Tese - Versão Final

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

RODRIGO RAMIRES FERREIRA

Versões, multiplicidades, controversias e recalcitrância nas construções


normativas de gênero e TDAH

Maringá
2022
RODRIGO RAMIRES FERREIRA

Versões, multiplicidades, controversias e recalcitrância nas construções


normativas de gênero e TDAH

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Psicologia do Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Estadual de Maringá, como
requisito final para obtenção do título de Doutor
em Psicologia
Área de concentração: Constituição do Sujeito
e Historicidade.
Linha de Pesquisa: Subjetividade e Práticas
Sociais na Contemporaneidade.

Orientador: Prof. Dr. Murilo dos Santos


Moscheta

Maringá
2022
FOLHA DE APROVAÇÃO

RODRIGO RAMIRES FERREIRA

Versões, multiplicidades, controversias e recalcitrância nas construções


normativas de gênero e TDAH

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Centro de Ciências


Humanas, Letras e Artes da Universidade Estadual de Maringá como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutor em Psicologia.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Murilo dos Santos Moscheta


Universidade Estadual de Maringá – UEM (Orientador/Presidente)

Profª. Dra. Daniele de Andrade Ferrazza


Universidade Estadual de Maringá - UEM

Profª. Dra. Laura Vilela e Souza


Universidade de São Paulo – USP Ribeirão Preto

Prof. Dr. Rodrigo Otávio Moretti-Pires


Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

Prof. Dr. Guilherme Elias da Silva


Universidade Estadual de Maringá - UEM (suplente)

Aprovada em: 26/05/2022


Local da defesa: Universidade Estadual de Maringá – Online - Plataforma Google
Meets
DEDICATÓRIA

À minha família, amigas e amigos, minha


companheira Rita, e meu filho Nicolas porque
só a página de agradecimentos não é suficiente
para expressar a importância que todos e todas
têm em minha vida.
AGRADECIMENTOS

Buscar um fechamento para todo esse processo não tem sido uma tarefa fácil.
Foram seis anos de altos e baixos e as vezes sozinho e muitas vezes acompanhado a
caminhada tem sido recheada de diferentes emoções. Assim, inicio agradecendo minha
esposa Rita e meu filho Nicolas por, na esfera pessoal, tiveram que aguentar muitas coisas
e em muitos momentos fomos privados de tantas outras. Também inicio agradecendo meu
orientador, o Murilo, que mostrou caminhos, teve paciência e em alguns dos piores
momentos do processo de doutoramento e os efeitos das dificuldades de uma forma ou
de outra me passava força e entendia as minhas dificuldades.
Agradeço ao programa de pós graduação em psicologia e as e os docentes que me
inspiraram e contribuíram para minha formação (nem todos né). Também pelo
financiamento parcial junto à CAPES e toda a paciência na ficura da Wal e do conselho
com o extrapolamento dos prazos.
Agradeço ao professor Dr. Benedito Medrado e à professora Dra. Marcia Moraes
que fizeram parte da banca de qualificação e que infelizmente não poderão estar presentes
na banca de defesa. Trouxeram contribuições muito valiosas para o andamento do
trabalho. Estendo esse agradecimento às docentes que fizeram parte da qualificação,
professor Dr. Guilherme Elias e a professora Dra. Daniele Ferraaza que estará presente
também na defesa.
À professora Dra. Laura Vilela e Souza por aceitar o convite para a banca de
defesa mesmo com o prazo exíguo para apreciação do trabalho. Também ao professor Dr.
Rodrigo Moretti por aceitar esse desafio para fazer parte da banca de defesa, será ótimo
tê-lo na banca pois foi a pessoa que além de coorientar minha pesquisa de mestrado
contribuiu muito para o projeto de doutorado que culminou nessa tese.
Agradeço a meus amigos e amigas que me acompanharam ou não na caminhada,
ouvindo os desabafos, e sempre desejaram foça na caminhada. Optei por não nomear pra
não ser injusto. Às e aos colegas de trabalho das faculdades que estive e estou dando aula,
da Fafijan em Jandaia e do Integrado em Campo Mourão além de meus colegas de pós
graduação das diferentes turmas.
À minha família, mãe, pai, irmã e irmão, cunhada e sobrinhos e sobrinhas. Minha
sogra e cunhada, sobrinha e sobrinho.
Sou grato também à possibilidade de encerramento desse processo.
Versões, multiplicidades, controversias e recalcitrância nas construções
normativas de gênero e TDAH

RESUMO
As relações normativas de gênero e das produções diagnóticas dos transtornos mentais na
infância, como o TDAH são atravessadas por diversas controvérsias e fazem parte tanto
das produções científicas quanto do imaginário social. A partir de uma noção de gênero
como categoria de análise e do aprote da Teoria Ator-Rede, a presente tese tem por
objetivo pensar sobre como gênero atravessa e é atravessado pelos diagnóticos
psiquiátricos na infancia tendo como ponto de partida o TDAH. Eentendemos que esses
atravessamentos produzem diferentes versões dessa relação e consequentemente
diferentes efeitos de acordo com os dispositivos nos quais estas noções são acionadas.
Partimos de três espaços diferentes: Primeiro realizamos uma pequena revisão de
literatura na busca por artigos que tratem da relação TDAH e gênero. Depois olhamos
para o DSM e como este dispostivo propõe e pressupõe gênero binário e heteronormativo
que atrevessa os diagnóticos de transtornos mentais na infância como o TDAH. Por fim
seguimos pistas no CAPSi de um município da região norte do Paraná para entendermos
como os dispositivos normativos hegemônicos agem nessa prática específica. O trabalho
aponta para uma literatura científica que opera noções naturalizadas de gênero quando
fala do TDAH e que se ancora em dispositivos e discursos como o DSM que por sua vez
operam em uma lógica que propõe e pressupõe gênero de maneiras específicas. Por fim
o que vimos na prática do CAPSi foi uma conformação normativa em relação à gênero e
uma disrupção em relação às normativas diagnósticas. Pretendemos então pensar
possbilidades e efeitos de irromper para além dos diagnósticos, com relação à gênero
lançando o seguinte questionamento: será que uma não-conformidade com gênero binário
poderia fazer ruir certas categorias diagnósticas e vice-e-versa?

Palavras-chave: Gênero; TDAH; multiplicidade; normalização


Versions, multiplicities, controversies and recalcitrance in normative
constructions of gender and ADHD

ABSTRACT
The normative gender relations and diagnostic productions of mental disorders in
childhood, such as ADHD, are crossed by several controversies and are part of both
scientific productions and the social imaginary. Based on a notion of gender as a category
of analysis and the support of Actor-Network Theory, this thesis aims to think about how
gender crosses and is crossed by psychiatric diagnoses in childhood, having ADHD as a
starting point. We understand that these crossings produce different versions of this
relationship and consequently different effects according to the devices in which these
notions are activated. We started from three different spaces: First, we carried out a small
literature review in the search for articles that deal with the relationship between ADHD
and gender. Then we look at the DSM and how this device proposes and presupposes
binary and heteronormative gender that dares diagnoses of childhood mental disorders
such as ADHD. Finally, we followed clues in the CAPSi of a municipality in the northern
region of Paraná to understand how the hegemonic normative devices act in this specific
practice. The work points to a scientific literature that operates naturalized notions of
gender when it talks about ADHD and that is anchored in devices and discourses such as
the DSM, which in turn operate in a logic that proposes and presupposes gender in
specific ways. Finally, what we saw in the practice of CAPSi was a normative
conformation in relation to gender and a disruption in relation to diagnostic norms. We
then intend to think about the possibilities and effects of breaking out beyond the
diagnoses, in relation to gender, raising the following question: could a non-conformity
with binary gender cause certain diagnostic categories to collapse and vice versa?

Keywords: Gender; ADHD; multiplicity; normalization


Sumário
PARTE 1: NARRATIVAS DE UMA TESE .............................................................. 10
A senhora disse nove meses? ...................................................................................... 11
Uma rasteira educativa .............................................................................................. 12
1 – APRESENTAÇÃO ............................................................................................. 14
1.1 – DO ABSURDO À PRODUÇÃO DE DESNÍVEIS, DESLOCAMENTOS E
ESCÂNDALOS. ............................................................................................................ 14
1.1.1 – Formulação da tese ....................................................................................... 15
1.1.2 – Da construção de si no processo de doutoramento .................................... 16
1.1.3 – Do contexto político e social no qual a tese está inserida .......................... 16
1.2 – INTRODUÇÃO ................................................................................................... 18
PARTE 2: COMO SE MONTAM VERSÕES HEGEMÔNICAS NORMATIVAS
DE GÊNERO E TDAH ................................................................................................ 22
2.1 – HOMOGENEIDADE HEGEMÔNICA: O QUE DIZ A CIÊNCIA? ............. 23
2.2 - “FRIO COMO DIAGNÓSTICO”: DISPOSITIVO DE NORMATIZAÇÃO
ESPECÍFICA ................................................................................................................ 29
2.2.1 – DSM como ferramenta que generifica as relações de maneira específica.
.................................................................................................................................... 30
2.2.2 – TDAH e transtornos disruptivos como problemas de gênero .................. 37
PARTE 3: DISRUPTIVA NO DIAGNÓSTICO, NORMATIVA NO GÊNERO... 43
3.1 - SEGUINDO PISTAS DE PESQUISA ............................................................... 44
3.1.1 – A pista da história da reforma psiquiátrica. .............................................. 44
3.2 – A ida ao campo ................................................................................................. 46
3.3 – Cenários de possibilidades. ............................................................................. 52
NARRATIVAS DE POSSÍVEIS FINAIS DE UMA TESE ...................................... 54
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 57
ANEXO 1: Pacientes atendidos no primeiro quadrimestre de 2017 .............................. 61
ANEXO 2: Descrição dos procedimentos realizados no CAPSi.................................... 64
ANEXO 3: Descrição das intervenções em grupos do CAPSi....................................... 71
10

PARTE 1: NARRATIVAS DE UMA


TESE
11

A senhora disse nove meses?


Meu primeiro campo de atuação como profissional de psicologia foi em um projeto de
extensão interdisciplinar no qual trabalhávamos em casos de guarda e adoção
principalmente. Um dos primeiros casos que atendi era o de uma senhora que buscava
oficializar a guarda do neto de sete anos de idade que estava sob sua responsabilidade
desde os 8 meses. Vamos chamá-los de Miriam e Pedro. Após os procedimentos iniciais
de praxe, preenchimento de formulário, algumas questões sobre o cotidiano da criança
etc., que eram feitos em conjunto com uma advogada, passamos a uma anamnese mais
completa com Dona Miriam, a fim de embasar o parecer psicológico que acompanhavam
os processos. Entre muitas coisas que foram ditas naquele atendimento, algo me chamou
muito a atenção. Dona Miriam contava sobre como a mãe de Pedro não dava atenção
ao filho, o deixava com ela e aparecia em casa a cada dois ou três dias. Depois que a
criança completou um ano, essas “visitas” tornaram-se cada vez mais raras, época em
que Pedro mudava muito seu comportamento. Contou que o menino passou a chorar
muito, quase toda hora a partir dos 9 meses. Preocupada, levou o neto à consulta com o
pediatra que recomendou que ela procurasse um neuropediatra. Disse que passou 15
minutos nessa segunda consulta e a médica receitou risperidona à criança, então com 9
meses de idade. Esse medicamento é um antipsicótico atípico usado para tratamento das
psicoses, como por exemplo, a esquizofrenia, o uso recomendado é acima de 5 anos de
idade. Segundo Dona Miriam, a neuropediatra recomendou que ela desse um quarto do
comprimido de 1mg para o bebê. Ela conta que sempre ficou desconfiada, não achava
muito certo, mas como “era ignorante, ela é a médica, né?” fazia conforme
recomendado. Ao completar 6 anos e consequentemente iniciar seu ciclo escolar, Pedro,
sob recomendação médica, passou a tomar metilfenidato, a Ritalina, mas não tomava
nas férias nem nos finais de semana, tomava de maneira preventiva pois era muito
agitado. Enquanto eu conversava com Dona Miriam, a estagiária de psicologia estava
com Pedro. Nos contou que era uma criança muito doce, mas muito agitada, desenhou,
brincou e quis ir lá fora, na grama para brincar de correr, “como qualquer criança”. O
diagnóstico de Pedro, ninguém sabia, existia a desconfiança de que era TDAH, como
vinha tomando medicamento desde os 9 meses, acharam por bem manter assim, afinal
era uma criança muito agitada. Sua história, quase ninguém sabia, para conhecê-la,
precisei de uma conversa de quase duas horas com Dona Miriam. As consultas de Pedro
geralmente duravam 15 minutos. Esse foi o caso que me levou a estudar os processos de
12

medicalização da vida. Passei a me perguntar: como um bebê de 9 meses, por chorar


demais, é “tratado” com um poderoso antipsicótico?

Uma rasteira educativa


Em 2019 já estava há pouco mais de 2 anos dando aula em uma faculdade privada da
região. Era responsável também por supervisionar dois grupos na clínica-escola. Logo
no início do estágio uma de minhas alunas passou a atender uma menina de 5 anos de
idade, que aqui vamos chamar de Aninha. Aninha foi encaminhada diretamente a um
neuropediatra pela professora da creche que frequentava. A principal queixa é que ela
era muito agressiva com os colegas, não parava na carteira e não prestava atenção nas
atividades propostas pela professora. Esses comportamentos haviam começado a pouco
mais de 2 meses, antes disso ela “era uma menina tranquila”, segundo a avó. Aninha
morava com a mãe e a avó desde quando era um bebê. Cerca de 2 meses antes, quando
começaram esses comportamentos, a mãe de Aninha teve de mudar de cidade
repentinamente, ficando a avó responsável por ela. Essa mudança não foi explicada para
a menina, que ficou sem entender muito bem a situação. A avó, ciente de toda a situação
da mãe de Aninha, preferiu não seguir a recomendação da professora de ir direto a um
profissional de neuropediatria e resolveu procurar atendimento psicológico antes,
buscando a clínica escola da faculdade. Ao longo dos atendimentos fomos percebendo o
quanto essa mudança drástica, acompanhada da falta de informação, fez com que a
criança mudasse muito seus comportamentos. Quando souberam que a avó de Aninha
não havia ido ao profissional recomendado, a equipe pedagógica da creche sugeriu a
avó que esta mudasse a criança de escola, que a colocasse até mesmo na APAE, pois
seria um lugar que teria mais recursos para lidar com aquilo que chamaram de uma
manifestação de transtorno de hiperatividade e déficit de atenção. Redigiram inclusive
uma carta de encaminhamento a outro profissional de neuropsiquiatria com um
diagnóstico praticamente pronto. Antes dessa recomendação a aluna que atendia Aninha
fez uma visita na escola para conversar com a equipe pedagógica. Segundo a aluna, a
reunião parecia uma sessão de convencimento para que a avó a levasse ao médico para
pegar uma receita de algum medicamento que desse conta dos comportamentos
apresentados por Aninha, na escola. Ninguém sabia da mudança repentina na vida da
criança, segundo a avó, não deram atenção a esse detalhe. Dois pontos chamara nossa
atenção na reunião. A pedagoga da escola ao explicar como aconteciam os
comportamentos de Aninha, disse o seguinte: “nunca vi uma menina se comportar desse
13

jeito”. O outro ponto foi a fala do professor de educação física. Este relatou que em uma
de suas aulas, Aninha passou uma rasteira em um colega. Logo após o ocorrido, o
professor fez o mesmo com a criança, segundo ele “pra ensinar o quanto isso não era
legal, fazer sentir na pele o mal que fez ao colega”. Por fim, a avó acabou cedendo à
pressão e foi com a carta de recomendação na consulta com a neuropsiquiatra, que, em
15 minutos, cinco dos quais a médica usou para ler o relatório enviado pela creche,
estava feito o diagnóstico de TDAH, para se iniciar o tratamento com Ritalina. A avó
não aceitou o diagnóstico e resolveu que juntaria dinheiro para ir em outro médico. A
criança continua em atendimento psicológico.
14

1 – APRESENTAÇÃO

1.1 – DO ABSURDO À PRODUÇÃO DE DESNÍVEIS, DESLOCAMENTOS E


ESCÂNDALOS.

“Atenção, atenção: é uma nova era no Brasil, menino veste azul e menina veste
rosa”. “vamos tratar meninas como princesas e meninos como príncipes”. "No momento
em que coloco a menina igual o menino na escola, o menino vai pensar: ela é igual, então
pode levar porrada. Não, a menina é diferente do menino" (Damares Alves, Ministra da
Mulher, Família e Direitos Humanos em 2019) “chega de estudiosos e especialistas que
só fazem assaltar o contribuinte”. “O Brasil não pode ser um país do mundo gay, do
turismo gay. Temos famílias”. “Não existe essa coisa de ideologia de gênero. Isso é coisa
do capeta” (Jair Bolsonaro, Presidente da república em 2019).
Geralmente começamos uma escrita que nos é cara, com frases inspiradoras de
grandes autores e autoras, artistas ou poetas. À parte disso resolvi iniciar com as frases
acima, ditas por agentes do Estado no exercício de suas funções, especificamente a
Ministra da pasta da Mulher, família e direitos humanos, Damares Alves e do presidente
da república Jair Bolsonaro. Elas representam o cenário no qual essa tese vem sendo
produzida, são odes à desinformação, à normalização dos corpos e ao achincalhamento
das pesquisas e das ciências, principalmente as ciências humanas. Escrever uma tese
sobre os acionamentos de noções normativas de gênero na construção dos diagnósticos
de TDAH e como se montam essas redes em espaços como o CAPSi e os equipamentos
de Educação Especial produz alguns efeitos, entre eles, talvez, aquele que neste momento
e neste contexto no qual estamos vivendo, seja o mais importante: produzir uma conexão
para a possibilidade de uma boa vida no meio de um mar de lama.
O efeito mencionado se inscreve em um mundo de caos, de bagunça, como diz
Law (2002) e esse caos se compara àquilo que propomos descrever: coletivos que se
formam e se transformam quando o descrevemos, mas que não se encerram, apenas se
produzem outras possibilidades, encenando outros mundos possíveis. Nesse sentido, a
narrativa de início desta tese se dá em três dimensões indissociáveis: (1) a formulação da
tese; (2) minha construção enquanto doutorando e a perspectiva de futuro e; (3) o contexto
político que vivemos. Estas constituem não a organização dessa bagunça, mas a produção
de desníveis, deslocamentos e escândalos, outro momento de absurdo em um contexto
repleto de absurdos. Este recurso nos permite a viagem por multiversos heterogêneos e
15

múltiplos a fim de produzir em várias possibilidades o mundo em que vivemos para além
das unificações prematuras (Moraes, 2010).

1.1.1 – Formulação da tese


O absurdo então é o exercício que vai muito além do processo de organização das
informações daquilo que costumeiramente chamamos de campo de pesquisa. É a imersão
nesse campo-tema específico (Spink, P., 2003) encenando o mundo que compõe a
temática desta tese, retomando os pontos, os encontros e desencontros que me trouxeram
até aqui.
Um deles é a ideia de que sempre quis fazer mestrado e doutorado em um primeiro
momento para reunir condições para ser docente pesquisador em alguma universidade,
pública de preferência dada minha trajetória de vida. Mas com o desmonte que se segue,
teremos aqui um redirecionamento desse desejo/sonho. Outro início é o interesse pelos
temas em Saúde Mental, que vem desde minha graduação. Encontrei aliados em minha
prática como psicólogo quando trabalhei em um projeto de defesa de direitos da infância
e juventude. Assim minha trajetória no mundo acadêmico vem sendo construída desde
minha especialização em meados de 2012, em torno do tema da medicalização na
infância, mais especificamente acerca das discussões referentes ao dito Transtorno de
Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Em meu mestrado, discuti as construções
da ciência acerca deste “transtorno” e os efeitos dessas construções para a sociedade e
para as crianças diagnosticadas.
Nessa trajetória tive contato com colegas de mestrado e com pesquisas destes e de
meu orientador voltadas a discutir temas acerca dos estudos de gênero. Participei de uma
pesquisa nacional sobre saúde da população LGBT e durante o processo tive a
oportunidade de encontrar narrativas que me fizeram pensar que os estudos sobre gênero
deveriam ser amplificados. Nossa sociedade vive cada vez mais momentos intensos e
tensos de luta contra o machismo e a LGBTfobia e acredito que os estudos sobre gênero
são uma porta de entrada para discutirmos essas questões que vivemos atualmente, ainda
que no atual cenário fazer isso tenha um certo sentido de absurdo.
Foi assim, atravessado por essas questões, que durante a análise dos artigos
estudados no mestrado, algo me saltou aos olhos. Dos oitenta artigos escolhidos, de mais
de 880, apenas um fazia alguma relação especificamente sobre gênero e TDAH. Isso se
mostrou uma pista a ser seguida (Latour, 2012) para acompanhar e entender quais
agenciamentos se produziam a partir disso. Para tanto, utilizamos a proposta da Teoria
16

Ator-Rede enquanto um material, ou como diz Law (2007) como ferramenta de


possibilidade e sensibilidades de análise do social, localizadas e continuamente geradas
em redes, ou atores-redes. A pista que se inicia com o artigo mencionado acaba sendo
atravessada pelas experiências que vivi na prática como psicólogo e professor supervisor
e estão resumidas nas narrativas no início desta tese. Todo esse processo foi dando corpo
ao meu interesse em pesquisar sobre gênero e TDAH.

1.1.2 – Da construção de si no processo de doutoramento


Muitos questionamentos surgem na produção de si no processo de doutoramento.
Estávamos no meio de um congresso científico quando angustiado me reuni com Murilo
para buscarmos uma reconexão com a tese, com a metodologia e com as ferramentas. Em
meio a perguntas como “vale a pena continuar?” “para além dos livros e artigos, meu
orientador e pouquíssimos colegas, quem mais pode ser interlocutor dessa escrita?”
lançamos mão nesse encontro daquilo que Murilo nomeou como diário das sombras, um
dispositivo que poderia auxiliar em tornar as angústias e questionamentos em
deslocamentos, enriquecendo o processo criativo da pesquisa. Algo como um compilado
de desabafos para mim mesmo sobre o processo de doutoramento na tentativa de
resignificar os absurdos e a partir deles buscar os deslocamentos.
É nítido que nem tudo nessa construção são pontos positivos. Nas idas e vindas
durante o processo de doutoramento, as angústias me fizeram praticamente desistir
algumas tantas vezes. O desespero da tela do word parada por horas nos momentos mais
tensos desse processo foram tomando conta de tudo. Com uma ida ao campo
comprometida devido ao processo da pandemia de Covid-19, do distanciamento e do
buraco que foi se construindo entre a necessidade de finalizar o processo e a força para
isso me sobrou olhar para tudo o que tinha em termos de construção e pensar: e agora? O
que tenho aqui que possa minimamente e de maneira satisfatória constituir um estudo
acerca de gênero e TDAH? A tarefa agora era muito mais traçar um plano de realidade
possível para contribuir com a produção científica na área. A famosa tese possível.

1.1.3 – Do contexto político e social no qual a tese está inserida


O que se faz com um doutorado sobre questões normativas de gênero, de
medicalização, quando temos o absurdo nas palavras e ações, em um contexto político
que nos coloca em um mar de lama? Às vezes até mesmo literalmente considerando os
crimes ambientais, nomeados de tragédias, do rompimento das barragens de mineração
17

no estado de Minas Gerais. Qual a perspectiva de futuro da pesquisa e de quem pesquisa


em um país no qual a ciência é achincalhada a todo o momento pela pós-verdade e pelas
políticas de destruição da educação, como por exemplo, o corte de bolsas e de recursos
desde o ensino básico até o pós-doutorado? As políticas privatistas e meritocráticas que
privilegiam áreas de interesse do mercado como os programas Future-se e a Lei Geral das
Universidades (LGU) no Paraná?
Para desenvolver pesquisas era necessário estar na docência no ensino superior,
já com escassos recursos, principalmente em universidades públicas que estão dia após
dia sendo desmontadas, privatizadas e mesmo fechadas. O que se faz é escrever, é
continuar, mesmo que isso se torne nesse contexto, palavras ao vento, ou então mensagens
em garrafas lançadas ao mar, que errantes podem encontrar outros errantes, produzindo
efeitos para encenarmos mundos distintos. É empurrar um bloco de gelo até que este se
derreta por completo como fez o artista Francis Allys em sometimes making something
leds to nothing, é produzir

...recursos para escrevemos sobre algo que extrapola o que


entendemos, buscando fazer com as palavras algo de sentir.
Seria esse um deslize, uma força que nos empurra em direção à
estética, que acione um campo estranho à razão, algo de absurdo
e ridículo e ao mesmo tempo energizante, algo como um gosto
pelo desastre (Moscheta & Ferreira, 2020).

O que de início nos moveu, foi que o tema da medicalização na infância e TDAH,
bem como os estudos de gênero são construções historicamente recentes e muito
promissoras em termos de pesquisa. Estão inseridos em movimentos políticos sociais,
discussões acadêmicas, fóruns e grupos de estudos especializados, serviços de saúde a
assistência social e fazem parte do imaginário no cotidiano. Este fenômeno está mais
evidente nos dias atuais e em certa medida as políticas e discursos em torno dessas
questões apontam para uma tentativa de encerramento político-ideológico do pensar
hegemônico sobre isso, é uma tentativa de coloca-los em uma caixa-preta.

A expressão caixa-preta é usada em cibernética sempre que uma


máquina ou um conjunto de comandos se revela complexo
demais. Em seu lugar, é desenhada uma caixinha preta, a respeito
da qual não é preciso saber nada, senão o que nela entra e o que
dela sai. (...) Ou seja, por mais controvertida que seja sua história,
por mais complexo que seja seu funcionamento interno, por
maior que seja a rede comercial ou acadêmica para a sua
implementação, a única coisa que conta é o que se põe nela e o
que dela se tira (Latour, 2011. p. 4)
18

1.2 – INTRODUÇÃO
Pensar como as noções de gênero atravessam os diagnósticos de alguns ditos
transtornos mentais na infância pode nos levar a inúmeras possibilidades e direções. Em
nossa tese, após analisar as diferentes possibilidades, resolvemos delimitar alguns
possíveis caminhos para a temática tomando decisões arbitrárias em termos de definições
conceituais e de “objeto”.
Primeiro de tudo é trabalhar com uma noção de gênero enquanto categoria de
análise. Mais que acadêmico, o tema é político na medida em que envolve inúmeros
processos culturais recheados de pluralidade (Louro, 2000). Ainda assim, presenciamos
discussões que associam expressões de gênero ao sexo biológico, ou seja, criam-se
categorias de acordo com a “realidade” do corpo.
São os estudos feministas e pós-estruturalistas que passam a traçar contribuições
diferentes aos estudos de gênero. Visões que colocam o gênero como discurso, dissociado
do corpo biológico, inserido em práticas sociais, culturais e em relações de poder que
fazem performar determinadas expressões de gênero (Felipe, 2007). Nesse sentido, o
gênero “coloca a ênfase em todo um sistema de relações que pode incluir o sexo, mas que
não é diretamente determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade”
(Scott, 1989. p. 7. Tradução minha).
Para Scott (1995), “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado
nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar
as relações de poder” (p. 21). A autora apresenta diferentes elementos que se relacionam
entre si e que ajudam a construir e manter as diferenças normativas entre os sexos como
(1) os símbolos culturais, principalmente representações religiosas de mulheres, santas
(Eva, Maria) ou corruptas (bruxas na idade média); (2) normativas que apresentam o que
é de fato masculino e feminino e consequentemente a apresentam como dominantes e
mantém a noção de binarismo; (3) a redução de gênero ao parentesco e fundamento
somente nas relações familiares, deixando de lado sua participação na economia, política
entre outros sistemas e; (4) a produção subjetiva e a construção do poder que legitima as
diferenças entre os corpos. Assim, “o gênero é um meio de decodificar o sentido e de
compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana (Scott,
1995, p. 23).
A estratégia de regulação da sexualidade passa pela família conjugal burguesa
visando às tecnologias do corpo e estratégias de regulação da população (Foucault, 1988).
19

Essa família é reduzida à tutela da medicina social que determina formas de vivência por
meio de uma educação higiênica que tem quatro estratégias apontadas por Costa (1999):
(1) a educação física que pretendia criar corpos robustos e harmoniosos instituindo
padrões estéticos gerando preconceitos ligados a corpos diferentes; (2) educação moral
com o intuito de disciplinar e educar pessoas cujo comportamento reprimido seria o ideal
levando à culpabilização exacerbada e forçando o sujeito a um forte autocontrole e a uma
tendência à extrema intolerância com pequenos desvios morais; (3) educação intelectual
valorizando sujeitos inteligentes e cientificamente aptos levando à elevação da
competição e de um sentimento de superioridade frente a sujeitos ditos não cultos - o
cérebro do homem segundo esta lógica, seria mais capaz do que o da mulher, por
exemplo; (4) educação sexual voltada para a reprodução, visando a geração de seres
saudáveis e puros – as condutas sexuais foram reduzidas às figuras do pai e da mãe
incitando a extrema repressão sexual no convívio familiar que se estende à sociedade
(Costa, 1999).
Nesse sentido, os estudos de gênero visam pôr em questão estas estratégias de
saber-poder que vinculam as expressões de gênero ao corpo biológico, mas não qualquer
corpo, um corpo permeado por discursos que tem um desenho normativo específico. Um
modelo binário de sexualidade que apenas admite masculino e feminino carregados de
expectativas de condutas de gênero ligadas ao sexo biológico. Para além dessa
dissociação entre gênero e corpo, Judith Butler (2003) aponta que não apenas o gênero é
permeado por discursos, por políticas e constituinte de relações sociais, mas também o
sexo biológico. Isso porque segundo a autora o sexo também não é natural, mas permeado
por uma existência social. Nesse sentido, o gênero é mais um fazer do que um ser, este é
o conceito de performatividade de gênero da autora, central para suas discussões. Para
Butler (2003) “o gênero mostra ser performativo [...] isto é, constituinte da identidade que
supostamente é. Nesse sentido, o gênero é sempre um feito ainda que não seja obra de um
sujeito tido como preexistente à obra” (p. 48).
Ao pensarmos em um corpo permeado por discursos, entendo que estes são
atravessados por relações de poder, em sua maioria relações hierárquicas que delimitam
as formas de vivência. Nesse sentido as expressões de gênero estarão inseridas em um
processo medicalizante assim como as expressões de comportamento e subjetividade, as
do TDAH por exemplo. A medicalização é um processo de incursão do saber médico nas
existências sociais que inserem um caráter patológico e biologizante nas inúmeras formas
de expressão da subjetividade (Ferreira, 2016). Essas temáticas, por assim dizer, fazem
20

parte de uma lógica de expectativa de conduta referentes a uma norma. O exemplo do


TDAH diz respeito a expectativas de conduta que estão nas entrelinhas de suas categorias
diagnósticas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Ficar
inquieto, não prestar atenção, se mexer demais, não respeitar hierarquias e normas de
conduta (APA, 2013) são pano de fundo para um ideal de ser social que os discursos
médico-psiquiátricos contribuem em construir em nossa sociedade: pessoas produtivas
que respeitam normas e hierarquias, criadas e moldadas para o consumo.
Com as expressões de gênero, a mesma lógica aparece. A diferença é que não há
um manual homologado por um órgão oficial de saúde mental, ao menos não tão explícito
quanto o DSM. Isso porque até pouco tempo atrás, a homossexualidade – tida como um
desvio da sexualidade padrão heterossexual binária – era considerada uma doença e
tratada como tal. As transsexualidades ainda apareciam como patologia na Classificação
Internacional de Doenças em sua décima edição (CID-10) e mostra como as expressões
de gênero são patologizadas e tomadas como parte do discurso e do saber médico. Na
versão mais atual (CID-11), a transsexualidade deixa a categoria de transtornos mentais
e passa a integrar o rol de condições de saúde sexual classificada como incongruência de
gênero.
Essa tutela do saber médico biologizante constrói aquilo que Caliman (2010) irá
chamar de bioidentidades. Essas bioidentidades moldam o indivíduo de acordo com o
diagnóstico recebido, a pessoa ressignifica sua vida a partir das descrições do transtorno
e as nuances de seu tratamento, que vem em maior parte, acompanhadas de um discurso
de déficit. Nesse sentido, a pessoa passa a se apresentar desta maneira. Esta lógica de
cuidado produz um certo alívio e um pertencimento na bioidentidade que subtrai outros
aspectos da vida como os políticos, econômicos, sociais e afetivos. Os biodiagnósticos
hierarquizam as relações, e colocam no individuo e em seu corpo toda a carga de
responsabilidade. Muitas vezes, ter uma bioidentidade, possibilita ao sujeito toda uma
gama de direitos e possibilidades. Um exemplo é o processo todo que uma pessoa
transexual tem que passar entre terapias psicológicas e terapias com hormônios, o
enquadramento em uma patologia como requisito para a cirurgia de redesignação de
gênero.
Nesse sentido, constroem-se corpos permeados por discursos políticos, religiosos,
jurídicos, médicos, psicológicos, pedagógicos, biológicos entre outros, que tem o
biológico com central e a norma como padrão. Crianças em idade escolar devem prestar
atenção na aula concluindo um processo que não contribui para a produção subjetiva,
21

tendo seus corpos confinados e normalizados por esta lógica (Ferreira, 2016). Da mesma
forma, as expressões de gênero que não condizem com a norma, ou seja, que se
apresentam fora da conduta heteronormativa e binária, produzem masculinidades e
feminilidades específicas e tudo aquilo que foge a esta norma possui um caráter
patológico ou moralmente inaceitável.
O que pretendemos com a presente tese então é apresentar as diferentes versões
que se performam no atravessamento de gênero nos transtornos mentais na infância, como
o TDAH, por exemplo. Para esta tarefa decidimos trabalhar a noção de gênero colada
com TDAH, como um objeto singular que se performa de diferentes maneiras em
diferentes lugares. Nesse sentido nos debruçamos em quarto diferentes espaços nos quais
encontramos esse objeto singular: na ciência, por meio de artigos científicos; no DSM V;
no CAPSi de um município do interior do Paraná e por último no espaço educacional.
Neste último não conseguimos muitos documentos e depoimentos em face do fechamento
dos espaços escolares devido à pandemia de coronavírus.
É de certa forma, compreender e descrever as diversas realidades que são
produzidas pelos efeitos destas relações a associações sem buscar uma única realidade
possível, mas realidades que são mutáveis sem possuírem um caráter universal, sendo
possíveis de transformações. Para isso precisamos incluir dois questionamentos muito
importantes. (1) Considerando que gênero e TDAH atuam biopoliticamente por meio dos
dispositivos da sexualidade e da medicalização nos perguntamos: como estes dispositivos
se articulam? (2) Ao pensarmos essa produção biopolítica de sujeitos ajustados e corpos
dóceis que atendem à norma questionamos como cada um destes dispositivos se alimenta
do outro, ou seja, como gênero informa a categoria diagnóstica de TDAH e como o
TDAH incide na regulação de gênero.
22

PARTE 2: COMO SE MONTAM


VERSÕES HEGEMÔNICAS
NORMATIVAS DE GÊNERO E TDAH
23

2.1 – HOMOGENEIDADE HEGEMÔNICA: O QUE DIZ A CIÊNCIA?

No presente capítulo apresentaremos a formação da versão científica em relação


ao nosso objeto singular (que não é único) gênero/TDAH. Para isso, recorremos a uma
pequena revisão da literatura científica sobre o assunto. Se entendemos que a noção de
conhecimento científico em nossa sociedade é aquela que dá luz à realidade, uma
realidade única, passamos a entender como esta versão vai se tornando hegemônica e
subsidiando práticas específicas. Isto ocorre principalmente por aquilo que Law (1986)
chama da arma da ciência: o texto científico. Como principal forma de divulgação da
produção de conhecimento, o texto científico serve como base para muitas práticas o que
não é diferente para nosso objeto gênero/TDAH.
Mas o que significa dizer que o texto é uma arma e porque isso é relevante para a
presente discussão? Retomando nossos estudos anteriores (Ferreira, 2016) temos que de
acordo com Law (1986) o produto daquilo que acontece no laboratório, ou seja, o texto
científico deve produzir ação no mundo, e essa agência se dá principalmente em dois
termos: (1) o endereçamento do texto, no qual deve-se considerar o periódico a ser
publicado e o público-alvo desta publicação e, (2) a própria construção narrativa do texto,
ou seja, de que forma os “dados” e e os resultados serão colocados no texto para garantir
a sua força de agência (LAW. 1986). No caso dos estudos sobre gênero e TDAH estes
dois pontos se fundem na noção de prevalência e nos tipos de estudo como veremos
adiante.
Observamos que os estudos que propõem uma relação entre gênero e TDAH o
fazem em sua maioria de forma quantitativa1 analisando principalmente questões de
prevalência. Fazer a análise da relação gênero/TDAH a partir desta questão afirma uma
interação específica de distribuição, ou seja, de como TDAH se distribui entre meninos e
meninas. Para além disso afirma que TDAH se manifesta de maneiras diferentes dentro
de uma lógica binária de gênero. Essa distribuição se dá inserida na lógica da afirmação
de uma existência prévia das duas categorias (gênero e TDAH) que fazem parte da
realidade sozinhas e independentes aguardando o momento de serem descobertas ou

1
Cabe lembrar que não estamos entrando no mérito de discutir valorativamente as noções
quantitativas e qualitativas das pesquisas apenas apontamos a forma como essas se apresentam.
24

representadas e serem inseridas dentro de uma caixa pré-fabricada do que é ser menino e
menina. Essa lógica faz com que não olhemos para as relações que produzem as duas
categorias, ou seja, na prevalência apaga-se a relação de produção.
Boa parte dos estudos nos mostra uma taxa de 5 meninos diagnosticados para 1
menina diagnosticada com o TDAH, variando até de 3:1 e apontam subdiagnóstico em
meninas. O artigo mencionado na apresentação desta tese, aquele que me saltou aos olhos,
intitulado Prevalência de transtorno de déficit de atenção/hiperatividade em relação ao
gênero de escolares de Cardoso, Salbagg & Beltrame (2007) trata principalmente da
prevalência do TDAH entre crianças em idade escolar e a relação desta prevalência com
o gênero, associado às marcas biológicas do corpo.
Poucos estudos apontam para “marcas culturais” que diferenciam expressões de
gênero, mas de forma sistemática não discutem essa relação e essas “matrizes culturais”.
O que querem dizer com marcas ou matrizes culturais? Qual a relação diagnóstica entre
gênero como categoria analítica e TDAH? Decidimos então elaborar uma breve revisão
de literatura para traçarmos algum entendimento sobre como a ciência produz um
conhecimento acerca de gênero e TDAH. Esta estratégia pode nos proporcionar a
dimensão da multiplicidade ao tomarmos o texto como a arma da ciência (Law, 1986) e
assim descrevermos as aproximações e distanciamentos desses objetos (gênero e TDAH)
em seus diferentes agenciamentos (Mol, 2002).
A pergunta que guiou esta revisão foi a seguinte: como a literatura científica
produz a relação entre gênero e TDAH? As bases de dados consultadas foram Scielo,
BVS que reune resultados também das bases Lilacs e Medline, e Indexpsi. Devido à
pesquisa anterior no mestrado, já imaginávamos que esta produção se resume nos estudos
de prevalência. Isso dificultou o processo na hora da consulta nas bases de dados
principalmente no que se refere à escolha das palavras-chave para a consulta. Em um
primeiro momento pesquisamos por “TDAH gênero” em pesquisa simples e avançada
das bases. O retorno obtido está representado na tabela 1 abaixo:
25

Tabela 1: Retorno obtido nas bases de dados sem especificação de campo nas palavras-
chave

Base de dados Número de artigos

Scielo 10

BVS (Lilacs e Medline combinados) 1426

Indexpsi 0

TOTAL 1436

Como queríamos artigos com ênfase na relação entre gênero e TDAH resolvemos
utilizar o recurso de descritores de assuntos na parte campo na hora da pesquisa. Os
descritores utilizados foram: TDAH e Gênero. A utilização desta estratégia fez diminuir
significativamente o resultado de artigos na base BVS nos levando diretamente para
aqueles que pretendiam relacionar o transtorno com a categoria de gênero gerando um
resultado de 29 artigos no total sendo 10 na Scielo, 13 na BVS e 6 na junção de outras
bases (Pepsic; Indexpsi e pesquisa direta). Isso proporcionou a utilização de forma mais
coerente dos critérios de inclusão e exclusão. Não foram aplicados filtros para recorte
temporal, de língua ou país de origem, entre outros. Os critérios de inclusão foram artigos
que fizessem alguma menção relacionada à prevalência de gênero no TDAH; relação
entre gênero e TDAH como assunto principal. Foram assim excluídos 20 estudos após
leitura de resumo e 2 estudos após leitura completa sendo selecionados um total de 7
artigos para esta análise sendo 3 artigos de prevalência em diferentes partes do mundo; 2
artigos de teste clínico que também traz dados de prevalência; 1 artigo de revisão de
literatura e 1 artigo teórico.
O número de artigos reduzido reflete aquilo que apontamos anteriormente, que a
relação entre gênero e TDAH não é trabalhada de uma maneira a buscar os acionamentos
de noções normativas de gênero para o diagnóstico e também reflete que a forma como
são trabalhados os artigos referentes ao dito transtorno apresentam gênero como uma
categoria simples como idade ou série escolar. O artigo TDA-H e gênero: experiências
subjetivas de meninos e meninas no Chile de Uribe e cols (2019) segue um pouco na
direção de pensar gênero como uma categoria “subjetiva” que vai além de uma noção
26

simplista apresentando como a dimensão de gênero configura a experiência subjetiva de


meninos e meninas com o transtorno (Uribe e cols., 2019).
De maneira geral, o estudo de Uribe e cols. (2019) nos apresenta os estudos da
literatura na relação de TDAH e gênero e que seguem uma naturalização dos
comportamentos normativos esperados em relação à gênero e em relação à conduta frente
as exigências dos adultos principalmente no ambiente escolar.

políticas, instituições, estratégias e táticas parecem ter


diferenciado alguns grupos específicos de crianças e
adolescentes com base em certas "marcas de identidade", sem
examinar, pelo menos para o caso particular de TDAH, quais
seriam as relações específicas entre uma NEE transitória e gênero
ou quais seus efeitos subjetivantes (Uribe e cols. 2019).

As autoras nos mostram por meio das entrevistas feitas com crianças que
exeperienciam o diagnóstico de TDAH, que a forma como se enxergam dentro do
espectro do transtorno se dá de maneira múltipla e dependente de questões relacionadas
à cultura, aos discursos e às expectativas comportamentais dos adultos. A participação
das crianças para falar de sua experiência subjetiva sobre o diagnóstico é um marco
diferencial, que possibilita observar que as expectativas normativas e binárias em relação
à gênero e TDAH sofrem uma certa resistência nos discursos das crianças, encontrando
no meio do caminho diferentes formas de lidar com essas normas e tornando uma redução
simples e binária, que pretende a literatura, praticamente impossível (Uribe e cols., 2019).
A grande diferença para outros estudos é justamente uma marca importante nos
estudos com crianças, pois os autores fazem entrevistas abertas com crianças para que
elas contem de sua experiência enquanto diagnosticadas com o transtorno utilizando
gênero como um recorte de análise. Quando as pesquisas, principalmente de prevalência,
produzem um conhecimento, sempre quem informa sobre a criança é um terceiro, seja
humano (pais, cuidadores e professores) ou não-humanos (testes e baterias de testes) estes
últimos aplicados também em pais, cuidadores e professores. Esta é uma informação que
sempre chamou a atenção nos estudos sobre o TDAH e é tema de uma pesquisa futura
que pretendo desenvolver.
Exemplo disso são os artigos de prevalência intitulados (a) TDAH entre crianças
escolares em Kinshasa, República Democrática do Congo de Kashala e cols. (2005); (b)
Prevalência de Sintomas de TDAH em crianças pré-escolares iranianas de Meysamie,
Fard e Mohammadi (2011) e (c) TDAH entre escolares em Menoufia Governorate, Egito
de Farahat e cols. (2014) que utilizam como principal metodologia questionários
27

específicos para pais, cuidadores e professores no intuito de quantificar as crianças com


sinais do transtorno a partir dos critérios do DSM. Outras ferramentas também são
utilizadas como questionário de Conner e o SNAP IV desenvolvidos para que terceiros
relatem sobre as crianças. Os resultados que corroboram a literatura na área, na qual a
prevalência em relação a gênero varia entre 5 meninos para 1 menina até 3 para 1 nos
mostram a globalização de uma psiquiatria normativa e de suas ferramentas como o DSM
(Russo & Venâncio, 2006).
Podemos observar nas conclusões dos estudos acima o quanto a tentativa de
encerrar a controvérsia em relação à prevalência em gênero é comum neste tipo de estudo
utilizando do recurso da força textual, ou seja, da literatura para confirmar esse
entendimento. Não obstante, a forma da organização da escrita e a narrativa dos artigos
seguem fórmulas muito parecidas acionando logo no início dos textos a “vasta” literatura
que confirma uma taxa de prevalência de TDAH na população em geral que varia, a
depender das referências utilizadas, de 5 a 25% e a taxa em relação à gênero na casa de
3:1.
Como diz Latour (2011) a busca por aliados pode produzir esse encerramento,
ainda que o que se coloca na caixa-preta seja a certeza de que a prevalência é incerta.
Referências cruzadas podem nos dar uma pista de como essas afirmações apresentadas
acima auxiliam naquilo que podemos chamar da robustez dos estudos científicos. Mais
que características metodológicas, tabelas, testes entre outros, a força textual vem
também da vasta literatura que afirma o incerto ou o mais aceito. O estudo de Kashala e
cols. (2005) vai um pouco além apresentando a necessidade de se pensar uma avaliação
em múltiplos contextos para então ter uma maior dimensão do que está dito.
Vamos assim observando como a versão de gênero/TDAH vai se formando no
discurso científico. Participam dessa versão artigos científicos, pais e cuidadores,
professoras, testes psicotécnicos, estatísticas de prevalência e não participam crianças.
A controvérsia que é corroborada pela literatura passa pela tentativa de uma
explicação no artigo de análise clínica intitulado Apresentação clínica do TDAH como
função de gênero de Montiel-Nava e cols. (2007), pois a partir de um estudo clínico
realizado na Venezuela apresenta que não há diferença no TDAH em função de gênero.
As autoras apontam a diversidade metodológica e amostral para tanta discrepância na
prevalência do transtorno em relação à gênero. Outro ponto apresentado é que as autoras
relatam que a maioria dos estudos tem uma amostra muito maior de meninos do que de
meninas fazendo com que estas sejam subrepresentadas nas pesquisas o que por uma falha
28

metodológica apontaria para um subdiagnóstico em meninas. Utilizando das mesmas


ferramentas para critério diagnóstico, Montiel-Nava e cols apontam para a não existência
de uma diferença na sintomatologia do TDAH em função de gênero, portanto é um artigo
que vai de encontro a outros estudos como os apresentados acima nos quais os subtipos
desatentos são mais diagnosticados em meninas e os subtipos
hiperatividade/impulsividade em meninos. Aprofundaremos essa discussão na próxima
sessão.
Esta noção de diversidade metodológica e amostral que caracteriza a ideia de uma
discrepância na prevalência também é apresentada por Oliveira e Albuquerque (2009) no
artigo de revisão intitulado Diversidade de resultados no estudo do TDAH. O estudo traz
a heterogeneidade de conclusões referentes à caracterização do transtorno, as diferenças
de gênero entre outros aspectos como um fator que dificulta a caracterização do TDAH
em meninas. Questões como o desenvolvimento das características do transtorno no
decorrer dos anos a partir das publicações das diferentes edições do DSM, suas diferenças
com o CID-10 e a divisão em subtipos (desatento, hiperativo ou combinado) estão
relacionadas a uma heterogeneidade da nosologia do TDAH. Outros aspectos como quem
informa sobre as amostras é trazida pelos autores como um problema. Aqui poderíamos
pensar na preocupação de pesquisadores em dar voz às crianças, porém a solução dada
para a diminuição da heterogeneidade nesse aspecto é ouvir tanto pais como professores
uma vez que a partir do DSM as características do transtorno devem estar presentes em
diferentes contextos. O artigo aponta que os auto-relatos das crianças são limitados em
decorrência “da falta de maturidade necessária para compreender e reportar com precisão
estados emocionais, ou mesmo, a intensidade e duração dos sintomas” (Oliveira e
Albuquerque, 2009). Podemos dizer que, segundo a visão dos autores, a multiplicidade
aparece como um impedimento para um melhor aprofundamento da especificidade da
sintomatologia do transtorno em cada gênero buscando uma sistematização de dados a
partir de uma lógica normativa específica.
O que observamos ao trazer alguns aspectos destes estudos é que a lógica binária
de gênero está enraizada tanto nas metodologias quanto nos resultados produzidos pelos
estudos. Para Uribe e cols. (2019) que conduziram entrevistas com crianças, a
multiplicidade das experiências subjetivas de meninos e meninas com TDAH torna a
tarefa de reduzir o diagnóstico em uma lógica binária, impossível. A globalização do
pensamento de uma psiquiatria biológica, representada pelo DSM, nos mostra que o
caminho tomado em relação a gênero e TDAH, é um caminho de homogeneidade, que se
29

pretende hegemônico e livre de controvérsias, na tentativa de colocar essas questões


dentro da caixa-preta. Na contramão dessa produção de homogeneidade, interessa-nos
mais a compreensão das divergências, das assimetrias e contradições pois aí se revela
com intensidade o processo de fabricação de ficções com valor de verdade tais como o
TDAH e o gênero. Trata-se de perguntar como estas duas ficções trabalham juntas para
mutuamente fortalecer seu valor de verdade.

2.2 - “FRIO COMO DIAGNÓSTICO2”: DISPOSITIVO DE NORMATIZAÇÃO


ESPECÍFICA

O objetivo desta sessão é discutir as construções e regulações de gênero e


sexualidade no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e como
elas servem a uma determinada regulação exercida pelo saber biomédico psiquiátrico a
partir de uma lógica da diferença. Partimos da pergunta: Qual a noção de masculino e
feminino que o DSM pressupõe e propõe e como essas são acionadas em categorias
diagnósticas na infância em transtornos do neurodesenvolvimento e disruptivos, como o
Transtorno de Défict de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e o Transtorno de Oposição
Desafiante (TOD) respectivamente? O DSM é, em certa medida, um dos pontos-chave,
um rastro de participação ativa deste actante nos diferentes espaços
Vivemos atualmente um constante processo normativo, com resquícios e
requintes colonizadores, historicamente ligados às produções discursivas das relações
saber-poder constituídas no modelo capitalista. Foucault (1970/2004) já alertava para
esses processos em Microfísica do Poder em que apontava esse movimento disciplinador
dos corpos em termos judicializantes, patologizantes e medicalizantes.
Optamos por construir essa discussão e análise na infância e com os transtornos
apresentados acima por dois principais motivos: 1) a infância é um lugar privilegiado uma
vez que a regulação de gênero nessa etapa do desenvolvimento é exercida de maneira
mais intensa e controlada e, 2) TDAH e TOD, ainda que recheados de controvérsias, tem
uma alta prevalência na infância e são categorizadas no DSM V pelo mesmo grupo de
trabalho em transtornos do neurodesenvolvimento (TDAH) e transtornos disruptivos
(TOD). São categorias que demarcam uma ruptura da caricatura de ser social postulada
pelo manual, que seriam crianças que se comportam de determinada maneira, que não

2Assis, Machado de. O Alienista (1882/1994, p. 32).


30

levantam da cadeira em sala de aula, que obedecem a hierarquias e figuras de poder


incondicionalmente. São nessas rupturas que as forças de correção agem com mais
violência. São nessas características que conseguiremos ver regulação de gênero de modo
mais destacado. Nossa hipótese é de que essas categorias diagnósticas na infância são
ferramentas de policiamento na construção normativa de gênero masculino e feminino,
fazendo do gênero uma força imprescindível para a sustentação dessas categorias
diagnósticas.

Para trabalharmos esta hipótese analisamos também a categoria diagnóstica de


disforia de gênero na infância no DSM V por entendermos que esta categoria regula um
entendimento específico sobre gênero que reflete nas categorias mencionadas acima
(TDAH e TOD). Assim, tomamos o DSM como uma tecnologia de duas dimensões: a
primeira pressupõe gênero na medida em que identifica características que definem
comportamentos dentro de uma ideia de masculinidade, construindo a feminilidade como
avesso desta. A segunda dimensão propõe gênero na medida em que atribui que
determinados desvios sejam entendidos como uma exacerbação de determinada
característica de masculinidade e consequentemente de feminilidade. Essas duas
dimensões são circulares e se retroalimentam regulando desvios que reafirmam
masculinidades e feminilidades dentro de uma lógica binária e heteronormativa de
gênero.

2.2.1 – DSM como ferramenta que generifica as relações de maneira específica.

Os desdobramentos que encerraram as sexualidades em uma única possibilidade


voltada para a procriação, ao final do século XIX, fizeram com que toda sua manifestação
que se encontrava fora deste espectro fosse tomada por discursos da medicina, da
psiquiatria, da psicologia, entre outros, no intuito de normatizá-la. Foucault (1988) aponta
que

No espaço social, como no coração de cada moradia, um único


lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o
quarto dos pais. Ao que sobra só resta encobrir-se; o decoro das
atitudes esconde os corpos, a decência das palavras limpa o
discurso. E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente vira
anormal: receberá este status e deverá pagar as sanções. O que
não é regulado pela geração ou por ela transfigurado não possui
eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo
expulso, negado e reduzido ao silêncio. Não somente não existe,
como não deve existir e à menor manifestação fá-lo-ão
31

desaparecer – sejam atos ou palavras (p. 10).

Para Foucault (1988), a questão refere-se ao uso do biopoder, definido como

... técnicas diversas e numerosas para obterem a sujeição dos


corpos e o controle das populações, [através das disciplinas e das
regulações que se demarcarão] ... na forma de agenciamentos
concretos do poder no século XIX: o dispositivo de sexualidade
será um deles, e dos mais importantes (p.131 e p.153, grifo
nosso).

Um dos grandes alvos do discurso biomédico-psiquiátrico em relação à


sexualidade é o corpo. Para Sampaio & Medrado (2014), o corpo é considerado em nossa
sociedade, o lugar onde começa e termina o indivíduo, tornando-se uma descrição do
sujeito, marcando de certa forma o limite entre as pessoas e delimitando inclusive
posições e posicionamentos políticos. Uma expressão de gênero que está fora da
“realidade” do corpo, acaba ficando fora também da norma social, é considerada
desviante.
Este “estar fora da realidade do corpo” é um entendimento de que a sexualidade
jaz definida de acordo com os aparatos biológicos socialmente construídos enquanto seus
definidores em uma lógica binária de gênero. Assim, as características biológicas sexuais
primárias definem a sexualidade humana em um modelo binário que apenas admite
masculino e feminino, carregados de expectativas de condutas de gênero ligadas ao sexo
biológico.
Essa tutela do saber médico sobre o corpo e sobre as sexualidades vai se
constituindo ancorada em diversas materialidades que ajudam a sustentar os discursos de
um saber-poder acerca da vida. A ciência moderna e a medicina do biológico produzem
ferramentas discursivas e dispositivos de verdades desde o século XIX e que vão se
modificando ao longo do tempo e adaptando-se em certa medida com o contexto de
produção destes discursos e com as resistências que vão aparecendo, bem como aos
efeitos necessários de produzir. Ao pensarmos em um corpo permeado por discursos,
atravessado por relações de poder, em sua maioria relações hierárquicas que delimitam
as formas de vivência, as expressões e possibilidades da sexualidade que se encontram
fora da lógica binária estarão inseridas em um processo medicalizante.
Uma das ferramentas mais utilizadas nessa lógica médica patologizante é o DSM.
Em relação às sexualidades, e recorrendo aos apontamentos e discussões acerca do
32

pensamento de Butler (2003) o DSM, desde sua primeira edição em 1954 até a mais
recente em 2013, opera sob a matriz de inteligibilidade da heteronormatividade tendo a
heterossexualidade como origem do sistema sexo->gênero->desejo no qual a marca
corporal irá designar o gênero da pessoa e consequentemente a direção do seu desejo.
Desta forma, na versão de gênero/TDAH do DSM e dos desdobramentos para a
prática contamos com grupos de trabalho específicos formados por profissionais da
psiquiatria a nível global, a própria ferramenta DSM, realidade específica do corpo,
produção globalizante de diagnósticos, rede de profissionais que utilizam dessa
ferramenta na prática clínica e novamente não contamos com crianças participando
diretamente dessa versão.
Ainda nas primeiras duas edições do manual, os transtornos eram divididos em
orgânicos e não-orgânicos. Poucas foram as mudanças entre a primeira edição e a segunda
sendo que esta última teve maior influência da psicanálise, na qual o entendimento dos
transtornos mentais passa a ser orientada por uma realidade psicológica (Russo &
Venâncio, 2006). Essa pesada influência da psicanálise era vista principalmente em
relação às neuroses que apareciam como transtornos não-orgânicos. Na década de 1980
com as grandes revoluções farmacológicas e a tecnologia cada vez maior de produção de
medicamentos foi publicada a terceira edição do DSM. Sua publicação é um marco nos
rumos que irá tomar a psiquiatria moderna. A pretensão científica era ambiciosa no
sentido de criar categorias objetivas, neutras e generalizáveis levando a cabo a
globalização da psiquiatria (Russo & Venâncio, 2006). Marca também o rompimento com
a maioria dos preceitos psicanalíticos.
Um dos grandes efeitos deste rompimento é a saída que se cria para dar conta das
neuroses e esta tem um grande efeito principalmente naqueles ditos transtornos da
sexualidade. Nas categorias de distúrbios da personalidade que até então eram um meio
termo entro transtornos orgânicos e não-orgânicos sob a égide das neuroses, o
rompimento representou um aumento significativo nos ditos transtornos da categoria de
“desvios sexuais”. Se na segunda versão do DSM estes eram nove, em sua terceira versão
o número passou a ser de 22 divididos em quatro categorias: Desordem de identidade de
gênero; parafilias; disfunção psicossexual e outras desordens psicossexuais (Russo &
Venâncio, 2006). A grande novidade na publicação do DSM III é a retirada da
homossexualidade enquanto uma categoria diagnóstica da parafilia, passando à categoria
de outros transtornos psicossexuais. Parece uma pequena mudança, mas não para o
movimento social político liderado pela comunidade LGBT norte-americana da década
33

de 1970. Esta pequena mudança é o início de uma luta política que passou a pressionar
cada vez mais para a retirada da homossexualidade enquanto categoria diagnóstica. Se na
primeira edição do DSM III a vitória estava em a homossexualidade não mais ser
considerada uma perversão (parafilia), na primeira revisão do novo manual, o DSM III-
R publicada em 1989, esta categoria já não mais aparece (Russo & Venâncio, 2006).
É interessante ressaltar que, ainda que estas lutas políticas tenham surtido efeitos
positivos em relação às suas demandas e com certeza podem ser consideradas vitoriosas.
Dificilmente um pensamento psiquiátrico ancorado em uma determinada visão de mundo
irá desistir de categorizar as expressões da sexualidade que se encontram fora do padrão
heteronormativo e binário. Talvez aqui possamos pensar naquilo que Butler (2003)
chamou de efeitos ontológicos, pois se a psiquiatria biológica está ancorada em uma
determinada ontologia, irá circunscrever uma epistemologia e uma metodologia coerentes
com essa visão de mundo, no caso uma visão de um corpo com uma marca biológica
específica relacionada à sexualidade.
Assim, podemos dizer que em certa medida as classificações vão se adaptando aos
contextos de lutas políticas e de mudanças tecnológicas sem perder de vista sua
ancoragem em uma ontologia biológica do corpo, no discurso de uma marca corporal da
sexualidade natural e binária sem perder de vista sua necessidade de continuar produzindo
efeitos de governabilidade. De acordo com Bento (2016), a lógica de adaptação
classificatória do DSM é um processo minucioso, pernicioso de colonização e
globalização de um saber-poder que opera nessa ferramenta3.
Na Figura 1 abaixo, apresentamos as categorias diagnósticas para a dita Disforia
de Gênero presentes no DSM V lançado nos EUA em 2013 e traduzido em português em
2014. Optamos pelas categorias elencadas em dito transtorno na infância, pois reforça
ainda mais a caricatura de ser que esta psiquiatria biológica pretende formar em termos
de uma sexualidade binária e heteronormativa:

3
Berenice Bento (2016) faz um detalhado estudo acerca da revisão que culminou na construção
da quinta edição do DSM passando pela filiação teórica, de área, localidade geográfica e
institucional de revisores dos Grupos de Trabalho responsáveis pela revisão das categorias
diagnósticas relacionadas a gênero apontando para o forte teor colonizador e de violência
epistemológica que o Manual confere.
34

Disforia de gênero em Crianças 302.6 (F64.2)


Condição diagnóstica:
A - Incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e o gênero
designado de uma pessoa, com duração de pelo menos seis meses, manifestada por no
mínimo seis dos seguintes (um deles deve ser o Critério A1):

Critérios diagnósticos

1. Forte desejo de pertencer ao outro 2. Em meninos (gênero designado), uma


gênero ou insistência de que um gênero forte preferência por cross-dressing
é o outro (ou algum gênero alternativo (travestismo) ou simulação de trajes
diferente do designado). femininos; em meninas (gênero
designado), uma forte preferência por
vestir somente roupas masculinas
3. Forte preferência por papéis típicas e uma forte resistência a vestir
transgêneros em brincadeiras de faz de roupas femininas típicas.
conta ou de fantasias.
4. Forte preferência por brinquedos,
5. Forte preferência por brincar com jogos ou atividades tipicamente usados
pares do outro gênero. ou preferidos pelo outro gênero.

7. Forte desgosto com a própria 6. Em meninos (gênero designado),


anatomia sexual. forte rejeição de brinquedos, jogos e
atividades tipicamente masculinos e
8. Desejo intenso por características forte evitação de brincadeiras
sexuais primárias e/ou secundárias agressivas e competitivas; em meninas
compatíveis com o gênero (gênero designado), forte rejeição de
brinquedos, jogos e atividades
experimentado.
tipicamente femininas.

B - A condição está associada a sofrimento clinicamente significativo ou a prejuízo no


funcionamento social, acadêmico ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
Especificar se:
Com um transtorno do desenvolvimento sexual (p. ex., distúrbio adrenogenital
congênito, como 255.2 [E25.0] hiperplasia adrenal congênita ou 259.50 [E34.50]
síndrome de insensibilidade androgênica).

Figura 1: Critérios diagnósticos para o transtorno de Disforia de Gênero em Crianças.


35

O que observamos nessas categorias é uma representação explícita de como a


matriz heterossexual está fortemente presente nos discursos médicos psiquiátricos
(também psicológicos, pedagógicos e jurídicos). Assim, a

Medicalização da sexualidade implicou, entre outros processos,


a focalização nas sexualidades “periféricas”, sua delimitação e
especificação rigorosas. A atenção então concedida aos
“desviantes” da sexualidade conjugal (e por isso procriativa)
produziu a identificação do “perverso” como uma pessoa que é
definida pelos seus comportamentos sexuais e eróticos. Ao invés
de fazer como as instâncias religiosas e jurídicas, que
condenavam e julgavam o ato em si (por exemplo, a sodomia),
passava-se a circunscrever uma patologia que comprometia o
sujeito como um todo, definido pelos atos que cometia
(continuando com o exemplo anterior, o sujeito que pratica a
sodomia passa a ser um homossexual). A história das parafilias,
portanto, seguindo as formulações de Lanteri-Laura e Foucault,
é a história de sua apropriação médica e concomitante produção
de personagens sociais (Russo & Venâncio, 2006. p. 471).

Assim, a categoria diagnóstica de Disforia de Gênero é uma ação dessa tecnologia


(DSM) que regula gênero em constructos normativos que definem primeiramente uma
masculinidade e, por consequência, o seu avesso, a feminilidade. O DSM parte de um
princípio binário, operando por oposição em relação a gênero conformando uma noção
de dois gêneros distintos. Cria dispositivo para fazer dois gêneros aparecerem,
patologizando outras possibilidades de organização de gênero. Nos critérios para esse
enquadre diagnóstico na infância, Bento (2016) traz o seguinte questionamento, "Como
identificar uma criança com disforia de gênero? Não há nenhum indicador objetivo,
quantificável, repetível para se definir os disfóricos de gênero. São as normas sociais
hegemônicas definidores do que é apropriado às meninas e aos meninos que guiam o
olhar do psiquiatra" (Bento, 2016; p. 512).
Por operar em uma lógica de diferença, o Manual ignora as questões de
desigualdades produzidas pelas relações de gênero caracterizando uma "ordem social que
considera a masculinidade e a feminilidade como partes dos atributos sexuais, naturais e
que condicionam as capacidades das pessoas para realizar qualquer atividade ou ocupar
qualquer posição social" (Lyra & Medrado, 2008).
É nesse sentido que o Manual pressupõe e propõe gênero, a partir de critérios
normativos hegemônicos. Quando este diz que brincadeiras agressivas e competitivas são
exclusivas de meninos, portanto da masculinidade, pressupõe que estes comportamentos
36

são expressões exclusivas do gênero masculino. Consequentemente está pressupondo


uma feminilidade passiva. A proposição de gênero está ligada a uma definição de como
devem ser esses comportamentos masculinos e femininos considerados por essa
tecnologia, pois a exacerbação de uma certa característica também está fadada a uma
patologização. Assim, para se enquadrar na masculinidade pressuposta é preciso interesse
em brincadeiras agressivas e competitivas, porém, estas não podem fugir da linha do
normal pois serão enquadradas em outra categoria, ou seja, para ser homem deve-se
gostar de agressividade, mas não muita pois, um dos critérios diagnósticos da
hiperatividade é a incapacidade de brincar ou se envolver em atividades de lazer
calmamente (APA, 2013.)
Nesse sentido, constroem-se corpos permeados por discursos políticos, religiosos,
jurídicos, médicos, psicológicos, pedagógicos biológicos, entre outros que têm o
biológico como central e a norma como padrão. As expressões de gênero que não
condizem com o entendimento do caráter natural e biológico do sexo, que se apresentam
fora da expectativa de conduta heteronormativa e binária, produzem masculinidades e
feminilidades específicas delegando um caráter patológico ou moralmente inaceitável
para tudo aquilo que foge a essa norma, medicalizando os corpos fragmentando e
objetificando o sujeito (Russo, 2004). O que temos é que quando o gênero passa a ser
muito mais coisas para além de masculino e feminino, o DSM captura essas rupturas
classificando como disforia enquadrando na ideia de masculino e feminino para manter
normativamente esses dois .
Em artigo publicado em 2019, Henriques e Leite apontam para a produção de uma
síndrome cultural estadunidense por parte do DSM. De acordo com os autores, esse
processo mostra a tendência expansionista e globalizadora do DSM como apontam
também Bento (2016) e Rodrigues (2013). A noção de síndrome cultural é apresentada
pelos autores como forma de ironizar as escritas do próprio manual para definir síndromes
específicas de uma cultura específica mas que poderiam ser aplicadas a praticamente
todos os transtornos descritos no DSM.

seriam os transtornos descritos no DSM-5 produtos da própria


cultura estadunidense e vendidos sob o rótulo de universais, o
que, em última instância, parece funcionar como o exemplo mais
ilustrativo do projeto expansionista da APA, que dissemina seus
particularismos como sendo algo universal. Essa noção de
síndrome cultural que existe para designar síndromes atribuídas
a culturas exóticas, bizarras, estranhas, queers... - ou seja, que
existe para capturar e arregimentar os contextos culturais
37

específicos no âmbito de seu projeto universalista e acaba, por


fim, nos fornecendo a chave de leitura para a empreitada da APA
(Henriques e Leite, 2019, p. 3).

Nesse sentido, quando encontramos nas categorias diagnósticas tanto de disforia


de gênero quanto de TDAH a palavra tipicamente, por exemplo, podemos dizer que em
certa medida, esse típico está intimamente ligado à cultura estadunidense o que nos leva,
junto aos autores, a questionar

em que medida as categorias que se pretendem universais no


DSM não refletiriam as peculiaridades da cultura norte-
americana na delimitação de seus problemas locais? Ressaltando
que o DSM surgiu, em 1952, como alternativa à Classificação
Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de
Saúde (OMS), justamente em função de uma demanda dos
psiquiatras norte-americanos, que não reconheciam na CID os
transtornos psiquiátricos específicos existentes em solo
estadunidense. Após a guinada metodológica de 1980, que
coincidiu com a sua terceira edição, o DSM se repaginou como
“descritivo e ateórico” e assumiu suas pretensões universalistas,
porém, os transtornos psiquiátricos específicos dos Estados
Unidos não desapareceram dessa terceira edição tampouco das
seguintes (p. 3).

A pretenção globalizadora descritiva do DSM então se mostra muito mais


colonizadora e ligada a normativas regionalizadas específicas como já apontava Bento
(2016) ao falar acerca das pretensões expansionistas do DSM bem como a formação dos
grupos de trabalho do manual.

2.2.2 – TDAH e transtornos disruptivos como problemas de gênero


Ao pensarmos em um corpo permeado por discursos, entendemos que estes são
atravessados por relações de poder, em sua maioria relações hierárquicas que delimitam
as formas de vivência. Nesse sentido as expressões de gênero estarão inseridas em um
processo medicalizante assim como as expressões de comportamento e subjetividade, as
do TDAH e TOD, por exemplo, que de alguma maneira são atravessadas pelas
desigualdades produzidas pelas relações de gênero. O exemplo do TDAH e dos
Transtornos Disruptivos diz respeito a expectativas de conduta que estão nas entrelinhas
de suas categorias diagnósticas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM). São pano de fundo para um ideal de ser social que os discursos médico-
psiquiátricos contribuem em construir em nossa sociedade: pessoas produtivas que
respeitam normas e hierarquias, criadas e moldadas para o consumo. Além do mais, essas
38

relações trazem um olhar generificado, ou seja, orientado por pressupostos binários de


gênero que permitem dizer que comportamentos, habilidades etc. são reconhecidos como
sendo adequados para meninos ou para meninas não deixando espaço para aquilo que
foge ao binarismo. São relações então pautadas nas diferenças produzidas e reguladas
pelo DSM.
Nesse sentido, as relações construídas nos momentos do diagnóstico, na clínica, e
até mesmo na produção científica acerca de gênero e TDAH, por exemplo, serão
atravassadas por esses processos de generificação. Operam uma regulação de
masculinidades e feminilidades binárias e heteronormativas representadas no DSM por
meio dos critérios diagnósticos de disforia de gênero na infância, o que atravessará o olhar
médico também na produção de outros diagnósticos comuns na infância, como o TDAH.
O entendimento na literatura científica acerca do dito transtorno de que na maioria
dos casos meninas são mais diagnosticadas com o subtipo Déficit de Atenção enquanto
que meninos com o subtipo Hiperatividade como apresentado na segunda parte desta tese,
aponta para uma relação generificada para além do DSM no caso das categorias
diagnósticas para TDAH. Essa ponte de produção de masculinidades e feminilidades
específicas a partir dos critérios diagnósticos de disforia de gênero na infância em outros
critérios diagnósticos no DSM mostra o quanto há uma regulação da normalidade.
Tomemos o exemplo do capítulo de Transtornos Disruptivos que fala de problemas de
autocontrole de comportamentos e emoções, onde estão incluídos, por exemplo, TOD
(Transtorno Opositor Desafiante). Na introdução a tais transtornos, o Manual apresenta o
seguinte trecho:

Todos os transtornos disruptivos, do controle de impulsos e da


conduta tendem a ser mais comuns no sexo masculino do que
no feminino, embora o grau relativo da predominância
masculina possa ser diferente entre os transtornos e em um
determinado transtorno em idades diferentes. Os transtornos
deste capítulo tendem a se iniciar na infância ou na
adolescência. (...) No entanto, a maioria das crianças com
transtorno de oposição desafiante não irá desenvolver transtorno
da conduta. Além disso, crianças com transtorno de oposição
desafiante estão em risco de desenvolver outros problemas além
do transtorno da conduta, incluindo transtornos de ansiedade e
depressão (...) é extremamente importante que a frequência, a
persistência, a pervasividade nas situações e o prejuízo
associado aos comportamentos indicativos do diagnóstico
sejam considerados em relação ao que é normal para a idade,
o gênero e a cultura da pessoa antes de se determinar se são
sintomáticos de um transtorno (APA, 2013, p. 461, destaques
nossos).
39

Para efeitos de comparação e análise, tomemos alguns critérios diagnósticos em


diferentes transtornos que corroboram a nossa lógica. Cabe aqui uma ressalva, estamos
deixando de lado na apresentação de nosso argumento as questões necessárias de tempo
e presença de um ou mais critérios para se fechar o diagnóstico, pois o intuito aqui é
apresentar o DSM enquanto uma ferramenta normativa e essa análise das necessidades
foge do escopo desse trabalho, isso porque corroborando com o que diz Bento (2016) o
que importa em nossa análise é apresentar algumas facetas do processo de construção
diagnóstica enquanto um dispositivo regulador de gênero e de normalidades que carrega
nuances colonizadoras e de violência epistemológica.
Feita esta ressalva, apresentamos o sexto critério diagnóstico para disforia de
gênero na infância: "Em meninos (gênero designado), forte rejeição de brinquedos, jogos
e atividades tipicamente masculinos e forte evitação de brincadeiras agressivas e
competitivas; em meninas (gênero designado), forte rejeição de brinquedos, jogos e
atividades tipicamente femininas" (APA, 2013, p. 452, destaque nosso). Em relação ao
Transtorno de Conduta, para além dos critérios diagnósticos que falam em provocações,
ameaças e intimidação, bem como incitar brigas, há a noção de que "Geralmente, no
transtorno da conduta com início na infância, os indivíduos são do sexo masculino,
costumam apresentar agressão física contra outras pessoas, têm relacionamentos
conturbados com pares" (APA, 2013). Já um dos critérios diagnósticos de TDAH, para o
subtipo hiperativo (mais comum em meninos segundo a literatura e o próprio DSM) é o
de que "Muitas vezes é incapaz de jogar ou participar de atividades de lazer calmamente"
(APA, 2013).
O que queremos inferir com o apresentado acima? Que relações podemos fazer
acerca da produção generificada de masculinidades e feminilidades específicas reguladas
pelo DSM? Que este regula critérios mínimos e máximos para a normalidade. Se para
não ser considerado um disfórico de gênero, um menino não pode evitar brincadeiras
agressivas, este não pode também ser muito agressivo em suas brincadeiras a ponto de
correr o risco de ganhar o rótulo de hiperativo. Para alem dos dois diagnósticos o DSM
está situando o vetor agressividade como parte constituinte da masculinidade. Produz
uma definição performática de masculinidade na qual a agressividade não pode ser
dispensada, mas precisa ser de algum modo domada.
A contradição representa assim uma regulação específica da normalidade da qual
poucas pessoas escapam, pois, os critérios presentes no DSM apontam para a noção de
40

fidelidade e globalização diagnóstica nas quais diferentes clínicos em diferentes lugres


podem chegar ao mesmo transtorno (Rodrigues, 2003).
Podemos dizer que a forma de operar apresentada acima é a representação
científica e de realidade – desde meados do séc. XX até os dias atuais – da obra O
Alienista de Machado de Assis, na qual o Dr. Simão Bacamarte, ao voltar a sua terra natal
passa a tratar dos loucos da cidade de Itaguaí no asilo Casa Verde

Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples


mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor
ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo
era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas,
de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que
põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé
enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista (Assis,
1882/1994, p. 32).

O que vemos funcionar no manual é uma mecânica binária de gênero que reflete
em outras categorias diagnósticas. A noção de transtornos disruptivos, por exemplo (até
o DSM IV-TR, o TDAH também era considerado disruptivo), está ligada ao rompimento
de uma lógica normativa, de expectativas de conduta que estão presentes também no
DSM. Essa disrupção ao binarismo de gênero e às condutas comportamentais ajudam no
aumento do número de “candidatos” à Casa Verde da psiquiatria biológica moderna.
É interessante observar nas diversas linhas que compõem alguns dos transtornos
elencados no DSM que, os diagnósticos são sempre maiores em meninos do que em
meninas. Outro ponto interessante é que geralmente as condutas esperadas dentro dessa
normalidade proposta e pressuposta pelo manual estão relacionadas a uma forma de
masculinidade sem se aprofundar no que seria a feminilidade "em meninas (gênero
designado), forte rejeição de brinquedos, jogos e atividades tipicamente femininas"
(APA, 2013) o que seria para esses revisores algo tipicamente feminino?
A fundamentação de gênero a partir da lógica binária do DSM permite o
entendimento de como se pressupõe e propõe gênero em critérios diagnósticos de outros
transtornos mentais na infância, como apresentado acima. Assim, certas características se
tornam patológicas em um corpo visto como masculino, por exemplo, mas não seriam
consideradas dessa forma em um corpo visto como feminino. É o caso do critério da
Disforia de Gênero em relação a agressividade e competitividade enquanto característica
masculina, como visto acima.
41

A exacerbação dessas características binárias que se tornam patológicas, podem


ser exemplificadas quando se fala em TDAH. Ao observamos os dados da literatura
hegemônica para o dito transtorno em termos de prevalência e até mesmo da ideia de um
sub-diagnóstico em meninas (Cardoso, Salbagg & Beltrame, 2007), vemos características
peculiares em termos de critérios diagnósticos para cada gênero específico. Podemos
dizer que os critérios de hiperatividade são a exacerbação de uma ideia de atividade. Essa
característica informa um gênero pressuposto masculino. Já os critérios de desatenção são
a exacerbação de características de passividade.
Assim, a partir desses dados da literatura entendemos que essa construção social
binária dos papéis de gênero refletem na prevalência dos subtipos do transtorno,
hiperativo para meninos e desatento para meninas. Essa ideia pode ser pensada para os
transtornos disruptivos também, já que a maioria dos diagnósticos se dá em meninos. Essa
ruptura é a exacerbação de uma característica masculina, ou seja, o que o DSM informa
é que determinadas características te colocam como menino ou menina, mas estas não
podem ser muito discrepantes daquilo que as normatiza, pois assim serão enquadradas
em outro transtorno.
Em certa medida, isso guarda uma relação com a formação nos grupos de trabalho
de revisão do Manual, como apresenta Bento (2016), de que a maioria de profissionais
são homens. Não obstante, nos mostra a lógica de diferença e oposição operada pelo
manual por meio de quem o produz: ao falar de expectativas de conduta masculina, está
se falando também de expectativas de condutas femininas reproduzindo e afirmando um
fazer patriarcal, colonizador, heteronormativo e binário de gênero.
Essas conexões não estão explícitas no DSM, elas são reflexo de uma norma social
estabelecida e muito bem policiada por um sistema heteronormativo. O modo como o
manual entende o que é gênero fundamenta noções de diferença que são patologizadas.
A regulação dos comportamentos disruptivos - na medida em que o DSM é uma
ferramenta que fundamenta a prática de diagnóstico e de terapêuticas - desviantes, a
nomenclatura em um discurso institucionalizado, em um saber médico psiquiátrico,
legendas, números, estatísticas, etc. permite um campo de ações daquilo que se chama de
desviante, o que se nomeia como patologia, se justifica com intervenção, e essa terá a
direção de uma conformação de gênero.
Os tentáculos patologizantes do DSM se alimentam da força do gênero como um
dispositivo policial para condutas gendradas, se policia como homem deve ser, como
mulher deve ser, o que está para mais ou para menos é enquadrado na normativa. As falas
42

de políticos apresentadas no início desta tese, de que menino veste azul, menina veste
rosa, falas4 em tons agressivos e de deboche como “sou imbrochável” entre muitas outras,
ajudam a dar uma sustentação narrativa à ideia binária de gênero. Outros dispositivos
também ajudam a firmar essa lógica. Basta olharmos para as lojas de brinquedos e a
separação daquilo que chamamos brinquedos e roupas de menina e de menino. Para elas,
tudo em tons de rosa e brincadeiras voltadas ao cuidar (do homem e da família): bonecas,
fogão, casinha etc.; um tipicamente feminino apático e subserviente. Para eles, cores mais
escuras, carros esportivos, foguetes, bonecos de luta etc.; um tipicamente masculino
agressivo.
Essa produção narrativa dá força discursiva aos pressupostos do manual em
termos de gênero. Afinal, se a reprodução desse binarismo está em toda a sociedade, por
que essa força não estaria também naquilo que é científico? Talvez sem esse binarismo,
sem a reprodução dessa narrativa, algumas ou muitas categorias diagnósticas, perderiam
força ou até mesmo desapareceriam. De forma circular, em uma mesma dimensão, sem
as características diagnósticas de TDAH e outros transtornos disruptivos, a construção e
solidificação de gênero binário, se enfraqueceriam.

4
Falas do presidente Jair Bolsonaro em diferentes contextos e tempos.
43

PARTE 3: DISRUPTIVA NO
DIAGNÓSTICO, NORMATIVA NO
GÊNERO
44

3.1 - SEGUINDO PISTAS DE PESQUISA


Nesta seção discutiremos o processo de produção de uma versão de gênero/TDAH
naquilo que estamos chamando de espaço do campo. Esse espaço do campo não existe
enquanto um campo definido e estável, mas foi produzido por nós mediante os
agenciamentos nessa pesquisa. Ele começa com a nossa identificação de um único artigo
sobre a relação entre gênero e TDAH na literatura científica, como dito anteriormente,
perpassa por toda a construção e apresentação do projeto dessa pesquisa para o comitê de
ética da Universidade, as autorizações necessárias, as visitas às instituições e as conversas
até a presente descrição e noção própria de diferentes versões sobre o objeto. Na
formulação do projeto, propúnhamos a inserção em alguns serviços de saúde e educação
de um município paranaense. Após longos sete meses de trâmites no comitê de ética da
Universidade, passamos o projeto para apreciação do comitê de pesquisa da secretaria de
saúde do município. A dificuldade de relatar e produzir uma pesquisa que produz
desníveis e descolamentos e que está fora do jogo de linguagem do modo tradicional é
refletida pela fala da pessoa responsável pelo setor: “nossa, vocês pesquisam cada coisa
esquisita e diferente” (trecho do diário de campo).
Quando começamos a seguir as pistas a partir daquilo que a literatura apresentava
enquanto uma versão acerca de TDAH e gênero, no caso principalmente os estudos de
prevalência, chegamos a elencar alguns dispositivos da rede de atenção em saúde mental
do município que poderiam estar recebendo essa demanda. Dessa maneira um dos pontos
de partida no campo foi conhecer o funcionamento do Centro de Atenção Psicossocial
infantil, o CAPSi.

3.1.1 – A pista da história da reforma psiquiátrica.


Para entendermos porque estamos chamando esta versão especificamente de
disruptiva no diagnóstico devemos traçar um breve histórico de como se constituem o
campo da ciência que dá a base para aquilo que discutimos na seção anterior. Também
devemos refletir sobre a construção mesma do entendimento do que é a política de saúde
mental e consequentemente o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial e mais
especificamente os voltados ao atendimento infantil (CAPSi).
O campo científico se mostra ao longo do século XX como um projeto
hegemônico de produção de conhecimento, as chamadas ciências duras e sua pretensão
de ser o melhor e mais verdadeiro conhecimento sobre a vida e o mundo, e mesmo “a
45

realidade” dentro de uma noção de que ciência e razão são pressupostos de progresso5.
Como sabemos, essa pretensão colonizadora passa por processos de questionamento
desde então.

...o projeto da modernidade e da ciência como esteio do


progresso e avanço passou a esbarrar em questionamentos que
ganharam traços de uma crise, e uma crise irreversível segundo
Santos (1999). Podemos dizer que é no século XX que se
apresenta o auge do projeto da modernidade, esboçado desde o
final do século XIX em termos de avanços tecnológicos no
mundo industrializado. Porém, este auge vem com um custo, e
um custo muito alto para a sociedade. ... As grandes guerras, a
exploração do trabalho, as higienizações nas cidades emergentes
marcaram os prejuízos da modernidade: a eliminação de
pluralidades, negação da diferença e o encaixe em categorias
definidoras e generalizadoras de um discurso totalizador, válido
em todos os tempos, para todas as pessoas (Ibañez, 2001) ... Essa
crise ocorre em meio às problematizações acerca da presunção
de hegemonia e progresso do projeto da modernidade. A inserção
de diferentes informações passa a desestabilizar a tradição
vigente. (Ferreira, 2016).

É nesse contexto de crise e questionamentos que se inserem os primeiros esboços


daquilo que passamos a chamar de reforma psiquiátrica. O final do século XIX e início
do século XX é marcado pela tomada da loucura como discurso do saber médico e os
diagnósticos de caráter orgânico e biológico da loucura se destacam passando pelo
processo da noção de alienação mental de Phillippe Pinel e a ideia de loucura como
doença. Nesta época também as formas de tratamento conhecidamente hegemônicas e
disciplinares estão centradas no modelo Asilar: hierarquia, ordem, vigilância e isolamento
do mundo externo são a pauta nos tratamentos em um mundo formado pela divisão saúde/
doença no trabalho tendo como norte a ideia de produtividade.
Seguindo Foucault (2008) em Arqueologia do Saber e apontando para o que traz
Mol (...) essas formas de tratar a loucura trazem consigo também muitas críticas que serão
direcionadas principalmente para dois pontos: condutas institucionais e os efeitos do
saber psiquiátrico. Algumas ditas reformas no modelo asilar se seguiram para dar conta
da mudança nas condutas institucionais como a inserção da psicoterapia por François
Tosquelles na França na década de 1950 buscando “recuperar” o potencial de cura e de
função terapêutica do hospital; introdução de comunidades terapêuticas na Inglaterra na

5
Não pretendemos aqui neste trabalho detalhar todo esse processo uma vez que essa discussão pode ser
acessada entre outras obras em minha dissertação de mestrado. O propósito aqui é tão somente retomar de
forma sucinta essa discussão para dar andamento à argumentação.
46

mesma época e; metodologias de participação como as introduzidas por Nise da Silveira


no Brasil ao final da década de 1940 (Zeferino, 2013). Outros pontos importantes na
tentativa de mudança do modelo asilar foram a criação de uma psiquiatria de setor, uma
espécie de embrião daquilo que chamamos hoje de território; criação de uma rede
hospitalar e o pensamento da importância da comunidade no processo.
No âmbito dos questionamentos do saber a antipsiquiatria como um movimento
de questionamento radical ao saber médico-psiquiátrico pensando a loucura como
consequência das relações; a psiquiatria democrática no confronto de Franco Brasaglia
contra os manicômios na Itália (Zeferino, 2013). Esta ultima experiência é uma forte
influência na reforma psiquiátrica brasileira e um dos pilares da criação dos CAPS. A
noção de reorganização do sistema para a desinstitucionalização dá o tom da Reforma
psiquiátrica que se inicia na década de 1970 e tem seu auge na lei 10.216 de 2001.
É nesse contexto que a construção dos CAPSi está inserida. Ainda que temos
diferentes modelos de atenção e acesso, essa base nos ajuda a pensar o espaço como um
espaço de produção de versões que estamos chamando disruptivas no diagnóstico por
carregar em seu histórico de surgimento essa possibilidade. Em se tratando de nosso
objeto, podemos dizer que de certa forma, a versão que se apresenta especificamente
nesse espaço no município aqui pesquisado aponta para essa direção em alguns momentos
em relação à TDAH e aos transtornos mentais mas não muito para gênero o que em nosso
caso, que estamos trabalhando com uma noção de gênero/TDAH pode trazer alguns
questionamentos importantes.

3.2 – A ida ao campo

Foram realizadas dez visitas ao CAPSi de Maringá entre os meses de julho a


dezembro de 2017. As visitas incluíam conversas com coordenação e com técnicos do
lugar, participação em reuniões de equipe e em dois encontros de grupo denominados
grupos de acolhida. Estes últimos eram dispositivos para atender adolescentes que
aguardavam atendimento individual para encaminhamento a grupos específicos. Além da
observação do funcionamento e movimentos do espaço.
Na primeira visita realizada havia marcado uma conversa com a coordenadora do
serviço. O CAPSi no município está localizado em um bairro distante e está inserido
naquilo que chamam de complexo de saúde mental onde existe também o CAPS II e o
CAPS AD, um ao lado do outro separados por uma cerca de metal e contam com a mesma
47

estrutura de construção. É um espaço relativamente novo, construído há menos de 10


anos, sua estrutura, ao olhar de cima lembra a leta “O” em formato retangular. No meio
da estrutura, da letra “O” retangular, há um campinho de futebol com grama, duas traves,
cercado de janelas de vidro, isso chama atenção: como jogar bola sem correr o risco de
quebrar as janelas? Seria a realização de possibilidade de brincadeiras “agressivas” em
um espaço em que essa agressividade estaria controlada pelas janelas de vidro
corroborando a tônica das descrições diagnósticas do DSM? Ao engajarem em uma
brincadeira tida como agressiva e competitiva (futebol), portanto, segundo a lógica do
DSM, masculina, as janelas assegurariam o “brincar ou engajar-se em atividades de lazer
calmamente” (APA, 2013).
A coordenadora me apresentou o lugar, que internamente é formado por diversas
salas, entre elas, salas de reunião, salas de atendimento individual e em grupo, cozinha e
refeitório e um espaço ao fundo com mesas para jogos, mesa de ping-pong e pebolim,
espaço este que apresenta em suas paredes pinturas e desenhos confeccionados pelas
crianças e adolescentes usuárias do local, a sala de espera conta com brinquedos e uma
TV, que no momento estava desligada.
Na primeira conversa, a coordenadora relatou a forma de funcionamento do
serviço. Algo que logo de início me chamou a atenção foi o fato de que a forma de se
filtrar e produzir os atendimentos passa por uma lógica relacionada ao sofrimento, e não
ao diagnóstico, conforme o relato da coordenadora. Este ponto é de suma importância
para nossa argumentação. Nesse sentido, grupos são formados a partir daquilo que se
entende e se fala enquanto característica, por exemplo, grupos de adolescentes com
dificuldade de relação, grupos voltados para a questão da autoestima, grupos para crianças
e adolescentes com vínculos familiares frágeis entre outros, pensados para o
planejamento do Plano Terapêutico Singular e conforme o Anexo 2 a forma como
crianças e adolescentes são inseridos nos diferentes grupos.
Mas por que isso chama atenção? Devido ao grande número de estudos e
produções científicas voltadas exclusivamente para produção diagnóstica. Isso mostra a
multiplicidade na forma de se tratar os transtornos na infância apresentando o
distanciamento entre a produção científica e essa prática específica. Deixar de lado a
lógica diagnóstica e operar na lógica de cuidado mostrou-se uma resistência, uma
recalcitrância a um tipo de produção em psiquiatria centrado no diagnostico. Por conta
desse processo, há também o relato de que o serviço sofre da desconfiança de sua utilidade
por parte das instâncias superiores no município, como alguns lugares da secretaria de
48

saúde. Isso porque o funcionamento de um serviço, via de regra, está centrado em uma
lógica quantitativa para fins de financiamento apontando para a dificuldade de se fazer
entender essa lógica de funcionamento.
A racionalidade produtivista no âmbito da saúde pública é reflexo de um conflito
entre a noção da universalidade igualitária e uma ideia liberal privatista que de certa forma
marca as relações no SUS. Ela se e manifesta também nos CAPS por meio dos diferentes
“vínculos empregatícios que convivem na mesma instituição, na lógica de gastos
mínimos para máximo de produtividade, no número insuficiente de equipamentos para
que a demanda seja atendida de maneira satisfatória” (Barros e Bernardo, 2017, p. 71). A
produção e nomeação dos diagnósticos é utilizada como uma tecnologia contábil e sua
resistência disruptiva implica nessas tensões.
Nesse sentido, a desconstrução de uma lógica diagnóstica vai produzindo certas
angústias na equipe. A coordenadora do serviço aponta que essa quantificação
diagnóstica do TDAH, por exemplo, é mais comum no âmbito da educação, isso porque
o serviço recebe muitos encaminhamentos de escolas recebendo muitas crianças e
adolescentes hipermedicalizados.
Na segunda visita, em uma conversa informal antes de adentrar para participação
na primeira reunião de equipe, a coordenadora informou estar preocupada, pois aquela
era uma semana de auditoria, justamente para fazer entender ao município a necessidade
de se manter a lógica de funcionamento voltada para noção de cuidado não quantitativa.
Ao chegar ao CAPSi nesse dia, a recepção estava vazia e a TV ligada em um programa
policial.
Na primeira participação na reunião de equipe, fui apresentado pela coordenadora,
fiquei sentado em uma cadeira fora da mesa na qual as pessoas discutiam casos,
visivelmente cansadas e incomodadas com a questão da auditoria, o que fez com essa se
tornasse pouco produtiva. Ao final da reunião surge um primeiro tensionamento em
relação a questão de gênero, ao explicar a pesquisa que desenvolvia a conversa rumou
para a noção de como criar crianças sem uma expectativa de expressão e identidade de
gênero, as dificuldades de escapar de uma normatividade. Ao final da conversa, uma das
técnicas apontou que “é muito difícil e uma angústia pensar fora de uma caixa [binária e
heteronormativa] é melhor [criar uma criança assim, normatizada] por conta do prejuízo
que seria para a criança, por isso nem quero ter essa responsabilidade” (trecho do diário
de campo). Esse momento serviu para compreender a importância do processo de
resistência, ou melhor, de recalcitrância, pois, de acordo com Latour (2004)
49

Contrário aos não-humanos, humanos tem uma grande


tendência, quando colocados em presença de uma autoridade
científica, a abandonar qualquer recalcitrância e se comportar
como objetos obedientes oferecendo aos investigadores apenas
declarações redundantes confortando então estes investigadores
na crença de que eles produzem fatos ‘científicos’ robustos e
imitam a grande solidez das ciências naturais (Latour, 2004, p.
217).

Geralmente, participantes da pesquisa costumam agir de maneira previsível, dócil,


e em um processo tradicional, as vezes em que não o faz são entendidas como o erro, ou
aquilo que não vai confundir com o objetivo. Perguntas com respostas já esperadas, que
quando não cumpridas, podem até mesmo ser descartadas. Perceber os momentos de
recalcitrância só é possível quando esta acontece, deixando rastros e produzindo vínculos
e transformações. Aqui ela surge em relação à gênero.
Mas porque esse foi um momento que podemos chamar de racalcitrância?
Seguindo o que diz Latour (2004) a fala da profissional rompe a expectativa da docilidade
da resposta frente a “autoridade científica”. Se a expectativa da docilidade está na
confirmação da necessidade de pensar fora da noção binária de gênero, o trecho traz a
confirmação de que há uma facilidade em atender às normativas. Talvez essa resistência
à docilidade frente à “autoridade pesquisadora” possa ter surgido pelo formato da
conversa, uma conversa informal que talvez nem fizesse parte do relato de campo de uma
pesquisa tradicional.
Na participação do primeiro grupo de acolhimento pude observar essas
transformações e resistências. Era um encontro programado como uma pequena oficina
de música, em uma sala minúscula estavam as duas facilitadoras, eu e 7 adolescentes
meninas. Após uma rodada de apresentações, foram distribuídos instrumentos musicais.
O que se esperava na presença e nessa relação com os objetos, era justamente a produção
de algum tipo de música e a tentativa de iniciar uma conversa sobre gostos musicais, o
que não ocorreu.
Resistir a esse processo produziu uma virada no objetivo inicial daquele grupo, os
objetos (instrumentos musicais) e as pessoas ali presentes produziram outra ação, a
agência modificou o espaço e o sentido que se produzia sobre o grupo. Os instrumentos
não serviram ao seu propósito inicial, produzir música, o desinteresse por essa ação dos
instrumentos redirecionou as ações. As adolescentes passaram a uma narrativa sobre suas
dificuldades produzindo entre si um espaço que passou de entretenimento para um espaço
de troca e acolhimento dos sofrimentos.
50

O segundo encontro do grupo do qual participei ocorreu em outro espaço do


serviço, este em um lugar mais aberto no qual as pessoas estavam sentadas em cadeiras
separadas por uma mesa. Essa configuração agenciou outros processos produzindo um
espaço menos acolhedor uma vez que as pessoas ali presentes decidiram por não
aprofundar em questões relacionadas ao sofrimento e ao cuidado que era naquele dia o
objetivo traçado pelas facilitadoras.
As participações em reuniões no CAPSi continuaram acontecendo sempre
relacionadas as discussões de caso. Em todas apareciam uma questão de gênero, haviam
tentativas conflitantes de enquadrar e desenquadrar certos casos em uma determinada
noção normativa de gênero como, por exemplo, na discussão de caso de um menino, a
noção de que a homossexualidade poderia estar relacionada ao desejo da mãe de ter uma
filha. “quando conversei com a mãe, percebi que na verdade ela queria uma menina, e
isso fica projetado nele, talvez por isso tenha esse comportamento” (trecho do diário de
campo). Essa noção se apresenta como uma tentativa de conformar gênero de maneira
binária e encontrar na ciência explicações do porque da transgressão à normativa
heterossexual.
Em outro caso no qual um menino trans (apresentado na discussão como menina)
aparece no CAPSi com uma barba pintada a lápis, essa cena é entendida como uma
brincadeira e uma infantilização. “a gente percebe que é uma brincadeira né, por que vai
pintar uma barba, pra chamar atenção e ficar diferente” (trecho do diário de campo). O
que pude perceber é que esse tensionamento se dava de maneira constante. Percebe-se
um espaço no qual algumas normatividades são desconstruídas, como por exemplo, a
questão diagnóstica e um discurso de déficit relacionado à transtornos mentais, e outras
potencializadas, como as questões relacionadas à gênero elencando formas possíveis bem
aos moldes da prescrição normativa do DSM.
Observa-se que nesse lugar, os diagnósticos de TDAH, não são acionados para
qualquer intervenção ou direcionamento, porém gênero é acionado de diferentes maneiras
inclusive para direcionamento para tipos de grupos que existem no serviço. Uma das
questões apresentadas na primeira conversa com a coordenação foi de que essa questão
diagnóstica se faz mais presente nos espaços da educação do que nesse espaço da saúde.
Este aspecto que se faz presente nas formas de operação do CAPSi, nas suas
relações com as categorias diagnósticas e gênero nos mostra um comprometimento em
manter as designações de gênero binárias. Hora uma demonstração dissidente dessa
lógica é tratada como brincadeira ou infantilização, hora é tratada como desejo de outra
51

pessoa. Mas porque a noção crítica em relação aos diagnósticos não se espalha para as
questões de gênero? A pista está na história. Uma história da construção de determinados
saberes e discursos. Se a loucura ao final do século XIX é tomada pelo discurso do saber
médico, as questões relacionadas à sexualidade e consequentemente à gênero são tomadas
por diversos discursos para além do médico: religião, política, família etc. A loucura, a
princípio, não se constrói na esteira da resistência, mas na esfera da alienação, do
desprovimento da razão como diriam os alienistas da época, a sexualidade se constrói na
esteira de uma norma, o gênero dissidente deve ser encerrado e posto de lado e a sua volta
à normalidade, ou seja, a binaridade heteronormativa e reprodutiva tem como mecanismo
todos os discursos citados anteriormente.
Se as categorias diagnósticas encontram resistência no campo da saúde, tendo
como pano de fundo também o saber médico, gênero encontra resistência mais nos
discursos sociológicos, ou seja, aqueles que como diz Boaventura de Souza Santos, foram
deixados à margem da ciência: sociologia, filosofia, artes, literatura. O reflexo na área da
saúde de um viés crítico às categorias diagnóstica instrumentaliza profissionais a terem
mais disposição a resistir a essas categorias, enquanto que ao mesmo tempo há um
comprometimento em manter designações binárias de gênero. Essa afirmação fica
evidente na fala de uma profissional de que criar uma criança na conformidade de gênero
binário seria menos prejudicial.
Nesse sentido, as categorias diagnósticas são mais evidentemente entendidas
como uma produção de conhecimento sobre a realidade, do saber-poder médico, como
uma tecnologia mais concentrada e restrita e com um ponto de emanação mais bem
localizado no saber psiquiátrico. Gênero, por sua vez, é uma construção mais
disseminada, com contornos dos discursos bem menos definidos, efeito de práticas e
discursos com diferentes pontos de origem (Butler, 2003).
O que temos então é que gênero se mostra enquanto uma linha de força
estruturante da vida, inclusas aqui as categorias diagnósticas como discutimos na segunda
parte da tese. Embora se comuniquem e reforcem uma à outra, são distintas na forma de
organizar a vida pois, de uma certa maneira, as categorias diagnósticas rompem os muros
de uma conformidade, produzindo uma resistência a elencá-las como produto de
intervenção – conforme relato da coordenação do serviço e como podemos ver no Anexo
3 onde os diagnósticos não são utilizados na organização de determinadas intervenções –
mas não rompem os muros do espaço do serviço uma vez que a distância crítica em
relação às categorias diagnósticas estão bem mais delimitadas pois, estas estão mais
52

ligadas a forma de organizar a vida das crianças e adolescentes atendidas pelo CAPSi.
Gênero porém, organiza também a vida das pessoas que fazem parte da equipe do serviço
tornando mais difícil ganhar distância crítica da força constitutiva de gênero.

3.3 – Cenários de possibilidades.


O que podemos observar é que toda essa questão aponta para a política desse
discurso, ou seja, há reverberações políticas específicas ao opor um discurso diagnóstico
e outras ao opor um discurso de gênero normativo. Ainda que os estudos feministas em
sua produção ao longo do século XX chamaram a atenção para a necessidade de se pensar
as normativas de gênero, essa discussão está muito mais inserida na sociedade como um
todo do que às relacionadas às categorias diagnósticas. Fazem parte não só das discussões
em saúde em termos de normas e resistências, mas também encontram campo em outras
esferas de produção política como a igreja, família, casas legislativas, poder judiciário
entre outros. Quando iniciamos a tese trazendo as falas do então Presidente Jair Bolsonaro
e da então ministra da mulher e direitos humanos, estávamos apontando justamente para
essa questão.
Nos últimos anos, principalmente, as questões de gênero têm ocupado o cenário
de disputas políticas como descrito no início da tese. Ainda que às questões relacionadas
às categorias diagnósticas também ocupem um espaço em algumas dessas instituições, a
sua reverberação política se limita a um nicho mais específico: a discussão acerca da
saúde da população. Boa parte dessas instituições e discursos não estão tão preocupados
assim com discursos que resistem às categorias diagnósticas se compararmos com a
imensa resistência dos discursos às classificações binárias de gênero.
No atual governo tivemos um grande retrocesso nas políticas de saúde mental no
país. O maior financiamento de comunidades terapêuticas, uma política proibicionista e
hospitalocêntrica entre outras6 deram o tom de uma anti-reforma no setor. A maior parte
das entidades que produziram uma resistência a essa anti-reforma está ligada diretamente
à área de saúde e saúde mental, conselhos de classes como Enfermagem, Psicologia,
associações de usuários da saúde mental entre outros. A força da lógica psiquiátrica em
um modelo médico-biologico encontra essa resistência e consonância em parte específica

6
Para maiores detalhes sobre as principais mudanças e suas consequência para as políticas de
saúde mental, consultar o artigo: : CRUZ, Nelson F. O.; GONÇALVES, Renata W.; DELGADO,
Pedro G.G. Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental
brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, n. 3, 2020, e00285117. DOI:
10.1590/1981-7746-sol00285.
53

da sociedade, diferentemente das questões e políticas relacionadas à gênero que, como


dito anteriormente, permeia muito mais instituições, discursos e dispositivos
principalmente para lançar mão da manutenção da lógica binária e heteronormativa.
Nesse sentido, fica mais nítido o entendimento de que no CAPSi, por exemplo, há
a disposição em questionar o discurso diagnóstico e uma disposição a conformar gênero
normativo. Se há a resistência ou uma prática que coloca os diagnósticos no final da fila
para pensar as intervenções, a conformidade normativa de gênero é escancarada nos
discursos e conta inclusive com justificativas específicas que tornam essa conformidade
mais robusta como encontrar causas psicodiagnósticas para aquelas crianças e
adolescentes que fogem às normas de gênero binário e heteronormativo.
Quais seriam então os efeitos desse processo? Acredito que dois pontos
importantes surgem enquanto possibilidades de entendimento. 1 - a forma como o
discurso médico psiquiátrico opera gênero e diagnósticos e 2 - a fissura que o afastamento
crítico em relação aos diagnósticos produz nos discursos para que possamos também
produzir uma outra fissura em relação às formas normativas de gênero. Desta maneira
temos que, (1) ao retomarmos a forma como o DSM e a produção científica sobre TDAH
opera gênero e diagnósticos, observamos que estas duas categorias (gênero/diagnóstico)
aparecem mais coladas, seus contornos são menos nítidos. Como apresentado na parte 2
e 3 da tese, a proposição e pressuposição de gênero se encontra ancorada nos diagnósticos
não só de disforia de gênero na infância como em outros, como TDH por meio de uma
visão hegemônica e fechada de um gênero binário e heteronormativo e de uma
masculinidade e feminilidade prescritas . Essa fusão impede de se pensar as duas coisas
de maneira separada produzindo um efeito que de certa maneira dificulta o afastamento
crítico dos diagnósticos e consequentemente e em maior proporção também dificulta o
afastamento crítico em relação a ideia de gênero binário e heteronormativo e talvez por
isso os discursos no CAPSi se apresentam da forma como apontamos anteriormente numa
configuração de afastamento crítico aos diagnósticos e de conformidade às normativas de
gênero.
Quando temos ao menos uma ruptura (2) conseguimos separar as duas coisas
(Género/diagnósticos) e aqui talvez se abra o caminho para resistir também às normativas
de gênero. Isso porque a resistência parcial não é acompanhada da discussão de gênero,
não funciona muito bem pois, se a construção diagnóstica depende do gênero como uma
base normativa que permite a sua compreensão, a desmontagem de categorias
diagnósticas como uma saída de resistência fica incompleta por não alcançar a sua
54

radicalidade, ou seja, não vai até a raiz da questão que é justamente a desmontagem do
gênero normativo que subsidia a própria produção da categoria diagnóstica. Nesse
sentido, e retomando a segunda parte da tese, podemos dizer que se alcançarmos essa
radicalidade, talvez muitas categorias diagnósticas seriam desmontadas, não no sentido
de uma não existência, mas no sentido de um novo entendimento de como estas são
construídas abrindo a possibilidade para serem encenadas de maneiras diferentes
daquelas pressupostas pelos discursos e dispositivos hegemônicos.

NARRATIVAS DE POSSÍVEIS FINAIS DE UMA TESE

Iniciamos este trabalho dizendo dos possíveis efeitos de se produzir uma tese
sobre os acionamentos das noções normativas de gênero para os diagnósticos de TDAH
na infância que incluía a noção de produzir deslocamentos e possibilidades para
pensarmos essa relação mesmo no meio do mar de lama que é a situação atual do país
que só piorou desde o início da nossa escrita. Mal sabia eu, um mero aspirante a doutor
em psicologia, que esse mar de lama me tomaria por completo e, entender os efeitos
nefastos de todos esses processos gerou em mim uma grande dificuldade para lidar com
tudo isso. Afinal, será que há mesmo uma possibilidade de uma boa vida no meio do mar
de lama? Aos trancos e barrancos, como diria o saber popular, fui tentando me reconciliar
com meu trabalho pois acredito profundamente que, mesmo com todas as dificuldades é
necessário fazer a reflexão que propomos ao longo da tese.
Ao apresentarmos as noções de versões hegemônicas do acionamento das noções
normativas de gênero para os diagnósticos de TDAH, estamos mostrando o caminho da
naturalização dessas noções pela sociedade como um todo, tendo o discurso científico,
médico e psiquiátrico como reprodutores e agentes dessa naturalização. Há também um
engajamento político na manutenção dos discursos conservadores de maneira geral e
específicos em relação à gênero. As falas de Jair Bolsonaro e Damares Alves que abrem
a tese nos mostram o rumo tomado pela política nacional no sentido da retomada de um
discurso que quer conservar gênero como binário e heteronormativo. Esse discurso se
produz em termos sarcásticos e também por meio de metáforas bélicas. A naturalização
é um problema que nos impede de fazer uma análise mais apurada dos efeitos de produção
da realidade, não atoa é um dos pontos mais incisivos tanto para Scott (1995) quanto para
Butler (2003) em se tratando de disrupção e desnaturalização de gênero.
55

Como apresentamos na segunda parte deste trabalho, os dispositivos médicos


psiquiátricos, discursos científicos, religiosos, psicológicos entre outros, que operam em
uma lógica binária e ahistórica, tentam encerrar em uma caixa-preta uma definição
naturalizada que define categorias de masculinidades e feminilidades que se auto-
produzem e se auto-regulam em uma evidente oposição binária que acontece e se
estabelece sempre da mesma forma (Scott, 1995). Fica evidente ao olharmos para os
artigos científicos que ao retratarem gênero enquanto parte da análise dos diagnósticos de
TDAH, o fazem equiparando esta categoria como outra qualquer, como se esta não fizesse
parte das diferentes formas constituintes das relações de poder baseada nas diferenças
percebidas entre os sexos (Scott, 1995) e, indo além das diferenças produzidas pela noção
de normalidades e anormalidades.
Precisamos, para além de sermos disruptivos com as categorias diagnósticas
,considerando tudo o que apontamos no decorrer do trabalho, também nos irromper nas
noções normativas de gênero. Um dos caminhos pode ser encontrado a partir do que diz
Scott (1995) que é preciso “rejeitar o caráter fixo e permanente da oposição binária,
precisamos de uma historicização e de uma desconstrução autêntica dos termos da
diferença sexual” (p. 18). Podemos dizer que há a necessidade de abrir a caixa-preta de
gênero da mesma forma que abrimos a das categorias diagnósticas. Devemos olhar “a
maneira como opera qualquer oposição binária, revertendo e deslocando a sua construção
hierárquica, em lugar de aceitá-la como real, como óbvia ou como estando na natureza
das coisas” (Scott, 1995, p. 19).
Entendo que em certa medida, os efeitos deste trabalho sejam algo como um
respiro dentro do que chamamos de mar de lama. Ainda que ciente de como todas as
dificuldades de ressignificação e reconexão colocaram distintos obstáculos para uma
produção argumentativa mais eficiente da nossa temática, acredito que esse texto, neste
momento, traz esse caráter de abertura de uma discussão que carece ser mais aprofundada.
56
57

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ANEXO 1: Pacientes atendidos no primeiro quadrimestre de 2017


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ANEXO 2: Descrição dos procedimentos realizados no CAPSi


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ANEXO 3: Descrição das intervenções em grupos do CAPSi


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