Gatodebotas

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Contos de Fadas

DE PERRAULT, GRIMM,

Apresentação:
Ana Maria Machado

Tradução:
Maria Luiza X. de A. Borges
O Gato de Botas
ou O Mestre Gato

TODA A FORTUNA que um moleiro deixou para os três filhos foi


seu moinho, seu asno e seu gato. A partilha foi feita
imediatamente e não foi preciso chamar o tabelião nem o
procurador, que logo teriam devorado o parco patrimônio. O
filho mais velho ficou com o moinho, o segundo com o asno, e
para o caçula sobrou o gato.
Este último não se conformava de ter um quinhão tão
mesquinho. “Meus irmãos”, dizia, “poderão ganhar a vida
honestamente trabalhando juntos. Quanto a mim, quando
tiver comido o meu gato e feito luvas com a sua pele, só me
restará morrer de fome.”
O gato, que escutou essa fala sem se dar por achado, disse-lhe com ar grave e
ponderado: “Não se aflija, meu amo, basta que me dê um saco e mande fazer para
mim um par de botas para que eu possa andar pelo mato, e verá que o pedaço que
lhe coube na herança não é tão mal assim.”
Embora não se fiasse muito naquela conversa, o amo do
gato já o vira usar tantas artimanhas para pegar ratos e
camundongos (pendurando-se de cabeça para baixo pelos
pés, ou escondendo-se na farinha para se fazer de morto) que
teve um fio de esperança de ser socorrido por ele na sua
desgraça.
Quando recebeu o que pedira, o gato calçou garbosamente
as botas. Depois meteu no saco farelo e alfaces e o pendurou
às costas, segurando os cordões com as duas patas da frente. Partiu então para um
bosque onde havia muitos coelhos. Lá chegando, esticou-se como se estivesse
morto e esperou que algum coelho jovem, ainda inocente das perfídias deste
mundo, viesse se enfiar no seu saco para comer o farelo e as alfaces.
Mal se deitara, foi premiado com o sucesso: um jovem coelho entrou no seu
saco, e Mestre Gato, puxando imediatamente os cordões, o agarrou e matou sem
misericórdia. Todo orgulhoso de sua proeza, foi à casa do rei e pediu para lhe falar.
Fizeram-no subir aos aposentos de Sua Majestade e, após entrar e fazer uma
profunda reverência, o gato disse:
“Trago comigo um coelho da floresta com que o senhor
marquês de Carabá (foi o nome que, de veneta, deu ao amo)
me encarregou de vos presentear da parte dele.”
“Diga ao seu amo”, respondeu o rei, “que lhe agradeço e
que ele me dá um grande prazer.”
Mais uma vez, o gato foi se esconder num campo de trigo,
mantendo sempre seu saco aberto. E quando duas perdizes se
enfiaram nele, puxou os cordões e capturou-as. Em seguida
foi dá-las de presente ao rei, como fizera com o coelho da floresta. Mais uma vez o
rei recebeu com prazer as duas perdizes e mandou que dessem uma gratificação ao
bichano.
Assim, por dois ou três meses, o gato continuou a levar para o rei, de tempos
em tempos, uma caça em nome de seu amo. Um dia, tendo ficado sabendo que o
rei sairia a passeio pela margem do rio com a filha, a mais bela princesa do mundo,
ele disse a seu amo: “Se quiser seguir meu conselho, sua fortuna está feita; basta
que vá se banhar no rio no lugar que lhe mostrarei. E deixe o resto por minha
conta.”
O marquês de Carabá fez o que o gato lhe aconselhava,
sem saber para que aquilo poderia servir. Enquanto ele se
banhava, o rei passou por ali, e o gato se pôs a gritar a plenos
pulmões: “Socorro! Socorro! Meu senhor, o marquês de
Carabá, está se afogando!”
A esse grito, o rei enfiou a cabeça pela janela da carruagem
e, ao reconhecer o gato que tantas vezes lhe levara caça,
ordenou a seus guardas que fossem a toda pressa socorrer o
senhor marquês de Carabá.
Enquanto os guardas tiravam o pobre marquês do rio, o gato se aproximou da
carruagem e disse ao rei que, enquanto seu amo se banhava, ladrões tinham
levado suas roupas, por mais que ele tivesse gritado “Pega ladrão!” com todas as
suas forças. (Na verdade, o maroto as escondera debaixo de uma pedra grande.)
Imediatamente o rei ordenou aos servidores encarregados de seu guarda-roupa
que fossem buscar um de seus mais belos trajes para o senhor marquês de Carabá.
Depois o rei fez a ele mil cumprimentos, e como as belas roupas que acabara de
ganhar realçavam seu semblante agradável (pois era bonito e bem-constituído), a
filha do rei o achou muito do seu agrado. Mal o marquês de Carabá lhe dirigira dois
ou três olhares muito respeitosos, e um pouco ternos, ela ficou perdida de amor.
O rei quis que o marquês entrasse na carruagem e fosse com eles passear. O
gato, encantado de ver que seu plano começava a dar certo, seguiu na frente e,
encontrando alguns camponeses que ceifavam num prado, disse-lhes: “Boa gente
que está ceifando, se não disserem ao rei que o prado que estão ceifando pertence
ao senhor marquês de Carabá, serão todos picados miudinho como recheio de
linguiça.”
E de fato o rei perguntou aos camponeses a quem pertencia o prado que
ceifavam. “Pertence ao senhor marquês de Carabá”, responderam todos em coro,
porque a ameaça do gato os amedrontara.
“Tem aí uma bela herança”, disse o rei ao marquês de Carabá.
“Como vedes, Majestade”, respondeu o marquês, “é um prado que não deixa de
produzir com abundância todos os anos.”
Mestre Gato, que seguia sempre à frente, encontrou um grupo de homens que
colhiam e lhes disse: “Boa gente que está colhendo, se não disserem ao rei que
todo este trigo pertence ao senhor marquês de Carabá, serão todos picados
miudinho como recheio de linguiça.”
O rei, que passou instantes depois, quis saber a quem pertencia todo o trigo que
via. “Pertence ao marquês de Carabá”, responderam os colheiteiros, e mais uma
vez o rei se congratulou com o marquês.
O gato, que ia adiante da carruagem, dizia sempre a mesma coisa a todos que
encontrava. E o rei estava pasmo com as riquezas do senhor marquês de Carabá.
Finalmente Mestre Gato chegou a um belo castelo que pertencia a um ogro, o mais
rico que jamais se viu, pois todas as terras por onde o rei passara eram parte de
seu domínio. O gato, que tivera o cuidado de se informar sobre quem era esse ogro
e do que era capaz, pediu uma audiência, alegando que não quisera passar tão
perto de um castelo sem ter a honra de prestar suas homenagens ao castelão.
O ogro o recebeu com a cortesia de que um ogro é capaz e o convidou a sentar.
“Garantiram-me”, disse o gato, “que você tem o dom de se transformar em todo
tipo de animal, que é capaz, por exemplo, de se transformar num leão ou num
elefante.”
“É verdade”, respondeu o ogro bruscamente. “Para lhe dar uma mostra, vou me
transformar num leão.”
O gato ficou tão apavorado de ver um leão diante de si que
num instante estava nas calhas do telhado – não sem
dificuldade e perigo, por causa das botas, que não eram
grande coisa para se caminhar sobre telhas.
Algum tempo depois, tendo visto que o ogro voltara à sua
primeira forma, o gato desceu e confessou que ficara
aterrorizado.
“Garantiram-me ainda,” disse o gato, “mas não pude acreditar, que você
também tem o poder de tomar a forma dos animais mais pequeninos, que pode se
transformar por exemplo num rato, num camundongo. Confesso que isso me
parece totalmente impossível.”
“Impossível?” replicou o ogro. “Veja só.” E no mesmo instante se transformou
num camundongo que se pôs a correr pelo assoalho. Quando viu isso, o gato se
jogou em cima dele e o comeu.
Nesse meio-tempo o rei, ao passar, viu o belo castelo do ogro e quis visitá-lo. Ao
ouvir o ruído da carruagem passando sobre a ponte levadiça, o gato correu para a
frente do castelo e disse ao rei:
“Seja bem-vinda, Vossa Majestade, ao castelo do senhor marquês de Carabá.”
“Mas como, senhor marquês!” exclamou o rei. “Também este castelo lhe
pertence? Não pode haver nada de mais bonito que este pátio e estas construções
que o cercam. Vejamos o interior, por favor.”
O marquês deu a mão à jovem princesa e os dois seguiram o rei escada acima.
Quando entraram no grande salão, encontraram servida uma magnífica refeição. O
ogro a mandara preparar para uns amigos que deveriam visitá-lo naquele mesmo
dia, mas eles, sabendo que o rei estava lá, não haviam ousado entrar.
O rei, encantado com as boas qualidades do senhor marquês de Carabá –
qualidades pelas quais sua filha estava perdidamente apaixonada – e vendo as
riquezas que ele possuía, disse-lhe, depois de ter tomado cinco ou seis taças:
“Depende somente de ti, marquês, vir a ser meu genro.”
O marquês, fazendo profundas reverências, aceitou a honra que lhe fazia o rei; e
naquele dia mesmo casou-se com a princesa.
O gato tornou-se um grande senhor e passou a só correr
atrás de camundongos para se divertir.

MORAL
Por mais conveniente que seja
Uma bela herança receber,
Do avô, do pai ou do tio,
E depois de juros viver,
Para os menos bem-nascidos
A habilidade e a perícia
Podem suprir bens recebidos.
OUTRA MORAL
Se o filho de um moleiro com tanta presteza
Arranca tão meigos olhares e suspiros
E ganha o coração de uma rica princesa,
É que a roupa, a beleza e a doçura
São meios que contam com certeza.

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