Desafios da prática gerencial em saúde da família
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Desafios da prática gerencial em saúde da família - Lícia Marques Vidal
PREFÁCIO
Este livro, de autoria de Lícia Vidal, se insere no amplo e fecundo debate sobre as formas de organização e gestão das Equipes de Saúde da Família (eSF). A Atenção Básica em Saúde tem sido amplamente estudada no Brasil. É vasta a produção acadêmica e técnica sobre os arranjos organizacionais, o desempenho e as práticas de trabalho das eSF. No entanto, os aspectos gerenciais das equipes apresentam-se ainda como lacuna de conhecimento que requer maior aprofundamento teórico e embasamento científico a fim de aprimorar as práticas de trabalho e possibilitar maior resolutividade dos serviços de saúde.
Neste sentido, Lícia mostrou aguçada sensibilidade social e destacada competência técnico-científica na escolha do objeto do estudo que deu origem ao livro. Conforme pode-se observar nas páginas introdutórias do Capítulo 1, a trajetória profissional da autora foi o principal fator que a fez despertar o interesse pela temática. Desde que concluiu a graduação em Enfermagem na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), Lícia tem atuado no Sistema Único de Saúde (SUS) em contextos relacionados à atenção básica, seja como enfermeira da Saúde da Família ou em funções de gestão. Assim, a partir de suas vivências, inquietudes e desejos sentiu a necessidade de buscar conhecimentos e explicações que a prática cotidiana dos serviços não podia lhe conceder. Isso demonstra o agir de alguém implicada com o que faz e comprometida com a saúde da população e com o SUS integral e resolutivo.
Sobre o objeto do estudo, importante destacar que trata-se das práticas gerencial e administrativa, desenvolvidas no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS). Aqui cabe uma distinção a respeito da confusão semântica entre os termos Atenção Básica e Atenção Primária que são utilizados para se referir ao primeiro nível de atenção do sistema de saúde. No Brasil, o termo mais comumente utilizado é Atenção Básica em Saúde. Essa foi a nomenclatura adotada pelo Ministério da Saúde e ainda hoje é amplamente utilizado por profissionais e gestores da saúde. Por sua vez, Atenção Primária é a terminologia usada no cenário internacional e por grande parte dos acadêmicos que estudam o assunto. Embora existam discussões sobre potenciais diferenças, no Brasil os dois termos são utilizados como sinônimos. Para além da terminologia que se utilize, concerne situar a APS, objeto de estudo de Lícia, no contexto mais amplo das políticas de saúde.
Desde a conferência de Alma-Ata, realizada em 1978, o debate sobre a Atenção Primária à Saúde ganhou centralidade nos sistemas de saúde da maior parte dos países. A carta aprovada nesta conferência trouxe uma perspectiva de atenção primária não apenas como serviço de primeiro contato e de abordagem simplificada, mas, sobretudo, como um conjunto de práticas integrais em saúde direcionadas a responder as necessidades individuais e coletivas.
Dentre muitos outros aspectos relevantes apresentados na Declaração de Alma-Ata, vou aqui destacar três. O primeiro deles é a afirmação de que a saúde é um direito humano fundamental
. O segundo é que a saúde é a mais importante meta social mundial
. O terceiro refere que a garantia da saúde requer a ação de muitos outros setores sociais e econômicos, além do setor saúde
. Numa análise, não exaustiva, desses aspectos destacados se evidencia que o primeiro representa o elemento do direito, o segundo a centralidade da saúde para os governos e o terceiro a amplitude do entendimento sobre saúde.
Ao estabelecer a saúde como direito humano fundamental, Alma-Ata contrapõe-se à mercantilização do setor. Se é um direito humano, é de responsabilidade dos governos o provimento e a garantia dos cuidados. O segundo destaque foi colocar a saúde como principal elemento de atuação dos governos e dos organismos internacionais. Ao evocar a saúde como principal meta social, o debate sobre a temática alargou-se e passou a ocupar a agenda discursiva e decisória dos diversos países do globo. Assim, todas as nações avançaram, inclusive o Brasil, com mecanismos e formas para estruturar, organizar e ampliar a atuação da Atenção Primária. O terceiro elemento é o que se relaciona com o conceito ampliado de saúde. Assim, se coloca em evidência uma abordagem de saúde não só como ações assistenciais, mas sobretudo como resultante das condições de vida. A partir de então, a discussão sobre os determinantes sociais da saúde ganha ainda mais força e vai também influir sobre a organização dos cuidados em saúde.
Embora tenha se constituído em um marco do setor, as proposições de Alma-Ata, ao longo desses quarenta anos, passaram a ser questionadas e foram objeto de ataques e desvirtuamentos por motivações diversas. O principal argumento utilizado é que são proposições demasiadamente abrangentes e inviáveis de serem executadas na realidade dos sistemas sanitários. Desse modo, diversas concepções de simplificação da Atenção Primária foram desenvolvidas.
Dois principais modelos passaram a influenciar a conformação da Atenção Primária. Um denominado de APS abrangente ou integral que se fundamenta nos preceitos de Alma-Ata. Nessa abordagem, a APS é integrada ao sistema de saúde e deve garantir a integralidade do cuidado e a participação social. Os princípios dessa abordagem são: a necessidade de enfrentar os determinantes sociais da saúde, a integralidade do cuidado, a participação comunitária, a ação intersetorial, a disponibilidade de tecnologias apropriadas e o uso eficiente dos recursos. O outro modelo é a atenção primária seletiva que se fundamenta em programas focalizados com cesta restrita de serviços destinadas a enfrentar um conjunto limitado de problemas de saúde nos países em desenvolvimento. Normalmente, se destina apenas à população mais pobre ou grupo populacionais específicos. As ações são principalmente destinadas ao controle de doenças mais prevalentes nas comunidades ou aos cuidados materno-infantil, com execução de ações de: monitoramento do crescimento infantil, reidratação oral, incentivo ao aleitamento materno, imunização e complementação alimentar.
É diante desse contexto que a Saúde da Família surge e se desenvolve no Brasil. Importante frisar que para além das influências e disputas internacionais, a estruturação da Saúde da Família ocorreu como parte integrante de organização e expansão do Sistema Único de Saúde. Os princípios da universalidade, integralidade e equidade e as diretrizes da descentralização e participação da comunidade moldaram em grande medida a conformação do nosso modelo de atenção primária, chamado por aqui de atenção básica. Assim, o então Programa de Saúde da Família (PSF) foi instituído pelo Ministério da Saúde em 1994 e, desde então, passou por diversas metamorfoses institucionais a fim de melhor prestar os cuidados primários à população brasileira. Convertido em Estratégia Saúde da Família (ESF) desde 2006, esta é a forma prioritária de estruturação da APS no Brasil e de reorganização do modelo assistencial no país.
O livro aborda o processo de trabalho na prática gerencial desenvolvido nas unidades de saúde da família. Nesse sentido, Lícia chama a atenção para uma primeira questão observada em sua experiência profissional e referendada pela literatura especializada. Quem faz a gerência na saúde da família? De acordo com a primeira versão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) de 2006 e sua revisão em 2011, todo profissional que compõe a eSF pode exercer a gerência da equipe. No entanto, habitualmente essa é uma função exercida quase que exclusivamente pelos(as) enfermeiros(as). Em quase todo país, a atuação do(a) enfermeiro(a) na Saúde da Família converteu-se em sinônimo de gerência da equipe.
A partir dessa realidade, o grande dilema que se apresenta é a complexidade do trabalho do(a) enfermeiro(a) em conciliar as atividades gerenciais com a prática assistencial, que também deve ser desenvolvido por este(a) como integrante da equipe. No âmbito do estudo, Lícia assume como pressuposto que o processo de trabalho na prática gerencial possui limitações por ser desenvolvido pelo(a) enfermeiro(a) com as atividades assistenciais. Diante do acúmulo de atribuições distintas, o profissional vivencia a necessidade de fazer escolhas e, por conseguinte, acaba por não conseguir desenvolver a contento nenhuma das duas atividades, a gerencial e a assistencial.
Um importante referencial teórico concede sustentação ao estudo. Embora a autora assuma que não pretende realizar análise aprofundada dos aspectos teóricos concernentes, ela demonstra maturidade acadêmica ao definir as categorias teóricas: trabalho, processo de trabalho em saúde e gerência em saúde. Na primeira categoria, ela busca abordar a relação homem-trabalho na perspectiva do mais importante sociólogo do século XIX, Karl Marx. O livro não aborda diretamente os escritos de Marx e não adentra nas discussões mais complexas do autor. Utiliza de clássicos autores marxistas brasileiros, a exemplo de Emerson Merhy e Mendes-Gonçalves, para discutir o que interessa mais diretamente ao tema em estudo. Assim, é abordada a centralidade do trabalho na vida humana tanto como forma de obtenção dos meios de sustento quanto mecanismo de sociabilidade e reconhecimento. Outros importantes aspectos tratados são a liberdade e a criatividade do trabalho humano, elementos essenciais para o desenvolvimento do trabalho em saúde.
A segunda categoria teórica contempla justamente o processo de trabalho em saúde. Além dos dois autores anteriormente citados, Lícia também se apoia nos mais importantes pensadores do campo da Saúde Coletiva que discutem o trabalho em saúde: Campos, Pires, Mishima e Franco. A partir desses, discute as peculiaridades do trabalho em saúde como um trabalho vivo, que não se acumula e que possui um objeto complexo de intervenção que são as necessidades de saúde em suas mais variadas dimensões.
A terceira categoria se destina à discussão sobre a gerência nas unidades de saúde da família. Esta é a parte de maior destaque da revisão da literatura. A autora aborda os clássicos da administração, Taylor e Fayol, e avança nos conceitos da administração científica e nos principais aspectos da teoria das organizações. A partir de contextualizações sobre as peculiaridades do trabalho em saúde, discute os aspectos mais diretamente ligados à gerência das USF e a importância das tecnologias leves nesse processo. Para finalizar a revisão da literatura, recorre ao modelo de cogestão proposto por Gastão Wagner. De maneira crítica, não adere irrefletidamente a esse método e pondera que esse não irá resolver todos os problemas das equipes. Sugere que essa é uma alternativa com características democráticas e participativas possível de ser utilizada e produzir avanços na gerência das eSF.
No capítulo metodológico, Lícia apresenta com propriedade toda a trajetória percorrida. Essa parte do livro atende ao rigor científico necessário aos estudos qualitativos e as perspectivas de análise dialética, como se propõe a autora. Chama a atenção a riqueza de detalhes da descrição do campo de estudo. Jequié, cidade onde a pesquisa se desenvolve, é apresentada contemplando-se os aspectos históricos, geográficos e políticos. A descrição da rede de atenção à saúde da Cidade Sol possibilita ao leitor um claro diagnóstico da estrutura assistencial existente, inclusive com a apresentação de toda rede básica de saúde. Sobre as formas de obtenção de dados e informação e sobre os participantes do estudo, em ambas as partes, Lícia recorreu à triangulação para ampliar o olhar sobre o objeto e conceder mais robustez à pesquisa.
Os resultados estão descritos em três capítulos a saber: Prática gerencial do enfermeiro no PSF
; Compreensão do processo de trabalho gerencial do PSF
; e Alcances e limites no processo de trabalho gerencial do PSF
. Estes três capítulos, com suas respectivas subdivisões, são desenvolvidos como uma trama analítica que ao mesmo tempo em que vão abordando a temática específica se entrelaçam com os demais e vão dando forma a um arcabouço empírico e reflexivo capaz de responder aos objetivos propostos e fundamentar reflexões consistentes sobre os pressupostos estabelecidos.
Não é possível no espaço desse prefácio comentar sobre todos os achados do estudo. Contudo, não posso deixar de destacar algumas evidências que considero merecer maior atenção por parte do leitor. A primeira delas foi a identificação de um modelo vertical de gerência e gestão. Ou seja, a enfermeira centraliza o processo de gestão com relação aos demais membros da equipe ao passo que a Secretaria de Saúde de Jequié adota um modelo de gestão verticalizado com pouca valorização da autonomia criativa por parte dos gerentes da USF.
Outro aspecto que se relacionou negativamente com o bom desempenho da gerência foi o caráter de cargo político conferido aos enfermeiros das eSF. Esses são contratados por livre nomeação pela prefeitura e ocupados, com frequência, a partir de apadrinhamentos políticos sem se considerar qualquer critério técnico. Embora Lícia tenha mantido certa naturalidade
acadêmica sobre essa situação, não deixarei de destacar que esta faceta dos resultados é reveladora de uma prática política retrógrada, ultrapassada e com requintes coronelísticos que, infelizmente, ainda persiste em Jequié. Nesse contexto, desconsidera-se educação de alto nível desenvolvida pela Uesb com a formação de enfermeiros, de especialistas em saúde coletiva, de mestres e de doutores, os quais poderiam contribuir para qualificação da gerência e do cuidado prestado aos usuários.
O meu último destaque diz respeito ao acúmulo entre ações gerenciais e assistenciais identificados por Lícia e que confirmam o pressuposto teórico anunciado na introdução do livro. Mostrou-se inviável a sobreposição de atividades por parte dos enfermeiros. Conforme evidenciado no estudo, o trabalho do(a) enfermeiro(a) tem se deslocado das ações de cuidados em saúde, sejam clínicas ou de promoção da saúde, para atividades burocráticas.
Por fim, chamo a atenção para o comprometimento da autora com a transformação das práticas de gerência e com o melhor desempenho da Saúde da Família. O livro não se restringe a apresentação de compreensões sobre o fenômeno estudado. A partir das principais conclusões da investigação e com uma ampla experiência profissional e de gestão, a autora apresenta ao final da obra sugestões embasadas e de grande potência transformadora a serem implementadas em Jequié ou em outras localidades onde as dificuldades com a gerência se assemelham.
O livro é um convite à reflexão e ao debate sobre a gerência na saúde da família que em última instância dizem respeito ao fortalecimento e à consolidação do SUS. Espero que aproveitem!
José Patrício Bispo Júnior¹
Notas
1. Doutor em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz. Mestre em Saúde Pública pela Uece. Fisioterapeuta formado pela Uesb. Professor Instituto Multidisciplinar em Saúde (IMS) na UFBA. Compõe o quadro permanente de professores do mestrado em Saúde Coletiva do IMS-UFBA.
INTRODUÇÃO
O tempo apaga o que o tempo escreve. O tempo cura o que o tempo fere. As nossas procuras hão de ter um fim. As nossas perguntas têm respostas, sim... (Há uma Luz maior – Manno Góes e Mané Filho)
O homem é dotado de imensa capacidade de observar, perceber, inventar e reinventar-se constantemente, estando em permanente busca e anseio por um novo saber. Contudo, ao aproximar-se das respostas que procura ao seu redor, depara-se com outras interrogações e inquietações que sempre o motivam a lançar-se mais e mais no campo infinito do conhecimento.
Essa busca humana incessante é motivada, por vezes, pela necessidade de sobreviver em grupo, de contribuir com o outro e de encontrar-se a si mesmo enquanto ser no mundo. Não há como trabalhar apenas com a certeza sensível e verificada, pois todo fato traz consigo uma contradição e um conflito, que pode ser amenizado ou esclarecido por meio do diálogo com a aproximação e envolvimento de determinado objeto para a explicação da realidade (Konder, 1987; Nascimento Junior, 2000).
A realidade aqui citada diz respeito às vivências do próprio homem, que incorpora seus saberes, seus fazeres e suas conquistas. Maia (2006), numa inspiração do pensamento marxista, diz que, ao longo da sua história, o homem faz história e, mesmo sem conseguir interpretar o mundo ao seu redor, ele o transforma. Assim, a partir das nossas experiências de vida apreendemos conhecimentos e construímos novos em um fluxo dinâmico que permeia teoria e prática, acertos e erros, num devir de aprender, (des)aprender, entre caminhadas e paradas para se chegar ao desbravamento do conhecimento.
Segundo Donnangelo (1983), a saúde coletiva deve ser entendida como uma delimitação aproximada do campo da saúde, considerando-a como ponto de partida, tendo em vista sua tendência de ampliação e recomposição de espaço de intervenção em seus saberes e práticas. Os espaços que constituem a área de conhecimento da saúde coletiva são apontados por Nunes (2006, grifo nosso) como sendo: as Ciências Sociais e Humanas, a Epidemiologia e a Política e Planejamento.
Aqui, adentramos nos espaços da Política e Planejamento ao nos aproximarmos da formulação e condução de planos e programas em saúde (referindo-nos ao PSF) e do estudo das relações e do exercício do poder (referindo-nos à prática gerencial no PSF), mais necessariamente na política de saúde² que diz respeito à organização das práticas de saúde e à formulação de propósitos e diretrizes a partir das necessidades sóciohistóricas e das condições de vida da população.
O PSF é o locus das nossas vivências, situado na política de saúde brasileira, como uma estratégia que prioriza as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde dos indivíduos e das famílias, eleito pelo Ministério da Saúde (MS) como uma nova lógica de atenção à saúde para (re)organização da atenção básica. Ainda que as dificuldades para o cumprimento do intento de seus idealizadores sejam notórias, o programa faz parte do cenário político da saúde no Brasil e configura-se na atualidade com uma perspectiva de operacionalidade das mudanças necessárias quanto aos cuidados primários à saúde.
As vivências no PSF tiveram início no ano de 2001 quando participamos no processo de implantação de uma Unidade de Saúde da Família (USF) no município de Itiruçu/Bahia, permanecendo na equipe durante dois anos, e, posteriormente, devido à aprovação em concurso público no município de Jequié/Bahia, continuamos a atuar no PSF, no período entre 2004 e 2009, totalizando cerca de sete anos desenvolvendo ações, tanto assistenciais como gerenciais.
A atuação na equipe de saúde da família (ESF) proporcionou-nos envolvimento com algumas responsabilidades gerenciais, ora relacionadas à Secretaria Municipal de Saúde (SMS), ora aos usuários/comunidade, que, entrelaçadas, repercutiam diretamente no processo de trabalho em saúde. Responsabilidades essas que estavam diluídas em todo o fazer e operacionalizar das ações, das quais, muitas vezes, dependia o trabalho da própria equipe.
Tais ações envolviam, dentre outras, organização, planejamento, avaliação, supervisão, acompanhamento da frequência dos funcionários, escuta dos problemas dos usuários, mediação de conflitos e a manutenção da ordem e funcionamento da unidade. Estas ações passaram a ocupar importante espaço no contexto das unidades implantadas, sem, contudo, estarmos sendo preparados para essa função, ou melhor, sem estarmos pensando em uma gerência voltada à saúde da família, que pudesse contribuir para a remodelagem do sistema.
Considerando que o programa foi adquirindo espaço no cenário nacional para (re)orientação da atenção básica, os modos de efetivá-lo mobilizaram estudiosos e trabalhadores da saúde coletiva a (re)pensarem modos satisfatórios de gerenciar o serviço, que preservassem e prezassem pelo trabalho em equipe, e também, por um modelo usuário-centrado (filosofia do próprio PSF).
A prática gerencial nos proporcionou o desenvolvimento de habilidades cognitivas para atuar frente às exigências do exercício profissional, mas ao mesmo tempo suscitou inquietações quanto à esta prática na perspectiva do novo modelo de atenção à saúde, que ora se apresentava como instrumento para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Comumente, o enfermeiro tem sido encontrado atuando como gerente no PSF, fato que possivelmente esteja associado à formação acadêmica desse profissional, ao passado histórico da profissão, sempre envolta em questões administrativas, e ao seu preparo para estar à frente da equipe de enfermagem (gerência do cuidado).
Antes mesmo da implantação do PSF, o enfermeiro já exercia gerência: em unidades hospitalares (Kurgcant et al., 1991; Marx; Morita, 2003), em unidades básicas de saúde (Miranda, 2007) e nos demais espaços de atuação, dentre os quais poderíamos enunciar alguns, como clínicas particulares e serviços de atendimento móvel de urgência e emergência, mas sempre voltado à gerência do cuidado e da equipe de enfermagem.
Etimologicamente, gerência
, ora denominada chefia
, ora coordenação
(termo atualmente mais empregado), corresponde à administração de uma unidade ou órgão de saúde (ambulatório, hospital, instituto, fundação, unidade básica, e outros), que se caracteriza como prestador de serviços ao Sistema
(Brasil, 1996a, p. 8).
Por vezes, emprega-se a palavra gerência como sinônimo de gestão, o que faz sentido quando buscamos a origem destas palavras no latim – gerentia de gerere – ambas significam fazer
, gerir
. No entanto, no âmbito da saúde, gestão diz respeito à direção do sistema de saúde (nacional, estadual e municipal), por meio de coordenação, articulação, negociação, planejamento, acompanhamento, controle, avaliação e auditoria (Brasil, 1996a). O gestor é responsável pela formulação de políticas a serem implementadas de acordo com as condições loco-regionais, a partir do que são definidos, tais como objetos, prioridades, estratégias, programas e projetos (Belloni; Magalhães; Sousa, 2001).
Embora o gerente utilize, muitas vezes, destas ferramentas em seu fazer
– tomada de decisão, planejamento, projetos –, o território de ação da gerência corresponde ao espaço de um serviço de saúde, e o do gestor – num nível macro – o sistema de saúde como um todo.
Tancredi, Barrios e Ferreira (1998) dizem que gerentes coordenam os esforços das várias partes de uma determinada organização, controlam os processos, os rendimentos e avaliam os produtos finais, sendo responsáveis pelo uso efetivo e eficiente dos insumos, de forma a traduzi-los em produtos (no caso da saúde, os produtos seriam ações de cuidado), que levam a organização a atingir os objetivos propostos.
Consideramos este conceito limitado quando se trata de PSF, uma vez que espera-se mais do que produtos
da organização
saúde da família, propõe-se uma reestruturação de um arcabouço de saúde que impacte a forma de atenção implementada e alcance a vida dos usuários.
Certamente, esta visão acerca da gerência recebe uma influência da administração científica³ que enfatiza o cumprimento de tarefas com o aumento da produtividade, racionalização do trabalho e disciplina do conhecimento operário sob comando da gerência, ou da teoria clássica da administração⁴, que define o ato de administrar como: prever, organizar, comandar, coordenar e controlar.
Historicamente vê-se uma influência no setor saúde estando o serviço estruturado a partir de um modelo burocrático, mecanicista e verticalizado, mantendo uma linha hierárquica e com vistas tão somente à produção. A necessidade de mudanças quanto aos aspectos administrativos para uma adequação da oferta de serviços de saúde no Brasil é evidenciada a partir dos anos 80, quando foram propostas:
alternativas administrativas, de gestão e organização do trabalho que estão associadas, frequentemente, à superação dos modelos taylorista/fordistas de organização do trabalho, na medida em que podem favorecer a participação dos trabalhadores nos processos de tomada de decisão. Enfatizam a cooperação; a valorização de grupos de trabalho; a diminuição de níveis hierárquicos; auto-gerenciamento por setores e áreas; delegação de tarefas, responsabilidade compartilhada e transparência nas decisões. (Matos; Pires, 2006, p. 510)
Também, é histórico na saúde o descaso das autoridades, a desarticulação dos setores e a morosidade na resolutividade dos serviços públicos no Brasil. Somando-se a isso, a inacessibilidade, a falta de qualificação profissional e precárias condições de vida de grande parte da população brasileira (Andrade; Barreto; Bezerra, 2006). Antes de 1988 não havia uma política de inclusão que pudesse garantir acesso da população à saúde. Um cenário de crise e decadência, nos fins da década de 1970, resultou na Reforma Sanitária que culminou com a elaboração do SUS e inclusão do direito à saúde na Constituição brasileira a todos os cidadãos.
A saúde como um bem de consumo coletivo assegurado em lei trouxe vários desafios para a gestão do SUS, com destaque para a organização tecnológica dos modos de ofertar serviços de saúde, ou seja, uma (re)modelagem do sistema, que suplantasse os modelos hegemônicos, substituindo práticas cotidianas fragmentadas ao propor ações