Roberto DaMatta O Que Faz o Brasil Brasi
Roberto DaMatta O Que Faz o Brasil Brasi
Roberto DaMatta O Que Faz o Brasil Brasi
brasil, Brasil?
Roberto DaMatta
O que faz o
brasil, Brasil?
Rocco
Copyright © 1984 by Roberto DaMatta
Ilustrações
JIMMY SCOTT
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
D 162o
DaMatta, Roberto, 1936-
O que faz o brasil, Brasil? / Roberto DaMatta.
- Rio de Janeiro: Rocco: 1986.
ISBN: 85-325-0201-6
1. Características nacionais brasileiras. 2. Brasil
- Usos e costumes. I. Título.
06-1169 CDD-981
CDU-316.7(81)
Em m e m ó ria d e Fra nc isc a Sc hurig Vie ira Ke lle r; m inha sa ud o sa a m ig a
q ue ta nta s ve ze s fe z a p e rg unta d e ste livro ;
C o m o se c o nstró i um a id e ntid a d e so c ia l? C o m o um p o vo se
tra nsfo rm a e m Bra sil? A p e rg unta , na sua d isc re ta sing e le za , p e rm ite
d e sc o b rir a lg o m uito im p o rta n te . É q ue n o m e io d e um a m ultid ã o
d e e xp e riê nc ia s d a d a s a to d o s o s ho m e ns e so c ie d a d e s, a lg um a s
ne c e ssá ria s à p ró p ria so b re vivê nc ia , c o m o c o m e r, d o rm ir, m o rre r,
re p ro d uzir-se e tc , o utra s a c id e nta is o u sup e rfic ia is: histó ric a s, p a ra se r
m a is p re c iso — o Bra sil fo i d e sc o b e rto p o r p o rtug ue se s e nã o p o r c hine -
se s, a g e o g ra fia do Bra sil te m c e rta s c a ra c te rístic a s c o m o as
m o nta nha s na c o sta do C e ntro -Sul, so fre m o s p re ssã o de c e rta s
p o tê nc ia s e uro p é ia s e nã o d e o utra s, fa la m o s p o rtug uê s e nã o
fra nc ê s, a fa m ília re a l tra nsfe riu-se p a ra o Bra sil no iníc io d o sé c ulo XIX
e tc . C a d a so c ie d a d e (e c a d a se r hum a no ) a p e na s se utiliza d e um
núm e ro lim ita d o d e “ c o isa s” (e d e e xp e riê nc ia s) p a ra c o nstruir-se
c o m o a lg o únic o , m a ra vilho so , d ivino e “ le g a l” ...
Se i, e ntã o , q ue so u b ra sile iro e nã o no rte -a m e ric a no , p o rq ue
g o sto d e c o m e r fe ijo a d a e nã o ha m b úrg ue r; p o rq ue so u m e no s
re c e p tivo a c o isa s d e o utro s p a íse s, so b re tud o c o stum e s e id é ia s;
p o rq ue te nho um a g ud o se ntid o d e rid íc ulo p a ra ro up a s, g e sto s e
re la ç õ e s so c ia is; p o rq ue vivo no Rio d e Ja ne iro e nã o e m No va Yo rk;
p o rq ue fa lo p o rtug uê s e nã o ing lê s; p o rq ue , o uvind o m úsic a p o p ula r,
se i d isting uir im e d ia ta m e nte um fre vo d e um sa m b a ; p o rq ue fute b o l
p a ra m im é um jo g o q ue se p ra tic a c o m o s p é s e nã o c o m a s m ã o s;
p o rq ue vo u à p ra ia p a ra ve r e c o nve rsa r c o m o s a m ig o s, ve r a s
m ulhe re s e to m a r so l, ja m a is p a ra p ra tic a r um e sp o rte ; p o rq ue se i q ue
no c a rna va l tra g o à to na m inha s fa nta sia s so c ia is e se xua is; p o rq ue se i
q ue nã o e xiste ja m a is um “ nã o ” d ia nte d e situa ç õ e s fo rm a is e q ue
to d a s a d m ite m um “ je itinho ” p e la re la ç ã o p e sso a l e p e la a m iza d e ;
p o rq ue e nte nd o q ue fic a r m a la nd ra m e nte “ e m c im a d o m uro ” é a lg o
ho ne sto , ne c e ssá rio e p rá tic o no c a so d o m e u siste m a ; p o rq ue
a c re d ito e m sa nto s c a tó lic o s e ta m b é m no s o rixá s a fric a no s; p o rq ue
se i q ue e xiste d e stino e , no e nta nto , te nho fé no e stud o , na instruç ã o
e no futuro d o Bra sil; p o rq ue so u le a l a m e us a m ig o s e na d a p o sso
ne g a r a m inha fa m ília ; p o rq ue , fina lm e nte , se i q ue te nho re la ç õ e s
p e sso a is q ue nã o m e d e ixa m c a m inha r so zinho ne ste m und o , c o m o
fa ze m o s m e us a m ig o s a m e ric a no s, q ue se m p re se vê e m e e xiste m
c o m o ind ivíd uo s!
Po is b e m : so m a nd o e sse s tra ç o s, fo rm a -se um a se q üê nc ia q ue
p e rm ite d ize r q ue m so u, e m c o ntra ste c o m o q ue se ria um a m e ric a no ,
a q ui d e finid o p e la s a usê nc ia s o u ne g a tiva s q ue a m e sm a lista
e fe tiva m e nte c o m p o rta . A c o nstruç ã o d e um a id e ntid a d e so c ia l,
e ntã o , c o m o a c o nstruç ã o d e um a so c ie d a d e , é fe ita d e a firm a tiva s e
d e ne g a tiva s d ia nte d e c e rta s q ue stõ e s. To m e um a lista d e tud o o
q ue vo c ê c o nsid e ra im p o rta nte — le is, id é ia s re la tiva s a fa m ília ,
c a sa m e nto e se xua lid a d e ; d inhe iro ; p o d e r p o lític o ; re lig iã o e
m o ra lid a d e ; a rte s; c o m id a e p ra ze r e m g e ra l — e c o m e la vo c ê
p o d e rá sa b e r q ue m é q ue m . Nã o é d e o utro m o d o q ue se re a liza m
a s p e sq uisa s a ntro p o ló g ic a s e so c io ló g ic a s. De sc o b rind o c o m o a s
p e sso a s se p o sic io na m e a tua liza m a s “ c o isa s” d e sta lista , vo c ê fa rá
um “ inve ntá rio ” d e id e ntid a d e s so c ia is e d e so c ie d a d e s. Isso lhe
p e rm itirá d e sc o b rir o e stilo e o “ je ito ” d e c a d a siste m a . O u, c o m o se
d iz e m ling ua g e m a ntro p o ló g ic a , a c ultura o u id e o lo g ia d e c a d a
so c ie d a d e . Po rq ue , p a ra m im , a p a la vra c ultura e xp rim e
p re c isa m e nte um e stilo , um m o d o e um je ito , re p ito , d e fa ze r c o isa s.
Ma s é p re c iso nã o e sq ue c e r q ue e ssa s e sc o lha s se g ue m um a
o rd e m . É c e rto q ue e u inve nte i um “ b ra sile iro ” e um “ a m e ric a no ” q ue
o a c o m p a nha va p o r c o ntra ste linha s a trá s, m a s q ue m m e g a ra nte
q ue a q uilo q ue d isse é c o nvinc e nte p a ra d e finir um b ra sile iro fo i a
p ró p ria so c ie d a d e b ra sile ira . O u se ja : q ua nd o e u d e fini o “ b ra sile iro ”
c o m o se nd o a m a nte d o fute b o l, d a m úsic a p o p ula r, d o c a rna va l, d a
c o m id a m istura d a , d o s a m ig o s e p a re nte s, d o s sa nto s e o rixá s e tc ,
use i um a fó rm ula q ue m e fo i fo rne c id a p e lo Bra sil. O q ue fa z um se r
hum a no re a liza r-se c o nc re ta m e nte c o mo b ra sile iro é a sua
d isp o nib ilid a d e d e se r a ssim . C a so e u fa la sse e m e le g â nc ia no ve stir e
no fa la r, no g o sto p e la s a rte s p lá stic a s, na visita siste m á tic a a m use us,
no a m o r p e la m úsic a c lá ssic a , na fa lta d e riso na s a ne d o ta s, no
ho rro r a o c a rna va l e a o fute b o l e tc , c e rta m e nte e sta ria d e finind o
o utro p o vo e o utro ho m e m . Isso ind ic a c la ra m e nte q ue é a so c ie d a d e
q ue no s d á a fó rm ula p e la q ua l tra ç a m o s e sse s p e rfis e c o m e la
fa ze m o s d e se nho s m a is o u m e no s e xa to s.
Tud o isso no s le va a d e sc o b rir q ue e xiste m d o is m o d o s b á sic o s
d e c o nstruir a id e ntid a d e b ra sile ira : o d e fa ze r o b ra sil, Bra sil...
To m e -se o e xe m p lo m a is fa m o so d e ssa s id é ia s, o C o nd e d e
G o b ine a u, q ue , inc lusive , re sid iu no Rio d e Ja ne iro c o m o c ô nsul d a
Fra nç a e se to rno u a m ig o e inte rlo c uto r inte le c tua l d e no sso
Im p e ra d o r, D. Pe d ro II. Ele d iz c la ra m e nte , num livro c é le b re p e la s
id é ia s ra c ista s e p e lo s e rro s no q ue d iz re sp e ito à Antro p o lo g ia d a s
d ife re nc ia ç õ e s hum a na s, q ue é p o ssíve l d ivid ir a s “ ra ç a s” d e a c o rd o
c o m trê s c rité rio s fund a m e nta is: o inte le c to , a s p ro p e nsõ e s a nim a is e
a s m a nife sta ç õ e s m o ra is. No c urso d e ssa o b ra , sig nific a tiva m e nte
intitula d a A d ive rsida de mo ra l e inte le c tua l da s ra ç a s (p ub lic a d a e m
1856), G o b ine a u, e ntre ta nto , nã o re a liza um e xe rc íc io sim p lista , no
se ntid o d e d ize r q ue a “ ra ç a ” b ra nc a e ra sup e rio r e m tud o . Há
m uita inte lig ê nc ia no s p re c o nc e ito s e no s a uto rita rism o s. Muito a o
c o ntrá rio , a o c o m p a ra r, p o r e xe m p lo , b ra nc o s e a m a re lo s no q ue d iz
re sp e ito à s sua s “ p ro p e nsõ e s a nim a is” , e le situa o s p rim e iro s a b a ixo
d o s se g und o s. Q ue m nã o se sa lva , p o ré m , c o m o infe lizm e nte
a c o nte c e a té ho je na no ssa so c ie d a d e , sã o o s ne g ro s, se m p re e e m
tud o situa d o s a b a ixo d e b ra nc o s e a m a re lo s.
É c la ro q ue p o d e m o s te r um a d e m o c ra c ia ra c ia l no Bra sil. Ma s
e la , c o nfo rm e sa b e m o s, te rá q ue e sta r fund a d a p rim e iro num a
p o sitivid a d e juríd ic a q ue a sse g ure a to d o s o s b ra sile iro s o d ire ito
b á sic o d e to d a a ig ua ld a d e : o d ire ito d e se r ig ua l p e ra nte a le i!
Enq ua nto isso nã o fo r d e sc o b e rto , fic a re m o s se m p re usa nd o a no ssa
m ula ta ria e o s no sso s m e stiç o s c o m o m o d o d e fa la r d e um p ro c e sso
so c ia l m a rc a d o p e la d e sig ua ld a d e , c o m o se tud o p ud e sse se r
tra nsc rito no p la no d o b io ló g ic o e d o ra c ia l. Na no ssa id e o lo g ia
na c io na l, te m o s um m ito d e trê s ra ç a s fo rm a d o ra s. Nã o se p o d e
ne g a r o m ito . Ma s o q ue se p o d e ind ic a r é q ue o m ito é p re c isa m e nte
isso : um a fo rm a sutil d e e sc o nd e r um a so c ie d a d e q ue a ind a nã o se
sa b e hie ra rq uiza d a e d ivid id a e ntre m últip la s p o ssib ilid a d e s d e
c la ssific a ç ã o . Assim , o “ ra c ism o à b ra sile ira ” , p a ra d o xa lm e nte , to rna
a injustiç a a lg o to le rá ve l, e a d ife re nç a , um a q ue stã o d e te m p o e
a m o r. Eis, num a c á p sula , o se g re d o d a fá b ula d a s trê s ra ç a s...
Sobre comidas
e mulheres...
A so c ie d a d e m a nife sta -se p o r m e io d e m uito s e sp e lho s e vá rio s
id io m a s. Um d o s m a is im p o rta nte s no c a so d o Bra sil é , se m d úvid a , o
c ó d ig o d a c o m id a , e m se us d e sd o b ra m e nto s m o ra is q ue a c a b a m
a jud a nd o a situa r ta m b é m a m ulhe r e o fe m inino no se u se ntid o ta lve z
m a is tra d ic io na l. C o m id a s e m ulhe re s, a ssim , e xp rim e m te o ric a m e nte
a so c ie d a d e , ta nto q ua nto a p o lític a , a e c o no m ia , a fa m ília , o
e sp a ç o e o te m p o , e m sua s p re o c up a ç õ e s e , c e rta m e nte , e m sua s
c o ntra d iç õ e s.
C re io q ue fo i o a ntro p ó lo g o fra nc ê s C la ud e Lé vi-Stra uss q ue m
c ha m o u a a te nç ã o p a ra d o is p ro c e sso s na tura is — o c ru e o c o zido —,
nã o so m e nte c o mo d o is e sta d o s p e lo s q ua is p a ssa m to d o s o s
a lim e nto s, m a s c o m o m o d a lid a d e s p e la s q ua is se p o d e fa la r d e
tra nsfo rm a ç õ e s so c ia is im p o rta ntíssim a s. De fa to , o c ru e o c o zid o , o
a lim e nto e a c o m id a , o d o c e e o sa lg a d o a jud a m a c la ssific a r c o isa s,
p e sso a s e a té m e sm o a ç õ e s m o ra is im p o rta nte s no no sso m und o
A ssim é q ue e q ua c io na m o s sim b o lic a m e nte a m ulhe r c o m a
c o m id a e o d o c e c o m o fe m inino , d e ixa nd o o sa lg a d o e o ind ig e sto
p a ra e sta re m a sso c ia d o s a tud o o q ue no s “ c he ira ” a c o isa s d ura s e
c rué is. Ao m und o d ifíc il d a “ vid a ” , d a “ rua ” e d o tra b a lho e m g e ra l,
e sse s unive rso s q ue sã o p ro fund a m e nte m a sc ulino s e , p o r c o nse g uinte ,
e stã o lo ng e d a s c o zinha s, d o s te m p e ro s e d a s b o a s m e sa s e c a m a s,
o nd e se p o d e e xe rc e r um a c o m e nsa lid a d e e nriq ue c e d o ra . Num
p la no m a is filo só fic o e unive rsa l, sa b e m o s q ue c ru se lig a a um e sta d o
d e se lva g e ria (a um e sta d o d e na ture za ), a o p a sso q ue o c o zid o se
re la c io na a o unive rso so c ia lm e nte e la b o ra d o q ue to d a so c ie d a d e
hum a na d e fine c o m o se nd o o d e sua c ultura e id e o lo g ia . Sa b e nd o
q ue o c ru e o c o zid o e xp rim e m m a is q ue d o is p ro c e sso s “ na tura is” ,
p o d e m o s a g o ra e nte nd e r p o r q ue fa la m o s q ue “ o a p re ssa d o c o m e
c ru ...” . É q ue , c o m ta l m e tá fo ra (o u a sso c ia ç ã o e ntre o c ru e a
p re ssa ), e sta m o s no s re fe rind o a e sse e lo e ntre a se lva g e ria o u
so fre g uid ã o d a p re ssa e o la d o se lva g e m , ruim o u c ru d a s c o isa s e d a
vid a . O c a lm o , p o d e -se d ize r, c o m p le m e nta nd o o p ro vé rb io
re ve la d o r, c o m e se m p re c o zid o , p o is q ue m te m c a lm a p o ssui um
e le m e nto d a c iviliza ç ã o e a c iv iliza ç ã o fund a -se p re c isa m e nte num
sa b e r e sp e ra r...
Ma s o q ue é ta m b é m inte re ssa nte na o p o siç ã o e ntre o c ru e o
c o zid o é d e sc o b rir q ue o unive rso d a c o m id a p e rm ite p e nsa r o
m und o inte g ra nd o o inte le c tua l c o m o se nsíve l. Q ue r d ize r: q ua lq ue r
re fe iç ã o m a is b e m p re p a ra d a o u m a is “ c a p ric ha d a ” , c o nfo rm e
fa la m o s c o lo q uia lm e nte , p o d e (e d e ve ) p ro m o ve r e ssa uniã o o u
c a sa m e nto e ntre o o lha r — q ue re m e te ao inte le c to — e,
na tura lm e nte , o g o sto e o c he iro , q ue ind ic a m o c a m inho d o na riz,
d a b o c a e d o e stô m a g o . Tud o q ue le va a o c o rp o , à se nsua lid a d e e à
p a nç a o u b a rrig a , c o nfo rm e fa la m o s no Bra sil. Assim , “ e nc he r a
b a rrig a ” o u “ e nc he r a p a nç a ” é um a to c o nc re to d e stina d o à
sa c ie d a d e d o c o rp o , m a s é ta m b é m um m o d o d e se re fe rir a um a
a ç ã o sim b ó lic a . A tud o q ue fo i c a p a z d e sa tisfa ze r p le na m e nte um a
p e sso a ...
Ma s é b á sic o c o ntinua r e nfa tiza nd o q ue a c o m id a (c o m sua s
p o ssib ilid a d e s sim b ó lic a s) p e rm ite re a liza r um a im p o rta nte m e d ia ç ã o
e ntre c a b e ç a e b a rrig a , e ntre c o rp o e a lm a , p e rm itind o o p e ra r
sim ulta ne a m e nte com um a sé rie de c ó d ig o s c ultura is q ue
no rm a lm e nte e stã o se p a ra d o s, c o m o o g usta tivo (q ue d isting ue o
sa lg a d o d o d o c e e d o a m a rg o ; o g o sto so d o p é ssim o ; o q ue nte d o
frio ) , o c ó d ig o de o d o re s (q ue p e rm ite se p a ra r d o s o utro s o
a lim e nto q ue te m b o m c he iro e e stá sa d io e b o m ), o c ó d ig o visua l
(q ue no s fa z c o m e r o u nã o a lg um a um e nto c o m o s o lho s, o u re c usá -lo
p o r sua a p a rê nc ia , te nd o o u nã o “ o lho m a io r d o q ue a b a rrig a ” ) e ,
a ind a , um c ó d ig o d ig e stivo , p o sto q ue no Bra sil ta m b é m
c la ssific a m o s o s a lim e nto s p o r sua c a p a c id a d e d e p e rm itir o u nã o
um a d ig e stã o fá c il e a g ra d á ve l. O ra , é p re c isa m e nte e ssa p o ssib ilid a -
d e d e sínte se e d e e q uilíb rio e ntre o o lho e a b a rrig a — a p a rte d e
c im a d o c o rp o e sua p a rte d e b a ixo — q ue a re la ç ã o e ntre o c ru e o
c o zid o a jud a e c o nse g ue , e ntre nó s, re a liza r.
Ma s e sse s e sta d o s e sua s c o nc e p ç õ e s va ria m . Pa ra e uro p e us e
no rte -a m e ric a no s, c ru e c o zid o , a lim e nto e c o m id a , sã o c a te g o ria s
c ie ntífic a s, ne m se m p re le va d a s e m c o nta no p ró p rio a to d e c o m e r,
c o nfo rm e no s re ve la m a s im e nsa s sa la d a s e a s “ c o m id a s na tura is” q ue
sã o d ig e rid a s e m p a íse s c o m o Esta d o s Unid o s e Ing la te rra c o m o
p ra to s p rinc ip a is, a lg o b e m re c e nte no Bra sil.
Pa ra nó s, o c ru e o c o zid o p o d e m sig nific a r c o m m uito m a is
fa c ilid a d e um unive rso c o m p le xo , um a á re a d o no sso siste m a o nd e
p o d e m o s no s e nxe rg a r c o m o fo rm id á v e is e no s le va r fina lm e nte ,
m uito a sé rio . Aq ui, c o nta m o s um a histó ria p a ra nó s m e sm o s, e e ssa é
um a na rra tiva q ue a d mira m o s e q ue no s p e rm ite q ue a d m ire m o s a nó s
m e sm o s, p a ra usa rm o s a fó rm ula d e C liffo rd G e e rtz, um so fistic a d o
a ntro p ó lo g o a m e ric a no . Sa b e m o s q ue so m o s tã o b o ns e m c o m id a
q ua nto e m m ulhe r o u fute b o l. Aq ui, a firm a m o s e ntre so rriso s, so m o s o s
m e lho re s d o m und o ... E, c o m o nã o p o d e ria d e ixa r d e se r, o m und o
d a s c o m id a s no s le va p a ra c a sa , p a ra o s no sso s p a re nte s e a m ig o s,
p a ra o s no sso s c o m p a nhe iro s d e te to e d e m e sa . Essa s p e sso a s q ue
c o m p a rtilha m inte nsa m e nte d e no ssa vid a e intimid a d e . Intim id a d e
q ue se fa z na c a sa e na m e sa , o nd e so m o s se m p re e
ne c e ssa ria m e nte tra ta d o s c o m o a lg ué m e te m o s d ire ito s p e rp é tuo s
d e c id a d a nia .
Ne sse se ntid o , o c ru se ria tud o q ue e stá fo ra d e ssa á re a d a c a sa
o nd e so m o s visto s e tra ta d o s c o m a m o r, c a rinho e c o nsid e ra ç ã o ,
p o d e nd o — c o nse q üe nte m e nte — e sc o lhe r a c o m id a . O u se ja : o c ru é
tud o a q uilo q ue e stá fo ra d o c o ntro le d a c a sa . Tud o q ue p o d e a té
m e sm o e sta r o p o sto a o m und o d a c a sa , c o m o um a á re a c rue l e d ura
d o m und o so c ia l. Um e sp a ç o re p le to d e m o vim e nto c o ntra d itó rio ,
o nd e a s p e sso a s nã o se ha rm o niza m e ntre si, m a s d isp uta m na
c o m p e tiç ã o um a e sp é c ie d e b a ta lha q ue se re ve la so b re tud o no
tra b a lho .
Já o c o zido é a lg o so c ia l p o r d e finiç ã o . Nã o é so m e nte o no m e
d e um p ro c e sso físic o — o c o zim e nto d a s c o isa s p e lo fo g o —, m a s,
so b re tud o , o no m e d e um p ra to sa g ra d o d e ntro d a no ssa c uliná ria .
Pra to , a liá s, q ue d iz tud o d e ssa s m e tá fo ra s q ue a s c o m id a s p e rm ite m
re a liza r e q ue fa ze m d e sta so c ie d a d e o Bra sil. De fa to , no c o zido
te m o s o a lim e nto q ue junta ve g e ta is, le g um e s e c a rne s va ria d a s num
p ra to q ue te m p e so so c ia l m uito im p o rta nte , p o is q ue inve nta a sua
p ró p ria o c a siã o so c ia l. Q ua nd o se c o m e um c o zid o , nã o se c o m e um
p ra to q ua lq ue r. È q ue há , no Bra sil, c e rto s a lim e nto s o u p ra to s q ue
a b re m um a b re c ha d e finitiva no m und o d iá rio , e ng e nd ra nd o
o c a siõ e s e m q ue a s re la ç õ e s so c ia is d e ve m se r sa b o re a d a s e
p ra ze ro sa m e nte d e sfruta d a s c o m o a s c o m id a s q ue e la s e stã o
c e le b ra nd o . E d e m o d o tã o inte nso q ue nã o se sa b e , no fim , se fo i a
c o m id a q ue c e le b ro u a s re la ç õ e s so c ia is, e sta nd o a se rviç o d e la s, o u
se fo ra m o s e lo s d e p a re nte sc o , c o m p a d rio e a m iza d e q ue e stive ra m
a se rviç o d a b o a m e sa .
Do m e sm o m o d o , se rá p re c iso ind ic a r c o m o é q ue nó s,
b ra sile iro s, se m p re p rivile g ia m o s c o m id a s na c io na is e p re fe rim o s
se m p re o s a lim e nto s c o zid o s. Do c o zid o à p e ixa d a e à fe ijo a d a . Da
fa ro fa a o p irã o e a o s m o lho s, g uisa d o s e m e xid o s, à s d o b ra d inha s e
p a p a s. Pa re c e q ue te m o s e sp e c ia l p re d ile ç ã o p e lo a lim e nto q ue fic a
e ntre o líq uid o e só lid o , e vita nd o — ne ssa s g ra nd e s re fe iç õ e s o nd e se
c e le b ra m a s a m iza d e s . — o a ssa d o , a lim e nto q ue nã o p e rm ite a
m istura . Da í, ta m b é m , p o r q ue te m o s se m p re q ue usa r a fa rinha d e
m a nd io c a e m sua fo rm a sim p le s o u c o m o fa ro fa e m to d a s a s
re fe iç õ e s. De fa to , a fa rinha se rve c o m o o c im e nto a lig a r to d o s o s
p ra to s e to d a s a s c o m id a s. Enq ua nto ing le se s e fra nc e se s usa m m o lho s
p a ra p ra to s e sp e c ífic o s, nó s te m o s c o m id a s q ue sã o m últip la s c o m
se us c a ld o s, m o lho s e suc o s. Ma s é im p o rta nte a c e ntua r q ue a c o m id a
m istura d a é um a e sp é c ie d e im a g e m p e rfe ita d a p ró p ria situa ç ã o
q ue e la m e sm a e ng e nd ra e a jud a a sa b o re a r. E isso é d e sse s tra ç o s
m a is im p o rta nte s a tra nsfo rm a r o a to d e c o me r num g e sto b ra sile iro .
Assim , e ntre o só lid o (q ue c a ra c te riza o p ra to p rinc ip a l d a s
c o m id a s e uro p é ia s e a m e ric a na s) e o líq uid o , p re fe rim o s um a fo rm a
inte rm e d iá ria . O c o zid o é só lid o e líq uid o . Entre a c a rne e a ve rd ura —
q ue e ntra m no s p ra to s e uro p e us c o m o c o m id a s p rinc ip a is e
se c und á ria s —, so m o s m uito m a is d a d o s a um a lig a ç ã o e ntre o s d o is. E
o c o zid o e a fe ijo a d a c e rta m e nte re a liza m isso d e m o d o p e rfe ito ,
junto c o m a m o q ue c a e a p e ixa d a , o nd e ta m b é m se p o d e re unir d e
tud o . É c la ro q ue isso no s fo i le g a d o p e lo m und o Ib é ric o , q ue d e fa to
e nq ua d ra to d a a no ssa c e na c uliná ria . Ma s ta m b é m é c la ro q ue e ssa
p re fe rê nc ia d e no ta um a fo rm a e vid e nte d e e sc o lha . Ta l c o m o so m o s
lig a d o s à id é ia d e se rm o s um p a ís d e trê s ra ç a s, um p a ís m e stiç o e
m ula to , o nd e tud o q ue é c o ntrá rio lá fo ra a q ui d e ntro fic a
c o m b ina d o , no ssa c o m id a re ve la e ssa m e sm a ló g ic a . Te m o s, e ntã o ,
um a c uliná ria re la c io na l q ue e xp re ssa d e m o d o p rivile g ia d o um a
so c ie d a d e ig ua lm e nte re la c io na l. Isto é , um siste m a o nd e a s re la ç õ e s
sã o m a is q ue m e ro re sulta d o de a ç õ e s, d e se jo s e e nc o ntro s
ind ivid ua is; p o is a q ui e ntre nó s e la s se c o nstitue m , e m m uita s o c a siõ e s,
e m ve rd a d e iro s suje ito s d a s situa ç õ e s, tra ze nd o p a ra e la s o se u
p o nto d e vista . Um p o nto d e vista , c la ro e stá , q ue sinte tiza se m p re
a s p o siç õ e s d e q ue m e stá e ng a ja d o na p ró p ria re la ç ã o . No no sso
m und o c uliná rio , o q ue p rivile g ia m o s nã o é o p ra to se p a ra d o (c o m o
na C hina o u no Ja p ã o ) ne m a c o m b ina ç ã o d e p ra to s se p a ra d o s q ue
sã o fo rte s e d e sc o ntínuo s (c o m o na Fra nç a e na Ing la te rra ), m a s, isto
sim , a p o ssib ilid a d e d e e sta b e le c e r, ta m b é m p e la c o m id a , g ra d a ç õ e s
e hie ra rq uia s, p e rm itind o e sc o lha s e ntre um a c o m id a (o u p ra to ) q ue é
c e ntra l e d a d a d e um a ve z p o r to d a s — a c o m id a p rinc ip a l — e se us
c o a d juva nte s o u ing re d ie nte s p e rifé ric o s, q ue se rve m p a ra junta r e
m istura r. Te m o s, e ntã o , na no ssa c o zinha , na no ssa c o m id a e no no sso
m o d o d e c o m e r, um a o b se ssã o p e lo c ó d ig o c uliná rio re la c io na l e
inte rm e d iá rio . Um c ó d ig o m a rc a d o p e la lig a ç ã o .
Do m e sm o mo d o q ue na vid a e na so c ie d a d e , so m o s
o b c e c a d o s p e lo a m ig o únic o , c e rto e se g uro na s ho ra s e m q ue
p re c isa m o s d e a m p a ro , e q ue ja m a is no s p o d e d e c e p c io na r
“ c usp ind o no p ra to e m q ue c o m e u” . . .
O carnaval, ou o mundo
como teatro e prazer
To d a s a s so c ie d a d e s a lte rna m sua s vid a s e ntre ro tina s e rito s,
tra b a lho e fe sta , c o rp o e a lm a , c o isa s d o s ho m e ns e a ssunto d o s
d e use s, p e río d o s o rd iná rio s — o nd e a vid a tra nsc o rre se m p ro b le m a s
— e a s fe sta s, o s ritua is, a s c o m e m o ra ç õ e s, o s m ila g re s e a s o c a siõ e s
e xtra o rd iná ria s, o nd e tud o p o d e se r ilum ina d o e visto p o r no vo p rism a ,
p o siç ã o , p e rsp e c tiva , â ng ulo ...
Vive m o s se m p re e ntre e sse s m o m e nto s, c o m o p a ssa g e iro s q ue
e stã o sa ind o d e um e ve nto ro tine iro p a ra a o c o rrê nc ia fo ra d o
c o m um q ue , p o r sua ve z, lo g o p o d e to rna r-se no va m e nte ro tine ira e
fa ze r p a rte d a p a isa g e m d o no sso irre fle xivo c o tid ia no .
A via g e m d a ro tina p a ra o e xtra o rd iná rio , p o ré m , d e p e nd e d e
um a sé rie d e fa to re s. Ela p o d e va ria r d e so c ie d a d e p a ra so c ie d a d e e
p o d e se r re a liza d a ta nto c o le tiva q ua nto ind ivid ua lm e nte . No ssa
b io g ra fia se fa z p re c isa m e nte p e la a lte rnâ nc ia d e situa ç õ e s q ue fo ra m
e sq ue c id a s c o m situa ç õ e s q ue “ g ua rd a m o s” c o m o te so uro s o u
c ic a trize s e m no ssa c a b e ç a e q ue fo rm a m o q ue d e no m ina m o s
“ m e m ó ria ” . De fa to , ta l id é ia tra d uz, d e m a ne ira m uito p re c isa ,
e ssa ve rd a d e ira d ia lé tic a e ntre o q ue é le m b ra d o c o m sa uda de
c o m o m a ra vilho so , fo rm id á ve l o u p o é tic o , a o la d o d e tud o q ue fo i
vivid o c o m o d o lo ro so , trá g ic o e ruim (a q uilo q ue na no ssa e xistê nc ia
e ntra c o m o e xtra o rd iná rio , p o sitiva o u ne g a tiva m e nte va lo riza d o ), e
o s o utro s e ve nto s q ue sim p le sm e nte nã o sã o le m b ra d o s, p e rd e nd o -se
na s so m b ra s d o p a ssa d o e d o te m p o vivid o e ja m a is re c up e ra d o . Há ,
p o is, um te m p o le m b ra d o , q ue vira m e m ó ria e sa ud a d e ; e um te m p o
sim p le sm e nte vivid o , q ue se va i e m o rre na d istâ nc ia d o p a ssa d o .
As so c ie d a d e s e o s g rup o s fa ze m c o isa s p a re c id a s. E a m e m ó ria
so c ia l (isso q ue vulg a rm e nte se c ha m a “ tra d iç ã o ” o u “ c ultura ” ),
q ue é se m p re fe ita d e um a histó ria c o m H m a iúsc ulo , é ta m b é m
m a rc a d a p o r m e io d e sse s m o m e nto s q ue p e rm ite m a lte rnâ nc ia s
c e rta s e ntre o q ue fo i c o nc e b id o e vivid o c o m o ro tine iro e ha b itua l e
tud o a q uilo q ue fo i vive nc ia d o c o m o c rise , a c id e nte , fe sta o u
m ila g re . Po is o ho m e m é o únic o a nim a l q ue se c o nstró i p e la
le m b ra nç a , p e la re c o rd a ç ã o e p e la “ sa ud a d e ” , e se “ d e sc o nstró i”
p e lo e sq ue c im e nto e p e lo m o d o a tivo c o m q ue c o nse g ue d e ixa r d e
le m b ra r.
No Bra sil, c o m o e m m uita s o utra s so c ie d a d e s, o ro tine iro é
se m p re e q ua c io na d o a o tra b a lho o u a tud o a q uilo q ue re m e te a
o b rig a ç õ e s e c a stig o s... a tud o q ue se é o b rig a d o a re a liza r; a o p a sso
q ue o e xtra -o rd iná rio , c o m o o p ró p rio no m e ind ic a , e vo c a tud o q ue
é fo ra d o c o m um e , e xa ta m e nte p o r isso , p o d e se r inve nta d o e
c ria d o p o r m e io d e a rtifíc io s e m e c a nism o s. C a d a um d e sse s la d o s
p e rm ite “ e sq ue c e r” o o utro , c o m o a s d ua s fa c e s d e um a m e sm a
m o e d a . E, no e nta nto , o s d o is fa ze m p a rte e c o nstitue m e xp re ssõ e s
o u re fle xõ e s d e um a m e sm a to ta lid a d e , um a m e sm a c o isa . O u
m e lho r: ta nto a fe sta q ua nto a ro tina sã o m o d o s q ue a so c ie d a d e
te m d e e xp rim ir-se , d e a tua liza r-se c o nc re ta m e nte , d e ixa nd o ve r a
sua “ a lm a ” o u o se u c o ra ç ã o . Na no ssa so c ie d a d e , te m o s g ra nd e
c o nsc iê nc ia d e ssa a lte rnâ nc ia , d e ta l m o d o q ue a vid a , p a ra a
m a io ria d e nó s, se d e fine se m p re p e la o sc ila ç ã o e ntre ro tina s e fe sta s,
tra b a lho e fe ria d o , d e sp re o c up a ç õ e s e “ c ha te a ç õ e s” , d ia s fe lize s e
m o m e nto s d o lo ro so s, vid a e m o rte , o s d ia s d e “ d ure za ” e “ tra b a lho
d uro ” d o m und o “ re a l” e o s d ia s d e a le g ria e fa nta sia d e sse “ o utro
la d o d a vid a ” c o nstituíd o p e la fe sta , p e lo fe ria d o e p e la a usê nc ia d e
tra b a lho p a ra o o utro (o p a trã o , o G o ve rno , o c he fe , o d o no d o
ne g ó c io e tc ). Re a lm e nte , na fe sta , c o m e m o s, rim o s e vive m o s o m ito
o u uto p ia d a a usê nc ia d e hie ra rq uia , p o d e r, d inhe iro e e sfo rç o físic o .
Aq ui, to d o s se ha rm o niza m p o r m e io d e c o nve rsa s a m e na s e , na
c o nstruç ã o d a fe sta , a m úsic a q ue c o ng re g a e ig ua la no se u ritm o e
na sua m e lo d ia é a lg o a b so luta m e nte fund a m e nta l no c a so b ra sile iro .
No tra b a lho , p o ré m , e sta m o s m a rte la nd o e c o nstruind o , b a te nd o
m a ssa o u “ b a te nd o p e rna ” p a ra a c o m p a nhia , p a ra a fa m ília , p a ra
a m ulhe r e o s filho s, “ p a ra a ho nra d a firm a ” o u d e a lg um a c o isa q ue
e fe tiva m e nte e xig e o no sso sa c rifíc io . Pa ra nó s, b ra sile iro s, a fe sta é
sinô nim o d e a le g ria , o tra b a lho é e ufe m ism o d e c a stig o , d ure za , suo r.
O tra b a lho se m p re ind ic a a id é ia (o u id e a l) d a c o nstruç ã o d o
ho m e m p e lo ho m e m . Um c o ntro le d a vid a e do m und o p e la
so c ie d a d e . To d a s a s ro tina s p ro d utiva s, so b re tud o na s so c ie d a d e s
p ro te sta nte s e p le na m e nte ind ustria liza d a s, sã o m a rc a d a s p e la
p re visã o e p e la ra c io na lid a d e . Há um m ínim o d e inte rfe rê nc ia d e
fa to re s inte rno s (a s e m o ç õ e s d e q ue m tra b a lha sã o inte ira m e nte
c o ntro la d a s) e e xte rno s (o te m p o e o e sp a ç o sã o ig ua lm e nte
m a p e a d o s c o m g ra nd e p re c isã o , d e m o d o q ue o lo c a l d e tra b a lho
fic a lo ng e d a c a sa . É a lg o p ro d uzid o p a ra o p ró p rio tra b a lho , c o m o
um a fá b ric a o u usina ...).
Até m e sm o no c a so da p ro d uç ã o a g ríc o la , o c o rre e ssa
d ia g ra m a ç ã o , d e m o d o q ue a te nta tiva é se m p re d e c ria r um a
se q üê nc ia o nd e o c o ntro le é to ta l. Nã o d e ve ha ve r surp re sa s, nã o
d e ve ha ve r a c id e nte s, nã o d e ve ha ve r c o isa a lg um a de
e xtra o rd iná rio , e xc e to , o b via m e nte , o a um e nto da p ro d uç ã o .
Q ua nd o o c o rre a lg o q ue nã o d ig a re sp e ito a e sse fa to r, e ntã o fo i
p o rq ue um a c id e nte o c o rre u. E o s a c id e nte s a q ui sã o m e d id o s e
e stud a d o s d e ntro d a id e o lo g ia d e se g ura nç a e c o ntro le q ue p re sid e
a to d o triunfo d a e c o no m ia no no sso siste m a . De fa to , d e ntro d e ssa
p e rsp e c tiva , p o d e -se a té m e sm o d ize r q ue o g ra nd e a c id e nte q ue
ho je a ting e um a fá b ric a é a g re ve ; o u se ja , o e xtra o rd iná rio c ria d o
p o r um d o s fa to re s d e p ro d uç ã o , a fo rç a d e tra b a lho ...
Se os rit o s da d e so rd e m p ro m o v e m te m p o rá ria s
d e sc o nstruç õ e s o u re -a rrum a ç õ e s so c ia is, o s rito s d a o rd e m m a rc a m
d e fo rm a ta xa tiva q ue m é a to r e q ue m é e sp e c ta d o r. Aq ui nã o há a
m e no r p o ssib ilid a d e d e tro c a r d e lug a r, e xc e to — é c la ro — p e la
q ue b ra d o p ro to c o lo . E re a lm e nte a p a la vra p ro to c o lo re ve la e sse
c ó d ig o ríg id o q ue to d o s d e ve m se g uir p a ra q ue o c e rim o nia l p o ssa
“ d a r c e rto ” . O u se ja : p a ra q ue o ritua l p o ssa se r um m o m e nto
c o e re nte d e o rd e m p e rfe ita e se m a q ue la s d isso nâ nc ia s q ue o
m und o d iá rio é m e stre e m no s a p re se nta r. É, justa m e nte , e sse re sg a te
da o rd e m q ue ta is ritua is p re te nd e m re a liza r p o r m e io d e ssa s
d ra m a tiza ç õ e s.
Da í, c e rta m e nte , a a sso c ia ç ã o e ntre c e rim o nia l e p o d e r. É q ue
o ritua l re ve ste o p o d e r, d a nd o -lhe um a fo rm a e xte rio r so le ne e
le g ítim a . De m o d o q ue to d o s o s ritua is se m p re a ssum e m a fo rm a
b á sic a d e um d e sfile , p ro c issã o o u p a ra d a m ilita r — fo rm a s d e
a p re se nta ç ã o so c ia l d e sinib id a e e xub e ra nte , o nd e a s c o rp o ra ç õ e s
q ue p a ssa m e se a p re se nta m re ve la m -se e m to d o o se u e sp le nd o r o u
m isé ria . No Bra sil, sig nific a tiva m e nte , usa m o s a p a la vra d e sfile p a ra o
c a so d o c a rna va l, p a ra d a p a ra a s c o m e m o ra ç õ e s c ívic a s lig a d a s à
no ssa Ind e p e nd ê nc ia e p ro c issã o p a ra a s fe stivid a d e s re lig io sa s. To d a s
e la s tê m se m p re um p o nto d e p a rtid a fo rm a liza d o e p re e sta b e le c id o
e um p o nto d e c he g a d a ig ua lm e nte fixa d o . Na s p ro c issõ e s, c o m o
na s p a ra d a s m ilita re s, a p a rtid a é um c e ntro físic o e so c ia l d e
a uto rid a d e e p o d e r re lig io so o u m ilita r: um a ig re ja o u q ua rte l. Se u
ro te iro , p o r o utro la d o , m a rc a um a á re a o nd e se sa c ra liza um d a d o
e sp a ç o d a c id a d e q ue , p o r isso m e sm o , a c a b a se to rna nd o no b re o u
sa g ra d o . É um e sp a ç o q ue d e ve fic a r a b e rto ao ritua l e , e m
c o nse q üê nc ia , fe c ha d o à s a tivid a d e s d e ro tina d o m und o d iá rio . No
c a so d o Rio d e Ja ne iro , c id a d e q ue vo u to m a r c o m o e xe m p lo , a s
p a ra d a s m ilita re s q ua se se m p re se re a liza m e m fre nte a o Pa nte ã o d o
Exé rc ito Na c io na l, lo c a l situa d o e m fre nte a o Ministé rio d a G ue rra ,
o nd e e stã o se p ulta d o s o s re sto s m o rta is d o Duq ue d e C a xia s, p a tro no
d o Exé rc ito Bra sile iro e d a s Fo rç a s Arm a d a s e m g e ra l. Nã o p o d e ria
e xistir lo c a l m a is sa g ra d o q ue e sse , e m te rm o s d a no ssa Histó ria . Alé m
d isso , o d e sfile m ilita r a p re se nta um a d ra m a tiza ç ã o d a g ue rra — d o
m e sm o m o d o q ue a p ro c issã o d ra m a tiza a s hie ra rq uia s c e le ste s. De
fa to , no d e sfile , o s so ld a d o s se a p re se nta m com sua s a rm a s,
c o m a nd a d o s p o r se us sup e rio re s, m a s d e mo d o rig o ro sa m e nte
o rd e iro . Dã o um a d e m o nstra ç ã o d e o b e d iê nc ia , d isc ip lina e o rd e m ,
c o m o a re ve la r a sua d isp o siç ã o d e c um p rir se u d e ve r d e d e fe nd e r
a Pá tria a q ua lq ue r c usto , se isso fo r re a lm e nte ne c e ssá rio . To d o s o s
Esta d o s na c io na is m o d e rno s tê m e ssa s fo rm a s d e d e sfile , e m b o ra
a p re se nte m im p o rta nte s va ria ç õ e s q ue d e nunc ia m d ive rsid a d e s
p o lític a s e so c ia is sig nific a tiva s. Po r e xe m p lo , o d ia d a p á tria no s Esta d o s
Unid o s é um a fe sta p úb lic a , se m d úvid a , m a s q ue ra ra m e nte é
c o m e m o ra d a c o m um d e sfile o u p a ra d a m ilita r. Lá , sua fo rm a m a is
c o m um d e c e le b ra ç ã o sã o o s p iq ue niq ue s re a liza d o s p o r fa m ília s q ue ,
junta s, vã o p a ra o s p a rq ue s e ja rd ins d a s c id a d e s a c e na r b a nd e ira s,
d isp a ra r fo g ue te s o u sim p le sm e nte c o m e r e c a lm a m e nte c o nve rsa r.
No c a so b ra sile iro , a s p a ra d a s m ilita re s sã o p o nto im p o rta nte
d a q uilo q ue d e no m ine i "triâ ng ulo ritua l". De fa to , na no ssa so c ie d a d e
te m o s o d e sfile m ilita r p a ra a s a uto rid a d e s, o u m e lho r, c o m o rito
d e stina d o a c e le b ra r a re la ç ã o d o Esta d o c o m o p o vo . Te m o s a s
p ro c issõ e s q ue fo c a liza m a s re la ç õ e s d o s ho m e ns c o m De us a tra vé s d a
Ig re ja . E te m o s, fina lm e nte , o d e sfile d o c a rna va l, q ue fa z o p o vo se r a o
m e sm o te m p o e sp e c ta d o r e a to r. Em to d o s o s c a so s, a so c ie d a d e
c e le b ra a q uilo q ue c e rta m e nte c o nsid e ra fund a m e nta l p a ra a sua
e strutura so c ia l e — o q ue é inte re ssa nte a p o nta r no c a so b ra sile iro —,
p a ra c a d a instituiç ã o im p o rta nte , há um lug a r e um a fo rm a d ra m á tic a
d e a p re se nta ç ã o ritua l. Te m o s, e ntã o , num a fó rm ula m uito sim p lific a d a :
o Esta d o c o m se u p o d e r visita nd o o p o vo ; De us e o s se us sa nto s sa ind o
d a e sfe ra sa g ra d a p a ra ta m b é m visita re m o m und o p ro fa no d a s
c id a d e s; e , fina lme nte , o p o vo a p re se nta nd o -se a si m e sm o c o m o
a le g re , fo rte , g a la nte , e le g a nte e luxuo so no s d e sfile s c a rna va le sc o s.
Na d a m e p a re c e m a is func io na l q ue e ssa fo rm a d e vive nc ia r o s va lo re s.
Ma s o s ritua is d a o rd e m nã o se e sg o ta m ne ssa s fe sta s g ra nd io sa s
e m q ue o m und o so c ia l é re a firm a d o e e ng lo b a d o p e lo Esta d o e p e la
Ig re ja . Ele s ta m b é m e stã o p re se nte s e m situa ç õ e s m uito m a is fa milia re s
a to d o s nó s, c o m o a s fe sta s d e fo rm a tura e o s rito s d e p o sse e m c a rg o s
p úb lic o s, e m q ue um a m e sa g e ra lm e nte se p a ra a s p e sso a s q ue sã o o
fo c o d o c e rim o nia l e o s se us c o nvid a d o s; e e m to d a s a s c rise s d e vid a e
rito s d e p a ssa g e m e m g e ra l, c o m o na sc im e nto s, b a tiza d o s, c rism a s,
c a sa m e nto s e fune ra is. Ne ssa s o c a siõ e s, q ue ta m b é m sã o so le ne s, a
tro c a de d isc urso s, o uso de ro up a s e sp e c ia is, a e xistê nc ia de
re p re se nta nte s d up lo s (c o m o o c o rre na s fe sta s d e fo rm a tura ) p e rm ite m
d e sc o b rir e sse s m e sm o s e le m e nto s q ue e xa g e ra m a o rd e m so c ia l
c o nstituíd a e a p a re nte e , ta m b é m , a c o nte nç ã o d o s g e sto s e d o
c o m p o rta m e nto e m g e ra l. Ta m b é m a q ui há um id io m a e sp e c ia l,
fa c ilm e nte a p re nd id o no s lug a re s-c o m uns d e um a re tó ric a q ue to d o
a d ulto p o d e re p e tir se m e sfo rç o . E há ta m b é m o s g e sto s típ ic o s e o s
o b je to s ind isp e nsá ve is, c o m o o a ne l d e g ra u no c a so d a s fo rm a tura s, a s
a lia nç a s no c a so d o s c a sa m e nto s e o b o lo d e a nive rsá rio no c a so d a
p a ssa g e m d e id a d e .
Em g e ra l, to d a s e ssa s fe sta s c o m e m o ra m o u c e le b ra m a lg um a
c o isa q ue , sup o m o s, re a lm e nte a c o nte c e u. A vid a d e um sa nto é um a
histó ria e xe m p la r a se r imita d a p e lo s ho m e ns, e a p ro c issã o q ue a o
sa nto se d e d ic a d iz um p o uc o d e ssa c a m inha d a te rre na p a ra o C é u,
re p ro d uzind o -a num a e sp é c ie d e te a tro c ristã o q ue é o ritua l re lig io so .
Do m e sm o m o d o , e m fo rm a tura s e a nive rsá rio s, c a sa m e nto s e fune ra is,
re sg a ta -se se m p re a lg um tip o d e e xe m p lo , a lg um a fo rma d e m o d e lo ,
se ja p a ra o a nive rsa ria nte o u fo rm a nd o se g uir, se ja p a ra q ue se us
p a re nte s e a m ig o s p o ssa m se r c o nso la d o s. O ho m e m é um a nim a l q ue
b usc a o se ntid o e m tud o — e sta é sua sina . E ta is o c a siõ e s sã o situa ç õ e s
p rivile g ia d a s e m q ue o s g rup o s se c o m p ra ze m na b usc a d e um se ntid o
p ro fund o p a ra sua s vid a s. Se ntid o q ue a sse g ura , d e c e rto m o d o , a
c o ntinuid a d e da vid a c o le tiva , m e sm o q ua nd o a me a ç a d a p e la
e xtinç ã o , c o m o é o c a so d o s ritua is fune rá rio s.
As fe sta s p a tro c ina d a s p e lo Esta d o , c o m o a s c o m e m o ra ç õ e s d a
Ind e p e nd ê nc ia , ta m b é m c e le b ra m um a o c o rrê nc ia re a l, o na sc im e nto
d e um a na ç ã o , e p o r isso sã o e ve nto s p a ra d ig m á tic o s q ue justific a m a
im p o rtâ nc ia d a d a ta . Aq ui e sta m o s d ia nte d e um rito d e c a le nd á rio
c o le tivo , um a nive rsá rio (e um a fo rm a tura ) na c io na l. Eve nto q ue
c o ng re g a sim ulta ne a m e nte , num a e sp é c ie d e sínte se , um a sé rie d e rito s
d e p a ssa g e m. É mo rte d e uma re la ç ã o (o e lo c o lo nia l), é na sc ime nto d e
o utra vid a (o p a ís q ue se to rna ind e p e nd e nte ). È ta mb é m c a rna va l
lib e rta d o r, c e rimo nia l insta ura d o r e ina ug ura d o r. É so le nid a d e p ro fa na
lig a d a a o p o d e r e à vo nta d e d o s ho me ns, e ig ua lme nte rito sa g ra d o o nd e
se a g ra d e c e a a jud a d e De us p e lo d e sfe c ho fa vo rá ve l d e um mo vime nto
d e rup tura q ue g e ra lme nte é ma rc a d o p e la vio lê nc ia .
Tud o isso p e rmite no ta r q ue o s rito s d a o rd e m tê m um c e ntro . Se ja
um e ve nto , se ja um p e rso na g e m, se ja um o b je to ; ne le s e xiste , c o mo c e ntro ,
uma c e na b á sic a q ue d e ve e strutura r o rito c o mo um to d o , a lé m d e a ç õ e s
e c e ná rio s p e rifé ric o s. Isso fic a muito c la ro e m a nive rsá rio s, fo rma tura s e
fune ra is, o nd e há um c e ntro e um mo me nto c ulmina nte , se m o q ua l nã o
se te m ne m me smo a ne c e ssid a d e d e p ro c e d e r a o d ra ma . O c a so d a fe sta
d e a nive rsá rio é um b o m e xe mp lo d isso , p o is a me sa e o b o lo sã o a q ui
p e rso na g e ns c e ntra is, se nd o p a rte d e se u p o nto c ulmina nte q ue te m a ve r
c o m a fo rma ritua liza d a c o mo se ing e re um p ro d uto p ro fund a me nte
id e ntific a d o c o m o a nive rsa ria nte , se nd o se u re p re se nta nte simb ó lic o .
De sse mo d o , o b o lo d o a nive rsa ria nte e o núme ro d e ve la s q ue o
e nfe ita m e q ue q ue ima m c o rre sp o nd e m a o núme ro d e a no s q ue fo ra m
“ q ue ima d o s” na p ró p ria vid a d e q ue m e stá se nd o ho me na g e a d o . Bo lo e
p e sso a , a ssim, sã o uma só p e sso a mo ra l. E e ssa p e sso a é “ c o mid a ”
simb o lic a me nte p o r to d o s, num a to p le no d e c o munhã o e d e d ivisã o físic a
q ue ve m c ime nta r ritua lme nte o s e lo s so c ia is e ntre a nive rsa ria nte e
c o nvid a d o s.
De inte re sse a q ui é ind ic a r q ue a s p e sso a s e stã o to d a s d istrib uíd a s a o
lo ng o d e sse c e ntro q ue , a o c o ntrá rio d o c a rna va l (o nd e o mund o é
fra g me nta d o e d e sc e ntra liza d o , e muita c o isa o c o rre ao me smo te mp o ),
p o ssui um sinc ro nismo , uma c o o rd e na ç ã o c o m o e ve nto c e ntra l. Isto é ,
tud o a c o nte c e d e mo d o o rq ue stra d o e e m e q uilíb rio c o m o e ve nto
c e ntra liza d o r d e to d a s a s a te nç õ e s. Assim, e nq ua nto nã o se p o d e ja ma is
c he g a r a tra sa d o a uma fe sta c a rna va le sc a , p o is o e ve nto c o m e ç a
q ua nd o se c he g a , no s rito s d a o rd e m se c o rre se m p re o risc o d e ssa
p e rd a . Isso p ro va q ue ta is so le nid a d e s ta lve z se ja m m a is le g itim a d o ra s
d o q ue sim p le sm e nte c o m e m o ra tiva s, d o nd e a im p o rtâ nc ia da
p re se nç a e d a a te nç ã o d e to d o s a se us e ve nto s c e ntra is.
Tud o isso no s fa la d e um ritm o so c ia l, um m o vim e nto q ue
ind ic a a lg o c o m o um o sc ila r e ntre fo rm a e c o nte úd o , c e ntro e
p e rife ria , c o ntinê nc ia físic a e e xc e sso . C o m o o tiq ue -ta q ue d e um
re ló g io , o u a b a tid a d e um c o ra ç ã o , o u o b um b o d e c a rna va l, o u a s
m á sc a ra s q ue sã o p o sta s e tira d a s na re ve la ç ã o d e q ue o s ho m e ns
vive m e ntre a s c o isa s. Ete rno s ritua liza d o s, se m p re p a ssa g e iro s...
O modo de navegação
social: a malandragem
e o “jeitinho”
Entre a d e so rd e m c a rna va le sc a , q ue p e rm ite e e stim ula o
e xc e sso , e a o rd e m , q ue re q ue r a c o ntinê nc ia e a d isc ip lina p e la
o b e d iê nc ia e strita à s le is, c o m o é q ue nó s, b ra sile iro s, fic a m o s? Q ua l a
no ssa re la ç ã o e a no ssa a titud e p a ra c o m e d ia nte d e um a le i
unive rsa l q ue te o ric a m e nte d e ve va le r p a ra to d o s? Co mo
p ro c e d e m o s d ia nte d a no rm a g e ra l, se fo m o s c ria d o s num a c a sa
o nd e , d e sd e a m a is te nra id a d e , a p re nd e m o s q ue há se m p re um
m o d o d e sa tisfa ze r no ssa s vo nta d e s e d e se jo s, m e sm o q ue isso vá d e
e nc o ntro à s no rm a s d o b o m se nso e d a c o le tivid a d e e m g e ra l?
Num livro q ue e sc re vi — C a rna va is, ma la nd ro s e he ró is —,
la nc e i a te se d e q ue o d ile m a b ra sile iro re sid ia num a trá g ic a o sc ila ç ã o
e ntre um e sq ue le to na c io na l fe ito d e le is unive rsa is c ujo suje ito e ra o
ind ivíd uo e situa ç õ e s o nd e c a d a q ua l se sa lva va e se d e sp a c ha va
c o m o p o d ia , utiliza nd o p a ra isso o se u siste m a d e re la ç õ e s p e sso a is.
Ha ve ria a ssim , ne ssa c o lo c a ç ã o , um ve rd a d e iro c o m b a te e ntre le is
q ue d e ve m va le r p a ra to d o s e re la ç õ e s q ue e vid e nte m e nte só
p o d e m func io na r p a ra q ue m a s te m . O re sulta d o é um siste m a so c ia l
d ivid id o e a té m e sm o e q uilib ra d o e ntre d ua s unid a d e s so c ia is b á sic a s:
o ind ivíd uo (o suje ito d a s le is unive rsa is q ue m o d e rniza m a so c ie d a d e )
e a p e sso a (o suje ito d a s re la ç õ e s so c ia is, q ue c o nd uz a o p ó lo
tra d ic io na l d o siste m a ) Entre o s d o is, o c o ra ç ã o d o s b ra sile iro s
b a la nç a . E no m e io d o s d o is, a m a la nd ra g e m , o “ je itinho ” e o fa m o so
e a ntip á tic o “ sa b e c o m q ue m e stá fa la nd o ? ” se ria m m o d o s d e
e nfre nta r e ssa s c o ntra d iç õ e s e p a ra d o xo s d e m o d o tip ic a m e nte
b ra sile iro . O u se ja : fa ze nd o um a m e d ia ç ã o ta m b é m p e sso a l e ntre a
le i, a situa ç ã o o nd e e la d e ve ria a p lic a r-se e a s p e sso a s ne la
im p lic a d a s, d e ta l so rte q ue na d a se m o d ifiq ue , a p e na s fic a nd o a le i
um p o uc o d e sm o ra liza d a — m a s, c o m o e la é inse nsíve l e nã o é g e nte
c o m o nó s, to d o m und o fic a , c o m o se d iz, num a b o a , e a vid a re to rna
a o se u no rm a l...
De fa to , c o m o é q ue re a g im o s d ia nte d e um “ p ro ib id o e s-
ta c io na r” , “ p ro ib id o fum a r” , o u d ia nte d e um a fila q uilo m é tric a ?
C o m o é q ue se fa z d ia nte d e um re q ue rim e nto q ue e stá se m p re
e rra d o ? O u d ia nte d e um p ra zo q ue já se e sg o to u e c o nd uz a um a
m ulta a uto m á tic a q ue nã o fo i d ivulg a d a d e m o d o a p ro p ria d o p e la
a uto rid a d e p úb lic a ? O u d e um a ta xa ç ã o injusta e a b usiva q ue o
G o ve rno no va m e nte d e c id iu instituir d e mo d o d rá stic o e se m
c o nsulta ?
A ma la nd ra g e m , c o mo o utro no m e p a ra a fo rm a de
na ve g a ç ã o so c ia l na c io na l, fa z p re c isa m e nte o m e sm o . O m a la nd ro ,
p o rta nto , se ria um p ro fissio na l d o “ je itinho ” e d a a rte d e so b re vive r
na s situa ç õ e s m a is d ifíc e is. Aq ui, ta m b é m , te m o s e sse re la c io na m e nto
c o m p le xo e c ria tivo e ntre o ta le nto p e sso a l e a s le is q ue e ng e nd ra m
— no c a so da m a la nd ra g e m — o uso de “ e xp e d ie nte s” , d e
“ histó ria s” e d e “ c o nto s-d o -vig á rio ” , a rtifíc io s p e sso a is q ue na d a m a is
sã o q ue m o d o s e ng e nho so s d e tira r p a rtid o d e c e rta s situa ç õ e s,
ig ua lm e nte usa nd o o a rg um e nto d a le i o u d a no rm a q ue va le p a ra
to d o s, c o m o o c o rre no c o nto d a ve nd a d o b ilhe te de lo te ria
p re m ia d o . Aq ui, o m a la nd ro d e se ja ve nd e r um b ilhe te p re m ia d o p e la
q ua rta p a rte d o se u p re ç o justo e a rm a um a situa ç ã o o nd e se rá
fa ta lm e nte a vítim a . Ma s o fa to é q ue o c o m p ra d o r é q ue se rá
ro ub a d o . A situa ç ã o se a rm a p re c isa m e nte p e lo uso a b usivo e
d e so ne sto d a s lista s o fic ia is d a lo te ria (q ue le g itim a m o p rê m io ) e
p e lo s d e ve re s d e p a re nte sc o , q ue o b rig a m , na histó ria d o m a la nd ro ,
a um a via g e m ine sp e ra d a d o nd e a ne c e ssid a d e d e ve nd e r um
b ilhe te p re m ia d o . Ne ssa e strutura típ ic a d e um c o nto -d o -vig á rio ,
no ta -se a m e sm a c o ntra d iç ã o e ntre a im p e sso a lid a d e d a lo te ria e d a
so rte e a p e sso a lid a d e d a s re la ç õ e s p e sso a is q ue se d ã o e m vá rio s
níve is. O d ra m a re sid e p re c isa m e nte no m o d o e sp e c ia l d e c o njug a r o
p e sso a c o m o im p e sso a l.
Do la d o d o m a la nd ro , e c o m o o se u o p o sto so c ia l, te m o s a
fig ura d o de sp a c ha nte , e sse e sp e c ia lista e m e ntra r e m c o nta to c o m
a s re p a rtiç õ e s o fic ia is p a ra a o b te nç ã o de d o c um e nto s q ue
no rm a lm e nte im p lic a m a s c o nfusõ e s q ue m e nc io ne i linha s a nte s, a o
d e sc re ve r d e ta lha d a m e nte o “ je itinho ” . O d e sp a c ha nte , c o m o fig ura
so c io ló g ic a , só p o d e se r visto e m sua e no rm e im p o rtâ nc ia q ua nd o
no va m e nte no s d a m o s c o nta d e ssa e no rm e d ific uld a d e b ra sile ira d e
junta r a le i c o m a re a lid a d e so c ia l d iá ria . Assim , o d e sp a c ha nte p a re c e
m a is um p a d rinho . Ta l c o m o o p a d rinho , e le é um m e d ia d o r e ntre a le i
e um a p e sso a . Do m e sm o m o d o q ue um p a trã o d e ve d a r e m p re g o e
b o a s c o nd iç õ e s d e tra b a lho a se us e m p re g a d o s, o d e sp a c ha nte
d e ve g uia r se us c lie nte s p e lo s e stre ito s e p e rig o so s m e a nd ro s d a s
re p a rtiç õ e s o fic ia is, fa ze nd o c o m q ue sig a m o c a m inho c e rto . Só q ue
o d e sp a c ha nte é um p a d rinho p a ra b a ixo . Dig o p a ra b a ixo p o rq ue a s
c la sse s m é d ia e a lta d o Bra sil tê m ve rd a d e ira a ve rsã o a tud o q ue a
fa ç a se ntir-se c o m o p e sso a c o m um , ind ivíd uo suje ito a re je iç õ e s e
d e sa g ra d á ve is e nc o ntro s c o m a uto rid a d e s se m o m e no r tra ç o d e
b o a vo nta d e . Assim , se nã o se te m um a m ig o o u um a re la ç ã o q ue
p o ssa im e d ia ta m e nte fa c ulta r o “ je itinho ” , c o ntra ta -se um
d e sp a c ha nte , q ue re a liza p re c isa m e nte e ssa ta re fa .
Po r tud o isso , nã o há no Bra sil q ue m nã o c o nhe ç a a
m a la nd ra g e m , q ue nã o é só um tip o d e a ç ã o c o nc re ta situa d a e ntre
a le i e a p le na d e so ne stid a d e , m a s ta m b é m , e so b re tud o , é um a
p o ssib ilid a d e de p ro c e d e r so c ia lm e nte , um mo d o tip ic a m e nte
b ra sile iro d e c um p rir o rd e ns a b surd a s, um a fo rm a o u e stilo de
c o nc ilia r o rd e ns im p o ssíve is d e se re m c um p rid a s c o m situa ç õ e s
e sp e c ífic a s, e — ta m b é m — um m o d o a m b íg uo d e b urla r a s le is e a s
no rm a s so c ia is m a is g e ra is.
A p o ssib ilid a d e d e a g ir c o m o m a la nd ro se d á e m to d o s o s
lug a re s. Ma s há um a á re a o nd e c e rta m e nte e la é p rivile g ia d a . Q ue ro
re fe rir-m e à re g iã o do p ra ze r e d a se nsua lid a d e , zo na o nd e o
m a la nd ro é o c o nc re tiza d o r d a b o ê m ia e o suje ito e sp e c ia l d a b o a
vid a . Aq ue la e xistê nc ia q ue p e rm ite d e se ja r o m á xim o d e p ra ze r e
b e m -e sta r, c o m um m ínim o d e tra b a lho e e sfo rç o . O m a la nd ro ,
e ntã o , c o nfo rm e te nho a c e ntua d o em m e us e stud o s, é um a
p e rso na g e m na c io na l. É um p a p e l so c ia l q ue e stá à no ssa d isp o siç ã o
p a ra se r vivid o no m o m e nto e m q ue a c ha rm o s q ue a le i p o d e se r
e sq ue c id a o u a té m e sm o b urla d a c o m c e rta c la sse o u je ito . No Bra sil,
e ntã o , p o d e m o s se r c a xia s o u a uto ritá rio s, c o m o p e rso na g e ns típ ic o s
d o m und o d a s le is e d a o rd e m ; p o d e m o s se r re nunc ia d o re s e b e a to s
q ue q ue re m e sta r fo ra d e ste m und o , q ua nd o so m o s re lig io so s e
p re te nd e m o s fund a r um m o d o d e e xistê nc ia p a ra le lo ; e p o d e m o s
ta m b é m se r m a la nd ro s e je ito so s, p o lític o s há b e is e sa g a ze s, q ua nd o
nã o e nfre nta m o s a le i c o m a sua m o d ific a ç ã o o u re je iç ã o fro nta l,
m a s a p e na s a d o b ra m o s o u sim p le sm e nte p a ssa m o s p o r c im a d e la .
Q ue r d ize r, ta l c o m o a c o nte c e c o m o se u m o d o d e a nd a r, o
m a la nd ro é a q ue le q ue — c o m o to d o s nó s — se m p re e sc o lhe fic a r
no m e io d o c a m inho , junta nd o , d e m o d o q ua se se m p re hum a no , a
le i, im p e sso a l e im p o ssíve l, c o m a a m iza d e e a re la ç ã o p e sso a l, q ue
d ize m q ue c a d a ho m e m é um c a so e c a d a c a so d e ve se r tra ta d o d e
m o d o e sp e c ia l.
Assim , se no Na ta l va m o s se m p re à Missa d o G a lo , no d ia 31
d e d e ze m b ro va m o s to d o s à p ra ia ve stid o s d e b ra nc o , fe ste ja r o
no sso o rixá o u re c e b e r o s b o ns fluid o s d a a tm o sfe ra d e e sp e ra nç a q ue
lá se fo rm a . So m o s to d o s m e ntiro so s? C la ro q ue nã o ! So m o s, isso sim ,
p ro fund a m e nte re lig io so s.
Junto com isso , q ue c e rta m e nte im p o rta ria c o rrig ir, se ria
ne c e ssá rio re sg a ta r c o m o c o isa a lta m e nte p o sitiva , c o m o p a trim ô nio
re a lm e nte inve já ve l, to d a e ssa no ssa c a p a c id a d e de sinte tiza r,
re la c io na r e c o nc ilia r, c ria nd o c o m isso zo na s e va lo re s lig a d o s à
a le g ria , a o futuro e à e sp e ra nç a . Num m und o q ue c a d a ve z m a is se
d e se nc a nta c o nsig o m e sm o e institui um ind ivid ua lism o se m lim ite s,
q ue re d uz o s va lo re s c o le tivo s a m e ro a p ê nd ic e d a fe lic id a d e p e sso a l,
a c a p a c id a d e d e a ind a d e slum b ra r-se c o m a so c ie d a d e é a lg o m uito
im p o rta nte , a lg o p o sitivo . E a q ui, se m d úvid a , p o d e m o s no va m e nte
sinte tiza r, d e m o d o c ria tivo e re la c io na l, o ind ivíd uo c o m a s sua s
e xig ê nc ia s e d ire ito s fund a m e nta is, c o m a so c ie d a d e , c o m a sua o r-
d e m , se us va lo re s e ne c e ssid a d e s. Ta lve z a so c ie d a d e b ra sile ira se ja
m issio ná ria d e ssa p o ssib ilid a d e q ue já se e stá e sg o ta nd o no m und o
o c id e nta l. E p o r q uê ? Sim p le sm e nte p o rq ue c o nse g uim o s, a té
a g o ra , m a nte r no ssa fé no ind ivíd uo , c o m o s se us e sp a ç o s inte rno s e
ta m b é m na so c ie d a d e , c o m a s sua s le is d e c o m p le m e nta rid a d e e
re c ip ro c id a d e . De sc o b rim o s ta m b é m q ue o ind ivíd uo , re la ç õ e s,
fa m ília e p a rtid o p o lític o , instituiç õ e s e c o nô m ic a s e e sfe ra s d e
p ro d uç ã o e c o nsum o , tud o p o d e te r o se u e sp a ç o . Se ho je e le s e stã o
m uito se p a ra d o s e ntre si, isso nã o sig nific a a im p o ssib ilid a d e d e se
junta re m m a is no futuro , na sínte se p o sitiva q ue a tua lm e nte só
re a liza m o s no m und o d a s fe sta s, so b re tud o no c a rna va l.
Se ria p re c iso c a rna va liza r um p o uc o m a is a so c ie d a d e c o m o
um to d o , intro d uzind o o s va lo re s d e ssa fe sta re la c io na l e m o utra s
e sfe ra s d e no ssa vid a so c ia l. C o m isso , p o d e ría m o s fina lm e nte
a p ro fund a r a s p o ssib ilid a d e s d e m e d ia ç ã o d e q ue , e sto u se g uro , o
m und o c o nte m p o râ ne o ta nto p re c isa . Ne m ta nto o d e se nc a nto
c rític o q ue c o nd uz a um p rim a d o c e g o d o ind ivid ua lism o c o m o va lo r
a b so luto ; e ne m ta nto o p rim a d o ig ua lm e nte c e g o d a so c ie d a d e e
d o c o le tivo , q ue e sm a g a a c ria tivid a d e hum a na e sufo c a o c o nflito e
a c ha m a d a s c o ntrib uiç õ e s p e sso a is. Ta lve z a lg o no m e io . Alg o q ue
p e rm ita te r um p o uc o m a is d a c a sa na rua e d a rua na c a sa . Alg o q ue
p e rm ita te r a q ui, ne ste m und o , a s e sp e ra nç a s q ue te m o s no o utro .
Alg o q ue p e rm ita fa ze r d o m und o d iá rio , c o m se u tra b a lho d uro e
sua fa lta d e re c urso s, um a e sp é c ie d e c a rna va l q ue inve nta a
e sp e ra nç a d e d ia s m e lho re s.
Ac ho q ue é um p o uc o d e sse tip o d e re fle xã o q ue no s fa lta . E,
p a ra q ue e la p o ssa se r a m p lia d a , d isc utid a , c o rrig id a e fina lm e nte
im p le m e nta d a c o m o m e c a nism o so c ia l, p re c isa m o s re a liza r a c rític a
d e ste m id a d e nó s m e sm o s, p o r m e io d e instrum e nto s sufic ie nte m e nte
a g ud o s e c a p a ze s. Pa ra ta nto , se rá p re c iso c o m e ç a r se m p re c o m a
p e rg unta : o q ue fa z o b ra sil, Bra sil? E, e m se g uid a , p ro m o ve r sua
re sp o sta , a ind a q ue tím id a , im p re c isa e c e rta m e nte d isc utíve l. Po is
nã o fo i o utra c o isa q ue q uise m o s re a liza r a q ui.
Ja rd im Ub á , junho d e 1984
Roberto DaMatta por ele mesmo