CUNHA. III Centenário Da Morte de Camões (1880)
CUNHA. III Centenário Da Morte de Camões (1880)
CUNHA. III Centenário Da Morte de Camões (1880)
Carlos Cunha
([email protected])
Universidade do Minho
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o ambiente da consagração nacional de 1880, contribuíram para a "democratização" de Camões.
Após a instauração da República, Teófilo colocava o Tricentenário na sua génese (cf. 1911: 741).
Em termos nacionais, Teófilo considera Os Lusíadas um bastião da liberdade e da soberania
nacionais, desde a Restauração à Revolução liberal, e em particular com a ideia republicana: "Na
eloquencia dos factos, em as trez Revoluções de 1640, 1820 e 1910, em que Portugal reconquistou a
sua autonomia e reassumiu a soberania nacional, os Lusiadas actuaram como o livro que conserva a
tradição de uma raça; bem merecem o titulo de Biblia Lusitana, que synthetisa a sua potencia
moral." (id.: 742-3). Camões passa assim a ser valorizado porque "teve o poder de provocar a
sympathia social." (1891: VI). Foi sobretudo nas épocas de crise, conclui Teófilo, que "a sympathia
social pela obra de Camões augmentou de intensidade, chegando ao ponto de identificar-se com o
sentimento nacional." (id.: 266); "E o momento sublime e claramente comprehendido d' essa
identificação, foi a festa triumphal do terceiro Centenario de Camões." (1914: 545).
As comemorações provêm das festas cívicas da Revolução Francesa, da concepção de
grande homem de Oitocentos e "de um mitigado culto da humanidade", herdado de Comte.
Constituem representações simbólicas dos Estados-Nação para "consensualizarem o seu poder",
substituindo as formas e funções do ritualismo religioso, para construir uma nova memória
nacional, com a sua hagiografia secular e um calendário de festas cívicas. Como na tradição
católica, elege-se o dia da morte, já que também se aprecia o mérito de uma vida. O grande homem
tem uma exemplaridade típica e uma capacidade profética. Logo, há uma vivificação (selectiva) do
passado, extraindo-se aos mortos uma mais-valia simbólica. As comemorações servem assim para
re/fundar genealogias e agrupar "famílias" ideológicas (que se auto-estabelecem como tradição),
pelo que envolvem uma forte dimensão política, na medida em que apenas se comemora o que tem
relevo simbólico para um dado grupo e na medida em que o padrão das comemorações é na sua
génese republicano.
Para os positivistas em geral, e para Teófilo em particular, estas celebrações permitiam
exaltar a solidariedade nacional, sendo autênticas lições móveis de história, religando os indivíduos
a uma totalidade que os podia motivar para a acção. Em Os Centenários (1884), Teófilo Braga
sublinha que as nações se movem mais por sentimentos do que por ideias e que a sua força se mede
pela sua solidariedade com o passado e a aspiração para o futuro, pensando que o essencial seria
despertar na comunidade nacional o sentimento da sua tradição, pela veneração dos grandes
homens, o que se devia manifestar nas festas nacionais e na celebração dos centenários de grandes
homens, em que se afirmariam os sentimentos altruísta e de solidariedade. Por outro lado, considera
que os grandes homens facilitam e impulsionam a transição para uma nova síntese social. A vida
afectiva devia encontrar os seus estímulos na "solidariedade pátria" e no "ideal nacional",
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conduzindo o sentimento individual da personalidade (egoísta) para o sentimento colectivo da
sociabilidade e dos imperativos cívicos (altruísmo).
Teófilo Braga distingue, como Comte, três grandes faculdades humanas (vontade,
sentimento e inteligência), das quais Comte deduziu a teoria das três sinteses sociais, a activa, a
especulativa e a afectiva, que se manifestam respectivamente nas exposições, nos congressos
científicos e na celebração dos centenários dos grandes homens ou dos grandes feitos. Os
sentimentos eram, segundo Comte, o sustentáculo da "ordem ocidental", na medida em que
fundamentavam a solidariedade social, substituindo a antiga síntese afectiva de natureza religiosa
(cf. Braga, 1891: 307-8). A síntese afectiva é assim substitutiva das religiões, constituindo uma
hagiografia laica. Os heróis celebrados seriam uma garantia da ordem, na medida em que a eles se
submeteriam os mais fracos, venerando-os e reconhecendo-os como chefes (Braga, 1884: 16-7).
Assim, o culto dos heróis promoveria a regeneração. Teófilo não acompanha as formas religiosas de
Comte e a sua "religião da humanidade", mas considera que a síntese afectiva, "correspondendo às
novas noções moraes da solidariedade humana, manifesta-se pelos Centenarios dos Grandes
Homens, ou dos grandes sucessos" (id.: vi). Se Teófilo não aceita o misticismo comtiano, não deixa
de ter em conta a alta significação moral da comemoração dos grandes homens europeus (Camões,
Calderón, Voltaire, Marquês de Pombal e Diderot), "que nos accordam a consciencia da
solidariedade da civilisação occidental, na sua crise mais activa de transformação entre o seculo
XVI e o seculo XVIII." (ibid.). A seu ver, "A consciencia moderna achou a fórma perfeita na sua
synthese affectiva", "força coordenadora da sociedade moderna e promotora da "nova concordancia
moral" (id.: ix). Por isso, ao fazer um balanço do Tricentenário de Camões, considera que houve
uma convergência do sentimento nacional e a expressão moral dada pela filosofia, numa aplicação
da doutrina positiva, "que pelo seu valor synthetico produziu um saudavel abalo na consciencia do
povo portuguez." (1892, II: 416).
Os textos escritos por Teófilo aquando do Tricentenário, reunidos no significativo Camões e
o Sentimento Nacional (1891), apresentam Camões como patrono cívico da ressurreição da pátria,
uma espécie de santo padroeiro do culto da Humanidade. No contexto da "síntese afectiva" (moral e
estética), Teófilo integra Camões no quadro da sua Teoria dos Grandes Homens, que foram os que
fizeram prevalecer os valores religiosos e espirituais sobre o arbítrio do poder temporal. A
comemoração dos grandes homens é assim uma espécie de "hagiografia laica", a celebração das
figuras mais representativas do progresso humano nas diversas épocas históricas, para dar a
conhecer ao povo português um passado glorioso e revigorá-lo nas suas tradições, para dar coesão e
unidade à consciência e ao sentimento nacionais.
Na comemoração camoniana de 1880 celebrou-se sobretudo a antiga grandeza épica da
pátria e os Descobrimentos, que a epopeia imortalizou, imbricando-se a teoria romântica e
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positivista dos "grandes homens". Se Os Lusíadas celebravam uma época heróica, e se
representavam o sentir colectivo da sua época, a épica dava expressão paradigmática à grandeza da
época de Quinhentos. Do ponto de vista da história literária, são importantes para esta exaltação dos
Descobrimentos e de Camões os estudos de Teófilo e Oliveira Martins, que apesar da visão negativa
de Herculano, consagraram o século XVI como a "Idade de Ouro" da nossa história e os
descobrimentos como o período inaugural da própria modernidade europeia. As comemorações do
Tricentenário e a valorização dos Descobrimentos coincidem ainda com a fase do "regresso a
África". Nas palavras de Teófilo, as comemorações foram a "reivindicação do logar que nos
compete na perpetuidade da historia pela acção directa que exercêmos provocando o advento da
civilisação moderna." (1880: 17). Portugal tinha salvo a Europa da invasão turca e Camões cantava
a Europa moderna, mercantil e cosmopolita, pacífica e científica, que começa no século XVI, com a
descoberta dos portugueses do caminho marítimo para o Oriente.
Segundo Antero, Oliveira Martins tinha o mérito de ter articulado a dimensão nacional de
Camões com a sua dimensão universal, integrando-o no movimento da Renascença (cf. 1872: 29).
Por outro lado, Camões, enquanto artista da Renascença integra-se na modernidade europeia.
Antero de Quental considera pois Camões um profeta da modernidade e "os Lusiadas como uma das
grandes obras dos tempos modernos. A imaginação prophetica do poeta anticipa tres seculos da
historia psychologica da humanidade." (id.: 30).
Não é muito diferente o que escreve Oliveira Martins na revisão do seu ensaio: "Camões não
é só o epico portuguez da força e da fé, nem o epico da sciencia e do commercio: é tambem o vate
do pensamento philosophico moderno." (1891: 186). De epopeia nacional, Os Lusíadas
transformam-se na epopeia da Europa moderna porque exprimem o optimismo heróico da
Renascença e celebram as descobertas, que eram, segundo Oliveira Martins, o facto mais importante
da Renascença, consagrando assim o povo português (cf. 1891: 14 e 32).
O próprio Teófilo Braga virá a considerar o século XVI o período de maior actividade da
língua e da literatura portuguesa. Na Recapitulação enfatiza o seu juízo ao afirmar que foi "O maior
seculo da historia, o seculo XVI" (1914: 23). Concorda finalmente, sem o confessar, com o Antero
que afirmava que "A época nacional portugueza, por excellencia, é o seculo XVI." (Quental, 1872:
27).
Teófilo, em conjugação com as leituras de F. Schlegel, Magnin, Quinet, Humbolt e mediante
filosofia da história comtiana e a teoria dos grandes homens, afirma que, em termos históricos e
culturais, a epopeia imortalizou a época em que Portugal iniciou as actividades comerciais e a
"actividade pacífica da indústria", em que as "civilizações militares" mediterrânicas teriam sido
substituídas pelas "civilizações industriais", voltadas para o Atlântico. Camões universalizou esta
missão de Portugal ao abrir caminho à actividade industrial e de "luta pacífica" (1891: 309; cf. 62-
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3): "é o poeta da Europa moderna, da Europa cosmopolita, pacífica e científica que começa no séc.
XVI." (1884: 18).
Para julgar a arte camoniana, segundo Teófilo, era necessária uma teoria da história
universal que a permitisse compreender. Camões é assim entendido como um poeta nacional e
cosmopolita. Se o critério rapsódico o tinha conduzido a considerar Camões como a síntese afectiva
da nacionalidade, o porta-voz de um povo, a concepção individual da epopeia e a filosofia da
história comtiana permitem-lhe conceber Camões como um poeta representativo da
"ocidentalidade" e da Renascença, na medida em que deu expressão às navegações pátrias, que
inauguraram a modernidade europeia (cf. 1911: 336). Teófilo afirma agora que "A ideia da grandeza
de Roma fez comprehender a Camões a missão historica de Portugal no momento da sua potente
acção dos Descobrimentos. Continuava o Imperio na marcha da humanidade pela actividade
pacifica." (id.: 309). À luz da concepção comtiana da "civilização ocidental", Camões enquadra-se
num tríptico que condensa a própria evolução da humanidade: "A Virgilio, o alto representante do
fim do regimen polytheico, a Dante, que illuminou a noite da Edade média, no comêço da
dissolução do regimen catholico feudal, succede aquelle que mais sentiu e melhor exprimiu todas as
energias e aspirações da Renascença - Camões. Foi a comprehensão do momento historico, revelado
pelo sentimento da patria, que lhe deu a supremacia poetica." (id.: 329).
Camões faz parte do pequeno número de eleitos que pressentiram e iluminaram a marcha da
Humanidade, "os poetas da Civilisação occidental", cujas epopeias são sínteses "das ultimas tres
grandes edades sociaes", "relacionadas entre si, como que os cantos cyclicos da Epopêa da
Humanidade." (1911: 337-9). A consagração de Camões passa assim pelo facto de se transformar
numa espécie de "património da humanidade"
Para esta nova visão da épica camoniana contribuiu de modo decisivo a revisão
interpretativa da Renascença efectuada por Teófilo Braga. Em termos da interpretação d' Os
Lusíadas, Teófilo explica a coexistência dos dois tipos de maravilhoso pela duplicidade sentimental
do espírito da Renascença, considerando que se trata de um sincretismo típico da transição para a
Renascença. Camões é assim elogiado por ter conseguido, como Miguel Ângelo e Leonardo da
Vinci, dar expressão à continuidade das duas idades, porque "sentiu em si as duas almas" e na
estrutura do maravilhoso "soube restabelecer a solidariedade entre o mundo antigo e o medieval, no
argumento do poema soube determinar um facto que é nacional pela iniciativa, mas que pelos
resultados pertence á éra moderna da Civilisação occidental." (1873: 76). O mérito de Camões não
reside apenas no facto de ser o porta-voz da nacionalidade. Ele passa a ser exaltado por ter
conciliado e harmonizado os "dois espíritos" ou as "duas almas" da Renascença, a dimensão
tradicional (medieval e popular) e a dimensão clássica do Renascimento.
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Deste modo, articula a dimensão nacional e universal d' Os Lusíadas. Ao mesmo tempo,
rebate a crítica iluminista relativa aos dois tipos de maravilhoso e a perspectiva de Hegel, que
apontava o contraste existente entre o assunto nacional e o classicismo da obra camoniana.
De um modo global, a Geração de 70 contribuiu assim decisivamente para a valorização d'
Os Lusíadas como obra cosmopolita que abriu as portas da modernidade. Mas Antero e Oliveira
Martins mostraram-se extremamente críticos em relação às celebrações do Tricentenário, não se
associando às comemorações. Oliveira Martins não acreditava nas suas possibilidades
regeneradoras e denunciava os seus fundamentos positivistas. Oliveira Martins critica sobretudo a
apropriação republicana de Camões (1891: 116). Para Oliveira Martins, o pensamento político d' Os
Lusíadas é o do Velho do Restelo e a ideia de governo que preconiza corresponde ao pensamento
clássico da monarquia universal. Aliás, segundo Oliveira Martins não se pode compreender a
Renascença sem o fundamentalismo religioso (contra judeus e mouros) e sem o imperialismo
político.
Por seu lado, Antero escrevia em 1881, no Almanach Litterario e Charadistico, um curto
texto a propósito do Tricentenário, considerando que o epitáfio camoniano mostrava que nem
depois de morto ele era compreendido, "e justamente por aquelles que se apregoam herdeiros e
interpretes do seu pensamento", razão pela qual achava que Os Lusíadas seriam um símbolo que "o
futuro deixará eternamente vazio", fazendo assim uma crítica aos promotores das comemorações
(1926: 309). Contrariando o optimismo teofiliano, considera que Os Lusíadas aclamam "a glória e o
génio dum povo, no momento preciso em que essa glória se eclipsa", sendo o epitáfio da nação: "Ha
nações para as quaes a Epopeia é ao mesmo tempo o epitaphio." (ibid.).
Trata-se, no fundo, de uma crítica de fundo à imagem camoniana transmitida pelas
comemorações, que, apesar do seu aspecto plural, teve uma presença dominante de elementos
positivistas e republicanos, o que motivou Bordalo Pinheiro a elaborar a célebre caricatura em que a
estátua de Camões aparece com um barrete frígio, agradecendo ao governo e ao rei a sua
republicanização.
Em 1891, Oliveira Martins escrevia que "Infelizmente, doze annos de factos mostraram que
o enthusiasmo de 1880 ardeu como a palha", num clarão efémero, pois tinha falhado "a lenha do
sacrifício, abnegação e arrependimento", desfecho que já previa em 1880 (1891: VIII-IX). Diferente
era a opinião de Teófilo, que em As Modernas Ideias mantinha a convicção de que o Centenário de
Camões era o ponto de partida de uma época de revivescência nacional, apesar de nesse espaço de
doze anos se ter assistido ao aumento da ruína económica, à desorientação dos partidos e à
promulgação de leis repressivas. Para Teófilo, os efeitos do Tricentenario não podiam ser imediatos
nem gerar uma transformação social rápida e miraculosa, mas eles far-se-iam necessariamente sentir
em épocas posteriores, na medida em que a vida das sociedades e a forma política não eram
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solidárias. Segundo Teófilo, Portugal ainda passaria por situações mais angustiosas: "não é isso
decadencia, mas o doloroso trabalho de regenerescencia." (1892, II: 436).
Nesta conversão simbólica, Camões é politizado, imbricando-se nas lutas ideológicas do
século XIX. Mas, não é menos verdade que desde a Geração de 70, passando pelo ultra-romantismo,
neogarrettismo, decadentismo, saudosismo, integralismo, etc., Camões passou a simbolizar a "alma
nacional" em busca da regeneração da pátria, imersa numa decadência plurissecular, numa "apagada
e vil tristeza". Os Lusíadas transformaram-se assim num poderoso elemento de identificação
nacional, contribuindo para um certo sentimento de solidariedade nacional. Era, no fundo, esta
"con/sciência" nacional (o "imaginário nacional") que os promotores do Tricentenário e muitos
outros intelectuais portugueses desejavam instituir e divulgar.
Bibliografia:
Teófilo Braga, História de Camões, Porto, 1873; Bibliographia Camoniana, Lisboa, 1880; Os
centenários como synthese affectiva nas sociedades modernas, Porto, 1884; Camões e o Sentimento
Nacional, Porto, 1891; As Modernas Ideias na Literatura Portuguesa, 2 vl.s, Porto, 1892; Camões.
A Obra Lyrica e Épica, Porto, 1911; Recapitulação da História da Literatura Portuguesa – II
Renascença, Porto, 1914; J. P. de Oliveira Martins, Camões, Os Lusiadas e a Renascença em
Portugal, Porto, 1891; Antero de Quental, Considerações sobre a Philosophia da Historia
Litteraria Portugueza, Porto-Braga, 1872; Prosas II, Coimbra, 1926.