“GirI Chained, Bed to Crash if She Moved”,op.cit.
42.Autos de Bedfòrd Mills #2503.Em 1926, Loretta Michie foi presa em uma rua do
Harlem por carregar um revólver na bolsa. Ela não foi autorizada a voltar para Bedfòrd
por causa de seu envolvimento nos levantes. Ver Autos de Bedfòrd #4092,carta da
superintendente.
43.“Carta de Loretta Michie para uma ‘Amiga Devota’”,Autos de Bedfòrd Mills #2503.
44.Almena Dawley era a socióloga do Laboratório de Higiene Social; a síntese de suas
entrevistas aparece nos Autos de Bedfòrd Mills.
45.“StafP Meeting”, Autos de Bedfòrd Mills #2503.
46. Autos de Bedfòrd Mills,#2503.
47. Missiva para a namorada.Autos de Bedfòrd Mills,#2503.
48.Sobre a quebra de Janelas no passado,ver “Annual Report ofthe Nova York
Department of Efhciency and Economy”(Albânia, Nova York: Lyon Company Printers,
1915, p.932);“Window-Breaking Giris Handcuffed”, Washington Post,4jan.Í920.
49. Fred Moten,“Erotics of Fugitivity”, Stoien Life. Durham,Carolina do Norte: Duke
University Press,2018, p.266.
50.“Bedfòrd RIoters Keep Up DIn In Cells", New York Tribune,2SJul.1920.A pronta
solução proposta pela comissão penitenciária foi “classificar e segregar as diferentes
classes de prisioneiras”. Outros propuseram um retorno aos métodos severos de
contenção e punição que Já haviam sido condenados antes.
5i. Ritmos secundários e improvisação:Sobre o acaso e ritmos secundários,ver W.E. B.
Du Bois,“Sociology Hesitant”,op.cit.; e George Lewis,Oxford Handbook ofCriticai
improvisation Studies(Nova York:Oxford University Press,2017).
52. Charles A. Ford,“Homosexual Practices of Institutionalized Female”,Journal of
Abnormal Psychology,v.23, n.4,1929, p.444-
53. Frederick Douglass, Narrative ofthe Life ofFrederick Dougiass, an American Siave,
Written by H/mse/f[1845]. Nova York: New American Library,ig68[ed. bras.: Narrativa
da vida de Frederick Douglass, um escravo americano, narrada por ele mesmo.Trad.de
L. P. Vidal. São Paulo: Aetia Editorial,2018].
54. Carta de 4 de maio de 1919.Ver também de maio de 1919.
55. Fred Moten,“Upllft and Criminallty”,op.cit.

405
56.“Devirs Chorus Sung by Glrl Rioters”, New York Times,26jul.1920.
57.“GípIs on Noíse Stpike”, New York Times,25jan.*1920, p.19. Vep também “GípI Ppisioneps
Mutiny”.
58.“Devirs Chopus Sung by GípI Rioteps”, New York Times,26jul.-1920;“GípI Inmates
Attack Tpoops In New Ríots”,San Francisco Chronicie,26jul.-1920; e “How the State
Faíled In Its Cape ofthe Waywapd Women at Bedfopd",Brookiyn Daiiy Eagle,-i ago.1920.
59.A mãe de Eva descpeve seu pesadelo em uma capta papa a supepintendente da ppisão,
Apquivo de Bedfopd Hllls #2504.Sucessivas gepações se pepdepam no map: Mattie
Jackson,Autos de Bedfopd Mills #2466.

O SOCIALISTA DÁ UMA PALESTRA SOBRE AMOR LIVRE[PP. 305-1-1]

1. Esse esboço sobpe Hubept Happison se deve a Jeffpey Peppy, Hubert Harrison: The Voice
ofHarlem Radicalism (Nova Yopk: Columbía Univepsity Ppess,2010, p. 276); WInston James,
Holding Alofb the Banner ofEthiopia: Caribbean Radicalism in early Twentieth-Century
America(Nova Yopk:Vepso,1998, pp.129,320). Vep também Shelley Stpeeby,Radical
Sensations: World Movements. Violence and Visual Culture(Dupham,Capolina do Nopte:
Duke Univepsity Ppess,2013); Joyce Tupnep, Caribbean Crusaders and the Harlem
Renaissance(Upbana: Univepsity of Illinois Press,2005, p.53).
2. Esse esboço sobpe os encontpos e a vida epótica de Happison é baseado nas lembpanças
de seus amigos. Bpuce Nugent, GayRebel ofthe Harlem Renaissance:Selections from
the WorkofBruce Nugent(Dupham,Capolina do Nopte: Duke Univepsity Ppess,2002);
Claude McKay,“Haplem”.\n:ALong Wayfrom Home [1937]. New Bpunswick: Rutgeps
Univepsity Ppess,2007;e Gapy Holcomb,Code Name Sasha: Queer Black Marxism and
the Harlem Renaissance(Gainesville: Univepsity Press of Flopida,2009).
3.Sua sépie de discupsos Intitulada “Sex and Sex Ppoblems”[O sexo e os ppoblemas do
sexo]incluíam tópicos como “The Mechanics of Sex”[As mecânicas do sexo],“Analysis of
Sex [Análise do sexo],“Analysis ofthe Sex Impulse”[Análise do Impulso sexual]e “Sex and
Race [Sexo e paça]. Vep Jeffpey Peppy,Hubert Harrison,op.cit., p. 276;e Shelley Stpeeby,
Radical Sensations,op.cit., p.199.

u-ÍÍTi Veiled Garvey: The Life and Times ofAmy Jacques Garvey(Chapei
Hilh Univepsity of Nopth Capolina Press,2002); WInston James,Holding Aloft the Banner
ofEthiopia,op.cit., pp.129,320.

5. Vep Wmsto^ibid., pp.129,320.Vep também Shelley Stpeeby,Radicai Sensations,


op.cit. Ver Jeffpey Perry, Hubert Harrison,op.cit., pp.107-8,276,352-4. Happison mal
escapou de sep mencionado no ppocesso de divópcio de Amy Ashwood e Mapcus Gapvey.
Sobpe o divÓPcIo, vep Ula Taylop, Veiled Garvey,op. cit., pp.30,34.37-8.Sobpe Claude
McKay vep Gapy Edwapd Holcomb,Claude McKay,Code Name Sasha,op. cit.; BPent Hayes
Edwapds,“The Taste ofthe Apchive”, Calalloo, v. 35, n.4(outono,2012);e “Vagabond
Intepnationallsm: Claude McKay’s Banjo”. In: The Practice ofDiaspora:Literatura,
Translation and the Rise ofBlack Internationalism (Cambpidge, Massachusets: Hapvapd
Univepsity Ppess,2003).
6. Vep Bpuce Nugent,Gay Rebel ofthe Harlem Renaissance,op.cit., p.149.
7. Id. Ibid., p.149.

406
A BELEZA DO CORO[PP.313-59]

1.“Em várias entre as mais de quarenta revoltas raciais urbanas ocorridas no verão de
1919 — mais notavelmente em Washington e Chicago —,os residentes de vizinhanças
negras pegaram em armas.” Barbara Foley, Spectres of-ig-fg, op.cit., p.-13. Esse também
foi o caso da Revolta Racial da cidade de Nova York de igoo.
2.0 perfil de Mabel que segue é baseado em aproximadamente 33fitas cassetes que
constituem sua história oral(somando cerca de vinte e quatro horas de entrevistas).
Mabel Hampton Oral History Collection,Coleção Especial #7929,Lesbian Herstory
Archives,Brookiyn, NY). As entrevistas abordam uma ampla gama de idéias e experiências
desde atitudes sobre sexualidade,experiências lésbicas ao longo das décadas,a vida de
Mabel no teatro e sua infância até seu histórico profissional. Mabel era uma arquivista
e colecionava cartazes teatrais, álbuns de recortes e de fotografias,cartões-postais e
programas de musicais teatrais.Ver também Joan Nestie,“'I Lift My Eyes to the Hill’:The
Life of Mabel Hampton as Told by a White Woman”.In: Queer Ideas:The Kessien Lectures
in Lesbian and Gay Studies(Nova York; Feminist Press at the City University of Nova York,
2003, pp.23-48);Joan Nestie,“Excerptfrom the Oral History of Mabel Hampton",Signs:
Journal ofWomen in Culture and Society,verão,1993, pp.925"35I Joan Nestie,“The Bodies
I Have Llved With",Journal ofLesbian Studies,v.17, n.3-4,2013, pp.215-39; © o blog desse
mesmo autor,disponível em:http:/'joannestle2.blogspot.com/20ii/io/i-lift-my-eyes-to-
hill-life-of-mabel_3381.html. Nestie observou que a vida de Hampton “girou em torno de
dois temas principais — sua luta material pela sobrevivência e sua luta cultural pela beleza”.
Esse esforço de construir uma vida bela num contexto de privação material e de violência
de raça e sexo deu forma ao perfíl que fiz de Mabel.Além disso,tentei iluminar suas
aspirações enquanto artista e sua experiência de vida como uma pessoa negra não binária
e de gênero fluido. Mabel conheceu sua companheira de vida, Lillian Foster,em 1932. Elas
permaneceram juntas até 1978.
3. Gilbert Osofsky,Harlem,op.cit.; Marcy S.Sacks, Before Harlem:The Black Experience
In New York City before World War i (Filadélfia: University of Pennsylvania Press,2006);
David Hevering Lewis, When Harlem Was In Vogue,op. cit.; Cheryl Lynn Greenberg,Or
Does It Explode?: Black Harlem in the Great Depression(Nova York: Oxford University
Press,1997); dervis Anderson, This Was Harlem:A Cultural Portrait(Nova York: Farrar,
Straus & Giroux,1983); LaShawn Harris,Sex Workers,Psychics and Number Runners,
op.cit.
4.0 slow drag era “uma dança de casal em que homem e mulher pressionavam bem firme
os corpos em um bailado suave e sensual enquanto acompanhavam o ritmo da música”.
John O.Perpener in, African American Concert Dance:The Harlem Renaissance and
Beyond(Urbana: University of Illinois Press,2001, p.37). O slow drag era muito sexual e
muito definido pelo movimento pélvico e por uma sexualidade crua para ir além e se
tornar uma dança branca convencional. Era uma dança negra demais,dotada dos ritmos
sensuais e intensos do negro.
O turkeytrot era “uma marcha rápida de um só passo,os braços balançavam nas
laterais do corpo e às vezes se agitavam na intenção de imitar um peru enlouquecido”.
Marshall Stearns,Jazz Dance:the StoryofAmerican Vernacular Dance. Nova York:
Macmillan,1968, pp.95-6. As críticas de Harlem,de William Jourdan Rupp e Waliace
Thurman,se mostraram obcecadas com o slow drag representado na peça.Como a
crítica do New York Sun (1928)afirma: a peça é “um filme projetado em um cenário
da dança negra.Os dançarinos se movem com vigor e desembaraço,revelando a
simplicidade e a profunda carnaiidade de seu apego à vida [...]. Homens e mulheres

407
que dançam assim têm uma disposição para a violência”. Citado em John O.Perpener,
African American Concert Dance,op.cit.
5. Epíc Garber,“A Spectacle in Colop:The Lesbían and Gay Subcultupe of Jazz Age Haplem”
In: Maptin Dubepan, Maptha Vicinus e Geopge Chauncey(Opgs.), Hidden from History:
Reclaiming the Gay and Lesbian Past. IMova Yopk: Penguln,1930.
6. Kathepine Hazzapd Gopdon,Jookin’: The Rise ofSocial Dance Fonmations in African
American Cuiture. Filadélfia:Temple Univepsity Ppess,igga.Sobpe a dança social negpa,
vep Thomas DeFpantz,Dancing Many Drums:Excavations in African American Dance
(Madison: Univepsity of Wisconsln Ppess,aooi)e Lynne Fauley Emepy,Black Dance:From
●tSig to Today (Ppinceton, Nova Jepsey: Ppinceton Book Co., ig8g). Sobpe dançapinas de
linhas de copo, vep Jayna Bpown, Babylon Giris: Black Women PerfOrmers and the Shaping
ofthe Modern (Dupham, Capolina do Nopte: Duke Univepsity Press, 2008, pp. 189-237);
Daphne Bpooks, Bodies in Dissent (Dupham, Capolina do Nopte: Duke Univepsity Ppess,
2006, pp. 207-78).
7. Mabel Hampton, Fita 3i julho de 1986. Ela também gostava de dizep “acabap com a
minha vida” e “cuidap da minha vida”.
8. “Rent Papties Ape Menace”, New York Amsterdam News, 28 out. 1925. P. “i.
9. Mabel descpevia suas ppáticas sexuais e sua comunidade pelo uso dos tepmos “amantes
de mulhepes", “amantes de senhopas”, “sapatões”, “lésbicas de vepdade” e “bichas”.
10. Henpy Louis Gates, “The Black Man’s Bupden”, Fear ofa Queer Planet. Mineápolls:
Univepsity of Minnesota Ppess, 1993, p. 23.
11
. Investigatops’ Repopt, Committee of Foupteen Papeps, Caixa 38. MssCol 609, Rape Book
and Manuscpipts, Biblioteca Pública de Nova Yopk. Se o movimento fopnecia a iinguagem de
apticulação da libepdade, ensaiando-a, então o Comitê dos Catopze espepava peppiml-io e
fioptalecep e estendep a linha de cop apesap das ieis antidiscpiminação da cidade de Nova
Yopk e da falta de um apapato legal que Impusesse a segpegação.
12. Sobpe o “mesmo cambiante”, vep Lepoi Jones, Blues People: Negro Music in White
Amer/ca [1963]. Nova YopIc Happep Pepennial, 1999; James Snead, “Repetition as a Figupe
of Black Cultupe”. In: Henpy Louis Gates (Opg.), Black Literatura and Literary Theory, Nova
Yopk: Routiedge, 198^^
13. Chandiep Owen escpeveu sobpe os cabapés de Chicago, mas também tinha a cidade
de Nova Yopk em mente. Ele cpiticou explicita mente os membpos negpos do Comitê dos
Catopze, que incluíam Fped Moope do New York Age e o sucessop de BookepT. Washington.
Owen condenou os Ifdepes negpos poptepem entpado num acopdo de cavalheipos papa
assegupap que adotassem a segpegação nos cabapés. Esses senhopes se ofendiam ao vep
^ssoas bpancas e de cop bebepem e dançapem juntas. “O cabapé é uma instituição que
faz em muitas cidades o que a igpeja, a escola e a família não fizepam. O cabapé está
destpuindo o monstpo com cabeça de Hidpa do ppeconceito pacial.”Vep “The Cabapet
— A UsefuI Social Institution”, The Messenger, v. 4, ago. 1922, p. 461. Ao contpápio daqueles
como Hannah Apendt e outpos que temiam que o espetáculo da necessidade cpua
ameaçasse minap a pepúbllca e seus ideais, o socialista negpo antevia essa “luta pela
alegpla", a ânsia pelo sexo e pelo ppazep, como algo capaz de acabap com a linha de cop e
cpiap uma sociabilidade Intep-pacial que diminuipia a fopça da lei e dos costumes. Owen
defendeu o cabapé dessegpegado em um segundo ensaio publicado em fevepelpo de 1925.
“The Black and Tan Cabapet—Amèpica’s Most Democpatlc Institution”, The Messenger,
V. 7f fsv. 1925, pp. 97”9* No entanto, ele tinha pouco a dizep sobpe os expepimentos padicais
conduzidos em espaços exclusivamente negpos. Espaços de intimidade intpappacial
desafiavam a conscpição de uma cidadania de segunda classe e da sepvidão ao nutpip
todo o nosso papentesco — quep dizep, outPos appaqjos de intimidade, sociabilidade,

408
amor e afiliação. O que Owen se esforçou para articular no papel era encenado no
cabaré — os experimentos sociais encenados no espaço do cabaré, bem como em festas
privadas e salões.
14. Emma Goldman,“The Traffic in Women”,Anarchism and Other Essays. Nova York:
Mother Earth Publishing,1917, p.ig8.
i5. Observar Mabel, Mildred e outras garotas de cabelo chanel também o teria deixado
nervoso e desconfortável. Ele temia as “mulheres masculinas” e não imaginava que
transgredir distinções de gênero tivesse qualquer utilidade social, descartando,assim,
essas transgressões como rebelião.
16.“Investigative Report”,Committee of Fourteen Records, Manuscripts and Archives
Division, Biblioteca Pública de Nova York,Caixa 38.
i7. Jayna Brown,Babylon Giris Black Women Performers and the Shaping ofthe Modern
(Durham,Carolina do Norte: Duke University Press,2008); Daphne Brooks,Bodies in
Dissent:Spectacular Performances ofRace and Freedom (Durham,Carolina do Norte:
Duke University Press,2006).
i8. Hampton Collection, Fita xv, Lesbian Herstory Archives.
●tg. Paul Laurence Dunbar, Sport: ofthe Gods, op. cit., p. 162.
20. Havelock EIlis e John Addington Symond, Sexual Inversion. Londres: Wilson and
McMillan, 1897.
2i.Theodore Dreiser, Sister Carrie [igoo]. Nova York: Penguln Classics, -1994, p. 83.
22. Mabel descrevendo o ato do sexo oral. Hampton Collection, Fita x, Lesbian Herstory
Archives.
23. Mabel se lembrava vividamente da festa porque teve de tirar a roupa. “Não consigo
esquecer porque tive que tirar tudo. Então, é claro, eu não esquecería.” Ela estava usando
um vestido cinza e um casaco de pele branco. Fita xxi, -13 de janeiro de 1983.
24. Ver David Levering, Lewis, When Harlem Was in Vogue, op. cit., p. 166. Eric Garber,
“A Spectacle in Color”, Hidden from HIstory, op. cit. Lillian Faderman, Odd Giris and
Twilight Lovers, op. cit., p. 76.
25. Lewis Theophilus, “Theater”, The Messenger, v. 6, n. 2. fev. 1924.
26. Chicago Defender, 22 dez. 1923; Atlanta Constitution, 4 dez. 1924; New Journal and
Gulde, -1 mar. Í924; Chicago Defender, 29 mar. 1924-
27.18 de dezembro de -1988 (Fita I), Lesbian Herstory Archives.
28. Sobre racismo e a construção da homossexualidade: Estelle Freedman, “The Prison
Lesbian”, Feminist Studies, v. 22, n. 2, verão, -1996, p. 397"423! Regina KunzeI, Criminal
Intimacy: Prison and the Uneven History of Modern American Sexuality (Chicago:
University of Chicago Press, 2010); Síobhan Somerville, QueerIng the Color Une: Race
and the Invention of Homosexuaiity in American Culture (Durham, Carolina do Norte:
Duke University Press, 2000); Roderick Ferguson, Aberrat/ons in Black: TowardaQueer
of Color Critique (Mineápolis: University of Minnesota Press, 2003).
29. Special Collections Record, Lesbian Herstory Archives, Lista parcial dos livros de
Mabel Hampton, Caixa 405.
30. Mabel e Florence trabalharam juntas por um breve período no Lafayette Theater e,
segundo Mabel, tiveram uma intimidade casual. Fita 1,8 de abril de ig8g, Lesbian Herstory
Archives.
31. Wayne Koestenbaum, The Queerís Throat: Opera, Homosexuaiity and the Mystery
ofDesire. Nova York: Da Capo, 2001.
32. ismay nasceu em Lagos, Nigéria. Casou-se com um fotógrafo de Barbados, Raymond
Percival Talma, por voita de ^gs^. Provavelmente o casamento não durou muito, já que há

409
poucas menções ao seu marido.Ismay foi uma das mulheres casadas com quem Mabel
esteve envolvida. Ver Pittsburgh Courier,“Native African Woman Has Won Success in
Two American Careers”,ü abr.1931.
33. Langston Hughes descreveu Bentiey nesses termos.Ver Langston Hughes,Big Sea,
op.cit. Cari Van Vechten a adorava. Ela aparece em Parties[1930]. Avon Books,1977,
pp.34-5. Bentiey também aparece em Blair Niles,Stnange Brother [-193-1]. Nova York:
Heretic Books,iggi.
34.“Where Are the Chorus Girls ofYester-Year?” Baltimore Afro-American,6jul.1935.
35. Mabel Hampton,Fita I,i8 dejunho de 1982.
36. Em Black on Both Sides,C. Riley Snorton argumenta que a carne cativa “figura uma
genealogia crítica da transgeneridade moderna”e considera as formas pelas quais a
vida fungível do cativo perturba os gêneros e possibilita seu rearrar\jo. Ele também
escreve,ecoando Hortense Spillers, que “o gênero é em si um arranjo racial que expressa
a transubstanciação das coisas”(pp.57,83). Kara Keeling,“Looking for M:Queer
Temporality, Black Possibility and Poetry from the Future”, glq 15, n.4,2009, pp.556-82.
Zakiyyah Iman Jackson,“Theorizing in a Void’: Sublimity, Matter,and Physics in Black
Feminist Poetics”,South Atlantic Quarterly, v.117, n.3,Jul. 2018, pp.617-48.
37. Ella Baker e Marvel Cooke descrevem as trabalhadoras do sexo e as domésticas
aguardando trabalho em esquinas opostas. Ver “The Bronx Slave Market”, The Cnisis,
nov.1935* Antes de entrarem no mercado do sexo, a maioria das prostitutas tinha como
profissão o serviço doméstico. Ver George J. Kneeland, Commercialized Prostitution
in New York City,op.cit. Ver especialmente o relatório de Katherine Davis sobre as
mulheres em Bedford Hllls,“Salíent Facts about the New York State Reformatory for
Women,Bedford Hilis, Nova York”.
38.A maioria daquelas que haviam sido presas por prostituição tinha trabalhado como
doméstica e,depois de cumprir pena, muitas vezes vivia em liberdade condicional como
empregada e não tinha outra escolha se não voltar a realizar esse tipo de serviço. Ver
George d. Kneeland, Commercialized Prostitution in New York City,op.cit. e Cynthia
M. Blair, /Ve Gofr to Make My LIvin’, op.cit.
39. Harlem Biues: wpa. Negrões in Nova York,coletados por Lawrence Gellert em “Blues
Songs”,Schomburg Library, Biblioteca Pública de Nova York.
.40. Ella Baker e Marvel Cooke,“The Bronx Slave Market”, The Crisis, nov.1935.
41. Ella Baker e Marvel Cooke,“The Bronx Slave Market”,Crisis, nov.1935; Marvel Cooke,
The Bronx Slave Market”,New York Sunday Compass Magazine, partes 1 e 11,8 Jan.1950;
Louise Mitchell, Slave Markets TypHy Exploitation of Domestics”, The Daily Worker,5
maio 1940(reimpr.em Gerder Lerner’s Black Women in White America, p.231); Vivian
Morris,“Bronx Slave Market”, wpa Harlem Interviews,Schomburg Center for Research
on Black Culture; Dayo Gore,Radicalism at the Crossroads:African American Women
Activists and the Coid War(Nova York: New York University Press,2012);e LaShawn
Harris,Sex Workers,Psychics, and Number Runners,op.cit; e “Running wíth the Reds:
African American Women and the Communist Party during the Depression”,Journal
ofAfrican American History, v.94, n.1,inverno,2009,PP.21-43.

O CORO ABRE CAMINHO[PP. 361-5]

1. Ver W.E. B. Du Bois,“The Sorrow Songs”. In: The Souls ofBlack Foik [ed. bras.: As almas
do povo negro,op.cit.] e Dusk ofDawn.

410
op.cit.
2.Vep Jennifep Mopgan,Laboring Women:Reproduction and Genden in New World
Slavery(Filadélfia: Univepsity of Pennsylvania Ppess,2004); Daina Beppy, Their Pound of
Flesh (Boston: Beacon Ppess,2017);e Dopothy Robepts,Killing the Black Body(Nova Yopk:
Vintage,1998).
3.Vep John Gould,“Tpagedy and Collective Expepíence”. In: M.S.Sllk (Opg.), Tragedyand
the Tnagic. Nova Yopk: Oxfopd Univepsity Ppess,í996, pp.217-36; Page Du Bois,“Toppilng
the Hepo: Polyphony In the Tpaglc City” e David Scott,“Tpagedy’s Time: Post-Emancipation
Futupes". In: Rita Felsl(Opg.), Rethinking Tragedy(Baltimope, Mapyland:Johns Hopkins
Univepsity Ppess,2008); David Scott,Conscripts ofModernity:The Tragedy ofColonial
Enlightenment(Dupham,Capolina do Nopte: Duke Univepsity Ppess,2004);Jepemy Glick,
“Bpinging in the Chopus:The Haitian Revolution Plays of C.L R. James and Édouapd
Glissant”. In: The Black Radical Tragic:Performance,Aesthetics,and the Unfínished
Haitian Revolution(Nova Yopk: New Yopk Univepsity Ppess,2016).
4.Sobpe os expepimentos padicais conduzidos pelo copo e pela multidão hetepogênea,
vep Laupa Happis,“What Happened to the Motiey Cpew? C.L R.James,Hélio Oiticica,and
the Aesthetic Sociality of Blackness”,Social Text,v. 30, n. 3,2012, pp.49-71;e Fped Moten,
“Entanglement & ViPtuosity” e “Not in Between".In: Black & Blur,op.cit.
5. Entpevista com Ella Bakep.Vep Ellen Cantapow,Moving the Mountain; Women Work
for Social Change(Nova Yopk: Feminist Ppess,1980, p.93); Bapbapa Ransby,Ella Baker and
the Black Freedom Movement(Chapei HilI: Univepsity of Nopth Capolina Ppess,2005).
Papa uma cpítica do modelo de lidepança política, vep Epica Edwapds, Charisma and the
Fictions ofBlack Political Leadership(Mineápolis: Univepsity of Minnesota,2012); Cedpic
Robinson, Terms ofOrder:Political Science and the Myth ofLeadership(Chapei HilI:
Univepsity of Nopth Capolina Ppess,2016); Cathy Cohen,The Boundaries ofBlackness:
AIDS and the Breakdown ofBlack Politics(Chicago: Univepsity of Chicago Ppess,iggg).

411
Créditos das imagens

p.22 Helen C.Jenks, Mulheres se apressando pela viela, Lombard Street,c.1900-


“1905.Special Collections Research Center,Temple University Llbrarles, Filadélfia,
Pensilvânia.
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Research Center,Temple University Llbrarles, Filadélfia, Pensilvânia.
p.27 Lombard Street 731, vida no porão. Special Collections Research Center,Temple
University Llbrarles, Filadélfia, Pensilvânia.
p.32 Black Nude,Jason Beaupre Photography.
p- 36 O anatomista posa com duas meninas negras antes de tirar suas roupas. Ele
Justificará tudo o que vai acontecer em nome da ciência. Herman M.Bernelot Moens
com duas meninas estadunidenses,originalmente publicado em The Medicai Review
ofReviews,dez.1919, p.720. Reimpresso em Id. Towards Perfect Man:Contributions
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P* 38 Thomas E.Askew,Menina afro-estadunidense,retrato de meio corpo,com a mão
direita na bochecha e livro Ilustrado em cima da mesa,c.igoo.Álbuns de fotografias
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Impressão em albumina.3,65 cm x 6,19 cm.Coleção n.: 1985.68.2.565. Cortesia da
Pennsylyania Academy ofthe Fine Arts, Filadélfia. Charles Bregler’s Thomas Eakins
Collection,adquirida com o apoio parcial do Pew Memorial Trust(Pennsylvania
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necessidade de conquista. Entrada de diário de Helen Parrish. Special Collections
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desenhadas de modo a negar sua humanidade,corpos sem rosto arrastados pela
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413
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p.203 Sem título. Cortesia de Olympia Vernon e Marshall Smith III.
p.206 Sterling Paige, Retrato de Gladys Bentiey no Ubangi Club, c. -tgso. Cortesia de
Visual Studies Workshop, Rochester, Nova York.
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POR SEUS AMIGOS NEGROS, New York Amsterdam News,22jun.1940. Cortesia de New
York Amsterdam News.Imagens reproduzidas com permissão de ProQuest LLC.
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preconceito racial é resultado da ignorância e a mãe do linchamento,28jul.1917.
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presidiários Westfield State Farm (Anteriormente Reformatório de mulheres de
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p.276 Fotografia de Hannah Davies. New York State Archives. Arquivo de presidiários
Westfield State Farm (Anteriormente Reformatório de mulheres de Bedford Mills).
Série 14610-77B,caso #3499- Cortesia de New York State Archives.
p.280 Alice Kent. New York State Archives. Arquivo de presidiários Westfield State Farm
(Anteriormente Reformatório de mulheres de Bedford Mills). Série 14610-77B,caso
#4501. Cortesia de New York State Archives.

414
p.s86 Casal na nua vestido pana o baile. Bettman Collection, Getty Images.
p.288 Canta de Anon Penkins(Kid Chocolate), yjui -tgig. New York State Archives.Arquivo
de presidiários Westfíeld State Farm (Anteriormente Reformatório de mulheres de
Bedford Mills), Série 14610-77B,caso #2504,Cortesia de New York State Archives.
p.290 James Van Der Zee,Kid Chocolate em uma loja de sapatos,c.1929. Cortesia de
Donna VanDerZee e Studio Museum,Harlem © James Van Der Zee Archive /The
Metropolitan Museum of Art.
p.zgg Alexandria, Vingínia, intenion de uma prisão de escnavizados, anos -i86o. Library of
Congress,Prints and Photographs Division.
p.298 Cantora “difícil”demais,Baltimone Afíx>-American,aSjun.-1926.
pp.306-7 “Baile de Fantasia"no Websten Hali, anos igso.Alexander Alland Sr. Collection,
Wikimedia Commons.
p.309 “Josephine Bakens”de Chicago convensa alegnemente antes de desfile de moda,
Ebony Magazine, mar.-1952.Todos os esforços foram feitos para encontrarmos os
detentores dos direitos das imagens publicadas nesse livro,o que não foi possível
neste caso. Estamos dispostos a incluir os créditos faltantes assim que houver
manifestação,
p.3i2 Duas muihenes se abnaçando.Schiesinger Library, Radcliffe Institute, Harvard
University. Reprodução autorizada por Charlotte Sheedy Literary Agency,Inc.em
nome da Pauli Murray Foundation,
p.320 Cartão de prisão de Mabel Hampton,nua -tsg,405 oeste.Série V,caixa 70.
Committee of Fourteen records (-1905-1932), New York Public Library.
p.322 Mabel e outnas dançarinas em um telhado do Haniem. Cortesia de Lesbian
Herstory Archives, Mabel Hampton Collection.
p.328 Gwendiyn Gnaham,gnande dançarina de chanieston,com o coro do espetáculo
Blackbirds em seu pnimeino ensaio no telhado do London Pavilion,1928. General
Photographic Agency,Getty Images.
p.330 Amigas de Mabel na pnaia. Cortesia de Lesbian Herstory Archives, Mabel Hampton
Collection.
p.341 Anúncio de Come Along, Mandy no Lafayette Theaten, Chicago Defenden,22 dez.
1923. P-17.
p.342 Flonence Mills em Plantation Revue. Mander & Mitchenson/University of Bristol/
ArenaPAL.
p.345 Ann Tnevon como Gisele e Helen Menken como Inene (sentada),1926. Bllly Rose
Theater Division, New York Public Library.
p.348 Cantona ganha pnêmio de $10 mil, recorte dejornal(Marian Anderson),do álbum de
recortes de Mabel Hampton.Cortesia de Lesbian Herstory Archives, Mabel Hampton
Collection.
p.350IsmayAndnews com ukulele. Cortesia de Lesbian Herstory Archives, Mabel Hampton
Collection.
p.354 Mabel Hampton de camiseta llstnada. Cortesia de Lesbian Herstory Archives,
Mabel Hampton Collection.
p.357 Retrato de Mabel Hampton com as mãos nos bolsos. Cortesia de Lesbian Herstory
Archives, Mabel Hampton Collection.
p.360 Jovens dançando chanieston no Haniem,anos igso. NY Daily News Archive e Getty
Images.
p.365 Lukas Felzmann,Enxame,n.92-23, p. 20,2011. Cortesia do artista.

415
índice remissívo

As entradas que fazem referência à anarquismo,12,24,30,80,104-6,243-51,


página 369 e subsequentes se referem 279; da subsistência,37; livre
às notas. associação,263; pensamento em
ação e,79; recusa ao trabaiho,388
abolição: abolicionistas brancos,127, anarquistas,13,30,54,143,234,311,315
142,264;cartas de Aaron Perkins, Anderson, Marian,347
286;como filosofia do círculo,301-2; Andrews,Ismay,306,349-51,410
democracia e,6g Angio Saxon Reaity,188
abolição da propriedade privada,349 antinegro, racismo,51,188,252,258,370
Abrigo para Órfãos de Cor,33 Appeal(publicação),59
abuso: de prisioneiras,90-3; marital,145, Armstrong,general,68
164,213,219; sexual,47-8,60,217-8, Ashwood,Amy,308
326,351 Asilo das Madalenas,34,89,148
Academia de Música,153 Askew,Thomas,37
Addams,Jane,135; mulheres negras assembléia,249,262,263,300,361
Associação Nacional das Mulheres de
e falta de controle social, 234
Cor,15
adultério,110,115
Aeolian Hali,347 Associação Nacional para o Progresso das
Pessoas de Cor(naacp),17-8,264,387
Afro-American (periódico),232,270,342,
353 Atlanta Constitution,343
Atlanta, Geórgia,126
ajuda mútua,39,108,198,242-3,246,
autodefesa,61
302,364
autonomia,49,81,239,244,287
Ajuda mútua (Kropotkin),246
alemães,107,123,141
bairros pobres: beleza dos,23-8;como
Alemanha, Leis de Nuremberg na,51
aparato sensorial,24-8;como sintoma
Alhambra Theatre,317,351 de problemas sociais maiores,112;
amantes sucessivos,236
fotografias de,37-44; limpeza dos,39;
Amigos do Comitê Anual para Assuntos ver também gueto
Indígenas,142 Baker, Ella,18,246,356
amor livre,77,108,111,300,305 Baker, sra.(Lavinia),61
Amsterdam News,232,259,271,351 Baldwin,James,378 I

416
Baltimore, Maryland,132 Bnady,detetive,252-3
barracão,246,291,364 Brattie Street,127
Bartell, George,176,181 Breckinridge, Sophronisba,395
barulho,26,168,196; belo,247; desordeiro, Broadway negra,316
263; greve,294,300-3; negro,299-303 “Bronx Slave Market,The”(Baker and
batida policial surpresa,266-7; Billie Cooke),246
Holiday presa em,305 Brookiyn, Nova York,302
batidas policiais, 252,274 Brooks,William,-182,-187
Bayonne, Nova Jersey,74 Brown, Esther,18,271,307,308,398;
Bedford Mills (reformatório feminino),14, anarquia de,243-4,246; bebê de,247;
279-303; abusos,279,293; alojamentos carta da namorada,261-2,307; carta
(Flower,294,296; Gibbons,294,296; do ex-marido,259,261;confínamento
Harriman,294,296; Lowell,14,284, no Emplre Friendiy Shelter,253,255;
294,298,300-3;Sanford,294,296); ódio ao trabalho,247-8; prisão de,
amizades inter-raciais,282,403; 252-3; propensão a acabar com tudo,
condicional,282-3,403; Mattie em, 243,250,271,299; reação da família à
89-92,375; mulheres negras rotuladas prisão de,259,261;sonhos de,250-1;
como “mente fraca",282; número de trabalho servil, 247-8
detentas,279; Prédio Disciplinar,91, Brown,Jane,58
93> 279i 281,285,297; prostituição Brown, Maude,335
em,397; Rebecca Hall, 279,281,285, Brown, Mildrey,61
294,297-8,405; resistência das Burns,sra.,82
prisioneiras,279-80; revolta,14,281, Bush, Aurelia: espalha rumores sobre
298,294-7,299-303,405;testemunhos Mattie,89; roupas de baixo furtadas,
para a Comissão Penitenciária 87-90
Estadual sobre as atrocidades em,
279i 293-4,296;tortura e punição,279, cabarés,208-15,238,263,318-22,336,
281;trabalho doméstico,283; unidade 408;como instituição democrática,
psicopatolÓ9Íca,403 323; desafio às leis Jim Crow,323-4;
Bentiey, Gladys,17,207-15,212,336,352-3, vigilância policial nos,321-2
389; amizade com Mabel,336,352-3; Cabaret as a Usefül Social Institution, The
esposas,390 (Owen),323,324
Berkman,Alexander,30 Camden, Nova Jersey,141
Berlim,136 Campbell, Grace,18,261
Bermudas,85,92-3 capitalismo,264,364;senhorios e,265,
Berry, Eunice,149-51; James baleado e, 267,399
168; preocupações com Mamie,161 Carmen (ópera),348
Berry, Nettie,269-70 Carnegie Hall,317,347
Black Swan Records,269 Carolina do Norte,103,285
Blackbinds of1926,346,358 Carter, Ruth,279
Blackstone, William,257 Casa de Misericórdia,8g
Blackweirs Island (asilo),238 casamento,235; alternativas ao,108,120,
blues,349,356 129; dificuldades do,171-2; em série,
“blues do reformatório. O”,301 108,160-1,198; monogamia,235,305-7;
boêmios,224,233-^^,336 no estudo de Du Bois,119-20,129
Bogan, Lucille, 311 Catacumbas,179,183
Bolden, Buddy,301 Catto, Octavíus,104
Booth, Charles,128 cerco:colaboração no,300; dança no,
botequins dessegregados,263 364; luta contra o,44,246,250,376;

417
racial,-13,44,53,77,107,íü,188,aio, Comitê para o Estudo de Variantes
241.378,393 Sexuais,391
Charles, Robert,61,183,187,385 Commentaries on the Law ofEngland
Cherry Lane Theatre,317 (Blackstone),257
Chester,Pensílvânía,-i4-i,145 Companhia Nacional de Ópera Negra,349
Chicago Defender,232,259,343,346,351 Condenados da terra, Os(Fanon),379
Chicago Tribune,374 conduta desordeira ou indisciplinada,
Chicago,Illinois,78,127,158 29,54.80,183,236,239,263-4,267;
Chicago, Universidade de,-128 barulho e,263;casas tachadas como,
Chinatown,279 114; de mulheres,54,246; de pessoas,
Chopin, Frédéric,347 236,267; negritude como,239,263;
Cidade do Refúgio,50 sociabilidade inter-racial como,264
cidades nortistas, perigos das,68 Coney Island,43,50,53,74,328-9,335
cinema,128,171-2,210,212-3,384,389; Conquista do pão,A,30
fatos,209,389;filmes,49-50,73,128, Conselho Estadual de Carídades,263
209,253; negro,210; pré-história,128 Cooke, Marvel,18,246,356
Cinturão Negro,49,101,317; alcance do, coreografia: como corpos em movimento,
194; beleza do,197;como a Pequena 322; como elaboração do possível,248;
África,50,107,158,191,195-6;como como fuga,125;como movimento de
interzona,195;como um espaço liberdade,210,212,315
cercado,42,188,194,242,321;como coristas, linha de coro,209-10,213,221,
uma Meca,50; descrito como bairro 340,343
negro,40; mudança revolucionária no, COTO,35,50,246,249,361-5; dança em um
232; populações do,103;transformado espaço cercado,364; protesto sonoro
em arte,209 do,294,299-303
Ciam House,49,79,319,352 Corpo e aima (filme),171,172,384
clamores negros,247,300-3 cortiços,79,117,233
Ciansman, The[O homem do clã](Dixon), costa de Jersey,50
346 “Crazy Blues”(canção),336
Clark, Rebecca,145,151 criminalização e criminalidade,42,124-5,
Clayton, Katy,16,139-40,i45-5-i. -158,169, 266-7; dejovens e mulheres negras,
384; policiamento de,147-8,150 29.40,48,234.267.399.4-'o; de modos
Clayton,Velha (avó de Katy),16,145-6,151 de vida, 251-2; delito de status,258;
Clough,Inez,327 delitos futuros,236-8,255,258,397;
Club Alabam'Orchestra,320 disparidade racial de,235,256,
Clube Socialista, p/|/i 258; estatutos de vadiagem como
Cobb,srta. Helen,92-3,281,283,293-4, instrumentos de,256-7,266; leis
2g6-7,301; cartas de Aaron,286-7 aplicadas às menores infratoras
Código de Processo Penal,236,266 como instrumentos de,234,236-9;
Códigos Negros,256-7 Tenement House Law como
College Settlement Association,15,142 instrumento de,256,264
College Settlement House,102,106 crise de 1929,49,359
Columbia, Carolina do Sul,61 Crisis, The: A Record ofthe Darker Races,
Come Along, Mandy,340-4,346,352 B-iB. 346,374,378
Comissão Penitenciária Estadual,263,279, Crosswaith, Frank,349
293.296 Crummell,Alexander,134
Comitê de Atividades Antiamericanas da Cuba,84
Câmara (huac),214
“Comitê de Salvação do Harlem",188 danças: biack bottom,210,281;
Comitê dos Catorze,263,266,399,408 charleston,342; fíjnky butt,75,210;

418
shimmy,210,281,322; slow dnag,75, pelos residentes do distrito,tzz;
318,324,407; tunkey trot,210,319,407 moças da vitrine e,99-101,134-5.“«S?;
Daniels, Jimmy,225 morte do filho,126; no Marshall Hotel,
Dark Tower,338 201,264; patrocinadores de,378;
Davis, Katherine,15,126,282-3,397,403, pesquisa sobre o Sétimo Distrito
410 (Fiiadéifia),99-101,106-7,109-11,
Dawson, Henrietta,401 116-32,137; pobreza,122-3,129-30;
Dawson,William,347 prostitutas em,120,129,130; questões
Décima Quarta Emenda,104 maritais em,119-20,129; reminiscente
Décima Quinta Emenda,104 da plantation,108;sexo com Nina,136;
delito futuro,258 sobre “brancos com sangue negro”,
Denby, Bella,16,145-7.149.151.157.166 316;sobre “pobres decentes",382;
sobre abusos sexuais na escravidão,
Denby,Ike,16,145-6,166
116,136; sobre empenho,37;sobre
desapropriação,13,77,310
homens vivendo à custa das mulheres,
Detroit, Michigan,126,188
198; sobre liderança da raça,382;
Deus e o Estado,30
sobre moral sexual dos ne9ros,108,
diaristas,101,112,233,358
111,234,380,382;sobre o bairro pobre
D/do e Eneias(ópera),348
e o gueto,107,112;sobre proporções
dívida: aluguel como,146;escravidão por
desiguais de gênero,108-g,114;sobre
dívida,64,104; movimento contra,125,
prostituição,111,114.132.137.198;
252; negritude endividada,140,201
sobre revoiução da vida íntima negra,
Dixon,Thomas,346
108-11;solidão em Harvard,127
Douglass, Frederick,42,218,373 Dunbar,Paul Laurence,30,73; residência
Dowell,família,116 no Marshall Hotel,263-4; sobre a
Dowell,Josie,132,134 multidão negra como ameaça,30;
Dowell,sr.,133 sobre migrantes negros intoxicados
Dowell, sra.,133,136 pela cidade,73;sobre o levante no
Draft Riots,187 Tenderloin de Nova York,188-9;
Drummond,Amanda,344 The Sporü ofthe Gods[O esporte
Du Bois, Adeibert,121 dos deuses],73,375,384,409
Du Bois, Alfred,120 Dunn, Blanche,225
Du Bois, Nina,106,126
Du Bois, W.E. B.,15,17;835 horas de Eakins,sr.(Thomas),34; nu fotográfico de
entrevistas,116,380; abandono da menina afro-estadunidense,44-50
família pelo pai,120; amor livre e, Eakins, Susan,45
111; aparência elegante de,101; East Side,400
aristocracia da raça,37; Black Eaton, Isabel,126
Reconstruction,125,381; casamento Edmond’s Cellar,49,247,318,324
com Nina,106,126,136; casos EIlis, Havelock,331,344
extraconjugais de,201;como Emancipação,103,108,159,256-7,315
professor em Wilberforce,106,136; Empire Friendiy Shelter,253,255
condenação do amor ao excesso por, Encyclopedia ofOpera, The,347
134; crime em,124-5,129,381; crítica “End to the Neglect ofthe Problems of
à filantropia,378;“Damnation of the Negro Woman,An"(Jones),246
Women”(ensaio),115; degradação do Enoch,John,177
serviço doméstico,217-8; desemprego, Enoch, May,16,175-7.186,385; abusada
107,119; divisor de águas sexual,132-4, por Thorpe,177-8,180-1; agarrada
136; esforço e decepção,122-3; por um branco,179; aprisionada
gráficos e quadros em,128; humilhado nas Catacumbas,179,183; caluniada

419
como prostituta,179-80;se fingindo Fox, Hannah,16,140-1; antecedentes
de esposa,180;siienciada pela Liga familiares de,142-3; influenciada por
Protetora dos Cidadãos,182 Octavia HilI, 383: relacionamento com
era progressista,51 Helen Parrish,140,142
escravidão,6g,85; acumulação e, Fnee Speech, The Oornal),60
258: continuidade entre trabalho fuga da subsistência,37
doméstico e,395; Du Bois sobre o fugitivos,fugitividade,38-9,241,257;
legado da,372;fuga da,125; gênero em fuga,275,284,294;fuga da
sob a,198,202;imagens persistentes subsistência,37,251,322; movimento,
da,45; legado da,51; mácula da,64, 66,159
136; maternidade e,ig8,200; não fi/nfcybufrt,75,210
declarada,126; partus sequitur
ventrum,217; por dívida,104; revolta Gallagher,Irmãos,151,384
contra,244;sobrevida da,48,ig8,218, Gallagher, Jim,147
271.373; vida fungível e,111,246,404; Gallen (porteiro),147,158,160,384
violência sexual sob a,115,217 Garden of Joy,79,311,317,319,336,353
estéticas,13,26,39,54,78,134,250, Garvey, Marcus,308
300-1,345 Gay,Jan,39i
estupro e violência sexual,51,64,125-6, gênero:enquanto categoria racializada,
363;fuga de,125 58,198-200,410; não generificação,
58-9,200; normas e desvio sexual,71,
Fagan, Eleanora (Blilie Holiday),17,237-8, 196,198,200,214,235,324,339;partus
267,269,305 sequitur ventrum,217; proporções,
Fanon, Frantz,379 108,171;transitivo, 37,212-3,224,258,
Filadélfia, Pensilvânia,158; Cinturão Negro 335:tributação sobre o trabalho das
de,50,53; direitos de voto na,104; mulheres negras,199; violência e a
experimento da democracia racial linha de cor,60,71
na,103-4; grande população negra Gibbons Cottage,294,296
da,103-4,129; migrantes negros Gibbs, Maizie,157-8
para,103,106,112,126; pobreza da Gil Ball’s, bar,153
população negra na,147; policiais Gilman, Charlotte Perkins,109
negros contratados pelo prefeito,113; Gloucester, Virgínia,64
revolução da vida íntima negra na,78, Goldman,Emma,30,243,311,323
1Ó8;trabalhadores negros na,119 Grant, George,167-9
Filipinas,84 Greenwich Village, 221,314
FIsher, Fanny,16,139-41,145-6,149,151, greve: Black Reconstruction,125-6,381,
157; bebedeira de,139,147; disputa 396; como um grande experimento
de Parrish com,139-41,145,383 humano,126,381; geral,66,125-6,246,
Fisher, sr.(marido de Fanny),16,139,151 B-ig. 381
Fitzgerald, F. Scott,79 Grundrisse(Marx),244,395
Flower Cottage(alojamento),294,296,405 Guerra Civil, eua,69;fuga da escravidão
força policial, 263,271,364 durante,125; greve geral e,66,125-6,
Foster, Lillian,407 246,giSi 381
fotografia,37,43; coerção de negros Guerra Hispano-Americana,69,194,374
pobres por visibilidade,40;de mães, gueto,23-4,364,393; alcance da
38-g;imagens ausentes do arquivo,41; plantation no,48;cercados no,322-4;
legendas de,40; mulheres jovens e,39; como uma prisão a céu aberto,107,
nus,44-50,54; retratos da reforma e 373;formação do,267; nascimento do,
pesquisas sociológicas,39 40,111

420
Haines, Ida,147,150,-157 Henderson,sra.,156,166
Haiti,84 Henderson’s Music Hall,317
Hall, RadclyfFe,79,224,346 Henry, George W.,391
Hamer,Annie,183 heterossexualidade,213,235;como
Hamilton Lodge Bali, 225,3-n compulsória,344,392;trama coqjugal,
Hampton Institute,68 iog,143,171,213,315
Hampton, Mabel,17-8,306,3-'3-58,409; Hewitt, Mãe,141,155
amizade com um “grupo seieto”,336; HilI, Octavia,383
apresentações na rua na infância,314; Hoffman, Frederick L.,128,382
assédio sexual de,326; carreira de Holiday, Billie (Eleanora Fagan),17,237-8,
corista; dança e canto como uma rota 267,269,305
de fuga,3-14; em Blackbirds of-*926, Hollywood Hotel,49
346,358;em ComeAlong, Mandy, Holt, Nora,338
340-4,346,352;em Coney Island,3-14-5. homossexualidade ver queer
3Í7-8; no Garden of Joy,336;dança no Hose,Sam,126,186
cabaré de,318-21,323; desejo de Hudson,Charlie, romance com Harriet
liberdade,315; encontra uma nova Powell,232-3
famfiia em üersey City,331; identidade Hughes, Langston,352
sapatão,353; Ismay Andrews e,349-si; Hughson’s Tavern,262
lê sobre violência contra mulheres
negras,351,354; morte da mãe,325-6; “I Am a Woman Again”(Bentiey),389-90
na casa de A*lelia Walker,337-40; Igreja Metodista Episcopal Africana
primeiro amor (Gladys, dançarina), Bethel,103
328-30,332,334; Ruth e,335-6; imigrantes chineses,74;em bares
sequestrada numa rua do Harlem,355 dessegregados,263
Harlem,53,74,221,248,279,285,302,400; Inquírer,107
aluguéis altos no,289; apartamentos insensibilidade estética,135
abarrotados no,252; batidas policiais “Insistence upon Real Grievances the Only
no,252; crescimento do,187-8,316; Course ofthe Race"(Harrison),310
festas privadas no,324; garotas intimidade: inter-racial,40,74,193,264,
tempestuosas no,233; oficiais da 294.324,335; monstruosa,69,217,391;
polícia de costumes no,255; quadras revolução da vida íntima negra,37,
de cortiços no,316; revoltas raciais 78-9,108-11
no,188
Harriman Cottage,294,296 dackson,Carter,89-90; ambições não
Harris, Arthur (Kid),16,175,182,385; realizadas,85-6; desaparecimento de,
briga com Thorpe,178-9,181;como 87; Mattie e,83-7
fugitivo,183; mudança para Nova York dackson, Chester,87,89,93
com May,177; no panfleto da Liga dackson, Kate,183-4
Protetora dos Cidadãos,182 dackson, Mattie(nascida Nelson),15;
Harrison, Charles,106 acusada de roubar as roupas de
Harrison, Hubert,18,243,305-11,349; baixo de Aurelia Bush,87-9; aparência
como o Sócrates Negro,310; crítica graciosa de,72,78; aspirações de,
a Booker T. Washington,310; discurso 79.82-3;cartas confiscadas,91,
sobre monogamia,305-6;tendências 93-4; Carter dackson e,83-7,89;
sexuais de,308-10,406 chegada em Nova York,66-8,70-1;
Hawkins, Herman,82-3,87,90,93; Mattie Chester dackson e,87,89;companhia
e,74-7.79-8a,83 de italianos,88,90; emprego em
Henderson, Fletcher,269,320 uma lavanderia chinesa,74; Herman

421
Hawkíns e,74-7,79-82,83; nascimento Leis de Nuremberg,51
da fílha natimopta,82; nascimento do Lenox Avenue,244,273,306,315-6,349,
filho,86-7; nascimento em contexto 355
histórico,6g; nota sociológica sobre, Lewis, Rosa,184
89; primeira aventura,63-6,373; Lewis,Theophilus,341
sentenciada a Bedford Hilis,8g; liberdade:como crime para negros,
torturada no reformatório,90-3 250,257,271;conhecimento de,250,
Jackson,Scotty,87,8g,93 276,287,361; de associação,263;
Jamaica, bairro,196-7 expectativa de,31,44,65,78,159,
Jamestown,Virgínia,112 ●●98,231-2,2ÜK3-6; experimentos
Jefferson Medicai College,45 com, 13,24,37,101,112,125,243.250,
Jersey City, Nova Jersey,313-4 276; intoxicação com, 28,73,105;
dim Crow,leis, 40,275,310,323; vagões relação com a escravidão, 47,187,287;
segregados sob,58 sentimento de, 84,1o^^ 223,250; sexual,
Johnson, Florence,267 40,80,101,111,176,239,269,307,311
Johnson,James R,340 Liberty Hall, 316
Johnson, Lavinie,185 Life and Laboun ofthe People in London
Johnson,oficial, 233 (Booth), 128
Jones,Annie,175 Liga Nacional para a Proteção das
Jones, Claudia,246 Mulheres de Cor, 15
Jones, Etta,131 Liga Protetora dos Cidadãos, 182,187
Jones, Lucy,185 linchamentos, 51,64; de mulheres negras,
Josephine,252-3 59i 61,354; em Atlanta, 126,186; em
Joyce,sra.,155-6,168 Chio, 113; em Richmond, 59; epidemia
Jungle Alley, 212,311 de estupros e, 126; estatísticas de,
374; fuga de, 125; Ida B. Wells sobre a
Kater Street, 112 “lei” de, 60
Kellor, Francês, 234,393 linha de cor, 29,40,105,122,130,244;
Kid Chocolate ver Perkins, Aaron extensão e endurecimento da, 40,83,
Kid Happy ver Perkins, Aaron 107,188,196,231,263,313; fuga da, 65,
Kramer, Stella, 279 275.3-15; recusa da, 210,238,307,323;
Krause, 252-5,259 relações além da, 39,74,92,195,238,
Kress Five and Dime, loja, 311 263-4,324
Kropotkin, Piotr, 246 Lombard Street, 24,33,112
Londres, 127
Laboratório de Higiene Social, 375 Lowell Cottage, 14,284,294,298,300-3
Lacewell, Nancy, 401 Lower East Side, 279
Lafayette Players, 223 Luiu Belle (peça), 223
Lafayette Theater, 33-4,317,327
Lane, Ryan, 282 Mabley, Jackie, 17,336,352-3
Laten Love Lettens ofa Musician [Cartas de Hampton, Luiu (Simmons), 332-4
amor tardias de um músico] (Reed), 346 mães, fotografias de, 38-9
“Law for Regulating Negrões & Slaves in manual, 95-7
Night Time”, 262 máquina de Tuskegee e Booker T.
Lawrence, D. H., 346 Washington, 310
Ledger, 131 “Marrlage Versus Free Love" (discurso de
leis aplicadas às menores infratoras, 234, Harrison), o!/\/\
236-9 Marshall Hotel, 201,263
Leis de Caridade, 294 Maryland, 125

422
Matthews,Victoria Earle,15,66,68; multidão,sS,30,-toi; como enxame,241,
chegada em Nova York,70-1; White 248,302,32i; como povo,ii,316-7;
Rose Mission fundada por,68,70 de mulheres negras vistas como
McCarthy,Joseph,214 ameaças,149; de pessoas negras
McCIendon,Rose,224 como uma ondulação do oceano,125,
McKay,Claude,308 248; declarações e,232;engolimento
Meca,50 por,102; gângsteres na,71; mista,40;
Memphis,Tennessee,57,60 perdida na,233; racista,turba branca,
Mencken, Helen,344 29,60,64,104,126,181-7; recém-
menina nas fotografias de Eakins,14,370; -chegados e,105; rosto na,100,311
anonimato da,33-5: nu fotográfico de, Mumford, Kevin,388
33.35.44-50,54; violência sexual e,51 Murphy,srta.,262
“mente fraca”, rótulo de,282,403 Musser,Charles,384
mercado de escravas do Bronx,15,355-8,
410 navio negreiro,26,79,194,210
mercadoria: amor como,358; escrava nazistas,51
e prostituta,44,47; objeto de Negro and the Nation, The(Harrison),311
propriedade,287;tachar como,48; “Negro Schoolmaster in the New South,
vida da,287 A”(Du Bois),133
Messenger, The,323,341 Nelson,Caroline,86; carta para a srta.
Micheaux,Oscar,207,209-10,214,384, Cobb sobre os abusos sofridos
389 pela filha,92-3; dúvidas sobre a
Michie, Loretta (Mickey),293,296-9,302, legitimidade do casamento de Mattíe
405 e Carter,86-7; mencionada na nota
Middie Ailey,33,55,112,363; prostitutas sociológica sobre Mattie,8g; ouve os
na,115,130,136 gritos de Mattie no reformatório,
migrantes,257,315; debandada e fuga 90-1; pergunta para Mattie quem
como greve gerai,66,125-6,246,315, andava mexendo com ela,81-2;traída
381; para Chicago,126; para Detroit, pela morte de EarI,84-5,87; vivendo
126; para Fiiadélfia,103,105,112,126; como sra. Smith,75,88
para Nova York,112,126,187,194,233 Nelson, EarI,63,84-5;aventuras e
Milholiand, John,201 histórias,84-5; morte presumida,87
Miller, Henry,79,310-1 Nestie, Joan,407
Miiis, Florence,37,347,358 New England Conservatory,351
Minogue,srta.,293-4,296,299 New Journal and Guide,343
Mitchell, Eiizabeth,183 New York Age,232,271,408
Mitcheil, Miidred,314,329,331,333-5, New York Herald,181,259
409;apresentações em Coney Island, New York Times,194,247,294,300
318; dançando no cabaré,319,323 New York Tribune,180,295
Mitchell, sra.(mãe de Miidred),325, New York World,185
327-9.33i Norma (ópera),348
Mitchell,tenente,147-8,169 Norris, Jean (juíza),238
moças da vitrine,14,99-101,134-5,'^37 Nova Orleans, Luisiana,61; revoita racial,
Moens, Herman,370 183,186
monogamia,235,305-6 Nova York,127,158; Cinturão Negro em,
Morehouse, Mattie,6g,375 50.53;como a maior cidade negra do
“Mortality of American Negrões”(gráfico Norte,177; Draft Riots em,187; leis
de barras),114 dos direitos civis em,294; migração
Morton,Jeily Roll,385 para,112,126,187,194,233; pesquisa

423
de Rockefeller sobre prostitutas em, tiro que James levou,167-8; organiza
-195; planos de queimar,262; revoltas um chá na biblioteca,144-5; pede para
raciais em,66; violações dos direitos os Shepherd irem embora,161-4, ●'66;
civis e,264,234 se surpreende com a infidelidade de
Novo Negro,78,177; mudanças Mamíe, 155-8,160; tenta mandar nos
revolucionárias no Cinturão Negro e, inquilinos e controlá-ios, 148
232 Parsons, Lucy, 246
Penitenciária Estadual do Leste, 103,148
O que é a propriedade? (Proudhon), 30 Pennsylvania Alms Hospital, 142
0’Brien, Pat, 151 pensamento em ação, 73,376
0’Neíll, Eugene, 346 Pequena África, 50,107,158,135, ig6;
Oberlin College, 351 negrófilos na, 135
odalísca, 44-50 Perkins, Aaron (Kid Chocolate; Kld
Old Dominion (navio a vapor), 373 Happy), 18,273-4,287-32; amor de
Outhouse, sr. e sra., 283 Eva por, 285-6,232; cartas escritas
Ovington, Mary White, 17,131-2,134, para a srta. Cobb, 286-7,404:
387; caso de, 201; difamada na desejo de autonomia, 287; diversos
imprensa, 133; mãe de Annabel empreendimentos de, 283
recebe a visita de, 203-4; Malindy Perkins, Eva, 18,273,275-7; amor de Aaron,
da vez, 201; Marshall Hotel e, 264; 285-6,232; como fugitiva, 284; desejo
pesquisa social conduzida por, 133; de uma existência diferente, 230-1;
sentindo-se bem entre os negros, liberdade condicional sob servidão,
192-3,196; sobre a “imoralidade 283-4; ppisão de, 273-4
sexual” dos vizinhos negros, 200,202; Perkins, Viola (irmã de Eva), 236,335
sobre a beleza dos vizinhos negros, Philadelphia Inquiren, 167,373,384
136; sobre a recusa ao trabalho Philadelphia Negro (Du Bois), 380; ver
das mulheres negras, 388; sobre os também Du Bois, W. E. B., pesquisa
vizinhos negros “menos que” homens sobre o Sétimo Distrito (Filadélfia)
e mulheres plenos, 191,202 Pittsburgh Courier, 346,343,332,410
Owen, Chandier, 323,324,349,408; Píttsburgh, Pensílvânia, 158
sobre o cabaré como instituição plantation, 26,41,44,47,54, 80,104,246,
democrática, 323-4 257> 231,346,364; Douglass sobre a
cozinha como bordel na, 64,218,373;
Palace Casino, 232 Du Bois sobre, 108,116; estendida
Palmer, A. Mitchell, 323 para a cidade, 24,48,188,210; fuga
Palmer, Lee, 307 da, 123,125,308,315; lar da servidão
Palmetto, Sam, 176,181 e trabalho doméstico, 37,65,242;
Paris, 136 reconstrução da vida íntima e, 73;
Parker’s, 318 recusa como greve geral, 125
Parrish, Helen, 15,141-2,151; aluguel Plessy versus Ferguson, 6g
coletado por, 139-41,144,146-7, Plexus (Miller), 311
149-50,161; antecedentes familiares pobreza, 112,147; aluguel e, 133-41,283;
de, 142; denuncia Katy Ciayton para na Saínt Mary Street, 141; no Sétimo
a polícia, 147-8; desejo de proteger Distrito, 107,122-3, -123-30; pesquisa
Mamie, 166; disputa com os Fisher, de Du Bois sobre, 122-3, -123-30
139-41.144.383; falha em atingir poço da solidão, O (Hall), 344,346
mulheres, 148-9; Hannah Fox e, 140, policiamento da negritude, 125,263-5;
142,147,156,166; influenciada por batidas surpresas, 266-7; corpos das
Octavia HilI, 383; lê a notícia sobre o mulheres, 265-g; desculpas para o.

424
274"5; espaço doméstico considerado racismo: antinegro,51,188,252,258,370;
desajustado,264 capitalismo e,265,364; ressurgimento
Powell, Harriet,17,232,239,262,305,308; durante a era pós-Reconstrução,51,
Chaniie Hudson e,232-3; prisão no 77; violência estatal e,188,236,238,271
Palace Casino,231,233 radicalismo negro,13,78,364; Black
Prédio Disciplinar ver Bedford Hilis Reconstruction(Du Bois),125-6,381,
Preer, Evelyn,224 396;configurações de vida,51,78-9,
Primeira Guerra Mundial, homens negros 246,311;coro,361-5; encenação de
na,23Í-2,370,393 ideais revolucionários,109,365; greve
primeira lei de emancipação gradual da geral,66,125-6,246,315,381,396;
escravidão (1780),103 Novo Negro e a esperança de
prisão ver Bedford Mills mudanças revolucionárias,232;
prisioneira, A (peça teatral),344-6 organizadores e intelectuais,51,232,
problemas sociais,41,^^3; dasJovens,40, 244,305,310-1,316
234-7; dos negros,40,io6,ii8,265, Rag de May Enoch (canção),180
364 Rainey, Ma,301,311
propriedade,88,95,246,384; amor, Randolph,Asa,349
intimidade,casamento e,285,305, Ratcliffe Street,115,130,136
340; autonomia e,287; estatutos Rebecca Hall, 279,281,285,29^^,297-8,405
de vadiagem e,257,258; mulheres e rebeldia,231-2,251; práticas sexuais,307
meninas como,46,114,136,355,404; reconstrução (conceito): da sociabilidade
relações familiares na escravidão e, nos cabarés,323-4; da vida íntima,79
59.200 Reconstrução(época histórica),69,256;
prostitutas, prostituição,66,136,143, fim da,104
307,410; assédio policial e extorsão Reed, Myrtie,346
de,271; como escravidão branca,114, Reese, Maggie,61
116,234; como mercadoria humana, reformadores progressistas,40;
47,114,137; em Phiiadelphia Negro, preocupados com a sociabilidade
114,120,129-30; encarceramento promíscua da classe mais baixa,196,
em Bedford Mills, 397; homens 263;Tenement Mouse Act e,264
dependentes de mulheres como uma Reformatório Feminino do Estado de
forma de,198; imposição da linha de Nova York ver Bedford Mills
cor e, 263; lares “desajustados” e, Registro vermelho (Wells),61
234; leis de vadiagem como pretexto relacionamentos lésbicos,225,294,331,
para facilitar a prisão, 256; pesquisa 335.344.408
de Rockefeller sobre,195;Tenement Renaissance Casino, q/|/|
Mouse Act e,264-6 Renascimento do Harlem,79
Psychology ofSex (EIlis),344 residentes da Saínt Mary Street,16
Puccini, Giacomo,347 revoltas raciais,51; Draft Riots,187;em
Detroit,188;em Nova Orleans,183,186;
queer:como recurso da sobrevivência em Nova York,66;em San Juan HilI,274;
negra,242; Harlem enquanto,320; em Watts,188;em Wilmington,69; no
práticas e sociabilidade,79,191,263; Harlem,188; no Tenderloin(Nova York),
termos de afiliação, 226,234,336, 181-9; otimismo pós-guerra aniquilado
339 pelas,313
Quinn,Peter,294 revolução da vida íntima negra,13,37,
78-9,108-9;como rompimento daquilo
Rabinowitz, Francês,307 que foi dado,299; mulheres negras e
Rachmaninoff,Sergei,340 a promoção de ideais revolucionários.

425
365; promessa de, 364; revolução servidão e serventia,ii,8o,-104,218,242,
social repentina, log 313;como a nova escravidão,358;
Rice, Maizie, 279 dívida e,125;feminilidade negra e,
Richmond, Virgínia, 158 198;fuga da,44,64,287,315,321;
Riley, Charies, 144,151 involuntária,26,231,242,244,251,257-
Riley, Mary, 16,139,144,146,151 8,271,284; linha de cor e,188; rejeição
Robeson, Paul, 347,351 da,122,315,322;treinamento para,68
Robinson, Joe, 146 Sétimo Distrito (Filadélfia),34,53;
Rockefeller, John, Jr., 195 anarquia no,104-6; crime no,107,123,
russos, 107,143 125,129-30; estudo de Du Bois ver Du
Bois, W. E. B., pesquisa sobre o Sétimo
Saint Mary Street, 107,139-41,144 Distrito; migrantes,103,112; mulheres
Saint Mary Street, residentes da: Bella excedentes,log; pobreza no,107,123,
Denby, 145-7. ^49. ->51. ^57,166; Charles 129-30
Riley, 144,151; Fanny Fisher, 139-41, Seventh Avenue(Nova York),30,183,212,
145-7,149,157,383; Gallen, 147,158, 224,225,285,306,316,317,321
160,169,384; Ike Denby, 145-6,166; Sex and Chanacter(Weininger),346
irmãos Gallagher, 147,151,384; Katy “Sex and Sex Problems”(Harrison),406
Clayton, 139-40,145-9. -«Si. -<58,169, sexualidade: imoralidade presumida de
384; Mãe Hewitt, 141,155; Mary Riley, Jovens negras,48,200; mácula da
16,139,144-6,151; sr. Fisher, 139,151; escravidão,64,71,136,137; paixões
sra. Henderson, 156,166; ver também fora da lei e intimidade ilegal,12,162,
Parrish, Helen; Shepherd, James; e 235,253; reminiscente das plantations,
Shepherd, Mamie 233; vergonha e estigma,69,71,81,110,
Saint Mary Street Library, 142 133.136,219,375,391
San Juan HilI (bairro em Nova York), 192, Seymour, William,185
-196; garotas tempestuosas em, 233; Sharp, Mamie ver Shepherd, Mamie
luz e barulho em, 197; migração negra, Shepherd,James,16,150,154,156-7;
194; quadras abarrotadas de, 194; adultério de Mamie e,157,160; amor
revolta em, 274 por Mamie,161-4; baleado,167-9;
San Juan HilI (Cuba), 194 desejo de Mamie de se separar de,
Sanford Cottage, 294,296 161; Mamie como única sociedade
sapatos, 99-100,134-5. -^37 de,158-g; rivalidade de Helen com,
Saunders, Rose, 261,398 161-4, ●'66
Schuyler, Josephine, 393 Shepherd, Mamie, 16,307; aluga um
segregação: clausura do gueto, 13,44, apartamento, 149-50; casos de, 155-8,
53,77.107,111,188,210,241,378,393; 160; como única sociedade de James,
Comitê dos Catorze e, 263-4; Leis de ●<58-9; compartilha sua história de
Caridade e, 294; medo branco e, 188; vida com Helen, 156-7; James baleado
na Filadélfia, 128; no Tenderloin (Nova e, 168; partida da Saint Mary Street
York), 187-8; Plessy versus Ferguson, com James, 169; tentativa de Helen de
6g; recusa dos cabarés e, 323; controlar, 166; vaga pelas ruas, 151-5
reformadores progressistas como Shine, 18,274-5
arquitetos da, 40; surgimento de Shuffíe Along (peça), 343
aparatos legais, 51; Upper West Side, Simmons (Hampton), Luiu, 332-4
194; ver também gueto sistema de arrendamento de condenados.
senhorios, 265,267,399 104
serviço doméstico ver trabalho slow drag, 75,318,324,407
doméstico Smith, Bessie, 311

426
Smith, SP., 75,88 Thpeewitts, Nettie,185
Smith,Trixie, 269-71 Thupman,Waliace,225
Snopton,C, Riley,390,394,410 tpabalho doméstico,64,-119,247,251,283,
socialismo,246,305 355"8;como sepvidão,104,258;
socialistas,232,254,305-8,317,323.349 continuidade da escpavidão com,64,
Sociedade Afpicana Livpe,103 247.395: cozinha como bopdel,64,218,
Sociedade Antiescpavagista Amepicana,103 373; sepviço doméstico gepal,68,251,
Sociedade papa a Ppevenção da Cpueldade 282
contpa as Cpianças,48,82 Tráfico de almas(filme),66
Sociedade papa a Ppomoção da Abolição Tpibunal üefFepson Mapket,253,270
da Escpavidão da Pensilvânia,142 Trópico de Câncer(Millep),310-1
South Stpeet (Filadélfia),99 Tputh,Sojoupnep,58-9,372
Spaulding, dpa.(Edith),297 Tubman, Happiet,244
Spont ofthe Gods, The[O espopte dos turkey trot,210,319,407
deuses](Dunbap),73,375,384,409 Tupnep, Mapy,354
Staggep Lee,274 Tutt, J. Homep,342
Stapp Centep(assentamento),142
Stapp,dean,341
Ubangi Club,79
Staten Island, Nova Yopk,302
Underground Railroad,142
Stevens, Lou,61
Univepsidade Columbia,128
StilI, William Gpant,347
Univepsidade Fisk,116
Stony ofthe Riot,182
Stowe, Happiet Beechep,127
vadiagem como status e cpime,256-8,264,
Sutton, William,15-1
399-401;Tenement House Act,266
Swahili Danceps,349
Velha Mapgapet,34
Swanson,Glopia,311
Velha Rabugenta,335-6
Templo da Vepdade,306 Vepão Vepmelho,93,126,188,313
Tendeploin (Nova Yopk),29,53,74,158,175, vida fungível,111,246,404,410
279.386,400; coppupção e assédio violência sexual,46,51,60-1,116;toque
policial no,178; onda de calop no, indesejado,64,114
175-6; pevolta pacial no,181-9 Vipgínia, 29,85,103,125,132,141,285
Tenement House Act(1901),264
Tenement House Law,253,256,264-6, Walkep, AMelia, 224-5,337"4o; Villa Lewapo,
274.399 338
Thomas,Edna,17,338,391; aboptos,222; Walkep, Aida Ovepton,37,327
appesentações de,223;casamentos de, Walkep, C.J., 220,328,338
221-4;fijga da família da Vipgínia,218; Walkep, Geopge,342
histópico familiap de submissão,217-8; Washington, Bookep T., 310,346,408
identidade da mãe,218; indifepença Washington, o.c.,158,286,349,407
de LIoyd a,221-2; insultada como Washington, Fpedi,224
bastapda mestiça,219; Olivia e,224-7; Washington, Lady,120,151
ppimeipa expepiêncla íntima com uma Wateps, Ethel,196,327,336,338,352
mulhep,224-5; vepgonha de,219-20 Wateps, Rebecca,18,252,308
Thomas, LIoyd,17,220-1; boatos de Webstep Hall,311
homossexualidade,221; casos de,223; Wells, Ida B.,15,246; batalha em um vagão
Edna e,221-4; pelação de Edna com segpegado,57-9; Registro vermelho,
Olivia e,225 61; sobpe autodefesa,61; sobpe Robept
Thoppe, Robept,16,178-81 Chaples,187; violência contPa mulhepes
Three Plays [Tpês peças](0’Neill),346 negpas e,60

427
Wells, Irene,-184 Whíte, Ellen,331-3
Wells, James,59 Whitney,Salem Tutt,342
Wells, Peggy,59 Whítten, Frederick,264
West,Dorothy,225 Wilberfopce College,106,136
Wharton,Joseph,-142 Williams, Bert,342
Wharton,Susan,106,107,142 Wiiiiams, Charles,103-4
Whíte Plains, Nova York,302 Williams, Ethel,327,336
White Rose Mission,15,68,70 Working with the Hands(Washington),346
White, Bessíe,331 Wyndham,Olivia,17,224-7

428
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Wayward Lives, Beautifúl Experiments


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em nome da Pauli Murray Foundation.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser
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meio sem a permissão expressa e por escrito da Editora Fósforo.
EorroRAS Rita Mattar e Eloah Pina
ASSISTENTE EDITORIALCristiane Aives Avelar
preparaçAo Eloah Pina
ÍNDICE REMissivo Probo Poletti
revisAo Anabel Ly Maduar,Andréa Souzedo,Vânia Bruno e Luicy Caetano
direçAodearte Julia Monteiro
CAPAGiuiia Fagundes
IMAGEM DA CAPA Ada (Aida) Overton Walker,-igi2. Biily Rose Theatre
Division,The New York Pubiic Library
TRATAMENTO DE IMAGENS Julia ThompSOn
provetogrAfico DO MIOLO Alies Blau
editoraçAo eletrônica Página Viva

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasiieira do Livro, SP, Brasil)

Hartman,Saidiya
Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas
negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais/
Saidiya Hartman;tradução Fioresta. — São Pauio: Fósforo,2022.
Título original: Wayward Lives, Beautifüi Experiments.Intimate
histories of riotous black giris,troublesome women,and queer radicais.
ISBN: 978-65-89733-59-1
1. Costumes sexuais — Estados Unidos — História 2. Mulheres Jovens
afro-americanas — Comportamento sexual — História 3. MulheresJovens
afro-americanas — Condições sociais — Sécuio 19 4. MulheresJovens
afro-americanas — Condições sociais — Século 20 5. Mulheres solteiras
— Estados Unidos — Condições sociais — Século 19 6. Mulheres solteiras
— Estados Unidos — Condições sociais — Século 20 7. Prostituição
— Estados Unidos — História 8. Relacionamentos i. Título.
22-101690 CDD — 305.48896073
índice para catálogo sistemático:
1. Muiheres Jovens afro-americanas: Condições sociais: Séculos ig
e 20:Sociologia 305.48896073
Eliete Marques da Silva — Bibliotecária — CRB/8-9380

Editora Fósforo
Rua 24 de Maio,270/276,10° andar,salas 1 e 2 — República
01041-001 — São Paulo,sp. Brasil —Tel:(11)3224.2055
[email protected] / www.fosforoeditora.com.br
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í

Este livro foi composto em qt Alpina e


GT Flexa e impresso pela Ipsis em papel
Pólen Soft 8o g/m* da Suzano para a
editora Fósforo em março de 2022.
protagonizando uma verdadeira revolução
da vida íntima,extrapolando para o
cotidiano uma abolição que se manteve
por muito tempo apenas na esferajurídica,
Billie Holiday, Paul Laurence Dunbar
e W.E.B.Du Bois são algumas das
personagens que convivem lado a lado
com essas mulheres desordeiras num teatro
exuberante em que as aspirações mais
radicais se mesclam ao mero desejo de
perseguir o próprio prazer. Ao trazê-las
para o primeiro plano, Hartman tece uma
ponte entre o individual e o coletivo.
reconstituindo a complexidade de
personagens a quem a história negou
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qualquer traço de humanidade,ao mesmo
i tempo em que faz do coro o protagonista
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do espetáculo.

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SAIDIYA HARTMAN leciona na Universidade


Columbia, Nova York. Além de Vidas
rebeldes, belos experimentos, vencedor
do National Book Critics Circle Awards,
é autora de diversos livros, entre eles
Perdera mãe: umajornada pela rota
atlântica da escravidão (Bazar do Tempo)
Q Scenes ofSubjection. Entre outras
distinções acadêmicas que recebeu,
ela foi MacArthur “Genius” Fellow,
Guggenheim Fellow, Cullman Fellow,
e ganhou uma bolsa Fulbright.
r VIDAS REB%D;ES,B4QS EXPÈRIMENtOS
'^^AIDIYA HAR^'J^NV^'’ .
● ‘^^tRADU^Ò:FUÓRlSt^
432 PP .
●EDITORA FÓSFORO
ISBN 978-65-89733-59-1

Musas, serviçais, lavadeiras, prostitutas, domésticas,' , *


operárias, garçonetes e aspirantes que mmca seriam '
estrelas formam esta companhia, se reúnem no . ' . \
círculo e se alinham numa formação onde toda " " ’
particularidade e distinção se esvaem. Uma pode
tomar o lugar de qualquer outra, pode servir de
substituta no enredo, recontar a história do começo,
transmitir o conhecimento da liberdade disfarçado
de conversa fiada e de absurdos. Poucos as
compreendem, poucos as estudam como se fossem
dignas de alguma coisa, poucos percebem seu valor
inerente. Se escutar com atenção, você pode ouvir
o mundo inteiro em uma nota torta, numa letra
de música descartável, numa melodia singular da
manifestação coletiva. [...| E pode se maravilhar com
a capacidade delas de habitar a dor de todas mulheres
como se fosse própria. Um tomo filosófico em um
gemido. No recesso mais profundo e escuro de uma
música opaca, fica çlaro que a vida está em jogo.

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