Roberto DaMatta O Que Faz o Brasil Brasi

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O que faz o

brasil, Brasil?
Roberto DaMatta

O que faz o
brasil, Brasil?

Rocco
Copyright © 1984 by Roberto DaMatta

Direitos desta edição reservados à


EDITORA ROCCO LTDA.
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20030-021 - Rio de Janeiro, RJ
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Printed in Brazil/Impresso no Brasil

Ilustrações
JIMMY SCOTT

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
D 162o
DaMatta, Roberto, 1936-
O que faz o brasil, Brasil? / Roberto DaMatta.
- Rio de Janeiro: Rocco: 1986.
ISBN: 85-325-0201-6
1. Características nacionais brasileiras. 2. Brasil
- Usos e costumes. I. Título.

06-1169 CDD-981
CDU-316.7(81)
Em m e m ó ria d e Fra nc isc a Sc hurig Vie ira Ke lle r; m inha sa ud o sa a m ig a
q ue ta nta s ve ze s fe z a p e rg unta d e ste livro ;

Em m e m ó ria d e Da nie l Ro d rig ue s, na sua g e ne ro sid a d e p o rtug ue sa e


b ra sile ira ;

Pa ra D. Da lila Pe re ira d a C o sta , Ag o stinho d a Silva e D. Ma ria Vio la nte ,


to d o s p o rtug ue se s, to d o s b ra sile iro s;

E p a ra Alm ir Brune ti, na sua no b re ho sp ita lid a d e .


Índ ic e

O q ue fa z o b ra sil, Bra sil? A q ue stã o d a id e ntid a d e


A c a sa , a rua e o tra b a lho
A ilusã o d a s re la ç õ e s ra c ia is
So b re c o m id a s e m ulhe re s...
O c a rna va l, o u o m und o c o m o te a tro e p ra ze r
As fe sta s d a o rd e m
O mo d o d e na ve g a ç ã o so c ia l: a ma la nd ra g e m e o “ je itinho ”
O s c a minho s p a ra De us
Pa la vra s fina is
Ro b e rto Da Ma tta p o r e le m e sm o
O que faz o brasil, Brasil?
A questão da identidade
De vo c o m e ç a r e xp lic a nd o o m e u e nig m á tic o título . É q ue se rá
p re c iso e sta b e le c e r um a d istinç ã o ra d ic a l e ntre um “ b ra sil” e sc rito
c o m le tra m inúsc ula , no m e d e um tip o d e m a d e ira d e le i o u d e um a
fe ito ria inte re ssa d a e m e xp lo ra r um a te rra c o m o o utra q ua lq ue r, e o
Bra sil q ue d e sig na um p o vo , um a na ç ã o , um c o njunto d e va lo re s,
e sc o lha s e id e a is d e vid a . O “ b ra sil” c o m o b m inúsc ulo é a p e na s um
o b je to se m vid a , a uto c o nsc iê nc ia o u p ulsa ç ã o inte rio r, p e d a ç o d e
c o isa q ue m o rre e nã o te m a m e no r c o nd iç ã o d e se re p ro d uzir c o m o
siste m a ; c o m o , a liá s, q ue ria m a lg uns te ó ric o s so c ia is d o sé c ulo XIX,
q ue via m na te rra — um p e d a ç o p e rd id o d e Po rtug a l e d a Euro p a —
um c o njunto d o e ntio e c o nd e na d o d e ra ç a s q ue , m istura nd o -se a o
sa b o r d e um a na ture za e xub e ra nte e d e um c lim a tro p ic a l, e sta ria m
fa d a d a s à d e g e ne ra ç ã o e à m o rte b io ló g ic a , p sic o ló g ic a e so c ia l.
Ma s o Bra sil c o m B m a iúsc ulo é a lg o m uito m a is c o m p le xo . É p a ís,
c ultura , lo c a l g e o g rá fic o , fro nte ira e te rritó rio re c o nhe c id o s
inte rna c io na lm e nte , e ta m b é m c a sa , p e d a ç o d e c hã o c a lç a d o c o m
o c a lo r d e no sso s c o rp o s, la r, m e m ó ria e c o nsc iê nc ia d e um lug a r c o m
o q ua l se te m um a lig a ç ã o e sp e c ia l, únic a , to ta lm e nte sa g ra d a . É
ig ua lm e nte um te m p o sing ula r c ujo s e ve nto s sã o e xc lusiva m e nte
se us, e ta m b é m te m p o ra lid a d e q ue p o d e se r a c e le ra d a na fe sta d o
c a rna va l; q ue p o d e se r d e tid a na m o rte e na m e m ó ria e q ue p o d e se r
tra zid a de vo lta na boa re c o rd a ç ã o da sa ud a d e . Te m p o e
te m p o ra lid a d e de ritm o s lo c a liza d o s e, a ssim , insub stituíve is.
So c ie d a d e o nd e p e sso a s se g ue m c e rto s va lo re s e julg a m a s a ç õ e s
hum a na s d e ntro d e um p a d rã o so m e nte se u. Nã o se tra ta m a is d e
a lg o ine rte , m a s d e um a e ntid a d e viva , c he ia d e a uto -re fle xã o e
c o nsc iê nc ia : a lg o q ue se so m a e se a la rg a p a ra o futuro e p a ra o
p a ssa d o , num m o vim e nto p ró p rio q ue se c ha m a Histó ria . Aq ui, o
Bra sil é um se r p a rte c o nhe c id o e p a rte m iste rio so , c o m o um g ra nd e
e p o d e ro so e sp írito . C o m o um De us q ue e stá e m to d o s o s lug a re s e
e m ne nhum , m a s q ue ta m b é m p re c isa d o s ho m e ns p a ra q ue p o ssa se
sa b e r sup e rio r e o nip o te nte . O nd e q ue r q ue ha ja um b ra sile iro a d ulto ,
e xiste c o m e le o Bra sil e , no e nta nto — ta l c o mo a c o nte c e c o m a s
d ivind a d e s —, se rá p re c iso p ro d uzir e p ro vo c a r a sua m a nife sta ç ã o p a ra
q ue se p o ssa se ntir sua c o nc re tud e e se u p o d e r. C a so c o ntrá rio , sua
p re se nç a é tã o ine fá ve l c o m o a d o a r q ue se re sp ira , e d e la nã o se
te ria c o nsc iê nc ia a nã o se r p e la c o m p a ra ç ã o , p e lo c o ntra ste e p e la
p e rc e p ç ã o d e a lg um a s d e sua s m a nife sta ç õ e s m a is c o ntund e nte s. O s
d e use s, c o nfo rm e sa b e m o s, e xiste m so m e nte p a ra se re m visto s e m
c e rto s m o m e nto s e d e ntro d e c e rta s m o ld ura s. O m e sm o o c o rre c o m
as so c ie d a d e s. G e ra lm e nte , e sta m o s ha b itua d o s a to m a r
c o nhe c im e nto d a s so c ie d a d e s — e , so b re tud o , d a no ssa so c ie d a d e
— p o r m e io d e sua s m a nife sta ç õ e s m a is o fic ia is e m a is no b re s. Ta l
c o m o o c o rre à s d ivind a d e s, q ue só sã o e nc o ntra d a s na s ig re ja s,
ta m b é m a s so c ie d a d e s só sã o no rm a lm e nte p e rc e b id a s q ua nd o
surg e m na s sua s vo ze s m a is “ c ulta s” . Pa ra o s tra d ic io na lista s, a q ue le s
q ue tê m o lho s e nã o vê e m , o s d e use s se a c ha m no s sa c rá rio s, na s
c a p e la s e no s livro s sa g ra d o s d e re za e d e vo ç ã o . Pa ra os
o b se rva d o re s m e no s im a g ina tivo s e se nsíve is, um a so c ie d a d e e stá na s
sua s c iê nc ia s, le tra s e a rte s. A visã o o fic ia l c o ntra d iz a vo z, a visã o d o
p o vo e, a ind a , a e xp e riê nc ia da c o nd iç ã o hum a na q ue ,
g e ne ro sa m e nte , e nxe rg a De us e m to d a p a rte : no rito p o m p o so e
so le ne d a c a te d ra l e na visã o tre slo uc a d a d o m ístic o , nu e fa m into e m
sua c e la de p re o c up a ç õ e s com o d e stino dos ho m e ns e
so b re c a rre g a d o p e lo p e so fa ntá stic o d o s m últip lo s se ntid o s d e sta
vid a .
Ne ste livro , c o m a jud a d e um a Antro p o lo g ia So c ia l p ra tic a d a
c o m d e ste m o r e q ue p ro p o rc io na um a visã o d a so c ie d a d e a b e rta e
re la tiviza d a p e la c o m p a ra ç ã o , q ue re m o s e xa m ina r a lg uns a sp e c to s
d a so c ie d a d e b ra sile ira q ue o p o vo e nc a ra e c e rta m e nte a m a c o m o
um a d ivind a d e . Po rq ue a q ui, c o m o tá , o Bra sil e stá e m to d a p a rte .
Na s le is e na s no b re s a rte s d a p o lític a e d a e c o no m ia , d a s q ua is te m o s
q ue fa la r se m p re num id io m a o fic ia l e d o b ra nd o a líng ua ; m a s
ta m b é m na c o m id a q ue c o m e m o s, na ro up a q ue ve stim o s, na c a sa
o nd e m o ra m o s e na m ulhe r q ue a m a m o s e a d o ra m o s. Pa ra e ssa
p e rsp e c tiva , o Bra sil d e ve se r p ro c ura d o no s ritua is no b re s d o s
p a lá c io s d e justiç a , d o s fó runs, d a s c â m a ra s e d a s p re to ria s — o nd e a
le tra c la ra d a le i d e fine sua s instituiç õ e s m a is im p o rta nte s; m a s
ta m b é m no je itinho m a la nd ro q ue so m a a le i c o m a p e sso a na sua
vo nta d e e sc usa d e g a nha r, e m b o ra a re g ra fria e d ura c o m o o
m á rm o re d a Justiç a nã o a te nha to m a d o e m c o nsid e ra ç ã o . Aq ui,
p o rta nto , o Bra sil e stá em to d a p a rte : o u m e lho r, p o d e se r
e nc o ntra d o e m to d a p a rte . O e rro fo i p ro c urá -lo o nd e e le nã o
g o sta va d e e sta r, o u sim p le sm e nte nã o p o d ia ne m d e via e sta r.
C o m o se um a so c ie d a d e p ud e sse se r d e finid a c o m o um a m á q uina : a
p a rtir d e um a p la nta d e e ng e nha ria d a d a d e fo ra .
Na c e rte za d e q ue a s visõ e s d o Bra sil a p a rtir d e sua s c o isa s
o fic ia is, sa g ra d a s, sé ria s e le g a is sã o a s m a is c o rre nte s e fa m ilia re s,
q ue ro a q ui re ve lá -lo p o r m e io d e o utro s â ng ulo s e d e o utra s q ue stõ e s.
Nã o se tra ta m a is d a visã o e xc lusiva m e nte o fic ia l e b e m -c o m p o rta d a
d o s m a nua is d e histó ria so c ia l q ue se ve nd e m e m to d a s a s livra ria s, e
o s p ro fe sso re s d isc ute m na s e sc o la s. Ma s d e um a le itura d o Bra sil q ue
d e se ja se r m a iúsc ulo p o r inte iro : o BRASIL d o p o vo e d a s sua s c o isa s.
Da c o m id a , d a m ulhe r, d a re lig iã o q ue nã o p re c isa d e te o lo g ia
c o m p lic a d a ne m d e p a d re s e stud a d o s. Da s le is d a a m iza d e e d o
p a re nte sc o , q ue a tua m p e la s lá g rim a s, p e la s e m o ç õ e s d o d a r e d o
re c e b e r, e d e ntro d a s so m b ra s a c o lhe d o ra s d a s c a sa s e q ua rto s o nd e
vive m o s o no sso q uo tid ia no . Do s jo g o s e sp e rto s e vivo s da
m a la nd ra g e m e d o c a rna va l, o nd e p o d e m o s va d ia r se m se rm o s
c rim ino so s e, a ssim fa ze nd o , e xp e rim e nta m o s a sub lim e
m a rg ina lid a d e q ue te m ho ra p a ra c o m e ç a r e te rm ina r. De ste Bra sil
q ue de a lg um mo d o se re c usa a vive r d e fo rm a to ta lm e nte
p la nific a d a e he g e m o nic a m e nte p a d ro niza d a p e lo d inhe iro d a s
c o nta s b a nc á ria s o u p e lo s p la no s q üinq üe na is d o s m inisté rio s
e nc a nta d o s p e lo s vá rio s te c no c ra ta s e id e ó lo g o s q ue a í e stã o à
e sp e ra d e um c ha m a d o . BRASIL c o m m a iúsc ula s, q ue sa b e tã o b e m
c o njug a r le i c o m g re i, ind ivíd uo c o m p e sso a , e ve nto c o m e strutura ,
c o m id a fa rta c o m p o b re za e strutura l, hino sa g ra d o c o m sa m b a
a p ó c rifo e re la tiviza d o r d e to d o s o s va lo re s, c a rna va l c o m c o m íc io
p o lític o , ho m e m c o m m ulhe r e a té m e sm o De us c o m o Dia b o . Po r
tud o isso é q ue e sta m o s inte re ssa d o s e m re sp o nd e r, na s p á g ina s q ue
se g ue m , e sta p e rg unta q ue e m b a rg a e q ue e m o c io na : a fina l d e
c o nta s, o q ue fa z o b ra sil, BRASIL?

No te -se q ue se tra ta d e um a p e rg unta re la c io na l q ue , ta l c o m o


fa z a p ró p ria so c ie d a d e b ra sile ira , q ue r junta r e nã o d ivid ir. Nã o
q ue re m o s ve r um Bra sil p e q ue no e o utro g ra nd e , já fe ito . Nã o !
Q ue re m o s, isto sim , d e sc o b rir c o m o é q ue e le s se lig a m e ntre si; c o m o
é q ue c a d a um d e p e nd e d o o utro , e c o m o o s d o is fo rm a m um a
re a lid a d e únic a q ue e xiste c o nc re ta m e nte na q uilo q ue c ha m a m o s
d e “ p á tria ” . Num a ling ua g e m m a is p re c isa e , m a is so c io ló g ic a , d ir-se -
ia q ue o p rim e iro “ b ra sil” é d a d o na s p o ssib ilid a d e s hum a na s, m a s
q ue o se g und o Bra sil é fe ito d e um a c o m b ina ç ã o e sp e c ia l d e ssa s
p o ssib ilid a d e s unive rsa is. O m isté rio d e ssa e sc o lha é im e nso , m a s a
re la ç ã o é im p o rta nte . Po rq ue e la d e fine um e stilo , um m o d o d e se r,
um “ je ito ” d e e xistir q ue , nã o o b sta nte e sta r fund a d o e m c o isa s
unive rsa is, é e xc lusiva m e nte b ra sile iro . Assim , o p o nto d e p a rtid a d e ste
e nsa io é o se g uinte : ta nto o s ho m e ns c o m o a s so c ie d a d e s se d e fine m
p o r se us e stilo s, se us m o d o s d e fa ze r a s c o isa s. Se a c o nd iç ã o hum a na
d e te rm ina q ue to d o s o s ho m e ns d e ve m c o m e r, d o rm ir, tra b a lha r,
re p ro d uzir-se e re za r, e ssa d e te rm ina ç ã o nã o c he g a a o p o nto d e
e sp e c ific a r ta m b é m q ue c o m id a ing e rir, d e q ue m o d o p ro d uzir, c o m
q ue m ulhe r (o u ho m e m ) a c a sa la r-se e p a ra q ua nto s d e use s o u
e sp írito s re za r. É p re c isa m e nte a q ui, ne ssa e sp é c ie de zo na
ind e te rm ina d a , m a s ne c e ssá ria , q ue na sc e m a s d ife re nç a s e , ne la s, o s
e stilo s, o s m o d o s d e se r e e sta r, o s “ je ito s” d e c a d a q ua l. Po rq ue c a d a
g rup o hum a no , c a d a c o le tivid a d e c o nc re ta , só p o d e p ô r e m p rá tic a
a lg um a s d e ssa s p o ssib ilid a d e s d e a tua liza r o q ue a c o nd iç ã o hum a na
a p re se nta c o m o unive rsa l. As re sta nte s fic a m c o m o um a e sp é c ie d e
fa nta sm a a no s re c rim ina r p e lo fa to d e a s te rm o s d e ixa d o no s
b a stid o re s, c o m o fig ura s b a nid a s d e no sso p a lc o , e m b o ra e ste ja m
d e a lg um m o d o p re se nte s na p e ç a e no te a tro .

No fund o , e ssa q ue stã o d o re la c io na m e nto d o s unive rsa is d e


q ua lq ue r siste m a com um siste m a e sp e c ífic o é das m a is
a p a ixo na nte s d e q ua nta s e xiste m no p a no ra m a d a s C iê nc ia s
Hum a na s. Tra ta -se , se m p re , d a q ue stã o d a id e ntid a d e . De sa b e r q ue m
so m o s e c o m o so m o s; d e sa b e r p o r q ue so m o s. So b re tud o q ua nd o
no s d a m o s c o nta d e q ue o ho m e m se d isting ue d o s a nim a is p o r te r a
c a p a c id a d e d e se id e ntific a r, justific a r e sing ula riza r: d e sa b e r q ue m
e le é . De fa to , a id e ntid a d e so c ia l é a lg o tã o im p o rta nte q ue o
c o nhe c e r-se a si m e sm o a tra vé s d o s o utro s d e ixo u o s livro s d e filo so fia
p a ra se c o nstituir num a b usc a a ntro p o lo g ic a m e nte o rie nta d a . Ma s o
m isté rio , c o m o se p o d e a d ivinha r, nã o fic a na q ue stã o d o sa b e r
q ue m so m o s. Po is se rá ne c e ssá rio d e sc o b rir c o m o c o nstruím o s no ssa s
id e ntid a d e s. Se i q ue so u Jo sé d a Silva , b ra sile iro , c a sa d o , func io ná rio
p úb lic o , to rc e d o r d o Fla m e ng o , c a rna va le sc o da Ma ng ue ira ,
a p re c ia d o r inc o nd ic io na l d a s m ula ta s, c a tó lic o e um b a nd ista ;
jo g a d o r e sp e ra nç o so e inve te ra d o d a lo to , p o rq ue a c re d ito e m
d e stino — e nã o o utra p e sso a q ua lq ue r. Em se nd o Jo sé , nã o so u
Na p o le ã o o u Willia m Sm ith, c id a d ã o a m e ric a no d e No va Yo rk; o u
Iva n Iva no vic h, p a trio ta so vié tic o . Po sso d isting uir-m e a ssim p o rq ue m e
a sso c io inte nsa m e nte a um a sé rie d e a trib uto s e sp e c ia is e p o rq ue
c o m e le s e a tra vé s d e le s fo rm o um a histó ria : a m inha histó ria . Ma s
c o m o é q ue se i o q ue so u? C o m o p o sso d isc utir a p a ssa g e m d o se r
hum a no q ue na sc i p a ra o b ra sile iro q ue so u?

C o m o se c o nstró i um a id e ntid a d e so c ia l? C o m o um p o vo se
tra nsfo rm a e m Bra sil? A p e rg unta , na sua d isc re ta sing e le za , p e rm ite
d e sc o b rir a lg o m uito im p o rta n te . É q ue n o m e io d e um a m ultid ã o
d e e xp e riê nc ia s d a d a s a to d o s o s ho m e ns e so c ie d a d e s, a lg um a s
ne c e ssá ria s à p ró p ria so b re vivê nc ia , c o m o c o m e r, d o rm ir, m o rre r,
re p ro d uzir-se e tc , o utra s a c id e nta is o u sup e rfic ia is: histó ric a s, p a ra se r
m a is p re c iso — o Bra sil fo i d e sc o b e rto p o r p o rtug ue se s e nã o p o r c hine -
se s, a g e o g ra fia do Bra sil te m c e rta s c a ra c te rístic a s c o m o as
m o nta nha s na c o sta do C e ntro -Sul, so fre m o s p re ssã o de c e rta s
p o tê nc ia s e uro p é ia s e nã o d e o utra s, fa la m o s p o rtug uê s e nã o
fra nc ê s, a fa m ília re a l tra nsfe riu-se p a ra o Bra sil no iníc io d o sé c ulo XIX
e tc . C a d a so c ie d a d e (e c a d a se r hum a no ) a p e na s se utiliza d e um
núm e ro lim ita d o d e “ c o isa s” (e d e e xp e riê nc ia s) p a ra c o nstruir-se
c o m o a lg o únic o , m a ra vilho so , d ivino e “ le g a l” ...
Se i, e ntã o , q ue so u b ra sile iro e nã o no rte -a m e ric a no , p o rq ue
g o sto d e c o m e r fe ijo a d a e nã o ha m b úrg ue r; p o rq ue so u m e no s
re c e p tivo a c o isa s d e o utro s p a íse s, so b re tud o c o stum e s e id é ia s;
p o rq ue te nho um a g ud o se ntid o d e rid íc ulo p a ra ro up a s, g e sto s e
re la ç õ e s so c ia is; p o rq ue vivo no Rio d e Ja ne iro e nã o e m No va Yo rk;
p o rq ue fa lo p o rtug uê s e nã o ing lê s; p o rq ue , o uvind o m úsic a p o p ula r,
se i d isting uir im e d ia ta m e nte um fre vo d e um sa m b a ; p o rq ue fute b o l
p a ra m im é um jo g o q ue se p ra tic a c o m o s p é s e nã o c o m a s m ã o s;
p o rq ue vo u à p ra ia p a ra ve r e c o nve rsa r c o m o s a m ig o s, ve r a s
m ulhe re s e to m a r so l, ja m a is p a ra p ra tic a r um e sp o rte ; p o rq ue se i q ue
no c a rna va l tra g o à to na m inha s fa nta sia s so c ia is e se xua is; p o rq ue se i
q ue nã o e xiste ja m a is um “ nã o ” d ia nte d e situa ç õ e s fo rm a is e q ue
to d a s a d m ite m um “ je itinho ” p e la re la ç ã o p e sso a l e p e la a m iza d e ;
p o rq ue e nte nd o q ue fic a r m a la nd ra m e nte “ e m c im a d o m uro ” é a lg o
ho ne sto , ne c e ssá rio e p rá tic o no c a so d o m e u siste m a ; p o rq ue
a c re d ito e m sa nto s c a tó lic o s e ta m b é m no s o rixá s a fric a no s; p o rq ue
se i q ue e xiste d e stino e , no e nta nto , te nho fé no e stud o , na instruç ã o
e no futuro d o Bra sil; p o rq ue so u le a l a m e us a m ig o s e na d a p o sso
ne g a r a m inha fa m ília ; p o rq ue , fina lm e nte , se i q ue te nho re la ç õ e s
p e sso a is q ue nã o m e d e ixa m c a m inha r so zinho ne ste m und o , c o m o
fa ze m o s m e us a m ig o s a m e ric a no s, q ue se m p re se vê e m e e xiste m
c o m o ind ivíd uo s!
Po is b e m : so m a nd o e sse s tra ç o s, fo rm a -se um a se q üê nc ia q ue
p e rm ite d ize r q ue m so u, e m c o ntra ste c o m o q ue se ria um a m e ric a no ,
a q ui d e finid o p e la s a usê nc ia s o u ne g a tiva s q ue a m e sm a lista
e fe tiva m e nte c o m p o rta . A c o nstruç ã o d e um a id e ntid a d e so c ia l,
e ntã o , c o m o a c o nstruç ã o d e um a so c ie d a d e , é fe ita d e a firm a tiva s e
d e ne g a tiva s d ia nte d e c e rta s q ue stõ e s. To m e um a lista d e tud o o
q ue vo c ê c o nsid e ra im p o rta nte — le is, id é ia s re la tiva s a fa m ília ,
c a sa m e nto e se xua lid a d e ; d inhe iro ; p o d e r p o lític o ; re lig iã o e
m o ra lid a d e ; a rte s; c o m id a e p ra ze r e m g e ra l — e c o m e la vo c ê
p o d e rá sa b e r q ue m é q ue m . Nã o é d e o utro m o d o q ue se re a liza m
a s p e sq uisa s a ntro p o ló g ic a s e so c io ló g ic a s. De sc o b rind o c o m o a s
p e sso a s se p o sic io na m e a tua liza m a s “ c o isa s” d e sta lista , vo c ê fa rá
um “ inve ntá rio ” d e id e ntid a d e s so c ia is e d e so c ie d a d e s. Isso lhe
p e rm itirá d e sc o b rir o e stilo e o “ je ito ” d e c a d a siste m a . O u, c o m o se
d iz e m ling ua g e m a ntro p o ló g ic a , a c ultura o u id e o lo g ia d e c a d a
so c ie d a d e . Po rq ue , p a ra m im , a p a la vra c ultura e xp rim e
p re c isa m e nte um e stilo , um m o d o e um je ito , re p ito , d e fa ze r c o isa s.
Ma s é p re c iso nã o e sq ue c e r q ue e ssa s e sc o lha s se g ue m um a
o rd e m . É c e rto q ue e u inve nte i um “ b ra sile iro ” e um “ a m e ric a no ” q ue
o a c o m p a nha va p o r c o ntra ste linha s a trá s, m a s q ue m m e g a ra nte
q ue a q uilo q ue d isse é c o nvinc e nte p a ra d e finir um b ra sile iro fo i a
p ró p ria so c ie d a d e b ra sile ira . O u se ja : q ua nd o e u d e fini o “ b ra sile iro ”
c o m o se nd o a m a nte d o fute b o l, d a m úsic a p o p ula r, d o c a rna va l, d a
c o m id a m istura d a , d o s a m ig o s e p a re nte s, d o s sa nto s e o rixá s e tc ,
use i um a fó rm ula q ue m e fo i fo rne c id a p e lo Bra sil. O q ue fa z um se r
hum a no re a liza r-se c o nc re ta m e nte c o mo b ra sile iro é a sua
d isp o nib ilid a d e d e se r a ssim . C a so e u fa la sse e m e le g â nc ia no ve stir e
no fa la r, no g o sto p e la s a rte s p lá stic a s, na visita siste m á tic a a m use us,
no a m o r p e la m úsic a c lá ssic a , na fa lta d e riso na s a ne d o ta s, no
ho rro r a o c a rna va l e a o fute b o l e tc , c e rta m e nte e sta ria d e finind o
o utro p o vo e o utro ho m e m . Isso ind ic a c la ra m e nte q ue é a so c ie d a d e
q ue no s d á a fó rm ula p e la q ua l tra ç a m o s e sse s p e rfis e c o m e la
fa ze m o s d e se nho s m a is o u m e no s e xa to s.
Tud o isso no s le va a d e sc o b rir q ue e xiste m d o is m o d o s b á sic o s
d e c o nstruir a id e ntid a d e b ra sile ira : o d e fa ze r o b ra sil, Bra sil...

Num d e le s, utiliza m o s dados p re c iso s: as e sta tístic a s


d e m o g rá fic a s e e c o nô m ic a s, o s d a d o s d o PIB, PNB e o s núm e ro s d a
re nd a p e r c a p ita e d a infla ç ã o , q ue se m p re no s a ssusta e a p a vo ra .
Fa la m o s ta m b é m dos dados re la tivo s ao siste m a p o lític o e
e d uc a c io na l d o p a ís, a p e na s p a ra c o nsta ta r q ue o Bra sil nã o é a q ue le
p a ís q ue g o sta ría m o s q ue fo sse . Essa c la ssific a ç ã o p e rm ite c o nstruir
um a id e ntid a d e so c ia l m o d e rna , de a c o rd o com o s c rité rio s
e sta b e le c id o s p e lo O c id e nte e uro p e u a p a rtir d a Re vo luç ã o Fra nc e sa
e d a Re vo luç ã o Ind ustria l. Aq ui, so m o s d e finid o s p o r m e io d e c rité rio s
“ o b je tivo s” , q ua ntita tivo s e c la ro s. Ê a ssim , sa b e m o s e d e sc o b rim o s
c o m surp re sa , q ue a lg um a s so c ie d a d e s se d e fine m . Re a lm e nte , a
Ing la te rra , a Fra nç a , a Ale m a nha e , so b re tud o , o s Esta d o s Unid o s sã o
q ua se e xc lusiva m e nte d e finid o s p o r m e io d e ste e ixo c la ssific a tó rio
q ue é , e le m e sm o , inve nç ã o sua . Ma s, no c a so d o Bra sil e d e o utra s
so c ie d a d e s, o p ro b le m a é q ue e xiste o utro m o d o d e c la ssific a ç ã o . A
id e ntid a d e se c o nstró i d up la m e nte . Po r m e io dos dados
q ua ntita tivo s, o nd e so m o s se m p re um a c o le tivid a d e q ue d e ixa a
d e se ja r; e p o r m e io d e d a d o s se nsíve is e q ua lita tivo s, o nd e no s
p o d e m o s ve r a nó s m e sm o s c o m o a lg o q ue va le a p e na . Aq ui, o q ue
fa z o b ra sil, Bra sil nã o é m a is a ve rg o nha d o re g im e o u a infla ç ã o
g a lo p a nte e “ se m ve rg o nha ” , m a s a c o m id a d e lic io sa , a m úsic a
e nvo lve nte , a sa ud a d e q ue hum a niza o te m p o e a m o rte , e o s a m ig o s
q ue p e rm ite m re sistir a tud o ...

É um a d e sc o b e rta im p o rta nte , c re io , d ize r q ue nó s te m o s d a d o


m uito m a is a te nç ã o a um só d e sse s e ixo s c la ssific a tó rio s, q ue re nd o
d isc utir o Bra sil a p e na s c o m o um a q ue stã o d e m o d e rnid a d e e d e
e c o no m ia e p o lític a ; o u, a o c o ntrá rio , re d uzind o sua re a lid a d e a
um p ro b le m a d e fa m ília , d e re la ç õ e s p e sso a is e d e c o rd ia lid a d e . Pa ra
m im , nã o se tra ta ne m d e um a c o isa ne m d e o utra , m a s d a s d ua s q ue
sã o d a d a s d e m o d o sim ultâ ne o e c o m p le xo . Ne ssa p e rsp e c tiva , q ue
é a d e ste p e q ue no livro , a c ha ve p a ra e nte nd e r a so c ie d a d e b ra sile ira
é um a c ha ve d up la . De um la d o , e la é m o d e rna e e le trô nic a , m a s d e
o utro é um a c ha ve a ntig a e tra b a lha d a p e lo s a no s. É típ ic a d e no sso
siste m a e ssa c a p a c id a d e d e m istura r e a c a sa la r a s c o isa s q ue te nho
d isc utid o no m e u tra b a lho c o m o um a a tivid a d e re la c io na l, d e lig a r
e d e sc o b rir um p o nto c e ntra l. C o nhe c e m o s e c o nvive m o s c o m sua s
m a nife sta ç õ e s p o lític a s (a ne g o c ia ç ã o e a c o nc ilia ç ã o ) e
e c o nô m ic a s (um a e c o no m ia q ue é e sta tiza nte e a o m e sm o te m p o
se g ue a s linha s m e stra s d o c a p ita lism o c lá ssic o ), m a s d e c e rto m o d o
nã o d isc utim o s a s sua s im p lic a ç õ e s so c io ló g ic a s m a is p ro fund a s. E,
p a ra m im , e ssa s im p lic a ç õ e s se e sc o nd e m ne sta lig a ç ã o — o u
c a p a c id a d e re la c io na l — d o a ntig o c o m o m o d e rno , q ue tip ific a e
sing ula riza a so c ie d a d e b ra sile ira . Assim , c o nfo rm e te nta re i m o stra r
na s p á g ina s q ue se g ue m — e c o m a a jud a d o ta le nto g rá fic o d e
Jim m y Sc o tt —, o q ue fa z o b ra sil, Bra sil é um a im e nsa , um a ine sg o tá ve l
c ria tivid a d e a c a sa la d o ra . Suste nto q ue , e nq ua nto nã o fo rm o s
c a p a ze s d e d isc e rnir e ssa s d ua s fa c e s d e um a m e sm a na ç ã o e
so c ie d a d e , e sta re m o s fa d a d o s a um jo g o c ujo re sulta d o já se sa b e d e
a nte m ã o . Po is, c o m o o c o rre c o m a s m o e d a s, o u te re m o s c o m o
jo g a d a um “ b ra sil” , p e q ue no e d e fa sa d o d a s p o tê nc ia s m und ia is,
Bra sil q ue no s le va a um a a uto fla g e la ç ã o d e sa nim a d o ra ; o u te re m o s
c o m o , jo g a d a o Bra sil d o s m ila g re s e d o s a uto rita rism o s p o lític o s e
e c o nô m ic o s, q ue p e rio d ic a m e nte e ntra numa c rise .
Se rá p re c iso , p o rta nto , d isc utir o Bra sil c o m o um a m o e d a . C o m o
a lg o q ue te m d o is la d o s. E m a is: c o m o um a re a lid a d e q ue no s te m
ilud id o , p re c isa m e nte p o rq ue nunc a lhe p ro p use m o s e sta q ue stã o
re la c io na l e re ve la d o ra : a fina l d e c o nta s, c o m o se lig a m a s d ua s
fa c e s d e um a m e sm a m o e d a ? O q ue fa z o b ra sil, Bra sil?
É o q ue ve re m o s a se g uir...
A casa, a rua e o trabalho
O b se rve -se um a c id a d e b ra sile ira . Ne la , há um nítid o m o vim e nto
ro tine iro . Do tra b a lho p a ra c a sa , d e c a sa p a ra o tra b a lho . A c a sa e a
rua inte ra g e m e se c o m p le m e nta m num c ic lo q ue é c um p rid o
d ia ria m e nte p o r ho m e ns e m ulhe re s, ve lho s e c ria nç a s. Pe lo s q ue
g a nha m ra zo a ve lm e nte e a té m e sm o p e lo s q ue g a nha m m uito b e m .
Uns fa ze m o p e rc urso c a sa -rua -c a sa a p é ; o utro s se g ue m d e
b ic ic le ta . Muito s a nd a m d e tre ns, ô nib us e a uto m ó ve is, m a s to d o s
fa ze m e re fa ze m e ssa via g e m q ue c o nstitui, d e c e rto m o d o , o
e sq ue le to d a no ssa ro tina d iá ria . Há um a d ivisã o c la ra e ntre d o is
e sp a ç o s so c ia is fund a m e nta is q ue d ivid e m a vid a so c ia l b ra sile ira : o
m und o d a c a sa e o m und o d a rua — o nd e e stã o , te o ric a m e nte , o
tra b a lho , o m o vim e nto , a surp re sa e a te nta ç ã o .
É c la ro q ue a rua se rve ta m b é m c o m o o e sp a ç o típ ic o d o la ze r.
Ma s e la , c o m o um c o nc e ito inc lusivo e b á sic o d a vid a so c ia l —
c o m o “ rua ” —, é o lug a r d o m o vim e nto , e m c o ntra ste c o m a c a lm a
e a tra nq üilid a d e d a c a sa , o la r e a m o ra d a .
De fa to , na c a sa o u e m c a sa , so m o s m e m b ro s d e um a fa m ília e
d e um g rup o fe c ha d o c o m fro nte ira s e lim ite s b e m -d e finid o s. Se u
núc le o é c o nstituíd o d e p e sso a s q ue p o ssue m a m e sm a sub stâ nc ia —
a m e sm a c a rne , o m e sm o sa ng ue e , c o nse q üe nte m e nte , a s m e sm a s
te nd ê nc ia s. Ta l sub stâ nc ia físic a se p ro je ta e m p ro p rie d a d e s e m uita s
o utra s c o isa s c o m uns. A id é ia d e um d e stino e m c o njunto e d e
o b je to s, re la ç õ e s, va lo re s (a s c ha m a d a s “ tra d iç õ e s d e fa m ília ” ) q ue
to d o s d o g rup o sa b e m q ue im p o rta re sg ua rd a r e p re se rva r. Disse q ue
isso se c ha m a va “ tra d iç ã o ” , e é a ssim q ue no rm a lm e nte fa la m o s
d e sse s sím b o lo s c o le tivo s q ue d isting ue m um a re sid ê nc ia , d a nd o -lhe
c e rto e stilo e c e rta m a ne ira d e se r e e sta r. Ma s ta is va lo re s p o d e m
ta m b é m se r c ha m a d o s d e “ ho nra ” e “ ve rg o nha ” , p o is a s fa m ília s
b e m -d e finid a s e c o m a lto se ntid o d e c a sa e g rup o sã o c o le tivid a d e s
q ue a tua m c o m um a p e rso na lid a d e c o le tiva b e m -d e finid a . De ta l
o rd e m q ue e la s sã o um a “ p e sso a m o ra l” , a lg o q ue a g e unitá ria e
c o rp o ra tiva m e nte , c o m o um ind ivíd uo e ntre o utro s. Da í a id é ia tã o
c o rre nte , m e sm o no no sso Bra sil urb a no e m o d e rno , d a p ro te ç ã o d a s
fro nte ira s d a c a sa , se ja d e sua s so le ira s m a te ria is (q ue m nã o e stá
p re o c up a d o c o m o fe c ha m e nto d e sua s p o rta s e ja ne la s to d a s a s
no ite s? ), se ja — p rinc ip a lm e nte — d e sua s e ntra d a s e sa íd a s m o ra is. Po r
tud o isso , o g rup o q ue o c up a um a c a sa te m a lto se ntid o d e d e fe sa
d e se us b e ns m ó ve is e im ó ve is, e , junto c o m isso , d a p ro te ç ã o d e
se us m e m b ro s m a is frá g e is, c o m o a s c ria nç a s, a s m ulhe re s e se us
se rvid o re s. Po is, d ife re nte m e nte d e o utro s p a íse s m o d e rno s, a q ui no
Bra sil a s c a sa s p o ssue m se rviç a is q ue , em c e rto se ntid o , lhe s
p e rte nc e m . E c uid a -se d e se u b e m -e sta r p o rq ue a id é ia d e re sid ê nc ia
é um fa to so c ia l to ta liza nte , c o nfo rm e d iria Má rc e l Ma uss. O u se ja :
q ua nd o fa la m o s d a “ c a sa ” , nã o e sta m o s no s re fe rind o sim p le sm e nte
a um lo c a l o nd e d o rm im o s, c o m e m o s o u q ue usa m o s p a ra e sta r
a b rig a d o s d o ve nto , d o frio o u d a c huva . Ma s — isto sim — e sta m o s no s
re fe rind o a um e sp a ç o p ro fund a m e nte to ta liza d o num a fo rte m o ra l.
Um a d im e nsã o d a vid a so c ia l p e rm e a d a d e va lo re s e d e re a lid a d e s
m últip la s. C o isa s q ue vê m d o p a ssa d o e o b je to s q ue e stã o no p re se nte ,
p e sso a s q ue e stã o sa ind o d e ste m und o e p e sso a s q ue a e le e stã o
c he g a nd o , g e nte q ue e stá re la c io na d a a o la r d e sd e m uito te m p o e
g e nte q ue se c o nhe c e d e a g o ra . Nã o se tra ta d e um lug a r físic o , m a s
d e um lug a r m o ra l: e sfe ra o nd e no s re a liza m o s b a sic a m e nte c o m o
se re s hum a no s q ue tê m um c o rp o físic o , e ta m b é m um a d im e nsã o
m o ra l e so c ia l. Assim , na c a sa , so m o s únic o s e insub stituíve is. Te m o s
um lug a r sing ula r num a te ia de re la ç õ e s m a rc a d a s p o r m uita s
d im e nsõ e s so c ia is im p o rta nte s, c o m o a d ivisã o d e se xo e d e id a d e .
Ma s se e m c a sa so m o s c la ssific a d o s p e la id a d e e p e lo se xo
c o m o , re sp e c tiva m e nte , m a is ve lho s o u m a is m o ç o s e c o m o ho m e ns
e m ulhe re s — e a q ui te m o s d im e nsõ e s so c ia is q ue sã o
p ro va ve lm e nte a s p rim e ira s q ue a p re nd e m o s na so c ie d a d e b ra sile ira
—, ne la so m o s ta m b é m d e te rm ina d o s p o r tud o o q ue a “ ho nra ” , a
“ ve rg o nha ” e o “ re sp e ito ” , e sse s va lo re s g rup a is, ac abam
d e te rm ina nd o . Q ue ro re fe rir-m e a o a m o r filia l e fa m ilia l q ue se d e ve
e ste nd e r p e lo s c o m p a d re s e p e lo s a m ig o s, p a ra q ue m a s p o rta s d e
no ssa s c a sa s e stã o se m p re a b e rta s e no ssa m e sa e stá se m p re p o sta e
fa rta .

A c o njunç ã o d e tud o isso fa z c o m q ue nó s, b ra sile iro s, te nha m o s


um a p e rc e p ç ã o d e no ssa s m o ra d a s c o m o lug a re s sing ula re s, e sp a ç o s
e xc lusivo s. Po is c a d a c a sa , e m b o ra te nha o s m e sm o s e sp a ç o s e
b a sic a m e nte o s m e sm o s o b je to s d e to d a s a s o utra s, é d ife re nte d e la s.
To d a s sã o únic a s, se nã o c o m o e sp a ç o físic o d e m o ra d a , p e lo m e no s
c o m o d o m ínio o nd e se re a liza um a c o nvivia lid a d e so c ia l p ro fund a .
Da í a p o ssib ilid a d e d e d ife re nc ia r p ro fund a m e nte a c a sa o u a m o ra d a
— o p ré d io — d o la r. Me sm o q ua nd o sã o re sid ê nc ia s b a ra ta s o u c a sa s
d e vila , c o nstruíd a s d e m o d o id ê ntic o , a lg o m a rc a e re ve la sua
id e ntid a d e e , c o m isso , a id e ntid a d e d o g rup o q ue a o c up a : um
p e d a ç o d e a zule jo e stra te g ic a m e nte c o lo c a d o p ró xim o d e um a
ja ne la ; um no m e sing e lo na p a rte d e c im a d a so le ira d a p o rta ; flo re s e
ja rd ins; a c o r d e sua s ja ne la s e p o rta s.
Po r se r um e sp a ç o a ssim inc lusivo e , sim ulta ne a m e nte , e xc lusivo ,
a c a sa p o d e te r ta m b é m se us a g re g a d o s. Pe sso a s q ue vive m no
d o m ic ílio , m a s q ue nã o sã o p a rte d a fa m ília . Um p a re nte q ue ve io d o
No rte e m b usc a d e m é d ic o o u se g ura nç a p sic o ló g ic a ; um a m ig o e m
d ific uld a d e fina nc e ira o u c rise m a trim o nia l; um ve lho e m p re g a d o q ue
nã o te m p a ra o nd e ir ne m lug a r p a ra fic a r; um c o m p a d re q ue p re c isa
d e e m p re g o e ne c e ssita fa la r c o m um a a uto rid a d e d a g ra nd e c id a d e ;
um a m ig o q ue p re c isa d e um sa ntuá rio p a ra e vita r a p risã o m o tiva d a
p o r id é ia s e c o nvic ç õ e s p o lític a s; um a m ulhe r q ue te m p o ra ria m e nte
fo g e d o p a i o u irm ã o p a ra a c e rta r d e finitiva m e nte sua no va filia ç ã o
so c ia l. Até m e sm o o s a nim a is d o m é stic o s p o d e m inc luir-se ne ssa
d e finiç ã o , p o is d e fa to p a rtic ip a m d o e sp a ç o p o sitivo d a re sid ê nc ia ,
a jud a nd o a c o nc e ituá -la d e m o d o so c ia lm e nte p o sitivo o u ne g a tivo .
Nã o é à to a q ue fa la m o s q ue no sso c a c ho rro é m a is m a nso e m a is
e sp e rto ; q ue no sso g a to te m o p ê lo m a is luzid io e a p re g uiç a m a is
b o nita e g o sto sa , e q ue no sso p a ssa rinho c a nta m a is b o nito e m a is
a lto ...
Tud o , a fina l d e c o nta s, q ue e stá no e sp a ç o d a no ssa c a sa é
b o m , é b e lo e é , so b re tud o , d e c e nte . Até m e sm o a s no ssa s p la nta s
sã o m a is viç o sa s q ue a s d o s vizinho s e a m ig o s. E c o m o nã o p o d e m o s,
p o r c a usa d e um a p ro ib iç ã o e xtre m a m e nte m o ra l (a q uilo q ue nó s,
a ntro p ó lo g o s, c ha m a m o s d e ta b u), c o m e r no sso s a nim a is d o m é stic o s
(no to q ue e ntre o s a ste c a s o s c ã e s e ra m c o m id o s e ve nd id o s no
m e rc a d o ), ne m no ssa s p la nta s c a se ira s, e le s c um p re m um a funç ã o
e strita m e nte sim b ó lic a . De fa to , sã o c ria d o s p a ra d ife re nc ia r e nã o
p a ra c um p rir q ua lq ue r funç ã o p rá tic a . Assim , sã o c o m o nó s e no s
a jud a m a e sta b e le c e r no ssa m a is p ro fund a id e ntid a d e so c ia l, c o m o
m e m b ro s ind ife re nc ia d o s d e um m und o a nô nim o e a sfa lta d o o nd e
ning ué m c o nhe c e ning ué m — e sse m und o te ne b ro so d a se lva d e
p e d ra ; e c o m o m e m b ro s d ife re nc ia d o s q ue re sid e m num a d a d a p a rte
d a c id a d e e q ue p o d e m tra nsfo rm a r e sse lo c a l o nd e m o ra m e m a lg o
únic o , e sp e c ia l, sing ula r e “ le g a l” . Tud o isso , re p ito , q ue nó s
d ife re nc ia m o s c o mo o e sp a ç o do la r. Alg o q ue c o ntra sta
te rrive lm e nte com a m o ra d a c o le tiva d a s p risõ e s, d o rm itó rio s,
a lo ja m e nto s e ho té is e m o té is, o nd e nã o se p o d e e fe tiva m e nte
p ro je ta r na s p a re d e s,, na s p o rta s, no c hã o e na s ja ne la s a no ssa
id e ntid a d e so c ia l.
C o m o e sp a ç o m o ra l im p o rta nte e d ife re nc ia d o , a c a sa se
e xp rim e num a re d e c o m p le xa e fa sc ina nte d e sím b o lo s q ue sã o
p a rte d a c o sm o lo g ia b ra sile ira , isto é , d e sua o rd e m m a is p ro fund a e
p e re ne . Assim , a c a sa d e m a rc a um e sp a ç o d e finitiva m e nte a m o ro so
o nd e a ha rm o nia d e ve re ina r so b re a c o nfusã o , a c o m p e tiç ã o e a
d e so rd e m . Em c a sa , sa b e m o s to d o s — c o m o b o ns b ra sile iro s q ue
so m o s —, nã o d e ve m o s c o m p ra r, ve nd e r o u tro c a r. O c o m é rc io e stá
e xc luíd o d a c a sa c o rno o Dia b o se e xc lui d o b o m De us. Do m e sm o
m o d o , a s d isc ussõ e s p o lític a s, q ue re ve la m e ind ic a m p o siç õ e s
ind ivid ua liza d a s e q ua se se m p re d isc o rd a nte s d o s m e m b ro s d e um a
fa m ília , e stã o b a nid a s d a m e sa e d a s sa la s íntim a s, so b re tud o d o s
q ua rto s. Se e la s sã o ine vitá ve is, tra nsc o rre m c e rta m e nte na s va ra nd a s
e q uinta is, lo c a is m a rg ina is d a c a sa , p o sto q ue situa d o s e ntre o se u
inte rio r (c ujo c a lo r re ve la a ig ua ld a d e d e sub stâ nc ia e d e o p iniõ e s d a s
p e sso a s q ue a li re sid e m ) e a rua : o m und o e xte rio r q ue se m e d e p e la
“ luta ” , p e la c o m p e tiç ã o e p e lo a no nim a to c rue l d e ind ivid ua lid a d e s
e ind ivid ua lism o s. Da i p o r q ue , e m c a sa e no c ó d ig o d a fa m ília
b ra sile ira , e xiste um a te nd ê nc ia d e p ro d uzir se m p re um d isc urso
c o nse rva d o r, o nd e o s va lo re s m o ra is tra d ic io na is sã o d e fe nd id o s p e lo s
m a is ve lho s e p e lo s ho m e ns. Da í ta m b é m p o r q ue na c a sa p o d e m o s
te r d e tud o , c o m o se a li o e sp a ç o fo sse m a rc a d o p o r um sup re m o
re c o nhe c im e nto p e sso a l: um a e sp é c ie de sup e rc id a d a nia q ue
c o ntra sta te rrive lm e nte c o m a a usê nc ia to ta l d e re c o nhe c im e nto q ue
e xiste na rua . Em c a sa , p o rta nto , te nho tud o e so u re c o nhe c id o no s
m e us m a is ínfim o s d e se jo s e vo nta d e s. So u m e m b ro p e rp é tuo d e um a
c o rp o ra ç ã o (a fa m ília b ra sile ira ) q ue nã o m o rre e q ue , c o m sua re d e
d e c o m p a d re s, e m p re g a d o s, se rvid o re s e a m ig o s, te m m uito m a is
vita lid a d e e p e rm a nê nc ia d o q ue o g o ve rno e a a d m inistra ç ã o
p úb lic a , q ue se m p re c o m p e te m c o m e la p e lo re sp e ito d o c id a d ã o .
Dig o q ue a c a sa , p o r tud o isso , p ro vê um a le itura e sp e c ia l d o m und o
b ra sile iro . É c e rto q ue to d a so c ie d a d e m o d e rna te m c a sa e rua . Ma s
o m e u a rg um e nto a q ui é no se ntid o d e sa lie nta r q ue a c a sa , e ntre nó s,
o rd e na um m und o à p a rte . Unive rso o nd e o te m p o nã o é histó ric o ,
m a s c íc lic o , te m p o q ue vive d e d ura ç õ e s q ue nã o se m e d e m p o r
re ló g io s, m a s p o r re tra to s a m a re la d o s e c o rro íd o s p e la s tra ç a s, c o m o
na q ue la p o e sia d e Drum m o nd . Um te m p o q ue é m e d id o p e la m o rte
d o s m a is ve lho s e p e lo b a tiza d o d o s m a is no vo s. Um te m p o c uja
d ura ç ã o e e xp e riê nc ia p o d e m se r re ve rtid a s p e la d o c e sa ud a d e d o s
d ia s e m q ue a fa m ília e sta va to d a re unid a e m to rno d e a lg um a fig ura
im p o rta nte p a ra a sua unid a d e e so b re vivê nc ia , e nq ua nto g rup o
uno e inte g ra d o . Q ue r d ize r, q ua nd o o b se rva m o s q ue a c a sa
c o nté m to d a s e ssa s d im e nsõ e s, te m o s q ue no s d a r c o nta d e q ue
vive m o s num a so c ie d a d e o nd e c a sa e rua sã o m a is q ue m e ro s
e sp a ç o s g e o g rá fic o s. Sã o m o d o s d e le r, e xp lic a r e fa la r d o m und o .
Ma s c o m o é o e sp a ç o d a rua ? Be m , já sa b e m o s q ue e la é lo c a l
d e “ m o vim e nto ” . C o m o um rio , a rua se m o ve se m p re num fluxo d e
p e sso a s ind ife re nc ia d a s e d e sc o nhe c id a s q ue nó s c ha m a m o s d e
“ p o vo ” e d e “ m a ssa ” . As p a la vra s sã o re ve la d o ra s. Em c a sa , te m o s a s
“ p e sso a s” , e to d o s lá sã o “ g e nte ” : “ no ssa g e nte ” . Ma s na rua te m o s
a p e na s g rup o s d e sa rtic ula d o s d e ind ivíd uo s — a “ m a ssa ” hum a na
q ue p o vo a a s no ssa s c id a d e s e q ue re m e te se m p re à e xp lo ra ç ã o e a
um a c o nc e p ç ã o d e c id a d a nia e d e tra b a lho q ue é nitid a m e nte
ne g a tiva . De fa to , fa la m o s d a “ rua ” c o m o um lug a r d e “ luta ” , d e
“ b a ta lha ” , e sp a ç o c uja c rue ld a d e se d á no fa to de c o ntra ria r
fro nta lm e nte to d a s a s no ssa s vo nta d e s. Da í p o r q ue d ize m o s q ue a rua
é e q uiva le nte à “ d ura re a lid a d e d a vid a ” . O flu xo d a vid a , c o m sua s
c o ntra d iç õ e s, d ure za s e surp re sa s, e stá c e rta m e nte na rua , o nd e o
te m p o é m e d id o p e lo re ló g io e a histó ria se fa z a c re sc e nta nd o
e ve nto a e ve nto num a c a d e ia c o m p le xa e infinita . Na rua , e ntã o , o
te m p o c o rre , vo a e p a ssa . Muito m a is q ue no la r, o nd e e le e stá
susp e nso e ntre a s re la ç õ e s p ra ze ro sa s e a m o ro sa s d e to d o s c o m to d o s.
Ma s a q ui, no ne g ro d o a sfa lto , no c a lo r d a c a m inha d a p a ra se c he g a r
a a lg um lug a r, no ne rvo sism o d o c o nfro nto c o m o p o lic ia l im b uíd o
de sua a uto rid a d e le g a l, q ue no s tra ta c o mo c o isa s e c o mo
ind ivíd uo s se m no m e ne m fa c e , o re ino é sinô nim o d e luta e sa ng ue .
Na rua nã o há , te o ric a m e nte , ne m a m o r, ne m c o nsid e ra ç ã o , ne m
re sp e ito , ne m a m iza d e . È lo c a l p e rig o so , c o nfo rm e a te sta o ritua l
a flitivo e c o m p le xo q ue re a liza m o s q ua nd o um filho no sso sa i so zinho ,
p e la p rim e ira ve z, p a ra ir a o c ine m a , a o b a ile o u à e sc o la . Q ue
inse g ura nç a no s p o ssui q ua nd o um p e d a ç o d e no sso sa ng ue e d e
no ssa c a sa va i a o e nc o ntro d e sse o c e a no d e m a ld a d e e inse g ura nç a
q ue é a rua b ra sile ira . Nã o é , p o is, a o lé u q ue d a m o s c o nse lho s
q ua nd o a lg ué m se a ve ntura ne sta se lva . Lá , fa la m o s se m p re , e no sso
p ró p rio c o m p o rta m e nto na rua a c a b a c o nfirm a nd o no ssa s p io re s e
m a is so m b ria s p ro fe c ia s, e sta m o s no re ino d o e ng a no , d a c o nfusã o e
do lo g ro . Lo c a l o nd e ning ué m no s re sp e ita c o mo “ g e nte ” ou
“ p e sso a ” , c o m o e ntid a d e m o ra l d o ta d a d e ro sto e vo nta d e . A rua
c o m p e nsa a c a sa e a c a sa e q uilib ra a rua . No Bra sil, c a sa e rua sã o
c o m o o s d o is la d o s d e um a m e sm a m o e d a . O q ue se p e rd e d e um
la d o , g a nha -se d o o utro O q ue é ne g a d o e m c a sa — c o m o o se xo e o
tra b a lho — , te m -se na rua . Nã o c re io se r ne c e ssá rio c ha m a r a a te nç ã o
p a ra o fa to sig nific a tivo d e q ue , e m no ssa c la ssific a ç ã o d e e ve nto s,
re la ç õ e s e p e sso a s, a c a sa e a rua e ntra m c o m o um e ixo d o s m a is
fund a m e nta is. Assim , se a m ulhe r é d a rua , e la d e ve se r vista e tra ta d a
d e um m o d o . Tra ta -se , p a ra se r m a is p re c iso , d a s c ha m a d a s m ulhe re s
d a “ vid a ” , p o is rua e vid a fo rm a m um a e q ua ç ã o im p o rta nte no no sso
siste m a d e va lo re s. Do m e sm o m o d o , se a d isc ussã o fo i na rua , e ntã o
é q ua se c e rto q ue p o d e d e g e ne ra r e m c o nflito . Em c a sa , p o d e
p ro m o ve r um a lto e nte nd im e nto . Ta m b é m fa la m o s q ue c o m id a d e
rua é ruim o u ve ne no sa , e nq ua nto a c o m id a c a se ira é b o a (o u d e ve
se r a ssim ) p o r d e finiç ã o . Até m e sm o o b je to s e p e sso a s, c o m o c ria nç a s,
p o d e m se r d ife re nte m e nte inte rp re ta d o s c a so se ja m d a rua o u d e
c a sa .
Po r tud o isso , o unive rso d a rua — ta l c o m o o c o rre c o m o
m und o d a c a sa — é m a is q ue um e sp a ç o físic o d e m a rc a d o e
unive rsa lm e nte re c o nhe c id o . Po is p a ra nó s, b ra sile iro s, a rua fo rm a
um a e sp é c ie d e p e rsp e c tiva p e la q ua l o m und o p o d e se r lid o e
inte rp re ta d o . Um a p e rsp e c tiva , re p ito , o p o sta — m a s c o m p le m e nta r
— à d a c a sa , e o nd e p re d o m ina m a d e sc o nfia nç a e a inse g ura nç a .
Aq ui, q ue m g o ve rna nã o é m a is o p a i, o irm ã o , o m a rid o , a m ulhe r e
a s re d e s d e p a re nte sc o e a m iza d e q ue no s tê m c o m o um a p e sso a e
um a m ig o . Ao c o ntrá rio , o c o m a nd o é d a d o à a uto rid a d e q ue
g o ve rna c o m a le i, a q ua l to rna to d o m und o ig ua l no p ro p ó sito d e
d e sa uto riza r e a té m e sm o e xp lo ra r d e fo rm a im p ie d o sa . To d o s
sa b e m o s, p o r e xp e riê nc ia re sp e itá ve l e p ro fund a , q ue na rua nã o se
d e ve b rinc a r c o m q ue m re p re se nta a o rd e m , p o is na q ue le e sp a ç o se
c o rre o g ra ve risc o d e se r c o nfund id o c o m q ue m é “ ning ué m ” . E
e ntre se r a lg ué m e se r ning ué m há um m und o no c a so b ra sile iro . Um
unive rso o u a b ism o q ue p a ssa p e la c o nstruç ã o d o e sp a ç o d a c a sa ,
c o m se u a c o nc he g o e sua re d e im p e ra tiva d e re la ç õ e s c a lo ro sa s, e o
e sp a ç o d a rua , c o m se u a no nim a to e sua inse g ura nç a , sua s le is e sua
p o líc ia . Da í p o r q ue , na rua , te nd e m o s a se r to d o s re vo luc io ná rio s e
re vo lta d o s, m e m b ro s d e stituíd o s d e um a m a ssa de a nô nim o s
tra b a lha d o re s.

Ma s, a lé m d isso tud o , a rua é e sp a ç o q ue p e rm ite a m e d ia ç ã o


p e lo tra b a lho — o fa m o so “ b a te nte ” , no m e já ind ic a tivo d e um
o b stá c ulo q ue te m o s q ue c ruza r, ultra p a ssa r o u tro p e ç a r. Tra b a lho
q ue no no sso siste m a é c o nc e b id o c o m o c a stig o . E o no m e d iz tud o ,
p o is a p a la vra d e riva d o la tim trip a lia re , q ue sig nific a c a stig a r c o m o
trip a liu, instrum e nto q ue , na Ro m a Antig a , e ra um o b je to d e to rtura ,
c o nsistind o num a e sp é c ie d e c a ng a usa d a p a ra sup lic ia r e sc ra vo s.
Entre a c a sa (o nd e nã o d e ve ha ve r tra b a lho e, c urio sa e
e rro ne a m e nte , nã o to m a m o s o tra b a lho d o m é stic o c o m o ta l, m a s
c o m o “ se rviç o ” o u a té m e sm o p ra ze r o u fa vo r...) e a rua , o tra b a lho
d uro é visto no Bra sil c o m o a lg o b íb lic o . Muito d ife re nte da
c o nc e p ç ã o a ng lo -sa xã q ue e q ua c io na tra b a lho ( wo rk) c o m a g ir e
fa ze r, d e a c o rd o c o m sua c o nc e p ç ã o o rig ina l. Entre nó s, p o ré m ,
p e rd ura a tra d iç ã o c a tó lic a ro m a na e nã o a tra d iç ã o re fo rm a d o ra
d e C a lvino , q ue tra nsfo rm o u o tra b a lho c o m o c a stig o num a a ç ã o
d e stina d a à sa lva ç ã o . Ma s nó s, b ra sile iro s, q ue nã o no s fo rm a m o s
ne ssa tra d iç ã o c a lvinista , a c ha m o s q ue o tra b a lho é um ho rro r. Nã o
é à to a q ue o no sso p a nte ã o d e he ró is o sc ila e ntre um a im a g e m
d e ific a d a d o m a la nd ro (a q ue le q ue vive na rua se m tra b a lha r e
g a nha o m á xim o c o m um m ínim o d e e sfo rç o ), o re nunc ia d o r o u o
sa nto (a q ue le q ue a b a nd o na o tra b a lho ne ste e d e ste m und o e va i
tra b a lha r p a ra o o utro , c o m o fa ze m o s sa nto s e líd e re s re lig io so s) e o
c a xia s, q ue ta lve z nã o se ja o tra b a lha d o r, m a s o c um p rid o r d e le is q ue
d e ve m o b rig a r o s o utro s a tra b a lha r... O fa to é q ue nã o te m o s a
g lo rific a ç ã o d o tra b a lha d o r, ne m a id é ia d e q ue a rua e o tra b a lho
sã o lo c a is o nd e se po de ho ne sta m e nte e nriq ue c e r e g a nha r
d ig nid a d e . Pa ra nó s, e sse s e sp a ç o s e e ssa m e d ia ç ã o e ntre c a sa e rua
p e lo tra b a lho sã o a lg o m uito c o m p le xo .

Ma s p o d e ria se r d e o utro je ito num a so c ie d a d e e m q ue a té


o utro d ia ha via e sc ra vo s e o nd e a s p e sso a s d e c e nte s nã o sa ía m à rua
ne m p o d ia m tra b a lha r c o m a s m ã o s? É c la ro q ue n ã o ... No no sso
siste m a , tã o fo rte m e nte m a rc a d o p e lo tra b a lho e sc ra vo , a s re la ç õ e s
e ntre p a trõ e s e e m p re g a d o s fic a ra m d e finitiva m e nte c o nfund id a s.
Nã o e ra a lg o a p e na s e c o nô m ic o , m a s ta m b é m um a re la ç ã o m o ra l
o nd e nã o só um tira va o tra b a lho do o utro , m a s e ra se u
re p re se nta nte e d o no p e ra nte a so c ie d a d e c o m o um to d o . O
p a trã o , num siste m a e sc ra vo c ra ta , é m a is q ue um e xp lo ra d o r d e
tra b a lho , se nd o d o no e a té m e sm o re sp o nsá ve l m o ra l p e lo e sc ra vo .
Essa s re la ç õ e s sã o c o m p lic a d a s e , d ize m o s e sp e c ia lista s, m uito
d ifíc e is d e se re m m a ntid a s e m níve l p ro d utivo . Po is a q ui a re la ç ã o va i
d o e c o nô m ic o a o m o ra l, to ta liza nd o -se e m m uita s d im e nsõ e s e
a ting ind o d ive rsa s c a m a d a s so c ia is. C re io q ue isso e m b e b e u d e ta l
m o d o a s no ssa s c o nc e p ç õ e s d e tra b a lho e sua s re la ç õ e s q ue a té ho je
m istura m o s um a re la ç ã o p ura m e nte e c o nô m ic a c o m la ç o s p e sso a is
d e sim p a tia e a m iza d e , o q ue c o nfund e o e m p re g a d o e p e rm ite a o
p a trã o e xe rc e r d up lo c o ntro le d a situa ç ã o . Ele a ssim p o d e g o ve rna r o
tra b a lho , p o is é q ue m o fe re c e o e m p re g o , e p o d e c o ntro la r a s
re ivind ic a ç õ e s d o s e m p re g a d o s, p o is a p e la p a ra a m o ra lid a d e d a s
re la ç õ e s p e sso a is q ue , e m m uito s c a so s, e so b re tud o na s p e q ue na s
e m p re sa s e no c o m é rc io , te nd e a o fusc a r a re la ç ã o p a trã o -
e m p re g a d o . O c a so m a is típ ic o e m a is c la ro d e ssa p ro b le m á tic a —
m uito c o m p le xa e a m e u ve r a ind a p o uc o e stud a d a — é o d a s
c ha m a d a s “ e m p re g a d a s d o m é stic a s” , a s q ua is sã o p e sso a s q ue ,
vive nd o na s c a sa s d o s se us p a trõ e s, re a liza m a q uilo q ue , e m c a sa ,
e stá b a nid o p o r d e finiç ã o : o tra b a lho . Ne ssa situa ç ã o , e la s re p e te m a
m e sm a situa ç ã o d o s e sc ra vo s d a c a sa d e a ntig a m e nte , p e rm itind o
c o nfund ir re la ç õ e s m o ra is d e intim id a d e e sim p a tia c o m um a re la ç ã o
p ura m e nte e c o nô m ic a , q ua se se m p re c ria nd o um c o njunto de
d ra m a s q ue e stã o a sso c ia d o s a e sse tip o d e re la ç ã o d e tra b a lho o nd e
o e c o nô m ic o e stá sub o rd ina d o a o p o lític o e a o m o ra l, o u ne le s
e m b e b id o . Ta l c o m o d e ve o c o rre r q ua nd o a c a sa se m istura c o m a
rua ...
O fa to , p o ré m , é q ue a c o nc e p ç ã o de tra b a lho fic a
c o nfund id a num siste m a o nd e a s m e d ia ç õ e s e ntre c a sa e rua sã o tã o
c o m p le xa s. E o nd e , c o m o vimo s, c a sa e rua sã o m a is q ue lo c a is físic o s.
Sã o ta m b é m e sp a ç o s d e o nd e se p o d e julg a r, c la ssific a r, m e d ir, a va lia r
e d e c id ir so b re a ç õ e s, p e sso a s, re la ç õ e s e im o ra lid a d e s.
C o m p e nsa nd o -se m utua m e nte e se nd o a m b a s c o m p le m e nta d a s
p e lo e sp a ç o d o “ o utro m und o ” , o nd e re sid e m d e use s e e sp írito s,
c a sa e rua fo rm a m o s e sp a ç o s b á sic o s a tra vé s d o s q ua is c irc ula m o s
na no ssa so c ia b ilid a d e . So b re tud o p o rq ue o q ue fa lta na rua e xiste e m
a b und â nc ia na c a sa . E a ind a p o rq ue e le s nã o p o d e m se r c o nfund id o s
so b p e na d e g ra nd e s c o nfusõ e s e d e so rd e ns.
A ilusão das
relações raciais
No sé c ulo XVIII, Anto nil p e rc e b e u a lg o inte re ssa nte num a
so c ie d a d e d ivid id a e ntre se nho re s e e sc ra vo s, e e sc re ve u: “ O Bra sil é
um infe rno p a ra o s ne g ro s, um p urg a tó rio p a ra o s b ra nc o s e um
p a ra íso p a ra o s m ula to s” . A fra se fo i, c o m o se m p re a c o nte c e c o m a s
c o isa s p ro fund a s q ue sã o fa la d a s c o m sim p lic id a d e , m a l e nte nd id a . É
q ue q ua se to d o s o s se us inté rp re te s vira m ne la um a a firm a tiva a o p é
d a le tra , a lg o q ue se re fe ria e xc lusiva m e nte a um fe nô m e no b io ló g ic o
e ra c ia l, q ua nd o d e fa to e la d iz m uito m a is d e fa to s so c io ló g ic o s
b á sic o s. Na ve rd a d e , p e nso q ue , c a so se q ue ira te r um a
c o m p re e nsã o m a is p ro fund a e o rig ina l d a s re la ç õ e s ra c ia is q ue
e xiste m no Bra sil, se rá ne c e ssá rio to m a r e ssa e xp re ssã o no s se us
se ntid o s ve la d o s, c o nsid e ra nd o to d a s a s sua s im p lic a ç õ e s m o ra is e
p o lític a s. E e la s, c o nfo rm e ve re m o s a se g uir, no s le va m m uito lo ng e d e
um a m e ra q ue stã o fisio ló g ic a d e ra ç a s.
Dig o q ue a fra se d e Anto nil te m um se ntid o so c io ló g ic o e
sim b ó lic o p ro fund o p o rq ue , no c o nte xto d a s te o ria s ra c ia is d o
m o m e nto , e la é no m ínim o c o ntra d itó ria . Re a lm e nte , nã o c usta
re le m b ra r q ue a s te o ria s ra c ista s e uro p é ia s e no rte -a m e ric a na s
nã o e ra m ta nto c o ntra o ne g ro ou o a m a re lo (o índ io ,
g e ne ric a m e nte fa la nd o , ta m b é m d isc rim ina d o c o m o infe rio r), q ue
e ra m nítid a e injusta m e nte infe rio riza d o s re la tiva m e nte a o b ra nc o ,
m a s q ue ta m b é m e ra m visto s c o m o d o no s d e p o uc a s q ua lid a d e s
p o sitiva s e nq ua nto “ ra ç a ” . O p ro b le m a m a io r d e ssa s d o utrina s, o
ho rro r q ue d e c la ra va m , e ra , isso sim , c o ntra a m istura ou
m isc ig e na ç ã o d a s “ ra ç a s” . É c e rto , d izia m e la s, q ue ha via um a
nítid a o rd e m na tura l q ue g ra d ua va , e sc a lo na va e hie ra rq uiza va a s
“ ra ç a s hum a na s” , c o nfo rm e o c o rria c o m a s e sp é c ie s d e a nim a is e a s
p la nta s; é c e rto ta m b é m , a firm a va m ta is te o ria s, q ue o b ra nc o se
situa va no a lto d a e sc a la , c o m o b ra nc o d a Euro p a O c id e nta l
a ssum ind o ind isc utíve l p o siç ã o d e lid e ra nç a na c ria ç ã o a nim a l e
hum a na d o p la ne ta . Ma s e ra ta m b é m se g uro q ue a m a re lo s e ne g ro s
tinha m q ua lid a d e s q ue a m istura d e ne g ria e le v a v a a o e xte rm ínio .
Sa b e r p o r q ue ta is te o ria s tinha m e sse ho rro r à m isc ig e na ç ã o é
c o nd uzir a c urio sid a d e inte le c tua l p a ra um d o s p o nto s-c ha ve s q ue
d isting ue m e e sc la re c e m o “ ra c ism o à e uro p é ia ” o u “ à a m e ric a na ” e
o no sso c o nhe c id o , d issim ula d o e d isse m ina d o “ ra c ism o à b ra sile ira ” .

To m e -se o e xe m p lo m a is fa m o so d e ssa s id é ia s, o C o nd e d e
G o b ine a u, q ue , inc lusive , re sid iu no Rio d e Ja ne iro c o m o c ô nsul d a
Fra nç a e se to rno u a m ig o e inte rlo c uto r inte le c tua l d e no sso
Im p e ra d o r, D. Pe d ro II. Ele d iz c la ra m e nte , num livro c é le b re p e la s
id é ia s ra c ista s e p e lo s e rro s no q ue d iz re sp e ito à Antro p o lo g ia d a s
d ife re nc ia ç õ e s hum a na s, q ue é p o ssíve l d ivid ir a s “ ra ç a s” d e a c o rd o
c o m trê s c rité rio s fund a m e nta is: o inte le c to , a s p ro p e nsõ e s a nim a is e
a s m a nife sta ç õ e s m o ra is. No c urso d e ssa o b ra , sig nific a tiva m e nte
intitula d a A d ive rsida de mo ra l e inte le c tua l da s ra ç a s (p ub lic a d a e m
1856), G o b ine a u, e ntre ta nto , nã o re a liza um e xe rc íc io sim p lista , no
se ntid o d e d ize r q ue a “ ra ç a ” b ra nc a e ra sup e rio r e m tud o . Há
m uita inte lig ê nc ia no s p re c o nc e ito s e no s a uto rita rism o s. Muito a o
c o ntrá rio , a o c o m p a ra r, p o r e xe m p lo , b ra nc o s e a m a re lo s no q ue d iz
re sp e ito à s sua s “ p ro p e nsõ e s a nim a is” , e le situa o s p rim e iro s a b a ixo
d o s se g und o s. Q ue m nã o se sa lva , p o ré m , c o m o infe lizm e nte
a c o nte c e a té ho je na no ssa so c ie d a d e , sã o o s ne g ro s, se m p re e e m
tud o situa d o s a b a ixo d e b ra nc o s e a m a re lo s.

Ma s o nd e G o b ine a u re a lm e nte e xc e d e u a si m e sm o e o uso u


c o m c o nfia nç a inusita d a , m e sm o p a ra q ue m e sta va im b uíd o d e um a
id e o lo g ia a uto ritá ria d e sua p ró p ria sup e rio rid a d e , fo i na p re visã o d e
q ue o Bra sil le va ria m e no s d e 200 a no s p a ra se a c a b a r c o m o p o vo ! Po r
q uê ? O ra , sim p le sm e nte p o rq ue e le via c o m se us p ró p rio s o lho s, e
e sc re via re vo lta d o a se us a m ig o s fra nc e se s, o q ua nto a no ssa
so c ie d a d e p e rm itia a m istura insa na d e ra ç a s. Essa m isc ig e na ç ã o e
e sse a c a sa la m e nto é q ue o c e rtific a va m d o no sso fim c o m o p o vo e
c o m o p ro c e sso b io ló g ic o . Se u p ro b le m a , c o nfo rm e e sto u re ve la nd o ,
nã o e ra a e xistê nc ia d e ra ç a s d ife re nte s, d e sd e q ue e ssa s “ ra ç a s”
o b via m e nte fic a sse m no se u lug a r e na tura lm e nte nã o se
m istura sse m . G o b ine a u, c o m o se vê , fo i o p a i, o u m e lho r, o
ve rd a d e iro g e nito r d e um d o s va lo re s m a is c a ro s a o p re c o nc e ito
ra c ia l d e q ua lq ue r so c ie d a d e hie ra rq uiza d a . Re firo -m e a o fa to d e
q ue e le nã o se c o lo c o u c o ntra a hie ra rq uia q ue g o ve rna va ,
c o nfo rm e sup unha , a d ive rsid a d e hum a na no q ue d iz re sp e ito a o s
se us tra ç o s b io ló g ic o s, m a s fo i te rm ina nte m e nte c o ntrá rio a o c o nta to
so c ia l íntim o e ntre e la s. E é p re c isa m e nte isso , c o nfo rm e sa b e (m a s
nã o e xp re ssa ) to d o ra c ista , q ue im p lic a a id é ia d e m isc ig e na ç ã o , já
q ue e la im p o rta c o nta to (e c o nta to íntim o , p o sto q ue se xua l) e ntre
p e sso a s q ue , na te o ria ra c ista , sã o vista s e c la ssific a d a s c o m o
p e rte nc e nd o a e sp é c ie s d ife re nte s. Da í a p a la vra “ m ula to ” , q ue ve m
d e mulo , o a nim a l a m b íg uo e híb rid o p o r e xc e lê nc ia ; a q ue le q ue é
inc a p a z d e re p ro d uzir-se e nq ua nto ta l, p o is é o re sulta d o d e um
c ruza m e nto e ntre tip o s g e né tic o s a lta m e nte d ife re nc ia d o s.
Ma s, no se u ho rro r a o mula tismo e ao c o nta to íntim o e
a m o ro so e ntre o s tip o s hum a no s, G o b ine a u nã o e sta va só . O utro s
te ó ric o s im p o rta nte s, c o m o Buc kle , C o uty e Ag a ssiz — p a ra fic a rm o s
c o m a q ue le s q ue fo ra m influe nte s e ntre o s te ó ric o s d o ra c ism o no
Bra sil —, ta m b é m e xp rim ira m e sse m e d o d a m istura e tra ta ra m a
no ssa p o p ula ç ã o c o m o um to d o p o te nc ia lm e nte d e g e ne ra d o d e
híb rid o s inc a p a ze s d e c ria re m a lg um a c o isa fo rte o u p o sitiva . Ne sse
c o nte xto , va le a p e na c ita r um tre c ho e sc rito p o r Ag a ssiz, o p ina nd o
p re c isa m e nte so b re a no ssa so c ie d a d e : “ Q ue q ua lq ue r um q ue
d uvid a d o s m a le s d e ssa m istura d e ra ç a s, e se inc lina , p o r m a l-
e nte nd id a fila ntro p ia , a b o ta r a b a ixo to d a s a s b a rre ira s q ue a s
se p a ra m , ve nha ao Bra sil. Nã o p o d e rá ne g a r a d e te rio ra ç ã o
d e c o rre nte d o a m á lg a m a d e ra ç a s, m a is g e ra l a q ui d o q ue e m
q ua lq ue r o utro p a ís d o m und o , e q ue va i a p a g a nd o ra p id a m e nte a s
m e lho re s q ua lid a d e s d o b ra nc o , d o ne g ro e d o índ io , d e ixa nd o um
tip o ind e finid o , híb rid o , d e fic ie nte e m e ne rg ia físic a e m e nta l.” O
c é le b re zo ó lo g o d e Ha rva rd fe c ha c o m G o b ine a u, p o stula nd o um
futuro te rríve l p a ra o Bra sil. Ê q ue c e rta m e nte nã o ha via d e sc o b e rto o
va lo r p o sitivo d o mula tismo e , so b re tud o , a c a p a c id a d e b ra sile ira d e
re c up e ra r e tra b a lha r o a m b íg uo c o mo dado p o sitivo , na
g lo rific a ç ã o d a mula ta e d o me stiç o c o m o se nd o , no fund o , um a
sínte se p e rfe ita d o m e lho r q ue p o d e e xistir no ne g ro , no b ra nc o e no
índ io . E a g o ra , sup o nho , e sta m o s e m p o siç ã o p a ra re to rna rm o s à
fra se no tá ve l d e Anto nil a fim d e e nte nd ê -la e m to d a a sua
p ro fund id a d e .
No to , p rim e ira m e nte , q ue Anto nil nã o fa la d e b ra nc o , ne g ro e
m ula to num a e q ua ç ã o b io ló g ic a . Ao c o ntrá rio , c o m e le s c o nstró i
um a a sso c ia ç ã o so c ia l o u no rm a l, p o is q ue re la c io na o b ra nc o c o m o
p urg a tó rio , o ne g ro c o m o infe rno e o m ula to c o m o p a ra íso . C re io se r
a p rim e ira ve z q ue se e sta b e le c e um triâ ng ulo p a ra o e nte nd im e nto
d a so c ie d a d e b ra sile ira e isso , suste nto , é sig nific a tivo e im p o rta nte .
Sig nific a tivo p o rq ue e u m e sm o te nho re p e tid o se g uid a m e nte q ue o
Bra sil nã o é um p a ís d ua l o nd e se o p e ra so m e nte c o m um a ló g ic a d o
d e ntro o u fo ra ; d o c e rto o u e rra d o ; d o ho m e m o u m ulhe r; d o
c a sa d o o u se p a ra d o ; d e De us o u Dia b o ; d o p re to o u b ra nc o . Ao
c o ntrá rio , no c a so d e no ssa so c ie d a d e , a d ific uld a d e p a re c e se r
justa m e nte a d e a p lic a r e sse d ua lism o d e c a rá te r e xc lusivo ; o u se ja ,
um a o p o siç ã o q ue d e te rm ina a inc lusã o d e um te rm o e a a uto m á tic a
e xc lusã o d o o utro , c o m o é c o m um no ra c ism o a m e ric a no o u sul-
a fric a no , q ue nó s b ra sile iro s c o nsid e ra m o s b ruta l p o rq ue no no sso
c a so tud o se p a ssa c o nfo rm e Anto nil m a ra vilho sa m e nte intuiu. Isto é ,
e ntre o p re to e o b ra nc o (q ue no s siste m a s a ng lo -sa xã o e sul-a fric a no
sã o te rm o s e xc lusivo s), nó s te m o s um c o njunto infinito e va ria d o d e
c a te g o ria s inte rm e d iá ria s em q ue o mula to re p re se nta um a
c rista liza ç ã o p e rfe ita .
De mo d o p le na m e nte c o e re nte com e ssa o rd e na ç ã o
hie ra rq uiza d a d a s c a te g o ria s d ife re nc ia is d o g ê ne ro hum a no , Anto nil
a s e q ua c io na sim ulta ne a m e nte a trê s e sp a ç o s sa g ra d o s, c rític o s na
c o sm o lo g ia c a tó lic a ro m a na : o p a ra íso , o infe rno e o p urg a tó rio .
Nã o se rá p re c iso no ta r q ue a c o rre la ç ã o a q ui é ig ua lm e nte
p e rfe ita . Se o m ula to é um se r inte rm e d iá rio e a m b íg uo , um a e sp é c ie
d e Do na Flo r d a s re la ç õ e s ra c ia is b ra sile ira s, c a te g o ria q ue e xiste d e
fa to e d e d ire ito na id e o lo g ia so c ia l d a so c ie d a d e e se le g itim a
p re c isa m e nte p o r instituir o inte rm e d iá rio e a sínte se d o s o p o sto s c o m o
a lg o p o sitivo , sua a sso c ia ç ã o c o m o Pa ra íso no s a jud a a e nte nd e r a
g e nia l se nsib ilid a d e d e Anto nil p a ra o s va lo re s m a is p ro fund o s d a
no ssa so c ie d a d e . Po rq ue nã o há d úvid a a lg um a d e q ue e le p e rc e b e u
o va lo r p o sitivo q ue a sso c ia m o s a o inte rm e d iá rio , a c a te g o ria q ue
fic a no m e io , a o se r situa d o e ntre o s e xtre m o s e q ue , p o r isso m e sm o ,
p e rm ite a sua a sso c ia ç ã o e a ne g a ç ã o de sua s te nd ê nc ia s e
c a ra c te rístic a s a nta g ô nic a s. Q ue m inve nto u, o u m e lho r, p e rc e b e u a
p o sitivid a d e d a m ula ta , d a m ula ta ria e d a s c a te g o ria s inte rm e d iá ria s
e m g e ra l fo i um je suíta q ue , m uito a c e rta d a m e nte , e q ua c io no u e sse
va lo r a lta m e nte p o sitivo , a trib uíd o a ta l c a te g o ria na no ssa
so c ie d a d e , a o p ró p rio Pa ra íso .
Ta l a sso c ia ç ã o p e rm ite d ize r q ue , no Bra sil, a o c o ntrá rio d o q ue
a c o nte c e u e m o utro s p a íse s — e e u p e nso a q ui, so b re tud o , no s
Esta d o s Unid o s —, nã o fic a m o s c o m um a c la ssific a ç ã o ra c ia l
fo rm a liza d a e m p re to e b ra nc o (o u ta lve z, m a is p re c isa m e nte , e m
p re to o u b ra nc o ), c o m a q ue le s c o nhe c id o s re fina m e nto s id e o ló g ic o s
q ue , na le g isla ç ã o no rte -a m e ric a na , e ra m p ró d ig o s e m d e sc o b rir
p o rç õ e s ínfim a s d a q uilo q ue a le i c ha m a va d e “ sa ng ue ne g ro ” na s
ve ia s d e p e sso a s d e c o r b ra nc a , q ue a ssim p a ssa va m a se r
c o nsid e ra d a s p re ta s, m e sm o q ue sua fe no tip ia (o u a p a rê nc ia e xte rna )
fo sse inc o nfund ive lm e nte “ b ra nc a ” . Tra ta -se , c o nfo rm e já a p o nto u
um so c ió lo g o b ra sile iro , O ra c y No g ue ira , d e um tip o d e p re c o nc e ito
ra c ia l q ue c o nsid e ra b á sic a s a s “ o rig e ns” d a s p e sso a s, e nã o
so m e nte a “ m a rc a ” d o tip o ra c ia l, c o m o o c o rre no c a so b ra sile iro .
De sse m o d o , o no sso p re c o nc e ito se ria m uito m a is c o nte xtua liza d o e
so fistic a d o d o q ue o no rte -a m e ric a no , q ue é d ire to e fo rm a l. A
c o nse q üê nc ia d isso , sa b e m o s b e m , é a d ific uld a d e d e c o m b a te r o
no sso p re c o nc e ito , q ue e m c e rto se ntid o te m , p e lo fa to d e se r
va riá ve l, e no rm e e va nta jo sa invisib ilid a d e . Na re a lid a d e , a c a b a m o s
p o r d e se nvo lve r o p re c o nc e ito d e te r p re c o nc e ito , c o nfo rm e d isse
Flo re sta n Fe rna nd e s num a fra se la p id a r.

O fa to d e e xistir um a le g isla ç ã o ríg id a , ra c ista e d ua lístic a no s


Esta d o s Unid o s — um c o njunto d e le is q ue a té b e m p o uc o te m p o
im p e d ia m o m o vim e nto d e q ue m e ra c o nsid e ra d o ne g ro e m c e rta s
á re a s urb a na s, e sc o la s, re sta ura nte s, ho té is, b a re s e m uita s o utra s
instituiç õ e s so c ia is — re ve la e sse d ua lism o c la ro q ue ind ic a se m
m a io re s e m b a ra ç o s q ue m e stá d e ntro o u fo ra ; q ue m te m d ire ito s e
q ue m nã o te m ; q ue m é b ra nc o o u é p re to ! Ma s a q ui, c o nfo rm e
sa b e m o s, há um a ra d ic a i e xc lusã o de to d a s as c a te g o ria s
inte rm e d iá ria s, q ue sã o a b so rvid a s, c o m to d o s o s risc o s e p e na lid a d e s,
à s d ua s c a te g o ria s p rinc ip a is, e m fra nc a o p o siç ã o e e m a b e rta
d istinç ã o Aq ui, o m ula to nã o e stá no p a ra íso d e Anto nil, m a s no
infe rno . E o s m o tivo s d e ssa e q ua ç ã o sã o e xa ta m e nte o p o sto s. É q ue
num a so c ie d a d e ig ua litá ria e p ro te sta nte , c o m o sã o o s Esta d o s
Unid o s, o inte rm e d iá rio re p re se nta tud o o q ue d e ve se r e xc luíd o d a
re a lid a d e so c ia l. De ntro d e um a so c ie d a d e q ue te nto u e lim ina r a
tra d iç ã o im e m o ria l d a s le is im p líc ita s, a q ue la s q ue p o d ia m se r
a p lic a d a s o u nã o , q ue p o d ia m se r le m b ra d a s o u nã o , q ue p o d ia m
va ria r d e a c o rd o c o m q ue m p ra tic a va o c rim e o u nã o , o m ula to , o
inte rm e d iá rio , re p re se nta va a ne g a ç ã o viva d e tud o a q uilo q ue a le i
e sta b e le c ia p o sitiva m e nte . Ele m o stra va o p e c a d o e o p e rig o d a
intim id a d e e ntre c a ma d a s so c ia is q ue d e ve ria m p e rm a ne c e r
d ife re nc ia d a s, m e sm o q ue fo sse m te o ric a m e nte c o nsid e ra d a s ig ua is.
Alé m d isso , e le ind ic a va a p re se nç a o b je tiva d e um a re la ç ã o e ntre
c a m a d a s q ue nã o p o d ia m c o m unic a r-se se xua l o u a fe tiva m e nte .
Do m e sm o m o d o q ue a s le is d e um a so c ie d a d e ig ua litá ria e lib e ra l
nã o a d m ite m o “ je itinho ” o u o “ m a is-o u-m e no s” , a s re la ç õ e s e ntre
g rup o s so c ia is nã o p o d e m a d m itir a inte rm e d ia ç ã o . E o m ula to é
p re c isa m e nte e ssa p o ssib ilid a d e q ue , ne sse s siste m a s, é d e finid a
c o m o im o ra lid a d e . Lá , e ntã o , d ife re nte m e nte d a q ui, o ne g a tivo é
a q ue le q ue e stá e ntre a s c o isa s e a s p e sso a s. O q ue se b usc a e lim ina r
é a re la ç ã o , p o is a ê nfa se d a id e o lo g ia so c ia l e d o s va lo re s é se m p re
no p a p e l d o ind ivíd uo c o m o o c e ntro e a ra zã o d e se r d a so c ie d a d e .
A ig ua ld a d e juríd ic a e c o nstituc io na l d o s m e m b ro s d a so c ie d a d e
a m e ric a na fo rm a um a p o d e ro sa tra d iç ã o q ue c he g o u à q ue le p a ís
c o m o s Purita no s ing le se s e se c o nso lid o u na s d o utrina s lib e ra is q ue
m a rc a ra m o na sc im e nto e a e xp a nsã o d a so c ie d a d e a m e ric a na
c o m o na ç ã o . Ne sse siste m a d e ind ivíd uo s te o ric a m e nte “ ig ua is” , a
e xp e riê nc ia d a e sc ra vid ã o e d a s hie ra rq uia s q ue e la c e rta m e nte
d e te rm ina p o r sua p ró p ria na ture za e nq ua nto siste m a — p o is há
e sc ra vo s d a c a sa e d o e ito , e sc ra vo s e d uc a d o s e se m instruç ã o ,
e sc ra vo s q ue fic a m m a is p e rto o u m a is lo ng e d o s se us se nho re s, e isso
e ng e nd ra um a g ra d a ç ã o q ue a tua de mo d o info rm a l,
c o ntra b a la nç a nd o a rig id e z d a s c a te g o ria s juríd ic a s q ue tud o
se p a ra m e ntre se nho r e e sc ra vo — fo i c e rta m e nte m uito m a is
p ro b le m á tic a d o q ue no c a so d o Bra sil.
Po rq uê ?
Prim e iro , c o nfo rm e e sto u re ve la nd o , p e la e xistê nc ia da
tra d iç ã o ig ua litá ria , q ue no unive rso so c ia l a ng lo -sa xã o e ra m uito
m a is fo rte q ue e m Po rtug a l o u no Bra sil. No to q ue fo i a Ing la te rra q ue
deu fo rm a m o d e rna à id é ia e c o nô m ic a de m e rc a d o e de
c a p ita lism o . E c o m isso ve io a p rá tic a d e e q ua c io na r to d o s c o m o
ig ua is p e ra nte a s le is. Fo i a li ta m b é m q ue va ria nte s ra d ic a is d o
p ro te sta ntism o — c o m o o p urita nism o e o c a lvinism o — g a nha ra m
a m p lo te rre no . Isso tud o c o nd uziu a um ind ivid ua lism o ra d ic a l —
“ p o sse ssivo ” , no d ize r d e um te ó ric o d e ssa s q ue stõ e s, o c ie ntista
p o lític o C . B. Ma c p he rso n. Ta l id e o lo g ia so c ia l ne g a a s re la ç õ e s
so c ia is e , c o m isso , a p re se nç a d a s re d e s im p e ra tiva s d e a m iza d e e d e
p a re nte sc o q ue suste nta va m a c ha m a d a m o ra l tra d ic io na l; o u se ja :
a q ue la m o ra lid a d e q ue a firm a a im p o rtâ nc ia do to d o (o u d a
so c ie d a d e ) so b re o ind ivíd uo . De ntro d e la , a p e sso a é im p o rta nte
p o rq ue p e rte nc e a um a fa m ília e te m c o m p a d re s e a m ig o s. È a
re la ç ã o q ue a jud a a d e fini-la c o m o se r hum a no e c o m o e ntid a d e
so c ia l sig nific a tiva . Na m o ra lid a d e ind ivid ua lista m o d e rna , p o ré m ,
ina ug ura d a c o m a Re fo rm a e c o m a Re vo luç ã o Ind ustria l, a fa m ília e a
so c ie d a d e é q ue e ra m c o nstituíd a s d e ind ivíd uo s, ta l c o m o o s c lub e s,
a s p a ró q uia s e o s p a rtid o s p o lític o s. Aq ui, o ind ivíd uo nã o é
p o ssuíd o (o u e ng lo b a d o ) p o r sua fa m ília o u p o r se us p a is, c o nfe sso re s
o u p a trõ e s. Ao c o ntrá rio , é d o no de si m e sm o e po de, em
c o nse q üê nc ia , d isp o r d e sua fo rç a d e tra b a lho ind ivid ua lm e nte num
m e rc a d o de ho m e ns livre s, m e rc a d o e sse q ue d e svinc ula
m o ra lm e nte q ue m o fe re c e d e q ue m fa z o tra b a lho .
Po is b e m , to d o s e sse s fa to re s to rna va m d ifíc il a c o nvivê nc ia d a
e sc ra vid ã o c o m e ssa id e o lo g ia q ue , no c a so d o s Esta d o s Unid o s, é
d o m ina nte . É c e rta m e nte isso q ue e xp lic a a lo c a liza ç ã o g e o g rá fic a
d a e c o no m ia e sc ra vo c ra ta no s Esta d o s d o Sul. De fa to , a té o
a d ve nto d a G ue rra C ivil (q ue c o m e ç a e m 1861 e va i a té 1865,
fa ze nd o m a is d e 617 m il m o rte s), o s Esta d o s Unid o s sã o c o m o se
fo sse m d ua s so c ie d a d e s d istinta s em p o lític a , e c o no m ia e,
so b re tud o , id e o lo g ia e va lo re s. Há um No rte ig ua litá rio e
ind ivid ua lista , q ue nã o pode a d m itir a e sc ra vid ã o ; e um Sul
hie ra rq uiza d o , a risto c rá tic o e re la c io na l, o nd e e xiste um a so c ie d a d e
c he ia d e nua nc e s, p a re c id o nisso tud o c o m o Bra sil. A d ife re nç a é
q ue , no s Esta d o s Unid o s, o Sul p e rd e u e o No rte e sta b e le c e u p o r to d o
o p a ís sua he g e m o nia m o ra l e p o lític a . A c o ntra d iç ã o g e ra d a p e lo
ne g ro livre num a so c ie d a d e q ue p re g a va um a ig ua ld a d e d e to d o s
c o m to d o s fo i o p re c o nc e ito ra c ia l ra d ic a l, suste nta d o nã o so m e nte
p o r c o stum e s e a titud e s ve la d a s e m uita s ve ze s se c re ta s d e b ra nc o s o u
d e m ula to s, m a s p o r um a sé rie d e le is q ue e xp lic ita m e nte im p e d ia m a
c o m p e tiç ã o e c o nô m ic a d e ne g ro s e b ra nc o s c o m o ig ua is num
m e rc a d o d e tra b a lha d o re s livre s.
Tud o isso no s c o nd uz a a lg um a s c o rre la ç õ e s inte re ssa nte s q ue
p e rm ite m e luc id a r o c a so d o “ ra c ism o à b ra sile ira ” e d o no sso
fa m o so triâ ng ulo ra c ia l. É q ue p rim e ira m e nte d e ve m o s re ssa lta r c o m o
a s so c ie d a d e s ig ua litá ria s e ng e nd ra ra m fo rm a s d e p re c o nc e ito m uito
c la ra s, p o rq ue sua id e o lo g ia ne g a va o inte rm e d iá rio , a g ra d a ç ã o e a
re la ç ã o e ntre g rup o s q ue d e ve ria m p e rm a ne c e r se p a ra d o s, e m b o ra
p ud e sse m se r c o nsid e ra d o s te o ric a m e nte ig ua is. Ta l fa to nã o e xistiu na
so c ie d a d e b ra sile ira e a té ho je te m d é b il a c e ita ç ã o so c ia l. Re a lm e nte ,
e sto u c o nve nc id o d e q ue a so c ie d a d e b ra sile ira a ind a nã o se viu
c o m o siste m a a lta m e nte hie ra rq uiza d o , o nd e a p o siç ã o d e ne g ro s,
índ io s e b ra nc o s e stá a ind a tra g ic a m e nte de a c o rd o com a
hie ra rq uia d a s ra ç a s. Num a so c ie d a d e o nd e nã o há ig ua ld a d e e ntre
a s p e sso a s, o p re c o nc e ito ve la d o é fo rm a m uito m a is e fic ie nte d e
d isc rim ina r p e sso a s d e c o r, d e sd e q ue e la s fiq ue m no se u lug a r e
“ sa ib a m ” q ua l é e le .

Fina lm e nte , a o la d o d isso , te m o s um “ triâ ng ulo ra c ia l” q ue


im p e d e um a visã o histó ric a e so c ia l d a no ssa fo rm a ç ã o c o mo
so c ie d a d e . É q ue , q ua nd o a c re d ita m o s q ue o Bra sil fo i fe ito d e
ne g ro s, b ra nc o s e índ io s, e sta m o s a c e ita nd o se m m uita c rític a a
id é ia d e q ue e sse s c o nting e nte s hum a no s se e nc o ntra ra m d e m o d o
e sp o ntâ ne o , num a e sp é c ie d e c a rna va l so c ia l e b io ló g ic o . Ma s na d a
d isso é ve rd a d e . O fa to c o ntund e nte d e no ssa histó ria é q ue so m o s
um p a ís fe ito p o r p o rtug ue se s b ra nc o s e a risto c rá tic o s, um a
so c ie d a d e hie ra rq uiza d a e q ue fo i fo rm a d a d e ntro d e um q ua d ro
ríg id o d e va lo re s d isc rim ina tó rio s. O s p o rtug ue se s já tinha m um a
le g isla ç ã o d isc rim ina tó ria c o ntra jud e us, m o uro s e ne g ro s, m uito a nte s
d e te re m c he g a d o a o Bra sil; e q ua nd o a q ui c he g a ra m a p e na s
a m p lia ra m e ssa s fo rm a s d e p re c o nc e ito . A m istura d e ra ç a s fo i um
m o d o d e e sc o nd e r a p ro fund a injustiç a so c ia l c o ntra ne g ro s, índ io s e
m ula to s, p o is, situa nd o no b io ló g ic o um a q ue stã o p ro fund a m e nte
so c ia l, e c o nô m ic a e p o lític a , d e ixa va -se d e la d o a p ro b le m á tic a
m a is b á sic a d a so c ie d a d e . De fa to , é m a is fá c il d ize r q ue o Bra sil fo i
fo rm a d o p o r um triâ ng ulo d e ra ç a s, o q ue no s c o nd uz a o m ito d a
d e m o c ra c ia ra c ia l, d o q ue a ssum ir q ue so m o s um a so c ie d a d e
hie ra rq uiza d a , q ue o p e ra p o r m e io d e g ra d a ç õ e s e q ue , p o r isso
m e sm o , p o d e a d m itir, e ntre o b ra nc o sup e rio r e o ne g ro p o b re e
infe rio r, um a sé rie d e c rité rio s d e c la ssific a ç ã o . Assim , p o d e m o s situa r
a s p e sso a s p e la c o r d a p e le o u p e lo d inhe iro . Pe lo p o d e r q ue d e tê m
o u p e la fe iúra d e se us ro sto s. Pe lo s se us p a is e no m e d e fa m ília , o u
p o r sua c o nta b a nc á ria . As p o ssib ilid a d e s sã o ilim ita d a s, e isso a p e na s
no s d iz d e um siste m a c o m e no rm e e a té a g o ra ina b a lá ve l c o nfia nç a
no c re d o se g und o o q ua l, d e ntro d e le , “ c a d a um sa b e m uito b e m o
se u lug a r” .

É c la ro q ue p o d e m o s te r um a d e m o c ra c ia ra c ia l no Bra sil. Ma s
e la , c o nfo rm e sa b e m o s, te rá q ue e sta r fund a d a p rim e iro num a
p o sitivid a d e juríd ic a q ue a sse g ure a to d o s o s b ra sile iro s o d ire ito
b á sic o d e to d a a ig ua ld a d e : o d ire ito d e se r ig ua l p e ra nte a le i!
Enq ua nto isso nã o fo r d e sc o b e rto , fic a re m o s se m p re usa nd o a no ssa
m ula ta ria e o s no sso s m e stiç o s c o m o m o d o d e fa la r d e um p ro c e sso
so c ia l m a rc a d o p e la d e sig ua ld a d e , c o m o se tud o p ud e sse se r
tra nsc rito no p la no d o b io ló g ic o e d o ra c ia l. Na no ssa id e o lo g ia
na c io na l, te m o s um m ito d e trê s ra ç a s fo rm a d o ra s. Nã o se p o d e
ne g a r o m ito . Ma s o q ue se p o d e ind ic a r é q ue o m ito é p re c isa m e nte
isso : um a fo rm a sutil d e e sc o nd e r um a so c ie d a d e q ue a ind a nã o se
sa b e hie ra rq uiza d a e d ivid id a e ntre m últip la s p o ssib ilid a d e s d e
c la ssific a ç ã o . Assim , o “ ra c ism o à b ra sile ira ” , p a ra d o xa lm e nte , to rna
a injustiç a a lg o to le rá ve l, e a d ife re nç a , um a q ue stã o d e te m p o e
a m o r. Eis, num a c á p sula , o se g re d o d a fá b ula d a s trê s ra ç a s...
Sobre comidas
e mulheres...
A so c ie d a d e m a nife sta -se p o r m e io d e m uito s e sp e lho s e vá rio s
id io m a s. Um d o s m a is im p o rta nte s no c a so d o Bra sil é , se m d úvid a , o
c ó d ig o d a c o m id a , e m se us d e sd o b ra m e nto s m o ra is q ue a c a b a m
a jud a nd o a situa r ta m b é m a m ulhe r e o fe m inino no se u se ntid o ta lve z
m a is tra d ic io na l. C o m id a s e m ulhe re s, a ssim , e xp rim e m te o ric a m e nte
a so c ie d a d e , ta nto q ua nto a p o lític a , a e c o no m ia , a fa m ília , o
e sp a ç o e o te m p o , e m sua s p re o c up a ç õ e s e , c e rta m e nte , e m sua s
c o ntra d iç õ e s.
C re io q ue fo i o a ntro p ó lo g o fra nc ê s C la ud e Lé vi-Stra uss q ue m
c ha m o u a a te nç ã o p a ra d o is p ro c e sso s na tura is — o c ru e o c o zido —,
nã o so m e nte c o mo d o is e sta d o s p e lo s q ua is p a ssa m to d o s o s
a lim e nto s, m a s c o m o m o d a lid a d e s p e la s q ua is se p o d e fa la r d e
tra nsfo rm a ç õ e s so c ia is im p o rta ntíssim a s. De fa to , o c ru e o c o zid o , o
a lim e nto e a c o m id a , o d o c e e o sa lg a d o a jud a m a c la ssific a r c o isa s,
p e sso a s e a té m e sm o a ç õ e s m o ra is im p o rta nte s no no sso m und o
A ssim é q ue e q ua c io na m o s sim b o lic a m e nte a m ulhe r c o m a
c o m id a e o d o c e c o m o fe m inino , d e ixa nd o o sa lg a d o e o ind ig e sto
p a ra e sta re m a sso c ia d o s a tud o o q ue no s “ c he ira ” a c o isa s d ura s e
c rué is. Ao m und o d ifíc il d a “ vid a ” , d a “ rua ” e d o tra b a lho e m g e ra l,
e sse s unive rso s q ue sã o p ro fund a m e nte m a sc ulino s e , p o r c o nse g uinte ,
e stã o lo ng e d a s c o zinha s, d o s te m p e ro s e d a s b o a s m e sa s e c a m a s,
o nd e se p o d e e xe rc e r um a c o m e nsa lid a d e e nriq ue c e d o ra . Num
p la no m a is filo só fic o e unive rsa l, sa b e m o s q ue c ru se lig a a um e sta d o
d e se lva g e ria (a um e sta d o d e na ture za ), a o p a sso q ue o c o zid o se
re la c io na a o unive rso so c ia lm e nte e la b o ra d o q ue to d a so c ie d a d e
hum a na d e fine c o m o se nd o o d e sua c ultura e id e o lo g ia . Sa b e nd o
q ue o c ru e o c o zid o e xp rim e m m a is q ue d o is p ro c e sso s “ na tura is” ,
p o d e m o s a g o ra e nte nd e r p o r q ue fa la m o s q ue “ o a p re ssa d o c o m e
c ru ...” . É q ue , c o m ta l m e tá fo ra (o u a sso c ia ç ã o e ntre o c ru e a
p re ssa ), e sta m o s no s re fe rind o a e sse e lo e ntre a se lva g e ria o u
so fre g uid ã o d a p re ssa e o la d o se lva g e m , ruim o u c ru d a s c o isa s e d a
vid a . O c a lm o , p o d e -se d ize r, c o m p le m e nta nd o o p ro vé rb io
re ve la d o r, c o m e se m p re c o zid o , p o is q ue m te m c a lm a p o ssui um
e le m e nto d a c iviliza ç ã o e a c iv iliza ç ã o fund a -se p re c isa m e nte num
sa b e r e sp e ra r...
Ma s o q ue é ta m b é m inte re ssa nte na o p o siç ã o e ntre o c ru e o
c o zid o é d e sc o b rir q ue o unive rso d a c o m id a p e rm ite p e nsa r o
m und o inte g ra nd o o inte le c tua l c o m o se nsíve l. Q ue r d ize r: q ua lq ue r
re fe iç ã o m a is b e m p re p a ra d a o u m a is “ c a p ric ha d a ” , c o nfo rm e
fa la m o s c o lo q uia lm e nte , p o d e (e d e ve ) p ro m o ve r e ssa uniã o o u
c a sa m e nto e ntre o o lha r — q ue re m e te ao inte le c to — e,
na tura lm e nte , o g o sto e o c he iro , q ue ind ic a m o c a m inho d o na riz,
d a b o c a e d o e stô m a g o . Tud o q ue le va a o c o rp o , à se nsua lid a d e e à
p a nç a o u b a rrig a , c o nfo rm e fa la m o s no Bra sil. Assim , “ e nc he r a
b a rrig a ” o u “ e nc he r a p a nç a ” é um a to c o nc re to d e stina d o à
sa c ie d a d e d o c o rp o , m a s é ta m b é m um m o d o d e se re fe rir a um a
a ç ã o sim b ó lic a . A tud o q ue fo i c a p a z d e sa tisfa ze r p le na m e nte um a
p e sso a ...
Ma s é b á sic o c o ntinua r e nfa tiza nd o q ue a c o m id a (c o m sua s
p o ssib ilid a d e s sim b ó lic a s) p e rm ite re a liza r um a im p o rta nte m e d ia ç ã o
e ntre c a b e ç a e b a rrig a , e ntre c o rp o e a lm a , p e rm itind o o p e ra r
sim ulta ne a m e nte com um a sé rie de c ó d ig o s c ultura is q ue
no rm a lm e nte e stã o se p a ra d o s, c o m o o g usta tivo (q ue d isting ue o
sa lg a d o d o d o c e e d o a m a rg o ; o g o sto so d o p é ssim o ; o q ue nte d o
frio ) , o c ó d ig o de o d o re s (q ue p e rm ite se p a ra r d o s o utro s o
a lim e nto q ue te m b o m c he iro e e stá sa d io e b o m ), o c ó d ig o visua l
(q ue no s fa z c o m e r o u nã o a lg um a um e nto c o m o s o lho s, o u re c usá -lo
p o r sua a p a rê nc ia , te nd o o u nã o “ o lho m a io r d o q ue a b a rrig a ” ) e ,
a ind a , um c ó d ig o d ig e stivo , p o sto q ue no Bra sil ta m b é m
c la ssific a m o s o s a lim e nto s p o r sua c a p a c id a d e d e p e rm itir o u nã o
um a d ig e stã o fá c il e a g ra d á ve l. O ra , é p re c isa m e nte e ssa p o ssib ilid a -
d e d e sínte se e d e e q uilíb rio e ntre o o lho e a b a rrig a — a p a rte d e
c im a d o c o rp o e sua p a rte d e b a ixo — q ue a re la ç ã o e ntre o c ru e o
c o zid o a jud a e c o nse g ue , e ntre nó s, re a liza r.
Ma s e sse s e sta d o s e sua s c o nc e p ç õ e s va ria m . Pa ra e uro p e us e
no rte -a m e ric a no s, c ru e c o zid o , a lim e nto e c o m id a , sã o c a te g o ria s
c ie ntífic a s, ne m se m p re le va d a s e m c o nta no p ró p rio a to d e c o m e r,
c o nfo rm e no s re ve la m a s im e nsa s sa la d a s e a s “ c o m id a s na tura is” q ue
sã o d ig e rid a s e m p a íse s c o m o Esta d o s Unid o s e Ing la te rra c o m o
p ra to s p rinc ip a is, a lg o b e m re c e nte no Bra sil.
Pa ra nó s, o c ru e o c o zid o p o d e m sig nific a r c o m m uito m a is
fa c ilid a d e um unive rso c o m p le xo , um a á re a d o no sso siste m a o nd e
p o d e m o s no s e nxe rg a r c o m o fo rm id á v e is e no s le va r fina lm e nte ,
m uito a sé rio . Aq ui, c o nta m o s um a histó ria p a ra nó s m e sm o s, e e ssa é
um a na rra tiva q ue a d mira m o s e q ue no s p e rm ite q ue a d m ire m o s a nó s
m e sm o s, p a ra usa rm o s a fó rm ula d e C liffo rd G e e rtz, um so fistic a d o
a ntro p ó lo g o a m e ric a no . Sa b e m o s q ue so m o s tã o b o ns e m c o m id a
q ua nto e m m ulhe r o u fute b o l. Aq ui, a firm a m o s e ntre so rriso s, so m o s o s
m e lho re s d o m und o ... E, c o m o nã o p o d e ria d e ixa r d e se r, o m und o
d a s c o m id a s no s le va p a ra c a sa , p a ra o s no sso s p a re nte s e a m ig o s,
p a ra o s no sso s c o m p a nhe iro s d e te to e d e m e sa . Essa s p e sso a s q ue
c o m p a rtilha m inte nsa m e nte d e no ssa vid a e intimid a d e . Intim id a d e
q ue se fa z na c a sa e na m e sa , o nd e so m o s se m p re e
ne c e ssa ria m e nte tra ta d o s c o m o a lg ué m e te m o s d ire ito s p e rp é tuo s
d e c id a d a nia .
Ne sse se ntid o , o c ru se ria tud o q ue e stá fo ra d e ssa á re a d a c a sa
o nd e so m o s visto s e tra ta d o s c o m a m o r, c a rinho e c o nsid e ra ç ã o ,
p o d e nd o — c o nse q üe nte m e nte — e sc o lhe r a c o m id a . O u se ja : o c ru é
tud o a q uilo q ue e stá fo ra d o c o ntro le d a c a sa . Tud o q ue p o d e a té
m e sm o e sta r o p o sto a o m und o d a c a sa , c o m o um a á re a c rue l e d ura
d o m und o so c ia l. Um e sp a ç o re p le to d e m o vim e nto c o ntra d itó rio ,
o nd e a s p e sso a s nã o se ha rm o niza m e ntre si, m a s d isp uta m na
c o m p e tiç ã o um a e sp é c ie d e b a ta lha q ue se re ve la so b re tud o no
tra b a lho .
Já o c o zido é a lg o so c ia l p o r d e finiç ã o . Nã o é so m e nte o no m e
d e um p ro c e sso físic o — o c o zim e nto d a s c o isa s p e lo fo g o —, m a s,
so b re tud o , o no m e d e um p ra to sa g ra d o d e ntro d a no ssa c uliná ria .
Pra to , a liá s, q ue d iz tud o d e ssa s m e tá fo ra s q ue a s c o m id a s p e rm ite m
re a liza r e q ue fa ze m d e sta so c ie d a d e o Bra sil. De fa to , no c o zido
te m o s o a lim e nto q ue junta ve g e ta is, le g um e s e c a rne s va ria d a s num
p ra to q ue te m p e so so c ia l m uito im p o rta nte , p o is q ue inve nta a sua
p ró p ria o c a siã o so c ia l. Q ua nd o se c o m e um c o zid o , nã o se c o m e um
p ra to q ua lq ue r. È q ue há , no Bra sil, c e rto s a lim e nto s o u p ra to s q ue
a b re m um a b re c ha d e finitiva no m und o d iá rio , e ng e nd ra nd o
o c a siõ e s e m q ue a s re la ç õ e s so c ia is d e ve m se r sa b o re a d a s e
p ra ze ro sa m e nte d e sfruta d a s c o m o a s c o m id a s q ue e la s e stã o
c e le b ra nd o . E d e m o d o tã o inte nso q ue nã o se sa b e , no fim , se fo i a
c o m id a q ue c e le b ro u a s re la ç õ e s so c ia is, e sta nd o a se rviç o d e la s, o u
se fo ra m o s e lo s d e p a re nte sc o , c o m p a d rio e a m iza d e q ue e stive ra m
a se rviç o d a b o a m e sa .

Tud o isso re ve la q ue a no ssa c o nc e p ç ã o do c o zid o , e m


o p o siç ã o a o c ru, e sta b e le c e um a d istinç ã o e ntre c o isa s q ue sã o
se p a ra d a s e e sta nq ue s — ind ivid ua liza d a s um a s d a s o utra s — , e tud o
isso é o c ru o u fa z p a rte d o q ue é c ru. . . E o c o zid o é c o nc e b id o
c o m o a lg o q ue p e rm ite a re la ç ã o e a m istura d e c o isa s d o m und o
q ue e sta va m e ve ntua lm e nte se p a ra d a s. Vo lta re i a e sse p ro b le m a
m a is a d ia nte . Ag o ra , é im p o rta nte fa la r d e o utra d istinç ã o q ue se g ue
a m e sm a e stra d a d o c ru e d o c o zid o .

Q ue ro m e re fe rir à d istinç ã o e ntre c o m id a e a lim e nto , q ue é


tã o im p o rta nte no siste m a so c ia l b ra sile iro . Re a lm e nte , p a ra nó s,
sa b e r c o m e r é a lg o m uito m a is re fina d o d o q ue o sim p le s a to d e
a lim e nta r-se . O s a m e ric a no s, sa b e m o s, inve nta ra m a c ha m a d a “ fa st
fo o d ” (a lim e nto rá p id o ) e , p o r c a usa d isso m e sm o , p o d e m c o m e r
e m p é , se nta d o s, c o m e stra nho s o u a m ig o s, só s o u a c o m p a nha d o s.
C o m e m ta m b é m m istura nd o o d o c e c o m o sa lg a d o , e um a d e sua s
p re o c up a ç õ e s b á sic a s é , c o m ra ra s e xc e ç õ e s, c o m e r p a ra vive r;
c o m e r, e ntre e le s, é um a to q ue p o d e se r p ro fund a m e nte ind ivid ua l.
Pa ra nó s, b ra sile iro s, ne m tud o q ue a lim e nta é se m p re b o m o u
so c ia lm e nte a c e itá ve l. Do m e sm o m o d o , ne m tud o q ue é a lim e nto
é c o m id a . Alim e nto é tud o a q uilo q ue p o d e se r ing e rid o p a ra m a nte r
um a p e sso a viva ; c o m id a é tud o q ue se c o m e c o m p ra ze r, d e a c o rd o
c o m a s re g ra s m a is sa g ra d a s d e c o m unhã o e c o m e nsa lid a d e . Em
o utra s p a la vra s, o a lim e nto é c o m o um a g ra nd e m o ld ura ; m a s a
c o m id a é o q ua d ro , a q uilo q ue fo i va lo riza d o e e sc o lhid o d e ntre o s
a lim e nto s; a q uilo q ue d e ve se r visto e sa b o re a d o c o m o s o lho s e
d e p o is c o m a b o c a , o na riz, a b o a c o m p a nhia e , fina lm e nte , a
b a rrig a ...
O a lim e nto é a lg o unive rsa l e g e ra l. Alg o q ue d iz re sp e ito
a to d o s o s se re s hum a no s: a m ig o s o u inim ig o s, g e nte d e p e rto o u d e
lo ng e , da rua ou de c a sa , do céu ou da te rra . Ma s a
c o m id a é a lg o q ue d e fine um d o m ínio e p õ e a s c o isa s e m fo c o .
Assim , a c o m id a é c o rre sp o nd e nte ao fa m o so e a ntig o
“ d e -c o m e r” , e xp re ssã o e q uiva le nte a re fe iç ã o , c o m o de re sto
é a p a la vra c o m id a . Po r o utro la d o , c o m id a se re fe re a a lg o
c o stum e iro e sa d io , a lg um a c o isa q ue a jud a a e sta b e le c e r
um a id e ntid a d e , d e finind o , p o r isso m e sm o , um g rup o , c la sse
o u p e sso a .
É p o r te rm o s e ssa c o nc e p ç ã o q ue nó s, b ra sile iro s, p o d e m o s d ize r
q ue q ue ijo p a ra nó s é a lim e nto , m a s é c o m id a d e ra to s. Lo g o : ra to =
q ue ijo . Fa la r d e q ue ijo , e ntã o , é im p lic a r a id é ia d e ra to , já q ue e sse
a lim e nto é a lg o irre sistíve l p a ra o s ra to s, m a rc a nd o sua id e ntid a d e e
p e rso na lid a d e . Pe la m e sm a ló g ic a , le ite é a lim e nto p a ra o s se re s
hum a no s, m a s é c o m id a p a ra ne né ns. E o sso é c o m id a d e c a c ho rro ,
m ilho , d e g a linha , e sa nd uíc he , d e a m e ric a no . Do m e sm o m o d o ,
sa b e m o s q ue c hurra sc o é c o m id a d e g a úc ho , p ra to q ue se c o m e
c o m o s a m ig o s e q ue re q ue r c e rta intim id a d e e c e rto e sta r-à -
vo nta d e .
Ma s q ua l é a c o m id a b ra sile ira b á sic a ? C e rta m e nte q ue se tra ta
d o fe ijã o -c o m -a rro z, e ssa c o m id a q ue é a té m e sm o usa d a c o m o
m e tá fo ra p a ra a ro tina d o m und o d iá rio . Ma s é p re c iso no ta r q ue ,
ta nto no a rro z q ua nto no fe ijã o , te m o s um a lim e nto q ue é c o zinha d o .
E q ue é c o m id o c o m o se c o m e um c o zid o : m istura nd o -se a s d ua s
p o rç õ e s num só p ra to , e a ssim fo rm a nd o um a m a ssa ind ife re nc ia d a
q ue a ssum e a s p ro p rie d a d e s g usta tiva s d o s d o is e le m e nto s. De ta l
m o d o q ue o fe ijã o , q ue é p re to , d e ixa d e se r p re to , e o a rro z, q ue é
b ra nc o , d e ixa ta m b é m d e se r b ra nc o . A sínte se é um a p a p a o u p irã o
q ue re úne d e finitiva m e nte a rro z e fe ijã o , c o nstruind o a lg o c o m o um
se r inte rm e d iá rio , d e sse s q ue a so c ie d a d e b ra sile ira ta nto a d m ira e
va lo riza p o sitiva m e nte . C o m e r a rro z-c o m -fe ijã o , e ntã o , é m istura r o
p re to e o b ra nc o , a c a m a e a m e sa fa ze nd o p a rte d e um m e sm o
p ro c e sso ló g ic o e c ultura l...
Te m o s e ntã o a lim e nto e te m o s c o m id a . C o m id a nã o é a p e na s
um a sub stâ nc ia a lim e nta r, m a s é ta m b é m um m o d o , um e stilo e um
je ito d e a lim e nta r-se . E o je ito d e c o m e r d e fine nã o só a q uilo q ue é
ing e rid o c o m o ta m b é m a q ue le q ue ing e re . De fa to , na d a m a is ric o , na
no ssa líng ua , q ue o s vá rio s sig nific a d o s d o ve rb o c o m e r e m sua s
c o no ta ç õ e s.
Existe m vá ria s m e tá fo ra s o nd e se usa a p a la vra c o m e r o u c o m id a
e o nd e o a to de a lim e nta r-se te m sig nific a d o s p re c iso s. Assim ,
fa la m o s e m p ã o -duro re fe rind o -no s a q ue m é a va re nto e , p a ra
e c o no m iza r, c o m e o p ã o d o rm id o , q ue fic a , o b via m e nte , d uro ...
Usa m o s a im a g e m d o p ã o , p ã o , q ue ijo , q ue ijo p a ra se p a ra r c o isa s,
a c o nte c im e nto s e p e sso a s, p o is nã o ha ve ria na d a m a is d istinto q ue o
p ã o (d e o rig e m ve g e ta l e a g ríc o la , q ue va i a o fo rno ) e o q ue ijo (d e
o rig e m a nim a l e q ue se fa b ric a p o r m e io d e um p ro c e sso d e
fe rm e nta ç ã o “ na tura l” ). Fa la m o s ta m b é m q ue a lg ué m p o d e c o m e r
g a to p o r le b re q ua nd o há um a c o nfusã o e um a m istura d e p e sso a s,
c o isa s, e ve nto s. Alé m d isso , p o d e m o s te r á g ua na b o c a q ua nd o
d e se ja m o s m uito a lg um a c o isa ; p o d e m o s se r a p a nha d o s c o m a
b o c a na b o tija e , q ua nd o so m o s vito rio so s, e sta m o s c o m a fa c a e o
q ue ijo na mã o , im a g e m q ue , c o m o a q ue la o utra q ue fa la d e q ue m
e stá p o r c ima d a c a rne -se c a , ind ic a a p ro p rie d a d e d e re c urso s d e
p o d e r e fo rç a . Ad e m a is, p o d e m o s se r c o nvid a d o s p a ra c o me s e
b e b e s e , se m p re q ue fa la m o s a lg um a c o isa q ue nã o d e ve se r le va d a
a sé rio , fa la m o s da boc a p ra fo ra O p ro c e sso de ing e stã o ,
e q uiva le nte ló g ic o a “ fa la r d a b o c a p ra d e ntro ” , é tã o im p o ssíve l,
re p re se nta nd o um a m e tá fo ra d e tud o q ue é ina ting íve l o u a b surd o ...
O fa to é q ue o c o m e r, a c o m id a e o s a lim e nto s fo rm a m um c ó d ig o
c o m p le xo — um a ve rd a d e ira b o c a ric a so c ia l — q ue no s p e rm ite
c o m p re e nd e r c o m o é q ue a so c ie d a d e b ra sile ira se fund e e nq ua nto
ta l.
Assim , c o me r d o b o m e d o me lho r d e no ta m a is d o q ue
a lim e nta r-se , ind ic a nd o um p a ssa d io d e ric o , um a vid a b o a , g o sto sa ,
no b re . Vid a d e p o lític o o u d e m ilio ná rio q ue vive e m p a lá c io e te m
g a so lina p a g a p e lo e rá rio p úb lic o o u p e la firm a ... A c o m id a va le
ta nto p a ra ind ic a r um a o p e ra ç ã o unive rsa l — o a to d e a lim e nta r-se —
q ua nto p a ra d e finir e m a rc a r id e ntid a d e s p e sso a is e g rup a is, e stilo s
re g io na is e na c io na is d e se r, fa ze r, e sta r e vive r. Em no ssa s c a sa s,
sa b e m o s p e rfe ita m e nte b e m q ue m g o sta d o q uê e c o m o e sse
a lg ué m g o sta d e c o m e r a lg um a c o isa . Ê a to d e a m o r fa m ilia l e
c o njug a l se rvir o p a i, o irm ã o , a m ulhe r e o s filho s, m a s ta m b é m o s
sub o rd ina d o s e a té m e sm o visita nte s e sp o rá d ic o s, le va nd o e m c o nta
o m o d o c o m o g o sta m d e c o m e r o s o vo s, o b ife , o a rro z, a sa la d a e
o fe ijã o . E c he g a nd o m e sm o a o re q uinte d e sa b e r c o m o a s p e sso a s
g o sta m d e te r se us p ra to s a rrum a d o s, a rte q ue a m ã e o u a d o na -d e -
c a sa c o nd uz c o m p re c isã o , so lic itud e e e no rm e p a c iê nc ia . Vo vó
a d o ra p im e nta , p a p a i g o sta d e c a rne no p o nto , titio só c o m e c o m o
a rro z e m c im a d o fe ijã o , d o na Ma ria d e te sta to m a te na sua sa la d a ...
O s e xe m p lo s p o d e ria m se r m ultip lic a d o s p a ra ind ic a r c o m o a c o m id a
d e fine a s p e sso a s e , ta m b é m , a s re la ç õ e s q ue a s p e sso a s m a ntê m
e ntre si... Nó s, b ra sile iro s, se ntim o s sa ud a d e d e c e rta s c o m id a s e
p o d e ría m o s p e rfe ita m e nte d ize r: d ize -m e o q ue c o m e s e d ir-te -e i
q ue m é s!
Ma s há c o m id a e c o m id a s. Fa la m o s q ue “ m ulhe r o fe re c id a nã o
é c o m id a ” , num tro c a d ilho c hulo m a s re ve la d o r d a a sso c ia ç ã o ,
intrig a nte p a ra e stra ng e iro s, e ntre o a to se xua l e o a to d e ing e rir
a lim e nto s. Entre a m ulhe r d a rua , a p ro stituta , o u a m ulhe r q ue
c o ntro la e é d o na d e sua c a p a c id a d e d e se d uç ã o e se xua lid a d e , e
c e rto s tip o s d e a lim e nto . Assim , a m ulhe r q ue p õ e à d isp o siç ã o d o
g rup o (d a fa m ília ) se us se rviç o s d o m é stic o s, se us fa vo re s se xua is e sua
c a p a c id a d e re p ro d utiva to rna -se a fo nte de virtud e q ue , na
so c ie d a d e b ra sile ira , se d e fine d e m o d o p a sto ra l e sa ntific a d o . É a
virg e m , a e sp o sa e a m ã e q ue re sid e na s c a sa s e q ue ja m a is é c o m id a
o u p o d e rá vira r c o m id a : p re sa fá c il d e ho m e ns q ue se d e fine m c o m o
se xua lm e nte vo ra ze s. O u m e lho r, ta is m ulhe re s p o d e m se r c o m id a s,
m a s p rim e iro sã o tra nsfo rm a d a s e m no iva s e e sp o sa s. O b o lo d o
c a sa m e nto e o b a nq ue te q ue se g ue a c e rim ô nia p o d e m m uito b e m
se r visto s c o m o um sím b o lo d e ssa “ c o m id a ” q ue se rá a no iva , a lg o
e la b o ra d o e , so b re tud o , so c ia lm e nte a p ro va d o p e lo s ho m e ns d o se u
g rup o . O ra , a m ulhe r d a rua , e ssa q ue é a c o m id a d e to d o s, é a lg o
m uito d ife re nte , c o nfo rm e já a ssina le i a c im a . Em c o ntra ste c o m a
m ã e , a virg e m e a b o a e sp o sa , e la surg e c o m o a q ue la m ulhe r q ue
p o d e lite ra lm e nte c a usa r ind ig e stã o no s ho m e ns, p ro vo c a nd o a sua
p e rturb a ç ã o m o ra l. De ssa s m ulhe re s d e ve -se fug ir — d iz a m o ra l
b ra sile ira tra d ic io na l — m a s se m e la s, re za p a ra d o xa lm e nte e ssa
m e sm a é tic a , o m und o se ria inso sso c o m o um a c o m id a se m sa l. As
m ulhe re s d a vid a , na no b re m e tá fo ra b ra sile ira , e stã o p a ra as
m ulhe re s d a m o rte a ssim c o m o a s c o m id a s fá c e is e p o te nc ia lm e nte
ind ig e sta s, m a s d e lic io sa s na sua ing e stã o e sc o nd id a e a p a ixo na d a ,
e sta ria m p a ra a s c o m id a s c a se ira s q ue e ve ntua lm e nte p o d e m p e rd e r
a c a p a c id a d e d e d e le ita r, se rvind o tã o -so m e nte p a ra a lim e nta r...
O fa to é q ue a s c o m id a s se a sso c ia m à se xua lid a d e , d e ta l m o d o
q ue o a to se xua l p o d e se r tra d uzid o c o m o um a to d e “ c o m e r” ,
a b a rc a r, e ng lo b a r, ing e rir o u c irc unsc re ve r to ta lm e nte a q uilo q ue é
(o u fo i) c o m id o . A c o m id a , c o m o a m ulhe r (o u o ho m e m , e m c e rta s
situa ç õ e s), d e sa p a re c e d e ntro d o c o m e d o r — o u d o c o m ilã o . Essa é a
b a se d a m e tá fo ra p a ra o se xo , ind ic a nd o q ue o c o m id o é to ta lm e nte
a b ra ç a d o p e lo c o m e d o r. A re la ç ã o se xua l e o a to d e c o m e r,
p o rta nto , a p ro xim a m -se num se ntid o ta l q ue ind ic a d e q ue m o d o
nó s, b ra sile iro s, c o nc e b e m o s a se xua lid a d e e a ve m o s, nã o c o m o um
e nc o ntro d e o p o sto s e ig ua is (o ho m e m e a m ulhe r q ue se ria m
ind ivíd uo s d o no s d e si m e sm o s), m a s c o m o um m o d o d e re so lve r e ssa
ig ua ld a d e p e la a b so rç ã o , sim b o lic a m e nte c o nse ntid a e m te rm o s
so c ia is, d e um p e lo o utro . Assim , a re la ç ã o se xua l, na c o nc e p ç ã o
b ra sile ira , c o lo c a a d ife re nç a e a ra d ic a l he te ro g e ne id a d e , p a ra lo g o
e m se g uid a hie ra rq uizá -la s no e ng lo b a m e nto d e um c o m e d o r e um
c o m id o . E nã o se p o d e d e ixa r d e o b se rva r, p a ra q ue m e stive r le nd o
e sta s linha s um ta nto d e sa visa d o , q ue o e ng lo b a d o r ta nto p o d e se r
um ho m e m (e sse se ria o m o d e lo id e a l, a fo rm ula ç ã o tra d ic io na l)
c o m o ta m b é m um a m ulhe r (se fo r e la q ue m a tua b usc a nd o e
q ue re nd o a re la ç ã o , e xe rc e nd o c o m isso um p a p e l a tivo ). Assim ,
p o d e -se d ize r q ue , na s sua s re la ç õ e s c o m a s virg e ns e e sp o sa s — o u
m ulhe re s q ue a ssim se d e fine m so c ia lme nte —, o s ho m e ns é q ue sã o o s
c o m e d o re s; m a s na s sua s re la ç õ e s c o m a s mulhe re s d o mund o e d a
vid a — o u c o m a q ue la s q ue se d e fine m c o m o ind e p e nd e nte s e
ind ivid ua liza d a m e nte —, e le s sã o c o m id o s. O re sulta d o é a lg o q ue
re p ro d uz, e m o utro níve l e o utro p la no , a d ia lé tic a d a c a sa e d a rua ,
d e ste m und o e d o o utro , d a le i e d a p e sso a , d o m a la nd ro e d o
c a xia s, d a o rd e m ríg id a e d o “ je itinho ” q ue tud o re so lve ...

Num se ntid o m uito g e ra l e c ultura lm e nte va lo riza d o , fa la -se


se m p re q ue q ue m c o m e é o ho m e m , a m ulhe r c o zinha e d á o s
a lim e nto s e a c o m id a . Ma s, c o m o sug e ri linha s a trá s, p o d e ha ve r
c a so s c o ntrá rio s, o nd e o ho m e m c a i na p a ne la d e c o m id a , ta l c o m o
na histó ria d e Do m Ra tã o q ue c a iu na p a ne la d e fe ijã o , o c o nto d e
fa d a s se nd o sig nific a tivo p a ra ind ic a r d e q ue m o d o a g ula (o d e se jo
inc o ntro la d o ) p o d e le va r o c o m e d o r a to rna r-se c o m id a ... Ma s p o d e -
se a firm a r, se m c o rre r o risc o d o e xa g e ro , q ue m e sm o ho je , ne sta e ra
d e tra nsfo rm a ç ã o e m ud a nç a s rá p id a s, o ho m e m é o e ng lo b a d o r
d o m und o d a rua , d o m e rc a d o , d o tra b a lho , d a p o lític a e d a s le is, a o
p a sso q ue a m ulhe r e ng lo b a o m und o d a c a sa , d a fa m ília , d a s re g ra s
e c o stum e s re la tivo s à m e sa e à ho sp ita lid a d e . E isso se fa z no
sim b o lism o d a c o zinha , e sp a ç o d a c a sa te o ric a m e nte ve d a d o a o s
ho m e ns e o nd e e le s nã o d e ve m e ntra r p o rq ue , c o m o d iz a m úsic a
p o p ula r, “ é lug a r só d e m ulhe r...” .

Nã o é , p o is, p o r a c a so q ue m uita s fig ura s d e no sso p a nte ã o


m ito ló g ic o sã o m ulhe re s c o zinhe ira s o u q ue sa b ia m usa r a s a rte s d a
c uliná ria p a ra c o nse g uir um a p o siç ã o so c ia l im p o rta nte . G a b rie la e
Do na Flo r sã o c o zinhe ira s d e ra ra c a p a c id a d e e e stilo ; ta m b é m Xic a
d a Silva , na c ria ç ã o c ine m a to g rá fic a d e C a c á Die g ue s, fo i g e nia l
a rtic ula d o ra d e te m p e ro s (q ue usa va c o m o a rm a e re q uinte ) e
se xua lid a d e p a ra tra nsfo rm a r e m d o m ina d o o d o m ina nte -b ra nc o -
c o m e d o r. G a b rie la , c ra vo e c a ne la . O no m e é sufic ie nte p a ra insp ira r
e ssa s fo rm a s d e fa ze r e e sse s e stilo s d e p re p a ra r q ue o s p o d e ro so s
ig no ra m e só o s “ fra c o s” p o d e m c o nhe c e r. Sã o se g re d o s q ue
p e rm ite m um a inve rsã o d o m und o , fa ze nd o c o m q ue a c a b e ç a se ja
tro c a d a p e lo e stô m a g o e p e lo se xo (o nd e to d o s o s ho m e ns se
ig ua la m e se d e le ita m .. . ) .

Q ue ro sug e rir q ue e ssa e q ua ç ã o de d o is p ro c e sso s tã o


va lo riza d o s na so c ie d a d e b ra sile ira c o m a s m ulhe re s é a lg o a se r
p e nsa d o c o m m uito c uid a d o . Po rq ue , e ntre nó s, c o m o e m m uita s
o utra s so c ie d a d e s, a se xua lid a d e e a a rte d e c o m e r (so b re tud o a
c o m e nsa lid a d e q ue d e ve a c o m p a nha r a a ç ã o d e ing e rir o a lim e nto )
a ind a nã o se tra nsfo rm a ra m e m a ssunto s inte ira m e nte ind ivid ua is.
Sã o , a o c o ntrá rio , c o isa s fund a m e nta lm e nte c o le tiva s — a to s c rític o s
de re la c io na m e nto e re p ro d uç ã o so c ia l. Co mo ve rd a d e ira s
c o m unhõ e s o nd e o e nc o ntro tra nsfo rm a a s p e sso a s ne le e ng a ja d a s
p o rq ue fa z c o m q ue to d o s p a rtic ip e m d e um a m e sm a sub stâ nc ia
c o m um , o p ra to c o m id o o u a p e sso a a m a d a q ue , sa b e m o s, vira
“ c o m id a ” em no ssa so c ie d a d e . E a s m ulhe re s d e se m p e nha m ,
c o nfo rm e sa b e m o s, um papel b á sic o ne sse s d o is p ro c e sso s.
So b re tud o na s no b re s a rte s d e c o m e r, na s q ua is a p re nd e m o s a
e xe rc e r um g o sto q ue no s va i a c o m p a nha r o re sto d a vid a . E c o m e r é
g o sta r, e c o m e r é ta m b é m vive r...

Da í a no ssa fo rm a e sp e c ia l d e c o m e r. No sso je ito b ra sile iro d e


a p re c ia r a m e sa g ra nd e , fa rta , a le g re e ha rm o nio sa . Me sa q ue
c o ng re g a lib e rd a d e , re sp e ito e sa tisfa ç ã o . Mo m e nto q ue p e rm ite
o rq ue stra r to d a s a s d ife re nç a s e c a nc e la r a s m a is d rá stic a s o p o siç õ e s.
Na m e sa , re a lm e nte , e a tra vé s d a c o m id a c o m um , c o m ung a m o s uns
c o m o s o utro s num a to fe stivo e c e rta m e nte sa g ra d o . Ato q ue
c e le b ra a s no ssa s re la ç õ e s m a is q ue no ssa s ind ivid ua lid a d e s. Da í p o r
q ue lig a m o s inte nsa m e nte a c o m id a c o m o s a m ig o s. Po is q ue m no s
a m p a ra q ua nd o “ c o m e m o s d a b a nd a p o d re ” e q ue m no s p o d e
c o nse g uir um a “bo c a” o u um a “ c o m ila nç a no Esta d o o u no
G o ve rno ” ? C e rta m e nte q ue sã o o s a m ig o s, e sse s no sso s e te rno s
c o m p a nhe iro s d e b ró d io , g o sto e m e sa ...

C o m p a nhe iro s. O no m e é ric o p a ra o q ue fa la m o s. Po is há q ue m


d ig a q ue a p a la vra d e riva d o la tim c o m p ã o : q ue r d ize r, a q ue le s q ue
junto s c o m e m o p ã o . E p o r isso e stã o re la c io na d o s.

Do m e sm o m o d o , se rá p re c iso ind ic a r c o m o é q ue nó s,
b ra sile iro s, se m p re p rivile g ia m o s c o m id a s na c io na is e p re fe rim o s
se m p re o s a lim e nto s c o zid o s. Do c o zid o à p e ixa d a e à fe ijo a d a . Da
fa ro fa a o p irã o e a o s m o lho s, g uisa d o s e m e xid o s, à s d o b ra d inha s e
p a p a s. Pa re c e q ue te m o s e sp e c ia l p re d ile ç ã o p e lo a lim e nto q ue fic a
e ntre o líq uid o e só lid o , e vita nd o — ne ssa s g ra nd e s re fe iç õ e s o nd e se
c e le b ra m a s a m iza d e s . — o a ssa d o , a lim e nto q ue nã o p e rm ite a
m istura . Da í, ta m b é m , p o r q ue te m o s se m p re q ue usa r a fa rinha d e
m a nd io c a e m sua fo rm a sim p le s o u c o m o fa ro fa e m to d a s a s
re fe iç õ e s. De fa to , a fa rinha se rve c o m o o c im e nto a lig a r to d o s o s
p ra to s e to d a s a s c o m id a s. Enq ua nto ing le se s e fra nc e se s usa m m o lho s
p a ra p ra to s e sp e c ífic o s, nó s te m o s c o m id a s q ue sã o m últip la s c o m
se us c a ld o s, m o lho s e suc o s. Ma s é im p o rta nte a c e ntua r q ue a c o m id a
m istura d a é um a e sp é c ie d e im a g e m p e rfe ita d a p ró p ria situa ç ã o
q ue e la m e sm a e ng e nd ra e a jud a a sa b o re a r. E isso é d e sse s tra ç o s
m a is im p o rta nte s a tra nsfo rm a r o a to d e c o me r num g e sto b ra sile iro .
Assim , e ntre o só lid o (q ue c a ra c te riza o p ra to p rinc ip a l d a s
c o m id a s e uro p é ia s e a m e ric a na s) e o líq uid o , p re fe rim o s um a fo rm a
inte rm e d iá ria . O c o zid o é só lid o e líq uid o . Entre a c a rne e a ve rd ura —
q ue e ntra m no s p ra to s e uro p e us c o m o c o m id a s p rinc ip a is e
se c und á ria s —, so m o s m uito m a is d a d o s a um a lig a ç ã o e ntre o s d o is. E
o c o zid o e a fe ijo a d a c e rta m e nte re a liza m isso d e m o d o p e rfe ito ,
junto c o m a m o q ue c a e a p e ixa d a , o nd e ta m b é m se p o d e re unir d e
tud o . É c la ro q ue isso no s fo i le g a d o p e lo m und o Ib é ric o , q ue d e fa to
e nq ua d ra to d a a no ssa c e na c uliná ria . Ma s ta m b é m é c la ro q ue e ssa
p re fe rê nc ia d e no ta um a fo rm a e vid e nte d e e sc o lha . Ta l c o m o so m o s
lig a d o s à id é ia d e se rm o s um p a ís d e trê s ra ç a s, um p a ís m e stiç o e
m ula to , o nd e tud o q ue é c o ntrá rio lá fo ra a q ui d e ntro fic a
c o m b ina d o , no ssa c o m id a re ve la e ssa m e sm a ló g ic a . Te m o s, e ntã o ,
um a c uliná ria re la c io na l q ue e xp re ssa d e m o d o p rivile g ia d o um a
so c ie d a d e ig ua lm e nte re la c io na l. Isto é , um siste m a o nd e a s re la ç õ e s
sã o m a is q ue m e ro re sulta d o de a ç õ e s, d e se jo s e e nc o ntro s
ind ivid ua is; p o is a q ui e ntre nó s e la s se c o nstitue m , e m m uita s o c a siõ e s,
e m ve rd a d e iro s suje ito s d a s situa ç õ e s, tra ze nd o p a ra e la s o se u
p o nto d e vista . Um p o nto d e vista , c la ro e stá , q ue sinte tiza se m p re
a s p o siç õ e s d e q ue m e stá e ng a ja d o na p ró p ria re la ç ã o . No no sso
m und o c uliná rio , o q ue p rivile g ia m o s nã o é o p ra to se p a ra d o (c o m o
na C hina o u no Ja p ã o ) ne m a c o m b ina ç ã o d e p ra to s se p a ra d o s q ue
sã o fo rte s e d e sc o ntínuo s (c o m o na Fra nç a e na Ing la te rra ), m a s, isto
sim , a p o ssib ilid a d e d e e sta b e le c e r, ta m b é m p e la c o m id a , g ra d a ç õ e s
e hie ra rq uia s, p e rm itind o e sc o lha s e ntre um a c o m id a (o u p ra to ) q ue é
c e ntra l e d a d a d e um a ve z p o r to d a s — a c o m id a p rinc ip a l — e se us
c o a d juva nte s o u ing re d ie nte s p e rifé ric o s, q ue se rve m p a ra junta r e
m istura r. Te m o s, e ntã o , na no ssa c o zinha , na no ssa c o m id a e no no sso
m o d o d e c o m e r, um a o b se ssã o p e lo c ó d ig o c uliná rio re la c io na l e
inte rm e d iá rio . Um c ó d ig o m a rc a d o p e la lig a ç ã o .
Do m e sm o mo d o q ue na vid a e na so c ie d a d e , so m o s
o b c e c a d o s p e lo a m ig o únic o , c e rto e se g uro na s ho ra s e m q ue
p re c isa m o s d e a m p a ro , e q ue ja m a is no s p o d e d e c e p c io na r
“ c usp ind o no p ra to e m q ue c o m e u” . . .
O carnaval, ou o mundo
como teatro e prazer
To d a s a s so c ie d a d e s a lte rna m sua s vid a s e ntre ro tina s e rito s,
tra b a lho e fe sta , c o rp o e a lm a , c o isa s d o s ho m e ns e a ssunto d o s
d e use s, p e río d o s o rd iná rio s — o nd e a vid a tra nsc o rre se m p ro b le m a s
— e a s fe sta s, o s ritua is, a s c o m e m o ra ç õ e s, o s m ila g re s e a s o c a siõ e s
e xtra o rd iná ria s, o nd e tud o p o d e se r ilum ina d o e visto p o r no vo p rism a ,
p o siç ã o , p e rsp e c tiva , â ng ulo ...
Vive m o s se m p re e ntre e sse s m o m e nto s, c o m o p a ssa g e iro s q ue
e stã o sa ind o d e um e ve nto ro tine iro p a ra a o c o rrê nc ia fo ra d o
c o m um q ue , p o r sua ve z, lo g o p o d e to rna r-se no va m e nte ro tine ira e
fa ze r p a rte d a p a isa g e m d o no sso irre fle xivo c o tid ia no .
A via g e m d a ro tina p a ra o e xtra o rd iná rio , p o ré m , d e p e nd e d e
um a sé rie d e fa to re s. Ela p o d e va ria r d e so c ie d a d e p a ra so c ie d a d e e
p o d e se r re a liza d a ta nto c o le tiva q ua nto ind ivid ua lm e nte . No ssa
b io g ra fia se fa z p re c isa m e nte p e la a lte rnâ nc ia d e situa ç õ e s q ue fo ra m
e sq ue c id a s c o m situa ç õ e s q ue “ g ua rd a m o s” c o m o te so uro s o u
c ic a trize s e m no ssa c a b e ç a e q ue fo rm a m o q ue d e no m ina m o s
“ m e m ó ria ” . De fa to , ta l id é ia tra d uz, d e m a ne ira m uito p re c isa ,
e ssa ve rd a d e ira d ia lé tic a e ntre o q ue é le m b ra d o c o m sa uda de
c o m o m a ra vilho so , fo rm id á ve l o u p o é tic o , a o la d o d e tud o q ue fo i
vivid o c o m o d o lo ro so , trá g ic o e ruim (a q uilo q ue na no ssa e xistê nc ia
e ntra c o m o e xtra o rd iná rio , p o sitiva o u ne g a tiva m e nte va lo riza d o ), e
o s o utro s e ve nto s q ue sim p le sm e nte nã o sã o le m b ra d o s, p e rd e nd o -se
na s so m b ra s d o p a ssa d o e d o te m p o vivid o e ja m a is re c up e ra d o . Há ,
p o is, um te m p o le m b ra d o , q ue vira m e m ó ria e sa ud a d e ; e um te m p o
sim p le sm e nte vivid o , q ue se va i e m o rre na d istâ nc ia d o p a ssa d o .
As so c ie d a d e s e o s g rup o s fa ze m c o isa s p a re c id a s. E a m e m ó ria
so c ia l (isso q ue vulg a rm e nte se c ha m a “ tra d iç ã o ” o u “ c ultura ” ),
q ue é se m p re fe ita d e um a histó ria c o m H m a iúsc ulo , é ta m b é m
m a rc a d a p o r m e io d e sse s m o m e nto s q ue p e rm ite m a lte rnâ nc ia s
c e rta s e ntre o q ue fo i c o nc e b id o e vivid o c o m o ro tine iro e ha b itua l e
tud o a q uilo q ue fo i vive nc ia d o c o m o c rise , a c id e nte , fe sta o u
m ila g re . Po is o ho m e m é o únic o a nim a l q ue se c o nstró i p e la
le m b ra nç a , p e la re c o rd a ç ã o e p e la “ sa ud a d e ” , e se “ d e sc o nstró i”
p e lo e sq ue c im e nto e p e lo m o d o a tivo c o m q ue c o nse g ue d e ixa r d e
le m b ra r.
No Bra sil, c o m o e m m uita s o utra s so c ie d a d e s, o ro tine iro é
se m p re e q ua c io na d o a o tra b a lho o u a tud o a q uilo q ue re m e te a
o b rig a ç õ e s e c a stig o s... a tud o q ue se é o b rig a d o a re a liza r; a o p a sso
q ue o e xtra -o rd iná rio , c o m o o p ró p rio no m e ind ic a , e vo c a tud o q ue
é fo ra d o c o m um e , e xa ta m e nte p o r isso , p o d e se r inve nta d o e
c ria d o p o r m e io d e a rtifíc io s e m e c a nism o s. C a d a um d e sse s la d o s
p e rm ite “ e sq ue c e r” o o utro , c o m o a s d ua s fa c e s d e um a m e sm a
m o e d a . E, no e nta nto , o s d o is fa ze m p a rte e c o nstitue m e xp re ssõ e s
o u re fle xõ e s d e um a m e sm a to ta lid a d e , um a m e sm a c o isa . O u
m e lho r: ta nto a fe sta q ua nto a ro tina sã o m o d o s q ue a so c ie d a d e
te m d e e xp rim ir-se , d e a tua liza r-se c o nc re ta m e nte , d e ixa nd o ve r a
sua “ a lm a ” o u o se u c o ra ç ã o . Na no ssa so c ie d a d e , te m o s g ra nd e
c o nsc iê nc ia d e ssa a lte rnâ nc ia , d e ta l m o d o q ue a vid a , p a ra a
m a io ria d e nó s, se d e fine se m p re p e la o sc ila ç ã o e ntre ro tina s e fe sta s,
tra b a lho e fe ria d o , d e sp re o c up a ç õ e s e “ c ha te a ç õ e s” , d ia s fe lize s e
m o m e nto s d o lo ro so s, vid a e m o rte , o s d ia s d e “ d ure za ” e “ tra b a lho
d uro ” d o m und o “ re a l” e o s d ia s d e a le g ria e fa nta sia d e sse “ o utro
la d o d a vid a ” c o nstituíd o p e la fe sta , p e lo fe ria d o e p e la a usê nc ia d e
tra b a lho p a ra o o utro (o p a trã o , o G o ve rno , o c he fe , o d o no d o
ne g ó c io e tc ). Re a lm e nte , na fe sta , c o m e m o s, rim o s e vive m o s o m ito
o u uto p ia d a a usê nc ia d e hie ra rq uia , p o d e r, d inhe iro e e sfo rç o físic o .
Aq ui, to d o s se ha rm o niza m p o r m e io d e c o nve rsa s a m e na s e , na
c o nstruç ã o d a fe sta , a m úsic a q ue c o ng re g a e ig ua la no se u ritm o e
na sua m e lo d ia é a lg o a b so luta m e nte fund a m e nta l no c a so b ra sile iro .
No tra b a lho , p o ré m , e sta m o s m a rte la nd o e c o nstruind o , b a te nd o
m a ssa o u “ b a te nd o p e rna ” p a ra a c o m p a nhia , p a ra a fa m ília , p a ra
a m ulhe r e o s filho s, “ p a ra a ho nra d a firm a ” o u d e a lg um a c o isa q ue
e fe tiva m e nte e xig e o no sso sa c rifíc io . Pa ra nó s, b ra sile iro s, a fe sta é
sinô nim o d e a le g ria , o tra b a lho é e ufe m ism o d e c a stig o , d ure za , suo r.
O tra b a lho se m p re ind ic a a id é ia (o u id e a l) d a c o nstruç ã o d o
ho m e m p e lo ho m e m . Um c o ntro le d a vid a e do m und o p e la
so c ie d a d e . To d a s a s ro tina s p ro d utiva s, so b re tud o na s so c ie d a d e s
p ro te sta nte s e p le na m e nte ind ustria liza d a s, sã o m a rc a d a s p e la
p re visã o e p e la ra c io na lid a d e . Há um m ínim o d e inte rfe rê nc ia d e
fa to re s inte rno s (a s e m o ç õ e s d e q ue m tra b a lha sã o inte ira m e nte
c o ntro la d a s) e e xte rno s (o te m p o e o e sp a ç o sã o ig ua lm e nte
m a p e a d o s c o m g ra nd e p re c isã o , d e m o d o q ue o lo c a l d e tra b a lho
fic a lo ng e d a c a sa . É a lg o p ro d uzid o p a ra o p ró p rio tra b a lho , c o m o
um a fá b ric a o u usina ...).
Até m e sm o no c a so da p ro d uç ã o a g ríc o la , o c o rre e ssa
d ia g ra m a ç ã o , d e m o d o q ue a te nta tiva é se m p re d e c ria r um a
se q üê nc ia o nd e o c o ntro le é to ta l. Nã o d e ve ha ve r surp re sa s, nã o
d e ve ha ve r a c id e nte s, nã o d e ve ha ve r c o isa a lg um a de
e xtra o rd iná rio , e xc e to , o b via m e nte , o a um e nto da p ro d uç ã o .
Q ua nd o o c o rre a lg o q ue nã o d ig a re sp e ito a e sse fa to r, e ntã o fo i
p o rq ue um a c id e nte o c o rre u. E o s a c id e nte s a q ui sã o m e d id o s e
e stud a d o s d e ntro d a id e o lo g ia d e se g ura nç a e c o ntro le q ue p re sid e
a to d o triunfo d a e c o no m ia no no sso siste m a . De fa to , d e ntro d e ssa
p e rsp e c tiva , p o d e -se a té m e sm o d ize r q ue o g ra nd e a c id e nte q ue
ho je a ting e um a fá b ric a é a g re ve ; o u se ja , o e xtra o rd iná rio c ria d o
p o r um d o s fa to re s d e p ro d uç ã o , a fo rç a d e tra b a lho ...

Na so c ie d a d e ind ustria l, a a usê nc ia d e m o vim e nto é sinto m a d e


m a l-e sta r so c ia l. O a c id e nte — a q uilo q ue nã o fo i p la ne ja d o o u
p re visto — é ta m b é m sina l d e q ue a lg o e stá ind o m a l. Ap e sa r d e
to d a s a s m e d id a s c o ntra o e xtra -o rd iná rio , c o ntra o a c id e nte e
c o ntra a c o inc id ê nc ia ne g a tiva , p o ré m sa b e m o s q ue e la a c o nte c e . A
p a la vra c a tá stro fe , q ue ta nto usa m o s p a ra d e finir ta is situa ç õ e s,
sig nific a p re c isa m e nte “ re vira vo lta ” , d e m o d o q ue é p e rfe ita p a ra
e sse s c a so s. Aq ui, c o nfo rm e e sta m o s p e rc e b e nd o , e sta m o s d ia nte
d e e xtra o rdiná rio s nã o -p la ne ja d o s e nã o -p re visto s p e la so c ie d a d e .
Esc a p a nd o d o se u c o ntro le c o nsc ie nte , e sse s e ve nto s surg e m c o m o
tra g é d ia s q ue no s a ting e m , c o m o c a tá stro fe s q ue c o lo c a m e m c a usa
no ssa c a p a c id a d e de o rg a niza ç ã o e no ssa p o ssib ilid a d e de
so b re vivê nc ia c o m o c o le tivid a d e . Fura c õ e s, te m p e sta d e s, e nc he nte s,
te rre m o to s, p e ste s, inund a ç õ e s e c o isa s d o g ê ne ro sã o situa ç õ e s fo ra
d a ro tina , m a s sã o situa ç õ e s nã o -p la ne ja d a s. Q ua nd o o m und o é
vivid o d e sse m o d o , e le d e ixa d e fa ze r o se ntid o c o m um , d a nd o a
im p re ssã o d e q ue e stá no fim . É a re vira vo lta d o Dia d o Juízo ,
p o d e m o s p e nsa r. Ma s é p re c iso a c e ntua r q ue ta is situa ç õ e s ta m b é m
p ro m o ve m o e nc o ntro e a so lid a rie d a d e e ntre o s ho m e ns. De fa to ,
d ia nte d a re vo lta im e nsa d a na ture za , to d o s p o d e m unir-se fo ra d e
sua s p o siç õ e s so c ia is e p o lític a s ro tine ira s e , a ssim fa ze nd o , p o d e m
e nc o ntra r-se c o m o irm ã o s d e info rtúnio , o u se re s hum a no s fa ze nd o
fa c e à tre m e nd a ind ife re nç a d a na ture za e m re la ç ã o à so c ie d a d e , e
nã o m a is c o m o p a trõ e s e e m p re g a d o s, ric o s e p o b re s, ho m e ns e
m ulhe re s, o p rim id o s e o p re sso re s...
Ao la d o , p o ré m , d e sse s e xtra -o rdiná rio s q ue sã o a c id e nta is, q ue
ning ué m d e se jo u e q ue nã o fo ra m p la ne ja d o s p e la so c ie d a d e ,
e xiste m m o m e nto s e sp e c ia is q ue o p ró p rio g rup o p la ne ja , c o nstró i,
inve nta e e sp e ra . Am b o s, é c la ro , c o nstro e m a m e m ó ria da
so c ie d a d e , m a s sã o o s se g und o s q ue se rve m c o m o a s ve rd a d e ira s
ro up a g e ns p e la s q ua is a so c ie d a d e c ria e re c ria sua id e ntid a d e so c ia l
e sua s tra d iç õ e s. O m o m e nto fo ra d o c o m um q ue é p la ne ja d o e te m
te m p o m a rc a d o p a ra a c o nte c e r, p o rta nto , é um e sp e lho m uito
im p o rta nte p e lo q ua l a so c ie d a d e se vê a si m e sm a e p o d e se r vista
p o r q ue m q ue r q ue d e se je c o nhe c ê -la .
To d o s o s siste m a s c o nstro e m sua s fe sta s d e m uito s m o d o s. No
c a so d o Bra sil, a m a io r e m a is im p o rta nte , m a is livre e m a is c ria tiva ,
m a is irre ve re nte e m a is p o p ula r d e to d a s é , se m d úvid a , o c a rna va l.
Aliá s, ne ssa fe sta , a p ró p ria d e finiç ã o já p e rturb a , p o is e xc lui d e m o d o
siste m á tic o to d o s o s e le m e nto s q ue ne nhum a fe sta p o d e d isp e nsa r e
q ue sã o im p o rta nte s p a ra o se u p ró p rio d e se nro la r. Q ue ro re fe rir-m e a
to d o s o s e le m e nto s d e o rd e m , d e e c o no m ia e p o lític a q ue o c a rna va l
c e rta m e nte im p lic a — c o m o to d o e ve nto e sp e c ia l —, m a s q ue fic a m
ne c e ssa ria m e nte e xc luíd o s d e sua d e finiç ã o . De fa to , c o nfo rm e
sa b e m o s c o m o b ra sile iro s, o c a rna va l nã o p o d e se r sé rio . Se nã o nã o
se ria um c a rna va l...

Ma s c o m o d e finir o c a rna va l? Nã o se ria e xa g e ro d ize r, é um a


o c a siã o e m q ue a vid a d iá ria d e ixa d e se r o p e ra tiva e , p o r c a usa
d isso , um m o m e nto e xtra o rd iná rio é inve nta d o . O u se ja : c o m o to d a
fe sta , o c a rna va l c ria um a situa ç ã o e m q ue c e rta s c o isa s sã o
p o ssíve is e o utra s d e ve m se r e vita d a s. Nã o p o sso re a liza r um c a rna va l
c o m triste za , d o m e sm o m o d o q ue nã o p o sso te r um fune ra l c o m
a le g ria . C e rta s o c a siõ e s so c ia is re q ue re m d e te rm ina d o s se ntim e nto s
p a ra q ue p o ssa m o c o rre r c o m o ta is. Tra g é d ia s sã o d e finid a s c o m o
e ve nto s triste s e tud o q ue ne la s o c o rre d e c ô m ic o d e ve se r inib id o o u
sim p le sm e nte ig no ra d o . C a rna va is e c o m é d ia s, a o c o ntrá rio , sã o
e p isó d io s e m q ue o triste e o trá g ic o é q ue d e ve m se r b a nid o s d o
e ve nto , c o m o a s ro up a s d o re i q ue e sta va nu e nã o p o d ia se r visto
c o m o ta l...
Ma s c o m o é q ue o p o vo d e fine e vê o Bra sil no c a rna va l? Q ua l a
re c e ita p a ra o c a rna va l b ra sile iro ?

Sa b e m o s q ue o c a rna va l é d e finid o c o m o “ lib e rd a d e ” e c o m o


p o ssib ilid a d e d e vive r um a a usê nc ia fa nta sio sa e utó p ic a d e m isé ria ,
tra b a lho , o b rig a ç õ e s, p e c a d o e d e ve re s. Num a p a la vra , tra ta -se d e
um m o m e nto o nd e se p o d e d e ixa r d e vive r a vid a c o m o fa rd o e
c a stig o . É, no fund o , a o p o rtunid a d e d e fa ze r tud o a o c o ntrá rio :
vive r e te r um a e xp e riê nc ia d o m und o c o m o e xc e sso — m a s a g o ra
c o m o e xc e sso d e p ra ze r, d e riq ue za (o u d e “ luxo ” , c o m o se fa la no
Rio d e Ja ne iro ), d e a le g ria e d e riso ; d e p ra ze r se nsua l q ue fic a —
fina lm e nte — a o a lc a nc e d e to d o s. A “ c a tá stro fe ” q ue o c a rna va l
b ra sile iro p o ssib ilita é a d a d istrib uiç ã o te ó ric a d o p ra ze r se nsua l p a ra
to d o s. Ta l c o m o o d e sa stre d istrib ui o m a le fíc io o u a infe lic id a d e p a ra
a so c ie d a d e , se m e sc o lhe r e ntre ric o s e p o b re s, c o m o a c o nte c e
no rm a lm e nte , o c a rna va l fa z o m e sm o , só q ue a o c o ntrá rio . O Re i
Mo m o , Dio nísio , o Re i da Inve rsã o , da Antie strutura e do
De sre g ra m e nto , c o lo c a a g o ra um a p o ssib ilid a d e c urio sa e , p o r isso
m e sm o , c a rna va le sc a e im p o ssíve l no m und o re a l d a s c o isa s sé ria s e
p la nific a d a s p e lo tra b a lho . E q ue e le sug e re um unive rso so c ia l o nd e a
re g ra é p ra tic a r siste m a tic a m e nte to d o s o s e xc e sso s!

Entre nó s, b ra sile iro s, re a liza r isso é p o d e r d e sc o b rir q ue o


c a rna va l é p e rc e b id o c o m o a lg o q ue ve m d e fo ra , c o m o um a
o nd a irre sistíve l q ue no s d o m ina , c o ntro la e , m e lho r a ind a , se d uz
ina p e la ve lm e nte . Alg o q ue c he g a a té nó s p e rio d ic a m e nte se m q ue
ha ja p o ssib ilid a d e d e re sistir. É ta m b é m d e sc o b rir q ue , p o r c a usa d isso
m e sm o , to d o s sã o ig ua is — o u p o d e m se r ig ua is — p e ra nte o c a rna va l.
De sse m o d o , o c a rna va l, c o m sua s re g ra s d e inve rsã o , fic a c o m o q ue
d e slo c a d o d a re a lid a d e c o tid ia na , p o d e nd o se r vivid o c o m o a lg o d e
fo ra e , d a í, c o m o a lg o q ue surg e c o m o um a re g ra o u le i na tura l q ue
te ria va lid a d e p a ra to d o s, ind e p e nd e nte m e nte d e sua p o siç ã o na
e strutura so c ia l. O u a p e sa r d e la ... O u p o r c a usa d e la ...
Ma s q ue é isso q ue o c a rna va l c o nse g ue fa ze r c o m o Bra sil? Q ue
e xtra o rd iná rio é e sse q ue c ha m a m o s c o le tiva m e nte d e c a rna va l?
Pe nso q ue o c a rna va l é b a sic a m e nte um a inve rsã o d o m und o .
Um a c a tá stro fe . Só q ue é um a re vira vo lta p o sitiva , e sp e ra d a ,
p la nific a d a e , p o r tud o isso , vista c o m o d e se ja d a e ne c e ssá ria e m
no sso m und o so c ia l. Ne le , c o nfo rm e sa b e m o s, tro c a m o s a no ite p e lo
d ia ; o u, o q ue é a ind a m a is inve ro ssím il: fa ze m o s um a no ite e m p le no
d ia , sub stituind o o s m o vim e nto s d a ro tina d iá ria p e la d a nç a e p e la s
ha rm o nia s d o s m o vim e nto s c o le tivo s q ue d e sfila m num c o njunto
ritm a d o , c o m o um a c o le tivid a d e ind e strutíve l e c o rp o rific a d a na
m úsic a e no c a nto . No c a rna va l, tro c a m o s o tra b a lho q ue c a stig a o
c o rp o (o ve lho trip a lium o u c a ng a ro m a na q ue sub jug a va e sc ra vo s)
p e lo uso d o c o rp o c o m o instrum e nto d e b e le za e d e p ra ze r. No
tra b a lho , e stra g a m o s, sub m e te m o s e g a sta m o s o c o rp o . No c a rna va l,
isso ta m b é m o c o rre , m a s d e m o d o inve rso . Aq ui, o c o rp o é g a sto
p e lo p ra ze r. Da í p o r q ue fa la m o s q ue “ no s e sb a ld a m o s” ou
“ liq uid a m o s” no c a rna va l. Aq ui, usa m o s o c o rp o p a ra no s d a r o
m á xim o d e p ra ze r e a le g ria ...
Pe la m e sm a ló g ic a , o c a rna va l p e rmite a tro c a e a sub stituiç ã o
d o s unifo rm e s p e la s fa nta sia s. Sa b e m o s q ue o unifo rm e (c o m o to d a s
a s ve ste s fo rm a is d o m und o d iá rio ) c ria a o rd e m . O unifo rm e é um a
ro up a q ue “ unifo rm iza ” , isto é , fa z c o m q ue to d o s fiq ue m ig ua is,
suje ito s a um a m e sm a o rd e na ç ã o o u p rinc íp io d e g o ve rno . Ma s a
fa nta sia p e rm ite a inve nç ã o e a tro c a d e p o siç õ e s. No te -se q ue , no
Bra sil, nã o fa la m o s e m m á sc a ra s, m a s e m fa nta sia s. O no sso te rm o é
m a is a b ra ng e nte e m p e lo m e no s d o is se ntid o s m uito p re c iso s. Prim e iro ,
e le d iz m a is d o q ue a lg o q ue se rviria a p e na s p a ra ta p a r o u d isfa rç a r o
ro sto o u o na riz. De p o is, p o rq ue a p a la vra “ fa nta sia ” te m d up lo
se ntid o . É a lg o e m q ue se p o d e p e nsa r a c o rd a d o , o so nho q ue se
te m q ua nd o a ro tina m a is no s e sc ra viza e re vo lta ; e ta m b é m a ro up a
q ue só se usa no c a rna va l o u p a ra um a situa ç ã o c a rna va liza d o ra .
Assim , e la p e rm ite q ue p o ssa m o s se r tud o o q ue q ue ría m o s, m a s q ue a
“ vid a ” nã o p e rm itiu. C o m e la — e ja m a is c o m o unifo rm e —,
c o nse g uim o s um a e sp é c ie d e c o m p ro m isso e ntre o q ue re a lm e nte
so m o s e o q ue g o sta ría m o s d e se r. O unifo rm e a c ha ta , o rd e na e
hie ra rq uiza . A fa nta sia lib e rta , de s-c o nstró i, a b re c a m inho e p ro m o ve
a p a ssa g e m p a ra o utro s lug a re s e e sp a ç o s so c ia is. Ela p e rm ite e
a jud a o livre trâ nsito d a s p e sso a s p o r d e ntro d e um e sp a ç o so c ia l q ue
o m und o c o tid ia no to rna p ro ib itivo c o m a s re p re ssõ e s d a hie ra rq uia e
d o s p re c o nc e ito s e sta b e le c id o s. Ê a fa nta sia q ue p e rm ite p a ssa r d e
ning ué m a a lg ué m; d e m a rg ina l d o m e rc a d o d e tra b a lho a fig ura
m ito ló g ic a d e um a histó ria a b so luta m e nte e sse nc ia l p a ra a c ria ç ã o
d o m o m e nto m á g ic o d o c a rna va l. Se no m und o d iá rio e sta m o s to d o s
lim ita d o s p e lo d inhe iro q ue se g a nha (o u nã o se g a n h a ...) , p e la s le is
d a so c ie d a d e , d o m e rc a d o , d a c a sa e d a fa m ília , no c a rna va l e na
fa nta sia te m o s a p o ssib ilid a d e d o d isfa rc e e d a lib e ra ç ã o . Há a
p o ssib ilid a d e d e vira r o nip o te nte e se r tud o o q ue se te m vo nta d e .
O ra , é p re c isa m e nte p o r e sta r vive nd o num m und o a ssim c o nstituíd o ,
o nd e a s re g ra s d o m und o d iá rio e stã o te m p o ra ria m e nte d e c a b e ç a
p a ra b a ixo , q ue p o sso g a nha r e re a lm e nte se ntir um a inc ríve l
se nsa ç ã o d e lib e rd a d e . Se nsa ç ã o d e lib e rd a d e q ue m e p a re c e
fund a m e nta l num a so c ie d a d e c uja ro tina é d o m ina d a p e la s
hie ra rq uia s q ue suje ita m a to d o s a um a e sc a la c o m p le xa d e d ire ito s e
d e ve re s vind o s d e c im a p a ra b a ixo , d o s sup e rio re s p a ra o s infe rio re s,
d o s “ e le m e nto s” q ue e ntra m na fila e d a s “ p e sso a s” q ue ja m a is sã o
vista s e m p úb lic o c o m o c o m uns.
Re a lm e nte , se no m und o d iá rio so m o s g o ve rna d o s p e lo d ita d o
e p e la ló g ic a so c ia l q ue d iz “ c a d a m a c a c o no se u g a lho ” e ta m b é m
“ um lug a r p ra c a d a c o isa , c a d a c o isa e m se u lug a r” , no c a rna va l
c ria m o s um c e ná rio e um a a tm o sfe ra so c ia l o nd e tud o isso p o d e se r
tro c a d o d e lug a r, inve rtid o e sub ve rtid o p e la s le is q ue c o m a nd a m o
re ina d o d e Mo m o . Nã o é p o r sim p le s a c a so q ue c ha m a m o s o
c a rna va l e a c e na c a rna va le sc a d e “ lo uc ura ” ! O te rm o lo uc ura a q ui
surg e p o rq ue , no c a rna va l, tud o e sta ria fo ra de lug a r —
c a rna va liza d o , c o m o d iz Ba khtin, q ue intro d uziu e sse c o nc e ito no
e stud o d a s m a nife sta ç õ e s d o c a rna va l e uro p e u p a ra e xp rim ir
inte le c tua lm e nte sua s m últip la s vo ze s e te xto s. De fa to , no c a so d o
Bra sil, a nd a m o s p e la s rua s d o c e ntro c o m e rc ia l d e no ssa s c id a d e s
com a ro up a q ue q ue re m o s e em p le no d ia , se m a m e no r
p re o c up a ç ã o d e se rm o s a tro p e la d o s o u visto s p o r no sso s p a trõ e s,
p a is o u a m ig o s a risto c rá tic o s. Muito p e lo c o ntrá rio , a o se rm o s visto s,
e le s é q ue c o rre m o risc o d e se re m se d uzid o s p e la no ssa inve stid a
c a rna va le sc a . C o m e m o s e b e b e m o s na s rua s, tro c a nd o a c a sa p e lo
m und o p úb lic o e a li re a liza nd o a ç õ e s q ue sã o b a nid a s d o m und o
so c ia l a b e rto . Do rm im o s no a sfa lto , e m p le na rua : lo c a l p e rig o so e
m a ld ito , com se u c o tid ia no c rue l e m o vim e nta d o , ma s
e stra nha m e nte p a c ífic o e se g uro no c a rna va l. Po d e m o s a té m e sm o
fa ze r a m o r c o m p ro te ç ã o o fic ia l e p o lic ia l, p o is G o ve rno e p o líc ia ,
q ue d ura nte to d o o a no no s c o b re m d e im p o sto s e c o m p o stura ,
a g o ra no s d e fe nd e m e c o m p re e nd e m c o m sim p a tia o no sso d e se jo e
a no ssa hum a nid a d e c a rna va le sc a , o u m e lho r, p ro te g id a p e lo
c a rna va l. No c a rna va l nó s c a nta m o s e no s ha rm o niza m o s,
m o vim e nta nd o no sso s c o rp o s e m ritm o s a c a sa la d o s, e m ve z d e
re c la m a r, d isc ursa r o u e sc re ve r. Aq ui, a m e nsa g e m d e ixa d e se r
im p o rta nte e o q ue v a le é ta m b é m o c a nto p e lo c a nto , a m úsic a
p e la m úsic a , a a le g ria p e la a le g ria . C o m o o s fo g o s d e a rtifíc io q ue
e xp lo d e m p a ra o d e le ite d o s o lho s, o d isc urso c a rna va le sc o e stá
ta m b é m a uto -re fe re nc ia d o . To d o s p o d e m o s, a ssim , vira r p o e ta s. Alé m
d isso , o c a rna va l o b rig a a um a g ra ve sinc e rid a d e . Nã o se p o d e
fre q üe nta r o c a rna va l se m vo nta d e . De fa to , p o sso ir a um a c e rim ô nia
o fic ia l, c o m o um a fo rm a tura , p o sse o u c a sa m e nto , se m se ntir na d a ,
a té m e sm o a c ha nd o tud o a q uilo a b o rre c id o e m a ç a nte . Ma s nã o
p o sso fa ze r o m e sm o se vo u a um b a ile d e c a rna va l, o nd e c o rp o e
a lm a d e ve m e sta r junto s e se re i p unid o se me m o stra r “ b e m -
c o m p o rta d o ” . No c a rna va l, nó s, b ra sile iro s, c a nta m o s e , g e ra lm e nte ,
p o d e m o s fa ze r o q ue c a nta m o s, o q ue p e rm ite q ue a s p e sso a s se
o lhe m e , sub ita m e nte , se ve ja m e m sua unid a d e c o m o “ p e sso a s” e
e m sua d ive rsid a d e c o m o m e m b ro s d e um a c o m unid a d e so c ia l e
p o litic a m e nte d ife re nc ia d a . O d ive rso , o d ife re nte — o unive rso d a
ind ivid ua lid a d e —, q ue é tã o te m id o na vid a d iá ria , é m o e d a c o rre nte
no c a rna va l, o nd e to d o s p o d e m surg ir c o m o ind ivíd uo s e c o m o
sing ula rid a d e , e xe rc e nd o o d ire ito d e inte rp re ta r o m und o d o se u
“ je ito ” e a se u m o d o . Ig ua lm e nte , a c rític a so c ia l, q ue p o d e d a r e m
p risã o e c e nsura , é re a liza d a a b e rta m e nte , ta nto q ua nto a
c o m p e tiç ã o , q ue to d o s te m e m c o m o a lg o m o nstruo so , m a s é
ta m b é m a c e ita e m to d o s o s c a rna va is b ra sile iro s, fe ito s d e inúm e ro s
c o nc urso s. De fa to , e ssa c o m p e tiç ã o é tã o a b e rta q ue há
c o m p e tiç ã o p a ra tud o : m úsic a s, fa nta sia s, m a io r c a p a c id a d e d e
e xib ir-se e , na tura lm e nte , a d isp uta d o s b lo c o s e e sc o la s d e sa m b a ,
so b re tud o no c a so d o Rio d e Ja ne iro . Aq ui, o m und o fic a m e sm o d e
c a b e ç a p a ra b a ixo . Nã o so m e nte p o rq ue a s “ e sc o la s” sã o d e g e nte
p o b re e q ue vive no s m o rro s e sub úrb io s d o Rio , zo na s q ue
c o ng re g a m a m a ssa d o s sub e m p re g a d o s lo c a is, m a s ta lve z p o r
e sta rm o s a q ui p a ra a ssistira um m o num e nta l c o nc urso p úb lic o , a um a
fa ntá stic a c o m p e tiç ã o o nd e ta nto o s jura d o s o fic ia is q ua nto o
p úb lic o e m g e ra l c o nhe c e m to d a s a s re g ra s e to d o s o s m e io s d e
p e rd e r e ve nc e r. C o isa d o o utro m und o ? Alg o e xtra o rd iná rio ? C la ro
q ue sim . Num a so c ie d a d e q ue ja m a is vive a si m e sm a c o m o um jo g o
o u c o nc urso e m q ue a s p e sso a s p o d e m m ud a r d e lug a r p e lo p ró p rio
d e se m p e nho , tud o isso é fo ra d o c o m um . Ba sta o b se rva r q ue nó s,
b ra sile iro s, so m o s um p o vo m a rc a d o e d ivid id o p e la s o rd e ns
tra d ic io na is: o no m e d e fa m ília , o título d e d o uto r, a c o r d a p e le , o
b a irro o nd e m o ra m o s, o no m e d o p a d rinho , a s re la ç õ e s p e sso a is, o
se r a m ig o d o Re i, C he fe Po lític o o u Pre sid e nte . Tud o isso no s c la ssific a
so c ia lm e nte d e m o d o irre m e d iá ve l. Ja m a is utiliza m o s o c o nc urso
p úb lic o e a c o m p e tiç ã o c o m o a lg o no rm a l e ntre nó s, d a í o tra b a lho
q ue é fa ze r um a e le iç ã o ho ne sta e d isp uta d a . Ela im p lic a , inc lusive ,
a lg o q ue e vita m o s: d a r o p iniõ e s e d isp uta r vo nta d e s, re ve la nd o
a b e rta m e nte a s no ssa s m a is le g ítim a s (e o c ulta s) d ife re nc ia ç õ e s
so c ia is. Ma s q ue c o isa m ila g ro sa ! Ag o ra , em p le na fe sta
c a rna va le sc a , p o d e m o s fina lm e nte no s a b rir p a ra a s no ssa s a sp ira ç õ e s
e a sso c ia ç õ e s, re ve la nd o le g itim a m e nte o s no sso s d e se jo s e vo nta d e s.
É o q ue fa z e sse c o nc urso d e e sc o la s d e sa m b a q ue , sa b e m o s, só
p o d e se r g a nho no p é . Na b a se d o d e se m p e nho , d o é la n e d a
vo nta d e d e ve nc e r. Aq ui, o s a p a d rinha m e nto s sã o p o lic ia d o s e o
p o vo a g e c o m o ja m a is p o d e re a lm e nte o p e ra r: c o m o juiz sup re m o
q ue c o nhe c e a s re g ra s d o jo g o e a s a p lic a c o m g a na e justiç a .
C a rna va l, p o is, é inve rsã o p o rq ue é c o m p e tiç ã o num a so c ie d a d e
m a rc a d a p e la hie ra rq uia . É m o vim e nto num a so c ie d a d e q ue te m
ho rro r à m o b ilid a d e , so b re tud o à m o b ilid a d e q ue p e rm ite tro c a r
e fe tiva m e nte de p o siç ã o so c ia l. É e xib iç ã o num a o rd e m so c ia l
m a rc a d a p e lo fa lso re c a to d e “ q ue m c o nhe c e o se u lug a r” — a lg o
se m p re usa d o p a ra o m a is fo rte c o ntro la r o m a is fra c o e m to d a s a s
situa ç õ e s. É fe m inino num unive rso so c ia l e c o sm o ló g ic o m a rc a d o
p e lo s ho m e ns, q ue c o ntro la m tud o o q ue é e xte rno e juríd ic o , c o m o
o s ne g ó c io s, a re lig iã o o fic ia l e a p o lític a . Po r tud o isso , o c a rna va l é a
p o ssib ilid a d e utó p ic a d e m ud a r d e lug a r, d e tro c a r d e p o siç ã o na
e strutura so c ia l. De re a lm e nte inve rte r o m und o e m d ire ç ã o à a le g ria ,
à a b und â nc ia , à lib e rd a d e e , so b re tud o , à ig ua ld a d e d e to d o s
p e ra nte a so c ie d a d e . Pe na q ue tud o isso só sirva p a ra re ve la r o se u
justo e e xa to o p o sto ...
As festas da ordem
As fe sta s p e rm ite m d e sc o b rir o sc ila ç õ e s e ntre um a visã o a le g re e
um a le itura so turna da vid a . Pe rm ite m ig ua lm e nte inve nta r
te m p o ra lid a d e s d ife re nc ia d a s, p o is p ro m o ve m um a d ura ç ã o m uito
rá p id a — c o m tud o p o d e nd o a c o nte c e r no m o m e nto d a fe sta ,
c o m o é o c a so d o c a rna va l — o u m uito le nta e p e sa d a , c o m o
a c o nte c e c o m q ua se to d o s o s ritua is d a o rd e m , o u fo rm a lid a d e s.
To d a s a s fe sta s — o u o c a siõ e s e xtra o rd iná ria s — re c ria m e re sg a ta m o
te m p o , o e sp a ç o e a s re la ç õ e s so c ia is. Ne la s, a q uilo q ue p a ssa
d e sp e rc e b id o , o u ne m m e sm o é visto c o m o a lg o m a ra vilho so o u
d ig no d e re fle xã o , e stud o o u d e sp re zo no q uo tid ia no , é re ssa lta d o e
re a lç a d o , a lc a nç a nd o um p la no d istinto . Assim , é na fe sta q ue
to m a m o s c o nsc iê nc ia d e c o isa s g ra tific a nte s e d o lo ro sa s. Q ue nã o
p o d e m o s c o m p a re c e r p o rq ue nã o so m o s d a m e sm a c la sse so c ia l;
q ue nã o p o d e m o s d e se m p e nha r p a p e l im p o rta nte p o rq ue nã o so m o s
d a q ue la c o rp o ra ç ã o ; q ue so m o s b o ns d a nç a rino s e q ue va lsa m o s
c o m g ra ç a e le ve za , p o is na fe sta a lg ué m a ssim no s d isse ; q ue a q ue la
m o ç a é re a lm e nte lind a p o rq ue a ssim se a p re se nto u no b a ile d e
fo rm a tura ; q ue no sso a m ig o é e xc e le nte o ra d o r p o rq ue fo i a fe sta
q ue o d e sta c o u c o m o ta l. C o m o se o b se rva , sã o inúm e ra s a s
situa ç õ e s e m q ue a fe sta p ro m o ve a d e sc o b e rta d o ta le nto , d a
b e le za , d a c la sse so c ia l, d o p re c o nc e ito e d a a le g ria . Nã o se ria
p o ssíve l e sg o tá -la s. Ma s p o sso d isting uir, e a ssim d e vo p ro c e d e r, a s
fe sta s d a o rd e m d a q ue la s q ue p ro m o ve m a “ d e so rd e m ” o u a o rg ia ,
q ue fic a no lim ite d o c rim e e d a re vo lta .
Suste nto q ue , no c a so b ra sile iro , to d a s a s so le nid a d e s p e rm ite m
lig a r a c a sa , a rua e o utro m und o . Só q ue c a d a um a d e la s fa z e ssa
lig a ç ã o d e m o d o e sp e c ífic o e a p a rtir d e p o siç õ e s d ife re nte s. O
c a rna va l lig a c a sa , rua e o utro m und o q ue re nd o e p ro p o nd o a
a b e rtura d e to d a s a s p o rta s e d e to d a s a s m ura lha s e p a re d e s. O s rito s
c ívic o s e re lig io so s — a s fe sta s d a o rd e m p o r e xc e lê nc ia — fa ze m o
m e sm o , m a s sua s p ro p o sta s sã o d ife re nte s. De fa to , no s c a rna va is e
o rg ia s, o p ro p ó sito b á sic o p a re c e se r o d e ig ua la r e junta r. Se u
o b je tivo é a b o lir to d a s a s d ife re nç a s, o u p e lo m e no s fo i a ssim q ue viu
Ba khtin na s so c ie d a d e s hie ra rq uiza d a s. Ma s no c a so d a s fe sta s d a
o rd e m , o u se ja , d a s fo rm a lid a d e s so c ia is e m q ue se c e le b ra m a s
re la ç õ e s so c ia is ta l c o m o e la s o p e ra m no m und o d iá rio , a s d ife re nç a s
sã o m a ntid a s. Aq ui, a o c o ntrá rio do c a rna va l, o q ue se e stá
c e le b ra nd o é a p ró p ria o rd e m so c ia l, c o m sua s d ife re nç a s e
g ra d a ç õ e s, se us p o d e re s e hie ra rq uia s. Nã o se d e se ja vira r o m und o
d e p e rna s p a ra o a r, c o lo c a nd o -o d e c a b e ç a p a ra b a ixo , m a s o q ue
se p re te nd e é p re c isa m e nte c e le b ra r o m und o ta l c o m o e le é no
q uo tid ia no . Da í p o r q ue , e m o utro lug a r (no m e u livro C a rna va is,
ma la ndro s e he ró is) , c ha m e i o s c a rna va is d e “ rito s d e inve rsã o ” e o s
fe stiva is d a o rd e m d e “ rito s d e re fo rç o ” . Minha id é ia e ra sa lie nta r e ssa s
p ro p rie d a d e s e strutura is d e um e o utro m o m e nto so le ne : o c a rna va l
p ro m o ve nd o a ig ua ld a d e e a sup re ssã o d e fro nte ira s, e a s fe sta s
c ívic a s e re lig io sa s p ro m o ve nd o a sua g lo rific a ç ã o e m a nute nç ã o .
De sse m o d o , o s ritua is re lig io so s p a rte m d e ig re ja s e lo c a is
sa g ra d o s, p re te nd e nd o o rd e na r o m und o d e a c o rd o c o m o s va lo re s
q ue sã o a li a rtic ula d o s c o m o o s m a is b á sic o s. O m und o d e De us —
re p re se nta d o p e la Ig re ja C a tó lic a e p e la s fo rm a s d e re lig io sid a d e q ue
a e la se re fe re m — é um unive rso o nd e a s c o isa s se o rd e na m d e m o d o
p le na m e nte ve rtic a l. De c im a p a ra b a ixo e d e b a ixo p a ra c im a . C o m
De us, a Virg e m Ma ria , o s sa nto s, o s a njo s, o s m á rtire s, o s b e a to s, o s
sa c e rd o te s e o s fié is fo rm a nd o um a c a d e ia : d o a lta r-m o r, o nd e e ssa
ve rtic a lid a d e e stá instituíd a , a té o a d ro d a ig re ja , o nd e a s p e sso a s se
e sp a lha m , m istura nd o o p ro fa no c o m o sa g ra d o . Aq ui, a o rd e m é
p a ra d o xa lm e nte sa lie nta d a e a o m e sm o te m p o ne g a d a , p o is —
c o nfo rm e sa b e m o s — a Ig re ja d e c la ra e xp lic ita m e nte q ue se u re ino
nã o é d e ste m und o , m a s d o o utro . E De us, o s sa nto s e a Virg e m
p o d e m inte rc e d e r e a g ra c ia r c o m sua a jud a q ua lq ue r p e sso a . Ele s
sã o p a tro c ina d o s p e la s ig re ja s, m a s a Ig re ja (o u ig re ja s) nã o o s p o ssui
ne m p o d e c o ntro la r sua s a ç õ e s. Ela p o d e inte rp re tá -lo s, m a s sua s
vo ze s tê m c ó d ig o s p ró p rio s q ue a p ró p ria Ig re ja p o d e d e sc o nhe c e r,
e m b o ra d e va sa b e r re c o nhe c e r. De sse m o d o , o e sp a ç o re lig io so
d e m a rc a um a á re a o nd e é p o ssíve l e nc o ntra r o ric o e o p o b re , o
p o d e ro so e o fra c o , o sa d io e o a le ija d o , o ho m e m e a m ulhe r, o
a d ulto e a c ria nç a , o sa nto e o p e c a d o r, o c re nte fe rvo ro so e o
fre q üe nta d o r e sp o rá d ic o e d ista nte .
O p a tro c ínio o u p a tro na g e m d o s sa nto s e d e use s c ria e ssa s
re g iõ e s ne utra s, m a s hie ra rq uic a m e nte o rd e na d a s, o nd e e xiste um a
e sp é c ie d e c a rna va l d e vo to o u te rra d e ning ué m , já q ue to d o s
p o d e m e nc o ntra r-se c o m to d o s d e ntro d e sse e sp a ç o . Ma s é p re c iso
a c e ntua r q ue e ssa c a rna va liza ç ã o (o u tro c a d e lug a r) na d a te m a ve r
c o m e xc e sso s o u c o m a p o ssib ilid a d e d e vira r o m und o d e c a b e ç a
p a ra b a ixo . Ao c o ntrá rio , no s rito s d a o rd e m e m g e ra l, e no s ritua is
re lig io so s e m p a rtic ula r, o c o m p o rta m e nto é m a rc a d o p e la c o ntriç ã o
e p e la so le nid a d e q ue se c o nc re tiza m na s c o nte nç õ e s c o rp o ra is e
ve rb a is. O c o rp o , e ntã o , na Ig re ja e na s so le nid a d e s d a o rd e m é
m a rc a d o p e la rig id e z d o s g e sto s e p o r fo rm a s o b rig a tó ria s d e
g e stic ula ç ã o . Sã o m a ne ira s d e m a rc a r a c o nte nç ã o e d e p ro m o ve r a
unifo rm id a d e e a tra nq üila o b e d iê nc ia d o s fié is o u se rvid o re s, já q ue
tud o isso c o nd uz a um a visã o o rd e na d a d a p ró p ria o c a siã o fo rm a l.
Ta m b é m é p o ssíve l q ue ta is fo rm a s d e ritua liza ç ã o p re te nd a m
a sse g ura r o re sp e ito a q ua lq ue r p re ç o , p o is a c o nte nç ã o d o c o rp o
sig nific a , d e c e rto m o d o , a lib e rd a d e d o e sp írito , q ue p o d e o u nã o
e sta r p re se nte c o m a m e sm a c o nvic ç ã o na so le nid a d e . Assim , e u
p o sso e sta r a jo e lha d o num a ig re ja , m a s te r m e u e sp írito , m uito lo ng e
d a li, o q ue no c a so d e um ritua l o rg iá stic o é im p o ssíve l, d a d a a
so lic ita ç ã o e m q ue o c o rp o e o e sp írito e stã o im p lic a d o s. De fa to ,
num a lm o ç o c o m o s a m ig o s o u num b a ile d e c a rna va l, nã o p o sso
d e ixa r d e m e e nvo lve r. A fe sta c a rna va le sc a re q ue r tud o d e m im :
m e u c o rp o e m inha a lm a , m inha vo nta d e e m inha e ne rg ia . Ma s a s
fe sta s d a o rd e m p a re c e m d isp e nsa r e ssa m o tiva ç ã o to ta liza d a . Da í,
ta lve z, e ssa s re g ra s ríg id a s d e c o nte nç ã o c o rp o ra l, ve rb a l e g e stua l
no s rito s d a o rd e m .
O p o d e r d o sa g ra d o , c o nfo rm e d izia o so c ió lo g o fra nc ê s Ém ile
Durkhe im , é um p o d e r q ue p e rm ite d isting uir o m und o d iá rio , c o m
sua s ro tina s a uto m á tic a s e q ue te nd e m a um a iné rc ia e um a
ind ife re nc ia ç ã o c a d a ve z m a io re s, e sse siste m a d e c o isa s q ue e ra m
c ha m a d a s d e “ p ro fa na s” , d a s c o isa s e d o unive rso d e De us e d o Alto .
Pa ra se p a ra r um d o s o utro s, na d a m e lho r q ue o s sina is d e re sp e ito e
d e c o nte nç ã o físic a e so c ia l: a nd a r na p o nta d o s p é s, fa la r b a ixinho ,
usa r um a ling ua g e m d ife re nte — e xó tic a o u m o rta , c o m o o la tim o u o
he b ra ic o —, ve stir ro up a s e sp e c ia is ta m b é m a ntig a s o u to ta lm e nte
d ife re nte s d o s c o stum e s d o m und o d iá rio — ro up a s q ue tra nsfo rm a m
o m a sc ulino e m a lg o a m b íg uo o u o fe m inino e m a lg um a c o isa ne utra .

A le itura d a so c ie d a d e fa c ulta d a p e lo s rito s d a o rd e m , e ntã o , é


um a le itura o nd e o c o rp o d e ve se r c o ntid o ou a té m e sm o
ne utra liza d o . A c o ntinê nc ia m ilita r é e xc e le nte e xe m p lo d isso , p o is o s
rito s d a o rd e m inc lue m ta m b é m a s g ra nd e s c o m e m o ra ç õ e s m ilita re s,
c o m o a s p a ra d a s — q ue sã o fo rm a s típ ic a s d e c o m e m o ra ç ã o so c ia l
e m q ue o unive rso d a so c ie d a d e é lid o o u a p re se nta d o a p a rtir d o
c ó d ig o d o Esta d o na sua ve rte nte m a is fo rte , m a is o rd e na d a e , ta lve z
p o r isso m e sm o , m a is p a trió tic a : a d e sua s Fo rç a s Arm a d a s, q ue
d e sfila m e m sa ud a ç ã o fo rm a l à s a uto rid a d e s c o nstituíd a s. De a c o rd o
c o m isso , le m b ro q ue a p a la vra “ c o ntinê nc ia ” sig nific a um a to c ujo
se ntid o p ro fund o é p re c isa m e nte o de c o nte r-se , c o ntro la r-se ,
d o m ina r-se ...
Tud o isso é sa lie nta d o c o m p re c isã o e m to d o s o s rito s d a o rd e m
— se ja m c ívic o s o u re lig io so s — o nd e a id é ia d e sa c rific a r o c o rp o (um
c e ntro d e p ra ze r d a d o im e d ia ta m e nte p e la e xp e riê nc ia hum a na )
p e la p á tria , p o r De us o u p o r um p a rtid o p o lític o a c a b a se e xp rim ind o
p e la no ç ã o d e de ve r, d e de vo ç ã o e d e o rd e m. O q ue c o ntra sta
tre m e nd a m e nte com os ritua is c a rna va le sc o s, o nd e o c o rre
e xa ta m e nte o o p o sto , já q ue no c a rna va l o s va lo re s sa lie nta d o s sã o
o p ra ze r p e lo c o rp o (d a í sua c a p a c id a d e ig ua litá ria e g ro te sc a ) e ,
c o m isso , a d e so rd e m o b tid a a tra vé s d e le , q ue c o nd uz a um a ra d ic a l
tra nsfo rm a ç ã o , te m p o rá ria m a s inte nsa , d a e strutura so c ia l.
Na s fe sta s d a o rd e m , a ê nfa se é se m p re c o lo c a d a na o rd e m ,
na , re g ula rid a d e , na re p e tiç ã o , na m a rc ha o rd e ira , no c â ntic o
c a d e nc ia d o , no c o ntro le d o c o rp o q ue , re p ito , re m e te à id é ia d e
sa c rifíc io e d isc ip lina , e sse s d o is ing re d ie nte s b á sic o s d a p ro m e ssa .
Aq ui, o m und o é e ng lo b a d o e a p re se nta d o p e la s p o siç õ e s so c ia is
q ue a so c ie d a d e c o nsid e ra im p o rta nte s. Se u fo c o é na s a uto rid a d e s:
d e De us, Pá tria , Sa úd e , Ed uc a ç ã o e Instruç ã o . Nisso , e le s re ve la m ,
a m p lia nd o ,a s d ife re nc ia ç õ e s so c ia is já e xiste nte s no m und o d iá rio ,
o nd e a s p e sso a s e fe tiva m e nte se d isting ue m p o r m e io d e c a d e ia s
hie rá rq uic a s q ue ind ic a m e re ve la m sua im p o rtâ nc ia na re p ro d uç ã o
da o rd e m so c ia l c o nhe c id a . De sse mo d o , se um a p e sso a é
p re sid e nte , g o ve rna d o r, se na d o r, d e p uta d o , se c re tá rio , juiz o u
p ro fe sso r, é e xa ta m e nte a ssim q ue d e ve a p a re c e r no s rito s d a o rd e m .
Pe la m e sm a ló g ic a e se g uind o o m e sm o p rinc íp io d o re fo rç o e d a
a m p lia ç ã o , se a p e sso a nã o te m q ua lq ue r a uto rid a d e o u p o siç ã o
so c ia l e fa z p a rte d a q uilo a q ue c ha m a m o s g e ne ric a m e nte “ p o v o ” ,
é d e ste la d o q ue d e v e fic a r. Entre a uto rid a d e s e p o vo , ne ssa s
o c a siõ e s so le ne s e fo rm a is, há um a c la ra d ivisã o . Se ja um a c e rc a , se ja
um e sp a ç o va zio , se ja um p a la nq uim o u o utra c o nstruç ã o q ua lq ue r
q ue p e rm ita im e d ia ta m e nte sa b e r q ue m é q ue m , p o is o s rito s d a
o rd e m nã o a d m ite m a c o nfusã o de p a p é is o u p o siç õ e s. Ta is
d istinç õ e s o c o rre m a té m e sm o na s g ra nd e s p ro c issõ e s, o nd e um a
g ro ssa c o rd a se p a ra o sa nto (o u sa nta ) e a s a uto rid a d e s e c le siá stic a s,
c ivis e m ilita re s q ue e stã o e m sua vo lta , g e ra lm e nte c a rre g a nd o junta s
o a nd o r, d o p o vo e m g e ra l, q ue e stá a o re d o r e q ue fo rm a um
o c e a no g e ne ra liza d o d e d e vo to s q ue se m istura m . Fo i p o r p e rc e b e r
e sse c e ntro tã o o rd e na d o e e sse “ re sto ” tã o c a rna va le sc a m e nte
d e so rd e na d o , q ue e u já a firm e i a nte rio rm e nte q ue a q ui tínha m o s
um a e strutura d e “ tip o c o m e ta ” . Alg o q ue p o ssuía um c e ntro
vo lta d o p a ra a lig a ç ã o fo rm a l e ntre o c é u e a te rra , m a s p o r m e io
d a s a uto rid a d e s c o nstituíd a s, q ue , p o r sua ve z, se lig a va m a o p o vo
e m g e ra l na fo rm a d e um a b e la , se nã o c o ntund e nte , d ra m a tiza ç ã o
d a hie ra rq uia e d a a uto rid a d e . Da í p o r q ue , na s p ro c issõ e s, o p o vo
fo rç a a c o rd a p a ra p a ssa r p a ra o la d o d a s a uto rid a d e s e p a ra p e rto
d o sa nto . De fa to , “ p ula r a c o rd a ” o u p a ssa r p o r e la sig nific a , ne sse
c o nte xto sim b ó lic o , um a m ud a nç a sig nific a tiva d e p o siç ã o so c ia l.

Se os rit o s da d e so rd e m p ro m o v e m te m p o rá ria s
d e sc o nstruç õ e s o u re -a rrum a ç õ e s so c ia is, o s rito s d a o rd e m m a rc a m
d e fo rm a ta xa tiva q ue m é a to r e q ue m é e sp e c ta d o r. Aq ui nã o há a
m e no r p o ssib ilid a d e d e tro c a r d e lug a r, e xc e to — é c la ro — p e la
q ue b ra d o p ro to c o lo . E re a lm e nte a p a la vra p ro to c o lo re ve la e sse
c ó d ig o ríg id o q ue to d o s d e ve m se g uir p a ra q ue o c e rim o nia l p o ssa
“ d a r c e rto ” . O u se ja : p a ra q ue o ritua l p o ssa se r um m o m e nto
c o e re nte d e o rd e m p e rfe ita e se m a q ue la s d isso nâ nc ia s q ue o
m und o d iá rio é m e stre e m no s a p re se nta r. É, justa m e nte , e sse re sg a te
da o rd e m q ue ta is ritua is p re te nd e m re a liza r p o r m e io d e ssa s
d ra m a tiza ç õ e s.
Da í, c e rta m e nte , a a sso c ia ç ã o e ntre c e rim o nia l e p o d e r. É q ue
o ritua l re ve ste o p o d e r, d a nd o -lhe um a fo rm a e xte rio r so le ne e
le g ítim a . De m o d o q ue to d o s o s ritua is se m p re a ssum e m a fo rm a
b á sic a d e um d e sfile , p ro c issã o o u p a ra d a m ilita r — fo rm a s d e
a p re se nta ç ã o so c ia l d e sinib id a e e xub e ra nte , o nd e a s c o rp o ra ç õ e s
q ue p a ssa m e se a p re se nta m re ve la m -se e m to d o o se u e sp le nd o r o u
m isé ria . No Bra sil, sig nific a tiva m e nte , usa m o s a p a la vra d e sfile p a ra o
c a so d o c a rna va l, p a ra d a p a ra a s c o m e m o ra ç õ e s c ívic a s lig a d a s à
no ssa Ind e p e nd ê nc ia e p ro c issã o p a ra a s fe stivid a d e s re lig io sa s. To d a s
e la s tê m se m p re um p o nto d e p a rtid a fo rm a liza d o e p re e sta b e le c id o
e um p o nto d e c he g a d a ig ua lm e nte fixa d o . Na s p ro c issõ e s, c o m o
na s p a ra d a s m ilita re s, a p a rtid a é um c e ntro físic o e so c ia l d e
a uto rid a d e e p o d e r re lig io so o u m ilita r: um a ig re ja o u q ua rte l. Se u
ro te iro , p o r o utro la d o , m a rc a um a á re a o nd e se sa c ra liza um d a d o
e sp a ç o d a c id a d e q ue , p o r isso m e sm o , a c a b a se to rna nd o no b re o u
sa g ra d o . É um e sp a ç o q ue d e ve fic a r a b e rto ao ritua l e , e m
c o nse q üê nc ia , fe c ha d o à s a tivid a d e s d e ro tina d o m und o d iá rio . No
c a so d o Rio d e Ja ne iro , c id a d e q ue vo u to m a r c o m o e xe m p lo , a s
p a ra d a s m ilita re s q ua se se m p re se re a liza m e m fre nte a o Pa nte ã o d o
Exé rc ito Na c io na l, lo c a l situa d o e m fre nte a o Ministé rio d a G ue rra ,
o nd e e stã o se p ulta d o s o s re sto s m o rta is d o Duq ue d e C a xia s, p a tro no
d o Exé rc ito Bra sile iro e d a s Fo rç a s Arm a d a s e m g e ra l. Nã o p o d e ria
e xistir lo c a l m a is sa g ra d o q ue e sse , e m te rm o s d a no ssa Histó ria . Alé m
d isso , o d e sfile m ilita r a p re se nta um a d ra m a tiza ç ã o d a g ue rra — d o
m e sm o m o d o q ue a p ro c issã o d ra m a tiza a s hie ra rq uia s c e le ste s. De
fa to , no d e sfile , o s so ld a d o s se a p re se nta m com sua s a rm a s,
c o m a nd a d o s p o r se us sup e rio re s, m a s d e mo d o rig o ro sa m e nte
o rd e iro . Dã o um a d e m o nstra ç ã o d e o b e d iê nc ia , d isc ip lina e o rd e m ,
c o m o a re ve la r a sua d isp o siç ã o d e c um p rir se u d e ve r d e d e fe nd e r
a Pá tria a q ua lq ue r c usto , se isso fo r re a lm e nte ne c e ssá rio . To d o s o s
Esta d o s na c io na is m o d e rno s tê m e ssa s fo rm a s d e d e sfile , e m b o ra
a p re se nte m im p o rta nte s va ria ç õ e s q ue d e nunc ia m d ive rsid a d e s
p o lític a s e so c ia is sig nific a tiva s. Po r e xe m p lo , o d ia d a p á tria no s Esta d o s
Unid o s é um a fe sta p úb lic a , se m d úvid a , m a s q ue ra ra m e nte é
c o m e m o ra d a c o m um d e sfile o u p a ra d a m ilita r. Lá , sua fo rm a m a is
c o m um d e c e le b ra ç ã o sã o o s p iq ue niq ue s re a liza d o s p o r fa m ília s q ue ,
junta s, vã o p a ra o s p a rq ue s e ja rd ins d a s c id a d e s a c e na r b a nd e ira s,
d isp a ra r fo g ue te s o u sim p le sm e nte c o m e r e c a lm a m e nte c o nve rsa r.
No c a so b ra sile iro , a s p a ra d a s m ilita re s sã o p o nto im p o rta nte
d a q uilo q ue d e no m ine i "triâ ng ulo ritua l". De fa to , na no ssa so c ie d a d e
te m o s o d e sfile m ilita r p a ra a s a uto rid a d e s, o u m e lho r, c o m o rito
d e stina d o a c e le b ra r a re la ç ã o d o Esta d o c o m o p o vo . Te m o s a s
p ro c issõ e s q ue fo c a liza m a s re la ç õ e s d o s ho m e ns c o m De us a tra vé s d a
Ig re ja . E te m o s, fina lm e nte , o d e sfile d o c a rna va l, q ue fa z o p o vo se r a o
m e sm o te m p o e sp e c ta d o r e a to r. Em to d o s o s c a so s, a so c ie d a d e
c e le b ra a q uilo q ue c e rta m e nte c o nsid e ra fund a m e nta l p a ra a sua
e strutura so c ia l e — o q ue é inte re ssa nte a p o nta r no c a so b ra sile iro —,
p a ra c a d a instituiç ã o im p o rta nte , há um lug a r e um a fo rm a d ra m á tic a
d e a p re se nta ç ã o ritua l. Te m o s, e ntã o , num a fó rm ula m uito sim p lific a d a :
o Esta d o c o m se u p o d e r visita nd o o p o vo ; De us e o s se us sa nto s sa ind o
d a e sfe ra sa g ra d a p a ra ta m b é m visita re m o m und o p ro fa no d a s
c id a d e s; e , fina lme nte , o p o vo a p re se nta nd o -se a si m e sm o c o m o
a le g re , fo rte , g a la nte , e le g a nte e luxuo so no s d e sfile s c a rna va le sc o s.
Na d a m e p a re c e m a is func io na l q ue e ssa fo rm a d e vive nc ia r o s va lo re s.
Ma s o s ritua is d a o rd e m nã o se e sg o ta m ne ssa s fe sta s g ra nd io sa s
e m q ue o m und o so c ia l é re a firm a d o e e ng lo b a d o p e lo Esta d o e p e la
Ig re ja . Ele s ta m b é m e stã o p re se nte s e m situa ç õ e s m uito m a is fa milia re s
a to d o s nó s, c o m o a s fe sta s d e fo rm a tura e o s rito s d e p o sse e m c a rg o s
p úb lic o s, e m q ue um a m e sa g e ra lm e nte se p a ra a s p e sso a s q ue sã o o
fo c o d o c e rim o nia l e o s se us c o nvid a d o s; e e m to d a s a s c rise s d e vid a e
rito s d e p a ssa g e m e m g e ra l, c o m o na sc im e nto s, b a tiza d o s, c rism a s,
c a sa m e nto s e fune ra is. Ne ssa s o c a siõ e s, q ue ta m b é m sã o so le ne s, a
tro c a de d isc urso s, o uso de ro up a s e sp e c ia is, a e xistê nc ia de
re p re se nta nte s d up lo s (c o m o o c o rre na s fe sta s d e fo rm a tura ) p e rm ite m
d e sc o b rir e sse s m e sm o s e le m e nto s q ue e xa g e ra m a o rd e m so c ia l
c o nstituíd a e a p a re nte e , ta m b é m , a c o nte nç ã o d o s g e sto s e d o
c o m p o rta m e nto e m g e ra l. Ta m b é m a q ui há um id io m a e sp e c ia l,
fa c ilm e nte a p re nd id o no s lug a re s-c o m uns d e um a re tó ric a q ue to d o
a d ulto p o d e re p e tir se m e sfo rç o . E há ta m b é m o s g e sto s típ ic o s e o s
o b je to s ind isp e nsá ve is, c o m o o a ne l d e g ra u no c a so d a s fo rm a tura s, a s
a lia nç a s no c a so d o s c a sa m e nto s e o b o lo d e a nive rsá rio no c a so d a
p a ssa g e m d e id a d e .
Em g e ra l, to d a s e ssa s fe sta s c o m e m o ra m o u c e le b ra m a lg um a
c o isa q ue , sup o m o s, re a lm e nte a c o nte c e u. A vid a d e um sa nto é um a
histó ria e xe m p la r a se r imita d a p e lo s ho m e ns, e a p ro c issã o q ue a o
sa nto se d e d ic a d iz um p o uc o d e ssa c a m inha d a te rre na p a ra o C é u,
re p ro d uzind o -a num a e sp é c ie d e te a tro c ristã o q ue é o ritua l re lig io so .
Do m e sm o m o d o , e m fo rm a tura s e a nive rsá rio s, c a sa m e nto s e fune ra is,
re sg a ta -se se m p re a lg um tip o d e e xe m p lo , a lg um a fo rma d e m o d e lo ,
se ja p a ra o a nive rsa ria nte o u fo rm a nd o se g uir, se ja p a ra q ue se us
p a re nte s e a m ig o s p o ssa m se r c o nso la d o s. O ho m e m é um a nim a l q ue
b usc a o se ntid o e m tud o — e sta é sua sina . E ta is o c a siõ e s sã o situa ç õ e s
p rivile g ia d a s e m q ue o s g rup o s se c o m p ra ze m na b usc a d e um se ntid o
p ro fund o p a ra sua s vid a s. Se ntid o q ue a sse g ura , d e c e rto m o d o , a
c o ntinuid a d e da vid a c o le tiva , m e sm o q ua nd o a me a ç a d a p e la
e xtinç ã o , c o m o é o c a so d o s ritua is fune rá rio s.
As fe sta s p a tro c ina d a s p e lo Esta d o , c o m o a s c o m e m o ra ç õ e s d a
Ind e p e nd ê nc ia , ta m b é m c e le b ra m um a o c o rrê nc ia re a l, o na sc im e nto
d e um a na ç ã o , e p o r isso sã o e ve nto s p a ra d ig m á tic o s q ue justific a m a
im p o rtâ nc ia d a d a ta . Aq ui e sta m o s d ia nte d e um rito d e c a le nd á rio
c o le tivo , um a nive rsá rio (e um a fo rm a tura ) na c io na l. Eve nto q ue
c o ng re g a sim ulta ne a m e nte , num a e sp é c ie d e sínte se , um a sé rie d e rito s
d e p a ssa g e m. É mo rte d e uma re la ç ã o (o e lo c o lo nia l), é na sc ime nto d e
o utra vid a (o p a ís q ue se to rna ind e p e nd e nte ). È ta mb é m c a rna va l
lib e rta d o r, c e rimo nia l insta ura d o r e ina ug ura d o r. É so le nid a d e p ro fa na
lig a d a a o p o d e r e à vo nta d e d o s ho me ns, e ig ua lme nte rito sa g ra d o o nd e
se a g ra d e c e a a jud a d e De us p e lo d e sfe c ho fa vo rá ve l d e um mo vime nto
d e rup tura q ue g e ra lme nte é ma rc a d o p e la vio lê nc ia .
Tud o isso p e rmite no ta r q ue o s rito s d a o rd e m tê m um c e ntro . Se ja
um e ve nto , se ja um p e rso na g e m, se ja um o b je to ; ne le s e xiste , c o mo c e ntro ,
uma c e na b á sic a q ue d e ve e strutura r o rito c o mo um to d o , a lé m d e a ç õ e s
e c e ná rio s p e rifé ric o s. Isso fic a muito c la ro e m a nive rsá rio s, fo rma tura s e
fune ra is, o nd e há um c e ntro e um mo me nto c ulmina nte , se m o q ua l nã o
se te m ne m me smo a ne c e ssid a d e d e p ro c e d e r a o d ra ma . O c a so d a fe sta
d e a nive rsá rio é um b o m e xe mp lo d isso , p o is a me sa e o b o lo sã o a q ui
p e rso na g e ns c e ntra is, se nd o p a rte d e se u p o nto c ulmina nte q ue te m a ve r
c o m a fo rma ritua liza d a c o mo se ing e re um p ro d uto p ro fund a me nte
id e ntific a d o c o m o a nive rsa ria nte , se nd o se u re p re se nta nte simb ó lic o .
De sse mo d o , o b o lo d o a nive rsa ria nte e o núme ro d e ve la s q ue o
e nfe ita m e q ue q ue ima m c o rre sp o nd e m a o núme ro d e a no s q ue fo ra m
“ q ue ima d o s” na p ró p ria vid a d e q ue m e stá se nd o ho me na g e a d o . Bo lo e
p e sso a , a ssim, sã o uma só p e sso a mo ra l. E e ssa p e sso a é “ c o mid a ”
simb o lic a me nte p o r to d o s, num a to p le no d e c o munhã o e d e d ivisã o físic a
q ue ve m c ime nta r ritua lme nte o s e lo s so c ia is e ntre a nive rsa ria nte e
c o nvid a d o s.
De inte re sse a q ui é ind ic a r q ue a s p e sso a s e stã o to d a s d istrib uíd a s a o
lo ng o d e sse c e ntro q ue , a o c o ntrá rio d o c a rna va l (o nd e o mund o é
fra g me nta d o e d e sc e ntra liza d o , e muita c o isa o c o rre ao me smo te mp o ),
p o ssui um sinc ro nismo , uma c o o rd e na ç ã o c o m o e ve nto c e ntra l. Isto é ,
tud o a c o nte c e d e mo d o o rq ue stra d o e e m e q uilíb rio c o m o e ve nto
c e ntra liza d o r d e to d a s a s a te nç õ e s. Assim, e nq ua nto nã o se p o d e ja ma is
c he g a r a tra sa d o a uma fe sta c a rna va le sc a , p o is o e ve nto c o m e ç a
q ua nd o se c he g a , no s rito s d a o rd e m se c o rre se m p re o risc o d e ssa
p e rd a . Isso p ro va q ue ta is so le nid a d e s ta lve z se ja m m a is le g itim a d o ra s
d o q ue sim p le sm e nte c o m e m o ra tiva s, d o nd e a im p o rtâ nc ia da
p re se nç a e d a a te nç ã o d e to d o s a se us e ve nto s c e ntra is.
Tud o isso no s fa la d e um ritm o so c ia l, um m o vim e nto q ue
ind ic a a lg o c o m o um o sc ila r e ntre fo rm a e c o nte úd o , c e ntro e
p e rife ria , c o ntinê nc ia físic a e e xc e sso . C o m o o tiq ue -ta q ue d e um
re ló g io , o u a b a tid a d e um c o ra ç ã o , o u o b um b o d e c a rna va l, o u a s
m á sc a ra s q ue sã o p o sta s e tira d a s na re ve la ç ã o d e q ue o s ho m e ns
vive m e ntre a s c o isa s. Ete rno s ritua liza d o s, se m p re p a ssa g e iro s...
O modo de navegação
social: a malandragem
e o “jeitinho”
Entre a d e so rd e m c a rna va le sc a , q ue p e rm ite e e stim ula o
e xc e sso , e a o rd e m , q ue re q ue r a c o ntinê nc ia e a d isc ip lina p e la
o b e d iê nc ia e strita à s le is, c o m o é q ue nó s, b ra sile iro s, fic a m o s? Q ua l a
no ssa re la ç ã o e a no ssa a titud e p a ra c o m e d ia nte d e um a le i
unive rsa l q ue te o ric a m e nte d e ve va le r p a ra to d o s? Co mo
p ro c e d e m o s d ia nte d a no rm a g e ra l, se fo m o s c ria d o s num a c a sa
o nd e , d e sd e a m a is te nra id a d e , a p re nd e m o s q ue há se m p re um
m o d o d e sa tisfa ze r no ssa s vo nta d e s e d e se jo s, m e sm o q ue isso vá d e
e nc o ntro à s no rm a s d o b o m se nso e d a c o le tivid a d e e m g e ra l?
Num livro q ue e sc re vi — C a rna va is, ma la nd ro s e he ró is —,
la nc e i a te se d e q ue o d ile m a b ra sile iro re sid ia num a trá g ic a o sc ila ç ã o
e ntre um e sq ue le to na c io na l fe ito d e le is unive rsa is c ujo suje ito e ra o
ind ivíd uo e situa ç õ e s o nd e c a d a q ua l se sa lva va e se d e sp a c ha va
c o m o p o d ia , utiliza nd o p a ra isso o se u siste m a d e re la ç õ e s p e sso a is.
Ha ve ria a ssim , ne ssa c o lo c a ç ã o , um ve rd a d e iro c o m b a te e ntre le is
q ue d e ve m va le r p a ra to d o s e re la ç õ e s q ue e vid e nte m e nte só
p o d e m func io na r p a ra q ue m a s te m . O re sulta d o é um siste m a so c ia l
d ivid id o e a té m e sm o e q uilib ra d o e ntre d ua s unid a d e s so c ia is b á sic a s:
o ind ivíd uo (o suje ito d a s le is unive rsa is q ue m o d e rniza m a so c ie d a d e )
e a p e sso a (o suje ito d a s re la ç õ e s so c ia is, q ue c o nd uz a o p ó lo
tra d ic io na l d o siste m a ) Entre o s d o is, o c o ra ç ã o d o s b ra sile iro s
b a la nç a . E no m e io d o s d o is, a m a la nd ra g e m , o “ je itinho ” e o fa m o so
e a ntip á tic o “ sa b e c o m q ue m e stá fa la nd o ? ” se ria m m o d o s d e
e nfre nta r e ssa s c o ntra d iç õ e s e p a ra d o xo s d e m o d o tip ic a m e nte
b ra sile iro . O u se ja : fa ze nd o um a m e d ia ç ã o ta m b é m p e sso a l e ntre a
le i, a situa ç ã o o nd e e la d e ve ria a p lic a r-se e a s p e sso a s ne la
im p lic a d a s, d e ta l so rte q ue na d a se m o d ifiq ue , a p e na s fic a nd o a le i
um p o uc o d e sm o ra liza d a — m a s, c o m o e la é inse nsíve l e nã o é g e nte
c o m o nó s, to d o m und o fic a , c o m o se d iz, num a b o a , e a vid a re to rna
a o se u no rm a l...
De fa to , c o m o é q ue re a g im o s d ia nte d e um “ p ro ib id o e s-
ta c io na r” , “ p ro ib id o fum a r” , o u d ia nte d e um a fila q uilo m é tric a ?
C o m o é q ue se fa z d ia nte d e um re q ue rim e nto q ue e stá se m p re
e rra d o ? O u d ia nte d e um p ra zo q ue já se e sg o to u e c o nd uz a um a
m ulta a uto m á tic a q ue nã o fo i d ivulg a d a d e m o d o a p ro p ria d o p e la
a uto rid a d e p úb lic a ? O u d e um a ta xa ç ã o injusta e a b usiva q ue o
G o ve rno no va m e nte d e c id iu instituir d e mo d o d rá stic o e se m
c o nsulta ?

No s Esta d o s Unid o s, na Fra nç a e na Ing la te rra , so m e nte p a ra


c ita r trê s b o ns e xe m p lo s, a s re g ra s o u sã o o b e d e c id a s o u nã o e xiste m .
Ne ssa s so c ie d a d e s, sa b e -se q ue nã o há p ra ze r a lg um e m e sc re ve r
no rm a s q ue c o ntra ria m e , e m a lg uns c a so s, a vilta m o b o m se nso e a s
re g ra s d a p ró p ria so c ie d a d e , a b rind o c a m inho p a ra a c o rrup ç ã o
b uro c rá tic a e a m p lia nd o a d e sc o nfia nç a no p o d e r p úb lic o . Assim ,
d ia nte d e ssa e no rm e c o e rê nc ia e ntre a re g ra juríd ic a e a s p rá tic a s
d a vid a d iá ria , o ing lê s, o fra nc ê s e o no rte -a m e ric a no p a ra m d ia nte
d e um a p la c a d e trâ nsito q ue o rd e na p a ra r, o q ue — p a ra nó s —
p a re c e um a b surd o ló g ic o e so c ia l, p e la s ra zõ e s já ind ic a d a s. Fic a m o s,
p o is, se m p re c o nfund id o s e , a o m e sm o te m p o , fa sc ina d o s c o m a
c ha m a d a d isc ip lina e xiste nte ne sse s p a íse s. Aliá s, é c urio so q ue a
no ssa p e rc e p ç ã o d e ssa o b e d iê nc ia à s le is unive rsa is se ja tra d uzid a e m
te rm o s d e c iviliza ç ã o e d isc ip lina , e d uc a ç ã o e o rd e m , q ua nd o na
re a lid a d e e la é d e c o rre nte d e um a sim p le s e d ire ta a d e q ua ç ã o
e ntre a p rá tic a so c ia l e o m und o c o nstituc io na l e juríd ic o . É isso q ue
fa z a o b e d iê nc ia q ue ta nto a d m ira m o s e , ta m b é m , e ng e nd ra a q ue la
c o nfia nç a d e q ue ta nto se ntim o s fa lta . Po rq ue , ne ssa s so c ie d a d e s, a
le i nã o é fe ita p a ra e xp lo ra r o u sub m e te r o c id a d ã o , o u c o m o
instrum e nto p a ra c o rrig ir e re inve nta r a so c ie d a d e . Lá , a le i é um
instrum e nto q ue fa z a so c ie d a d e func io na r b e m e isso — c o m e ç a m o s
a e nxe rg a r — já é um b o c a d o ! C la ro e stá q ue um d o s re sulta d o s
d e ssa c o nfia nç a é um a a p lic a ç ã o se g ura d a le i q ue , p o r se r no rm a
unive rsa l, nã o p o d e p a c tua r c o m o p rivilé g io o u c o m a le i p riva d a ,
a q ue la no rm a q ue se a p lic a d ife re nc ia lm e nte se o c rim e o u a fa lta fo i
c o m e tid a p o r p e sso a s d ife re nc ia lm e nte situa d a s na e sc a la so c ia l. Isso
q ue o c o rre d ia ria m e nte no Bra sil, q ua nd o , d ig a m o s, um b a c ha re l
c o m e te um a ssa ssina to e te m d ire ito a p risã o e sp e c ia l e um
o p e rá rio , d ia nte d a m e sm a le i, nã o te m ta l d ire ito p o rq ue nã o é ,
o b via m e nte , b a c ha re l... A d e struiç ã o d o p rivilé g io e ng e nd ro u um a
justiç a á g il e o p e ra tiva na b a se d o c e rto o u e rra d o . Um a justiç a q ue
nã o a c e ita o m a is-o u-m e no s e a s ind e fe c tíve is g ra d a ç õ e s e
hie ra rq uia s q ue no rm a lm e nte a c o m p a nha m a ritua liza ç ã o le g a l
b ra sile ira , q ue p a ra to d o s o s d e lito s e sta b e le c e virtua lm e nte um p e so
e um a e sc a la . Assim , a q ui, to d o s p o d e m se r p rim á rio s o u nã o ; e o s
c rim e s a d m ite m g ra us d e e xe c uç ã o , e sta nd o d e a c o rd o c o m o
p rinc íp io hie rá rq uic o q ue g o ve rna a so c ie d a d e . Suste nto q ue é
p re c isa m e nte e ssa p o ssib ilid a d e de g ra d a ç ã o q ue p e rm ite a
inte rfe rê nc ia d a s re la ç õ e s p e sso a is c o m a le i unive rsa l, d a nd o -lhe —
e m c a d a c a so — um a e sp é c ie d e c urva tura e sp e c ífic a q ue im p e d e
sua a p lic a b ilid a d e unive rsa l q ue ta nto c la m a m o s e re c la m a m o s.
Po r tud o isso , so m o s um p a ís o nd e a le i se m p re sig nific a o “ nã o
p o d e !” fo rm a l, c a p a z d e tira r to d o s o s p ra ze re s e d e sm a nc ha r to d o s
o s p ro je to s e inic ia tiva s. De fa to , é a la rm a nte c o nsta ta r q ue a
le g isla ç ã o d iá ria d o Bra sil é um a re g ula m e nta ç ã o d o “ nã o p o d e ” , a
p a la vra “ nã o ” q ue sub m e te o c id a d ã o a o Esta d o se nd o usa d a d e
fo rm a g e ra l e c o nsta nte . O ra , é p re c isa m e nte p o r tud o isso q ue
c o nse g uim o s d e sc o b rir e a p e rfe iç o a r um m o d o , um je ito , um e stilo d e
na ve g a ç ã o so c ia l q ue p a ssa se m p re na s e ntre linha s d e sse s
p e re m p tó rio s e a uto ritá rio s “ nã o p o d e !” . A ssim , e ntre o “ p o d e ” e o
“ nã o p o d e ” , e sc o lhe m o s, d e m o d o c ho c a nte m e nte a ntiló g ic o , m a s
sing ula rm e nte b ra sile iro , a junç ã o d o “ p o d e ” c o m o “ nã o p o d e ” . Po is
b e m , é e ssa junç ã o q ue p ro d uz to d o s o s tip o s d e “ je itinho s” e
a rra njo s q ue fa ze m c o m q ue p o ssa m o s o p e ra r um siste m a le g a l q ue
q ua se se m p re na d a te m a ve r c o m a re a lid a d e so c ia l.
O “ je ito ” é um m o d o e um e stilo d e re a liza r. Ma s q ue m o d o é
e sse ? É ló g ic o q ue e le ind ic a a lg o im p o rta nte . É, so b re tud o , um m o d o
sim p á tic o , d e se sp e ra d o o u hum a no d e re la c io na r o imp e sso a l c o m o
p e sso a l; no s c a so s — o u no c a so — d e p e rm itir junta r um p ro b le m a
p e sso a l (a tra so , fa lta d e d inhe iro , ig no râ nc ia d a s le is p o r fa lta d e
d ivulg a ç ã o , c o nfusã o le g a l, a m b ig üid a d e d o te xto d a le i, m á vo nta d e
d o a g e nte d a no rm a o u d o usuá rio , injustiç a d a p ró p ria le i, fe ita p a ra
um a d a d a situa ç ã o , m a s a p lic a d a unive rsa lm e nte e tc .) c o m um
p ro b le m a im p e sso a l. Em g e ra l, o je ito é um m o d o p a c ífic o e a té
m e sm o le g ítim o d e re so lve r ta is p ro b le m a s, p ro vo c a nd o e ssa junç ã o
inte ira m e nte c a suístic a d a le i c o m a p e sso a q ue a e stá utiliza nd o O
p ro c e sso é sim p le s e a té m e sm o to c a nte . C o nsta d e um d ra m a e m
trê s a to s q ue to d o s c o nhe c e m :
1 o Ato : Um a p e sso a q ue nã o é vista p o r ning ué m , ig no ra d a e m
ra zã o d e sua a p a rê nc ia e m o d o d e a p re se nta ç ã o , c he g a a um lo c a l
p a ra se r a te nd id a p o r um se rvid o r p úb lic o q ue é um a a uto rid a d e e
d e la e stá im b uíd o . A a uto rid a d e nã o sa b e q ue m é a p e sso a q ue
c he g o u e ne m q ue r sa b e r. Essa d istinç ã o e ntre a hum ild a d e d e q ue m
c he g a e a sup e rio rid a d e d e q ue m e stá p ro te g id o p e lo b a lc ã o d a
instituiç ã o é , a liá s, um e le m e nto fo rte na hie ra rq uiza ç ã o d a s p o siç õ e s
so c ia is. Po is b e m , o hum ild e c id a d ã o c he g a e p e d e o q ue d e se ja ...
2 o Ato : O func io ná rio c usta a a te nd e r a so lic ita ç ã o . Diz q ue
nã o p o d e se r a ssim e a ind a c o m p lic a m a is a s c o isa s, ind ic a nd o a s
c o nfusõ e s d o so lic ita nte e a s p e na lid a d e s le g a is a q ue p o d e rá e sta r
suje ito . C ria -se , e ntã o , um im p a sse . Dia nte d e um usuá rio ho ne sto , há
a o p iniã o d o func io ná rio q ue re p re se nta a le i e , p o r isso m e sm o , nã o
e nxe rg a q ua lq ue r ra zã o p e sso a l ou hum a na p a ra tra ta r o
so lic ita nte d e m o d o a g ra d á ve l. De fa to , a le i, e o fa to d e e le se r o
se u re p re se nta nte , c e g a -o c o m p le ta m e nte p a ra e ssa s ra zõ e s
hum a nitá ria s q ue d e c e rto e sta b e le c e ria m e se ria m p a rte e p a rc e la
d e um a c o nc e p ç ã o d e c id a d a nia p o sitiva , isto é , um a c id a d a nia
na q ua l o s ind ivíd uo s tê m o s se us d ire ito s a sse g ura d o s e re sp e ita d o s
e m to d a s a s situa ç õ e s. Ne ssa situa ç ã o , o so lic ita nte nã o é na d a . Ê
a p e na s um indivíd uo q ua lq ue r q ue , c o m o um núm e ro , um c a so
c o m p lic a d o , um e sto rvo o u um re q ue rim e nto , so lic ita a lg o . Te m o s
a q ui um a lg ué m q ue é ning ué m. Ele , o b via m e nte , re p re se nta o
hum a no e o p e sso a l num a situa ç ã o im p e sso a l e g e ra l...
3 o Ato : Dia nte d o im p a sse — p o is o func io ná rio d iz q ue nã o
p o d e e o c id a d ã o d e se ja re so lve r o se u c a so —, há a so luç ã o q ue
d e nunc ia e a jud a a ve r o m a p a d e na ve g a ç ã o so c ia l. No s p a íse s
ig ua litá rio s, nã o há m uita d isc ussã o : o u se p o d e fa ze r o u nã o se p o d e .
No Bra sil, p o ré m , e ntre o “ p o d e ” e o “ nã o p o d e ” , e nc o ntra m o s um
“ je ito ” . Na fo rm a c lá ssic a d o “ je itinho ” , so lic ita -se p re c isa m e nte isso :
um je itinho q ue p o ssa c o nc ilia r to d o s o s inte re sse s, c ria nd o um a
re la ç ã o a c e itá ve l e ntre o so lic ita nte , o func io ná rio -a uto rid a d e e a le i
unive rsa l. G e ra lm e nte , isso se d á q ua nd o a s m o tiva ç õ e s p ro fund a s
d e a m b a s a s p a rte s sã o c o nhe c id a s; o u im e d ia ta m e nte , q ua nd o
a m b o s d e sc o b re m um e lo e m c o m um . Ta l e lo p o d e se r b a na l (to rc e r
p e lo m e sm o tim e ) ou e sp e c ia l (um a m ig o c o m um , o u um a
instituiç ã o p e la q ua l a m b o s p a ssa ra m o u, a ind a , o fa to d e se te r
na sc id o na me sma c id a d e ...) . A ve rd a d e é q ue a invo c a ç ã o d a
re la ç ã o p e sso a l, d a re g io na lid a d e , d o g o sto , d a re lig iã o e d e o utro s
fa to re s e xte rno s à q ue la situa ç ã o p o d e rá p ro vo c a r um a re so luç ã o
sa tisfa tó ria o u m e no s injusta . Essa é a fo rm a típ ic a d o “ je itinho ” , e há
p e sso a s e sp e c ia lista s ne la . Um a d e sua s p rim e ira s re g ra s é nã o usa r o
a rg um e nto ig ua lm e nte a uto ritá rio , o q ue ta m b é m p o d e o c o rre r, m a s
q ue le va a um re fo rç o d a m á vo nta d e d o func io ná rio . De fa to ,
q ua nd o se d e se ja utiliza r o a rg um e nto (o u m e lho r, c o ntra -a rg um e nto )
d a a uto rid a d e c o ntra o func io ná rio , o je itinho é um a to d e fo rç a q ue
no Bra sil é c o nhe c id o c o m o o fa m o so e e sc o nd id o “ sa b e c o m
q ue m e stá fa la nd o ? ” Aq ui, a o c o ntrá rio d o je itinho e q ua se c o m o o
se u sim é tric o e inve rso , nã o se b usc a um a ig ua ld a d e sim p á tic a o u
um a re la ç ã o c o ntínua c o m o a g e nte d a le i q ue e stá p o r trá s d o
b a lc ã o . Ma s, isso sim , b usc a -se um a hie ra rq uiza ç ã o ina p e lá ve l e ntre
o usuá rio e o a te nd e nte . De ta l m o d o q ue , d ia nte d o “ nã o p o d e ” d o
func io ná rio , e nc o ntra -se um “ nã o p o d e d o nã o p o d e ” fe ito p e la
invo c a ç ã o d o “ sa b e c o m q ue m e stá fa la nd o ? So u filho d o Ministro !” ,
e p ro nto !, g e ra -se lo g o um tre m e nd o im p a sse a uto ritá rio q ue
d e p e nd e rá , p a ra a sua so luç ã o , d o s d e vid o s trunfo s d e q ue m e stá
im p lic a d o no d ra m a .
De q ua lq ue r m o d o , um “ je ito ” fo i d a d o . Um a fo rm a de
re so luç ã o fo i o b tid a . E a lig a ç ã o e ntre a le i e o c a so c o nc re to fic a
re a liza d a sa tisfa to ria m e nte p a ra a m b a s a s p a rte s. “ Je itinho .” e “ vo c ê
sa b e c o m q ue m e stá fa la nd o ? ” sã o , p o is, o s d o is p ó lo s d e um a
m e sm a situa ç ã o . Um é um m o d o ha rm o nio so d e re so lve r a d isp uta ; o
o utro é um m o d o c o nflituo so e um ta nto d ire to d e re a liza r a m e sm a
c o isa . O “ je ito ” te m m uito d e c a nta d a , d e ha rm o niza ç ã o d e inte re sse s
a p a re nte m e nte o p o sto s, ta l c o m o o c o rre q ua nd o um a m ulhe r
e nc o ntra um ho m e m e a m b o s, inte re ssa d o s num e nc o ntro
ro m â ntic o , d e ve m d isc utir a fo rm a q ue e sse e nc o ntro d e ve rá
a ssum ir. O “ sa b e c o m q ue m e stá fa la nd o ? ” , p o r se u la d o , a firm a um
e stilo d ife re nte , o nd e a a uto rid a d e é re a firm a d a , m a s c o m a
ind ic a ç ã o d e q ue o siste m a é e sc a lo na d o e nã o te m um a fina lid a d e
m uito c e rta o u p re c isa . Há se m p re o utra a uto rid a d e , a ind a m a is a lta ,
a q ue m se p o d e rá re c o rre r. E a ssim a s c a rta s sã o la nç a d a s...

A ma la nd ra g e m , c o mo o utro no m e p a ra a fo rm a de
na ve g a ç ã o so c ia l na c io na l, fa z p re c isa m e nte o m e sm o . O m a la nd ro ,
p o rta nto , se ria um p ro fissio na l d o “ je itinho ” e d a a rte d e so b re vive r
na s situa ç õ e s m a is d ifíc e is. Aq ui, ta m b é m , te m o s e sse re la c io na m e nto
c o m p le xo e c ria tivo e ntre o ta le nto p e sso a l e a s le is q ue e ng e nd ra m
— no c a so da m a la nd ra g e m — o uso de “ e xp e d ie nte s” , d e
“ histó ria s” e d e “ c o nto s-d o -vig á rio ” , a rtifíc io s p e sso a is q ue na d a m a is
sã o q ue m o d o s e ng e nho so s d e tira r p a rtid o d e c e rta s situa ç õ e s,
ig ua lm e nte usa nd o o a rg um e nto d a le i o u d a no rm a q ue va le p a ra
to d o s, c o m o o c o rre no c o nto d a ve nd a d o b ilhe te de lo te ria
p re m ia d o . Aq ui, o m a la nd ro d e se ja ve nd e r um b ilhe te p re m ia d o p e la
q ua rta p a rte d o se u p re ç o justo e a rm a um a situa ç ã o o nd e se rá
fa ta lm e nte a vítim a . Ma s o fa to é q ue o c o m p ra d o r é q ue se rá
ro ub a d o . A situa ç ã o se a rm a p re c isa m e nte p e lo uso a b usivo e
d e so ne sto d a s lista s o fic ia is d a lo te ria (q ue le g itim a m o p rê m io ) e
p e lo s d e ve re s d e p a re nte sc o , q ue o b rig a m , na histó ria d o m a la nd ro ,
a um a via g e m ine sp e ra d a d o nd e a ne c e ssid a d e d e ve nd e r um
b ilhe te p re m ia d o . Ne ssa e strutura típ ic a d e um c o nto -d o -vig á rio ,
no ta -se a m e sm a c o ntra d iç ã o e ntre a im p e sso a lid a d e d a lo te ria e d a
so rte e a p e sso a lid a d e d a s re la ç õ e s p e sso a is q ue se d ã o e m vá rio s
níve is. O d ra m a re sid e p re c isa m e nte no m o d o e sp e c ia l d e c o njug a r o
p e sso a c o m o im p e sso a l.

Do la d o d o m a la nd ro , e c o m o o se u o p o sto so c ia l, te m o s a
fig ura d o de sp a c ha nte , e sse e sp e c ia lista e m e ntra r e m c o nta to c o m
a s re p a rtiç õ e s o fic ia is p a ra a o b te nç ã o de d o c um e nto s q ue
no rm a lm e nte im p lic a m a s c o nfusõ e s q ue m e nc io ne i linha s a nte s, a o
d e sc re ve r d e ta lha d a m e nte o “ je itinho ” . O d e sp a c ha nte , c o m o fig ura
so c io ló g ic a , só p o d e se r visto e m sua e no rm e im p o rtâ nc ia q ua nd o
no va m e nte no s d a m o s c o nta d e ssa e no rm e d ific uld a d e b ra sile ira d e
junta r a le i c o m a re a lid a d e so c ia l d iá ria . Assim , o d e sp a c ha nte p a re c e
m a is um p a d rinho . Ta l c o m o o p a d rinho , e le é um m e d ia d o r e ntre a le i
e um a p e sso a . Do m e sm o m o d o q ue um p a trã o d e ve d a r e m p re g o e
b o a s c o nd iç õ e s d e tra b a lho a se us e m p re g a d o s, o d e sp a c ha nte
d e ve g uia r se us c lie nte s p e lo s e stre ito s e p e rig o so s m e a nd ro s d a s
re p a rtiç õ e s o fic ia is, fa ze nd o c o m q ue sig a m o c a m inho c e rto . Só q ue
o d e sp a c ha nte é um p a d rinho p a ra b a ixo . Dig o p a ra b a ixo p o rq ue a s
c la sse s m é d ia e a lta d o Bra sil tê m ve rd a d e ira a ve rsã o a tud o q ue a
fa ç a se ntir-se c o m o p e sso a c o m um , ind ivíd uo suje ito a re je iç õ e s e
d e sa g ra d á ve is e nc o ntro s c o m a uto rid a d e s se m o m e no r tra ç o d e
b o a vo nta d e . Assim , se nã o se te m um a m ig o o u um a re la ç ã o q ue
p o ssa im e d ia ta m e nte fa c ulta r o “ je itinho ” , c o ntra ta -se um
d e sp a c ha nte , q ue re a liza p re c isa m e nte e ssa ta re fa .
Po r tud o isso , nã o há no Bra sil q ue m nã o c o nhe ç a a
m a la nd ra g e m , q ue nã o é só um tip o d e a ç ã o c o nc re ta situa d a e ntre
a le i e a p le na d e so ne stid a d e , m a s ta m b é m , e so b re tud o , é um a
p o ssib ilid a d e de p ro c e d e r so c ia lm e nte , um mo d o tip ic a m e nte
b ra sile iro d e c um p rir o rd e ns a b surd a s, um a fo rm a o u e stilo de
c o nc ilia r o rd e ns im p o ssíve is d e se re m c um p rid a s c o m situa ç õ e s
e sp e c ífic a s, e — ta m b é m — um m o d o a m b íg uo d e b urla r a s le is e a s
no rm a s so c ia is m a is g e ra is.
A p o ssib ilid a d e d e a g ir c o m o m a la nd ro se d á e m to d o s o s
lug a re s. Ma s há um a á re a o nd e c e rta m e nte e la é p rivile g ia d a . Q ue ro
re fe rir-m e à re g iã o do p ra ze r e d a se nsua lid a d e , zo na o nd e o
m a la nd ro é o c o nc re tiza d o r d a b o ê m ia e o suje ito e sp e c ia l d a b o a
vid a . Aq ue la e xistê nc ia q ue p e rm ite d e se ja r o m á xim o d e p ra ze r e
b e m -e sta r, c o m um m ínim o d e tra b a lho e e sfo rç o . O m a la nd ro ,
e ntã o , c o nfo rm e te nho a c e ntua d o em m e us e stud o s, é um a
p e rso na g e m na c io na l. É um p a p e l so c ia l q ue e stá à no ssa d isp o siç ã o
p a ra se r vivid o no m o m e nto e m q ue a c ha rm o s q ue a le i p o d e se r
e sq ue c id a o u a té m e sm o b urla d a c o m c e rta c la sse o u je ito . No Bra sil,
e ntã o , p o d e m o s se r c a xia s o u a uto ritá rio s, c o m o p e rso na g e ns típ ic o s
d o m und o d a s le is e d a o rd e m ; p o d e m o s se r re nunc ia d o re s e b e a to s
q ue q ue re m e sta r fo ra d e ste m und o , q ua nd o so m o s re lig io so s e
p re te nd e m o s fund a r um m o d o d e e xistê nc ia p a ra le lo ; e p o d e m o s
ta m b é m se r m a la nd ro s e je ito so s, p o lític o s há b e is e sa g a ze s, q ua nd o
nã o e nfre nta m o s a le i c o m a sua m o d ific a ç ã o o u re je iç ã o fro nta l,
m a s a p e na s a d o b ra m o s o u sim p le sm e nte p a ssa m o s p o r c im a d e la .
Q ue r d ize r, ta l c o m o a c o nte c e c o m o se u m o d o d e a nd a r, o
m a la nd ro é a q ue le q ue — c o m o to d o s nó s — se m p re e sc o lhe fic a r
no m e io d o c a m inho , junta nd o , d e m o d o q ua se se m p re hum a no , a
le i, im p e sso a l e im p o ssíve l, c o m a a m iza d e e a re la ç ã o p e sso a l, q ue
d ize m q ue c a d a ho m e m é um c a so e c a d a c a so d e ve se r tra ta d o d e
m o d o e sp e c ia l.

Ma s nã o fic a m o s so m e nte nisso . Te m o s g ra nd e s a rq ué tip o s d a


m a la nd ra g e m , fig ura s q ue d e se nha ra m c o m o ning ué m o p a p e l e o
tip o . G e nte c o m o Pe d ro Ma la sa rte s, q ue fo i c a p a z d e re a liza r um a
sé rie d e tra nsfo rm a ç õ e s im p o ssíve is a o ho m e m c o m um . Assim , e le
sup e ro u a e xp lo ra ç ã o e c o nô m ic a e p o lític a do se u tra b a lho ,
c o nd e na nd o o fa ze nd e iro q ue o e sp o lia va . C o nse g uiu ta m b é m
tra nsfo rm a r a im o b ilid a d e da m isé ria num a ve nturo sa vid a de
via ja nte se m p o uso o u c a sa , situa ç ã o d e o nd e p o d e se m p re e nxe rg a r
tud o e g a nha r no va s e xp e riê nc ia s. Pe d ro Ma la sa rte s fo i ta m b é m
c a p a z d e p ro e za s inc ríve is, c o m o e xp lo ra r o s ric o s, ve nd e r m e rd a
c o m o se fo sse riq ue za e le va r a ho ne stid a d e a o m e io d e p e sso a s
d e so ne sta s. Sua s a ve ntura s no s ind ic a m q ue a vid a c o nté m se m p re o
b o m e o m a u, o la d o hum a no e o d e sum a no e sta nd o m istura d o s d e
m o d o irre m e d iá ve l e m to d o s e tud o . Assim , Pe d ro Ma la sa rte s, c o m o
to d o s o s m a la nd ro s, ta lve z no s d ig a q ue é p re c iso to m a r c o nsc iê nc ia
d e sse s d o is la d o s p a ra p o d e r e sc o lhe r um a vid a hum a na m e nte d ig na .

A m a la nd ra g e m , a ssim , nã o é sim p le sm e nte um a sing ula rid a d e


inc o nse q üe nte d e to d o s nó s, b ra sile iro s. O u um a re ve la ç ã o d e c inism o
e g o sto p e lo g ro sse iro e p e lo d e so ne sto . É m uito m a is q ue isso . De fa to ,
tra ta -se m e sm o d e um m o d o — je ito o u e stilo — p ro fund a m e nte
o rig ina l e b ra sile iro d e vive r, e à s ve ze s so b re vive r, num siste m a e m
q ue a c a sa ne m se m p re fa la c o m a rua e a s le is fo rm a is d a vid a
p úb lic a na d a tê m a ve r c o m a s b o a s re g ra s d a m o ra lid a d e c o stum e ira
q ue g o ve rna m a no ssa ho nra , o re sp e ito e , so b re tud o , a le a ld a d e
q ue d e ve m o s a o s a m ig o s, a o s p a re nte s e a o s c o m p a d re s. Num
m und o tã o p ro fund a m e nte d ivid id o , a m a la nd ra g e m e o “ je itinho ”
p ro m o ve m um a e sp e ra nç a de tud o junta r num a to ta lid a d e
ha rm o nio sa e c o nc re ta . Essa é a sua im p o rtâ nc ia , e sse é o se u a c e no .
Aí e stá a sua ra zã o d e e xistir c o m o va lo r so c ia l.

Ante s d e se r um a c id e nte o u m e ro a sp e c to d a vid a so c ia l


b ra sile ira , c o isa se m c o nse q üê nc ia , a m a la nd ra g e m é um m o d o
p o ssíve l d e se r. Alg o m uito sé rio , c o nte nd o sua s re g ra s, e sp a ç o s e
p a ra d o xo s...

Isso e stá b e m d e a c o rd o c o m o q ue no s d isse Pe ro Va z d e


C a m inha , no fina lzinho d e sua c a rta histó ric a , fund a d o ra d o no sso
m o d o d e se r, d e p o is d e d a r a o re i a s m a ra vilho sa s no tíc ia s d a te rra
b ra sile ira . Ali, na q ue le p e d a ç o te rm ina l e na q ue la ho ra d e a rre m a te ,
C a m inha a rrisc a , m a la nd ra m e nte , o se g uinte : “ E ne sta m a ne ira ,
Se nho r, d o u a q ui a Vo ssa Alte za c o nta d o q ue ne sta te rra vi. E, se
a lg um p o uc o m e a lo ng ue i, Ela m e p e rd o e , p o is o d e se jo q ue tinha d e
tud o vo s d ize r, m o fe z p o r a ssim p e lo m iúd o . E p o is q ue , Se nho r, é c e rto
q ue , a ssim ne ste c a rg o q ue le vo , c o m o e m o utra q ua lq ue r c o isa q ue
d e Vo sso se rviç o fo r, Vo ssa Alte za há d e se r d e m im m uito b e m
se rvid a , a Ela p e ç o q ue , p o r m e fa ze r g ra ç a e sp e c ia l, m a nd e vir d a
Ilha d e Sã o To m é a Jo rg e d e O só rio , m e u g e nro — o q ue d e la
re c e b e re i e m m uita m e rc ê .”
E c o nc lui C a m inha , c o m o a té ho je m a nd a o no sso fig urino d e
m a la nd ra g e m : “ Be ijo a s m ã o s d e Vo ssa Alte za . De ste Po rto Se g uro d e
Vo ssa Ilha d e Ve ra C ruz, ho je , se xta -fe ira , p rim e iro d ia d e m a io d e 1500.
Pe ro Va z d e C a m inha .”
Se rá q ue é p re c iso d ize r m a is a lg um a c o isa ?
Os caminhos para Deus
Nó s, b ra sile iro s, m a rc a m o s c e rto s e sp a ç o s c o m o re fe rê nc ia s
e sp e c ia is d a no ssa so c ie d a d e . A c a sa , o nd e m o ra m o s, c o m e m o s e
d o rm im o s — vive m o s, e nfim ... A rua , o nd e tra b a lha m o s e g a nha m o s a
luta p e la vid a . A c a d a um d e sse s e sp a ç o s, o nd e c o nvive m o s c o m
p a re nte s, a m ig o s e c o le g a s d e tra b a lho , d e ve m o s so m a r um o utro ,
nã o m e no s re fe re nc ia l e c rític o . Q ue ro re fe rir-m e a o e sp a ç o d o
o utro mund o , e ssa á re a d e m a rc a d a p o r ig re ja s, c a p e la s, e rm id a s,
te rre iro s, c e ntro s e sp írita s, sina g o g a s, te m p lo s, c e m ité rio s e tud o
a q uilo q ue fa z p a rte e sina liza a s fro nte ira s e ntre o m und o e m q ue
vive m o s e e sse “ o utro m und o ” o nd e , um d ia , ta m b é m ire m o s
ha b ita r. Esse m und o ha b ita d o p o r m o rto s, fa nta sm a s, a lm a s, sa nto s,
a njo s, o rixá s, d e use s, De us, a Virg e m Ma ria e Je sus C risto , p a ra o nd e
to d o s vã o e d e o nd e ning ué m re to rna ... o u p e lo m e no s re to rna c o m
fa c ilid a d e .
Se na c a sa e na rua utiliza m o s o id io m a d o d inhe iro e a
ling ua g e m d a s c ifra s, d o s núm e ro s, d o s sa lá rio s, d o s c á lc ulo s e d a s
c o isa s p rá tic a s d e ste m und o , no unive rso d a re lig iã o e sta m o s m uito
m a is inte re ssa d o s e m c o nve rsa r c o m De us, c o m o s sa nto s, c o m a
Virg e m Ma ria e Je sus C risto , e c o m to d a a le g iã o d e e ntid a d e s q ue a li
ha b ita m . No sso m o d o d e re la c io na m e nto a q ui é d ife re nte . Em ve z d e
d isc ursa r, re za m o s; e m ve z d e o rd e na r, p e d im o s; e m ve z d e
sim p le sm e nte fa la r, c o m o fa ze m o s ha b itua lm e nte , c o njug a m o s a
fo rm a d a m e nsa g e m c o m se u c o nte úd o , sup lic a m o s. O m o d o d e
c o m unic a ç ã o c o m o a lé m e se us ha b ita nte s, a ssim , é fo rm a liza d o e
sup lic a nte . Fe ito d e p re c e s, re za s e d isc urso s o nd e se a c e ntua m a
c â nd id a sinc e rid a d e , a ho ne sta súp lic a , a no b re hum ild a d e e,
na tura lm e nte , a fo rm id á ve l p ro m e ssa d e re nunc ia r a o m und o , c o m
sua s p o m p a s e ho nra s.

Existe m fo rm a s d e fa la r c o m o m und o d e De us q ue sã o so litá ria s


e o utra s q ue sã o c o le tiva s. C o le tiva m e nte , o m o d o m a is c o m um é
a tra vé s d a c a nto ria , o nd e a p re c e fa z c o m q ue se junte m to d o s o s
p e d id o s num só , q ue d e ve “ sub ir” a o s c é us le va d o p e la s ha rm o nia s
d a s vo ze s q ue o e nto a m . De fa to , no no sso m o d o d e c o nc e b e r o
e sp a ç o re lig io so , a linha ve rtic a l e hie ra rq uiza d a , q ue re la c io na o c é u
c o m a te rra e o a lto c o m o b a ixo , é a lg o d o m ina nte e c rític o . O
“ a lto ” , c o nfo rm e sa b e m o s m uito b e m , é tud o q ue é sup e rio r, tud o q ue
d e ve se r m a is no b re e m a is fo rte , tud o q ue te m m a is p o d e r. É lá ne ssa
e sfe ra situa d a e m c im a q ue m o ra m o s a njo s, o s sa nto s e to d a s a s
e ntid a d e s q ue no s p o d e m p ro te g e r e g uia r o s d e stino s. O “ b a ixo ” é a
te rra e m q ue vive m o s: va le d e lá g rim a s o nd e so fre m o s, tra b a lha m o s e
fina lm e nte m o rre m o s. A re za , a fe stivid a d e re lig io sa e o c a nto
p ro p ic ia tó rio c o le tivo sã o m e io s d e se c he g a r a té e ssa s re g iõ e s
sup e rio re s, lig a nd o o a q ui e a g o ra c o m o a lé m e o infinito .
Se ria a té m e sm o p o ssíve l, ne sta linha d e a b o rd a g e m , d ize r q ue
c e rta s re za s — o u fo rm a s d e c o m unic a ç ã o c o m o so b re na tura l —
se ria m m a is fo rte s o u m a is fra c a s q ue o utra s, tud o d e ntro d a no ssa
ló g ic a d e g ra d a ç ã o d o m ina nte . Assim , a s fo rm a s q ue im p lic a m o
e nvo lvim e nto d a m a io ria d o s se ntid o s se ria m p ro va ve lm e nte m a is
fo rte s e irre sistíve is a o s sa nto s, d e use s e e sp írito s d o q ue as
m o d a lid a d e s e m q ue a p e na s um se ntid o e stá e nvo lvid o . A s fo rm a s
ind ivid ua is, p o r sua ve z, se ria m no rm a lm e nte a s m a is fra c a s, e m b o ra a
fé , a e sp e ra nç a e a c a rid a d e d e c a d a um se ja m ta m b é m e le m e nto s
im p o rta nte s no a te nd im e nto d e sua s súp lic a s o u p re c e s. Do m e sm o
mo d o , as súp lic a s a c o m p a nha d a s de o b je to s, na fo rm a de
p ro m e ssa s, o fe re nd a s e sa c rifíc io s, sã o na tura lm e nte m a is fo rte s q ue
um sim p le s p e d id o ve rb a l, p o is q ue e la s im p lic a m um a to de
c o m e tim e nto m uito m a is d e nso e d ra m á tic o , à s ve ze s e xig ind o o
g a sto de p a rc e la s d e d inhe iro q ue sã o c rític a s e m te rm o s d a
e c o no m ia d o m é stic a e p e sso a l d o o fe rta nte . Alé m d isso , a p ro m e ssa é
um p a c to q ue o b rig a o s d o is la d o s a a lg um a a ç ã o p o sitiva no se ntid o
d e re so lve r o p ro b le m a a p re se nta d o . Se e u, a ssim , p e ç o um a g ra ç a e
lo g o e m se g uid a m e sa c rific o c o m a o fe rta d e a lg o p re c io so p a ra o
sa nto (o u sa nta ) d e m inha d e vo ç ã o , a ló g ic a so c ia l fa z c o m q ue e le
(o u e la ) ta m b é m se o b rig ue a re so lve r m e u p ro b le m a , a te nd e nd o
c o rte sm e nte a m inha súp lic a .
Tud o ind ic a q ue o sa nto a te nd e m e lho r e re c o nhe c e m a is
c la ra m e nte o e sfo rç o d o s m o rta is q ua nd o o p e d id o se fa z d e m o d o
so le ne e re sp e ito so , c o m a lg um fo rm a lism o . As re za s e o s p e d id o s,
a ssim , “ so b e m ” m e lho r q ua nd o há um sina l visíve l d e c o m unic a ç ã o
c o m o a lto ; a lg o q ue c rista lize e ssa lig a ç ã o , c o m o a fum a ç a d o
inc e nso o u a s luze s d a s ve la s q ue im a nd o ...
Ma s p o r q ue se fa la c o m De us? As re sp o sta s sã o muito va ria d a s.
Um fa to r so c io ló g ic o b á sic o , p o ré m , é q ue e xiste a ne c e ssid a d e d e
c o nstruir e sse g ra nd e e sp e lho a q ue c ha m a m o s re lig iã o p a ra d a r a
to d o s e a c a d a um d e nó s um se ntim e nto d e c o m unhã o c o m o
unive rso c o m o um to d o . A re lig iã o , a ssim , se ria um m o d o d e p e rm itir
um a re la ç ã o g lo b a liza d a nã o só c o m o s d e use s, m a s ta m b é m c o m
to d o s o s ho m e ns e c o m o s se re s vivo s q ue fo rm a m o no sso m und o .
Ta m b é m p e nsa m o s na re lig iã o c o m o um m e io d e e xp lic a ç ã o p a ra
o s info rtúnio s — a s c o inc id ê nc ia s ne g a tiva s ( c o m o a c id e nte s e
d o e nç a s) —, p o is a re lig iã o p o d e e xp lic a r p o r q ue um a p e sso a lig a d a
a nó s fic o u d o e nte , so fre u um a c id e nte fa ta l o u é vítim a ind e fe sa e
g ra tuita de d e se sp e ra d o ra a fliç ã o . A re lig iã o , ne sse se ntid o ,
a p re se nta ria a p o ssib ilid a d e d e re sg a ta r a ind ife re nç a d o m und o , e
d a s c o isa s d o m und o , re la tiva m e nte à no ssa c o nsc iê nc ia e à sua
ne c e ssid a d e d e d a r um se ntid o p re c iso a tud o , o rd e na nd o a vid a e a s
re la ç õ e s e ntre a s c o isa s d a vid a . Fa la m o s ta m b é m d e re lig iã o q ua nd o
e sta m o s p e nsa nd o no m o d o p e lo q ua l a so c ie d a d e p re c isa le g itim a r
o u justific a r a sua o rg a niza ç ã o , a sua m a ne ira d e se r e o s se us e stilo s
d e fa ze r. Assim , a re lig iã o p o d e e xp lic a r ta m b é m p o r q ue e xiste m
ric o s e p o b re s, fo rte s e fra c o s, d o e nte s e sã o s, d a nd o se ntid o p le no à s
d ife re nc ia ç õ e s d e p o d e r q ue p e rc e b e m o s c o m o p a rte d o no sso
m und o so c ia l. Assim c o m o há um a d ife re nc ia ç ã o no C é u, ha ve ria
ta m b é m um a d ife re nc ia ç ã o na te rra , m uito e m b o ra , a o s o lho s d o
C ria d o r, to d o s se ja m sing ula re s e a m a d o s ig ua lm e nte . Ne sse se ntid o ,
o u m e lho r, e m to d o s e sse s se ntid o s, a re lig iã o se rve p a ra e xp lic a r — e
c e rta m e nte o fa z d e m o d o m a is sa tisfa tó rio q ue a filo so fia o u a
c iê nc ia , p o is há so frim e nto , d o e nç a , c a la m id a d e , injustiç a e a fliç ã o
ne ste m und o . E m a is: e la p o d e a té m e sm o d ize r p o r q ue c e rta
p e sso a e stá so fre nd o o q ue so fre , o q ue nã o d e ixa d e se r e no rm e
c o nso lo p a ra q ue m vive e a c o m p a nha a a fliç ã o . Num c e rto se ntid o ,
p o rta nto , a re lig iã o o fe re c e re sp o sta s a p e rg unta s q ue ,
rig o ro sa m e nte , nã o p o d e m se r re sp o nd id a s p e la c iê nc ia o u p e la
te c no lo g ia .
Ma s, a lé m d isso , a re lig iã o m a rc a e a jud a a fixa r m o m e nto s
im p o rta nte s na vid a de to d o s nó s. De sse m o d o , na sc im e nto s,
b a tiza d o s, c rism a s, c o m unhõ e s, c a sa m e nto s e fune ra is — to d o s o s
m o m e nto s q ue a ssina la m d ra m a tic a m e nte um a c rise d e vid a e um a
p a ssa g e m na e sc a la d a e xistê nc ia so c ia l — sã o m a rc a d o s p e la
p re se nç a d a re lig iã o , q ue le g itim a c o m o a va l d ivino o u so b re na tura l
um a p a ssa g e m q ue se d e se ja ne c e ssá ria ; a lg o q ue e ste ja insc rito , nã o
a p e na s num a c o nve nç ã o inve nta d a p e lo s ho m e ns, m a s no p ró p rio
p ro je to .
Essa s fo rm a s d e m a rc a r e ntra d a s e sa íd a s d o unive rso re lig io so sã o
e m g e ra l d ra m á tic a s, e xig ind o rito s e sp e c ia is e tra b a lha d o s q ue
o p e ra m c o m o m e d ia d o re s. Ta l c o m o a c o nte c e no no sso c o nhe c id o
ritua l d o b a tism o , e m q ue a c ria nç a e ntra na Ig re ja C a tó lic a e , a o
m e sm o te m p o , na so c ie d a d e , g a nha nd o sim ulta ne a m e nte “ p a is
a d o tivo s” q ue re fo rç a m , c o m o p a d rinho s, sua s o b rig a ç õ e s c o m o se r
so c ia l. Assim , e m b o ra a p e sso a se ja c o nc e b id a p o r g e nito re s (o s se us
p a is b io ló g ic o s), há um a e xig ê nc ia d e p a d rinho s (o u p a is so c ia is) p a ra
q ue e la p o ssa p e ne tra r no c e rne d a vid a so c ia l, o q ue , no m und o
c a tó lic o , se re a liza a tra vé s d a Ig re ja e d o ritua l a p ro p ria d o d o
b a tism o . O m e sm o o c o rre num c a sa m e nto , o nd e ta m b é m e xiste m
p a d rinho s — m e d ia d o re s — m a rc a nd o e ind ic a nd o q ue a c e rim ô nia
é a lg o p úb lic o , a lg o d e finitiva m e nte so c ia l.
To d o s e sse s a sp e c to s fo rm a m a q uilo a q ue c ha m a m o s re lig iã o
num se ntid o a m p lo . A p a la vra , c o m o se sa b e , ve m d o la tim e te m , no
se ntid o o rig ina l, a id é ia d e la ç o , a lia nç a , p a c to , c o ntra to e re la ç ã o
q ue d e ve no rte a r o s e lo s e ntre d e use s e ho m e ns e , p o r isso m e sm o , d o s
ho m e ns e ntre si. Ma s, a lé m d e sse s a sp e c to s, a re lig iã o é um m o d o d e
o rd e na r o m und o , fa c ulta nd o no ssa c o m p re e nsã o p a ra c o isa s m uito
c o m p le xa s, c o m o a id é ia d e te m p o , a id é ia d e e te rno e a id é ia d e
p e rd a e d e sa p a re c im e nto , e sse s m isté rio s p e re ne s d a e xistê nc ia hu-
m a na . Po d e -se d ize r, ne ssa p e rsp e c tiva , q ue o ho m e m é o únic o se r
q ue te m c o nsc iê nc ia d e sua p ró p ria m o rte e , p o r isso m e sm o , te m
e no rm e e d e finitiva ne c e ssid a d e d e d o m e stic a r o te m p o e d e
p ro b le m a tiza r a e te rnid a d e .
Ma s c o m o se c he g a a De us no Bra sil?
Aq ui, c o m o e m o utro s lug a re s, te m o s um a re lig iã o d o m ina nte e
q ue a té b e m p o uc o te m p o (a té 1890, p a ra se r p re c iso ) fo i o fic ia l.
Tra ta -se , c o nfo rm e sa b e m o s, d o C a to lic ism o Ro ma no , d e no mina ç ã o
re lig io sa fo rma d o ra d a p ró p ria so c ie d a d e b ra sile ira e , na tura lm e nte , d e
um c o njunto d e va lo re s q ue sã o e sse nc ia is no Bra sil. Na tura lm e nte
q ue ta l fo rm a d e d e no m ina ç ã o re lig io sa é a c o m p a nha d a d e o utra s
q ue a e la e stã o re fe rid a s, m a s q ue d e la se d ife re nc ia m p o r m e io d o
c ulto , d a te o lo g ia , d o tip o d e sa c e rd ó c io e d e a titud e s g e ra is. A
va rie d a d e d e e xp e riê nc ia s re lig io sa s b ra sile ira s é , a ssim , a o m e sm o
te m p o , a m p la e lim ita d a . É a m p la p o rq ue , a o C a to lic ism o Ro m a no e
à s vá ria s d e no m ina ç õ e s Pro te sta nte s, so m a m -se o utra s va rie d a d e s d e
re lig iõ e s O c id e nta is e O rie nta is, a lé m d a s va rie d a d e s b ra sile ira s d e
c ulto s d e p o sse ssã o c uja tra d iç ã o é um a c o nste la ç ã o va ria d a d e
va lo re s e c o nc e p ç õ e s. De um la d o , e xiste inc o nte sta ve lm e nte a
Áfric a d o s e sc ra vo s, c o m se us te rre iro s, ta m b o re s, id io m a s se c re to s,
o rixá s e rito s d e sa c rifíc io , o nd e a s c o isa s p e rte nc e m a o m und o d o
se nsíve l. Do o utro , há o Esp iritism o ka rd e c ista , e m q ue o c ulto d o s
m o rto s é um a fo rm a d o m ina nte e o ritua l se fa z se m c a nto s ne m
ta m b o re s. Se na s c ha m a d a s re lig iõ e s Afro -Bra sile ira s e no Esp iritism o ,
a re la ç ã o e o c ulto d o s m o rto s, o c o nta to c o m o s d e use s (o rixá s) é
a lg o ro tine iro , se e ntre a Um b a nd a e o Ka rd e c ism o e xiste m ta m b é m
c re nç a s e m e nc a rna ç ã o e na te o ria d o Ka rm a (q ue ve m d a Índ ia ),
há ig ua lm e nte d ife re nç a s e ntre to d a s e ssa s fo rm a s, já q ue na
Um b a nd a o c o nta to é m uito m a is c o m o s d e use s d o q ue c o m o s
e sp írito s d e se nc a rna d o s d o s m o rto s. Po r o utro la d o , o Esp iritism o
c o nsid e ra -se c o d ific a d o , a o p a sso q ue a Um b a nd a é um a re lig iã o se m
c o d ific a ç ã o e c o m um a te o lo g ia a b e rta a m uita s va ria ç õ e s.
Ma s, a p e sa r d e to d a s e ssa s d ife re nç a s, a va rie d a d e é lim ita d a ,
p o rq ue e ssa s fo rm a s m a is d ive rsa s c o e xiste m te nd o c o m o p o nto fo c a l
a id é ia d e re la ç ã o e a p o ssib ilid a d e d e c o m unic a ç ã o e ntre ho m e ns
e d e use s, ho m e ns e e sp írito s, ho m e ns e a nc e stra is. O u se ja : e m to d a s
a s fo rm a s d e re lig io sid a d e b ra sile ira s, há um a e no rm e e d e nsa ê nfa se
na re la ç ã o e ntre e ste m und o e o o utro , de mo d o q ue a
d o m e stic a ç ã o d a m o rte e d o te m p o é e le m e nto fund a m e nta l e m
to d a s e ssa s va rie d a d e s o u je ito s d e se c he g a r a De us.
Po r o utro la d o , a fo rm a p e la q ua l e ssa c o m unic a ç ã o se re a liza
é se m p re a tra vé s d e um e lo p e sso a l. Nó s, b ra sile iro s, te m o s intim id a d e
c o m c e rto s sa nto s q ue sã o no sso s p ro te to re s e p a d ro e iro s, no sso s
sa nto s p a trõ e s; d o m e sm o m o d o q ue te m o s c o m o g uia s c e rto s o rixá s
o u e sp írito s d o a lé m , q ue sã o no sso s p ro te to re s. A re la ç ã o p o d e te r
fo rm a d ife re nc ia d a , m a s a sua ló g ic a e strutura l é a m e sm a . Em to d o s
o s c a so s, a re la ç ã o e xiste e é p e sso a l, isto é , fund a d a na sim p a tia e na
le a ld a d e d o s re p re se nta nte s d e ste m und o e d o o utro . So m o s fié is
d e vo to s d e sa nto s e ta m b é m c a va lo s d e sa nto d e o rixá s, e c o m c a d a
um d e le s no s e nte nd e m o s m uito b e m p e la ling ua g e m d ire ta d a
p a tro na g e m o u d o p a tro c ínio m ístic o — p o r m e io d e p re c e s,
p ro m e ssa s, o fe re nd a s, d e sp a c ho s, súp lic a s e o b rig a ç õ e s q ue , a
d e sp e ito d e d ife re nç a s a p a re nte s, c o nstitue m um a ling ua g e m o u
c ó d ig o d e c o m unic a ç ã o c o m o a lé m q ue é o b via m e nte c o m um e
b ra sile ira .
Do m e sm o m o d o q ue te m o s p a is, p a d rinho s e p a trõ e s, te m o s
ta m b é m e ntid a d e s so b re na tura is q ue no s p ro te g e m . E e la s p o d e m se r
de d ua s tra d iç õ e s re lig io sa s a p a re nte m e nte d ive rg e nte s. Isso
re a lm e nte nã o im p o rta . O q ue p a ra um no rte -a m e ric a no c a lvinista ,
um ing lê s p urita no o u um fra nc ê s c a tó lic o se ria sina l d e sup e rstiç ã o
e a té m e sm o d e c inism o o u ig no râ nc ia , p a ra nó s é m o d o d e a m p lia r
a s no ssa s p o ssib ilid a d e s d e p ro te ç ã o . É ta m b é m , p e nso , um m o d o d e
e nfa tiza r e ssa e no rm e e c o m o ve nte fé q ue to d o s nó s te m o s no
se ntid o e na e te rnid a d e d a vid a . Assim , e ssa s e xp e riê nc ia s re lig io sa s
sã o to d a s c o m p le m e nta re s e ntre si, nunc a m utua m e nte e xc lud e nte s.
O q ue um a d e la s fo rne c e e m e xc e sso , a o utra ne g a . E o q ue um a
p e rm ite , a o utra p o d e p ro ib ir. O q ue um a inte le c tua liza , a o utra
tra d uz num c ó d ig o d e se nsua l d e vo ç ã o . Aq ui ta m b é m nó s, b ra sile iro s,
b usc a m o s o a m b íg uo e a re la ç ã o e ntre e sse m und o e o o utro .
O q ue p o d e p a re c e r sing ula r no c a so b ra sile iro , e ntã o , é q ue
c a d a um a d e ssa s fo rm a s d e re lig io sid a d e se ja sup le m e nta r à s o utra s,
m a nte nd o c o m e la s um a re la ç ã o d e p le na c o m p le m e nta rid a d e .
Assim , a Ig re ja Ro m a na c o stura e dá se ntid o ao m und o e às
e xp e riê nc ia s hum a na s p e lo se u â ng ulo e xte rno e fo rm a l, se nd o
a c io na d a p a ra le g itim a r im p o rta nte s c rise s d e vid a , c o mo o
c a sa m e nto , o b a tiza d o , o na sc im e nto e a m o rte . A Ig re ja , a ssim , é
um a fo rm a b á sic a d e re lig iã o , m a rc a nd o ta lve z o la d o im p e sso a l d e
no ssa s re la ç õ e s c o m De us. Um la d o , d e fa to , o nd e a intim id a d e
e ve ntua lm e nte p o d e c e d e r lug a r à s re g ra s fixa s q ue c o nd uze m a um a
im p e sso a lid a d e , so b re tud o no s c ulto s q ue le g itim a m d e q ua lq ue r
m o d o a s c rise s d e vid a .
Ma s, a o la d o d e ssa s fo rm a s im p e sso a is e m a is p o litiza d a s e
so c ia lm e nte a c e ita s d e c o m p o rta m e nto re lig io so , e xiste m fo rm a s
p e sso a is d e lig a ç ã o c o m o o utro m und o . Fo rm a s e e stilo s, va le
d e sta c a r, q ue sã o tã o p o p ula re s c o m o o m ila g re .
Re a lm e nte , q ue é o m ila g re se nã o um a re sp o sta d o s d e use s a
um a súp lic a d e se sp e ra d a d o s ho m e ns, na fo rm a d e um a te nd im e nto
p e sso a l e intra nsfe ríve l? O m ila g re é p ro va d e um c ic lo d e tro c a q ue
e nvo lve p e sso a s e e ntid a d e s so b re na tura is na fo rm a d e d e se jo s,
m o tiva ç õ e s, se ntim e nto s e vá rio s o b je to s, a lg uns inc lusive c o m a
fo rm a d a p a rte q ue fo i c ura d a — p ro va c a b a l d a re a liza ç ã o d o
m ila g re o u d a g ra ç a , fina lm e nte , o b tid a . Essa p e sso a lid a d e e xiste nte
no c a to lic ism o p o p ula r, c o m o ve m o s, é sing ula r. Ela p a re c e p ro d uzir,
no p la no re lig io so , e ssa e no rm e ê nfa se na s re la ç õ e s p e sso a is q ue d ã o
um se ntid o p ro fund o a o no sso m und o so c ia l.
Tud o isso re ve la q ue é c la ra e ssa fo rm a d e c o m unic a ç ã o
fa m ilia r e íntim a , d ire ta e p e sso a l e ntre ho m e ns e d e use s no c a so
b ra sile iro . Assim , e m ve z d e o p o r a re lig iã o p o p ula r à re lig iã o o fic ia l, o u
e rud ita , se rá m e lho r e nte nd e r q ue sua s re la ç õ e s sã o
c o m p le m e nta re s. C o m o a s ve rte nte s d e um m e sm o rio o u a s d ua s
fa c e s d e um a m e sm a m o e d a . De sse m o d o , o o fic ia i c o nté m tud o o
q ue p o d e le g a liza r, a tua nd o a p a rtir d e fo ra . Ma s o p o p ula r c o nté m
to d a s a s fo rm a s q ue lid a m c o m a s e m o ç õ e s e m e sta d o vivo ,
a tua nd o p o r d e ntro . Ne ssa m o d a lid a d e , se ntim e nto s e id é ia s lig a m -se
e m d ra m a s visíve is e c o nc re to s, m uito d ife re nte s d a s fo rm a s e rud ita s
de re lig io sid a d e , o nd e o c ulto sa lie nta um a c o m unic a ç ã o
d isc ip lina d a e o fic ia l c o m a d ivind a d e . Num c a so , a re la ç ã o c o m
De us é , p o r a ssim d ize r, “ lim p a ” : tra ta -se d e um a c o m unic a ç ã o
e d uc a d a . No o utro , a c o m unic a ç ã o é se nsíve l, c o nc re ta e
d ra m á tic a . O m ila g re , p a ra nó s, b ra sile iro s, é a nã o -e xc lusã o d e
q ua lq ue r d e ssa s fo rm a s c o m o ne c e ssá ria s à vid a re lig io sa . Ma s a
a d o ç ã o d e a m b a s c o m o m o d o s le g ítim o s d e se c he g a r a De us.

Assim , se no Na ta l va m o s se m p re à Missa d o G a lo , no d ia 31
d e d e ze m b ro va m o s to d o s à p ra ia ve stid o s d e b ra nc o , fe ste ja r o
no sso o rixá o u re c e b e r o s b o ns fluid o s d a a tm o sfe ra d e e sp e ra nç a q ue
lá se fo rm a . So m o s to d o s m e ntiro so s? C la ro q ue nã o ! So m o s, isso sim ,
p ro fund a m e nte re lig io so s.

Re a lm e nte , se o m und o re a l e xig e um c o m p o rta m e nto


c o e re nte e um a c o nd uta m a rc a d a p e la e xc lusivid a d e (nã o p o sso
te r d o is se xo s, ne m d ua s m ulhe re s, ne m d ua s c id a d a nia s, ne m d o is
p a rtid o s p o lític o s a o m e sm o te m p o ...), no c a m inho p a ra De us, e na
re la ç ã o c o m o o utro mund o , p o sso junta r m uita c o isa . Ne le , p o sso se r
c a tó lic o e um b a nd ista , d e vo to d e O g um e d e Sã o Jo rg e . Po sso
junta r, so m a r, re la c io na r c o isa s q ue tra d ic io na l e o fic ia lm e nte a s
a uto rid a d e s a p re se nta m c o m o d ife re nc ia d a s a o e xtre m o . Tud o a q ui
se junta e se to rna sinc ré tic o , re ve la nd o ta lve z q ue , no so b re na tura l,
na d a é im p o ssíve l. A ling ua g e m re lig io sa d o no sso p a ís é , p o is, um a
ling ua g e m d a re la ç ã o e d a lig a ç ã o . Um id io m a q ue b usc a o m e io -
te rm o , o m e io c a m inho , a p o ssib ilid a d e d e sa lva r to d o o m und o e d e
e m to d o s o s lo c a is e nc o ntra r a lg um a c o isa b o a e d ig na . Um a
ling ua g e m , d e fa to , q ue p e rm ite a um p o vo d e stituíd o d e tud o , q ue
nã o c o nse g ue c o m unic a r-se c o m se us re p re se nta nte s le g a is, fa la r, se r
o uvid o e re c e b e r o s d e use s e m se u p ró p rio c o rp o .

So m o s um p o vo q ue a c re d ita p ro fund a m e nte num o utro


m und o . E o o utro m und o b ra sile iro é um p la no o nd e tud o p o d e ,
fina lm e nte , fa ze r se ntid o . Lá , nã o ha ve ria m a is so frim e nto , m isé ria ,
p o d e r e im p e sso a lid a d e s d e sum a na s. To d o s se ria m re c o nhe c id o s
c o m o p e sso a s e , a o m e sm o te m p o , le is unive rsa is — c o m o a le i d a
g e ne ro sid a d e e a d o e te rno re to rno : q ue m d á re c e b e e q ue m fa z
a lg um m a l re c e b e d e vo lta e sse m a l — se ria m vá lid a s p a ra to d o s.
To d o s te ria m va lo r, p o rq ue o va lo r nã o se ria d a d o na fo rm a lid a d e o u
no se xo , m a s na fé e na sinc e rid a d e d e c a d a um e d e to d o s. O o utro
m und o te m m uita s fo rm a s e sã o vá rio s o s c a m inho s d e se c he g a r a té
e le no Bra sil. Ma s, p o r d e trá s d e to d a s a s d ife re nç a s, sa b e m o s q ue lá ,
ne sse c é u à b ra sile ira , é p o ssíve l um a re la ç ã o p e rfe ita d e to d o s o s
e sp a ç o s. Essa , p e lo m e no s, é a e sp e ra nç a q ue se im p rim e na s fo rm a s
m a is p o p ula re s d e re lig io sid a d e ...
Palavras finais

Se ria p o ssíve l c o nc luir um livro c uja m o tiva ç ã o m a io r fo i sug e rir


um a c e rta le itura d o Bra sil? C la ro q ue nã o . Se ria p o ssíve l, p o r o utro
la d o , a linha va r c e rta s liç õ e s q ue o c a so b ra sile iro e nsina ? Alg o c o m o
a b usc a d e um a é tic a p a ra e ssa histó ria q ue c o nta m o s b re ve m e nte
na s p á g ina s a nte rio re s? C la ro q ue sim .
Ao lo ng o d e ste p e q ue no e nsa io , d e m o nstra m o s q ue a
so c ie d a d e b ra sile ira nã o p o d e ria se r e nte nd id a d e m o d o unitá rio ,
na b a se d e um a só c a usa o u d e um só p rinc íp io so c ia l. Ao c o ntrá rio ,
d o s d o m ínio s q ue to m a m o s p a ra e stud o e inve stig a ç ã o , to d o s se
re ve la ra m c o m o q ue p o ssuíd o s p o r um a ló g ic a c o m um . Um a ló g ic a
q ue c ha m e i d e re la c io na l e q ue na p o lític a a p a re c e c o m o no m e
d e ne g o c ia ç ã o e c o nc ilia ç ã o . Q ue no m und o e c o nô m ic o surg e na
c urio sa c o m b ina ç ã o d e um a e c o no m ia a lta m e nte e sta tiza d a c o m
um a inic ia tiva p riva d a vig o ro sa e a ind a im p o rta nte . Q ue na re lig iã o
a p a re c e c o m a intrig a nte m istura d e c a to lic ism o c o m re lig iõ e s a fro -
p o p ula re s. E q ue na c o sm o lo g ia e m g e ra l — e a q ui e sto u p e nsa nd o na
lite ra tura p o p ula r e e rud ita d o Bra sil — a p a re c e so b um a c e rta â nsia
de c ria r p e rso na g e ns inte rm e d iá rio s, g e nte q ue po de p e rm itir a
c o nc ilia ç ã o d e tud o o q ue a so c ie d a d e m a nté m irre m e d ia ve lm e nte
d ivid id o p o r um m o vim e nto inc o nsc ie nte .

Po r q ue isso é a ssim ? Minha re sp o sta ind ic a q ue o Bra sil é um a


so c ie d a d e inte re ssa nte . Ela é m o d e rna e tra d ic io na l. C o m b ino u, no
se u c urso histó ric o e so c ia l, o ind ivíd uo e a p e sso a , a fa m ília e a c la sse
so c ia l, a re lig iã o e a s fo rm a s e c o nô m ic a s m a is m o d e rna s. Tud o isso fa z
surg ir um siste m a c o m e sp a ç o s inte rno s m uito b e m d ivid id o s e q ue , p o r
isso m e sm o , nã o p e rm ite m q ua lq ue r c ó d ig o he g e m ô nic o ou
d o m ina nte . Assim , c o nfo rm e tive q ue re p e tir inúm e ra s ve ze s, so m o s
um a p e sso a e m c a sa , o utra na rua e a ind a o utra no o utro m und o .
Mud a m o s ne sse s e sp a ç o s d e m o d o o b rig a tó rio p o rq ue e m c a d a um
d e le s so m o s sub m e tid o s a va lo re s e visõ e s d e m und o d ife re nc ia d o s
q ue p e rm ite m um a le itura e sp e c ia l d o Bra sil c o m o um to d o . A e sfe ra
d e c a sa inve nta um a le itura p e sso a l; a d a rua , um a le itura unive rsa l.
Já a visã o p e lo o utro m und o é um d isc urso c o nc ilia d o r e
fund a m e nta lm e nte m o ra lista e e sp e ra nç o so . Entre e ssa s trê s e sfe ra s,
c o lo c a m o s um m und o d e re la ç õ e s e situa ç õ e s fo rm a is. Sã o a s no ssa s
fe sta s e a no ssa m o ra lid a d e , q ue , c o m o d isse , se fund a m na
ve rd a d e ira o b se ssã o p e la lig a ç ã o . E nã o p o d e ria d e ixa r d e se r a ssim
num a so c ie d a d e tã o te m a tiza d a p e la d ivisã o inte rna .
Ma s q ua l é , a fina l, a m o ra l d e sta histó ria ? Nã o se rá p re c iso ir
m uito lo ng e p a ra a p re c iá -la . A Histó ria d o Bra sil te m m o stra d o c o m o
se m p re insistim o s e m “ le r” e inte rp re ta r o p a ís p e la via e xc lusiva d a
ling ua g e m o fic ia l q ue se fo rm a no e sp a ç o g e ne ra liza d o d a rua ,
e sp a ç o d a s no ssa s instituiç õ e s p úb lic a s e q ue se m p re a p re se nta um
d isc urso p o litic a m e nte se d uto r, p o is q ue siste m a tic a m e nte
no rm a tivo . O u se ja : d e sse p o nto d e vista , a fa la se m p re d iz o q ue fa ze r
p a ra re so lve r a q ue stã o . Ma s nã o é p re c isa m e nte isso q ue te m o s fe ito
e m to d a a no ssa Histó ria m o d e rna , a p a rtir d a Ind e p e nd ê nc ia e d a
Re p úb lic a ? E p o r q ue a s c o isa s nã o d ã o c e rto ?
Só De us p o d e sa b e r isso p re c isa m e nte . Ma s a visã o a n-
tro p o ló g ic a , d a q ua l e ste e nsa io é um p e q ue no e xe m p lo , p e rm ite
q ue se d isc uta m a lg um a s c o isa s im p o rta nte s p a ra um a re sp o sta
sug e stiva a e ssa p e rg unta . É p o ssíve l, p o r e xe m p lo , a rg um e nta r q ue
na d a pode d a r c e rto se a c rític a so c ia l e p o lític a é se m p re
inc o m p le ta , p o is só le va e m c o nsid e ra ç ã o um d a d o d a q ue stã o . De
fa to , c o m o se p o d e c o rrig ir o m und o p úb lic o b ra sile iro p o r m e io d e le is
im p e sso a is, se nã o se fa z sim ulta ne a m e nte um a sé rie c rític a d a s re d e s
d e a m iza d e e c o m p a d rio q ue e m b e b e m to d a a no ssa vid a p o lític a ,
instituc io na l e juríd ic a ? No sso re sulta d o , e ntã o , é q ue , à c rític a
p rá tic a q ue fa la c o m o id io m a d a e c o no m ia e d a p o lític a p e lo
m und o d a rua , se ria p re c iso so m a r a ling ua g e m d a c a sa e d a fa m ília
e , c o m e la , o id io m a d o s va lo re s re lig io so s q ue ta m b é m o p e ra m e ,
p o r isso , d e te rm ina m g ra nd e p a rte d o c o m p o rta m e nto p ro fund o d o
no sso p o vo . Tud o isso , d iria e u, no se ntid o d e so m a r um p o uc o m a is a
c a sa , a rua e o o utro m und o , a p ro xim a nd o um p o uc o m a is e ssa s
e sfe ra s.

Junto com isso , q ue c e rta m e nte im p o rta ria c o rrig ir, se ria
ne c e ssá rio re sg a ta r c o m o c o isa a lta m e nte p o sitiva , c o m o p a trim ô nio
re a lm e nte inve já ve l, to d a e ssa no ssa c a p a c id a d e de sinte tiza r,
re la c io na r e c o nc ilia r, c ria nd o c o m isso zo na s e va lo re s lig a d o s à
a le g ria , a o futuro e à e sp e ra nç a . Num m und o q ue c a d a ve z m a is se
d e se nc a nta c o nsig o m e sm o e institui um ind ivid ua lism o se m lim ite s,
q ue re d uz o s va lo re s c o le tivo s a m e ro a p ê nd ic e d a fe lic id a d e p e sso a l,
a c a p a c id a d e d e a ind a d e slum b ra r-se c o m a so c ie d a d e é a lg o m uito
im p o rta nte , a lg o p o sitivo . E a q ui, se m d úvid a , p o d e m o s no va m e nte
sinte tiza r, d e m o d o c ria tivo e re la c io na l, o ind ivíd uo c o m a s sua s
e xig ê nc ia s e d ire ito s fund a m e nta is, c o m a so c ie d a d e , c o m a sua o r-
d e m , se us va lo re s e ne c e ssid a d e s. Ta lve z a so c ie d a d e b ra sile ira se ja
m issio ná ria d e ssa p o ssib ilid a d e q ue já se e stá e sg o ta nd o no m und o
o c id e nta l. E p o r q uê ? Sim p le sm e nte p o rq ue c o nse g uim o s, a té
a g o ra , m a nte r no ssa fé no ind ivíd uo , c o m o s se us e sp a ç o s inte rno s e
ta m b é m na so c ie d a d e , c o m a s sua s le is d e c o m p le m e nta rid a d e e
re c ip ro c id a d e . De sc o b rim o s ta m b é m q ue o ind ivíd uo , re la ç õ e s,
fa m ília e p a rtid o p o lític o , instituiç õ e s e c o nô m ic a s e e sfe ra s d e
p ro d uç ã o e c o nsum o , tud o p o d e te r o se u e sp a ç o . Se ho je e le s e stã o
m uito se p a ra d o s e ntre si, isso nã o sig nific a a im p o ssib ilid a d e d e se
junta re m m a is no futuro , na sínte se p o sitiva q ue a tua lm e nte só
re a liza m o s no m und o d a s fe sta s, so b re tud o no c a rna va l.
Se ria p re c iso c a rna va liza r um p o uc o m a is a so c ie d a d e c o m o
um to d o , intro d uzind o o s va lo re s d e ssa fe sta re la c io na l e m o utra s
e sfe ra s d e no ssa vid a so c ia l. C o m isso , p o d e ría m o s fina lm e nte
a p ro fund a r a s p o ssib ilid a d e s d e m e d ia ç ã o d e q ue , e sto u se g uro , o
m und o c o nte m p o râ ne o ta nto p re c isa . Ne m ta nto o d e se nc a nto
c rític o q ue c o nd uz a um p rim a d o c e g o d o ind ivid ua lism o c o m o va lo r
a b so luto ; e ne m ta nto o p rim a d o ig ua lm e nte c e g o d a so c ie d a d e e
d o c o le tivo , q ue e sm a g a a c ria tivid a d e hum a na e sufo c a o c o nflito e
a c ha m a d a s c o ntrib uiç õ e s p e sso a is. Ta lve z a lg o no m e io . Alg o q ue
p e rm ita te r um p o uc o m a is d a c a sa na rua e d a rua na c a sa . Alg o q ue
p e rm ita te r a q ui, ne ste m und o , a s e sp e ra nç a s q ue te m o s no o utro .
Alg o q ue p e rm ita fa ze r d o m und o d iá rio , c o m se u tra b a lho d uro e
sua fa lta d e re c urso s, um a e sp é c ie d e c a rna va l q ue inve nta a
e sp e ra nç a d e d ia s m e lho re s.
Ac ho q ue é um p o uc o d e sse tip o d e re fle xã o q ue no s fa lta . E,
p a ra q ue e la p o ssa se r a m p lia d a , d isc utid a , c o rrig id a e fina lm e nte
im p le m e nta d a c o m o m e c a nism o so c ia l, p re c isa m o s re a liza r a c rític a
d e ste m id a d e nó s m e sm o s, p o r m e io d e instrum e nto s sufic ie nte m e nte
a g ud o s e c a p a ze s. Pa ra ta nto , se rá p re c iso c o m e ç a r se m p re c o m a
p e rg unta : o q ue fa z o b ra sil, Bra sil? E, e m se g uid a , p ro m o ve r sua
re sp o sta , a ind a q ue tím id a , im p re c isa e c e rta m e nte d isc utíve l. Po is
nã o fo i o utra c o isa q ue q uise m o s re a liza r a q ui.

Ja rd im Ub á , junho d e 1984
Roberto DaMatta por ele mesmo

Me u no m e c o m p le to é Ro b e rto Aug usto d a Ma tta e tive m uito


e nc a b ula m e nto c o m e ssa m a rc a d e fa m ília p o rq ue na e sc o la e u
se m p re vira va o “ ro b e rto m a ta ” e to d o m und o q ue ria sa b e r q ue m
e ra m a s vítim a s. Tím id o e c a la d o , re p rim id o p o r a uto p ro je to d e
p e rfe iç ã o e sa ntid a d e , c he g ue i a té m e sm o a p e nsa r e m se r p a d re .
Esse p la no d uro u a té no ssa sa íd a d e Juiz d e Fo ra p a ra Sã o Jo ã o
Ne p o m uc e no , o nd e c o nhe c i o e sp o rte , o s b a ile s d a p rim a ve ra , o s
a m ig o s d o p e ito e a s p rim e ira s na m o ra d a s. Na sc i, p o ré m , e m Nite ró i,
e m 1936, o nd e m o ro a té ho je , p e nsa nd o q ue Nite ró i é um a c id a d e
e sp e c ia l q ue c o nfe re a a lg uns d o s se us m o ra d o re s e sse m isté rio d e
um a a sso c ia ç ã o p e rifé ric a c o m o Rio de Ja ne iro d o s g ra nd e s
a c o nte c im e nto s, m a s q ue situa a to d o s num a e sp é c ie d e m e ia -
d istâ nc ia c rític a d e tud o . Essa é um a p o siç ã o a ntro p o ló g ic a p o r
e xc e lê nc ia q ue , sup o nho , se ja ta m b é m a m a rc a de o utro s
nite ro ie nse s se nsíve is, g e nte c o m o Se rg io Me nd e s e Wa lte r Lim a Jr...
Em Nite ró i e nte rre i m e u c o ra ç ã o e o re no ve i q ua nd o c o nhe c i m inha
m ulhe r, C e le ste , num a ta rd e b o nita de ve stib ula r num p á tio
so m b re a d o d a , e ntã o , Fa c uld a d e Flum ine nse de Filo so fia , o nd e
a m b o s c ursa m o s um b a c ha re la to d e Histó ria . Em Nite ró i ta m b é m fiz
m inha c a sa , na sc e ra m m e us filho s e fo i o nd e m e d e sc o b ri p ro fe sso r-
p e sq uisa d o r. É d e sta b a se q ue sa io to d o s o s a no s p a ra le c io na r e m
o utro s c e ntro s d o Bra sil e d o e xte rio r.
Minha s p rim e ira s a sp ira ç õ e s inte le c tua is fo ra m na á re a d a s a rte s.
Q ue ria se r p into r e d e se nhista ; d e p o is, e sc rito r. Ap re nd e nd o
se ria m e nte a s C iê nc ia s So c ia is, d e sc o b ri q ue se ria p o ssíve l c o nc ilia r o
d e se jo d e inve nta r c o m o c o m e ntá rio re a lístic o e inte lig e nte d a s
m o tiva ç õ e s e re la ç õ e s hum a na s. Fiq ue i inte re ssa d o e m Antro p o lo g ia
C ultura l ou So c ia l p o rq ue e sta va se m p re fa sc ina d o com a
se m e lha nç a e a d ife re nç a s e ntre o s ho m e ns e a s so c ie d a d e s. Lo g o
e m 1959, q ua nd o tinha 23 a no s, inic ie i um e stá g io p ro fissio na l no
De p a rta m e nto d e Antro p o lo g ia d o Muse u Na c io na l, na Q uinta d a
Bo a Vista , d e o nd e ja m a is sa í. De e sta g iá rio p a sse i a b o lsista e , d e p o is,
a p e sq uisa d o r e p ro fe sso r, te nd o c o ntrib uíd o na q ue la instituiç ã o c o m
um b o c a d o do m e u sa ng ue , suo r e lá g rim a s p a ra a fixa ç ã o
d e finitiv a d o se u ho je c o nhe c id o Pro g ra m a d e Pó s-G ra d ua ç ã o e m
Antro p o lo g ia So c ia l d o q ua l fui C o o rd e na d o r d ura nte a lg uns a no s,
a q ue le s a no s d uro s d a re p re ssã o d o s no ve c e nto s e se te nta . Fui ta mb é m,
ne sta me sma é p o c a , C he fe d o De p a rta me nto , p a p e l q ue me d e ixo u
muita s ve ze s a ma tuta r no me u p e nd o r inusita d o a um c e rto ma so q uismo .
Ma s me smo e nvo lvid o na ma is d e nsa e c rue l se lva a d ministra tiva , nã o
d e ixe i d e la d o minha s fo nte s d e se re nid a d e e insp ira ç ã o e c o ntinue i
re a liza nd o p e sq uisa s e p ub lic a nd o livro s. Ne ste Muse u Na c io na l te nho
o rie nta d o inúme ra s te se s d e me stra d o e d o uto ra d o e d a d o a ula s, c urso s e
se miná rio s.

Se mp re li e ntre fa sc ina d o e re sp e ito so o s c lá ssic o s d o p e nsa me nto


so c io ló g ic o fra nc ê s, a le mã o e ing lê s. No iníc io d o s a no s 60, já inic ia nd o o s
me us p rime iro s p a sso s c o mo p ro fissio na l d e a ntro p o lo g ia , tive d o is
e nc o ntro s imp o rta nte s. Um d e le s c o m a Amé ric a do No rte , via
Unive rsid a d e d e Ha rva rd . O o utro , c o m a Antro p o lo g ia So c ia l na sua
p rá tic a d e c a mp o , p o r me io d o s índ io s G a viõ e s e Ap ina yé d o Bra sil
C e ntra l. Po r me io d e sta a sso c ia ç ã o , re a lize i p e sq uisa s a c a d ê mic a s e
te ó ric a s, ima g ina nd o p o r um mo me nto um futuro tra nc a d o na “ c iê nc ia ” e
no “ sa b e r” . Ma s a d istâ nc ia d o Bra sil a q ue a e xp e riê nc ia no rte -
a me ric a na me c o nd uziu fe z-me um o b se rva d o r c ritic o d a so c ie d a d e
b ra sile ira e se us c o stume s, inic ia nd o me c o mo p e sq uisa d o r e c o me nta d o r
d e minha p ró p ria so c ie d a d e Assim é q ue me u p rime iro livro ind ivid ua l,
Ensa io s de Antro po lo g ia So c ia l (Vo ze s), é ma rc a d o p e la d ive rsid a d e d e
inte re sse s d e q ue m e sta va c o m o q ue b usc a nd o um o b je to d e finitivo d e
tra b a lho . Ali, na q ue le p e q ue no vo lume d e e nsa io s, e u fa lo d e mito lo g ia
ind íg e na , e nc a ro uma c rític a lite rá ria a na d a me no s q ue Ed g a r Ala n Po e ,
d isc uto o p ro b le ma d a má -so rte na Ama zô nia e p e la p rime ira ve z a b o rd o o
c a rna va l d e ntro d e uma p e rsp e c tiva a ntro p o ló g ic a . Isso é muito d ive rso
d o me u p rime iro livro , Índio s e c a sta nhe iro s (Pa z e Te rra ), e sc rito a q ua tro
mã o s c o m Ro q ue La ra ia , q ue é re la to d e sc ritivo d e um a situa ç ã o d e
c o nta to inte rc ultura l o nd e o s índ io s, c o nfo rme se sa b e , tê m le va d o
siste ma tic a me nte a p io r. Se a li e u tinha um o b je to a p a ixo na d o d e
d isc urso , no o utro livro e u e sta va b usc a nd o o Bra sil. Me u te rc e iro livro é o
re sulta d o d o tra b a lho a c a d ê mic o d e se nvo lvid o d ura nte d e z a no s no
Muse u e e m Ha rva rd . É o livro Um mundo dividido : a e strutura so c ia l do s
índio s Ap ina yé (Vo ze s),q ue ta mb é m fo i tra d uzid o e p ub lic a d o e m ing lê s
p e la Ha rva rd Univ. Pre ss. Me u q ua rto livro é o e nsa io Carnavais, malandro s
e he ró is: p a ra uma so c io lo g ia do dile ma b ra sile iro (Za ha r) — tra d uzid o
p a ra o fra nc ê s —, o nd e d e c id i re to m a r o e nsa io c o m o instrume nto d e
inte rp re ta ç ã o d o Bra sil. Em se g uid a a e le , p ub liq ue i Unive rso do c a rna va l:
ima g e ns e re fle xõ e s (Pina kho te ke ); o rg a nize i Unive rso do fute b o l
(Pina kho te ke ) e E.R. Le a c h (Átic a ); e e sc re vi uma intro d uç ã o à
Antro p o lo g ia So c ia l c ha ma d a Re lativizando (Vo ze s), q ue te m tid o uma
a c o lhid a g e ne ro sa e ntre e stud io so s e e stud a nte s d e Antro p o lo g ia no
Bra sil e no e xte rio r. Ao la d o d e ste s livro s, te nho fe ito m uito s a rtig o s e
e nsa io s q ue vã o d a vio lê nc ia à se xua lid a d e no Bra sil. Ho je fic o c a d a
d ia m a is c e rto d e q ue a Antro p o lo g ia So c ia l é ta m b é m um c ó d ig o
lite rá rio e q ue só no s fa lta m a o usa d ia te m á tic a e a q ue la
c a p a c id a d e d e o b se rva ç ã o e a rtic ula ç ã o q ue , d e re sto , o s g ra nd e s
m e stre s d a Etno lo g ia d o p a ssa d o tinha m . Afina l, o p rê m io nã o é
so m e nte p e la p rá tic a d a “ c iê nc ia ” , m a s p e la p e rse ve ra nç a e m
p ra tic á -la , se m p re , m e sm o vive nd o num m und o q ue no s le va p a ra
to d o s o s lug a re s...
Re c e nte m e nte inic ie i um a e xp e riê nc ia na te le visã o e sc re ve nd o
e a p re se nta nd o a sé rie O s b rasile iro s.
R. Da Ma tta
Nite ró i, Ja rd im Ub á , Ag o sto d e 1984.
A propósito do ilustrador

Jim m y Sc o tt na sc e u e m 5 d e ja ne iro d e 1936, e m Sa ntia g o d o


C hile . Pre p a ra -se p a ra se r té c nic o ind ustria l. Mud a rum o s e ing re ssa
na Fa c uld a d e d e Be la s-Arte s d a Unive rsid a d e d o C hile , o nd e e stud a
Arte s Plá stic a s. Se u c o m e ç o p ro fissio na l na ilustra ç ã o fo i e m 1958, a o
p ub lic a r se us p rim e iro s tra b a lho s na re vista infa ntil El Pe ne c a e , lo g o
d e p o is, na re vista de hum o r p o lític o To p a ze , d ua s p ub lic a ç õ e s
tra d ic io na is do C hile , ho je d e sa p a re c id a s, q ue d ivulg a ra m
la rg a m e nte se u tra ç o . O s c o nvite s suc e d e ra m -se e e m p o uc o te m p o
sua s c ha rg e s e c a ric a tura s a p a re c ia m e m d ive rso s jo rna is e re vista s d e
Sa ntia g o e C o nc e p c ió n. Ilustro u te xto s d id á tic o s p a ra a Lib ra irie
Fra nç a ise e Ed ito ria l Unive rsita ria d e Sa ntia g o . C he g a a o Bra sil e m
1970. Até 1979 é c o ntra ta d o p e la AG G S Ind ústria s G rá fic a s. Ho je
d ivid e se u te m p o e ntre a lg um a s e d ito ra s, o jo rna l O G lo b o , e a
p ub lic id a d e .
Este livro fo i imp re sso na Ed ito ra JPA Ltd a .,
Av. Bra sil, 10.600 — Rio d e Ja ne iro — RJ,
p a ra a Ed ito ra Ro c c o Ltd a .
http://groups-beta.google.com/group/digitalsource
http://groups-beta.google.com/group/Viciados_em_Livros

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