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Psicologia: Teoria e Prática, 24(3), ePTPSP14160. São Paulo, SP, 2022.

Psicologia Social ISSN 1516-3687 (impresso), ISSN 1980-6906 (on-line). Sistema de avaliação: às cegas por pares (double-blind review)
e Saúde das https://doi.org/10.5935/1980-6906/ePTPSP14160.pt
Populações Universidade Presbiteriana Mackenzie

Dilemas éticos atribuídos à visita domiciliar:


Perspectiva de profissionais do Suas

Girlane Mayara Péres, Carmen Leontina O. O. Moré e Cibele C. L. da Motta


Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Submissão: 13 nov. 2020.


Aceite: 31 ago. 2021.
Editor de seção: Enzo Banti Bissoli.

Notas das autoras


Girlane Mayara Péres http://orcid.org/0000-0002-8156-8145
Carmen Leontina O. O. Moré http://orcid.org/0000-0003-2468-8180
Cibele C. L. da Motta http://orcid.org/0000-0003-2869-5118
Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes) – código de financiamento 001.
Correspondências referentes a este artigo devem ser enviadas para Girlane Mayara Péres,
Servidão Cristiano Wanderley Faria, 60, ap. 703, Trindade, Florianópolis, SC, Brasil. CEP 88040-405.
E-mail: [email protected]

Este artigo está licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição-Não
Comercial 4.0 Internacional. 1
VISITA DOMICILIAR: SIGNIFICADOS E DILEMAS 2

Resumo
A visita domiciliar (VD) é um instrumento de intervenção que se constitui num desafio na prática profis-
sional, pois envolve situações de violação de direitos em contextos de vulnerabilidade social. Objetivou-se,
neste estudo qualitativo, compreender os significados e dilemas éticos atribuídos à VD como recurso de
intervenção, na perspectiva dos profissionais do Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famí-
lias e Indivíduos. Utilizando a perspectiva da Teoria Fundamentada nos Dados Construtivista, realizaram-
-se três grupos focais com 17 profissionais. Os dados, analisados por meio do software Atlas.ti 8.4, eviden-
ciaram os seguintes aspectos: a VD é um instrumento necessário para o acompanhamento psicossocial,
mas que gera um desgaste físico e emocional nos profissionais; ausência de formação e preparação do
profissional para a realização da VD; as equipes vivenciam, cotidianamente, dilemas éticos. Os profissio-
nais, ao realizarem suas práticas, encontram-se sujeitos aos contextos comunitário e interinstitucional,
gerando sentimento de impotência e constrangimento ante a obrigatoriedade da VD.
Palavras-chave: visita domiciliar, prática profissional, Suas, psicologia, Teoria Fundamentada

ETHICAL DILEMMAS ATTRIBUTED TO THE HOME VISIT: PERSPECTIVE OF SOCIAL


ASSISTANCE PROFESSIONALS

Abstract
The home visit (HV) is an intervention instrument that involves situations of violation of rights in contexts
of social vulnerability. The objective of this qualitative study was to understand the meanings and ethical
dilemmas attributed to the HV as an intervention resource, from the perspective of professionals from the
Protection and Specialized Attention to Families and Individuals Service. Based on the Constructivist
Grounded Theory, three focus groups were held with 17 professionals. The data, analyzed using the Atlas.ti
8.4 software, showed the following aspects: the visit is a necessary instrument for psychosocial monitoring,
but it generates physical and emotional stress in the professionals; lack of training and preparation of the
professional to carry out the visit; and the teams experience ethical dilemmas on a daily basis. Thus, during
their practices, professionals are subject to the demands of community and interinstitutional contexts,
generating feelings of powerlessness and embarrassment in the face of the obligation of the HV.
Keywords: house calls, professional practice, Suas, psychology, Grounded Theory

DILEMAS ÉTICOS ATRIBUIDOS A LA VISITA DOMICILIARIA: PERSPECTIVA DE LOS


PROFESIONALES DE LA ASISTENCIA SOCIAL

Resumen
La visita domiciliaria (VD) es un instrumento de intervención que implica situaciones de vulneración de
derechos en contextos de vulnerabilidad social. El objetivo de este estudio cualitativo fue comprender los
significados y dilemas éticos atribuidos a la VD como recurso de intervención, desde la perspectiva de
profesionales del Servicio de Protección y Atención Especializada a Familias e Individuos. Con base en la
Teoría Fundamentada en Datos Constructivista, se realizaron tres grupos focales con 17 profesionales. Los
datos, analizados en el software Atlas.ti 8.4, mostraron que: la visita es un instrumento necesario para el
seguimiento psicosocial, pero genera estrés físico y emocional en los profesionales; ausencia de formación
y preparación de los profesionales para realizar la visita; y los equipos experimentan dilemas éticos diaria-
mente. Así, los profesionales, al realizar sus prácticas, están sujetos a las demandas de los contextos co-
munitarios e interinstitucionales, generando sentimientos de impotencia y vergüenza ante la obligación de
la VD.
Palabras clave: visita domiciliaria, práctica profesional, Suas, psicología, Teoría Fundamentada

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A partir da Constituição Federativa do Brasil de 1988, a Política Nacional de Assistência


Social (Pnas) foi garantida como direito a todos os cidadãos que dela necessitassem e promoveu
significativas mudanças estatais relativas à elaboração de legislações como a Lei Orgânica da
Assistência Social e à organização estrutural, por meio do Sistema Único de Assistência Social
(Suas). A instituição da Pnas constituiu uma alteração epistemológica, uma vez que a assistência
social deixou de ter um caráter caritativo, assistencialista e de fiscalização, que concebia o usuá-
rio como alguém sujeitado, e passou a compreender as famílias de forma mais complexa, haja
vista reconhecer suas dimensões relacionais, contextuais, políticas e sociais, objetivando a ga-
rantia do acesso a seus direitos, à cidadania e à autonomia (Cruz & Guareschi, 2014).
Cabe destacar que tais mudanças no contexto das políticas públicas, ao longo da história,
impulsionaram mudanças epistêmicas no campo da psicologia brasileira, no sentido de que em
1962, ao ser instituída, essa categoria profissional organizava-se nas áreas escolar, industrial e
clínica, sendo esta última o principal foco de atuação. Com a promulgação da Constituição Fede-
ral, em 1988, e da PNAS, em 2004, houve uma crescente inserção dos psicólogos nos serviços
públicos, entre eles os que se relacionavam às políticas sociais (Ribeiro & Guzzo, 2014). Isso
implicou uma reorganização e reflexão sobre as potencialidades e a episteme da psicologia no
campo psicossocial, haja vista estar historicamente alinhada a práticas e paradigmas conserva-
dores. Atualmente, essa categoria profissional se insere, exponencialmente, no contexto da pro-
teção social, sendo a segunda categoria profissional com maior representatividade no Suas (Ri-
beiro & Guzzo, 2014). Nesse sentido, a atuação do psicólogo, nesse campo, requer uma postura
crítica, haja vista as mudanças epistêmicas que envolvem os elementos teórico-metodológicos
da política de assistência social, a fim de dirimir práticas conservadoras e que revitimizem as
pessoas acompanhadas pelo serviço (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2012).
No que diz respeito à organização da Pnas, ela promove suas ações por níveis de prote-
ção, que são: a proteção social básica, a proteção social especial (PSE) de média complexidade e
a PSE de alta complexidade. A PSE, objeto do presente artigo, tem como lócus de atuação o
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), além do Serviço de Proteção e
Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (Paefi), o qual presta apoio, orientação e
acompanhamento aos usuários e às famílias que estão em situação de violência física, sexual,
psicológica ou negligência. Diante dessas violações de direitos, suas ações se pautam pela pre-
servação e pelo fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, a fim de potencializar a
função protetiva da família diante das vulnerabilidades (Brasil, 2014).
O Paefi inicia o acompanhamento das famílias, principalmente por meio do encaminha-
mento delas pelos setores que compõem o Sistema de Garantia de Direitos (SGD) como o Con-
selho Tutelar (CT) e o Poder Judiciário (Rio de Janeiro, 2013; CFP, 2012; D’Avila, 2018; Lima, 2011;
Péres & Moré, 2021). Após, uma dupla profissional, composta por um psicólogo e um assistente
social, inicia as ações de acompanhamento interdisciplinar, como as visitas domiciliares (VD), os
atendimentos psicossociais e a elaboração de relatórios para o CT e o Poder Judiciário (Jorge,
2015; Brasil, 2006; CFP, 2012). No que diz respeito à utilização da VD, esta consiste em um

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instrumento de intervenção que contribui para a equipe compreender a realidade familiar, ou


seja, sua dinâmica, suas potencialidades vulnerabilidades e redes de apoio, a fim de ampliar as
possibilidades de intervenção profissional para superar as situações de vulnerabilidade e violência
(Amaro, 2014; Rio de Janeiro, 2013).
A importância de pesquisas sobre a VD se dá em razão da especificidade de sua realização
pelo Paefi, haja vista ocorrer em um contexto de vulnerabilidade, violência, denúncia de violação
de direitos e obrigatoriedade de a família ser acompanhada (D’Avila, 2018; Dias et al., 2019).
Ainda no contexto da VD, D’Avila (2018), Lima (2011), Lima e Schneider (2018) e Péres e Moré
(2021) trazem à tona dilemas éticos vivenciados pelos profissionais, os quais tensionam a práti-
ca profissional e exigem uma constante reflexão das decisões e condutas.
Entre os dilemas apresentados pelos autores, destacam-se aqueles apontados por D’Avi-
la (2018) e Péres e Moré (2021), no sentido de que a forma como o fluxo interinstitucional está
configurado afeta a postura profissional e o planejamento da visita, o que pode gerar, nos pro-
fissionais, condutas tradicionais e policialescas. Isso ocorre, principalmente, pelo fato de o siste-
ma de justiça e o CT serem os principais encaminhadores de demanda para o Paefi (Brasil, 2015;
Péres & Moré, 2021). Cabe destacar que os dois sistemas, o Suas e o Judiciário, entendem as
normas com base em seu lugar institucional, e, nesse sentido, coexistem epistemes, linguagens,
concepções e pressupostos diferentes, tendo como consequência os conflitos e os dilemas inte-
rinstitucionais. Entre esses conflitos, estão as solicitações do atendimento do Poder Judiciário ao
Suas, na medida em que são requeridas – além dos atendimentos familiares – perícias, averi-
guação de denúncias e informações sobre o acompanhamento da família, o que, além de inter-
ferir diretamente na organização do trabalho das equipes, constitui demandas incompatíveis
com as atribuições do Suas (Brasil, 2015).
Para Péres e Moré (2021, p. 16), o pedido de atendimento dos serviços de garantia de
direitos, as visitas realizadas pelo Paefi às famílias sem aviso prévio e o envio obrigatório de re-
latórios ao juizado e CT “podem contribuir para a construção de um vínculo ambivalente” de
cuidado e de fiscalização com as famílias acompanhadas. Esse dado, em certa medida, vai ao
encontro da pesquisa de Lauermann (2015) sobre VD, que foi realizada no contexto da proteção
social básica brasileira. A autora traz à tona que a equipe pode estar realizando violências disfar-
çadas por uma concepção de cuidado. Nesse sentido, o fluxo interinstitucional configurado pode
gerar, nas famílias atendidas, constrangimento e ansiedade em razão da possibilidade do acolhi-
mento institucional das crianças, o que acaba prejudicando a família na superação da violência
vivenciada (D’Avila, 2018). Evidencia-se que os estudos sobre o trabalho das equipes na PSE
apresentaram dilemas éticos restritos ao fluxo interinstitucional e, nesse sentido, considera-se
necessária a realização de pesquisas que tragam à tona os diversos dilemas no contexto da prá-
tica profissional.
Soma-se às mudanças – tanto no contexto das políticas públicas sociais quanto na epis-
teme da psicologia – e aos dilemas éticos enfrentados pelas equipes o fato de que 99,6% dos
Creas realizam a VD (Brasil, 2017) e os profissionais que a executam têm uma formação limitada

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sobre a prática da VD, principalmente no que abrange a vivência dos riscos de sua própria segu-
rança e da tomada de decisões ante os dilemas comunitários (Ribeiro & Guzzo, 2014). Além
disso, a prática profissional, em contextos de constante vulnerabilidade social, contribui para o
desenvolvimento de transtornos mentais, como ansiedade, doenças físicas e sensações de medo
na equipe de profissionais (D’Avila, 2018; Dias et al., 2019).
No que diz respeito à VD no contexto da proteção social básica, ela consiste no instru-
mento mais utilizado pelas equipes profissionais (Flor & Goto, 2015), haja vista que 99,3% dos
Centros de Referência da Assistência Social (Cras) a realizaram em 2017 (Brasil, 2017). Cabe
ressaltar que, na pesquisa feita por Scott et al. (2019), mesmo os psicólogos reconhecendo a
importância da visita, essa atividade ficava a cargo dos assistentes sociais e era realizada somen-
te quando solicitada pelo Judiciário ou CT, a fim de elaborarem os relatórios para esses órgãos.
Evidencia-se que, devido à recente implantação do Suas, não se observaram, no contex-
to nacional, uma produção científica incipiente e a ausência de documentação institucional sobre
a VD realizada pela equipe da PSE, principalmente no âmbito da psicologia. Destaca-se ainda que
as publicações encontradas eram principalmente a teses e dissertações, as quais evidenciavam
um diálogo direcionado à interface do Creas com o papel do Estado na garantia dos direitos ou
no contexto das políticas de saúde. Nesse sentido, a utilização desse instrumento de intervenção
tem sido pouco sustentada por literatura que forneça aporte para lidar com a complexidade e os
desafios que configuram a VD no cotidiano profissional dos assistentes sociais e psicólogos do
Suas. Entende-se que pesquisas sobre essa temática contribuem para a construção e o desenvol-
vimento dessa prática profissional no contexto psicossocial, em razão da ausência de diretrizes
políticas ou de uma formação que adapte a prática ao contexto. Diante do exposto, este estudo
tem por objetivo compreender os significados e dilemas éticos atribuídos à VD como recurso de
intervenção na perspectiva dos profissionais do Paefi.

Método
Participantes
Trata-se de uma pesquisa qualitativa que possui como método a Teoria Fundamentada
nos Dados Construtivista (TFDC), proposta por Katy Charmaz (2009), a qual seguiu os preceitos
de planejamento da coleta, codificação e comparação constante dos dados.
A pesquisa foi realizada em um município que tinha dois Creas com um Paefi cada. A
coleta dos dados ocorreu por meio de três grupos focais com os profissionais psicólogos e assis-
tentes sociais, sendo um grupo realizado no Paefi 1, um no Paefi 2 com os profissionais que
trabalhavam no período matutino e um no Paefi 2 com os do período vespertino. Participaram,
no total, 17 profissionais, sendo dez assistentes sociais e sete psicólogos, de modo que os crité-
rios de inclusão foram ter realizado mais de cinco VD e trabalhar no Creas há mais de seis meses.
Dos 17 profissionais participantes, 16 eram mulheres, em idades entre 29 e 67 anos, três
eram doutoras, duas mestras e dez possuíam o título de especialistas. A média do tempo de
trabalho no Paefi foi de cinco anos, de modo que variou de seis meses a 13 anos. Em relação ao

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número aproximado de VD realizadas no contexto da assistência social, alguns não souberam


relatar devido à significativa quantidade. Outros apresentaram uma aproximação, e a média de
visitas realizadas, por profissional, no Paefi, foi de 320 (Tabela 1).

Tabela 1
Profissionais participantes do grupo focal
Tempo de trabalho Nº aproximado
Participante Idade Graduação Pós-graduação
no Paefi de VD realizadas

A1 48 Serviço Social Mestrado 13 anos 1.000

A2 47 Serviço Social Especialização 4 anos 1.000

A3 30 Serviço Social Doutorado 6 anos Não informou

A4 45 Serviço Social Especialização 10 anos 960

A5 33 Serviço Social Especialização 6 anos Não informou

A6 34 Psicologia Não possui 6 anos Não informou

A7 67 Serviço Social Especialização 1 ano Não informou

A8 44 Psicologia Não possui 6 anos 250

A9 58 Psicologia Doutorado 6 meses 5

A10 38 Psicologia Mestrado 3 anos e 6 meses 60

A11 30 Serviço Social Especialização 3 anos 50

A12 29 Psicologia Especialização 4 anos 40

A13 38 Serviço Social Especialização 6 meses 10

A14 38 Psicologia Doutorado 4 anos e 6 meses De 50 a 100

A15 51 Psicologia Especialização 2 anos 30

A16 41 Serviço Social Especialização 6 anos De 100 a 150

A17 40 Serviço Social Especialização 10 anos 280

Instrumentos ou materiais
O instrumento utilizado foi o grupo focal, cujo roteiro foi composto por dados sociode-
mográficos e de identificação dos participantes, além de questões norteadoras referentes à ex-
periência sobre os significados e dilemas éticos atribuídos à VD. A escolha do grupo focal se deu
porque ele é um instrumento de coleta de dados que propicia um espaço privilegiado para a
discussão, construção de novas narrativas, troca de experiências e identificação de significados
individuais e coletivos (Flick, 2013).

Procedimentos
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSH)
da Universidade Federal de Santa Catarina, sob número 2.320.439. A coleta dos dados foi reali-
zada no próprio Paefi em uma sala que garantisse o sigilo e a confidencialidade das informações.
No início dos três grupos focais, a pesquisadora se apresentou, explicou o objetivo da pesquisa,
entregou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para cada participante, leu-o em voz

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alta, assinou e coletou as assinaturas, de modo que cada pessoa ficou com uma via. Destaca-se
que, para a realização do grupo focal, houve uma preparação da pesquisadora, com a orientado-
ra e duas investigadoras com experiência nessa proposta metodológica, as quais avaliaram o
roteiro de perguntas para verificar se atendiam aos objetivos da pesquisa. Cabe apontar que, nos
grupos focais, participaram duas observadoras, que eram psicólogas e pesquisadoras e foram
convidadas para contribuir durante a coleta dos dados.
Os dados foram organizados e analisados de forma indutiva, pois, conforme a TFDC, as
categorias e subcategorias emergem com base nos dados coletados. Na etapa inicial, realizou-se
a codificação palavra por palavra, linha por linha ou incidente por incidente. Para Charmaz
(2009, p. 16), “codificar significa associar marcadores a segmentos de dados que representam
aquilo de que se trata cada um dos segmentos”. Na segunda etapa da análise dos dados, chama-
da de focalizada, os códigos eram coadunados com aqueles de mesmo marcador, os quais se
elevavam a subcategorias e, após, a categorias. Os dados foram codificados com auxílio do
software Atlas.ti, versão 8.4. Com esse processo de análise, construíram-se uma categoria central
e, também, três subcategorias, que evidenciaram os significados e as experiências dos profissio-
nais do Paefi sobre a VD (Figura 1).

Figura 1
Categoria, subcategorias e elementos de análise

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Resultados
Os dados, organizados em uma categoria central e três subcategorias, apresentam ele-
mentos sobre os significados e sentimentos atribuídos à VD pelos técnicos, sobre a formação e
os subsídios fornecidos aos profissionais para a realização da VD e sobre os dilemas éticos decor-
rentes do contexto institucional e do contexto de vulnerabilidade.

Significando a visita domiciliar no processo de trabalho institucional à luz da formação


Essa subcategoria reúne dados sobre os significados e sentimentos atribuídos pelos pro-
fissionais à VD, às práticas e aos processos de trabalho nela envolvidos. Os participantes da
pesquisa, em especial aqueles que são servidores há mais cinco anos, abordaram a questão sobre
a mudança epistêmica em seu saber-fazer decorrente da Pnas e do Suas. Diante disso, os entre-
vistados apontaram que, na antiga política de assistência social, os técnicos trabalhavam em uma
lógica policialesca, o que refletia na VD uma prática cujo objetivo era a fiscalização. Nesse senti-
do, a chegada à casa dos usuários ocorria de forma inesperada e havia ausência de planejamen-
to para sua realização. Além disso, evidenciaram que a antiga postura dos profissionais se mis-
turava com a da polícia e do CT, de modo que tinham o poder de decidir e determinar a ação da
polícia e do bombeiro. Com a mudança da política de assistência social, o profissional precisou se
adaptar às novas epistemologias e aos processos de trabalho, o que implicou mudanças teórico-
-metodológicas e práticas.
Nessa nova política, os atendimentos realizados pelo Paefi foram encaminhados, predo-
minantemente, pelo CT, sendo alguns judicializados, ou seja, determinados pelo Poder Judiciário.
Essas solicitações de atendimentos chegavam por uma ficha de triagem, intitulada “guia de en-
caminhamento”, realizada pelo órgão encaminhador, na qual continha a denúncia com as violên-
cias. Cumpre destacar que o processo de trabalho do Paefi era organizado de forma que cada
família era acompanhada por uma dupla profissional composta por um psicólogo e um assisten-
te social, os quais tinham como apoio institucional a equipe de trabalho e a coordenação do
serviço.
O trabalho realizado em equipe foi avaliado pelos entrevistados como importante, uma
vez que diminuía a ansiedade, contribuía para a saúde mental dos profissionais e ampliava suas
reflexões sobre as famílias acompanhadas. De forma similar, o trabalho em dupla por um psicó-
logo e um assistente social foi qualificado como necessário, pois os profissionais se apoiavam,
acolhiam-se, compartilhavam sentimentos e responsabilidades, refletiam, conjuntamente, sobre
os atendimentos, aprendiam mediante as trocas e tomavam decisões com base nas imprevisibi-
lidades que surgiam. Nesse sentido, a dupla foi apontada como um trabalho conjunto em que há
complementaridades e trocas. Relataram que o trabalho em dupla é um processo de construção
constante, que precisa de jogo de cintura, bom senso e percepção sobre o processo de comuni-
cação entre as partes da dupla. Os participantes relataram que, durante o atendimento, precisa-
vam prestar atenção no usuário e em sua dupla, e que, nesses momentos, os profissionais iam
compreendendo a linha de raciocínio de seu parceiro, por meio das perguntas e pontuações feitas

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e, assim, seguiam por esse mesmo caminho. Caso não entendessem, silenciavam-se até o cole-
ga abrir o espaço para eles. Sobre isso, A8 afirma:

A pessoa vai conhecendo cada vez melhor o parceiro e aí já sabe o momento de falar, de silenciar, já sabe

que aquilo que está sendo feito naquele momento do atendimento, aquela outra pessoa vai fazer me­lhor

porque em outras oportunidades ela já fez. “Essa parte aqui, eu já sei". Mas ela não precisa falar para ti, tu

já vai saber isso. Então vai sendo construído, e tu já sabe para onde que ela vai levar, o que ela tá pensando,

às vezes até qual é a próxima pergunta que ela vai fazer. […] Tem pessoas que conseguem trabalhar mais

facilmente. Tem outras duplas que já têm mais dificuldade. Mas tem que estar sempre prestando atenção

no usuário e no teu parceiro (A8).

Por sua vez, os profissionais mencionaram que o trabalho em dupla, mesmo sendo im-
portante, é difícil, pois estavam acostumados a uma lógica de trabalho individual e por categoria
profissional, e, devido a isso, por vezes, preocupavam-se em não estar invadindo o espaço do
outro. Destaca-se que os profissionais referiram que, por vezes, as abordagens e intervenções se
misturavam no sentido de que, em alguns momentos, uma categoria profissional fazia o trabalho
da outra.
Os participantes apontaram também as diferenças no atendimento psicossocial durante a
VD entre as duas categorias profissionais. Para eles, o psicólogo observa mais o trajeto até a casa,
o território, e menos a residência; além disso, ele foca a atenção no usuário e monta um “quebra-
-cabeça” sobre a dinâmica da família, considerando sua intergeracionalidade, as questões micro
do contexto e as subjetividades das pessoas e famílias atendidas. Em relação aos assistentes so-
ciais, mencionou-se que são mais pragmáticos, pois apontam diretamente o que precisa ser mu-
dado e se atêm menos à subjetividade. Para os participantes, os assistentes sociais focam as in-
tervenções na orientação sobre os direitos da família relacionados ao trabalho, à renda familiar,
ao acesso aos serviços de saúde e educação e aos cuidados cotidianos com as crianças.
A VD foi compreendida como um instrumento de trabalho que, dependendo da família,
pode ser o recurso mais importante. Por meio dela, o profissional se aproxima da realidade da
família, sendo, nesse sentido, um instrumento forte para a garantia dos direitos. Eles evidencia-
ram que a VD precisa ser utilizada com cuidado, uma vez que é realizada no espaço de privaci-
dade da família desconhecido pelo profissional e em um território que é, por vezes, vulnerável e
violento, o que a caracteriza como imprevisível. Ademais, foi apontado que cada serviço, das
variadas redes de atenção, realiza a VD de uma maneira diferente, dada a especificidade de cada
instituição.
Os profissionais informaram que o significado dado à VD pelas famílias visitadas depen-
de de uma série de fatores, como a forma que a visita foi realizada pelos outros serviços, como o
CT; o tempo de espera para iniciar o atendimento no Paefi; a existência ou ausência de explica-
ções sobre o motivo da visita; o vínculo construído com o profissional; e o momento do processo
do atendimento. Além disso, o significado da VD é influenciado à medida que as famílias e os

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territórios confundem a equipe do Paefi com o CT e os associam à polícia. Diante disso, os pro-
fissionais relataram que a maioria das pessoas não gosta da visita ou não a quer e algumas ficam
constrangidas, desconfortáveis e apreensivas quando os profissionais chegam à casa delas. Con-
forme os participantes, algumas famílias acreditam que sua moradia e forma de viver serão
avaliadas durante a VD, o que pode gerar fantasias, preocupações e ansiedade sobre as conse-
quências dessa prática. Segue uma das falas de uma usuária, relatada pelo profissional, que
mostra sua preocupação com a VD: “Tas anotando para colocar no relatório? Para mandar para o
juiz?” (A4). Outras famílias, principalmente as judicializadas, convidam os profissionais para
mostrar a residência e as mudanças feitas nela a fim de que não tenham prejuízos.
Além dessa associação dos profissionais ao CT, os sentimentos apresentados pelas famí-
lias também podem estar relacionados ao contexto comunitário, na medida em que ficam com
medo de receber os profissionais em casa por causa das consequências do tráfico de drogas, por
não querer a polícia ou o CT no território, ou ainda por desconfiança do que a família falará aos
profissionais. Foi apontado também que há um constrangimento das famílias no contexto comu-
nitário por conta da presença dos profissionais e do carro da assistência social, uma vez que a
representação comunitária é de que a família falhou nos cuidados e de que o Creas e o CT estão
indo para auxiliar, punir ou fiscalizar, o que potencializa a compreensão familiar de que o serviço
tem um “caráter negativo”. Diante disso, algumas famílias pedem aos profissionais que não se
identifiquem na comunidade e não estacionem o carro na frente de suas casas.
Os participantes relataram que algumas famílias compreendem a importância do acom-
panhamento e que, quando possuem um bom vínculo com o técnico de referência, sugerem a VD,
gostam dela, cobram-na e ficam à vontade durante o atendimento. Algumas famílias recebem
tranquilamente a VD, pois se sentem acolhidas e cuidadas.
Em relação à saúde mental dos profissionais, foi descrito que o trabalho no Paefi os afe-
ta em seu contexto pessoal, no sentido de que a violência e a vulnerabilidade os sensibilizam
emocionalmente.

[…] a maioria são com realidades muito cruéis, então tu volta impactado. Não tem como tu sentar na tua

mesa de jantar, jantar e lembrar daquela família que tá pedindo o básico, sabe? Tá com quatro, cinco crian-

ças... é difícil. Para mim é (A10).

[…] eu tinha uma fase que eu deixava tudo aqui no portão. Ia para casa e desligava, conseguia isso. Hoje

em dia que eu estou mais velha, não estou conseguindo mais. Eu me perco, às vezes, acordo durante à

noite e fico pensando lá nas situações (A7).

No que diz respeito aos seus sentimentos durante a realização da VD, os profissionais
apontaram que se sentem impactados pelo fato de os contextos das famílias serem “cruéis”
(A10) e piores do que imaginavam. Enfatizaram que, na visita, o profissional lida com o impre-
visível e vivencia “na pele” (A10) a vulnerabilidade familiar, uma vez que as demandas atendidas
são “difíceis, tristes, doloridas, sofridas” (A17), principalmente quando o profissional se coloca

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VISITA DOMICILIAR: SIGNIFICADOS E DILEMAS 11

em uma posição empática pela dor do outro. Somam-se a isso o constrangimento e a frustração
de ser o representante do Estado, ver as condições socioeconômicas da família e não poder ga-
rantir seus direitos básicos. Nesse sentido, os entrevistados relataram que a prática da visita
provoca exaustão e desgaste físico e emocional.
Diante desse cenário, a utilização da VD como instrumento exige do profissional “atenção,
desenvoltura, desempenho, perspicácia e persuasão” (A15). Assim, os profissionais apresentaram
as estratégias que utilizam para que não adoeçam ante esses sentimentos e essas emoções emer-
gentes no contexto da visita: 1. crer que a realidade da família é mais impactante para o profis-
sional, pois a família já está acostumada com seu próprio contexto, 2. alimentar-se ao voltar da
visita, 3. não agendar atendimento após a visita e 4. ter pensamentos onipotentes durante o
contexto comunitário, como aponta A4: “A gente pensa que tem um colete à prova de bala”.
Mesmo diante de tantos desafios para a realização da visita, ela foi avaliada pelos pro-
fissionais como eficaz, na medida em que possui planejamento e diretrizes e cumpre os objetivos
propostos pelos profissionais, como ver e compreender melhor o contexto familiar e comunitário
e acessar a rede de apoio da família. Além disso, a visita foi considerada eficaz porque, sem ela,
é difícil para o profissional fazer o acompanhamento das famílias.

Formação dos profissionais sobre visita domiciliar


Sobre essa subcategoria, apresentam-se os dados sobre a formação dos profissionais e
as informações que receberam e serviram como subsídios para a prática da VD no contexto do
Paefi. Os participantes relataram as três principais formas de aprendizado para a execução das
visitas: 1. na universidade, 2. de forma autodidata e 3. em outro serviço.
Especificamente, dos sete psicólogos participantes da pesquisa, seis informaram que não
aprenderam sobre a temática da VD na graduação; entre eles, uma relatou que foi ensinada que se
tratava de um instrumento específico do assistente social. Uma psicóloga, egressa de uma univer-
sidade privada, afirmou que obteve informações sobre a VD e a realizou por conta de um projeto
de extensão de uma das professoras do curso de Psicologia e de seu mestrado em Educação.
Já dos dez assistentes sociais, nove relataram que, na Faculdade de Serviço Social, obti-
veram informações sobre a VD e realizaram-na. As profissionais que aprenderam a realizar visi-
ta na universidade informaram que isso ocorreu de forma limitada, em uma disciplina, uma vez
que nela foi ensinado como observar, agir e realizar estudo social por meio da coleta de informa-
ções com a família. Algumas também aprenderam em estágio curricular ou extracurricular. Sa-
lienta-se que uma das profissionais, A13, relatou uma experiência negativa no estágio: “Minha
experiência de estágio foi horrível, no sentido que eu fiquei muito constrangida de adentrar
aquela casa sem me sentir bem-vinda”.
Consoante ao que foi aprendido sobre VD pelas assistentes sociais na graduação, as par-
ticipantes relataram que tiveram que adaptar esse conhecimento para utilizá-lo no contexto do
Paefi, uma vez que haviam aprendido a fazer o levantamento socioeconômico ou seguir um ro-
teiro predefinido. Além disso, uma das assistentes sociais relatou que está formada desde a

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VISITA DOMICILIAR: SIGNIFICADOS E DILEMAS 12

década de 1970, de modo que na época, conforme a política de assistência vigente, a postura do
profissional e a forma de realizar a visita tinham o caráter de fiscalização, o que diverge da atual
política.
Nesse sentido, para os participantes, a aprendizagem e a adaptação sobre a VD ocorre-
ram principalmente no Paefi por meio da prática, pois os técnicos observavam seus colegas e
duplas e “copiavam” ou “descartavam” as formas de realização da VD. Relataram também que os
profissionais iam trocando experiências, conversando e explicando, uns para os outros, o que se
fala, o que pode e o que não pode ser feito na visita. A psicóloga A10 relatou que aprendeu a
realizar a VD “fazendo e quebrando a cara”. Foi informado também que aprenderam a fazer vi-
sita lendo publicações de colegas sobre a VD e a partir da experiência em outros serviços. Rela-
tou-se a carência de materiais sobre a VD no contexto da PSE, principalmente pelos existentes
estarem relacionados a manuais e roteiros.

Vivenciando dilemas éticos na prática profissional


Essa subcategoria procurou congregar os dilemas éticos vivenciados pelos profissionais à
luz dos significados atribuídos à VD e da formação para sua prática. Os profissionais, quando
questionados sobre os dilemas éticos, mencionaram que, por vezes, tornam-se cúmplices do
Estado, que, em algumas circunstâncias, era considerado o principal violador de direitos. Sobre
isso, os participantes pontuaram que as famílias já vivenciaram negligências e que foram aten-
didas por vários serviços estatais e, dessa forma, como técnicos de referência, precisam refletir
se com a realização da visita não iriam fazer uma nova violação de direitos.

Eu acho que esse dilema ético que a A10 falou, às vezes foram famílias que já foram tão invadidas, tantos

serviços já atenderam, muitas vezes é o Estado que está negligenciando essa família. Eu vou lá ofertar o que

para essa família muitas vezes, né? Pega bem no dilema, vale ir lá fazer mais uma visita, exigir mais dessa

família do que já foi exigido? (A11).

Isso que a A11 falou agora para mim faz muito sentido. Você vai lá em nome de um Estado, que é o

principal violador, ele é o principal violador, você vai lá fazer o quê? Tem que pensar bem se vale fazer essa

visita. Daí cai naquela história do objetivo, vou fazer o que lá? Isso é uma coisa bem delicada (A9).

Outro dilema ético apresentado foi a ausência de políticas públicas efetivas relacionadas
às políticas de habitação:

Ela [a família] não tinha o banheiro dentro de casa, uma questão de condição mesmo da habitação de não

ter uma água potável, um chuveiro, um banheiro de fato ali. Então, como se faz uma denúncia, se exige uma

determinada postura dessa família, quando ela não tem nem as condições para prover essa condição? (A3).

A relação do Paefi com a Justiça foi também considerada pelos participantes outro dilema
ético institucional, na medida em que se constitui um viés na construção de vínculos familiares e

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comunitários. Os profissionais apontaram que, na maioria das vezes, as famílias confundem o


Paefi com o CT e associam o serviço à polícia e ao juizado. Nesse sentido, conforme aponta A2,
os profissionais são o “Estado dizendo: estamos aqui porque algum órgão determinou que você
seja atendido” e isso deixa o técnico em uma posição desconfortável. Além disso, os participantes
enfatizaram que faz diferença a forma como o CT fez o contato com as famílias, pois irá trans-
ferir essa relação para o Paefi.
Consoante a essa dinâmica institucional e segundo os profissionais participantes, as fa-
mílias, por vezes, omitem informações por medo das consequências. Sobre isso, A8 afirma:

[…] então fica um jogo assim de esconde-esconde, onde eles acabam escondendo algumas informações, e

a nossa parte é de desfazer isso aí, explicar qual é o objetivo do trabalho aqui no Paefi e derrubar um pouco

essas defesas que eles já colocam de primeira. Então, eles mantêm alguns segredos também na família,

porque para boa parte das famílias a gente não é confiável. Confiável no sentido de que “aquilo que eu estou

falando para eles, será o que eles vão fazer com essa informação? Será que eles vão utilizar para tirar o meu

filho?” (A8).

Diante disso, as famílias sabem que o relato delas ao profissional poderá ser registrado
no prontuário ou relatório e enviado ao juizado ou ao CT, o que foi pontuado como um dilema
ético, uma vez que o uso desses dois registros pode ter como consequência grandes proporções,
como a retirada da criança do contexto familiar. No contexto do Paefi, mencionou-se que a fa-
mília nuclear tem direito ao acesso aos prontuários e que neles constam informações de vários
membros familiares que podem estar em conflito entre si, como no caso das famílias em divórcio
litigioso. Além disso, citou-se que esse instrumento pode ser utilizado nas audiências, dando,
inclusive, acesso aos advogados, o que coloca em conflito o registro dos segredos relatados aos
profissionais durante os atendimentos.
Ao mesmo tempo que se pontuou que o acesso ao prontuário é um direito, foi indicado
que ele deveria ser mantido em sigilo, pois o registro detalhado ajuda o profissional na com-
preensão do caso. Nessa perspectiva, os profissionais afirmaram que, diante desse dilema, por
vezes, os detalhes e a compreensão da visita ficam armazenados em sua “mente”, pois transpô-
-los para o papel gera um conflito ético.
Os relatórios também foram apresentados como um dilema ético, na medida em que o
Judiciário obriga os profissionais a realizá-los. Uma das profissionais relatou que escreveu um
relatório detalhado para que os outros técnicos não precisassem acessar a família e assim evitar
que ela repetisse as narrativas da violência vivida e não fosse revitimizada. No dia da audiência,
no entanto, o promotor projetou o relato na parede e o leu para os presentes. Nessa linha de
raciocínio, a fim de construir um vínculo de cuidado com as famílias, os profissionais informavam
a elas que o Paefi correspondia a uma instituição separada do CT e do juizado; além disso, escla-
reciam que as informações fornecidas por elas seriam descritas no relatório a ser enviado ao
Judiciário e/ou CT.

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VISITA DOMICILIAR: SIGNIFICADOS E DILEMAS 14

A narrativa dos entrevistados evidenciou dilemas éticos relacionados à postura do pro-


fissional, no sentido de que ela variava conforme o entendimento do profissional sobre a forma
de realizar esse instrumento. Algumas das posturas percebidas por meio das falas dos profissio-
nais foram de respeito e alteridade, de proteção aos direitos e de fiscalização.
Em relação à postura de respeito e alteridade, os participantes identificaram comporta-
mentos empáticos e respeitosos com as pessoas e suas casas. Essas duas posturas correspondem
a uma forma de se relacionar com a família, como explicar, anteriormente, para ela o motivo da
visita, perguntar se ela concorda com a realização e agendá-la.
No caso de impossibilidade de agendamento da visita, os profissionais afirmaram que
abordam a família de maneira cuidadosa e explicam o motivo da VD, de forma a garantir uma
postura ética e respeitosa. Consoante a isso, relatou-se que a forma como os profissionais aden-
tram no contexto da família faz diferença para a definição do tipo de vínculo que se quer cons-
truir com ela. Nesse sentido, a ida à casa da pessoa e a permissão da entrada podem contribuir
para a relação de vínculo de confiança. Mediante isso, uma das profissionais pontuou que, para a
VD, o profissional precisa se preparar, o que significa definir um objetivo, ler o relato do pron-
tuário e estar aberto para observar o contexto e encontrar situações novas.
Os profissionais afirmaram que a postura de respeito e empatia perpassa pela com-
preensão de que cada família e cada técnico possuem uma concepção de higiene e de organização
da casa e que o profissional precisa evitar reproduzir a sua forma. Os participantes ainda indica-
ram que o técnico deve utilizar sua sensibilidade para sentir até onde pode ir no espaço e, nas
conversações com a família sobre isso, refletir se seu comportamento está sendo invasivo, uma
vez que há uma linha tênue entre invasão e visita por estar na privacidade do outro.

Em relação à visita […], não é ético de código de ética, mas ética da vida, ética do momento em que eu

estou indo, eu estou sendo invasiva. A minha preocupação é essa de não ser invasiva e não criar mais uma

violência, não provocar mais uma violência. Esse é o conflito ético que eu tenho em relação à visita domici-

liar (A14).

No que concerne ao atendimento, os participantes consideram respeitoso o profissional


pensar na família e não exclusivamente na denúncia e na violação encaminhadas pelo CT. Nesse
sentido, psicólogos e assistentes sociais afirmaram que é interessante o técnico esperar o tempo
da família caso ela não queira falar naquele momento sobre a denúncia, pois, em algum momen-
to, ela conseguirá trazer elementos daquela situação.
Além da postura de respeito e alteridade, outra postura identificada, por meio da narra-
tiva dos participantes, foi a de garantia dos direitos e de proteção das pessoas acompanhadas.
Nesse sentido, uma das entrevistadas declarou que a prioridade da equipe do Paefi é interromper
a violência e a violação de direitos, principalmente contra crianças e adolescentes, o que pode ser
realizado por meio da VD. Sobre isso, A8 e A7 indicam:

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As crianças e adolescentes têm direitos violados que não podem sair da casa e falar o que está acontecendo,

então o profissional precisa entrar para saber o que está acontecendo (A8).

A profissional será invasiva se for para proteger uma criança (A7).

Ainda sobre isso, os participantes declararam que, para garantir os direitos, os profissio-
nais podem respeitar a família até certo ponto, deixando claro que há um limite entre a postura
de respeito e a de garantia do direito.
Outra postura identificada é aquela que o profissional assume diante da solicitação da
Justiça e do CT para o acompanhamento destinado às famílias, pois, de acordo com os partici-
pantes, essas instituições esperam uma postura de fiscalização, monitoramento e controle das
famílias. Nesse sentido, os técnicos relataram que há um choque entre o que esses serviços de-
mandam e o modo como os profissionais gostariam de se portar diante das famílias, o que, se-
gundo eles, pode gerar uma crise de identidade no trabalhador. Evidenciou-se que o dilema está
entre responder ao que é solicitado judicialmente e ter cuidado para não ser invasivo, provocar
mais violência e ser um instrumento de controle do Estado.
A narrativa dos participantes também demonstrou uma postura policialesca dos profis-
sionais na VD, que está embasada em pensamentos como: “boa parte das famílias não é confiá-
vel […] e tem segredos” (A8), “onde há fumaça, há fogo”, “os que são visitados é porque têm
alguma denúncia, alguma coisa tem por trás”, “tem famílias que tentam o tempo todo mascarar”
e “as famílias mentem muito” (A7).
Além dos dilemas relacionados à postura do profissional, foi possível evidenciar dilemas
éticos contextuais e familiares na prática da VD. Nessa direção, o início dos atendimentos no
Paefi ocorria, principalmente, pelas demandas encaminhadas pelo CT e Judiciário, as quais che-
gavam por meio de uma guia de encaminhamento, com uma denúncia confirmada ou uma sus-
peita de violação de direitos. Os profissionais informaram que algumas denúncias que vinham
com guia do encaminhamento eram falsas ou narradas de forma moralista, exagerada, pouco
contextualizada e, por vezes, as situações não correspondiam à realidade familiar.
Os entrevistados relataram que a solicitação de atendimento, por meio da denúncia, era
somente a porta de entrada para o acompanhamento, uma vez que, ao acessar a família, eram
identificadas outras violações e vulnerabilidades. Em algumas circunstâncias, para a família,
eram mais urgentes suas próprias necessidades do que as da denúncia gerada. Evidenciou-se que
isso, por vezes, gerava um dilema aos profissionais, no sentido de que a família queria falar de
outros temas, entretanto a responsabilidade em resolver a demanda encaminhada colocava os
profissionais em “choque” (A3) entre a solicitação e o que eles percebiam que precisaria ser rea-
lizado e, por vezes, devido à urgência, focavam as necessidades familiares em detrimento da
denúncia.
No que tange aos dilemas éticos no contexto comunitário, os profissionais trouxeram à
tona a dificuldade do sigilo e a discrição do atendimento, conforme apontam os excertos: “vai
fazer entrevista na casa e o vizinho tá ouvindo pela janela” (A8) e “tive situações de a

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vizinhança toda estar na janela para assuntar o que está acontecendo” (A7). Outro relevante
dilema ético apresentado pelos entrevistados é a relação entre a prática da VD e a influência do
tráfico de drogas na organização social da comunidade. Os profissionais afirmaram que as pes-
soas ligadas ao tráfico podem representar uma força de proteção e cuidado dentro da comuni-
dade, ao passo que podem ser uma força de opressão e violência. Nesse sentido, é preciso ter
cautela na avaliação sobre a forma de execução do trabalho. Às vezes, por exemplo, há “barrica-
das” feitas pelos traficantes, de modo que o profissional fica em um triângulo entre ser proteti-
vo com a família na garantia de seus direitos, realizar a demanda do Judiciário para o atendimen-
to e ter a passagem limitada pelo tráfico de drogas.

Discussão
Significando a visita domiciliar no processo de trabalho institucional à luz da formação
Os profissionais apresentaram as transformações em seu saber-fazer no contexto do
Paefi devido à implantação da Pnas, de forma similar aos dados encontrados. Sobre isso, Cruz e
Guareschi (2014) trazem à tona a mudança epistêmica da política de assistência social brasileira
e ainda afirmam que isso significou uma reforma do modelo de atenção. Nesse sentido, foi pos-
sível evidenciar uma profunda alteração na política da assistência, a qual exigiu, principalmente,
uma reestruturação da prática e postura profissional.
Os dados mostraram que os atendimentos realizados pelo Paefi ocorrem de forma inter-
disciplinar, ou seja, formada por uma dupla profissional composta por um psicólogo e um assis-
tente social, conforme preconizado pela Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do
Suas (NOB-RH/Suas) (Brasil, 2006) e abordado no trabalho de Jorge (2015) no sentido da im-
portância de o atendimento ser realizado por uma dupla psicossocial. As narrativas também vão
ao encontro dos resultados do estudo de Jorge (2015) no sentido de que o trabalho interdiscipli-
nar, no Creas, consiste em um movimento horizontal de “fazer com o outro”, principalmente por
envolver temas complexos relacionados à violência e à vulnerabilidade social; diante disso, a
prática interdisciplinar entre psicólogos e assistentes sociais contribui para ampliar os conheci-
mentos dos profissionais. De forma complementar aos achados da pesquisa, o CFP (2012) enfa-
tiza que a intervenção psicossocial é uma nova forma de trabalho que, por meio do conhecimen-
to específico de cada categoria profissional, ocorre a partir de uma leitura ampliada do contexto.
Especificamente no campo da psicologia, em certa medida, os dados vão ao encontro da publi-
cação do CFP (2012), uma vez que, no trabalho psicossocial, a psicologia agrega aspectos do
campo subjetivo relativos às relações familiares e contextuais.
Com base nos dados, foi possível identificar que, por meio da verificação de denúncia e
constatação da violação de direitos, o SGD encaminha as famílias ao atendimento no Paefi. Esse
dado coaduna-se com os documentos do estado do Rio de Janeiro (2013), do CFP (2012) e da
pesquisa de Lima (2011), uma vez que a maioria das famílias acompanhadas pelo Paefi é oriunda
de encaminhamentos do SGD, principalmente do CT, que, de certa forma, exigem a realização da
VD. Diante da obrigatoriedade da visita, os profissionais relataram que os usuários apresentam

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uma série de sentimentos em relação à VD, como constrangimento, desconforto, apreensão e


medo, o que se coaduna com a pesquisa de D’Avila (2018), na medida que as visitas foram com-
preendidas pelas famílias como uma forma de cobrança, fiscalização e avaliação, principalmente
por estarem vinculadas ao CT e ao Poder Judiciário. D’Avila (2018) ainda afirma que a forma como
o fluxo está posto gera na família ansiedade em razão da possibilidade do acolhimento institu-
cional das crianças, o qual acaba prejudicando a família na superação da violência.
Em relação aos sentimentos dos profissionais, os dados encontrados vão ao encontro dos
estudos de D’Avila (2018) e Dias et al. (2019), uma vez que o contexto de vulnerabilidade e o
contexto institucional da PSE podem ser geradores de sofrimento psíquico e de adoecimento nos
profissionais, haja vista os técnicos lidarem, cotidianamente e durante horas, com situações de
violência e impotência profissional. Isso corrobora os resultados obtidos por D’Avila (2018) no
que concerne à importância da construção de estratégias institucionais que façam parte do pro-
cesso de trabalho para o cuidado do profissional.
Enfatiza-se, neste estudo, a fala dos profissionais no sentido de que cada serviço realiza
a VD de forma diferente, pois cada instituição, seja da política da assistência social, da saúde, da
educação ou do SGD, faz parte de um ponto de uma rede específica que possui pressupostos,
objetivos e demandantes diferentes, o que gera posturas, práticas e dilemas singulares. Nesse
sentido, embora se reconheçam as características comuns, ratifica-se a especificidade de reali-
zação da VD no contexto da PSE de média complexidade.

Formação dos profissionais sobre visita domiciliar


Com base nos dados, foi possível identificar um despreparo dos profissionais da psicolo-
gia e do serviço social em termos de formação acadêmica e de capacitação ofertada pelo próprio
serviço para a realização da VD no contexto do Paefi, deixando a eles a responsabilidade de pre-
paração para a utilização desse instrumento. Diante dessa situação, a estratégia utilizada foi a
autodidata, em que se aprende fazendo e/ou adaptando o conhecimento conforme melhor en-
tendimento dessa prática. Esses dados, no contexto da graduação em Psicologia, encontram
amparo nas pesquisas de Lima e Schneider (2018) e Ribeiro e Guzzo (2014), uma vez que, para
esses autores, há um déficit na formação do profissional psicólogo, o que faz com que este inicie
o trabalho na proteção social despreparado, desconhecendo os princípios da política de assistên-
cia social, sua postura ético-política e o entendimento sobre o trabalho interdisciplinar. Ainda
nessa direção, Faleiros et al. (2019) trazem à tona que os psicólogos, no contexto da proteção
social básica, não desejam trabalhar nessa política e esperam fazer uma prática exclusivamente
clínica. Soma-se a isso o estudo de Scott et al. (2019), no sentido de que a VD, no contexto do
Cras, era realizada predominantemente pelo assistente social. Nesse sentido, corroboram-se os
achados de Lima e Schneider (2018), Ribeiro e Guzzo (2014), Faleiros et al. (2019) e CFP (2012)
quando apontam que um dos desafios é a reestruturação da formação acadêmica dos psicólogos,
a fim de atender às novas realidades no campo de atuação da Psicologia, como é caso da política
de assistência social.

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De forma similar ao contexto de formação da psicologia e considerando os dados da


pesquisa, Dias et al. (2019) defendem que há desconhecimento e despreparo do assistente social
e das demais categorias profissionais para o trabalho na política de assistência social. Para esses
autores, os profissionais não estão capacitados por três principais motivos: 1. pela recente criação
do Suas, já que não havia um sistema anterior que realizasse a construção desse novo modelo de
trabalho e do perfil profissional, 2. pelo fato de os modelos de atuação para essa política ainda
estarem em desenvolvimento e 3. pela formação acadêmica não estar preparando o profissional
para o trabalho nesse contexto. Nesse cenário, parece que o profissional da política de assistên-
cia social tem sua prática tensionada pela ausência de referenciais teórico-metodológicos, o que
pode gerar burnout, haja vista não ter uma preparação adequada e vivenciar inúmeros dilemas
éticos.

Vivenciando dilemas éticos na prática profissional


A partir do cenário que envolve uma nova política de assistência, ausência de formação
adequada e uma nova prática profissional em territórios vulneráveis, os técnicos vivenciam, no
contexto do Paefi, inúmeros dilemas éticos e parecem ficar desprotegidos ante as solicitações
institucionais, comunitárias e familiares.
Em relação às dinâmicas institucionais, os profissionais trouxeram como dilema ético a
posição que o Paefi ocupa no fluxo de atendimento, sendo considerado, pelas instituições do
SGD, um braço do Estado e, pelas famílias atendidas, um representante dele. Nesse momento, é
posto o dilema, pois, ao mesmo tempo que os profissionais são o Estado e devem garantir os
direitos, por vezes, o maior violador é o Estado, no sentido da negligência social. Esse dado coa-
duna-se com Pereira (2019) no sentido de que o Estado propõe as estratégias para garantir os
direitos sociais e, ao mesmo tempo, por vezes, negligencia as condições de existência, principal-
mente, da população pobre, negra e periférica.
Ainda em relação à posição do Paefi no fluxo institucional, mesmo este localizando-se
na política da assistência social, sua prática está entre a determinação da Justiça, a qual faz par-
te do SGD, e o desejo das famílias atendidas em um contexto de vulnerabilidade. Esse dado vai
ao encontro das pesquisas de Dias et al. (2019) e D’Avila (2018), uma vez que, por um lado, várias
usuárias não compareciam ao serviço mesmo com as tentativas de a equipe manter o vínculo por
meio das VD; e, por outro, havia o sistema de justiça, o qual exigia o atendimento e impedia o
desligamento das usuárias, mesmo os técnicos já tendo realizado diversos movimentos de res-
gate do caso. Nesse sentido, para D’Avila (2018), ficava evidente o esforço dos técnicos em criar
mecanismos que abarcassem os pressupostos da política de assistência, a demanda do sistema
de justiça e os desejos dos usuários. Diante disso, identifica-se que, dentro desse sistema, a
equipe não possui qualquer autonomia, uma vez que é “sujeitada” a esse fluxo, o que pode re-
meter a uma crise de identidade profissional, conforme já mencionado. Para Dias et al. (2019),
essa dinâmica faz com que os profissionais se sintam solitários na decisão sobre a demanda: “A
quem devem responder: ao Judiciário, à política ou ao usuário?”. Essa pergunta parece remeter a

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uma outra: “Qual é o limite entre a garantia da autonomia familiar e a garantia de direitos pe-
rante as violações?”.
O Paefi se localiza no interstício entre as dimensões política, institucional e o usuário,
que tensionam os profissionais a se posicionar diante das VD, os quais podem apresentar, prin-
cipalmente, uma postura de respeito e/ou de fiscalização. Esses dados coadunam-se com a lite-
ratura, segundo a qual, por um lado, nas visitas, os profissionais devem respeitar a privacidade
familiar e realizar agendamento, desorganizando o mínimo possível o cotidiano da família (Amaro,
2014; CFP, 2012) e, por outro, no estudo feito por D’Avila (2018), no contexto da proteção social,
as VD raramente são agendadas, de modo que os profissionais chegam de surpresa. Soma-se a
isso o fato de que, por vezes, a atuação dos profissionais da proteção básica do Suas é de fisca-
lização e visa à higienização (Santos & Heckert, 2017). Evidencia-se que a postura de fiscalização
da equipe, possivelmente, relaciona-se com a posição policialesca do encaminhador, do históri-
co de a política de assistência ter um caráter assistencialista e punitivo, e da ausência de mate-
riais e formações sobre a realização da VD.
No que diz respeito aos relatórios, os dados apontaram que sua realização é obrigatória,
haja vista os casos atendidos serem judicializados. Esse dado coaduna-se com D’Avila (2018),
Lima (2011) e Péres e Moré (2021) no sentido de que, quando a família não adere ao serviço ou
quando este é encerrado, é necessário informar ao órgão demandante para que tome as medidas
necessárias. A partir do relatório, é possível perceber o poder de polícia dado à equipe do Paefi, o
que compromete a tentativa de construção de vínculo.
Em relação aos dilemas éticos que ocorrem no contexto comunitário, os dados eviden-
ciaram que a demanda solicitada ao Paefi se relacionava, exclusivamente, à violência e de forma
estática, desconsiderando toda a complexidade que envolvia a família em seu contexto vulnerá-
vel. Isso vai ao encontro da pesquisa de Lima (2011) no sentido de que, em um dos casos anali-
sados, a demanda de atendimento do Judiciário foi a de negligência, mas os profissionais, ao
iniciarem o atendimento, identificaram outras necessidades de cuidado, como o uso abusivo de
drogas da progenitora, transtorno psiquiátrico do pai e situações precárias decorrentes da con-
dição socioeconômica. Por meio desse dilema ético, evidencia-se que o pedido principal do en-
caminhador ao Paefi está atrelado a uma série de outras demandas sociais e de saúde e, nesse
sentido, o profissional precisa tomar uma decisão importante: “Por onde iniciar o atendimento?”.
Outro dilema ético comunitário apresentado pelos profissionais relaciona-se com as re-
presentações que os vizinhos têm sobre as famílias atendidas pelo Paefi. Esse dado vai ao encon-
tro do estudo de D’Avila (2018), uma vez que essa autora afirma que os vizinhos, eventualmen-
te, vão ao portão de suas casas observar a abordagem e, assim, as famílias descreveram que,
além da surpresa pela chegada dos profissionais, sentem-se expostas nos bairros em que vivem.
No tocante às considerações apresentadas, observa-se que os trabalhadores, no contex-
to da PSE, lidam diariamente com: 1. demandas de vulnerabilidade e sofrimento das pessoas, 2.
contextos comunitários violentos, 3. altas demandas emocionais, 4. fila de espera das famílias
para serem atendidas, 5. ausência de formação adequada, 6. um fluxo interinstitucional

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demandante que causa vieses para a compreensão da dinâmica familiar e para a construção do
vínculo, 7. o fato de estarem sujeitos ao fluxo e impotentes no que concerne à resolução de al-
gumas demandas, 8. ausência de desejo ou medo de as pessoas serem acompanhadas e 9. crise
de identidade profissional. Esse conjunto de elementos leva a inúmeros dilemas éticos, à tomada
de decisões difíceis e ao possível adoecimento da equipe. Esses dados, em certa medida, corro-
boram os resultados obtidos por Schmidt (2013), uma vez que os técnicos, ao trabalharem em
contextos que exigem alta demanda psicológica, além do baixo controle sobre o trabalho, têm a
probabilidade de apresentar doenças físicas e psíquicas decorrentes do estresse, haja vista o alto
desgaste físico e emocional.

Considerações finais
Esse conjunto de dados e discussões apresentados configurara a categoria central “atri-
buindo significados e dilemas éticos relacionados à VD na perspectiva dos profissionais”, a qual
evidenciou que o Paefi se localiza numa triangulação entre os serviços que compõem o SGD, as
famílias atendidas e o contexto comunitário, e que cada eixo desse possui demandas e expecta-
tivas diferentes dos profissionais, os quais, para garantir o atendimento e responder a todos os
pedidos dos envolvidos nessa triangulação, realizam um balanceamento de como melhor aten-
dê-los. No vértice composto pelo SGD, há uma solicitação de fiscalização relacionada, exclusiva-
mente, à denúncia e à violência, o que potencializa, nos profissionais, uma postura de fiscaliza-
ção. Já no ponto de intersecção em que está localizada a família, há um pedido de cuidado,
sigilo e respeito por sua autonomia e seu desejo. No ponto em que está o contexto comunitário,
há um pedido implícito de cuidado, em razão das vulnerabilidades sociais e de uma imposição de
limites dados pelo tráfico de drogas e pelo contexto comunitário. É nessa perspectiva e conside-
rando os princípios da política de assistência social que os profissionais precisam tomar decisões
e fazer os atendimentos.
Soma-se a isso o fato da recente mudança epistêmica da política de assistência social, a
qual exige um novo saber-fazer e uma nova postura profissional, uma vez que passou de uma
lógica assistencialista para uma lógica de fortalecimento de autonomia e cidadania. Essa mudan-
ça epistêmica abarca elementos conceituais, teóricos e práticos. Percebe-se que essas mudanças
da política não foram acompanhadas pelos cursos de graduação em Psicologia e Serviço Social,
ou mesmo pelo próprio Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, ficando a car-
go dos profissionais o aprendizado de como utilizar os instrumentos socioassistenciais, como a
VD. Isso implica vivenciar e aprender, na prática, as dificuldades e os dilemas que fazem parte da
visita, o que pode, por vezes, colocar em risco a vida do profissional e gerar condutas fiscaliza-
doras.
Os diferentes contextos com solicitações ambivalentes, a mudança epistêmica da assis-
tência, a ausência de formação sobre VD no contexto da PSE e a dualidade vivenciada pelos
profissionais do Paefi em serem, ao mesmo tempo, representantes do Estado e cúmplices da
violação de direitos sociais fazem com que eles convivam cotidianamente com os dilemas éticos,

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o que implica refletir e tomar uma decisão nas articulações entre a ética pessoal, a ética profis-
sional e a ética da comunidade perante suas possíveis consequências.
A partir das considerações tecidas, em um contexto comunitário de vulnerabilidade social
que impacta e em um contexto institucional que gera impotência, emergem, nos técnicos, o
sofrimento e a crise. Diante disso, urge a necessidade de 1. organização do processo de trabalho
com vistas a dirimir os dilemas éticos vivenciados diariamente pelos profissionais, 2. inclusão,
nas graduações em Psicologia e em Serviço Social, da temática da VD no contexto do Paefi e dos
dilemas éticos, 3. espaços institucionais que capacitem os técnicos sobre a prática profissional,
sobretudo a VD, 4. reorganização do fluxo institucional, principalmente do pedido e da forma
como ele chega ao Paefi.
Considera-se que as limitações do estudo concernem à ausência de publicações que
dialoguem com a temática da VD, sendo utilizadas para a discussão as literaturas cinzentas,
como teses e dissertações. Outra limitação remete ao fato de a coleta dos dados ter sido realiza-
da em um município no Sul do Brasil, e, nesse sentido, e considerando que os contextos são
singulares, os significados das VD e suas realizações pelos profissionais podem variar nas dife-
rentes localidades do território brasileiro. Desse modo, pesquisas sobre os significados e dilemas
éticos da VD nos diferentes contextos brasileiros são necessárias, principalmente depois de vistas
as lacunas na produção de conhecimento no contexto da atenção psicossocial.
A mais, destaca-se a necessidade de espaços institucionais que potencializem a atenção
psicossocial interdisciplinar, que problematizem os dilemas éticos vivenciados pela equipe e que
instrumentalizem os profissionais para a realização da visita.

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