Tese - Versão Final
Tese - Versão Final
Tese - Versão Final
Maringá
2022
RODRIGO RAMIRES FERREIRA
Maringá
2022
FOLHA DE APROVAÇÃO
BANCA EXAMINADORA
Buscar um fechamento para todo esse processo não tem sido uma tarefa fácil.
Foram seis anos de altos e baixos e as vezes sozinho e muitas vezes acompanhado a
caminhada tem sido recheada de diferentes emoções. Assim, inicio agradecendo minha
esposa Rita e meu filho Nicolas por, na esfera pessoal, tiveram que aguentar muitas coisas
e em muitos momentos fomos privados de tantas outras. Também inicio agradecendo meu
orientador, o Murilo, que mostrou caminhos, teve paciência e em alguns dos piores
momentos do processo de doutoramento e os efeitos das dificuldades de uma forma ou
de outra me passava força e entendia as minhas dificuldades.
Agradeço ao programa de pós graduação em psicologia e as e os docentes que me
inspiraram e contribuíram para minha formação (nem todos né). Também pelo
financiamento parcial junto à CAPES e toda a paciência na ficura da Wal e do conselho
com o extrapolamento dos prazos.
Agradeço ao professor Dr. Benedito Medrado e à professora Dra. Marcia Moraes
que fizeram parte da banca de qualificação e que infelizmente não poderão estar presentes
na banca de defesa. Trouxeram contribuições muito valiosas para o andamento do
trabalho. Estendo esse agradecimento às docentes que fizeram parte da qualificação,
professor Dr. Guilherme Elias e a professora Dra. Daniele Ferraaza que estará presente
também na defesa.
À professora Dra. Laura Vilela e Souza por aceitar o convite para a banca de
defesa mesmo com o prazo exíguo para apreciação do trabalho. Também ao professor Dr.
Rodrigo Moretti por aceitar esse desafio para fazer parte da banca de defesa, será ótimo
tê-lo na banca pois foi a pessoa que além de coorientar minha pesquisa de mestrado
contribuiu muito para o projeto de doutorado que culminou nessa tese.
Agradeço a meus amigos e amigas que me acompanharam ou não na caminhada,
ouvindo os desabafos, e sempre desejaram foça na caminhada. Optei por não nomear pra
não ser injusto. Às e aos colegas de trabalho das faculdades que estive e estou dando aula,
da Fafijan em Jandaia e do Integrado em Campo Mourão além de meus colegas de pós
graduação das diferentes turmas.
À minha família, mãe, pai, irmã e irmão, cunhada e sobrinhos e sobrinhas. Minha
sogra e cunhada, sobrinha e sobrinho.
Sou grato também à possibilidade de encerramento desse processo.
Versões, multiplicidades, controversias e recalcitrância nas construções
normativas de gênero e TDAH
RESUMO
As relações normativas de gênero e das produções diagnóticas dos transtornos mentais na
infância, como o TDAH são atravessadas por diversas controvérsias e fazem parte tanto
das produções científicas quanto do imaginário social. A partir de uma noção de gênero
como categoria de análise e do aprote da Teoria Ator-Rede, a presente tese tem por
objetivo pensar sobre como gênero atravessa e é atravessado pelos diagnóticos
psiquiátricos na infancia tendo como ponto de partida o TDAH. Eentendemos que esses
atravessamentos produzem diferentes versões dessa relação e consequentemente
diferentes efeitos de acordo com os dispositivos nos quais estas noções são acionadas.
Partimos de três espaços diferentes: Primeiro realizamos uma pequena revisão de
literatura na busca por artigos que tratem da relação TDAH e gênero. Depois olhamos
para o DSM e como este dispostivo propõe e pressupõe gênero binário e heteronormativo
que atrevessa os diagnóticos de transtornos mentais na infância como o TDAH. Por fim
seguimos pistas no CAPSi de um município da região norte do Paraná para entendermos
como os dispositivos normativos hegemônicos agem nessa prática específica. O trabalho
aponta para uma literatura científica que opera noções naturalizadas de gênero quando
fala do TDAH e que se ancora em dispositivos e discursos como o DSM que por sua vez
operam em uma lógica que propõe e pressupõe gênero de maneiras específicas. Por fim
o que vimos na prática do CAPSi foi uma conformação normativa em relação à gênero e
uma disrupção em relação às normativas diagnósticas. Pretendemos então pensar
possbilidades e efeitos de irromper para além dos diagnósticos, com relação à gênero
lançando o seguinte questionamento: será que uma não-conformidade com gênero binário
poderia fazer ruir certas categorias diagnósticas e vice-e-versa?
ABSTRACT
The normative gender relations and diagnostic productions of mental disorders in
childhood, such as ADHD, are crossed by several controversies and are part of both
scientific productions and the social imaginary. Based on a notion of gender as a category
of analysis and the support of Actor-Network Theory, this thesis aims to think about how
gender crosses and is crossed by psychiatric diagnoses in childhood, having ADHD as a
starting point. We understand that these crossings produce different versions of this
relationship and consequently different effects according to the devices in which these
notions are activated. We started from three different spaces: First, we carried out a small
literature review in the search for articles that deal with the relationship between ADHD
and gender. Then we look at the DSM and how this device proposes and presupposes
binary and heteronormative gender that dares diagnoses of childhood mental disorders
such as ADHD. Finally, we followed clues in the CAPSi of a municipality in the northern
region of Paraná to understand how the hegemonic normative devices act in this specific
practice. The work points to a scientific literature that operates naturalized notions of
gender when it talks about ADHD and that is anchored in devices and discourses such as
the DSM, which in turn operate in a logic that proposes and presupposes gender in
specific ways. Finally, what we saw in the practice of CAPSi was a normative
conformation in relation to gender and a disruption in relation to diagnostic norms. We
then intend to think about the possibilities and effects of breaking out beyond the
diagnoses, in relation to gender, raising the following question: could a non-conformity
with binary gender cause certain diagnostic categories to collapse and vice versa?
jeito”. O outro ponto foi a fala do professor de educação física. Este relatou que em uma
de suas aulas, Aninha passou uma rasteira em um colega. Logo após o ocorrido, o
professor fez o mesmo com a criança, segundo ele “pra ensinar o quanto isso não era
legal, fazer sentir na pele o mal que fez ao colega”. Por fim, a avó acabou cedendo à
pressão e foi com a carta de recomendação na consulta com a neuropsiquiatra, que, em
15 minutos, cinco dos quais a médica usou para ler o relatório enviado pela creche,
estava feito o diagnóstico de TDAH, para se iniciar o tratamento com Ritalina. A avó
não aceitou o diagnóstico e resolveu que juntaria dinheiro para ir em outro médico. A
criança continua em atendimento psicológico.
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1 – APRESENTAÇÃO
“Atenção, atenção: é uma nova era no Brasil, menino veste azul e menina veste
rosa”. “vamos tratar meninas como princesas e meninos como príncipes”. "No momento
em que coloco a menina igual o menino na escola, o menino vai pensar: ela é igual, então
pode levar porrada. Não, a menina é diferente do menino" (Damares Alves, Ministra da
Mulher, Família e Direitos Humanos em 2019) “chega de estudiosos e especialistas que
só fazem assaltar o contribuinte”. “O Brasil não pode ser um país do mundo gay, do
turismo gay. Temos famílias”. “Não existe essa coisa de ideologia de gênero. Isso é coisa
do capeta” (Jair Bolsonaro, Presidente da república em 2019).
Geralmente começamos uma escrita que nos é cara, com frases inspiradoras de
grandes autores e autoras, artistas ou poetas. À parte disso resolvi iniciar com as frases
acima, ditas por agentes do Estado no exercício de suas funções, especificamente a
Ministra da pasta da Mulher, família e direitos humanos, Damares Alves e do presidente
da república Jair Bolsonaro. Elas representam o cenário no qual essa tese vem sendo
produzida, são odes à desinformação, à normalização dos corpos e ao achincalhamento
das pesquisas e das ciências, principalmente as ciências humanas. Escrever uma tese
sobre os acionamentos de noções normativas de gênero na construção dos diagnósticos
de TDAH e como se montam essas redes em espaços como o CAPSi e os equipamentos
de Educação Especial produz alguns efeitos, entre eles, talvez, aquele que neste momento
e neste contexto no qual estamos vivendo, seja o mais importante: produzir uma conexão
para a possibilidade de uma boa vida no meio de um mar de lama.
O efeito mencionado se inscreve em um mundo de caos, de bagunça, como diz
Law (2002) e esse caos se compara àquilo que propomos descrever: coletivos que se
formam e se transformam quando o descrevemos, mas que não se encerram, apenas se
produzem outras possibilidades, encenando outros mundos possíveis. Nesse sentido, a
narrativa de início desta tese se dá em três dimensões indissociáveis: (1) a formulação da
tese; (2) minha construção enquanto doutorando e a perspectiva de futuro e; (3) o contexto
político que vivemos. Estas constituem não a organização dessa bagunça, mas a produção
de desníveis, deslocamentos e escândalos, outro momento de absurdo em um contexto
repleto de absurdos. Este recurso nos permite a viagem por multiversos heterogêneos e
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múltiplos a fim de produzir em várias possibilidades o mundo em que vivemos para além
das unificações prematuras (Moraes, 2010).
O que de início nos moveu, foi que o tema da medicalização na infância e TDAH,
bem como os estudos de gênero são construções historicamente recentes e muito
promissoras em termos de pesquisa. Estão inseridos em movimentos políticos sociais,
discussões acadêmicas, fóruns e grupos de estudos especializados, serviços de saúde a
assistência social e fazem parte do imaginário no cotidiano. Este fenômeno está mais
evidente nos dias atuais e em certa medida as políticas e discursos em torno dessas
questões apontam para uma tentativa de encerramento político-ideológico do pensar
hegemônico sobre isso, é uma tentativa de coloca-los em uma caixa-preta.
1.2 – INTRODUÇÃO
Pensar como as noções de gênero atravessam os diagnósticos de alguns ditos
transtornos mentais na infância pode nos levar a inúmeras possibilidades e direções. Em
nossa tese, após analisar as diferentes possibilidades, resolvemos delimitar alguns
possíveis caminhos para a temática tomando decisões arbitrárias em termos de definições
conceituais e de “objeto”.
Primeiro de tudo é trabalhar com uma noção de gênero enquanto categoria de
análise. Mais que acadêmico, o tema é político na medida em que envolve inúmeros
processos culturais recheados de pluralidade (Louro, 2000). Ainda assim, presenciamos
discussões que associam expressões de gênero ao sexo biológico, ou seja, criam-se
categorias de acordo com a “realidade” do corpo.
São os estudos feministas e pós-estruturalistas que passam a traçar contribuições
diferentes aos estudos de gênero. Visões que colocam o gênero como discurso, dissociado
do corpo biológico, inserido em práticas sociais, culturais e em relações de poder que
fazem performar determinadas expressões de gênero (Felipe, 2007). Nesse sentido, o
gênero “coloca a ênfase em todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas que
não é diretamente determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade”
(Scott, 1989. p. 7. Tradução minha).
Para Scott (1995), “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado
nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar
as relações de poder” (p. 21). A autora apresenta diferentes elementos que se relacionam
entre si e que ajudam a construir e manter as diferenças normativas entre os sexos como
(1) os símbolos culturais, principalmente representações religiosas de mulheres, santas
(Eva, Maria) ou corruptas (bruxas na idade média); (2) normativas que apresentam o que
é de fato masculino e feminino e consequentemente a apresentam como dominantes e
mantém a noção de binarismo; (3) a redução de gênero ao parentesco e fundamento
somente nas relações familiares, deixando de lado sua participação na economia, política
entre outros sistemas e; (4) a produção subjetiva e a construção do poder que legitima as
diferenças entre os corpos. Assim, “o gênero é um meio de decodificar o sentido e de
compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana (Scott,
1995, p. 23).
A estratégia de regulação da sexualidade passa pela família conjugal burguesa
visando às tecnologias do corpo e estratégias de regulação da população (Foucault, 1988).
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Essa família é reduzida à tutela da medicina social que determina formas de vivência por
meio de uma educação higiênica que tem quatro estratégias apontadas por Costa (1999):
(1) a educação física que pretendia criar corpos robustos e harmoniosos instituindo
padrões estéticos gerando preconceitos ligados a corpos diferentes; (2) educação moral
com o intuito de disciplinar e educar pessoas cujo comportamento reprimido seria o ideal
levando à culpabilização exacerbada e forçando o sujeito a um forte autocontrole e a uma
tendência à extrema intolerância com pequenos desvios morais; (3) educação intelectual
valorizando sujeitos inteligentes e cientificamente aptos levando à elevação da
competição e de um sentimento de superioridade frente a sujeitos ditos não cultos - o
cérebro do homem segundo esta lógica, seria mais capaz do que o da mulher, por
exemplo; (4) educação sexual voltada para a reprodução, visando a geração de seres
saudáveis e puros – as condutas sexuais foram reduzidas às figuras do pai e da mãe
incitando a extrema repressão sexual no convívio familiar que se estende à sociedade
(Costa, 1999).
Nesse sentido, os estudos de gênero visam pôr em questão estas estratégias de
saber-poder que vinculam as expressões de gênero ao corpo biológico, mas não qualquer
corpo, um corpo permeado por discursos que tem um desenho normativo específico. Um
modelo binário de sexualidade que apenas admite masculino e feminino carregados de
expectativas de condutas de gênero ligadas ao sexo biológico. Para além dessa
dissociação entre gênero e corpo, Judith Butler (2003) aponta que não apenas o gênero é
permeado por discursos, por políticas e constituinte de relações sociais, mas também o
sexo biológico. Isso porque segundo a autora o sexo também não é natural, mas permeado
por uma existência social. Nesse sentido, o gênero é mais um fazer do que um ser, este é
o conceito de performatividade de gênero da autora, central para suas discussões. Para
Butler (2003) “o gênero mostra ser performativo [...] isto é, constituinte da identidade que
supostamente é. Nesse sentido, o gênero é sempre um feito ainda que não seja obra de um
sujeito tido como preexistente à obra” (p. 48).
Ao pensarmos em um corpo permeado por discursos, entendo que estes são
atravessados por relações de poder, em sua maioria relações hierárquicas que delimitam
as formas de vivência. Nesse sentido as expressões de gênero estarão inseridas em um
processo medicalizante assim como as expressões de comportamento e subjetividade, as
do TDAH por exemplo. A medicalização é um processo de incursão do saber médico nas
existências sociais que inserem um caráter patológico e biologizante nas inúmeras formas
de expressão da subjetividade (Ferreira, 2016). Essas temáticas, por assim dizer, fazem
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tendo seus corpos confinados e normalizados por esta lógica (Ferreira, 2016). Da mesma
forma, as expressões de gênero que não condizem com a norma, ou seja, que se
apresentam fora da conduta heteronormativa e binária, produzem masculinidades e
feminilidades específicas e tudo aquilo que foge a esta norma possui um caráter
patológico ou moralmente inaceitável.
O que pretendemos com a presente tese então é apresentar as diferentes versões
que se performam no atravessamento de gênero nos transtornos mentais na infância, como
o TDAH, por exemplo. Para esta tarefa decidimos trabalhar a noção de gênero colada
com TDAH, como um objeto singular que se performa de diferentes maneiras em
diferentes lugares. Nesse sentido nos debruçamos em quarto diferentes espaços nos quais
encontramos esse objeto singular: na ciência, por meio de artigos científicos; no DSM V;
no CAPSi de um município do interior do Paraná e por último no espaço educacional.
Neste último não conseguimos muitos documentos e depoimentos em face do fechamento
dos espaços escolares devido à pandemia de coronavírus.
É de certa forma, compreender e descrever as diversas realidades que são
produzidas pelos efeitos destas relações a associações sem buscar uma única realidade
possível, mas realidades que são mutáveis sem possuírem um caráter universal, sendo
possíveis de transformações. Para isso precisamos incluir dois questionamentos muito
importantes. (1) Considerando que gênero e TDAH atuam biopoliticamente por meio dos
dispositivos da sexualidade e da medicalização nos perguntamos: como estes dispositivos
se articulam? (2) Ao pensarmos essa produção biopolítica de sujeitos ajustados e corpos
dóceis que atendem à norma questionamos como cada um destes dispositivos se alimenta
do outro, ou seja, como gênero informa a categoria diagnóstica de TDAH e como o
TDAH incide na regulação de gênero.
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1
Cabe lembrar que não estamos entrando no mérito de discutir valorativamente as noções
quantitativas e qualitativas das pesquisas apenas apontamos a forma como essas se apresentam.
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representadas e serem inseridas dentro de uma caixa pré-fabricada do que é ser menino e
menina. Essa lógica faz com que não olhemos para as relações que produzem as duas
categorias, ou seja, na prevalência apaga-se a relação de produção.
Boa parte dos estudos nos mostra uma taxa de 5 meninos diagnosticados para 1
menina diagnosticada com o TDAH, variando até de 3:1 e apontam subdiagnóstico em
meninas. O artigo mencionado na apresentação desta tese, aquele que me saltou aos olhos,
intitulado Prevalência de transtorno de déficit de atenção/hiperatividade em relação ao
gênero de escolares de Cardoso, Salbagg & Beltrame (2007) trata principalmente da
prevalência do TDAH entre crianças em idade escolar e a relação desta prevalência com
o gênero, associado às marcas biológicas do corpo.
Poucos estudos apontam para “marcas culturais” que diferenciam expressões de
gênero, mas de forma sistemática não discutem essa relação e essas “matrizes culturais”.
O que querem dizer com marcas ou matrizes culturais? Qual a relação diagnóstica entre
gênero como categoria analítica e TDAH? Decidimos então elaborar uma breve revisão
de literatura para traçarmos algum entendimento sobre como a ciência produz um
conhecimento acerca de gênero e TDAH. Esta estratégia pode nos proporcionar a
dimensão da multiplicidade ao tomarmos o texto como a arma da ciência (Law, 1986) e
assim descrevermos as aproximações e distanciamentos desses objetos (gênero e TDAH)
em seus diferentes agenciamentos (Mol, 2002).
A pergunta que guiou esta revisão foi a seguinte: como a literatura científica
produz a relação entre gênero e TDAH? As bases de dados consultadas foram Scielo,
BVS que reune resultados também das bases Lilacs e Medline, e Indexpsi. Devido à
pesquisa anterior no mestrado, já imaginávamos que esta produção se resume nos estudos
de prevalência. Isso dificultou o processo na hora da consulta nas bases de dados
principalmente no que se refere à escolha das palavras-chave para a consulta. Em um
primeiro momento pesquisamos por “TDAH gênero” em pesquisa simples e avançada
das bases. O retorno obtido está representado na tabela 1 abaixo:
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Tabela 1: Retorno obtido nas bases de dados sem especificação de campo nas palavras-
chave
Scielo 10
Indexpsi 0
TOTAL 1436
Como queríamos artigos com ênfase na relação entre gênero e TDAH resolvemos
utilizar o recurso de descritores de assuntos na parte campo na hora da pesquisa. Os
descritores utilizados foram: TDAH e Gênero. A utilização desta estratégia fez diminuir
significativamente o resultado de artigos na base BVS nos levando diretamente para
aqueles que pretendiam relacionar o transtorno com a categoria de gênero gerando um
resultado de 29 artigos no total sendo 10 na Scielo, 13 na BVS e 6 na junção de outras
bases (Pepsic; Indexpsi e pesquisa direta). Isso proporcionou a utilização de forma mais
coerente dos critérios de inclusão e exclusão. Não foram aplicados filtros para recorte
temporal, de língua ou país de origem, entre outros. Os critérios de inclusão foram artigos
que fizessem alguma menção relacionada à prevalência de gênero no TDAH; relação
entre gênero e TDAH como assunto principal. Foram assim excluídos 20 estudos após
leitura de resumo e 2 estudos após leitura completa sendo selecionados um total de 7
artigos para esta análise sendo 3 artigos de prevalência em diferentes partes do mundo; 2
artigos de teste clínico que também traz dados de prevalência; 1 artigo de revisão de
literatura e 1 artigo teórico.
O número de artigos reduzido reflete aquilo que apontamos anteriormente, que a
relação entre gênero e TDAH não é trabalhada de uma maneira a buscar os acionamentos
de noções normativas de gênero para o diagnóstico e também reflete que a forma como
são trabalhados os artigos referentes ao dito transtorno apresentam gênero como uma
categoria simples como idade ou série escolar. O artigo TDA-H e gênero: experiências
subjetivas de meninos e meninas no Chile de Uribe e cols (2019) segue um pouco na
direção de pensar gênero como uma categoria “subjetiva” que vai além de uma noção
26
As autoras nos mostram por meio das entrevistas feitas com crianças que
exeperienciam o diagnóstico de TDAH, que a forma como se enxergam dentro do
espectro do transtorno se dá de maneira múltipla e dependente de questões relacionadas
à cultura, aos discursos e às expectativas comportamentais dos adultos. A participação
das crianças para falar de sua experiência subjetiva sobre o diagnóstico é um marco
diferencial, que possibilita observar que as expectativas normativas e binárias em relação
à gênero e TDAH sofrem uma certa resistência nos discursos das crianças, encontrando
no meio do caminho diferentes formas de lidar com essas normas e tornando uma redução
simples e binária, que pretende a literatura, praticamente impossível (Uribe e cols., 2019).
A grande diferença para outros estudos é justamente uma marca importante nos
estudos com crianças, pois os autores fazem entrevistas abertas com crianças para que
elas contem de sua experiência enquanto diagnosticadas com o transtorno utilizando
gênero como um recorte de análise. Quando as pesquisas, principalmente de prevalência,
produzem um conhecimento, sempre quem informa sobre a criança é um terceiro, seja
humano (pais, cuidadores e professores) ou não-humanos (testes e baterias de testes) estes
últimos aplicados também em pais, cuidadores e professores. Esta é uma informação que
sempre chamou a atenção nos estudos sobre o TDAH e é tema de uma pesquisa futura
que pretendo desenvolver.
Exemplo disso são os artigos de prevalência intitulados (a) TDAH entre crianças
escolares em Kinshasa, República Democrática do Congo de Kashala e cols. (2005); (b)
Prevalência de Sintomas de TDAH em crianças pré-escolares iranianas de Meysamie,
Fard e Mohammadi (2011) e (c) TDAH entre escolares em Menoufia Governorate, Egito
de Farahat e cols. (2014) que utilizam como principal metodologia questionários
27
pensamento de Butler (2003) o DSM, desde sua primeira edição em 1954 até a mais
recente em 2013, opera sob a matriz de inteligibilidade da heteronormatividade tendo a
heterossexualidade como origem do sistema sexo->gênero->desejo no qual a marca
corporal irá designar o gênero da pessoa e consequentemente a direção do seu desejo.
Desta forma, na versão de gênero/TDAH do DSM e dos desdobramentos para a
prática contamos com grupos de trabalho específicos formados por profissionais da
psiquiatria a nível global, a própria ferramenta DSM, realidade específica do corpo,
produção globalizante de diagnósticos, rede de profissionais que utilizam dessa
ferramenta na prática clínica e novamente não contamos com crianças participando
diretamente dessa versão.
Ainda nas primeiras duas edições do manual, os transtornos eram divididos em
orgânicos e não-orgânicos. Poucas foram as mudanças entre a primeira edição e a segunda
sendo que esta última teve maior influência da psicanálise, na qual o entendimento dos
transtornos mentais passa a ser orientada por uma realidade psicológica (Russo &
Venâncio, 2006). Essa pesada influência da psicanálise era vista principalmente em
relação às neuroses que apareciam como transtornos não-orgânicos. Na década de 1980
com as grandes revoluções farmacológicas e a tecnologia cada vez maior de produção de
medicamentos foi publicada a terceira edição do DSM. Sua publicação é um marco nos
rumos que irá tomar a psiquiatria moderna. A pretensão científica era ambiciosa no
sentido de criar categorias objetivas, neutras e generalizáveis levando a cabo a
globalização da psiquiatria (Russo & Venâncio, 2006). Marca também o rompimento com
a maioria dos preceitos psicanalíticos.
Um dos grandes efeitos deste rompimento é a saída que se cria para dar conta das
neuroses e esta tem um grande efeito principalmente naqueles ditos transtornos da
sexualidade. Nas categorias de distúrbios da personalidade que até então eram um meio
termo entro transtornos orgânicos e não-orgânicos sob a égide das neuroses, o
rompimento representou um aumento significativo nos ditos transtornos da categoria de
“desvios sexuais”. Se na segunda versão do DSM estes eram nove, em sua terceira versão
o número passou a ser de 22 divididos em quatro categorias: Desordem de identidade de
gênero; parafilias; disfunção psicossexual e outras desordens psicossexuais (Russo &
Venâncio, 2006). A grande novidade na publicação do DSM III é a retirada da
homossexualidade enquanto uma categoria diagnóstica da parafilia, passando à categoria
de outros transtornos psicossexuais. Parece uma pequena mudança, mas não para o
movimento social político liderado pela comunidade LGBT norte-americana da década
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de 1970. Esta pequena mudança é o início de uma luta política que passou a pressionar
cada vez mais para a retirada da homossexualidade enquanto categoria diagnóstica. Se na
primeira edição do DSM III a vitória estava em a homossexualidade não mais ser
considerada uma perversão (parafilia), na primeira revisão do novo manual, o DSM III-
R publicada em 1989, esta categoria já não mais aparece (Russo & Venâncio, 2006).
É interessante ressaltar que, ainda que estas lutas políticas tenham surtido efeitos
positivos em relação às suas demandas e com certeza podem ser consideradas vitoriosas.
Dificilmente um pensamento psiquiátrico ancorado em uma determinada visão de mundo
irá desistir de categorizar as expressões da sexualidade que se encontram fora do padrão
heteronormativo e binário. Talvez aqui possamos pensar naquilo que Butler (2003)
chamou de efeitos ontológicos, pois se a psiquiatria biológica está ancorada em uma
determinada ontologia, irá circunscrever uma epistemologia e uma metodologia coerentes
com essa visão de mundo, no caso uma visão de um corpo com uma marca biológica
específica relacionada à sexualidade.
Assim, podemos dizer que em certa medida as classificações vão se adaptando aos
contextos de lutas políticas e de mudanças tecnológicas sem perder de vista sua
ancoragem em uma ontologia biológica do corpo, no discurso de uma marca corporal da
sexualidade natural e binária sem perder de vista sua necessidade de continuar produzindo
efeitos de governabilidade. De acordo com Bento (2016), a lógica de adaptação
classificatória do DSM é um processo minucioso, pernicioso de colonização e
globalização de um saber-poder que opera nessa ferramenta3.
Na Figura 1 abaixo, apresentamos as categorias diagnósticas para a dita Disforia
de Gênero presentes no DSM V lançado nos EUA em 2013 e traduzido em português em
2014. Optamos pelas categorias elencadas em dito transtorno na infância, pois reforça
ainda mais a caricatura de ser que esta psiquiatria biológica pretende formar em termos
de uma sexualidade binária e heteronormativa:
3
Berenice Bento (2016) faz um detalhado estudo acerca da revisão que culminou na construção
da quinta edição do DSM passando pela filiação teórica, de área, localidade geográfica e
institucional de revisores dos Grupos de Trabalho responsáveis pela revisão das categorias
diagnósticas relacionadas a gênero apontando para o forte teor colonizador e de violência
epistemológica que o Manual confere.
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Critérios diagnósticos
O que vemos funcionar no manual é uma mecânica binária de gênero que reflete
em outras categorias diagnósticas. A noção de transtornos disruptivos, por exemplo (até
o DSM IV-TR, o TDAH também era considerado disruptivo), está ligada ao rompimento
de uma lógica normativa, de expectativas de conduta que estão presentes também no
DSM. Essa disrupção ao binarismo de gênero e às condutas comportamentais ajudam no
aumento do número de “candidatos” à Casa Verde da psiquiatria biológica moderna.
É interessante observar nas diversas linhas que compõem alguns dos transtornos
elencados no DSM que, os diagnósticos são sempre maiores em meninos do que em
meninas. Outro ponto interessante é que geralmente as condutas esperadas dentro dessa
normalidade proposta e pressuposta pelo manual estão relacionadas a uma forma de
masculinidade sem se aprofundar no que seria a feminilidade "em meninas (gênero
designado), forte rejeição de brinquedos, jogos e atividades tipicamente femininas"
(APA, 2013) o que seria para esses revisores algo tipicamente feminino?
A fundamentação de gênero a partir da lógica binária do DSM permite o
entendimento de como se pressupõe e propõe gênero em critérios diagnósticos de outros
transtornos mentais na infância, como apresentado acima. Assim, certas características se
tornam patológicas em um corpo visto como masculino, por exemplo, mas não seriam
consideradas dessa forma em um corpo visto como feminino. É o caso do critério da
Disforia de Gênero em relação a agressividade e competitividade enquanto característica
masculina, como visto acima.
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de políticos apresentadas no início desta tese, de que menino veste azul, menina veste
rosa, falas4 em tons agressivos e de deboche como “sou imbrochável” entre muitas outras,
ajudam a dar uma sustentação narrativa à ideia binária de gênero. Outros dispositivos
também ajudam a firmar essa lógica. Basta olharmos para as lojas de brinquedos e a
separação daquilo que chamamos brinquedos e roupas de menina e de menino. Para elas,
tudo em tons de rosa e brincadeiras voltadas ao cuidar (do homem e da família): bonecas,
fogão, casinha etc.; um tipicamente feminino apático e subserviente. Para eles, cores mais
escuras, carros esportivos, foguetes, bonecos de luta etc.; um tipicamente masculino
agressivo.
Essa produção narrativa dá força discursiva aos pressupostos do manual em
termos de gênero. Afinal, se a reprodução desse binarismo está em toda a sociedade, por
que essa força não estaria também naquilo que é científico? Talvez sem esse binarismo,
sem a reprodução dessa narrativa, algumas ou muitas categorias diagnósticas, perderiam
força ou até mesmo desapareceriam. De forma circular, em uma mesma dimensão, sem
as características diagnósticas de TDAH e outros transtornos disruptivos, a construção e
solidificação de gênero binário, se enfraqueceriam.
4
Falas do presidente Jair Bolsonaro em diferentes contextos e tempos.
43
PARTE 3: DISRUPTIVA NO
DIAGNÓSTICO, NORMATIVA NO
GÊNERO
44
realidade” dentro de uma noção de que ciência e razão são pressupostos de progresso5.
Como sabemos, essa pretensão colonizadora passa por processos de questionamento
desde então.
5
Não pretendemos aqui neste trabalho detalhar todo esse processo uma vez que essa discussão pode ser
acessada entre outras obras em minha dissertação de mestrado. O propósito aqui é tão somente retomar de
forma sucinta essa discussão para dar andamento à argumentação.
46
saúde. Isso porque o funcionamento de um serviço, via de regra, está centrado em uma
lógica quantitativa para fins de financiamento apontando para a dificuldade de se fazer
entender essa lógica de funcionamento.
A racionalidade produtivista no âmbito da saúde pública é reflexo de um conflito
entre a noção da universalidade igualitária e uma ideia liberal privatista que de certa forma
marca as relações no SUS. Ela se e manifesta também nos CAPS por meio dos diferentes
“vínculos empregatícios que convivem na mesma instituição, na lógica de gastos
mínimos para máximo de produtividade, no número insuficiente de equipamentos para
que a demanda seja atendida de maneira satisfatória” (Barros e Bernardo, 2017, p. 71). A
produção e nomeação dos diagnósticos é utilizada como uma tecnologia contábil e sua
resistência disruptiva implica nessas tensões.
Nesse sentido, a desconstrução de uma lógica diagnóstica vai produzindo certas
angústias na equipe. A coordenadora do serviço aponta que essa quantificação
diagnóstica do TDAH, por exemplo, é mais comum no âmbito da educação, isso porque
o serviço recebe muitos encaminhamentos de escolas recebendo muitas crianças e
adolescentes hipermedicalizados.
Na segunda visita, em uma conversa informal antes de adentrar para participação
na primeira reunião de equipe, a coordenadora informou estar preocupada, pois aquela
era uma semana de auditoria, justamente para fazer entender ao município a necessidade
de se manter a lógica de funcionamento voltada para noção de cuidado não quantitativa.
Ao chegar ao CAPSi nesse dia, a recepção estava vazia e a TV ligada em um programa
policial.
Na primeira participação na reunião de equipe, fui apresentado pela coordenadora,
fiquei sentado em uma cadeira fora da mesa na qual as pessoas discutiam casos,
visivelmente cansadas e incomodadas com a questão da auditoria, o que fez com essa se
tornasse pouco produtiva. Ao final da reunião surge um primeiro tensionamento em
relação a questão de gênero, ao explicar a pesquisa que desenvolvia a conversa rumou
para a noção de como criar crianças sem uma expectativa de expressão e identidade de
gênero, as dificuldades de escapar de uma normatividade. Ao final da conversa, uma das
técnicas apontou que “é muito difícil e uma angústia pensar fora de uma caixa [binária e
heteronormativa] é melhor [criar uma criança assim, normatizada] por conta do prejuízo
que seria para a criança, por isso nem quero ter essa responsabilidade” (trecho do diário
de campo). Esse momento serviu para compreender a importância do processo de
resistência, ou melhor, de recalcitrância, pois, de acordo com Latour (2004)
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pessoa. Mas porque a noção crítica em relação aos diagnósticos não se espalha para as
questões de gênero? A pista está na história. Uma história da construção de determinados
saberes e discursos. Se a loucura ao final do século XIX é tomada pelo discurso do saber
médico, as questões relacionadas à sexualidade e consequentemente à gênero são tomadas
por diversos discursos para além do médico: religião, política, família etc. A loucura, a
princípio, não se constrói na esteira da resistência, mas na esfera da alienação, do
desprovimento da razão como diriam os alienistas da época, a sexualidade se constrói na
esteira de uma norma, o gênero dissidente deve ser encerrado e posto de lado e a sua volta
à normalidade, ou seja, a binaridade heteronormativa e reprodutiva tem como mecanismo
todos os discursos citados anteriormente.
Se as categorias diagnósticas encontram resistência no campo da saúde, tendo
como pano de fundo também o saber médico, gênero encontra resistência mais nos
discursos sociológicos, ou seja, aqueles que como diz Boaventura de Souza Santos, foram
deixados à margem da ciência: sociologia, filosofia, artes, literatura. O reflexo na área da
saúde de um viés crítico às categorias diagnóstica instrumentaliza profissionais a terem
mais disposição a resistir a essas categorias, enquanto que ao mesmo tempo há um
comprometimento em manter designações binárias de gênero. Essa afirmação fica
evidente na fala de uma profissional de que criar uma criança na conformidade de gênero
binário seria menos prejudicial.
Nesse sentido, as categorias diagnósticas são mais evidentemente entendidas
como uma produção de conhecimento sobre a realidade, do saber-poder médico, como
uma tecnologia mais concentrada e restrita e com um ponto de emanação mais bem
localizado no saber psiquiátrico. Gênero, por sua vez, é uma construção mais
disseminada, com contornos dos discursos bem menos definidos, efeito de práticas e
discursos com diferentes pontos de origem (Butler, 2003).
O que temos então é que gênero se mostra enquanto uma linha de força
estruturante da vida, inclusas aqui as categorias diagnósticas como discutimos na segunda
parte da tese. Embora se comuniquem e reforcem uma à outra, são distintas na forma de
organizar a vida pois, de uma certa maneira, as categorias diagnósticas rompem os muros
de uma conformidade, produzindo uma resistência a elencá-las como produto de
intervenção – conforme relato da coordenação do serviço e como podemos ver no Anexo
3 onde os diagnósticos não são utilizados na organização de determinadas intervenções –
mas não rompem os muros do espaço do serviço uma vez que a distância crítica em
relação às categorias diagnósticas estão bem mais delimitadas pois, estas estão mais
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ligadas a forma de organizar a vida das crianças e adolescentes atendidas pelo CAPSi.
Gênero porém, organiza também a vida das pessoas que fazem parte da equipe do serviço
tornando mais difícil ganhar distância crítica da força constitutiva de gênero.
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Para maiores detalhes sobre as principais mudanças e suas consequência para as políticas de
saúde mental, consultar o artigo: : CRUZ, Nelson F. O.; GONÇALVES, Renata W.; DELGADO,
Pedro G.G. Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental
brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, n. 3, 2020, e00285117. DOI:
10.1590/1981-7746-sol00285.
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radicalidade, ou seja, não vai até a raiz da questão que é justamente a desmontagem do
gênero normativo que subsidia a própria produção da categoria diagnóstica. Nesse
sentido, e retomando a segunda parte da tese, podemos dizer que se alcançarmos essa
radicalidade, talvez muitas categorias diagnósticas seriam desmontadas, não no sentido
de uma não existência, mas no sentido de um novo entendimento de como estas são
construídas abrindo a possibilidade para serem encenadas de maneiras diferentes
daquelas pressupostas pelos discursos e dispositivos hegemônicos.
Iniciamos este trabalho dizendo dos possíveis efeitos de se produzir uma tese
sobre os acionamentos das noções normativas de gênero para os diagnósticos de TDAH
na infância que incluía a noção de produzir deslocamentos e possibilidades para
pensarmos essa relação mesmo no meio do mar de lama que é a situação atual do país
que só piorou desde o início da nossa escrita. Mal sabia eu, um mero aspirante a doutor
em psicologia, que esse mar de lama me tomaria por completo e, entender os efeitos
nefastos de todos esses processos gerou em mim uma grande dificuldade para lidar com
tudo isso. Afinal, será que há mesmo uma possibilidade de uma boa vida no meio do mar
de lama? Aos trancos e barrancos, como diria o saber popular, fui tentando me reconciliar
com meu trabalho pois acredito profundamente que, mesmo com todas as dificuldades é
necessário fazer a reflexão que propomos ao longo da tese.
Ao apresentarmos as noções de versões hegemônicas do acionamento das noções
normativas de gênero para os diagnósticos de TDAH, estamos mostrando o caminho da
naturalização dessas noções pela sociedade como um todo, tendo o discurso científico,
médico e psiquiátrico como reprodutores e agentes dessa naturalização. Há também um
engajamento político na manutenção dos discursos conservadores de maneira geral e
específicos em relação à gênero. As falas de Jair Bolsonaro e Damares Alves que abrem
a tese nos mostram o rumo tomado pela política nacional no sentido da retomada de um
discurso que quer conservar gênero como binário e heteronormativo. Esse discurso se
produz em termos sarcásticos e também por meio de metáforas bélicas. A naturalização
é um problema que nos impede de fazer uma análise mais apurada dos efeitos de produção
da realidade, não atoa é um dos pontos mais incisivos tanto para Scott (1995) quanto para
Butler (2003) em se tratando de disrupção e desnaturalização de gênero.
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REFERÊNCIAS
American Psychiatry Association. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental
disorders - DSM-5 (5a ed). Washington: American Psychiatric Association.
Assis, Machado de. (1882/1994). O Alienista São Paulo, FTD
Barros, Ana Carolina Florence de; Bernardo, Marcia Hespanhol (2017). A lógica
neoliberal na saúde pública e suas repercussões para a saúde mental de trabalhadores
de CAPS. Revista de Psicologia da UNESP – 16 (1).
Bento, Berenice. (2016) Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos Salvador:
EDUFBA, 329 p.
Butler, J. (2003). Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira.
Caliman, L.V. Notas sobre a história oficial do transtorno do déficit de atenção/
hiperatividade (TDAH). Psicol. Cienc. Prof., v.30, n.1, p.45-61, 2010.
Cardoso, F. L.; Sabbag, S. & Beltrame, T. S. (2007). Prevalência de transtorno de déficit
de atenção/hiperatividade em relação ao gênero de escolares.Rev. Bras. Cineant.e
Desemp. Hum.50-54.
Costa, J. F. (1999). Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal.
Cruz, Nelson F. O.; Gonçalves, Renata W.; Delgado, Pedro G.G. Retrocesso da Reforma
Psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a
2019. Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, n. 3, 2020, e00285117. DOI:
10.1590/1981-7746-sol00285.