TIZIANO
TIZIANO
TIZIANO
TIZIANO – 1ªEdição
Todos os direitos reservados.
Edição DIGITAL | Criado no Brasil.
TEMAS ABORDADOS:
Lactofilia
Abuso físico descritivo, abuso psicológico e manipulação
Tortura explícita
Transtorno de personalidade borderline
Tentativa de suicídio
Incesto
23 anos
“– Alô?
– Sim, senhorita Malpucci, onde está a senhorita DiMateo? Estão
juntas? — Ah! Merda! Esse é o tal segurança! Tiro o telefone do ouvido e
confiro a tela. Eu liguei certo, por que o outro atendeu? Respiro fundo e
solto a bomba…
– Então, precisamos ir para casa, Jess bebeu um pouco e... -
– Bebeu, onde vocês estão, afinal? — Dio (Deus)! Eu sabia que ela
não tinha contado para ninguém sobre a festa. Falo tropeçando as palavras
quase em pânico:
– Passamos numa festa de um ex-colega de escola. Nada demais.
Mas ela está bem, não vou me afastar dela, não se preocupe. Passo a
localização por mensagem.
– Certo. Estou a caminho imediatamente.
Sinto o alívio misturado a um pressentimento que vai sobrar pra
mim essa fuga dela. Mesmo não tendo culpa sinto que vai dar ruim.
— Obrigada.”
Selena não saiu de sua mansão. No dia seguinte com remorso fui até
lá para conversar com ela, mas a governanta não permitiu, disse que a
senhorita não estava recebendo ninguém e que ficaria uns dias reclusa para
estudar para a prova do curso que está fazendo. Prova o caralho!
Decidi manter a agenda de reuniões na empresa, cumpri meus
afazeres profissionais e voltei para casa de meu pai. Confidenciei a nonna
Olímpia o que houve com Jessica e a fiz prometer que se a amiga fosse até
lá, era para me avisar, pois minha irmã está proibida de sair sem sua guarda
pessoal. Confio na minha nonna, ela sabe do meu instinto protetor com
relação a família e acho que não desconfia do meu interesse por Selena.
Nos próximos três dias dei uma pequena pausa em rondar a mansão
de Selena para ir à sessão com minha psicóloga.
Contei o que houve naquela noite, como agi e o que falei. Seu papel
foi me fazer refletir sobre minha culpa em afirmar para Selena que ela era
culpada. Concordei que fui tóxico, que devo pedir desculpas. Mas como
farei isso? Tive meus motivos para agir do jeito que agi. Foi
propositalmente pelo desespero de vê-las em perigo naquele lugar e ainda
pior, Selena se distanciando de mim ao ser apresentada ao sexo de modo
promíscuo com aqueles garotos fodidos. Não! Selena não pode ser
corrompida por ninguém e nem tocada por ninguém a não ser por mim.
Saí da consulta dando a certeza que procurarei mia ragazza para me
redimir. Mas, desculpas não vou pedir! O que preciso é me conectar
novamente com ela e mantê-la perto, Selena precisa me ter em cada
pensamento do seu dia. Aquela festa de merda fodeu com o início de nossa
relação naquele píer.
Hoje a segui numa rota que conheço bem, até a Piazzale Roma,
onde Selena ama capturar o movimento do fluxo de turistas e a diversidade
da paisagem.
O suv preto estacionou e a vi, num vestido simples, porém perfeito
nela. Vestia também uma jaqueta jeans, com uma mochila pequena nas
mãos. Os cabelos que amo, estavam presos numa trança deixando-a ainda
mais inocente. Puta que pariu! Inocente para aquele fedelho de merda
colocar as mãos sujas nela. Fechei meus olhos pela dor de vê-lo a
cumprimentar com um beijo no rosto e aquela mão possessiva na cintura.
Não movi meus pés até não ver os dois saírem de lá. Ansioso e
nervoso aguardei, será que ela iria com ele no carro? Mas imediatamente
relaxei quando o suv apontou na esquina. Trocaram algumas palavras e
então se despediram, mais uma vez ele agarrou sua cintura na hora de se
despedir. Me vi apertando as mãos em punho. Decepcionado em ver a
interação deles.
Mais de uma semana sem olhar naquele olhar sincero. Mesmo que
em nenhum momento os olhos se encontraram com os meus, ainda assim
fantasiei que a tinha em meus braços.
Não foi minha intenção ser mal-educada e desligar na cara dele, mas
era bom demais para ser verdade. Um homem como Tiziano tem muitas
reuniões importantes, não haveria tempo para uma bobagem, como ensinar
uma garota a guiar motocicletas. Que besteira, Selena!
Ao guardar o telefone na pequena bolsa transversal, sinto uma
presença nas minhas costas e duas mãos firmes segurando minha cintura.
Giro rapidamente assustada por estar distraída e agora indefesa nas mãos
que certamente é um homem, pela forma que prende meu corpo junto ao
seu. Só relaxo quando ouço um riso rouco conhecido e um par de olhos
azuis me encarando maroto.
— Tiziano! Dio Santo! Você me assustou!
— Devia prestar atenção, micina.
Ele não me solta e me deixo conduzir mais para o fundo do
corredor, onde é ainda mais deserta a circulação de pessoas. O cheiro bom
dele misturado com cheiro clássico dos livros, será uma memória olfativa
que jamais esquecerei.
— Verdade, não estava prestando atenção. Você disse que tinha um
compromisso inadiável?
— E tenho. Acha que trocaria qualquer evento por isso?
— Isso o quê? Não entend...
Tizi agarra minha nuca e me conduz para seus lábios exigentes, a
surpresa dura poucos segundos, pois os meus respondem instantemente a
ele como se fossem feitos exclusivamente para ele devorar. É ainda melhor
que o primeiro beijo, pois esse ele belisca e instiga meus lábios de uma
forma tão irresistível que arrisco imitá-lo dando mordidinhas nos dele.
Ele é intenso, é algo que nunca provei ou imaginei existir. Seu
punho fechado segurando meus cabelos na nuca e guiando como deseja é…
uau!
A barba roçando meu rosto é uma sensação tão gostosa que provoca
uns calores estranhos, mas tão deliciosos que deixo escapar uns murmúrios
baixos. A língua dele explora cada canto e às vezes chupa a minha com
vontade. Ele tem gosto daquelas balas fortes, que gelam a boca, mas a
sensação é incrível.
Tizi de súbito termina o beijo, mas não a conexão, pois apoia sua
testa na minha respirando pesado e lambendo os próprios lábios.
Minhas bochechas doem pelo tamanho do sorriso que trago no rosto.
Sinto os lábios até um pouco doloridos, com aquele ardido bom.
— Está pronta para se transformar em uma expert em motocicletas?
— Completamente.
Sem dizer mais uma palavra, pela mão ele me conduz de modo ágil
para a porta lateral da biblioteca, colocando o capacete em mim e nele.
Subimos na Harley e seguimos pela rodovia. A ansiedade de minutos antes,
agora dá lugar à alegria e ao prazer de estar com Tiziano. Dio Santo (Santo
Deus)! E se Salvatore me procurar dentro da biblioteca? Ah! Certamente
vai ligar no celular e então vou explicar tudo. Não vou me prender a isso
quando estou na carona do meu amor.
Perco a noção do tempo aproveitando a paisagem de ciprestes
passando rápido pela velocidade da moto. De vez em quando Tizi
inspeciona se estou segurando firme, assim como fez da primeira vez. Toca
minhas mãos ao redor de seu tronco e traz a coxa quase trançando as pernas
sobre as dele. É tão protetor e cuidadoso! Um príncipe!
Ao sairmos da rodovia principal, seguimos por uma estrada
secundária pavimentada e deserta, com uma mão só, como se conduzisse
para uma propriedade particular. Ao estacionar em uma parte mais larga da
estrada que parece um recuo, Tizi me instrui a desembarcar. Ele também
desce e começa a explicar a posição da embreagem e freios, conto que olhei
alguns vídeos no YouTube o que o deixa satisfeito pelo sorriso que me
oferece. Mesmo assim me faz testar cada coisa que explicou antes de subir
nela.
Freios, embreagem, acelerador, ignição.
— Pode deixar a bolsa junto dos capacetes ali no chão, iremos bem
devagar e não haverá perigo. Sabe andar de bicicleta?
— Sei, apesar de ter um tempo que não ando, acho que não esqueci
— Faz um tempão mesmo!
— Ótimo, tem o mais importante, senso de equilíbrio.
Obedeço ao me livrar da bolsa.
— É seguro deixar nossas coisas? Ninguém passa por essa estrada?
— Não! Essa estrada segue para uma propriedade particular. Não
viu a câmera na saída da rodovia?
— Não vi, a paisagem me distraiu.
‘Eu estava concentrada em te abraçar e sentir seu cheiro, não havia
nada que pudesse me interessar, bobinho.”
— Qualquer pessoa não autorizada, tem os pneus dilacerados por
um sistema secreto terrestre nos primeiros metros do caminho.
— Como sabe disso?
— Fui eu quem mandou construir.
Dou um sorriso vendo o dele todo convencido e a piscadela de olho
que me derrete feito manteiga. A propriedade é sua.
Em seguida Tizi começa a ensinar o que fazer e de que forma.
Concentro-me em cada orientação que ele passa para colocar a moto em
movimento.
— Essa Nightster é muito pesada para você e como é a primeira vez,
não se preocupe em colocar os pés no chão. O câmbio é automático
também, o que facilita para iniciantes. Serei o seu apoio, pode subir.
Faço como diz e em seguida ele se acomoda atrás. Junta seu corpo
trabalhado em músculos todinho colado no meu, como uma gaiola.
Posiciona minhas pernas corretamente com uma pegada firme. Os
braços também, colocando minhas mãos nas manoplas. Testa e fala ao
mesmo tempo, coloco todo o meu esforço em ignorar a sensação deliciosa
da voz sedutora rente ao meu ouvido.
— Está pronta para isso, micina (Gatinha)? — ele sussurra fazendo
com que eu feche os olhos pelo arrepio que desencadeia.
— Com você como apoio, estou mais do que pronta. Vamos lá!
O motor é ligado e Tiziano sobrepõe a mão sobre a minha no
acelerador, acelerando para escutarmos o rugido sinistro da Harley. Uma,
duas, três vezes...
— Ouça Selena! Isso é...
— LIBERDADE!
Falamos juntos completando a frase.
Passei a noite de ontem em claro, com a ansiedade transbordando
pelos poros. Monitorei cada minuto do meu dia para este momento, para
estar com ela no nosso universo particular.
Fazia trinta minutos que a esperava naquela biblioteca, angustiado
que talvez ela não fosse. Mas quando seu perfume tomou conta do lugar,
senti minha pulsação acelerar como um viciado sedento pelo frasco de
entorpecente.
Assim que a vi meu coração veio à boca. Estava ansioso por sua
presença e não resisti. Depois do nosso primeiro beijo dois dias atrás, nada
mais fez sentido. Tudo perdeu o sabor, o alimento foi consumido apenas
para que eu tivesse energia, a água cumpriu o seu papel em me hidratar,
mas o único gosto que prevaleceu foi o beijo de Selena, sua entrega a mim
fez uma marca como uma tatuagem em meu coração.
Senti que estava em abstinência dela, portanto, na primeira
oportunidade naquele corredor eu aproveitei. Sorvi os lábios doces como se
minha vida dependesse disso. Ah, como queria tê-la em meus lençóis
naquele instante!
Desde que a tive em meus braços é necessário manter o foco, ou a
qualquer momento mando meu juízo pra casa do caralho!
Podia levar Selena até o meu rancho a cinco quilômetros adiante,
mas tenho guardas na guarita de entrada e o casal que cuida dos animais
morando nas dependências da propriedade. Seria um incômodo dos infernos
se um deles abrisse o bico sobre quem chegou comigo no rancho. Selena é a
conhecida herdeira de um dos casais mais influentes e de renome da Itália.
Não posso estragar tudo agora tão perto de poder viver meu sonho.
Em breve ela será maior de idade e então esse sacrifício em manter a
discrição valerá a pena, pela sua reputação e a minha também.
Tento relaxar e acalmar meu espírito ansioso, pois ao simples toque
dela estou a ponto de cometer uma loucura. Minha bella é inocente e ainda
não compreende que a maneira despretensiosa que a toco é para aplacar
essa fera faminta que está à espreita de devorá-la.
Mas neste momento, ao ouvi-la completar o que ia dizer, é mais uma
confirmação que Selena foi feita para mim.
— Sim, liberdade! Ouça o convite do motor, não é fascinante?
Seu rosto vira para olhar sobre o ombro, mas estamos tão próximos
que a lufada doce de seu hálito, me entorpece.
— Tenho que admitir, ouvindo essa potência estou um pouco
nervosa.
Minhas mãos não obedecem a meus comandos, preciso tocá-la.
Aliso suas coxas num vai e vem reconfortante, e sussurro palavras de
incentivo.
— Não se preocupe, Selena, estou aqui para te proteger. Jamais
deixarei nada acontecer com você. Confia em mim?
— Confio.
— Solte lentamente a embreagem, vou acompanhar a aceleração até
se sentir segura.
— Ok.
Ela me obedece e faz tudo certo. Aos poucos começamos a nos
mover na estrada reta, seguindo minhas instruções, é o momento de tirar
minha mão e deixá-la seguir sozinha. Volto a agarrar sua cintura,
transmitindo meu calor, minha posse sobre seu corpo.
— Eu consegui! Consegui Tizi!
— Sabia que era capaz, acelere um pouco mais e mantenha.
O sopro da brisa suave traz as mechas de cabelo loiro para meu
rosto e a sensação é de entrar no paraíso. Observo seu rosto pelo espelho
retrovisor e mesmo concentrada, Selena deixa um sorrisinho dançando em
seus lábios. Tão linda, tão minha!
— Você fica ainda mais bonita quando está focada assim.
— Você sabe como me deixar envergonhada. Não pode me distrair
assim, Tiziano!
— Euuu? Distraindo você? Pelo contrário, você é uma distração
ambulante, Selena!
Dou uma risada alta quando seu rosto surpreso olha no retrovisor.
Mia ragazza aciona o freio sem querer fazendo a moto apagar em um
solavanco, me fazendo rir ainda mais e abraçá-la com toda a força para nos
segurar sobre o veículo. Ela também acha graça e se diverte com a situação.
— Falei que eu era inocente. Você quem deixou apagar!
Conforme a aula progride, Selena se sente mais confiante. Ela está
resplandecente, descontraída desse jeito, compartilhando risadas e trocando
olhares cheios de afeto comigo. Não quero que esse dia termine. Em
seguida ela aponta para uma curva à frente.
— Acho que consigo fazer essa curva sem problemas. O que acha?
Observo a determinação com um orgulho gigante dentro de mim.
— Tenho certeza de que você vai arrasar. Vá em frente, não irei
desgrudar de você.
Selena inclina a motocicleta e passa pela curva com sucesso,
sentindo-se animada com a conquista. Inspiro seu pescoço e beijo sua pele
tirando uma gargalhada feliz e melodiosa. Afago carinhosamente sua
cintura, enquanto continuamos o percurso.
Se isso não é sinônimo de felicidade, não sei o que é.
No final da tarde, após várias voltas e lições, estacionamos a moto
no ponto de partida. Ela está radiante e orgulhosa de suas realizações.
Descemos do veículo e vestimos os capacetes para retornar.
— Tizi, obrigada por ter sido tão paciente nesta aula. Não teria sido
tão divertido e emocionante com outra pessoa.
Olho em seus olhos brilhantes, segurando suavemente suas mãos.
— Eu não podia escolher aluna melhor, Selena. E mal posso esperar
para vivermos muitas aventuras juntos de motocicleta por essas estradas.
Seu rosto toma a melancolia habitual.
— Minha família não permitiria tirar a carta para guiar motocicletas.
É uma pena, gostei tanto!
De maneira gentil, me aproximo e toco seu rosto carinhosamente.
Esses lábios tão lindamente desproporcionais são uma tentação!
— Pode ser um segredo só nosso. Você pode passear de motocicleta
somente comigo.
Selena me surpreende lançando seus braços ao redor do meu
pescoço em um abraço contente.
— Você faria isso por mim?
Se ela soubesse o que estou disposto a fazer por ela, provavelmente
não acreditaria.
Respiro fundo o perfume dos seus cabelos enquanto ela me aperta
contra si.
— Estou ansioso para vê-la guiar sozinha ao meu lado em um
passeio especial.
— Passeio especial? — Amo quando a surpreendo, eu sou o sortudo
que irá apresentar o mundo para ela.
— Sim, podemos organizar um roteiro de pontos turísticos em um
fim de semana.
Selena me olha de um modo que me deixa emocionado, toca meu
rosto desejando mais que toques. No entanto, não posso dar chance para a
fera escapulir, se beijá-la outra vez, aqui sozinhos, suspeito que não vou
conseguir parar. Ao invés de sua boca, beijo sua palma e dedos.
— Melhor irmos, estamos há horas aqui e não quero complicações
para você. Assim podemos treinar mais vezes em breve.
— Claro, tem razão, acho melhor me deixar na biblioteca outra vez.
Prendo a fivela de seu capacete e nos acomodamos na Harley para
retornar. Mas não vou acelerar, quero aproveitar o máximo que puder desse
sonho.
CAPÍTULO 11
Horas Antes
Estou a caminho de um encontro com meu amigo. Dentro do
veículo observando a paisagem pela janela, recordo como me envolvi nesta
situação.
Jessica, sempre preocupada com o meu bem-estar, decidiu que era
hora de arrumar um encontro para sua amiga introspectiva, eu. Como podia
recusar? Assim que demonstrei relutância ela me encarou com seu olhar
incomum de um jeito que me intimidou.
— Você está saindo com alguém que eu não sei, Selena?
— N-não, claro que não!
— Então precisamos agitar essa rotina, bionda. E bem notei a
maneira que Vance olha para você.
Claro que ela tinha que pensar logo em Vance.
— Acho que é impressão sua, Jessica.
Entrei numa enrascada. Não podia contar sobre meu romance com o
irmão mais velho dela. Por outro lado, que desculpa usaria? Fiquei nervosa
a cada frase que dizia, especialmente sobre dicas relacionadas ao rapaz
interessado. Por outro lado, me senti desapontada mais uma vez. Jessica não
estava respeitando minhas decisões de escolha. No momento, minha opção
era parecer livre de relacionamentos.
Entre tantos conflitos em minha mente, ainda tinha que cancelar o
encontro com Tiziano. Que desculpa eu daria? Odeio mentiras, ainda mais
sobre algo tão importante. Sei que minha amiga só quer o melhor para mim,
tentando ajudar na busca do príncipe perfeito. Mas, a culpa me condena por
esconder a relação com seu irmão. Não quero perder nenhum dos dois. Meu
amor com Tizi é algo que pensei nunca ser correspondido, e ela é uma
amiga maravilhosa.
É um erro o que vou cometer, ainda mais sabendo que a impressão
de Tiziano sobre Vance não é das melhores. Posso estar dando motivos para
teorias infundadas. Mas pretendo contar para meu príncipe verdadeiro o
motivo de tudo isso. Espero que ele entenda. E para Vance, esse encontro
vai deixar claro que só teremos amizade, nada mais.
Ao chegar no local do encontro, um restaurante requintado no centro
do bairro Mestre, Vance já estava esperando quando a recepcionista me
recebeu na entrada.
Acomodado na mesa especialmente escolhida, próximo a janela, o
próprio faz a gentileza de afastar a cadeira para mim, depois de um
cumprimento singelo na minha bochecha.
— Selena, que bom vê-la! Como está? Faz tempo que não nos
vemos. Pensei que não teria brecha na sua agenda para esse humilde
admirador. — O jeito cínico dramático com a mão no coração me diverte.
— Vance, sempre divertido. Estou bem, terminando meu último
módulo de fotografia e você, como tem passado?
Dou a iniciativa para que ele fale, seus assuntos sempre variados
deixam a conversa fluir naturalmente. Degustamos nossas refeições, e
mesmo que a conversa às vezes desvie para um flerte, consigo disfarçar e
retornar para os assuntos triviais.
Em dado momento, meu celular emite um bipe e confiro as
mensagens para ver Tiziano perguntando onde estou e se pode ir ao meu
encontro. Escrevo que estou no compromisso com uma amiga. Ele insiste
para me buscar, o que respondo com outra desculpa que não sei a hora que
vou terminar a conversa com ela.
Uma traidora, é assim que me sinto, nem consigo terminar o último
pedaço de torta da sobremesa e Vance percebe meu desconforto.
Apesar de simpático e educado, não resiste em questionar os
motivos do meu rosto consternado. Não revelo, não é adequado, pois não
temos intimidade para confissões pessoais.
Ele faz de tudo para me agradar, mas simplesmente não consigo vê-
lo e me interessar por ele de outra forma que não a amizade. Meu coração
pertence a outra pessoa, e essa situação deixa-me extremamente angustiada.
— Falando em arte, tenho algumas obras em casa que gostaria de
mostrar a você — sugere.
— Não sei se é uma boa ideia ir para a sua casa, Vance.
— Relaxa, Selena, já saquei que não tenho chances com você, mas
gosto da sua companhia. É sem interesse e muito sincera. Aprecio pessoas
assim. É raro encontrar alguém da nossa idade que curte conversar sobre
Van Gogh, a propósito, já assistiu ao filme “No portal da Eternidade?”
— Não. Queria ter ido quando estreou, mas não tive oportunidade.
— Hum, vamos marcar para assistir um dia desses.
Não acredito que o garoto popular se interessa por arte do pós-
impressionismo.
— Já enviei mensagem para meu mordomo preparar a sala de tv
para uma sessão de cinema com tudo o que temos direito.
— Acabamos de comer, Vance!
— Cinema sem pipoca e refrigerante não é cinema, garota!
— Você mora sozinho?
— Meu tio está em uma viagem de negócios, talvez retorne no fim
da semana. E meu primo que mora comigo, também viajou. Mas a casa é
repleta de pessoas, fique sossegada, não estaremos sozinhos, Stanley ficará
feliz de atender uma moça dessa vez, vive reclamando da bagunça dos meus
amigos homens. Além disso, Jess vai nos dar uma folga por algumas horas.
E seu segurança, quer que eu fale com ele?
— Não. Eu vim apenas com o motorista, fiz um acordo com
Salvatore. Quando vou para casa de Jess ele está dispensado.
— Mas você não está lá agora!
— É, mas o senhor Salvatore é bem flexível, consigo uma certa
liberdade sem que ele conte para o meu pai.
— Hum… não devia colocar seu segurança nessa situação. Se seu
pai descobrir ele tá ferrado!
Seu rosto fica sério por um instante. Ele nem conhece meu pai para
levantar essa análise. Papai é bravo, mas não faria nada de ruim ao homem
tão gentil que é meu segurança há anos. Será que estou prejudicando o
emprego do homem?
— Pronta para ir? — O sorriso animado de Vance aparece.
— Và bene, (tudo bem) podemos ir na sua casa.
Depois de acertar a comanda, saímos rindo de uma piada que ele
conta. É leve o clima e me divirto com as palhaçadas dele.
O pequeno trajeto é um pouquinho longo. Vance mora do outro lado
do bairro Mestre, perto do porto, mas é um lugar bonito. A casa é fantástica,
repleta de obras de arte e uma decoração clássica, mas com toques
divertidos nos móveis.
Após fazer um tour pelos ambientes que ele queria me mostrar, onde
ficam os quadros e algumas esculturas, me pergunta se eu gostaria de
assistir ao filme ou jogar um jogo. Vance ama videogames, curiosa pergunto
quais jogos ele tem, porque nas minhas diversões, gosto de jogar,
principalmente jogos de RPG. Tenho os meus prediletos para ajudar a
passar o tempo solitária em casa.
Depois de me falar que joga o mesmo jogo que eu, videogame é
nossa escolha.
Saí tão rápido daquela garagem que não pensei em mais nada. A
humilhação de ver Tiziano tão à vontade com aquela mulher, cortou minha
alma em pedaços. Vaguei pelas ruas de Veneza sem intenção de chegar a
lugar algum. Só queria correr até meus pulmões estourarem por exaustão.
Mas só o que consegui foi uma dor nas pernas gigantesca.
Consegui chegar em casa antes do almoço, chorei o caminho todo e
as pessoas me olhando com piedade foi pesado demais para suportar.
Arrependo-me de ter deixado a bolsa e o celular na casa de Jess. Mas que
importância tem? Para quem eu ligaria? Ou quem ligaria para mim? Entro
depressa ouvindo a voz de Mafalda preocupada enquanto corro para o meu
quarto, mas sou mais rápida e tranco a porta, deixando claro que não quero
falar com ninguém nesse momento.
Ligo o aparelho de som no volume máximo, Radiohead vai
contrapor o barulho da minha mente e disfarçar meus soluços até me
acalmar. Meu reflexo no espelho agora está tão diferente de quando parti
para aquele encontro. O rosto inchado de tanto chorar, olhos vermelhos
irritados e banhados pelas lágrimas. A mão na boca tentando conter o grito
de ódio pronto para arrebentar o peito. Onde foi que eu errei?
Sim, menti, mas porque Tiziano é possessivo. Sabia que ele não
permitiria um encontro com Vance, já deixou bem claro que o odeia,
mesmo dizendo que existe apenas amizade entre nós, o que fiz foi evitar
uma discussão e o que resultou? Seco o rosto com o dorso da mão com
força, respiro fundo e analiso meu corpo.
Observo as calças que visto. Por que não se ajustam melhor? Não
vejo músculos e curvas evidentes para isso! E essa blusa de algodão ridícula
que mais parece um saco vazio? Não tem formas bonitas dentro dela! Os
ossos da clavícula salientes e feios me deixam com uma aparência
cadavérica. E meus seios? Por que tão pequenos? Sem atrativos?
Maldita genética materna. Minha mãe ama sua aparência
esquelética, exalta a magreza como um presente, mas eu me odeio. Dispo
minha roupa e de lingerie, analiso meu corpo magro, pequeno e sem
nenhuma curva atraente, sinto a tristeza me abater ainda mais. Por que
insisto em fazer o que querem, o que esperam de mim? Se não adianta
nada!
A roupa que escolhi para o encontro com Vance, não demonstrava
intenções românticas e sim porque queria inibir as dúvidas de Jess. Não era
minha maldita escolha! É sempre a mesma coisa! Tenho deixado que as
pessoas escolham por mim. A escola, os amigos, namorado e até mesmo a
opção de viver.
Nesses últimos anos me apeguei às promessas que fiz ao meu pai, de
não desistir da vida. Mas para quê? Não há motivos para respirar.
Devo ser uma boa garota, reconhecer os esforços de meus pais em
prepararem um futuro melhor para mim, e como prêmio, devo agradá-los ao
obedecer e agir como desejam que uma filha exemplar aja. Mas, nunca
alcanço a porcaria do padrão que eles esperam!
O que há para mim? A única coisa é a certeza que irei perder cada
um que se aproximar, porque ao me conhecerem, vão perceber que não
tenho nada para oferecer. Não sou interessante, não sou experiente, sou
ingênua, tímida e sem atrativos físicos para um relacionamento e por mais
que ame Jess, não posso retribuir os ensinamentos que me oferece,
principalmente no que diz ao escolher um namorado.
Há quase um ano, conheci Tiziano naquela rodovia e meu objetivo
era revê-lo. Não tinha ambição alguma, só queria olhar naqueles olhos
lindos. Aí depois, conheci Jessica e parece que uma aquarela cheia de cores
surgiu em meio ao cinza que vivia até então. E quando menos esperava,
reencontrei o homem dos meus sonhos.
Jamais imaginei que seria correspondida, mas ele me fez acreditar
que tudo seria diferente, que jamais voltaria para o abismo cinzento onde
vivi a maior parte da vida.
Ledo engano quando pensei em me desculpar, o homem que amo já
estava entorpecido pelo álcool por conta de suposições. Nada do que eu
dissesse naquele momento faria sentido e só recebi o choque da realidade
que poderia ser o nosso futuro. E essa realidade brutal me fez enxergar o
quanto posso sofrer ao seu lado.
A maldita cena que me esperava naquela garagem de barcos, foi o
complemento, o soco no estômago que faltava para completar esse cenário
grotesco.
O corpo de Tiziano suado pelo esforço, as mãos apertando a pele
morena do corpo da mulher, dando ordens aos gemidos descontrolados dela.
Ela tinha carnes e ele parecia adorar, agarrava os cabelos e quadril com
força! Aperto os olhos para tentar esquecer, mas sei que a cena me
assombrará para sempre.
Observo meu corpo em frente ao espelho, comparando-o com o
daquela mulher. Toco em cada parte da qual ele a possuiu com suas mãos. O
quadril tão reto e as pernas finas. Analiso meus seios que são pequenos e só
conseguem encher minhas mãos, tão diferente dos dela preenchendo sua
blusa. A pele morena das pernas era tão brilhante como um caramelo
quente, e a minha tão sem vida que o dourado do sol nem aparece direito.
Nós dois faríamos sexo, não daquele jeito, mas sim com beijos e
carícias, como ele prometeu. Seria uma entrega mútua, não promiscuidade.
Falso! Prometeu que não tocaria e não seria tocado por ninguém
além de mim. E eu tola, acreditei!
Ele foi cruel me fazendo sentir como um brinquedo, humilhada e
paralisada após ver aquela cena tão humilhante.
Mais que isso, foi crueldade me fazer sentir inveja daquele tipo de
sexo! É daquilo que ele gosta? Se ele me ensinasse, faria o mesmo para
agradá-lo.
Meu sonho que era ser tudo para Tiziano, foi destruído.
Espalmo os ouvidos tentando esquecer os sons, nunca poderei dar
ou ser o que ele quer. Sou uma adolescente tão patética!
Isso rasga meu peito em gritos histéricos e descontrolados, aflita
atiro tudo no vidro na ânsia de destruir essa imagem tosca que reflete. As
lágrimas grossas de desespero de não ter nenhum consolo por um coração
partido, me arrebentam por dentro. Meu corpo treme de raiva. Raiva de
tudo, dos meus pais por terem me largado aqui sozinha, raiva de Tiziano por
despertar em mim esses sentimentos que não consigo apagar, raiva do meu
corpo por não ser do jeito que eu quero, e principalmente raiva da minha
covardia em não ter terminado com essa vida de merda todas às vezes que
tentei!
Os espelhos não são os únicos a pagar o preço do meu ódio, destruo
tudo o que há no quarto acompanhado de gritos furiosos de fúria. Tudo dói,
as pernas cansadas por correr quilômetros a manhã toda, a cabeça latejando
numa enxaqueca cruel, meus olhos inchados de tanto chorar, os pulmões e a
garganta por gritar. Mas a dor no meu coração é a pior.
Não quero mais viver assim do jeito que vivo.
Eu só desejava chegar em casa e chorar no colo de uma mãe, ganhar
um abraço apertado de um pai dizendo que vai ficar tudo bem. Passaria por
essa rejeição com o apoio e o amor deles, mas onde eles estão? Seria um
consolo se estivessem mortos, mas não estão. Onde está o afeto familiar que
eu mereço? Ele existe? O amor de uma família como a de Jess não existe
para mim, um irmão amoroso e cuidadoso não existe, por quê? Não mereço
afeto? Por que eu nasci, Deus? Responda-me?
Agarro um caco de vidro e aperto com força, até sentir a dor amiga e
o sangue aflorar na pele. Meu pai não gostaria que me ferisse fisicamente
outra vez. A boa filha deve obedecer! Um riso amargo sai da minha
garganta.
— Menina pelo amor de Deus, abra essa porta! — As batidas na
porta me lembram de onde estou, largada no chão com o caco na mão e o
quarto destruído.
— Preciso de um tempo, Mafalda. Me deixe, por favor!
— Os patrões não vão gostar! Vou chamar os seguranças para
arrombar essa porta! — É claro que não vão gostar. Do que será que eles
gostam? Dio Santo!
Deixo escapar um riso louco, não vou dar o gosto a eles de
retornarem seja lá de onde e pagarem de pais preocupados para a mídia
italiana. Ainda recordo de como minha mãe falou que eu quase chamei um
exército de paparazzi para eles, mas como sempre, ninguém descobriu o
que realmente aconteceu na Toscana. Só o médico de confiança dos meus
pais. Signore Malpucci paga o silêncio do papa se for preciso!
Queria apenas de tirar esse peso esmagador do peito, fugir dos meus
demônios como fiz naquela tarde ao me atirar no poço.
Encolho-me no canto do quarto destruído, abraçando minhas pernas
e fugindo para minha memória feliz, a do dia que conheci o homem
misterioso da motocicleta.
Parecia ser o destino oferecendo um lindo presente de consolo para
não pensar na dor.
Lembro como se fosse hoje, naquele sinal vermelho minha câmera
deu o primeiro clique, era a paisagem mais espetacular que capturara na
vida, o sol se punha atrás como uma moldura.
Ele imponente com uma jaqueta de couro elegante, parado com as
mãos empunhadas no guidom da Harley. O jeans escuro em uma perna de
apoio e seus cabelos dourados ao vento, o olhar fixo e impactante. Rude e
refinado na mesma medida. Era uma mistura de um homem com um estilo
próprio. Ele era perfeito.
E não parei de registrar, só quando começamos a nos mover é que a
câmera quase escapou das minhas mãos. O motoqueiro misterioso se moveu
na pista oposta cruzando ao meu lado, me encarou com intensidade, me vi
ofegante em busca de ar. Admirei os olhos azuis lindos e intensos mais
perturbadores que já vi, como um mar revolto e perigoso, e ao mesmo
tempo perdido e triste que desnudaram minha alma.
Seus olhos não me amedrontavam, pelo contrário, pareciam me
convidar a subir naquela garupa misteriosa e ir para qualquer lugar com ele.
Compartilhando alguns segundos de conversa num olhar penetrante, disse
tantas coisas naquele encontro ocasional. Não prestei atenção em mais nada
do homem, mas tenho certeza de que me apaixonei por aquele olhar no
posto de combustível quando o vi de perto.
Meu Deus!
Não consegui desviar a atenção dele, estava tão hipnotizada, pois
havia algo naquele olhar que me chamava. Um desespero, um pedido
velado que me oprimia e fascinava. Me vi inspirando o ar com dificuldade.
Não piscava e nem respirava. Senti que naquele momento algo estava
entrando em eixo na minha vida.
Ele não desviava o olhar do meu, de mim, me avaliava lento e
sedento, quando me dei conta, cheguei na porta do banheiro daquele posto.
Não restava mais nada além da minha completa desorientação naquele
cubículo. Molhei os pulsos e nuca, encarando minha imagem no espelho
gasto pensando, quem era ele? E o que o machucava tanto para carregar tal
olhar perdido.
O príncipe na jaqueta de couro era um sonho!
Até hoje. E por mais que queira pertencer a ele, a algo ou alguém,
não pertenço a nada e a ninguém.
As lágrimas continuam rolando sem controle, banhando meu rosto
nessa busca frágil da minha memória.
O quarto na penumbra totalmente destruído, a música 'Creep' toca
alta. Murmuro seus versos como um poema:
'Quero ser especial, quero ter o controle, quero um corpo perfeito,
quero uma alma perfeita, quero que ele perceba minha ausência quando
não estou por perto.'
A música termina com um estrondo da porta vindo abaixo!
Mafalda chamou os seguranças e eles arrombaram a porta do quarto,
isso não me abala, já o fizeram inúmeras vezes.
— Madonna Santa, signorina! (Minha nossa senhora, senhorita)! O
que houve com você? Está machucada? E esse sangue?
— Per l'amore di Dio! (pelo amor de Deus)! Que destruição! Deixa-
me ver? Precisa de pontos? — Mafalda se apavorada não pára de falar e me
ajuda a levantar, pega a colcha para me enrolar com ela e cobrir meu corpo.
— Não, é só um arranhão.
— Venha, vou limpar esse ferimento e precisa se alimentar! Vou
preparar o quarto de hóspedes enquanto a equipe trabalha no seu.
Nesse momento a acompanho sem retrucar. Nem Mafalda, nem a
solidão amiga podem me consolar. Talvez me enfiar embaixo do edredom e
sumir por alguns dias ajude a esquecer.
Se Deus fosse bom, conseguiria sumir para sempre.
CAPÍTULO 25
O dia seguinte foi ainda mais cinzento, parecia se fundir com o meu
estado de espírito, a alegria era uma lembrança distante. Dormi mais de
doze horas e assim que despertei, Mafalda insistiu que me alimentasse. A
salada caprese e o filé pareciam areia na minha boca e colocar para fora foi
imediato assim que saiu do meu quarto. Aliás, no de hóspedes, fui
deslocada para o conserto não atrapalhar meu descanso. Certamente
trocarão todos os móveis e tapetes, providenciarão novos espelhos, quem
sabe um recomeço emocional também.
Em mais uma das suas visitas ao quarto, Mafalda, preocupada
perguntou onde estavam as caixas de medicações, as quais nem imagina que
não estou tomando. Desconversei como pude, mas suspeito que ela vai
investigar a fundo se estou tomando como deveria. Deixou chá e biscoitos
já que recusei comida, nada mais me desceu ao estômago.
— Ah. Antes que me esqueça, senhorita. A menina DiMateo ligou,
avisando que virá devolver seu celular e quer vê-la.
— Jessica?
— Sim. Posso mandar subir assim que chegar?
— Pode. Preciso de um banho e roupas adequadas, talvez você
possa trançar meu cabelo. Quem sabe o meu rosto precise de umas
compressas geladas, acho que está inchado e...
— Calma, o primeiro passo é se alimentar um pouco, quase não
comeu depois que voltou da casa dela. O que houve lá, menina?
O olhar severo parece amolecer por um instante, não a vejo como
uma amiga, mas é o mais próximo disso que tenho, além de Jessica.
— Pressenti que teria uma crise, não quis que a família soubesse e
vim para casa.
— Hum... Então, quer que lhe ajude com as roupas? Posso preparar
um de seus vestidos e sapatos para vestir depois do banho. Precisa se
alimentar antes.
— Sim farei isso. Você pode me ajudar a ficar apresentável para
receber minha amiga?
— Claro que posso, senhorita.
Por que será que ela vai vir aqui? Será que é só pelo celular que
ficou lá ou está desconfiada do motivo da minha fuga? E se souber que
tenho esses rompantes descompensados e não quiser ser amiga de uma
doida? Preciso passar uma impressão boa para Jess. Saudável e feliz para
não perder essa amizade tão importante para mim.
O que irei contar sobre a minha fuga daquela garagem? Meu Deus!
Estou perdida! Apesar de tudo, ela quer me ver, se importa comigo e me dar
conta disso em meio a sensação dolorida da perda de um amor, é como se
um raio de luz tivesse penetrado em meu mundo sombrio.
Esforço-me para alinhar minha roupa o melhor possível, mesmo que
a motivação para isso seja mínima. Cada detalhe é pensado com carinho
para que minha melhor amiga não perceba que estou destruída, ela é tão
animada, não combina com uma pessoa quebrada como eu. Ela odiaria a
verdadeira Selena. Mas preciso me agarrar a essa amizade para não afundar
de vez, sinto isso no fundo do meu ser.
Cada minuto que passa, ansiedade e nervosismo misturado aos
sentimentos de alegria e medo tomam conta de mim. Temo que Jess veja
através da fachada que construí e perceba o quão frágil estou por dentro.
Mas, a perspectiva de passar um tempo com ela supera qualquer
insegurança. Ensaio um sorriso na frente do espelho, tentando parecer
natural.
Quando a campainha toca, sinto um turbilhão de emoções. Demora
um bocado para que ela suba até o quarto. Não é melhor descer para a sala?
Mas daí não vamos conseguir falar a sós. Ouço Mafalda conversando na
subida da escada. Sento-me o mais calma possível na poltrona de leitura,
alinhando o vestido amarelo.
Ao abrir a porta, lá está Jess com um sorriso caloroso e aberto. Não
há julgamento em seu olhar, apenas amor e compreensão.
— Oi Selena, como está?
Assim que a porta se fecha, vou até ela e a abraço com carinho, esse
gesto parece trazer uma sensação de paz que não experimentava há muito
tempo. Ao nos sentarmos, seu olhar está diferente. Piedade e preocupação
que me deixam envergonhada desse rompante sentimental.
— Estou bem, Jess. Obrigada pela visita. Fico muito feliz que veio.
— Trouxe seu celular e sua bolsa, que você deixou na minha casa
quando saiu.
— Obrigada pela gentileza. Quer comer alguma coisa? Posso pedir a
Mafalda para providenciar um chá, biscoitos, quem sabe um suco de maçã
que você gosta tanto...
— Selena, não se preocupe. Quero pedir desculpas a você.
A mão delicada, com unhas esmaltadas de azul, segura a minha.
— Desculpas? Sobre o que?
— Sim, por ter arrumado aquele encontro para você. Acho que tudo
começou a partir daquela pressão que fiz para se envolver com alguém.
— Tudo bem, Jess, tudo bem. Desculpe não ter saído como
planejado, é que...
— Eu sei... E está tudo bem.
— Sabe? — afasto a mão rápido pelo desconforto que seu olhar
intenso me analisa.
É agora que ela me abandona e me acusa de não ser sincera?
— Sei. Você não tem interesse no Vance e é normal. Não devia ter
forçado um envolvimento entre vocês. — Surpresa, ainda não consigo
formular uma resposta.
— E está tudo bem mesmo, amiga. Independente de quem você
gosta, não é meu papel interferir e não precisa dizer nada, não vou tirar sua
opção de escolha outra vez, eu juro. — Beija o dedo cruzado em juramento.
Engulo o nó na garganta e apenas aceito suas palavras.
— Mafalda comentou algo sobre você precisar de descanso quando
está assim. E que as medicações são boas para você. Mas nunca ouvi da sua
boca que faz algum tratamento.
Antes que me levante e me afaste, Jess segura minhas mãos
novamente.
— Selena, não deve ficar envergonhada em admitir alguma
fragilidade ou problema, pois todo mundo tem. Não entendo por que não se
abre comigo, mas quando se sentir preparada, quero deixar claro que estou
aqui para você. Sempre, para tudo o que precisar. Você é importante demais
para mim, não quero perdê-la.
— Sou importante?
— É, claro que é. Você é minha melhor amiga, a confidente, a que
atura meus surtos e loucuras impulsivas. E nada vai mudar o que sinto por
você. Nada!
Reflito sobre as declarações sinceras do rosto que me avalia, queria
me abrir totalmente, mas tenho tanto medo de ficar sozinha.
— Já precisei de medicações para ansiedade e insônia, mas agora
estou melhor. Não se preocupe. Quero saber, como você está?
Melhor desviar o assunto da fuga de ontem e o coração partido por
seu irmão.
— Estou animada, vou viajar para a Sicília. Farei um curso por lá.
— Você... Vai embora? Quando? Quanto tempo vai ficar fora de
Veneza. Sua família permitiu?
O som da risada de Jess, antes música para os meus ouvidos, agora
não alivia a escuridão que me cerca.
— Calma, bionda, só ficarei fora três semanas no máximo. Retorno
a tempo para o aniversário do meu irmão.
O momento que minha amiga traz à tona o irmão, é impossível
disfarçar o desconforto que surge. É como uma planta hera que agarra meus
tornozelos e se alastra rapidamente pelo corpo, abraçando de modo feroz,
apertando e sufocando meu peito em uma dor dilacerante.
— Ah, que alívio, achei que ficaria sem você.
— Você nunca vai se livrar de mim, bionda.
Seu abraço protetor acalma um pouco minhas inseguranças.
Seguimos conversando sobre seu curso e projetos da carreira que ainda não
definiu para si.
O dia com Jéssica passou muito rápido, na verdade, meu desejo era
que não terminasse nunca. A leveza das conversas e planos dela me
distraíram um pouco, como se as nuvens escuras começassem a se dissipar.
Sua presença foi um bálsamo para minha alma ferida. O medo que senti de
que haveria um mundo de questionamentos e dúvidas sobre mim, acabou
infundado. Jess não tocou mais no assunto de ontem, nem insistiu em saber
das medicações. No final do dia, com um abraço apertado, ela se despediu,
prometendo voltar depois da viagem.
Quando fechei a porta do quarto, me senti exausta. À medida que a
noite caía, percebi que continuava sozinha em minha luta. Ainda me sentia
como um barco à deriva.
Horas antes
(Tattoo – Loreen)
(Love On The Brain – Rihanna)
Fiquei fora dois dias e duas noites inteiras, ao chegar na casa de meu
pai, eles me receberam com preocupação. Seu Nicola e Dona Olívia,
chateados por não ter ido ver o médico antes da viagem, e minha irmã
amedrontada com a questão da minha saúde. Tranquilizei todos de que não
houve outro pico de pressão alta. Não podia mentir que o ar da natureza me
fez bem, pois o semblante está ainda pior de quando parti.
Desfiz a mala e à tarde fiquei no meu quarto. Próximo ao pôr do sol,
avisaram que iriam a um evento no teatro, e que se eu não quisesse
acompanhá-los, eles não demorariam mais que duas horas. Recusei o
convite com uma desculpa qualquer para não sair, porque é chegado o
momento do papel que preciso desempenhar. Assim que Jess, meus pais e
nonna saíram, escrevi uma mensagem para Selena avisando que meu piloto
iria buscá-la de lancha.
Vesti uma roupa adequada para um compromisso, mesmo não tendo
um, é um escape rápido da situação desesperadora.
A cada minuto que passa, o coração vai encolhendo dolorido. As
roupas tornam-se desconfortáveis e até a imagem refletida no espelho é
difícil demais de encarar. Dobro as mangas da camisa branca e alinho a
barba percorrendo o corredor para a porta adjacente que leva diretamente ao
jardim.
— Está com pressa?
Meu irmão cruza por mim em direção a garagem de barcos. Tinha
esquecido de sua presença em casa. Os ombros largos e passos firmes, não
aguardam resposta. É tão estranho me dar conta agora, a maioria das
perguntas que faz, Gabrielle não se interessa em ouvir o interlocutor da
conversa, somente quando os questionamentos são de cunho provocador.
Portanto, ele caminha segurando uma bolsa preta na mão, sem olhar para
trás.
Sigo seus passos e me mantenho na porta, vendo a agilidade na
preparação da lancha. Ele é metódico ao extremo, avalia cada item antes de
partir. Entra na cabine e verifica sem pressa. Todas as luzes são testadas, luz
de mastro, luzes de bordo, luz de alcançado e luz de fundeio. Em seguida,
verifica o funcionamento do equipamento de rádio em VHF marítimo,
também do GPS, dos flapes e buzina. Desce da lancha e inspeciona o
funcionamento do guincho da âncora. Confere o nível de combustível e
óleo dos motores.
— Você sabe que temos uma equipe que faz esse trabalho, né Gabe?
— pergunto mais para puxar conversa, porque o nervosismo tá fodendo
minha cabeça e não consigo ficar sozinho no momento. Selena deve estar a
caminho neste instante.
— Sim, ganharam mais um membro na equipe — responde sem se
distrair da tarefa.
A voz neutra é calma e sem emoção.
— Quem?
— Você. Tá aí conferindo a inspeção. Não vai voltar para o quarto?
Ele se afasta do barco e pega a bolsa de lona que deixou na mesa
lateral. De costas para mim não vejo o que vasculha nela.
— Não. Tenho um compromisso. — Olho o relógio no pulso, são
quase oito e meia. O suspiro profundo que exalo não é cansaço, é
apreensão.
— Que horas chega o seu compromisso?
Impaciente, levo os dedos à testa massageando-a.
— Como sabe que não vou sair?
A risada baixa é tão sinistra, misturada ao som de clicks
ininterruptos em algo metálico. Ele está conferindo uma arma?
— Apesar de ter se banhado, não usou o seu perfume predileto.
Sempre coloca ou leva um blazer consigo, e seu sapato, mesmo
aparentemente novo, é o mesmo que voltou de viagem mais cedo. Então, sei
que não vai sair hoje.
— C-como você...? Como sabe se não nos vimos até agora?
— Tem razão, você não me viu.
Sem surpresa pela sua análise certeira, continuo a conversa com ele,
talvez a ilusão de normalidade me acalme um pouco.
— Faz essa inspeção toda vez que sai de lancha?
— Sim.
Aguardo a explanação do motivo, mas esqueço que Gabrielle não
facilita para ninguém.
— E acha necessário, sabendo que tudo é verificado pela equipe de
manutenção assim que as lanchas retornam?
Mais sons de clikcs e o fecho do zíper da lona deslizando é ouvido.
— Confio somente em três coisas na vida, Tiziano.
Ele vira e encara meu rosto com a bolsa sobre o ombro.
— Meu instinto, meus sentidos e minhas habilidades.
O olhar é sombrio e fixo. O rosto duro com a barba por fazer o deixa
intimidante.
— Alguém já lhe disse o quanto soa arrogante às vezes, Gabrielle?
Não acredito que precise ter todo esse cuidado dentro da nossa casa,
debaixo dos nossos olhos. Estamos perfeitamente seguros.
— Acredite na porra que quiser! Não dou a mínima. Agora vá, pois
seu compromisso está se aproximando da margem e meus instintos dizem
que pelo seu nervosismo as coisas não vão sair como planeja.
Ele me dá as costas e coloca a bolsa dentro da lancha, enquanto gira
ao redor dela mais uma vez.
— Prefiro ouvir a razão ao instinto — respondo forçando o ouvido
ao motor da lancha, mas o arrogante se enganou dessa vez, não tem som de
motor algum.
A voz dele flutua por trás da embarcação.
— O homem é absolutamente instinto dissimulado na razão
cognitiva, mas precisa de certa habilidade para escutá-lo. E você não a
possui.
— Gabrielle! Pare de ofender o seu irmão mais velho! Está me
chamando de idiota?
Não espero réplica, pois o maledetto motor da lancha chegando ruge
ao longe.
E o riso astuto e rouco de Gabe, do outro lado da embarcação, dá o
ar da graça nesse instante.
Tomando uma respiração profunda e com o coração batendo nas
costelas, inicio meus passos em direção a ela. Não posso olhar para a
ragazza, devo manter o foco além dela para conseguir atuar. Devia ter
bebido um trago de uísque para amaciar os nervos, pois o fôlego falta e as
mãos começam a suar.
Recordo daquele terrível presságio, que no fim foi uma benção.
Esse mal necessário que cairá sobre nós agora, em última análise,
terá um resultado positivo. Quando se ama alguém profundamente, é
preciso fazer o que é melhor para a pessoa. E o melhor para Selena e para
mim, é que ela continue viva.
Um dia ela vai me esquecer e será feliz, acredito nisso com toda a fé
que possuo. Cada palavra que sair da minha boca hoje, será uma mentira e
precisa ser a porra da verdade para ela. Minha ragazza tem que estar segura
longe de mim, mesmo que eu morra de tristeza, ela não pode morrer.
CAPÍTULO 33
Desde que despertei essa manhã, mesmo com uma dor de cabeça
terrível, por causa do vinho de ontem a noite, a euforia dentro de mim é
enorme. Hoje é o primeiro dia da minha maioridade.
Tiziano disse que me ama dentro daquele carro, e declarou isso com
tanto sentimento que me emociono ao recordar. Embora não apague a
ausência dos meus pais e a decepção que isso me causou, foi a melhor noite
com ele até agora. Só senti falta hoje cedo do seu bom dia e das mensagens
matinais com que me acorda. Disse apenas que surgiu uma viagem a
trabalho e que iremos conversar assim que retornar a Veneza.
Esses dois dias e noites foram uma tortura. Foi terrível esperar as
respostas de Tizi as minhas mensagens e isso está acabando comigo. Sei
que ele é um homem ocupado e disse que estava viajando a trabalho, mas é
incomum essa falta de comunicação.
Meu namorado é sempre tão atencioso e interessado, no entanto
esses últimos dias sinto que há algo errado. O sinal evidente de que estou
com a razão é que ele mandou um piloto me buscar com sua lancha, para ir
até a mansão dos seus pais. Olhando as águas do mar dentro dessa lancha,
perdida em pensamentos, encolho-me no banco de couro da embarcação.
Sei que Jessica não está em casa, pois ia em um evento com os pais
e a avó no Teatro San Gallo. Ele está sozinho, poderia ter vindo ele mesmo.
Por que não me buscou pessoalmente? Tiziano nunca fez isso, é sempre um
cavalheiro e apaixonado. Deixar outra pessoa me buscar demonstra uma
falta de interesse que não combina com nossa relação.
Os minutos dessa viagem só servem para encher minha cabeça de
minhocas. Talvez seja a ansiedade da falta dele que está atrapalhando minha
racionalidade.
Entre a saudade e a apreensão, saio da embarcação assim que ela
atraca no píer da mansão dos DiMateo.
Ao andar pela plataforma, uma brisa gelada arrepia meu corpo
provocando uma sensação ruim.
Com passos firmes sigo em frente, olhando ao longe vejo as
enormes portas da garagem de barcos abertas e dois vultos lá dentro. Um
maior e de postura rígida circulando ao redor de uma das lanchas, deve ser
Gabrielle. Talvez esteja pronto para sair. E o outro, próximo a porta começa
a andar com passos rápidos em minha direção. Meu príncipe. Por causa do
nervosismo, deixei até a bolsa na lancha. Bem, não vou olhar o celular
agora já que estarei ocupada com meu amor.
Tiziano diminui os metros de distância entre a garagem e o jardim
frontal, me encontrando na beira da piscina, próximo ao gazebo da nonna
Olímpia. Espero que se aproxime mais e me abrace como costuma fazer
quando fica longe por alguns dias.
Mas ele não tem intenção alguma de fazer isso. Meu namorado está
diferente, mais sério com as mãos nos bolsos da calça. Ele não tem
saudades minhas?
— Selena, precisamos conversar.
— Eu sei, fiquei tão preocupada, meu amor. Não nos falamos por
vídeo, mal respondeu as mensagens que enviei, sei que estava ocupado... —
Eufórica e animada, ando até ele e enlaço seu pescoço para um beijo.
Mas ele desvia do meu rosto e afasta as mãos do seu corpo. Isso me
deixa confusa e envergonhada. Parece me repelir com sua postura tensa.
— O que está acontecendo, Tiziano? Você parece abatido, o que
houve na viagem?
— Não tem nada a ver com a viagem, na realidade, esses dias longe
pensando, cheguei a conclusão de algo.
— Sobre o que?
— Eu e você não vamos continuar essa coisa entre nós.
Pisco os olhos alarmada e analiso seu rosto frio. Quase furioso. Um
arrepio gelado me faz coçar a nuca. Seu olhar tão desinteressado em mim,
me paralisa a uma distância relevante, três passos talvez.
— Essa coisa? O que quer dizer? Não compreendo.
— Preferi falar pessoalmente do que por telefone. — Ele cruza os
braços e olha para mim, mas parece não me ver. — Acabou!
O ar começa a rarear e inspiro profundamente tentando ser forte.
— Como?
— Não podemos continuar juntos. — Essa frase me choca tanto que
os questionamentos explodem no automático.
— O que? Por quê? O que houve? O que fiz de errado?
— Nada Selena, apenas percebi que minha vida é muito diferente da
sua, não posso deixar as responsabilidades de um homem de negócios para
brincar de casinha com uma garota que mal chegou à idade adulta.
Dou mais um passo para trás, sem acreditar no que ouço do homem
que amo.
— Mas..., mas, você disse que iríamos embora, que conheceríamos
o mundo, fez planos comigo há três noites. O que mudou?
Seguro as lágrimas que ameaçam rolar, quero entender o que fiz de
errado. Ele olha o relógio de pulso impaciente. Será que tem compromisso?
— Tizi, o que eu fiz? O que aconteceu nesses poucos dias?
Ele arruma o próprio cabelo com os dedos, desviando o olhar do
meu. Queria correr, agarrar seus braços e chacoalhar, estapear para devolver
o meu Tiziano. Esse homem frio e insensível na minha frente eu não
conheço. E aos poucos começo a desmoronar.
— Aconteceu que me dei conta que não tenho tempo para ensinar
ou preparar uma mulher imatura e sem experiência de vida, para estar ao
lado de um homem como eu. Sou extremamente ocupado pensando em
mim mesmo e na carreira que construí, para me distrair com seu mundinho.
Impactada e sem reação é como me vejo diante dessas palavras. A
garganta seca e ameaça fechar. Não! Preciso entender, é uma brincadeira,
isso não é sério. Não pode ser!
— M-mas você disse... olha, eu aprendo rápido, eu ... eu posso ... o
que você precisa que eu seja eu posso ser. Jamais faria você se
envergonhar... não atrapalho com minhas coisas... nós podemos... — tento
dar um passo para me aproximar, mas ele estende a mão rejeitando a minha
tentativa. A impressão é de que tem repulsa de mim e isso congela meus
músculos no lugar.
— Não se esforce. Não é o que você faz ou pode fazer, é o que você
é. Você é insuficiente para um homem experiente, exigente e com apetites
que não pode saciar. Não tem lugar para você na minha vida, Selena, é isso.
Essa sentença é como uma faca serrilhada nos dois lados da lâmina.
Ela penetra e não corta, ela rasga lentamente perfurando e atravessando
meu coração ao cortá-lo ao meio. Minhas pernas estremecem. Olho para
todos os lados tentando acordar de um pesadelo e ao me dar conta que é
real, abraço meu corpo sentindo muito frio. Os lábios tremem e procuro me
concentrar para entender a situação. Como pode um homem mudar de uma
hora para outra assim?
— Você encontrou alguém nessa viagem?
Ele não nega, nem responde absolutamente nada, só olha no relógio
outra vez.
— Vai sair com alguém?
— Tenho um evento daqui a pouco, uma festa de uma amiga.
— Amiga? — Ando uns passos ao longo da calçada que circunda a
piscina, a brisa noturna gelada golpeia meus cabelos e rosto, e ranjo os
dentes de desgosto.
— Olha, eu preciso sair, então vou pedir para o meu piloto levá-la
para casa.
— Você disse que me ama, você disse que sou perfeita, que sou
única, você me ama, ama ... — murmuro como um mantra enquanto ando
feito uma barata tonta diante dele. Quando olho, o vejo pegar o celular e
teclar algo.
— Você disse que me amava, lembra? — falo um pouco mais alto
fazendo com que desvie do celular e olhe em minha direção.
Ele franze a testa e aperta os lábios. Mudo! Não responde. Seu olhar
está estranho, diferente de como costumava me olhar, não fixa, não se
detém em mim. É como se eu não merecesse o mínimo do seu tempo.
— E tudo o que vivemos, tudo o que você me disse na praia, no iate,
no carro? Você fez planos comigo, promessas e eu acreditei.
— Às vezes dizemos coisas para conseguir o que queremos. — A
voz soa tão impessoal e distante que não reconheço.
Agora, os pedaços partidos do meu coração são pisoteados sem
piedade, e a crueldade das palavras que me diz entram em mim como ácido
corrosivo.
— Tiziano, você mentiu só para... por favor! Fala direito comigo? O
que fiz de errado para não me querer mais?
Ele vira de costas e olha para o céu, murmura algo que não
compreendo e com as mãos na cintura, de um modo arrogante, gira de volta
e começa a falar:
— Não queria chegar a esse ponto, mas você está ouvindo e não
quer escutar. Entenda de uma vez, Selena, foi apenas uma diversão
interessante, você deu importância demais a algo que era casual. Na
realidade estava curioso para tirar a virgindade de uma garota, mas esse
jogo me cansou.
Com o coração na boca, batendo tão alto que os sons ao redor se
perdem.
— Eu não acredito! Não! Não! Foi real! Não foi mentira. Sou a sua
princesa de Veneza! Você prometeu que ficaríamos juntos depois do meu
aniversário.
— Cáspitta! Olhe para mim, garota! Sou o solteiro mais cobiçado
da Europa. Posso ter a mulher que eu quiser! Não tenho tempo para suas
ilusões de conto de fadas.
Sinto dor pelo corpo inteiro, um vazio tão grande que afago meu
peito, tentando me consolar, as lágrimas rolam pelo meu rosto como quedas
d’água.
Subitamente solto um grito de raiva, uma exclamação sem sentido.
Sinto-me sobrecarregada com uma mistura avassaladora de emoções. A
respiração torna-se difícil, irregular, rápida e superficial. Reconheço esses
sinais, estou a borda de um lugar onde já estive várias vezes ao longo da
vida. Em um estado de raiva e desespero.
Agarro meu cabelo com força, puxando-o, como se isso pudesse
aliviar a angústia. Culpo-me por ter acreditado que eu era especial e que ele
me amava. Não, nunca fui.
As lágrimas parecem arder em meu rosto e pescoço enquanto ainda
puxo as mechas de cabelo aos gritos. Quero a dor física, ela sempre foi uma
amiga que trazia alívio para a dor emocional que sinto.
Será que ele ainda está me olhando? Sente pena ou graça?
Quando o ardor na garganta pelos gritos torna-se demais para
suportar, silencio e recuo para o meu refúgio seguro. Minha mente. Tento
me agarrar a alguma memória feliz, mas sinto-me completamente vazia,
incapaz de sentir qualquer emoção.
Olho fixamente para a piscina, depois giro e observo a mansão ao
fundo, e então para o nada. Estou em um estado de despersonalização,
como se estivesse desconectada de mim mesma e do mundo ao meu redor.
A vergonha de ter sido tão ingênua gruda em minha pele como óleo. Não
ouso olhar em sua direção ainda parado a metros de distância, concentro-me
no breu da noite, onde nenhuma expectativa é criada. Os lábios estremecem
antes de liberar o som da minha própria voz.
— Você me fez acreditar que sonhar com um para sempre era
possível e fez isso apenas por diversão? — A dor faz com que o olhe pela
última vez, mas não enxergo humanidade ali. Apenas um homem surpreso
com uma adolescente insana descabelada e alterada. É, devo parecer uma
louca varrida. É o que sou!
Bato no peito com força, pela raiva de mim mesma.
— Eu fui a culpada, fui eu que criei um conto de fadas e o aceitei.
Mas não me arrependo de ter demonstrado o meu amor. Foi uma das
melhores sensações que senti enquanto viva. Só me arrependo que o
monstro que despertou este sentimento tão nobre, tenha sido você, Tiziano
DiMateo. Se não mereço amor, você não merece essa conquista, mas
merece o título de monstro.
Tenho consciência dos músculos das pernas se movendo, estou
andando, mas não sinto o chão. Aos poucos, aumento a velocidade das
passadas para tentar deixar as coisas para trás o mais rápido que posso.
Correndo, alcanço o fim da propriedade e chego na rua de pedras.
Correndo, correndo sem rumo, assim como minha vida é. O frio parece ter
sumido agora que estou em movimento, não vou parar, quem sabe se
continuar correndo, o tempo acelere também e eu encontre um fim para esse
desespero.
( Blood/Water – Grandson)
Nem sei por que corri tanto, não sei como minhas pernas me
trouxeram até aqui. Olho para elas e a sensação é que não me pertencem.
Não sinto os esforços feitos, é como se estivesse amortecida.
Coloco a mão em meu peito e sinto o aperto, mas está oco. Só o
sentimento de inexistência entorpecente permanece.
Minha cabeça está leve e as emoções dolorosas agora fazem sentido
de uma maneira tão certa. Era isso que faltava para me desapegar
totalmente dos sonhos, a confirmação da minha insignificância.
Sinto as lágrimas que rolam pelo rosto e tocando com os dedos a
umidade, o toque é frio, como se a vida estivesse se esvaindo pouco a
pouco.
Parada no meio da rua deserta, tendo a escuridão como abrigo, me
pego a rir. O riso histérico de uma demente é completamente libertador.
Andando sozinha na escuridão de Veneza, observo os fantasmas das
minhas lembranças. Olho para o lado e vejo a igreja da Madonna,
lembrando do pedido de perdão de Tiziano.
Agora a razão me chama. Vejo o quanto fui patética com a ambição
de um amor ao qual nunca fui digna de merecer.
Avanço mais alguns passos e observo a praça onde diversas vezes
tirei fotos de pessoas, que representavam uma aura de felicidade que
constantemente busquei, essa busca era tão humilhante até mesmo para os
mais desprezados.
Seguindo as ruelas de pedras, correndo mais um pouco, o frio da
morte toca meu rosto. Paro diante da ponte de Rialto.
Recordações da minha amada amiga inundam meus pensamentos,
desculpe-me Jess e muito obrigada por me dar verdades e suporte. Mas
agora, não sou fraca, sou forte e estou finalmente em paz com a decisão que
escolhi.
Choro copiosamente lembrando suas palavras e ensinamentos de
incentivo para buscar a liberdade.
Olho para o céu nessa noite sem lua, hoje quero ser soprada ao
vento e voar na liberdade da solidão igual as cinzas. Cinzas são resultado de
algo que um dia existiu. Eu já não existo há tempos.
Elas não sentem dor, não sofrem, apenas flutuam como algo sublime
levadas com o vento, há uma certa beleza no flutuar de cinzas. Serei livre
finalmente.
Minhas lágrimas rolam como rios de tristeza e amargura. Andando
de um lado até o outro, atravesso a ponte em arco inúmeras vezes, sem
parar para olhar a vista ou as lojinhas que estão agora fechadas com suas
vitrines adornadas para atrair turistas deslumbrados, vitrines são ilusões
iguais ao que tive com Tiziano. Mostram uma beleza apenas para atrair, mas
não são seus de verdade.
Sempre busquei algo que não teria, corri sem alcançar. Caminhei
tanto sem querer chegar a lugar algum. Sempre foi assim a minha
existência.
Agora aqui, nessa ponte iluminada pelos postes com lâmpadas
decoradas para o meu verdadeiro destino.
Sinto e escuto os ecos da rejeição que me impulsionaram a fugir, sei
que aqui resolverei todos os meus problemas. Sempre soube o lugar certo
para tal.
O acolhimento das águas escuras de Veneza é o meu lugar, nunca
soube nadar, porque o inconsciente sabia que era assim o fim.
Escondida nessa escuridão que sempre me cercou, adiei o mergulho
definitivo para depois, na esperança de que o vazio se preencheria de
alguma forma. Acreditei que poderia preencher com o amor. Que grande
ingênua! Essa sou eu! Ser amada? Não é para mim.
Finalmente paro no meio dela e olho para baixo, para as pequenas
ondulações formadas pela brisa e ouço o último chamado do oceano para
habitá-lo. Tiro meus sapatos e subo na mureta.
Sorrio como se estivesse sendo cortejada pelo mais belo rapaz e
quando olho mais uma vez, inclinando-me vejo no espelho da água o rosto
de Tiziano. Isso é possível? Ele está ali, sorrindo para mim!
— Selena? — Escuto sua voz.
Observo seu olhar amoroso e atraída pergunto:
— Você me feriu e me afastou, por que está me chamando agora?
Seu reflexo levanta a mão e a estende para mim, sedutor e
apaixonado.
— Aqui no oceano poderemos nos amar para sempre! E você não
sentirá mais dores e nem solidão. Viverá comigo para sempre nas
profundezas do esquecimento. Você será eternamente minha!
Absorvo essas palavras que me envolvem, mas sei que esse não é o
meu príncipe.
O verdadeiro Tiziano não precisa desse fardo que sou. Meu amor é
descartável para ele.
Mas, isso já não importa. A dor tornou-se tão forte que não suporto
mais senti-la.
Prefiro viver uma mentira nas profundezas do oceano tendo a paz
que busco, do que viver a realidade e ser destruída por um homem egoísta e
insensível. É melhor o sono da morte do que voltar para casa e ser recebida
pelo silêncio dela vazia. Baixo a cabeça e as pequenas ondas dançam
sedutoras, me convidando a dançar com elas no salão sombrio.
Certamente serei feliz quando tudo terminar. Como continuar
vivendo sem ter espaço na vida das pessoas que amo?
Meus pais me proporcionam uma vida de luxo para não viver com a
filha que colocaram no mundo. Nem meu próprio sangue me quis. Os
conhecidos e colegas só se aproximam pelo nome que carrego.
Minha única amiga vai seguir sua vida, é corajosa, tem tantos planos
lindos, um futuro brilhante e promissor ao viajar pelo mundo. Não quero
jamais atrapalhar seu futuro com meus problemas e dores. O que sobra?
Recuso a acreditar que é só por causa de Tiziano, seu egoísmo e
crueldade que me encontro aqui na pedra do parapeito de uma ponte,
admirando a escuridão das águas retribuindo sua perigosa paquera. Vendo
uma versão do meu amado, trazida direto dos meus sonhos, espelhando as
águas frias da morte. Não! Isso não é só por ele. Tiziano mostrar minha
insignificância e seu desprezo por mim, foi apenas o estopim de uma vida
solitária e carente de amor.
Decidida, sinto minhas pernas em movimento e quando vejo estou
dando pequenos passos sobre as pedras, apreciando o vão e a brisa fria da
noite me fazendo companhia.
(...) Ouço o som de passos pesados de alguém nas pedras da calçada.
Escuto um nome distante:
— Maya!
E um chamado calmo como de alguém que me conhece, mas não me
chamo Maya.
— Maya!
Ouço outra vez a voz mais alta. Giro o pescoço lentamente,
embriagada pela morbidez da minha decisão.
Olho ao longe a figura enorme se aproximando, o mesmo vulto
daquela garagem de barcos, vindo ao meu encontro emergindo da
escuridão. A essa altura da madrugada nem o medo me distrai, se chegar
mais perto é o incentivo que falta para pular daqui e encontrar meu sonho
pacífico da completude.
Reconheço Gabrielle quando para na claridade do início da ponte,
com um semblante curioso, me olha como se eu fosse um fantasma.
Mas é o que sou, um maldito fantasma que flutua por uma vida
solitária e sem pertencimento.
Seu olhar é perdido e desfocado. Ele me vê e não me enxerga, ou
sou eu que vejo imagens fantasiosas nesse desejo por normalidade?
Dou-lhe um sorriso triste, cansado e solene. Seus passos lentos se
aproximam e ele fala suave, tentando se conectar comigo.
— Selena… — Suspiro reconhecendo sua voz.
Tento esboçar outro sorriso mesmo fraco, mas sou incapaz. Não sei
por que pensei em sorrir, se é para tentar tranquilizá-lo ou se pela fraca
esperança de que fosse o irmão dele a vir atrás de mim.
— Quer conversar? — ele pergunta com voz macia, eu até queria,
mas não com Gabrielle! Para que prolongar isso com conversas?
“Precisa parar de pensar em Tiziano, sua tonta!” O cara acabou de te
desprezar da pior maneira, mostrou a sua verdadeira face. O seu
desinteresse ou melhor, o único interesse era se distrair com um fantoche
que estava disposto a dar tudo o que ele pedisse.
Daria qualquer coisa a Tizi pelo amor que ele declarava em suas
mentiras. Sou tão, tão patética!
— Não sei o que aconteceu, mas tenho certeza de que não quer fazer
isso.
Quero sim, sou inadequada em tantos níveis que só a escuridão é
meu abrigo ideal. Ouço Gabrielle falar, mas parece uma voz distante e
distorcida.
— Desça, Selena! Vamos conversar, é só pular para trás! Não vou te
julgar, seja lá o que tenha a dizer.
A voz se torna mais alta pela proximidade, não sei o que responder.
É estúpida e ridícula a minha atitude em não lhe dar resposta, mas
meu cérebro parou de funcionar e a única coisa que minha alma clama é a
paz do oceano. Ele fala de uma maneira calma, para amenizar os efeitos de
minhas decisões. Ouço sua voz outra vez, ainda mais próxima, mas não
compreendo o que diz.
— Não se mova, estou aqui com você.
Ele não é tão natural e amigável. Devo estar imaginando também,
talvez ele nem esteja aqui realmente.
Subitamente, um abraço quente e apertado me envolve, como a
investida de um predador sobre a presa, arrancando-me de meus
pensamentos e lançando-me ao chão. É bruto e rápido, parece uma
avalanche.
Luto contra sua força por um momento, questionando minha própria
coragem que parece ter desaparecido completamente, deixando apenas uma
covardia cômica.
A dor ainda persiste, amortecendo meus sentidos enquanto estamos
abraçados no chão do concreto gelado. Parece uma eternidade esse abraço,
sinto a respiração furiosa dele saindo rápida e forte. Seus braços parecem
jaulas de aço segurando meu corpo contra si. Quando começo a chorar
descontrolada, ouço sua voz:
— Shhhhh, está tudo bem agora.
Aos poucos as lágrimas cessam, e o corpo que me mantém presa
finalmente recua.
— Está ferida?
Nego silenciosa e envergonhada.
Gabrielle ao se pôr de pé, busca meus sapatos e inclina-se para
calçá-los. Seu olhar penetrante e inabalável, permanece fixo em meu rosto
durante todo o processo.
— Não devia tentar isso outra vez!
Mordo o lábio e abraço meu corpo em uma forma de proteção.
Ele continua de forma pausada me encarando.
— Tem pessoas que se preocupam com você!
Abaixo a cabeça e sorrio tristemente. Todo mundo usa essa fórmula
para me consolar nessas horas.
Andamos lado a lado nos afastando da ponte, seguindo pela rua
Tedeschi e cruzamos a pontezinha Del’Ogio em silêncio.
Ele não foi meu herói ao me retirar daquela ponte, foi somente um
carrasco que me condenou para a infelicidade e pesadelos de uma mente
aprisionada pela dor.
Trocamos menos de cinco palavras nos vinte minutos caminhando
igual um robô até a mansão dos meus pais. Gabrielle questiona quem está
na minha casa e como serei recebida. Também pergunta se desejo que
alguém seja avisado. Nenhuma das perguntas realmente senti que deseja as
respostas. Não sei o que é, educação talvez.
Preocupação e interesse sei que não é o seu feitio!
Vejo um olhar diferente nele.
Hoje, no fundo dos olhos intensos existe uma raiva oculta somada a
decepção e culpa. Será que isso é direcionado a mim? Será que está com
raiva do fato de eu ter escolhido desistir da vida e buscar a felicidade no
vazio do esquecimento? Não. Acho que é algo que ele ainda não resolveu
consigo mesmo.
Chegamos finalmente na frente da casa onde vivo.
— Você não sabe o que é a morte, Selena. Não sabe o que ela
provoca nas pessoas. Não traz paz, traz somente a destruição e mais morte.
Não é o divino, é o mal do ser humano.
Com essas palavras, lembro das imagens que vi no chamado das
águas.
Sim, só poderia ser o mal, porque nunca um anjo com as feições e
corpo de Tiziano me chamaria para me amar no fundo das águas geladas. O
que Gabrielle não entende, é que abraçaria contente o mal, ou o diabo se ele
realmente me desse o que vi como oferta hoje naquele reflexo.
— Não seja covarde. Mesmo alguém que quer se jogar de uma
ponte espera encontrar “felicidade” neste ato. Então por que não tentar
buscar essa felicidade de outra forma? Dê um prazo a si mesma, dezoito
anos é pouco tempo. Tem um mundo de escolhas diante de você, milhares
de possibilidades que ainda se apresentarão. Naquele minuto, andando
sobre aquele concreto, deixou de analisar como poderia mudar sua maneira
de ver as coisas, nos próximos quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos
minutos do próximo ano. Tente, se não houver mudanças, não me
encontrará naquela ponte da próxima vez.
Não vou mais chorar diante dele, pois não há acolhimento aqui.
— Vá! Vou esperar você entrar.
As luzes da mansão vão acendendo e os seguranças da guarita do
portão saem ao meu encontro. Salvatore é o primeiro.
— Onde estava senhorita? Permiti que fosse até a mansão com o
piloto e seguranças dos DiMateo, mas quando fui até lá para buscá-la, me
avisaram que saiu sem me esperar!
Dou uma desculpa qualquer, poucas palavras.
Ao andar até a porta da frente, ainda olho sobre o ombro.
Vejo o irmão de Jessica andando de volta para casa com passos
lentos, mas, sua postura é ainda mais tensa que a habitual, como se
estivesse com receio de se afastar.
Mafalda e mais algumas funcionárias da casa me recebem no hall.
Não ouço o que dizem ou perguntam, não ouço nada. Ando pela sala de
estar vazia e subo as escadas para o meu quarto.
Há um som de vozes atrás de mim, elas devem estar me seguindo
escada acima.
Caminho no meu passo, não há urgência, nem pressa para me
esconder, não me importo que me vejam assim derrotada, não estou aqui.
Fecho a porta na cara delas, não quero ninguém dentro do meu
espaço fazendo perguntas que não quero responder. Tiro o calçado e me
deito sob o meu cobertor felpudo.
Poderia me sentir mais envergonhada e humilhada, mas agora não
sinto absolutamente nada.
Algo morreu essa noite, algo que não vai ressurgir jamais. Quero
dormir e chorar o restante da dor dessa parte que se perdeu nessa
madrugada de pesadelo.
As feridas de hoje quase me levaram à morte. Talvez não morra,
mas sinto que esses ferimentos viraram úlceras que me corroeram a alma e
jamais a partir de hoje serei a mesma.
Quando se é amado e tem pessoas que se importam conosco,
podemos ficar sozinhos e nunca sentir a solidão. Mas e se ninguém se
importa? Você se sente solitário mesmo em meio a uma multidão de vozes.
Quero continuar sozinha, pois ao lidar com um processo de luto, é
comum querer privacidade. Em especial quando se está processando o luto
pela própria morte.
Chorarei o luto da Selena que fui e chorarei a recepção dessa Selena
amargurada e agora destruída que vai perambular pela vida daqui em diante.
CAPÍTULO 35
Dio cane! Ela saiu daqui com os olhos vazios. Se acontecer algo
com ela, vou enlouquecer. A quebrei tanto para chegar ao resultado que
queria, que não pude aguentar no final. Correria atrás dela se não fosse meu
irmão passar por mim com suas passadas largas. Poderia confiar nos
seguranças no portão, mas até às dez da noite, dei ordens de nunca trancar a
passagem, ainda mais se forem conhecidos.
Espero que Gabe a tenha encontrado aqui perto, na praça talvez ou
em algum lugar chorando escondida.
O rosto devastado de mia ragazza me faz sofrer tanto. Mas lembrar
daqueles gritos dolorosos é a pior parte, eles vão me assombrar até a minha
morte. O vômito invade minha garganta antes que possa controlar. Despejo
no gramado, todo o resto do conteúdo do estômago em extremo desespero
de pavor. Meu corpo treme por inteiro e a visão embaça pela tontura.
Nunca fui de rezar, mas nesse instante, beijo a medalhinha que ela
me deu e faço uma prece a Deus. “Per favore, não deixe que nada aconteça
com minha pequena.’’
O som suave de água da piscina cria um contraste com o silêncio
opressivo que esmaga minha consciência.
Espero apreensivo o retorno de Gabrielle, aflito pela demora,
caminhando pela grama, pensando no que acabou de acontecer. Ela
morreria se não a afastasse de mim! Cazzo! Foi o certo a se fazer!
Quando minha mente clareia, vejo o vulto enorme de meu irmão se
aproximando do portão da propriedade, como é tarde, diferente da ida o
segurança abre o portão antes de Gabe ordenar. Assim que passa por ele,
seus passos ganham velocidade. O caminho vai diminuindo de tamanho à
medida que Gabe, como uma locomotiva percorre o corredor das plantas até
mim.
De imediato, ando ao seu encontro depressa, mas nada me prepara
para a pancada do impacto de seu corpo sobre o meu, é tão violenta que me
derruba no chão. Ele parece possuído por uma entidade e o olhar demoníaco
me assusta.
Enquanto permaneço perdido e quebrado diante de sua fúria. Fico
imóvel, sem oferecer resistência, absorvendo cada golpe dos seus punhos
com um silêncio pesado.
O primeiro soco no nariz explode sangue sobre o lábio. O gosto
ferroso arde a garganta ao engolir. Mais socos e a dor de um novo corte na
boca me faz guinchar.
Eu mereço, mereço uma surra, mereço a morte por ter dito todas
aquelas palavras para ela, mas não havia outro jeito. Se contasse a verdade,
Selena não acreditaria e não se afastaria, poderia até me achar um maluco!
Gabe me olha nos olhos com uma raiva que nunca demonstrou. Será
que sente algo nesse coração gelado? Vejo um ódio cintilando em seu olhar
e o coloboma[x] na íris me encarando tão de perto, mesmo sob a luz fraca da
lua, me aterroriza, deixando seu rosto ainda mais animalesco. Quando ele
questiona o que houve, meu coração quase para de bater...
— Você tem noção do que fez, seu scemo(retardado)! Tem ideia,
Tiziano?
O verdadeiro terror de um moribundo se espalha por cada
centímetro da minha espinha, dominando completamente o meu corpo.
— On...de ela tá?
Meu rosto sem dúvida está desfigurado, mas não há mais sangue a
escorrer, pois ele foi drenado pela apreensão. Sinto as lágrimas vertendo
pela notícia iminente, minha garganta se fechando e a mente prestes a
explodir, ao imaginar uma cena que não quero acreditar.
O peso da culpa pela tragédia que talvez tenha ocorrido, faz meu
corpo amolecer no chão. Não consigo acreditar que não fui capaz de prever
uma coisa dessas. Simplesmente não consigo conviver com isso, não posso
aceitar que tirei a vida dela tentando protegê-la do futuro. Minhas palavras
saem soluçantes e com dificuldade devido à minha boca esfolada.
— Gaaa…be, irmão, me diz que ela está ... bem, Gabe? A levou
para casa? — pergunto aos prantos e soluços.
Sua respiração descompassada é como de um touro no abate!
Levanta-se do gramado e começa a xingar.
— Seu desgraçado testa di merda! Maledetto! — Ele chuta minhas
pernas no chão e não sinto a dor, pois as pernas estão dormentes. A dor
maior está em meu peito que dificulta minhas palavras.
— Gabrielle, pelo amor de Dio! Me diz o que houve! — No
desespero em saber, me seguro numa das pernas dele para impedi-lo de me
deixar falando sozinho. Ele tenta se desvencilhar do meu contato com nojo
e analisa meu rosto com curiosidade doentia.
— Você, sabia? Me diz, Tiziano! Quero entender essa cabeça de
segaiolo, (Punheteiro) você sabia que Selena é uma suicida?
Começo a soluçar incontrolavelmente, cobrindo meu rosto com as
duas mãos, um choro doído sentindo tudo se espedaçar por dentro. De
repente, ouço sua voz potente próxima, forçando-me a encará-lo.
Ele se aproxima como um predador e desfere tapas violentos em
meu rosto, num ímpeto de veneno irracional. Seu semblante está distorcido,
transformado em uma máscara assustadora. Os golpes com a mão aberta,
ardem o rosto já ferido e as palavras cortam minha alma profundamente.
— Não chora, seu farabutto, não chora! Você não tem direito de
chorar por ela. Viva ou morta. — Cada palavra vem com um tapa em meu
rosto, aceito-os sem revidar.
— Irmão, não sabia que ela era suicida, tive boa intenção quando a
dispensei.
Não é mentira, quando investiguei as entradas dela no hospital
desconfiei, mas Selena era tão feliz quando estava comigo. Não pode ser
uma suicida! Respiro profundamente quando ele para de me estapear.
— Boa! A única coisa que desestabiliza o meu controle, são os
abusadores de mulheres. De qualquer tipo. Não porque tenha compaixão e
sofra com a dor de desconhecidas, mas porque um homem não tem direito
de usar seu poder, força ou inteligência para roubar o que quiser. Um
abusador é um porco de um ladrão. Rouba o direito de defesa, o livre
arbítrio e o consentimento da mulher. E isso não admito!
— Me responda? Ela está bem? Per favore...
Nesse momento, se me disser que a perdi, não tem mais sentido
viver com a culpa de tentar salvá-la da minha previsão e enviá-la para a
morte.
— Não implora, seu patético! — Se afastando, gira de costas com
as mãos na cintura, chacoalhando a cabeça. A voz que vem dele agora,
parece outra pessoa, calma, baixa e controlada.
— Per un pelo, um segundo mesmo. Caso não fosse rápido o
suficiente, você despertaria pela manhã com a notícia do corpo dela
desaparecido no oceano. A tirei da mureta do Rialto.
— Ahhhhh — Solto um grito de desgosto.
Deito minhas costas na grama do jardim e me entrego aos soluços,
mas Gabrielle é implacável e não tiro sua razão. Meu peito pesado de dor
pela situação está me esmagando, mas preciso aguentar tudo. Ele a salvou.
Gabe vem em minha direção com tal frieza em suas palavras, que
levam minha bile novamente à garganta.
— Trepou com ela?
— Não.
— Estuprou ela, Tiziano? — Levanto-me como se uma serpente me
picasse.
— Nãoooo cazzo! O que pensa que sou?
O dedo em riste aponta para mim como um juiz implacável.
— Um doente de merda! Um desmiolado de vinte e seis anos com
uma compulsão que não consegue controlar, que decide se aproveitar de
uma garota sem experiência alguma que se encanta por um marmanjo
tarado! — Engulo a verdade amarga enfiada goela abaixo por ele.
— Não fala assim…! — respondo vibrando a raiva de ouvir essas
ofensas, mas ele me corta, falando entre dentes de forma cruel.
— Você tem que aprender a conviver com suas merdas e se não
consegue se ajudar sozinho, vai se tratar. Não vê que é doente? Não vê que
se destrói nessa compulsão sem controle? Não tô nem aí pra sua saúde
mental, pau esfolado ou herpes nessa boca imunda, mas não seja um
criminoso, ou eu passo por cima de você, arranco sua pele e coração
enquanto ainda está vivo.
Caminho uns passos para trás atordoado, sento-me na cadeira de
metal do gazebo de nonna, pois sinto no corpo o impacto dos socos e a
vergonha na alma.
É inútil secar o rosto, mais lágrimas continuam a rolar porque minha
alma chora por ser obrigado a fazer o que fiz. Recordo da forma
assombrada na qual ela saiu deste jardim e me afundo no caos da culpa.
Escuto a sentença de Gabrielle calado.
— Aquela desmiolada tem problemas muito maiores que você nesse
seu mundinho de sexo depravado e descontrolado com tetas. A garota viveu
sem um carinho maternal e essas merdas que amparam o ser humano, foi
acolhida pela Jess, te conheceu e você se aproveitou da ingenuidade dela e
agora nega na cara de pau! — O interrompo de modo impulsivo.
— Já nos conhecíamos antes — murmuro baixo.
O corpo enorme com a camisa suja do meu sangue, se movimenta
em minha direção, lento e seguro, como um leopardo espreitando a caça,
olha para mim estreitando os olhos, se aproximando cada vez mais.
— O quê? Repete!? É muita merda e entupiu minhas orelhas.
— Nos conhecemos antes dela frequentar nossa casa, ser irmão da
melhor amiga dela foi uma surpresa para nós dois. Uma coincidência
miserável.
Meu irmão elimina a distância e chega a encostar a face muito
próxima da minha.
— Coincidência miserável? Quanto tempo faz? — Difícil não se
intimidar.
— Um ano.
— Coincidência, ora essa, a coincidência do bucaiolo — repete,
enquanto rasga uma risada sarcástica. — Você é um mentiroso do cacete!
Não foi coincidência porra nenhuma! Você plantou Jess na escola que a
Malpucci estudava. Lembro exatamente cada palavrinha na mesa de jantar,
enquanto você degustava o spaghetti ao sugo da nonna. “Pai, posso pagar
tranquilamente a escola de Jess. É a melhor de Veneza e para minha irmã
sempre o melhor.” Esqueci algo?
O desgraçado imita minha voz e postura daquela noite.
— Não, você nunca esquece absolutamente nada. Um gênio! Não
precisa exibir sua memória fotográfica.[xi]
Sua risada amarga só contribui para a minha raiva.
— E hipertimesia[xii], é, sou a porra de um gênio! Agora continuando
o meu raciocínio… — com as mãos na cintura todo arrogante continua: —
Se aproximou da garota, iludiu, manipulou e abusou psicologicamente vez
após vez, sabendo o quanto esse comportamento é destrutivo! E tem
coragem de dizer que é coincidência? Ó tão sentimental!
Nessa hora o encaro firme devastado por dentro, ouvindo todas
essas ofensas desgraçadas e me sinto a pior espécie de ser humano. Mas a
paciência para o cinismo, já foi para o espaço.
— Sei o que fiz e os motivos também!
— Hum! O grande CEO admite que errou. Um troféu pela admissão
do mártir de meia tigela!
Levanto-me e olho fixamente no rosto debochado, não queria chegar
a esse ponto, mas ele precisa saber.
— É tem razão, sinto demais, sou sentimental, choro, imploro e
amo. Amo aquela garota e precisei afastá-la de mim de um jeito que não
houvesse mais chances de perdão. E não, jamais imaginei que ela tentaria se
matar, porque vi o fim terrível que ela teria se estivesse ao meu lado. Prefiro
meu amor vivo do que nas garras de uma morte violenta. Prefiro sofrer até
morrer, sentindo a dor da distância de uma mulher viva, do que perambular
sem um coração como você, que perdeu a Maya e não suporta estar vivo
agindo como um juiz da moral alheia. Não vou carregar a culpa pela morte
e ignorar o aviso igual a você.
— Do que está falando? Bebeu?
— Sonhei com a morte de Selena, assim como sonhei com a de
Maya, mas você não podia deixar a cena de um crime importante no início
da sua carreira para atender seu irmão maluco e procurar sua colega de sala.
Gabrielle se aproxima e me agarra pelo colarinho da camisa, pálido,
sem pronunciar uma palavra sequer.
— Sempre me achou maluco, né? Bate de novo! Me espanque! Mas
fiz o que devia fazer, naquela noite que você mediu minha pressão ali
dentro da nossa casa, tive um aviso. “Não case com Selena, não fique com
ela ou ela sofrerá uma morte horrenda.” Escutei e agi.
Gabe me encara atônito, com olhar vidrado parecendo um lobo
faminto.
— E mesmo que ela morresse hoje e eu me culpasse pelo resto da
vida, a morte que vi para ela naquele pesadelo ainda seria o que evitaria a
todo o custo. O que você faria se fosse avisado da morte da mulher que
ama? Ah, você foi e não ouviu, porque insistiu que eu era doido. Lamento
sinceramente por você.
Meu irmão me empurra com ódio e quase vou ao chão.
Imediatamente me dá as costas em direção a garagem de barcos, pisando
duro.
Não queria, juro que não queria fazê-lo se sentir mais culpado do
que se sente, mas ele precisa entender que o que fiz foi a melhor das
alternativas.
Não sei o que será da minha vida daqui para frente, mas ela está
segura longe de mim e isso me basta.
CAPÍTULO 36
— Alô.
— Jess, minha irmã. Como está? — Preciso me manter calmo, ela
não pode perceber meu descontrole emocional.
— Ora, ora, meu honorável irmão mais velho! A que devo a honra
dessa ligação em plena segunda-feira?
— Saudades de você, quando volta da Sicília?
— Tenho as passagens para quarta meio-dia saindo da Catania.
Acredito que à tarde chego no Marco Polo.
— Bene… não pode vir antes, Jessica?
— Por quê? Aconteceu alguma coisa?
Respiro profundamente e me concentro.
— Não, só sinto sua falta. A casa não é a mesma sem você.
— Awn que fofo! Só que não, não vou voltar antes, tenho dois
seminários agendados que não posso cancelar. Mas se quiser me buscar no
aeroporto quarta-feira, agradeço.
— Claro que sim, vou desmarcar a tarde na empresa.
— Tizi, você está bem?
— Sim, por quê? — Talvez meu nervosismo tenha ficado evidente na
conversa.
— Você nunca desmarca reuniões para me levar ou buscar quando
viajo.
— Sempre tem a primeira vez, irmãzinha. — Solto o ar preso,
aliviado por ser um bom ator.
— Bene. Te mando um WhatsApp quarta quando chegar. Podia vir
com o Bugatti e me deixar guiar na volta.
— Hahahá, tontolina, não abuse da minha gentileza.
— Tá bom Tizi. Até mais, beijos!
— Até.
— Merda! Merda! Merda! Só quarta-feira? Até lá tô no escuro sobre
a relação dos dois — exclamo ao desligar a chamada.
— Calma, frate! — Mirko tenta me acalmar ao me ver bufar.
— Puta que pariu! Como aguentar até quarta-feira com essa
angústia?
Aperto meu peito sentindo um peso esmagador avisando que tem
algo errado!
Durante o resto do trajeto pelo mar, minha mente está a mil com as
direções ruins que esse namoro vai tomar.
Mirko me deixa em casa e me despeço tranquilizando-o. Mas a
aflição crescente persiste. Queria poder ir até a mansão e ver como Selena
está, ou talvez cuidar de longe. Não! Não devo me aproximar.
Me afastei por um motivo coerente, para mantê-la segura, mas agora
com aquele cara, ela não está segura. Porcocane! O que vou fazer?
CAPÍTULO 39
( Changes – Hayd )
( Snuff – Slipknot )
( Tou Are The Reason – Callum Scott
Esse tempo com meu pai parece um sonho. Fizemos tantas coisas
juntos, que no final do dia chegamos exaustos. Fomos a uma exposição no
museu do centro e depois ele me apresentou a um restaurante de frutos do
mar excelente. Na outra noite fomos a um Concerto de Ópera e nos
divertimos com os clássicos barrocos realizados pela orquestra e cantores
do I Musici Veneziani. Ontem à tarde, ele me levou à praça para fotografar,
digo ele, mas os seguranças estavam conosco como sombras. Acho que
papai quis me apresentar a nova equipe. Não entendi por que trocou a
segurança, mas não questionei. Ele sabe o que é melhor. Durante esses dias,
ele constantemente perguntou se eu estava bem, um tanto exagerado esse
zelo, mas me senti especial.
Esta tarde, quando a Dra. Susana fez uma visita, tive uma sessão
com ela e depois conversamos por videoconferência com a Dra. Amélia, a
psiquiatra. As duas me tratam há anos e mesmo tendo me esquivado das
sessões durante alguns meses, percebi que me trataram da mesma forma
amigável. Confesso que estava receosa quanto a isso.
Hoje é a última noite que meu pai ficará em Veneza, amanhã cedo
disse que precisa voltar a rotina de homem de negócios. Fiquei triste, mas
sabia que seria inevitável sua partida.
Assim que terminamos o jantar, ele sugeriu assistir um filme juntos.
A lareira está acesa e a poltrona aconchegante. Escolhemos um filme de
ficção científica, meu pai ama o gênero e quero agradá-lo.
— Filha, sabe que qualquer coisa que precisar é só me ligar. Và
bene?
— Si papà. — Seu abraço é um porto seguro. Apoio a cabeça em
seu ombro e reflito em como seria bom se todos os dias e noites fossem
sempre assim.
Tom Cruise na tela luta com robôs alienígenas e o filme retorna
como um looping de volta para o início. Ao analisar a história do filme,
rebobino os pensamentos e tento lembrar do último período de minha vida
em que me senti feliz como hoje, me parece tanto tempo atrás que uma
tristeza desponta intrusa. Não! Não quero pensar no passado.
Um bocejo exagerado, faz meu pai sorrir.
— Não durma ainda, stellina, fique mais um pouco com seu
vecchio.
— Fotografar ontem me esgotou um pouco, fazia um tempo que não
tinha um dia agitado assim — respondo me aninhando ainda mais em seu
peito, relaxada na poltrona.
— Lembra a primeira vez que fez uma sessão de fotos? Aquela
polaroid que lhe dei no aniversário de oito anos? Você espantou todos os
cavalos do haras, lembro da quantidade de rabos de potros estampados nas
fotografias, porque você corria atrás deles.
Outro bocejo involuntário e sorrio agarrada a ele.
— Não lembro desse episódio, faz muito tempo e deve ser o sono,
né?
Sinto um afago no meu rosto e a voz chegando distante é falhada.
— É o sono, minha princesa. Nunca esqueça que eu amo você e
sempre vou te proteger.
CAPÍTULO 42
Acho que apaguei durante algumas horas, desperto com uma dor de
cabeça terrível. Sei bem onde estou, reconheço esse quarto. É o meu
privativo no clube Istar. Olho ao meu lado a mulher ruiva de bruços
apagada no seu cansaço e a morena a minha direita dormindo nua. A pele
branca de Natasha contrastando com os tons profundos de vermelho escuro
das paredes, seduzem o olhar. O cheiro de sexo me impulsiona a levantar da
cama e abrir uma das janelas. Mesmo por alguns instantes o vento da
madrugada vai cumprir seu papel.
— Aff! Quem abriu a janela? — resmunga ela sem sequer mover
um músculo para me olhar.
Natasha cobre a bunda com o lençol de seda preta e vira para o
outro lado. Ando até o elegante minibar na saleta conjunta ao quarto e pego
uma garrafinha d’água. Sento-me no veludo estofado em vermelho,
deixando que a água elimine o gosto amargo da ressaca.
Um ano sem virar a noite trepando, é um recorde que eu manteria
para o resto da vida, pelo motivo certo. Manter o amor e respeito por Selena
me deu forças para me tratar e conter meus impulsos. Ela me mantinha forte
e focado, porque teríamos o nosso para sempre juntos.
Agora não tenho mais nada!
Não há motivo algum para não me desconectar da realidade. Eu
tinha esquecido como era! Na verdade, o bem-estar dura poucos segundos.
Mas naquele instante, é alucinante, mais que isso, a sensação de saciar um
vício é incrível. Quando nos entregamos, estamos mergulhando em um
mundo de emoções intensas que nos consome por completo. É como se
aquele segundo fosse um universo de prazer sem amarras ou limites.
O corpo se sente vivo, pulsando sexo pelos poros e a mente se
liberta de todas as angústias e se permite voar para além das fronteiras do
convencional. É como se estivesse alimentando minha alma com doses de
afeto real ao aceitar meu eu completamente. Aqui, não me sinto sujo, nem
errado, sou o que sou e quem me permite agir em minha total forma, sem
disfarces, faz com que eu aproveite uma sensação de plenitude. Pena que
são apenas segundos para depois me lançar no inferno. Igual um
entorpecente, que ao terminar seu efeito, traz a realidade cruel, o vazio da
existência.
— Não vai voltar para a cama?
Olho para a minha direita, a morena de cabelos curtos, que não
lembro o nome aparece.
— Já vou voltar.
— Vou até o banheiro dar um jeito nos seios se não se importa,
acordei porque estão doendo um pouco. — A voz manhosa é um convite a
se pensar.
Olho os montes inchados com os bicos irritados de tanto que chupei.
Lembro que Natasha não tinha leite, disse que acabou ficando sem
frequentar o clube por um tempo, como ela induziu e nunca foi lactante de
modo natural, sem medicações e estímulo, secou. Então ela mesma ligou
daqui do quarto para enviarem essa mulher para me atender.
— Pegue um preservativo na gaveta do aparador e vem aqui comigo
— convido num sussurro rouco.
Seu sorriso satisfeito me agrada.
— Natasha disse que era para atendê-lo somente quando ela
estivesse presente — responde ao se agachar entre minhas pernas.
É minha vez de sorrir de modo a deixá-la tranquila e livre para fazer
o que é paga para fazer. Toco sua bochecha e os cílios longos batem
lentamente.
— Ela está presente, só não temos culpa se ela curte mais a cama do
que a diversão sobre ela.
A mulher sorri feliz e engole meu cacete com toda a dedicação.
Silvo de prazer e abro o preservativo deixando-o pronto no minuto seguinte.
— Vem cá, safada. Me deixa aliviar seus seios para você. Senta no
meu caralho, senta.
Os seios graúdos molham meu rosto enquanto a mulher desce e me
fode com gosto. Sigo feroz enquanto meu pau bombeia sem parar. Meu
couro cabeludo dói quando ela goza e puxa meus cabelos e o leite jorra em
abundância para me saciar. Banha meu rosto e barba, escorre pelo pescoço e
peito e em minutos estamos molhados e grudentos.
— Você é uma delicinha, gostaria que sempre solicitasse por mim
quando vier. — Ela diz ao me agarrar enquanto sugo o outro seio e espalmo
sua bunda generosa, ecoando um alto estalo no cômodo. — Ninguém faz
como você faz! Você é tão gostoso!
Não há nada para responder, na realidade se fosse muda não faria
diferença, porque tô em busca da minha fuga e não do prazer dela.
Seu corpo rebola sobre o meu e ela grita gemendo, enquanto minha
mente está numa névoa de alucinação sem fim. Desligando, desligando…
está neutra, sem nenhum pensamento negativo, aproveito o máximo até o
vazio me atingir. Depois que gozo, não quero mais olhar, sentir o cheiro ou
ouvir quem está do meu lado. É por isso que preciso de uma noite inteira,
horas e horas de sexo ininterrupto e descontrolado para adiar o vazio.
Depois que terminamos, vamos para a ducha, mas ela percebe que a
dinâmica mudou. A realidade da minha vida agarra minhas entranhas com
força. O peito se comprime de um vazio tão palpável que tenho vontade de
gritar até estourar os pulmões. Escolho não entrar no mesmo chuveiro que
ela e me lavo rapidamente para voltar ao meu apartamento a tempo do café
da manhã. São quase cinco horas da manhã e tenho um longo dia de
trabalho pela frente.
Antes de sair, ouço a voz manhosa de Natasha:
— A noite te espero aqui, já reservei duas para brincar com a gente.
Você volta né? Não vai me deixar na mão, Tiziano.
— Eu volto. — Ela me lança um beijo soprado agarrada a bagunça
dos lençóis, toda descabelada e sorridente.
A visão me agrada, é selvagem e promíscua, assim como eu nunca
deixei de ser.
CAPÍTULO 43
(Brother – kodaline)
Meu celular escolhe justo agora para apitar. Pego aflita encarando a
tela.
— Jess? É o segurança no whatsapp querendo saber onde estamos.
O que eu digo?
— Escreve que já estamos no hotel, que Vance nos deixou na
entrada. E chame a atenção dele por não ter nos seguido. Pergunte onde ele
foi. — Como sempre é objetiva.
— Mas... Será que vai dar certo? — Teodoro é muito esperto,
sempre desconfia de tudo, meu medo é que confirme se realmente estamos
no hotel.
— Confie, jogar a desconfiança de volta nunca falha. Tira o foco
deles.
Faço o que ela sugere e ele responde que seguiu um carro
exatamente igual ao que descrevi, mas que quando os passageiros desceram
do veículo em um bairro residencial longe do centro, eram dois rapazes e
foi aí que se deu conta da falha. Pediu desculpas pelo ocorrido e garantiu
que isso não iria se repetir. Respiro aliviada assim que a ligação é
encerrada, se meu pai fosse acionado, eu estaria em apuros.
Guardo o celular no bolso e analiso o local onde estamos.
O pavilhão é enorme, condizente com a impressão que tive do lado
de fora. Embora tenha sinais de pouco uso do seu espaço, não parece estar
completamente abandonado, tudo é muito simples, vazio, não tem utensílios
básicos de moradia. Ainda assim, é evidente que este lugar foi preparado
para servir como um esconderijo, oferecendo as comodidades básicas
necessárias para passar alguns dias.
Andando pelo chão de concreto bruto, vejo à minha esquerda, dois
veículos estacionados com capas de lona sobre eles e, portanto, não consigo
identificar os modelos. A direita o pavilhão se estende mais ou menos uns
quarenta metros, calculo por uns containers ali enfileirados formando um
corredor central. Provavelmente um labirinto, meus pelos se arrepiam
pensando o que pode sair escondido entre eles e nos atacar nesse corredor.
Aperto o passo para me aproximar dos outros e logo vejo uma mesa
comum de seis lugares, onde o tal Sasha acomodou meu amigo sobre ela.
Ao lado, observo uma pia rústica, armários de madeira robustos presos na
parede e uma poltrona estilo pufe em um canto, além de algumas cadeiras
de madeira espalhadas pelo ambiente que dão um ar sinistro à decoração.
A iluminação é sutil para não ser percebida do lado exterior, mas
ainda suficiente para permitir ter uma percepção adequada do ambiente.
Não há qualquer cheiro desagradável, mas o local parece ter estado fechado
por um longo período, pela poeira nas janelas no alto da parede e alguns
vidros faltando, assim como o bolor em lugares mais altos, evidenciado
pelo seu aspecto intocado ao longo do tempo.
Ao me aproximar da mesa, sofro com o estado de Vance, o sangue
seco, a palidez, a expressão de dor e a própria situação precária que se
encontra em cima da mesa, causam pavor. Respiro fundo e pergunto:
— Ele vai ficar bem? — observo que o tal homem dobra melhor as
mangas da camisa, analisando o ombro de Vance com uma calmaria
irritante em seu semblante.
Os antebraços e as mãos são totalmente tatuados, vejo a parcial de
um desenho despontando no início do pescoço, onde um botão da camisa
branca está aberto.
— Fez um bom trabalho em estancar o sangue. Ele vai ficar bem,
essa peste é pedra dura de quebrar.
Ele circula a mesa e vai até o armário, abre uma das portas, trazendo
até onde estava, uma maleta de primeiros socorros. Prepara e aplica uma
solução na veia do nosso amigo como se fosse comum essa atividade e
rapidamente vai em busca de outros materiais.
— Que lugar é esse? — pergunta Jess ao meu lado, acompanhando
tudo com seu olhar meticuloso, mas o senhor rinoceronte só a observa com
seus olhos escuros.
Enquanto estamos ainda em choque com os acontecimentos
recentes, o ar está denso de tensão. No entanto, Jessica parece não se
incomodar com a situação. Seus olhos estão fixados no estranho movendo-
se pelo espaço como um guepardo, ágil e letal.
— Um esconderijo provisório — responde secamente.
— E por que vocês precisam dele?
O homem misterioso tem um olhar que deste ângulo não consigo
definir a cor, mas sei que são frios e calculistas ao ponto de desvendar nossa
alma.
Jess não se intimida com o olhar ameaçador nos vigiando, se sente
intrigada com sua aparência enigmática. Há algo nele que é absolutamente
fascinante para ela. E para minha surpresa, o sujeito também parece
fascinado por ela.
A tensão à nossa volta é palpável, podemos perder Vance, pois, está
muito pálido e inconsciente, mas observando o diálogo dos dois, parece que
a qualquer momento vão se engalfinhar.
— Não é óbvio, gracinha? — O estranho cuidando dele checa a
respiração, quase afetuoso.
— Não lhe dei intimidades para apelidos — Admiro a coragem e
arrogância de Jess em revidar.
— E como devo lhe chamar, senhorita dona da porra toda?
Aperto os lábios para prender uma risada, Jess está a todo o custo
provocando o homem, e isso demonstra que gostou dele. A conheço muito
bem, o sujeito despindo o blazer do ferido é exatamente o tipo dela.
Cabelos escuros e rosto liso sem barba, nariz grego reto e lábios
ligeiramente volumosos. O corpo é de um jogador de rugby. Massa
muscular, sobre massa muscular e deve ter uns vinte e sete anos. Agora que
se aproximou da luz, posso ver a cor dos seus olhos, um azul tão profundo
quanto o azul petróleo.
— Meu nome é Jessica e essa é minha amiga Selena, somos amigas
desse sacana que nos colocou nessa situação.
O sujeito solta um riso cínico, se aproxima dela ficando a
centímetros de distância do seu rosto. Tenho a sensação de que Jessica
perdeu sua respiração com a proximidade dele, que gentilmente tira a arma
que ela segura próxima ao corpo, de modo hábil ativa uma trava e a prende
em sua cinta nas costas.
— Nunca segure uma pistola destravada se não estiver em combate,
Jêssica. Agora, se a princesa estiver disponível, preciso de quatro mãos para
ajudar a retirar a bala do ombro dele.
Dito isso, se afasta e abre as portas dos armários.
— Nos armários vão encontrar o que preciso. Peguem um recipiente
com água, panos, tem uma garrafa de vodka em algum lugar. Nas gavetas
tem isqueiro e tragam uma faca.
Em segundos obedecemos como abelhas em direção a colmeia. Indo
a procura nas portas dos armários, até retornarmos com as coisas que o
homem pediu. Cada vez que o observo, seus olhos estão sobre Jess e
quando ela o pega olhando, ele desvia de pronto.
Fica claro que há uma faísca inegável entre eles.
— Você é médico? — indago secando o suor da testa do meu amigo
— O que você aplicou nele?
— Morfina — a voz é casual e gelada. — Não sou médico, mas é o
melhor que ele tem. Jêssica, venha ao meu lado e ilumine o ferimento —
mostra o celular que logo ela liga a lanterna — Selena, quando ele gritar vai
precisar beber da vodka.
— Ok. Hum... — Seguro a garrafa e fico a postos. — Você não é
italiano, né? — noto a forma que pontua o ‘e’ no nome de Jess de maneira
fechada mostra que é alemão, ou russo. O ‘r’ pronuncia diferente de nós
nativos.
— Não! E na minha terra, curiosos não vivem muito — Engulo seco
enquanto ele encharca um pedaço de pano na vodka e esteriliza a seu modo
o ombro de Vance, que grunhe maldições pela dor.
Jess se aproxima, até demais do corpo dele e o homem inspira
fundo. Depois de queimar a ponta da faca, o tal Sasha cutuca o buraco e
Vance dá um sobressalto na mesa, esbugalhando os olhos. O homem para e
faz sinal para mim, que preparada, ergo a cabeça do baleado e ofereço um
gole da bebida. Ele bebe mais de um gole, sorve como se fosse água.
— Maldito seja, Sasha krest! — brada Vance e apaga outra vez.
A faca volta a vasculhar o buraco e as gotas de suor encharcam o
rosto do meu amigo, meu Deus! Que dor horrível deve estar sentindo.
— Seu perfume é de especiarias? — solta o médico rinoceronte para
Jess, sem desviar da tarefa. A voz toma um tom novo, uma maciez rouca
quase amigável.
— É, canela e amêndoas.
— Combina com você.
Jess sorri de lado, um pouco tímida. Jessica tímida? Oi? O estranho
a intimida tanto quanto a fascina.
— Já me disseram isso — responde charmosa.
— Aposto que sim — E desse jeito os dois se olham, parece que vão
se beijar, ou não sei, a impressão é que nenhum quer desviar antes do outro,
parecendo um cabo de guerra de tensão sexual.
Limpo a garganta e o silêncio tenso persiste, enquanto Vance
resmunga em sua tentativa de se libertar da situação dolorida. O som
metálico do projétil caindo na mesa ecoa pelo ambiente, sinalizando que ele
finalmente concluiu sua tarefa. É tensa a situação, o ferimento ainda está
aberto e o homem se apressa a lavar com água do recipiente e um pano,
pega agulha e linha da maleta de primeiros socorros e com agilidade e
prática, começa a dar pontos precisos no ombro.
— Ele não perdeu muito sangue, em algumas horas já vai começar a
tagarelar de novo. — diz o homem ao terminar com o curativo. Após isso,
aplica um antibiótico e analgésico na veia e começa a recolher as gases.
Respiro aliviada, a tensão de antes, perante tanta dor, vai se
dissipando do meu corpo. Agora posso relaxar um pouco mais, tenho
certeza de que nosso amigo encrenqueiro está fora de perigo.
— Vamos ficar aqui até falar com ele. — Jess avisa com um tom
imperativo ao sentar-se em uma cadeira.
Eu, por outro lado, numa necessidade de me ocupar, começo a
guardar as coisas na maleta.
— Ninguém sai daqui antes do amanhecer, gracinha — avisa ele ao
nos dar as costas para lavar as mãos.
— Somos prisioneiras? — tenho medo de que essa afronta constante
dela possa nos colocar em perigo
— Por que é tão arrogante dessa maneira?
O sujeito abre outra porta do armário e pega uma bolsa.
— Até eu saber quem são vocês para ele e como estão envolvidas
nesse ataque, vocês não saem.
Ele vai até Vance e tenta despertá-lo com tapinhas, mas nada gentis
como os meus. Pega as roupas ensanguentadas e põe num saco de lixo
estéril.
— Somos amigas dele, não fomos nós que o baleamos se é o que
desconfia — retruca ela indignada ao andar até a mesa.
— Davay, Viktor, prosypaysya! (Vamos Viktor, acorde!)
— Sashaaa! — Vance começa a despertar.
Não sei se é pela frase em outro idioma ou o homem tirando a
própria camisa suja e colocando no lixo, que Jess fica paralisada com um
semblante surpreso.
— Devochki ne vinovaty, oni druz’ya, Aleksandr! (As meninas não
têm culpa, são amigas, Aleksandar)
Como não entendo nada, fico apenas olhando o físico do cara que é
coberto com tatuagens. Na costela, um desenho bonito chama minha
atenção, é um símbolo do yin yang e em cada polo é uma árvore com raízes.
Os bíceps são do tamanho da minha coxa e a barriga dele, por Deus! Tem
tanto degrau que parece a miniatura de uma escada.
— O chem ty dumal, ya skazal, chto mne ne sleduyet priyezzhat’ v
Barselonu! Parkanu eto ne ponravitsya! (O que você estava pensando, falei
que não era para vir a Barcelona! Parkan não vai gostar disso.)
— Tol’ko ne govori yemu. (Apenas não conte a ele)
— Kto eta krasivaya devushka v zolotom plat’ye? (Quem é a gata
linda de dourado?)
Jess pisca os olhos e cruza com os meus rapidamente. Ouço o que
os dois conversam, mas não compreendo, mas ela mesmo disfarçando está
interessada no assunto.
— Dazhe i ne dumay ob etom. Oni ne dlya nas. Oni printsessy
vraga. (Nem pense nisso. Elas não são para nós. São as princesas do
inimigo.)
— Svyatoye der’mo! Ty privel syuda doch’ bossa? (Puta merda!
Você trouxe a filha do chefe deles aqui?)
— A blondinka doch’ yego pravoy ruki, zamestitelya nachal’nika.
(E a loira é filha do braço direito dele, o sub-chefe.)
Jessica me olha outra vez e ergo os ombros para dizer que não tô
entendendo nadinha.
— YA mog by pererezat’ tebe glotku pryamo seychas, ublyudok!
Posmotri na to der’mo, kuda ty menya posadil! (Eu poderia cortar sua
garganta agora, desgraçado! Olha a merda onde me colocou.)
Vance com o braço bom, agarra o de Sasha implorando com o rosto
e voz.
— Ne trogay yeye, Sasha. Eto zapreshcheno lyubomu iz nas. Yesli
vy eto sdelayete, eto budet ogromnyy besporyadok! (Não toque nela, Sasha.
Ela é proibida para qualquer um de nós. Será uma merda gigante se fizer.)
— Radi neye ya by zaklyuchil sdelku s etimi karkamano. YA znayu,
kak spravit’sya so svoim der’mom, i ya ne prosto kto-to. (Por ela, eu faria
um acordo com esses carcamanos. Sei lidar com minhas merdas e não sou
qualquer um.)
Vance fecha os olhos novamente, parece ter perdido a discussão, ou
desistiu de argumentar, pois está visivelmente cansado.
— Dá para falar a nossa língua? Estamos aqui, sabia! — interrompo
a conversa.
— Vamos embora, Selena! — Jess avisa incomodada e sai andando.
Ela anda diminuindo os longos metros até a porta e eu corro atrás, pois seus
passos descalços são rápidos. O que foi que ela ouviu que a fez correr dessa
maneira?
Mas antes de nos darmos conta, o tal Sasha, se põe diante de nós
como uma barreira.
— Ninguém sai daqui! — pronuncia com cenho fechado e voz
perigosamente baixa, em tom de aviso.
Jessica atrevida ergue uma sobrancelha e cruza os braços.
— Tente me impedir!
A risada de desdém do homem é baixa, e dou um salto quando ele
agarra Jessica levantando-a e jogando-a nos ombros como se fosse um saco
de batatas.
— Seu brutamontes, maldito! O que você pensa que está fazendo?
Coloque-me no chão agora mesmo!
Os socos que ela desfere nas costas dele parecem ser ineficazes,
como cócegas para o homem que mantém o riso pela ousadia que fez. Ele
segue andando de volta em direção à mesa, onde Vance agora repousa,
coberto por uma manta grossa e o saco de roupas usadas sob a cabeça como
travesseiro.
Sasha olha para as pernas nuas dela e dá um tapinha em sua bunda
com um ar de deboche.
— Fique quieta e obedeça, é para o seu próprio bem, gracinha!
Nenhuma garota sai desse lugar sozinha de madrugada. Pela manhã, eu
mesmo me encarregarei de deixar vocês onde desejarem.
Ao descê-la, Jess arruma o cabelo bagunçado bufando e estreita os
olhos para ele, que sorri aberto.
— Está com fome? Cara amarrada pra mim é fome! Sente-se, vou
providenciar o jantar para as princesas.
Jessica lança-me um olhar incrédulo e enquanto nos sentamos nas
cadeiras, vendo o homem voltar a atenção para os armários, cochicha:
— Ele está jogando com a gente. Parece um felino brincando com a
presa para cansá-la antes de devorar. Não confio nele, bionda!
— Acha que se fosse nos matar, já não teria feito?
— Eu não sei, ele me confunde.
O homem retorna com garrafinhas de água, barras de cereais e
pacotes de batatas fritas os colocando sobre uma terceira cadeira próxima.
Jess evita olhar para ele e não demonstra interesse nas refeições. Eu
pego a água sem timidez e agradeço a gentileza.
— Onde estão seus sapatos, Jêssica?
Ela responde sem ânimo algum.
— No carro.
Nos surpreendemos quando ele saca a pistola e confere se está
carregada. Em passos seguros se afasta em direção a saída com a arma em
punho. Não demora um minuto para que retorne com o par de scarpins e a
pistola presa em seu cinto. Vai até a pia e pega o recipiente maior que foi
usado para lavar o ferido, cheio d’água, ele se aproxima com um pano
dentro dele. A coisa toda parece surreal, nós não conseguimos nos mover de
tão espantadas. Ele se ajoelha diante de Jess.
— O... o que vai fazer? — primeira vez que a ouço gaguejar. Bem, o
senhor rinoceronte tem esse efeito sobre ela. Tento não rir, e para conseguir,
bebo outro gole de água.
Sasha mergulha os pés dela na água, e minha amiga deixa escapar
um murmúrio tão cativante, quase um ronronar que o homem finalmente
sorri aberto, revelando uma faceta até então oculta. Ele é feroz, mas ao
mesmo tempo incrivelmente cuidadoso e gentil. Parece completamente
atordoado pelas reações de Jess. Não me atrevo a fazer um único
movimento para não interromper esse momento mágico. Tenho absoluta
certeza de que, para ambos, eu sou invisível neste lugar. Nem Vance, nem
este galpão, parecem existir para eles. A maneira como se olham faz
parecer que só existe um ao outro no mundo. Dio Santo!
— A água está do seu agrado? O aquecedor está meio enferrujado,
mas acho que ainda consegue trabalhar.
— Está perfeita. Por que está fazendo isso?
Os dedos acariciam os tornozelos dela com círculos lentos e suaves.
Se eu estivesse no lugar dela, estaria completamente derretida escorregando
pela cadeira, caindo nos braços dele.
— Meu amigo disse que vocês são amigas dele. Então, são
amigas minhas também.
A delicadeza não combina com as mãos enormes e brutas, os gestos
delicados na pele de Jess parecem de cuidado e apreciação.
— O que Vance é para você? Ouvi outro nome na conversa? —
pergunta ela mais calma.
O homem continua a lavar os pés de Jess com o pano e a atenção
com que faz isso me surpreende. Lava cada dedinho com concentração e
carinho. Uau!
— O que ouviu na nossa conversa?
— Perguntei primeiro — mais um sorriso da parte dele. É lento e
sensual, como se quisesse seduzi-la.
— Sempre nos seus termos, não é, gracinha?
— Quem é Aleksandar? — Sem trégua para ela. O assunto da
conversa mexeu com Jéssica.
O homem a encara firme e ela aperta os olhos esverdeados.
— Esse é meu nome, Aleksandar. Sasha é meu apelido. E
respondendo sua pergunta, ele é apenas um amigo de infância.
— Então essa coisa toda de esconderijo e proteção é só sobre
amigos em apuros?
— É exatamente isso.
Ele se levanta, pega um pano seco e o sapato de Jess na pia. Volta a
se agachar, enxugando com cuidado os pés dela que o analisa em silêncio.
Após isso, calça os sapatos.
— Sugiro que coma alguma coisa. Ainda demora uma hora para
amanhecer. Ele se afasta desprezando a água suja e colocando o blazer
sobre o dorso nu. A maldita peça de alfaiataria sem camisa por baixo, fica
tão sexy nele!
Jess decide comer um pouco ebebera água, mas a percebo
refletindo em pensamentos.
— Amiga, o que aconteceu? Você conseguiu entender o que eles
disseram? — pergunto, preocupada.
— Sim, entendi as palavras, mas muitas coisas não fizeram sentido
— ela responde, visivelmente confusa.
— Em que idioma estavam falando?
— Russo.
— Percebi o sotaque de erres pronunciado, só não tinha a certeza se
era russo ou outra nacionalidade.
— Os dois são, Selena. Nosso amigo Vance estava apenas fingindo
ser italiano. Agora preciso descobrir por que ele mentiu para nós. O nome
dele é Viktor. Minha boca se abre, surpresa e amedrontada. Qual o motivo
para que ele nunca tenha revelado isso durante esses anos? Nossas
conversas tomam outro rumo assim que Sasha circula pelo ambiente,
teclando mensagens no celular.
Em pouco tempo, os raios solares penetram nos poucos buracos do
teto. Então ele acorda Vance com muito custo. Acho que os analgésicos e
antibióticos que o vi administrando depois do curativo derrubaram nosso
amigo.
— Ei Sasha! YA ne dumayu, chto eto khoroshayaideya idti v
otel’, gde oni nakhodyatsya. (Não acho boa ideia irmos até o hotel onde elas
estão.)
Enquanto ampara Vance no ombro até o carro, voltam a falar russo.
Penso que seja com a intenção de que não possamos entender, mas nenhum
deles sabe que minha amiga é poliglota e está quieta ouvindo tudo.
— Poyedem v bronevike. YA Sovietnik i ty vypolnyayesh’ moi
prikazy. Ty znayesh’, mne pridetsya nakazat’ tebya za segodnya. (Vamos no
blindado. Eu sou o Sovietnik, você segue minhas ordens. Sabe que terei que
puni-lo por hoje.)
Entramos no veículo preto, um SUV com vidros insulfilm
semelhante aos utilizados por empresas de segurança privada. Vance e eu
nos acomodamos no banco traseiro e ele rapidamente se apoia em mim,
adormecendo. Jessica e o tatuado que está dirigindo, permanecem em
silêncio no banco da frente.
Não sei o que se passa na cabeça de Jess, mas acredito que algo não
está bem com minha melhor amiga.
A breve viagem dura um pouco mais de quarenta minutos, e não sei
se é porque não prestei atenção na estrada durante a madrugada, devido ao
desespero, ou talvez devido à escuridão, mas percebo que o trajeto é
diferente do que fizemos anteriormente.
Ao chegarmos em frente ao Hotel Condes, o carro dá uma volta na
quadra antes de estacionar. Jessica troca algumas palavras com o russo, e
ele a agarra pela nuca, puxando-a para um beijo.
Não consigo parar de olhar.
Não é um simples beijo, daqui de onde estou, sinto-me sem fôlego
apenas por observar. A dominância dele sobre ela é visível, ao beliscar o
lábio e devorá-la faminto. A cena me faz lembrar de como era ser beijada
por Tiziano, mordo o lábio e a lembrança me faz desviar o olhar para a
porta do hotel. Assim que o veículo é destravado, ajeito o dorminhoco no
banco e saio junto com Jess.
Entramos em silêncio até o elevador. Dentro dele é difícil não
reparar em seus lábios marcados e rosto corado.
— Pare de me olhar assim, Selena!
— Desculpe... eu. Foi sem querer.
Jess me abraça quando as portas de metal se abrem.
— Eu que peço desculpas, só fiquei envergonhada pelo que você
viu, por isso pedi para não me olhar.
— Por quê?
— Não sei, medo de julgamento talvez. Por estar atraída por um
fora da lei.
Não sabemos se são foras da lei. Vance sempre foi nosso amigo e se
não fosse esse incidente, tudo seria como antes.
— Algo me diz que as coisas vão mudar em breve — responde
misteriosa. Dentro do nosso quarto conjugado, minha curiosidade não
resiste. Afinal, ela não parece ser a mesma Jessica de antes de toda essa
catástrofe acontecer.
— Tem a ver com a conversa que ouviu em russo? — percebi que
depois daquilo, ela está preocupada.
— Sim, mas só vou contar quando tiver certeza e encontrar as
respostas. Até lá, vamos ter cuidado com Vance.
— Hum... estendi. Jess, posso perguntar o que você disse para o
Sasha te beijar daquele jeito?
Ela sorri como uma menina que ganhou um doce, seus olhos
brilham de modo diferente.
— Agradeci por ele ter lavado meus pés, mas fiz isso no idioma
dele. — Morde o lábio como se tivesse feito uma travessura. — Aí ele
soltou um foda-se e me agarrou.
— Quando vocês vão se ver de novo? — tento garimpar mais
informações.
— Ele só disse que me encontra. Não sei quando e se vai acontecer.
Dou um tapinha descontraído no seu ombro.
— Mas você quer, né?
— Pro inferno, como eu quero! — E às gargalhadas cada uma vai
para o seu banho. Fico feliz por Jessica, ela merece alguém que goste dela
de verdade, e como aquele homem a olhava, era lindo de ver, eu já fui
olhada daquele jeito, pelo menos uma de nós talvez encontre a felicidade no
amor.
CAPÍTULO 48
A mudança para Madri realmente nos fez bem. Não foi fácil contar
ao meu pai o motivo, mas Jess estava ao meu lado.
A revelação sobre Pietro causou reações nunca vistas ao meu pai.
Ele tremia de raiva e mamãe precisou acalmá-lo enquanto lacrimejava
disfarçando. Ele fez questão de vir pessoalmente inspecionar a nova casa e
a equipe de segurança. Teve uma reunião com Teodoro e o tal Salvage
responsável pela equipe que ficou sob o comando dele pela minha proteção.
Jess como viaja constantemente, tem uma equipe a parte que a
protege e é Tiziano o responsável nas negociações. Mas não esqueço que
todo esse aparato de proteção foi ele quem providenciou e organizou para
meu pai avaliar.
Seu Mário foi só elogios ao DiMateo. Acho que os três dias que
papai ficou aqui em Madri, conversaram por videoconferência. Em outra
época eu ficaria em êxtase, agora se tratando do que conversaram só me
deixa mais envergonhada. Bem, pelo menos surtiu efeito e Pietro não me
importunou mais, quem ou o que foi feito, não tenho a mínima ideia e até
prefiro não saber. Sinto-me quase confortável em ter uma vida de jovem
normal. Focar no trabalho, tentar fazer planos e manter a cabeça ocupada,
vai me fazer bem.
Jess chegou de uma viagem a Londres e estamos nos preparando
para sair pouco. Um jantar com alguns conhecidos, a maioria, pessoas que
trabalham comigo na galeria, que se mudaram para cá, e a assistente de
Jessica que está na cidade.
— Selena, podia me emprestar aquele vestido oliva justo?
A cabeça de Jess aparece na porta do meu closet.
— Claro, entra aqui e escolhe o que quiser. — Agora posso trocar
roupas com ela, ganhei corpo e formas lindas.
Enquanto ela vasculha as peças, fico diante do espelho e faço uma
análise do vestido pink que escolhi usar.
Durante esses três anos e meio de dedicação aos exercícios, meu
corpo passou por transformações notáveis. Jessica frequentemente comenta
que minha aparência lembra a de Afrodite. Apesar de ser de estatura baixa,
minhas pernas estão definidas, minha bunda ganhou volume e se tornou
mais firme devido às corridas e aos exercícios de flexibilidade que faço
para as sessões agachadas com equipamentos fotográficos.
Hoje tenho plena consciência da minha beleza. Meus seios
cresceram significativamente, sem a necessidade de intervenção cirúrgica,
apenas com a reposição e regularização dos hormônios que antes me
faltavam. Sinto meu corpo mais curvilíneo, com uma cintura e estrutura
ainda pequenas, o que destaca ainda mais meus quadris e seios. Embora não
tenham crescido tanto quanto os de Jess e outras mulheres, meu corpo agora
tem mais a forma de uma mulher do que de uma garota.
— Você está linda com esse vestido, bionda. Definitivamente, rosa é
sua cor. Todos os tons ficam ótimos em você.
— Obrigada, Jess. Você sempre dando um plus na minha
autoestima.
Olho para ela alisando o vestido verde em seu corpo, e nossa! É a
personificação de uma mulher que pode escolher a companhia que quiser.
Jessica fez um delineado nos olhos, deixando-a parecendo uma felina.
— O Smurf vai te encontrar lá no restaurante? — pergunta com uma
sobrancelha arqueada.
Começo a rir e faço um coque no cabelo, puxando uns fios soltos
para dar um charme.
— Por que você implica com ele, Jêssica?
Quando ouve minha entonação igual o russo chamava seu nome, ela
fica vermelha e disfarça escolhendo um sapato na parte de trás do closet.
— Peguei no seu ponto fraco, né gracinha? — provoco sorrindo.
— Bionda, bionda, não queira receber minha vingança.
Não seguro uma risada ao aplicar um batom diante do espelho.
— Jess, você implica com Hugo há muito tempo, mas ele é tão fofo,
se mudou para ajudar na galeria.
Ela se acomoda no pufe calçando a bota Balmain que lhe dei no
último aniversário.
— Sei bem por que ele se mudou para Madri. Quer saber, ele tem
jeito de pau pequeno! — sentencia.
Giro para ver seu rosto com o meu totalmente pasmo.
— Não adianta me olhar com essa cara de peixe fora d’água. É
pequeno ou, não é?
Volto a olhar para o espelho na tentativa de fugir da conversa.
Como posso admitir que só experimentei tentar ter intimidades quando
percebi que era pequeno? Nunca mais quero sentir dor, nunca mais vou
inalar nada para relaxar minha musculatura ou ficar bêbada para transar
porque o pau é enorme.
— Está bom para mim, pelo menos não me machuca.
Ela se aproxima e me guia para o pufe sentando-se ao meu lado.
— O que quer dizer, bionda?
— Nada demais, Jess. É só que... não tive experiências boas e o
único que tive me machucou e era enorme quase igual ao... — seu olhar
interessado me apavora, eu ia falar do irmão dela. Não! Não vou tocar nesse
assunto. — Demorei muito para sentir curiosidade de me envolver
sexualmente outra vez, e quando percebi que o do Hugo era pequeno, decidi
tentar. Foi bom que esteticamente ele seja assim.
— Quer dizer que o seu critério para foder é o tamanho do pau? Isso
é bobagem, um grande se for com carinho te deixa nas nuvens.
Pisco os olhos pela forma direta com que Jessica trata o assunto.
— Não fale desse jeito... é que tenho medo. E como não senti dor
com ele, deixei rolar.
Minha amiga se levanta visivelmente inquieta e anda pelo closet.
— Sentiu prazer? Teve orgasmos com ele? Um pequeno pode dar
prazer se o cara for inteligente com as mãos e língua, mas o pau é
importante.
Mordo o lábio confusa, mexendo as mãos no colo.
— Acho que não, nem com Pietro senti o que senti com... não! Não
tive orgasmos! — Não vou contar que era bom apenas com Tiziano, que só
ele me deu um prazer inesquecível, sem sequer penetrar ou me ferir.
— É claro que com o figlio di un cane você não ia ter um orgasmo.
Mas o Smurf não sabe ... não fode... ah óstia! Por que você faz, então?
Refletindo em tudo isso, não sei o que responder, talvez para me
autoafirmar como uma garota normal, bonita e atraente, ou para esquecer
meu sofrimento em amar e não ser amada por quem eu queria.
Tiziano disse que eu não cabia na vida dele e tudo o que fiz até hoje
foi querer pertencer a alguém, mais que isso, pertencer a ele. Penso que
sobrevivo tentando esquecer esse sentimento que me dilacera a alma.
— Acho que não sou mais uma boa companhia para sair hoje. —
Vejo o vulto de Jessica em meio às lágrimas que turvam minha visão,
tentando me abraçar.
— Desculpa, perdão, Selena. Não devia ser tão insensível.
Afasto-me direto para o meu quarto com ela me seguindo.
— Bionda, por favor!
— Pode ir, prometo que não vou me ferir. Tem a minha palavra. Só
não quero ir em um lugar e fingir que tô feliz, igual finjo os orgasmos — É
tão humilhante me sentir desse jeito.
Entro no meu quarto e ela barra a porta quando tento fechar.
— Selena, conversa comigo! Eu quero entender!
Seguro as lágrimas e engulo o nó na garganta.
— Você nunca vai compreender, nunca! Alguém já disse que te
amava no dia do seu aniversário e apenas três dias depois, afirmou que não
havia lugar para você em sua vida?
— Quem fez isso? — ignoro a pergunta, porque tô de saco cheio de
fingir que estou bem o tempo inteiro. É exatamente o contrário disso.
— Já se viu entrando em situações em que buscava
desesperadamente ser aceita, desejada e tentava se encaixar na vida de
alguém? Eu passei por isso, e assim como o primeiro que me usou como um
brinquedo, Pietro também fez o mesmo. Agora, estou tentando encontrar
meu lugar na vida desse rapaz que você chama de smurf, mesmo que não o
ame. Portanto, não, você nunca vai conseguir entender como me sinto.
— Meu irmão fez isso?
— Preciso de um tempo sozinha, Jessica. Seria melhor você ir no
encontro com o russo. Sei que essa preparação não era apenas para o nosso
jantar com o pessoal da galeria. Não há mais clima para mim. Não vou
trancar a porta, mas prefiro ficar sozinha agora.
Fecho-me dentro do meu lugar seguro e me recolho. Sento-me no
chão do quarto com uma caixa que escondo no fundo da gaveta da cômoda.
É meu segredo. Está repleta de fotografias do meu passado, algumas
poucas fotos daquela garota magrela com sorriso triste e muitas outras dos
momentos felizes que deixei para trás. Sempre evitei abrir essa caixa,
apesar de levá-la para onde vou como uma relíquia.
Meu peito aperta tanto ao olhar as fotografias de Tiziano, o coração
fica pequenininho, tomado por uma saudade do que não tive com ele.
Olhando o retrato dele naquele píer, apoiado em sua moto e jaqueta de
couro, me debulhando em lágrimas, me pergunto por que guardo essas
lembranças. E só nesse momento compreendo o motivo.
Fotos não ferem, retratos não desprezam e nem mentem, apenas
aplacam um pouco a saudade que sinto de um amor que tenho certeza hoje,
jamais esquecerei. Olho a outra fotografia na nossa aula de direção, ele
sorrindo para a câmera tão sincero, como pude acreditar?
Na minha dor converso com a foto.
— Não consigo amar outra pessoa. É uma realidade brutal, mas é a
minha realidade, a dor de não ter você agora depois de tudo o que passei, é
tão ou maior daquela que tinha há três anos e meio quando você me afastou
com seu desprezo.
Fecho os olhos e me permito chorar. É um sentimento tão impotente
angustiar-se por memórias que não se pode esquecer. Já morri uma vez, mas
no lugar de sangue, foram lágrimas.
(Caruso – Il Volo)
(Calling All Angels – Lenny Kravitz)
Hoje à noite vim a um jantar na casa dos meus pais. Jessica quem
ligou para convidar pessoalmente, pois queria avisar que a amiga está com
eles na mansão. Havia pedido que me ligasse para dar notícias de Selena,
ontem ela fez isso, me tranquilizou dizendo que estava tudo bem.
Duas noites atrás tivemos aquela conversa, e esta noite vê-la outra
vez mexe demais comigo. Estamos bebendo um vinho antes do jantar, meu
pai já chamou minha atenção duas vezes porque não ouvi o que ele disse.
Olho para seu rosto calmo e me desculpo da mancada com um sorriso sem
graça.
— Perdão pai, o que dizia?
— Hum, eu dizia que você precisa disfarçar, cáspitta! Não tira o
olho da menina. — É complicado manter o meu foco com ela tão perto. —
Volto a atenção para Selena sentada na poltrona da sala de chá, junto com
minha avó, irmã e mãe. Alguém a faz rir e ela lança aquele sorriso doce que
eu amo, o qual enruga um pouco o narizinho.
— Vocês já conversaram depois que ela retornou?
— Conversamos um pouco na sexta-feira no evento.
— Gostaria de ter ido, mas não podia adiar a ida a Verona, Olívia
conseguiu um horário com um químico muito requisitado. Precisava estar lá
muito cedo, se fosse ao evento das máscaras, seria para me divertir com
bastante tempo.
— Entendo pai, não se preocupe. Foi um sucesso, aliás.
— Quem arrematou a obra dela? Vi o encarte de capa. Linda
fotografia, essa menina tem o dom mesmo para arte.
— Tem. — Sorrio orgulhoso como se o elogio fosse para mim. —
Ficaria bonito o quadro no seu escritório, posso trazer da próxima vez. Fui
eu quem ficou com ele.
Bebo um gole do vinho Brunello vendo meu pai com seu meio
sorriso sábio.
— Não sei, talvez você queira colecionar o trabalho da sua musa.
— Meu apartamento está repleto de artes de Selena, seria bom olhar
para uma quando venho pra cá — confesso com um sorriso.
— Feito. Eu aceito o presente. Gostei daquela fotografia.
Nonna se aproxima nos avisando que o jantar será servido. Spaghetti
alla carbonara, salada cesar e chips de parmesão, minha combinação
predileta.
Selena não se acomoda à minha frente, e embora não haja um clima
ruim entre nós, a distância é nítida. Quando cheguei, ela foi educada e
trocamos algumas palavras amigáveis, mas parece que algo mudou desde
então. É evidente que há desconforto pairando no ar entre nós.
Ela me trata com cordialidade, mas com absoluta indiferença. É
como se eu fosse apenas um conhecido insignificante. Isso dói, dói pra
caralho!
Durante o jantar, mesmo que eu tente lançar olhares mais
prolongados em sua direção, não sou correspondido, o que se torna cada
vez mais frustrante. Selena é o centro das atenções de todos, e com razão, já
que sempre foi uma presença constante nessa casa, praticamente faz parte
da família.
Admirando seus gestos suaves na mesa, observo como está
confiante e dona de si, na verdade, Selena está irresistível. Uma mulher
envolvente sem perder a inocência da garota que conheci.
Gosto de vê-la interagindo com minha família, as conversas na hora
da sobremesa, correm soltas.
— Foi muita gentileza trazer presentes para todos, Selena. — Minha
mãe socializa com poucas pessoas, mas mia ragazza é especial, porque ela
ama Jessica.
— Jess tem que levar a maioria dos créditos, pois foi ela quem
escolheu os presentes.
— Mesmo assim, é muito atenciosa.
— Eu adorei o vinho, obrigado. — Agradece meu pai, lendo o
rótulo concentrado.
— Que bom que gostou, Seu Nicola.
— Gostava de morar na Espanha, querida? — pergunta minha
nonna.
— Aprendi a gostar, nonna, acho que vou demorar para acostumar
com a Itália novamente. Minha vida era muito agradável naquele país.
— Selena ainda mantém a galeria em Madri. — Como se sentisse
minha dor e minha apreensão interna, Jess me inclui na conversa. —
Deixou uma amiga nossa no comando, a irmã do seu amigo, Tiziano. O
Salvage.
— O Diego?
— Esse mesmo, meio antipático aquele cara, já Stela é totalmente o
oposto em personalidade.
— Ele encomendou uma motocicleta customizada para a namorada,
mês passado. — Selena cruza o olhar comigo rapidamente ao degustar o
tiramisù.
— Bem, se aquele mal-humorado arranjou uma namorada, não vou
perder as esperanças.
Elas riem da piada, mas Selena não está à vontade. Será que
lembrou da moto que a presenteei?
— Então vai manter a galeria na Espanha, Selena? — tento criar um
clima melhor. Ela vira para mim com a face educada e muito polida. Uma
lady na maneira de me tratar, mas de uma frieza gritante.
— Vou manter, Tiziano, não sei se vou me adaptar aqui, talvez eu
volte para lá algum dia.
A admiro sem interrupções ou disfarces, conseguindo apreciar sua
beleza enquanto responde.
— Pode abrir uma galeria aqui em Veneza. Sua arte faz sucesso em
qualquer lugar.
Seu rosto cora e ela disfarça com um sorriso envergonhado. Ainda é
minha menina tímida quando ouve meus elogios.
— Ela vai ter tempo de pensar nisso, né bionda?
— Tem razão, Jess. Para que apressar as coisas.
— Nisso eu concordo, pressa é reservada para poucas coisas na
vida. E você é jovem, tem muita coisa para viver — ressalta minha avó com
sua opinião sábia.
Meu sorriso é calmo e terno para ela, vejo seu olhar um pouco
perdido no meu. Não sei o que significa, mas talvez a crise de sábado tenha
quebrado um pouco sua resistência.
Só queria que ela percebesse que o lugar dela é aqui comigo. A
mesa inteira começa a falar ao mesmo tempo. Termino meu doce e vou para
a varanda. Reflito sobre toda a nossa situação ao olhar as estrelas. Será que
foi certo contar a ela a verdade? Se tivesse pedido somente o perdão não
seria melhor? Algumas pessoas não nascem para acreditar no que não pode
ser explicado, simples assim.
Após alguns minutos, para minha surpresa, ela mesma aparece.
— Oi, eu trouxe seu casaco. Obrigada.
— Casaco?
— É, o traje do Fantasma da Ópera. Não o mandei lavar porque não
sabia onde você costuma cuidar das suas roupas. — Ela deixa a peça
dobrada sobre a poltrona, seu sorriso é contido e educado.
— Você está bem? Quer dizer... eu liguei no dia seguinte para a Jess
para saber de você.
— Ligou? — Ela se encosta na grade da sacada ao meu lado. O
perfume de lavanda me inunda de boas memórias.
— Queria saber se tinha algo que pudesse fazer, para ajudar.
— Já ajudou bastante, Tiziano, não há mais nada a fazer. É o que é.
— Ainda tinha alguma esperança de aproximação, mas desse jeito,
confirmo que é o fim.
— Não lhe agradeci pelo presente, ou devo agradecer a minha irmã?
Seu olhar quando encontra o meu é receoso e desconfiado. Isso é tão
frustrante!
— As duas, sua irmã insistiu na cesta de produtos masculinos para
barba e cabelo, as luvas de motociclista fui eu que escolhi, lembrei de como
ama motos. — Chacoalha os ombros como se não fosse nada demais. — As
duas coisas serão úteis, né?
— Lembra das nossas aulas de direção?
— Tiziano, por favor! Vamos manter as coisas amigáveis assim.
— Amigáveis? Você mal olha na minha cara. — Seus olhos piscam
rápido e ela dá um passo para trás.
— E o que você queria? Que eu me jogasse nos seus braços depois
de tudo? Não confunda meu momento vulnerável da crise naquele evento
ao presumir que eu queria aquilo para ser carregada por você.
Alinho meus cabelos e barba procurando ocupar minhas mãos
nervosas, para impedir de abraçá-la e implorar que ouça.
— Nunca pensei isso. Desculpe se deu essa impressão.
— É a conversa sobre os sonhos, né? É por não acreditar nessa
história que você me recrimina?
— Já contei tudo o que houve, não posso obrigar você a acreditar.
— Não pode. — Ela cruza os braços e desvia o olhar.
Numa tentativa de mudar de assunto, tento falar do que nós temos
em comum.
— Ainda tenho sua moto, guardei para quando retornasse.
— Não havia necessidade. Não tirei a carta para guiar motocicletas.
Nunca mais me interessaram. Venda, deve ter um valor alto já que está sem
uso.
— É customizada, feita especialmente para você, Selena.
— Desmanche, use as peças, não me importa o destino que der a
ela. Aquela moto nunca me pertenceu, eu a devolvi ao verdadeiro dono. —
Trocamos olhares tensos, os sentimentos à flor da pele, cada palavra
carregada de significado e dor.
— Eu.
— Sim, você. É sua, não minha.
— Por que está sendo tão cruel? — Ela se surpreende com a
pergunta, me encarando firme, encolhe os ombros.
— Você está insistindo em algo que não é mais nós. Nunca fomos.
Não jogue essa culpa sobre mim. Você não é capaz de pedir perdão ou... ou
se desculpar com algo razoável. Inventa uma história de sonho a fim de
justificar o canalha que foi. E eu sou a cruel?
Inspiro profundamente, o ar entrando como espinhos no meu peito.
A tristeza abraçando meu corpo com seu aperto de aço.
— Sabe o pior sentimento do mundo? É quando você tem que
desistir de alguém que ama. Mesmo não querendo. Você sabe que precisa e
sabe o porquê. Eu errei em não contar a verdade naquela noite, e isso acaba
comigo cada vez que lembro. Finalmente decidi falar e... — Ela massageia
as têmporas visivelmente perturbada com a conversa.
Mia ragazza me encara dessa vez e vejo pesar, nunca a senti tão
distante nesses quatro anos desde aquela noite desesperadora. Ela aperta o
maxilar tentando controlar a reação que provoco. É melhor não insistir
agora, só vou dizer como me sinto e sair.
— Ano você. Sinto saudades. Sinto tanta saudade de você que até
machuca, mas não sei como alcançá-la mesmo parada na minha frente. É
melhor eu ir embora.
Ao cruzar a sala de jantar vazia, carregando as migalhas do meu
coração, procuro o corredor mais rápido para a saída, não quero encontrar
ninguém, porque estou a ponto de desabar. Os olhos ardem e o ar parece
pesado ao tentar respirar.
Não tem mais como insistir nisso agora, será pior.
Quando dobro em direção a saída, quase trombo com minha avó.
— O que... o que foi, menino?
Mesmo tentando passar por ela, nonna segura meus braços e nota
meu semblante derrotado.
— Tenho que ir para casa!
— Não vai sair daqui sem contar o que está acontecendo, nem que
eu tranque a porta da frente! — Ela me guia até a sala da recepção e me faz
sentar.
— Pode começar!
Chateado com o que aconteceu na sacada, resumo a conversa para
minha avó.
— Tenha calma e paciência. — Com um sorriso doce tenta me
animar. — Amo você e estou feliz em ver o homem que se tornou, olhe para
mim. — Encaro os olhos intensos — Fez muito bem em falar a verdade. Vá
para casa, se recomponha e tente outra vez, sabe que é só o começo, não
sabe? É difícil para as pessoas acreditarem em algo tão fora da realidade
delas.
— Não consigo mais sentir a distância que Selena impôs. É muito
doloroso não poder ficar ao seu lado, ser impedido de ajudar e proteger a
mulher que amo.
— Vocês estão destinados, só precisam ter paciência. O tempo de
vocês chegou. Acredite.
— Às vezes acho que é tarde para nós. Talvez eu não consiga ficar
tão perto e manter a distância que ela quer. Preciso pensar em uma outra
forma de me aproximar, mas por ora é melhor não pressioná-la. Farei
aquela viagem de moto que sempre comentei aqui em casa. Quando
retornar, ela vai estar mais adaptada com seu retorno ao país. Confesso que
ser um brinquedo nas mãos do destino cansa.
— Obrigado por ouvir meu desabafo, nonna. Preciso descansar.
Buonanotte.
— Buonanotte, figlio. — Ela beija meu rosto com seu sorriso doce.
Dentro do quarto de hóspedes da mansão dos DiMateo, solto todo o
ar dos pulmões. Corro até o banheiro, lavo o rosto e o pulso. A pulsação é
agitada e meu corpo sente um calor incomum. Raiva, desconforto e mágoa
fazem isso comigo. Não queria ter discutido daquele jeito com ele, mas é
absurdo que ele tente se fazer de vítima. Eu sou a vítima aqui.
O que ele fez depois que me dispensou? Viajou para o Japão, seguiu
com a vida dele, e agora que estou de volta, ele quer retomar como se nada
tivesse acontecido? Não consigo acreditar no amor dele, porque não
acredito no amor, tudo o que sei sobre esse sentimento são mentiras para me
iludir. Cada vez que ouvi “eu te amo,” foram palavras vazias com a
intenção de me enganar e ferir.
Uma batida na porta me assusta.
— Selena? Pode me ajudar em uma coisa? — O que será que nonna
Olímpia quer? Abro a porta e ela sorri simpática.
— Desculpe perturbar sua privacidade, é que procurei Jessica para
me ajudar com uma tarefa e ela não estava no quarto.
— Claro, eu ajudo.
— Vamos até a cozinha.
Sigo a senhorinha que anda mais ágil do que meus próprios passos.
Seguimos o longo corredor e descemos para o segundo piso, com ela
falando sobre um bule infusor.
— Pois então, decidi fazer um chá vermelho e acrescentei alguns
ingredientes que precisam ir ao infusor e não alcanço na prateleira.
Rio alto na porta da cozinha, sou alguns centímetros mais baixa que
ela.
— Mas nonna, eu também não alcanço.
Ela puxa uma escadinha de metal dobrável e abre diante do móvel.
— Mas é mais jovem para subir as escadas. Não posso fazer isso
com meu joelho fraco.
— Ah, ok!
Enquanto subo e pego o tal bule, ela pergunta se quero beber um
chazinho com ela.
Alega que a nora sempre toma, mas hoje se recolheu com dor de
cabeça.
Após aceitar o convite, observo a velhinha preparando o chá.
— Conhece o chá Pu Erh? Camelia sinensis.
— Mamãe toma o branco, esse nunca provei.
— Ele é medicinal, age para uma infinidade de coisas. Vou fazer um
aromatizado para você.
— Gosto de chás e bebidas quentes.
— Queria que minha neta gostasse para me fazer companhia.
— Jess é mais fã das bebidas geladas — comento.
— Vai adorar este, com adições de baunilha, casca de laranja,
pétalas de rosa, centáurea e girassol. Se gosta de sabores doces, este vai
deixar um suave perfume na boca.
— Hum...
Prepara a bebida e em seguida, carrego a bandeja até onde ela
prefere, na sala de chá. Vejo um álbum de fotografias sobre a mesa e fico
curiosa.
— Posso olhar?
— Claro, vou servir nosso chá enquanto olha.
Folheando o álbum, vejo que são memórias de família. O avô de
Tiziano quando jovem abraçando dona Olímpia era um homem enorme.
Tiziano puxou ele no porte. Mas nos traços não, senhor Domenico tinha
cabelos cor de chocolate e olhos cor de avelã. Nonna apesar de grisalha,
vejo que é clara, por isso o pai de Tizi tem cabelos de uma cor entre os dois.
Só que Tiziano é loiro, como pode se Olívia, sua mãe, tem cabelo escuro?
Pelo gene dominante Tizi deveria ser parecido com Jess e Gabe.
— Está pensativa. O que viu nesta foto?
— Desculpe, nunca tinha visto seu falecido esposo.
Seu sorriso orgulhoso é o máximo.
— Meu Domenico era o homem mais lindo da Itália. — Admiro o
brilho do seu olhar nostálgico.
— Realmente era um homem muito atraente.
— Homem do campo, um pouco rude, mas de um coração enorme.
Tomo um gole do chá que é mesmo muito delicioso e observo mais
fotografias. Vejo uma onde estão seu Nicola com Tiziano no colo e Olívia
com Gabrielle.
— Qual a diferença de idade dos meninos?
— Pouca.
— Parecem ter nascido juntos.
— Gabrielle sempre foi adiantado no desenvolvimento, tanto físico
quanto intelectual. Eles têm menos de um ano de diferença.
— Entendi. E esta? Seu Nicola com o braço engessado, o que houve
nessa ocasião? — observo Tizi agarrado ao pai, deve ter seus quinze anos,
usava cabelos longos, uau! Sempre foi um garoto lindo.
— Um acidente de carro. Ainda bem que o pior não aconteceu, meu
Nico escutou o aviso.
Presto atenção em nonna, medindo seu rosto sério, enquanto bebe o
chá.
— Tiziano sonhou que viu a morte do pai. — Aturdida, olho para
foto outra vez.
— Deve estar surpresa, pois não acredita nessas coisas. Mas não é
porque não acredita que elas não existem.
— O… o que exatamente estamos falando? — pergunto fechando o
álbum e focando na minha xícara.
— De pessoas incomuns, assim como Tiziano e eu. Temos um dom
de clarividência, ele por sonhos e eu pelas mãos. No meu caso leio o
passado e o presente de uma pessoa para ajudar com seu futuro, é um pouco
diferente do dom dele. Mas é disso que estamos falando.
Ainda não consigo responder a isso, pois começo a me sentir
desconfortável. Nonna se levanta, pega uma pequena luminária e a coloca
sobre a mesa.
— Me dê suas mãos.
— Eu ... não...
— Tem medo de mostrar seu passado para mim, ou medo de
confirmar que seu ceticismo é infundado?
Ah merda! Onde isso vai dar, meu Deus!
— A senhora lê as mãos?
— Estudei a quiromancia também, mas por curiosidade. Porque
sempre tive o dom de ver desde pequena. — Seu olhar plácido de um azul
cinzento me analisa. Estendo as duas mãos e ela olha o dorso e as palmas.
Toca a pele e alisa com um sorriso, mas não tô nem um pouco calma.
— Seu elemento é água. Uma quiromante diria que você tem mãos
de água.
— O que quer dizer?
— O que você já sabe. Você é criativa, perspicaz e solidária. As
mãos desse elemento se expressam nas artes, pintura, poesia, música, uma
artista. Mas seus dedos dizem que tem uma personalidade mais fechada,
introvertida, gosta de fazer tudo da sua maneira. Estou errada?
— Não.
Ela vira e olha as duas palmas juntas, dedilha a primeira linha na
base dos dedos e ela continua de uma mão para a outra iguais.
— Linha do coração perfeita. Gentil, sensível e leva em
consideração a opinião alheia. É uma pessoa pacífica, calma e que resiste às
mudanças do dia a dia. Gosta de receber carinho e sentir que é amada.
Minhas pernas começam a ficar inquietas sob a mesa
com meu nervosismo aparente.
— Bom, e essa linha do coração é extremamente curvada,
sensualidade aflorada e ama com paixão intensa. Já a da vida é tão curva em
torno do polegar, que me diz que é uma pessoa que prefere ficar sozinha,
geralmente por causa de grandes decepções na vida.
Nessa hora ela olha para o meu rosto. O pior que ela está acertando
tudinho.
— Está pronta?
— Não é essa a leitura de mãos?
— Me dê a esquerda, agora que vi sua personalidade, quero ver o
que houve com você.
Ela observa com cuidado e suspira fundo, me deixando apreensiva.
— Você tentou contra sua vida quatro vezes. Uma delas quase
conseguiu, né?
Meus cabelos arrepiam e os olhos ardem ao segurar o choro. Ela viu
isso aí?
— Quatro pontos bem nítidos nesta linha, veja! — Aponta o dedo na
curva.
— Selena, você não precisa temer, vi o seu maior medo e não é de
viver.
— Não?
— Não. Você não vai se tornar igual a ela.
— Quem?
— Sua mãe! — puxo rápido as mãos e envolvo os braços ao redor
do meu corpo.
Mordendo o lábio com força.
— Você jamais vai renegar seus filhos. Vi o que você viu quando era
criança. Você escutou uma discussão entre seus pais onde sua mãe dizia que
preferia a criança morta do que uma menina.
Fecho os olhos tentando segurar as lágrimas, mas a memória nítida
dela falando aos prantos com meu pai naquela sala surge na mente. Eu tinha
apenas dez anos e depois daquele dia tudo mudou para mim. Sinto as
lágrimas mornas e o choro vem sem controle.
— Você se sente insuficiente, porque acha que sua mãe nunca lhe
quis, busca obedecer, ser uma boa filha para tentar ganhar seu afeto. Mas o
problema não é você. E talvez você tenha ouvido essa conversa fora de
contexto.
— Pare! Pare, por favor. Não quero ouvir mais!
Levanto-me secando o rosto e recompondo minha postura.
— Pare você de duvidar! Pare você de se boicotar, de tentar entrar
em um padrão que não é seu. Está resistindo a verdade de um homem que te
ama, por qual motivo? Já se perguntou isso? Tem medo do que sua mãe vai
achar se não se casar com quem ela ou seu pai querem? Fodam-se eles,
Selena!
Arregalo os olhos vendo a vovozinha bem perto, olhando
intensamente para mim.
— Só você pode escolher sua felicidade. Lá no fundo você quer
acreditar no meu neto. E saiba que é verdade cada palavra que ele falou de
coração aberto, eu estava lá quando ele acordou a casa toda aos berros, vi
como estava totalmente desesperado. Ele fez o que achava certo para te
proteger, mas aquela atitude o rasgou por dentro e quase o destruiu.
Ela se afasta e pega um caderno, rasgando um pedaço de papel,
escreve uma sequência de dezesseis números nele.
— O que é isso?
— É a senha da segurança da porta externa do apartamento dele, só
a família tem. Vou ligar para o guarda e avisar que se uma Selena for lá, é
para liberar a entrada até a porta.
Olho para os números, minha data de nascimento e a dele em
sequência.
— Não sei o que dizer.
— Faça como ele, diga a verdade. O que sente, o que é e o que quer.
Tenho certeza de que vai dar tudo certo. Seu cão de guarda está na sua
lancha ali no píer. Avise para preparar as coisas e levá-la até lá. O que a
impede de fazer isso, Selena?
Com um tapinha na minha bochecha, a velhinha vidente pega a
luminária e some pela porta do corredor. O choque da realidade bate forte.
E se tudo isso for verdade? Ela viu tudo nas minhas mãos e ele tem esse
dom, mas continuo relutante por medo, por receio de ser abandonada outra
vez. Mas, meu coração o quer tanto!
Preciso ter coragem de viver o que desejo. Corro até o quarto para
pegar a bolsa e envio uma mensagem para Teodoro. Não posso mais me
fazer de cega. Eu quero a minha felicidade, o meu direito de escolha, e eu
escolho Tiziano!
CAPÍTULO 57
Assim que liguei para o meu pai um pouco antes do meio dia, sua
voz pareceu surpresa ao me ouvir. Há mais de uma semana tinha prometido
que não o procuraria. Merda! Não gosto de voltar atrás nas minhas
decisões, mas bionda faz minha bússola moral descalibrar.
As horas de carro de Tropea a Palermo, me deram tempo de planejar
o que dizer, porém, sei muito bem as implicações que isso acarreta na
minha vida. Se ele negar meu pedido, preciso apelar pela afeição que ele diz
ter por mim e pela minha mãe, e rezar para dona Olívia ceder quando cobrar
uma posição dela a favor do seu amor.
Não sou idiota, minha mãe arrasta um bonde por ele mesmo depois
de vinte e dois anos sem vê-lo. Quando mostrei uma selfie com ele no meu
celular, mamãe ofegou disfarçando como pôde. Só prendi a risada porque
estava possessa com ela, mas dona Olívia é transparente quando o assunto é
o pai dos seus filhos. Teimosa é verdade e orgulhosa, mas terá que ceder.
Quando falei que era um assunto urgente, meu pai logo perguntou
dela. Fui breve ao dizer sobre minha visita e que era de importância da
famiglia. Sua voz tomou um tom macio ao ouvir que os negócios fazem
parte do meu interesse. Coitado, nem imagina que não mudei minha posição
com relação a sordidez da máfia, no entanto devo pisar com cuidado ou a
petição será negada.
Fui ordenada a estacionar próximo à praça Vigliena onde um carro
nos escoltou até o local que ele marcou para me receber. Primeira vez que
isso acontece, das outras vezes sempre nos encontrávamos em hotéis e
passeios que fazíamos juntos, mas naquela época eu não sabia sobre meu
passado e meu pai fingia ser apenas um amigo.
Estamos seguindo o veículo preto que nos abordou com a senha
previamente enviada para o meu celular. Nada surpreendente, pois agora sei
do perigo que corro por ser quem sou. Apesar que ele me garantiu que
apenas homens de sua confiança sabem da minha existência e da real
paternidade de meu irmão Gabrielle, ninguém além de nós dois. Atrás de
nós outro veículo igual nos segue.
Ao chegar no portão de ferro, a guarda permite a entrada do
pequeno comboio. Olho pela janela enquanto uma estradinha de pedra,
larga apenas para um carro, integra-se a uma floresta. No início rala, com
árvores espaçadas, mas aos poucos uma densa mata de todo o tipo de
vegetação transforma o dia em noite. Estamos entrando em um santuário da
selva amazônica? Ou em algum estúdio de filmagem de um filme de
suspense?
Abro mais um botão da minha camisa de seda, o calor do
nervosismo chegando sem aviso. Seguimos por mais ou menos um
quilômetro rasgando a mata ao meio até um lago natural, com direito a um
casal de cisnes, brancos como a neve, nadando nele. O sol volta a aparecer
igual a grande mansão marfim, que mais parece um castelo Normando.
A grandeza do prédio é espantosa. Uma estrutura de três andares,
com uma escada em arco para o segundo andar, que é possível subir tanto
pela direita, quanto pela esquerda. Na ponta de cada pilar inicial da escada,
mas olhando para frente, recebendo quem estaciona diante da mansão,
estátuas gêmeas de um lobo com uma coroa.
Essa é a casa dele? Per l’amor di Dio, não achei que a conheceria
justamente hoje.
O carro para diante da porta principal do primeiro andar, que fica
sob a escada de arco, toda ladeada por cerca viva. Dois homens de terno
estão parados guardando a entrada e um terceiro sai lá de dentro com um
sorriso aberto para me receber, assim que desço do veículo.
Seu terno de três peças não combina com a idade que parece ter,
quarenta anos no máximo. Cabelos e barba num tom de castanho escuro,
mas alguns fios dourados quando o sol reflete. A barba apesar de ser
completa no rosto, é rala como se fosse aparada para deixar uma sombra de
seu formato, mas são os olhos de águia que chamam atenção. É um azul
profundo e escuro e mesmo sorrindo amigavelmente tenho a nítida
impressão que está me escaneando como um general.
— Ettore Baroni, signorina Jessica, piacere di conoscerti! (Prazer
em conhecê-la.)
— Piacere, signore Baroni.
— No, no. Me chame de Ettore, per favore. Amiga do padrinho é
minha amiga também.
Sorrio engessada para o belo homem que beija minha mão, mas não
é digno de confiança em saber que sou filha do chefe. Hum, interessante!
Qual cargo será que ocupa?
— Por aqui, vou avisar Don Lupo que já chegou. — Lupo, hum, tem
a ver com as estátuas de lobo que vi na entrada. Símbolo da família talvez?
Ou dele? Mamãe não me falou sobre isso.
Seguimos pelo hall suntuoso amarelo pálido repleto de quadros
famosos nas paredes lado a lado como se fosse uma exposição de arte.
— Vou pedir que te atendam em algo para beber, está com fome? O
chef será chamado.
— Obrigada, é muito gentil, Ettore.
Paramos na primeira sala da casa, a cor pálida permanece nas
paredes, mas agora invés de quadros, são afrescos pintados por todo o
cômodo. Uau! Dio óstia, nunca vi isso na vida, bem, exceto nas catedrais
que visitei, mas aqui são pinturas nas paredes. Algumas com uma moldura
dourada na imagem para enfeitar, mas a tela é a casa!
O tal Ettore sai com um aceno polido e logo um homem de uniforme
parecendo de um hotel se aproxima com um carrinho de prata, repleto de
garrafas e taças.
— Temos o melhor prosecco do país, signorina, é minha sugestão se
me permite. — O homem careca me serve uma taça assim que confirmo.
Sentada em uma poltrona de veludo vinho, ainda estou hipnotizada
com a decoração barroca do lugar. É tudo tão elegante e detalhado que dá
até medo de sentar e estragar alguma coisa. Lustres de cristal, móveis
entalhados com requinte de detalhes em dourado, putti em esculturas de
mármore espalhadas pelo ambiente, tapeçaria francesa rica, sou acostumada
a estar em ambientes luxuosos, mas este é além de luxo, é a casa de um
monarca.
Uma mulher de uniforme de copeira aparece com um tablet em
mãos.
— Buon pomeriggio signorina. (Boa tarde, senhorita) Me chamo
Cordélia, sou a cheff responsável pela gastronomia da casa e gostaria de
saber o que será o jantar. Frutos do mar ou carne vermelha?
— Deve haver algum engano, não vou ficar para o jantar.
— Don Lupo ordenou que o menu será escolhido pela signorina. Ele
disse que sua escolha para ele está perfeito.
Quase coloco o gole de prosecco de volta na taça. É uma imposição,
devo jantar e ficar esta noite, Aleksandar tinha razão, acabei de aceitar as
regras.
— Frutos do mar. — Cordélia sorri pronta para se afastar. — Sabe
se meu aposento está pronto?
Quero confirmar o que meu pai planejou e ver até onde mostrou as
garras.
— Oh! Si, si. Signore Caruso, o mordomo, preparou pessoalmente
sob as ordens de Don Lupo.
— Obrigada. — Não consigo retribuir o sorriso simpático, pois a
dor de não ter mais controle sobre a própria vida me atinge como um
terremoto.
Termino a bebida e deixo a taça sobre a mesinha. E logo Ettore
retorna.
— Podemos ir?
Assim que me ponho em pé aliso minha roupa mesmo não estando
amassada. Será que estou vestida para a ocasião? A saia lápis me deixa com
aspecto de uma secretária? Talvez secretária da máfia né, tontolina! Eu
mesmo me repreendo mentalmente. Ainda bem que tinha uma blusa
comportada na mala, dentre as alças e decotes, a camisa marfim de botões
de madrepérola me pareceu discreta e elegante o suficiente para uma
reunião com o Capi dei tutti i Capi.
Sigo o modelo Tom Ford que caminha apressado um pouco adiante
pelas pernas atléticas. O perfume dele é denso, cedro e tabaco como um
ótimo badboy. No entanto, dois passos antes de sair para o corredor, sou
derrubada de bunda no chão por quatro patas enormes e uma língua babada
me cumprimentando afoito. O olhar amarelo de Giallo encara o meu em
meio as lambidas me fazendo gargalhar.
— Quem deixou esse monstrengo fedorento entrar? Olhem o que ele
fez?
O berro de Ettore me assusta e acalmo o cão para poder levantar.
Vários empregados aparecem, um me ajudando a ficar de pé, outro com um
lenço para secar o rosto e outro com uma guia e pálido como uma folha de
papel.
— Foi você, Zucchero? Não tem competência nem para segurar um
cão, seu inútil! Leve-o daqui, agora!
Giallo rosna para o homem que de vermelho está roxo de fúria,
parece que é o próprio dono da casa e o ofenderam cuspindo no chão, não
compreendo essa reação.
— Desculpe Don Ettore, desculpe... O cão sentiu o cheiro da visita e
não pude segurá-lo.
— Não foi culpa dele, Ettore — falo calma enquanto acaricio a
cabeça de Giallo. — Giallo só quis me cumprimentar, faz tempo que não
nos vemos. Zucchero, não precisa de guia, ele vai comigo.
Ettore bebe um copo de água que uma das serviçais trouxe, mas seu
olhar de curiosidade sobre mim não me passa despercebido.
— O cumprimento dele quase rasgou suas roupas, signorina. Vou
castigar Zucchero por essa falha.
Andamos pelo corredor que aos poucos vai tomando uma decoração
mais sóbria e fria.
— Não deve fazer isso, a sinceridade dos animais é muito bem-
vinda no mundo caótico que vivemos. E aliás, ele não gosta de você.
Ele mal olha para mim, vejo o ossinho da mandíbula se
movimentando ao apertar o maxilar com força. Está nervoso.
— Nem eu dele, não gosto de cães. De nenhum animal, no máximo
cavalos e ainda assim somente nas corridas.
Acabou de perder o pingo de simpatia que eu tinha por ele. Um
homem que não gosta de cachorro não é digno de confiança, espero que
meu pai saiba disso ou ele tá muito ferrado!
Chegamos em uma antessala com alguns homens sentados em
poltronas que circundam as paredes, vidrados na televisão suspensa diante
deles.
— É clássico hoje, Palermo e Catania estão jogando — explica
Ettore.
Somente o pai de Selena nota nossa presença e rapidamente vem me
cumprimentar.
— Signorina Jessica, é um prazer revê-la.
— Igualmente, senhor Mário.
— Padrinho está aguardando — esboça um sorriso comedido e
fecha a cara ao encarar o homem ao meu lado.
— Obrigada, senhor Mário.
No meio de todos os outros, o pai de Selena é o maior deles. Deve
ter dois metros de altura e os ombros mais largos que Michael Phelps.[xxviii]
Ettore e seu olhar de águia, apenas acena para o homem grisalho.
Mas acho que não é grisalho de velho, mas sim, de tão claros os fios
parecem brancos. Seu Mário sempre me pareceu tão jovem e...
amedrontador. Olho sobre o ombro e o bíceps estica tanto a manga do terno
que parece que vai rasgar a qualquer minuto.
— Já se conheciam? — pergunta Ettore ao me acompanhar até a
porta dupla que deve levar a sala do Don.
— Sim. — A minha satisfação interna acabou de se elevar à máxima
potência. Ele deve estar doido para saber de onde conheço o subchefe e me
limito a não fazer sua vontade.
A pergunta agora é, se Mário é o Subchefe, quem é Ettore nessa
organização?
— Padrinho? — Introduz ele ao abrir a porta.
Giallo segue ao meu lado, sem rosnar mais, pois o
acalmei com afagos na cabeçorra.
A sala é completamente diferente das salas da mansão de tons
amarelo pálido. Aqui, tudo é revestido em tons terrosos profundos. Os
móveis são escuros e polidos, com algumas obras de arte que lembram o
estilo de Leonardo da Vinci. Mas, o que realmente impressiona é o painel
atrás da mesa do chefe. Uma representação imponente de um enorme lobo
marrom, emergindo das sombras com uma postura de ataque, exibindo
presas afiadas e um nariz enrugado. Seus olhos dourados brilham assim
como uma coroa em sua cabeça, tornando-o ao mesmo tempo ameaçador e
hipnotizante.
— Bambina!
Don Lupo sai de sua cadeira e vem me receber no meio da sala,
beija minha bochecha de cada lado e me faz sentar na cadeira diante de sua
mesa de carvalho enorme.
Ettore está postado ao lado dele quando ele se acomoda em seu
assento. Minha pulsação dispara ao olhar os olhos claros de meu pai, tão
calorosos mas ameaçadores iguais ao lobo atrás dele.
— Vejo que Giallo foi convidado sem meu consentimento.
— Culpa minha, padrinho. Eu permiti que a acompanhasse, minha
falha.
Don Lupo olha com certo divertimento para o homem postado ao
seu lado.
— Já está defendendo a ragazza, Bello? Mal a conhece!
O outro apenas sorri sem mostrar os dentes e se acomoda em uma
cadeira na lateral do cômodo, semelhante a um guarda costas. Será seu
guarda pessoal? Ele nunca falou ou sequer mencionou esse homem.
— Os animais escolhem seus humanos, sei que não tem muito
conhecimento sobre eles, Ettore, mas meu cane corso escolheu a sua
humana. Certamente dará a vida por ela. Preferirá ela a mim que o alimentei
durante toda a sua vida. Não me importo, é o meu orgulho ser preterido pela
minha figlia!
Os olhos do belo e intragável homem quase saem das órbitas,
tamanha surpresa, porém dura milésimos de segundos sua reação.
— Filha? Não sabia que havia uma...
— Diga? Ouse pronunciar a palavra bastarda dentro dessa mansão e
darei seu pau a Giallo como merenda. — A voz é tão baixa e calma que
parece não ter feito uma ameaça, e seu olhar castanho esverdeado claro não
deixa o meu em nenhum momento.
O cão ao meu lado mostra os dentes em um rosnado baixo.
— Jamais o ofenderia dessa maneira, padrinho. Só fiquei surpreso,
nunca soubemos que tinha uma filha além de Otto.
— Eu sempre soube e é isso que importa. Diga bambina, quanto
tempo ficará com seu papà? Mandei preparar seus aposentos.
— Não é uma visita de cortesia. Já conversamos sobre isso, não
estou aqui como uma Vitalle, meu sobrenome...
— Do que precisa? — A mudança de tom é nítida, interrompeu
minha fala e o homem de negócios assumiu, seu rosto se transforma em
rocha e os olhos como facas afiadas. Ou talvez não quis que o outro
soubesse meu sobrenome de registro?
Ele pega uma caixa de metal e tira um charuto de dentro dela, corta
a ponta e acende. O cheiro da fumaça empesteia o ar.
— Tenho uma petição a fazer.
Meu pai não olha mais no meu rosto, mexe em alguns papéis na
mesa visivelmente chateado. Merda!
— Qual o dia das petições, Bello?
— As quintas, Don Lupo. — O homem responde.
— E que dia da semana estamos?
— Sexta-feira, padrinho.
Então ele olha para mim com os lábios em uma linha fina, o maxilar
quadrado bem barbeado define a dureza de seu semblante tensionado.
— Como pode ver, terá que agendar uma reunião com meu
consigliere aqui. — Estende a mão para o homem que sorri parecendo
conhecer o jogo do seu chefe. — Bello, acompanhe a ragazza até a saída!
— Seu olhar sustenta o meu, magoado e triste.
— Pai! — Meu orgulho está nas solas do meu sapato agora.
Na briga que tivemos semana passada, falei com todas as letras que
não o chamaria de pai. Ele ainda me olha do mesmo jeito, mas deixa um
sorriso convencido aparecer. Traga o charuto e exala a fumaça para o teto
cruzando as mãos sobre a mesa, ao aguardar minhas palavras.
— Preciso de um indulto para Selena.
Os olhos suavizam e ele deixa de lado o charuto se afastando da sua
cadeira. Vai até a janela olhando para a paisagem com as mãos no bolso.
— Tem a ver com o noivado dela?
Como ele sabe que Selena está com Tiziano? Quase ninguém sabe,
bem senhor Mário deve saber.
— Bello, mande chamar Mário e nos deixe resolver esse assunto.
— Não devíamos reunir a cúpula? Posso organizar e convocar todos
o mais rápido possível.
— Não! É assunto dos clãs dos noivos. A bambina é prometida de
Otto. Eu e Mário vamos decidir.
Meu queixo cai, o herdeiro legítimo do meu pai é prometido de
Selena? Como vou contar da gravidez? Puta merda, bionda!
— E sua filha, já tem um noivo para ela, padrinho?
Ouço a pergunta às minhas costas que me gela os ossos, não me
atrevo a olhar sobre o ombro. Don Lupo não move um músculo sequer,
parece ter encontrado uma distração na paisagem do lado de fora.
— Ainda não foi definido, está propondo aliança, Ettore?
O riso confiante que ouço me causa náuseas, o que ele tem de lindo,
tem de sinistro.
— Como sabe, nunca me casei, ainda não surgiu uma oportunidade
que esteja à altura de um Baroni.
Meu pai ri, mas não é de diversão, abana a mão para o homem sair.
Ouço a pesada porta fechar e não contenho minha língua.
— Não me caso com esse psicopata!
— Você nem conhece Ettore Il Bello, bambina! — ele olha pra mim
dessa vez divertindo-se com minha recusa.
Pelo menos o apelido faz jus ao homem. Pena que meu instinto
apitou, mesmo o cara sendo gostoso pra cacete.
— O que vi desde que desembarquei do carro já definiu que não
confio naquele homem! Lutèro, confia mesmo nesse Ettore?
— Prefiro que me chame de pai, gostei mais da sonoridade. — Ele
desvia do foco da janela e se agacha ao meu lado afagando Giallo.
— Não conhecia esse seu lado cínico, pai.
Seu sorriso doce de quando passeávamos pelas ruas
apreciando um gelato, aparece.
— Não posso mostrar minha verdadeira essência para os meus
homens. Ainda mais aos que não confio, respeito conquistado é um luxo
que não se pode perder, figlia.
— Se não confia nele assim como eu, o que ele faz num cargo de
confiança? No mais alto cargo?
Ele volta a fumar o charuto sobre a mesa e se apoia nela sorrindo.
— Mais importante que armas em uma batalha é conhecer e manter
seus inimigos por perto, cara mia! O clã Baroni perdeu a votação da cúpula
no início do século, quando meu nonno foi nomeado Capo dei tutti Capi. E
em um acordo para manter a paz, os Baroni seriam os consiglieres. Sempre
a um passo do poder se os Vitalle não tivessem um sucessor. Nunca
aconteceu e não vai acontecer. Meu filho vai sentar na minha cadeira!
— Otto. É o prometido de Selena?
— Não! Meu filho mais velho se chama Gabrielle.
Tenho um ataque de riso, nervosismo, alívio, apreensão, surpresa, eu
nem sei mais o quê.
— Gabe é homem da lei, não vai mudar para o lado negro da força e
além disso, nós não somos herdeiros legítimos.
— Serão, muito em breve.
— Qual é do lobo? Por que tem lobo por toda a parte nessa mansão?
Me admira não ter um como guarda em seu canil.
— Quem disse que não tenho? — Ri enigmático. — O lobo é o
símbolo do nosso clã. Assim como Ettore é conhecido por Il Bello, eu sou
conhecido por Il Lupo, sou o último Vitalle vivo. — Dobra mais a manga
até revelar o antebraço e mostra a tatuagem de um lobo, igual a da pintura,
mas totalmente sem cor, apenas sombreada, viva e feroz.
— Onde está sua mãe? — pergunta direto, seus olhos escurecem um
pouco. Olhando de perto são diferentes um do outro, uma heterocromia que
só se vê se eles ganham esse tom de ocre. Perto da pupila é mais claro.
— Está em Milão, na casa de uma amiga estilista.
— Quero vê-la.
— Eu não sei se...
O rangido da porta interrompe minha resposta com um olhar severo
do meu pai.
— Mário, perfetto, sente-se. — Lutèro se acomoda novamente em
sua cadeira atrás da mesa, com a postura de Don Lupo outra vez, mas
menos cinismo no olhar ao convidar o pai de Selena a sentar-se mais
próximo de nós.
— Diga, figlia. Qual sua petição?
Olho os dois homens diante de mim, homens que sei que são
assassinos impiedosos, perigosos bandidos que não tem escrúpulos. E
mesmo assim são o mais próximo de família que terei. Sabendo que Selena
ficará com meu irmão adotivo e meu pai não vai descansar até trazer minha
mãe e Gabrielle para debaixo de suas asas. Engulo o nó da garganta e busco
a coragem de dentro de mim.
— Quero que Selena tenha autorização para sair da máfia. — Mário
parece ficar mais branco do que já é e meu pai não demostra emoção
alguma no rosto bonito e moreno.
— Sabe que isso é impossível. Só se sai da Cosa Nostra, morto. E
uma filha nascida da máfia é da famiglia, não do clã que a concebeu. Por
que esse pedido?
— Porque ela está apaixonada pelo meu irmão adotivo e ele por ela.
Estão morando juntos em Veneza e se separarem os dois, nenhum deles
sobrevive.
Mário muda de cor para um porquinho cor de rosa, nervoso
certamente, e meu pai bafora o charuto como se não fosse novidade o que
acabei de contar.
Provavelmente para ele não é novidade.
— Sabia disso, Mário? Sabia e não contou ao seu capo que o nosso
acordo firmado diante de Deus e a cúpula, está rompido?
— Não, não está rompido, padrinho. Como foi permitido uma certa
liberdade a ela depois... Depois do ataque a sua pureza, achei que poderia
contornar a situação.
— Do que estão falando? — odeio essa outra face de Lutèro. A face
do mal, autoritária e implacável.
— A filha de Mário é a única exceção à regra na famiglia. É um
segredo que somente eu e ele mantemos pela ligação que temos, como um
voto de confiança. Por todo o histórico da saúde dela, respeitei a escolha
dos pais em não contar sobre sua origem e o fardo de ser uma futura esposa
da máfia. Abri outra exceção quando aquele infortúnio aconteceu a ela. Já
não era mais virgem, mas não por escolha dela, no entanto tornou-se sem
valor e não podia vir a público essa informação. Compramos silêncio,
lealdade e o que mais possa imaginar para manter a bambina de Mário,
imaculada diante da cúpula.
Minhas mãos suam, aliso minha saia tentando não mostrar como
estou apreensiva nesta cadeira. Tenho que contar sobre a gravidez e que
Deus me ajude, se ele não se compadecer.
— Como se sentiu ao saber que tinha uma filha escondida pela mãe?
— Traído!
— Mas sempre desconfiou, porque não a questionou?
— Eu amava sua mãe, e não se deve separar um filho de una
mamma.
— E de um pai?
— Jamais faria se tivesse outras alternativas, por que está
questionando isso?
— Selena está grávida, foi por isso que vim. Eles querem se casar,
mas não sabem em que isso pode repercutir para ela, per favore papà!
Mário se levanta e implora pela filha.
— Execute a sentença em mim, meu Don. Eu imploro e aceito o
lugar da minha filha. Se tiver que morrer diante da cúpula, morro sem um
suspiro sequer.
Meu pai observa o homem enorme, muito maior que ele, numa
posição subserviente, ombros encurvados, olhos baixos e mãos sobre a sua
mesa com as palmas para cima.
— Estava satisfeito com nosso acordo, Mário?
— Sim, meu Don. Foi a maior honra que me concedeu. Ter minha
filha como sua nora, carregar um sobrenome tão sagrado é a satisfação que
qualquer homem de honra aspira.
— E Otto como genro, responsável por sua bambina?
Mário engole e não consegue responder, o que tem esse Otto que os
dois entortam as bocas para se referir a ele?
— Pare com isso, Mário! Conheço o filho que coloquei no mundo e
sei que puxou os genes desvairados da falecida Bárbara, que Deus a tenha
ou o Diabo a carregue. Otto deixou de ser meu filho há muito tempo.
Renegou o clã e está foragido, e mesmo colocando uma dúzia de homens
atrás dele, não conseguem capturá-lo. Não desejaria casar uma filha com
um stronzo como aquele, nem em duzentas encarnações. Pode respirar
aliviado, erga a cabeça e olhe para o seu capo!
Meu pai olha para mim, depois volta a encarar o pai de Selena.
— Precisa levar um recado para o DiMateo. Ele deve manter
residência na Sicília, nunca afastar a esposa das suas origens. Se um dia eu
solicitar sua presença para alguma coisa, dentro da lei, ele deve obedecer.
Se o filho deles porventura, um dia desejar ser um soldado podemos
arranjar. Lembre do nosso código. A omertà deve ser seguida. E se você
abençoar a união, tem minha benção.
Solto todo o ar preso nos pulmões. O pai de Selena também solta a
respiração presa, posso ouvir a um metro de distância.
O homem agarra e beija a mão do meu pai agradecendo com tanto
fervor que me compadeço. Depois se aproxima e faz a mesma coisa
comigo, beija as minhas mãos e mesmo segurando firme a postura vejo o
olhar marejado.
— Obrigado, signorina, obrigado.
Assim que o homem é dispensado por Don Lupo, levanto-me com
Giallo alerta se posicionando ao meu lado.
— Como estava a praia de Tropea? — Meu pai apaga o charuto no
cinzeiro de ouro.
Seus olhos analisam displicentes minhas reações. Enquanto meus
pelos da nuca se arrepiam.
— Está me espionando, Lutèro?
— Não posso mais permitir exceções, bambina. Sua identidade foi
revelada a famiglia hoje e imagino que saiba o que isso implica. Concedi o
indulto por você, não foi por Mário nem sua filha, foi apenas porque me
pediu. Faço tudo por você figlia, mas não me peça para escolher entre a
Cosa Nostra e qualquer outra opção. Sempre será a Cosa Nostra. Capisci?
(Entendeu)?
Pisco os olhos rapidamente com seu olhar intenso aguardando uma
resposta, apenas consigo acenar concordando, minha garganta seca me
impede de argumentar muito.
— Escolheu minha mãe.
— Mas eu ainda não era o Capo. — O olhar suaviza e mostra o
afeto. — Bem, teremos tempo para conversar o fim de semana. Tenho
certeza que vamos alinhar nossos planos conjuntos. Que tal um lanche antes
do jantar?
Ele segue comigo e me alcança o braço para engatar no dele. O
mesmo gesto que sempre fez quando estávamos juntos nos passeios. Mas
agora não é mais o Lutèro, meu amigo. Agora é Don Lupo, o Capo dei tutti
Capi, Don da Cosa Nostra, conduzindo orgulhosamente sua herdeira para
dentro do seu império.
CAPÍTULO 69
Não costumo rezar, mas desde que os doze homens desceram das
lanchas é só o que eu faço. Pelo menos Gabrielle não foi mais rude e frio
comigo. Quando sua lancha estacionou do lado da minha, ele mostrou um
pouco de consideração: — Quando o helicóptero chegar, você embarca,
pois vai levar seus filhos para casa, confie!
— Sim, eu confio.
Naquele momento, há vinte minutos, uma parcela de alívio aqueceu
meu peito brevemente. Mas agora, ouvindo os disparos ao longe, tô a ponto
de entrar na mata atrás deles. Será que meus filhos estão feridos? Ou estão
realmente no local? De repente ouço ao longe o som do helicóptero, é como
respirar ar puro em meio a fumaça tóxica. Gabe me prometeu que quando
eu embarcasse iria buscar meus filhos. Então ele está com eles!
Quando a aeronave pousa, desço aos saltos e corro até lá,
protegendo os olhos da areia que permeia o ar pelas hélices. Ao me
acomodar com o cinto, o piloto decola. A escuridão não deixa ver quase
nada, e é aterrorizante porque ele não foca as luzes para ter a visão do
terreno, parece que quer se manter despercebido.
Dois minutos depois um bip na cabine chama minha atenção, e a
aeronave se aproxima de um terreno com um telhado enorme. Olho para
baixo pela janela e o sangue congela nas veias. Rajadas, faíscas e fogo dos
disparos são como um show de luzes. Um turbilhão de disparos corta a
noite, e aos poucos o lado oeste silencia. O piloto faz uma manobra e
circula a casa, pousando a duzentos metros de distância em um ponto
relativamente limpo.
Apreensivo, suando e com a respiração aos tropeços solto o meu
cinto. Vejo os homens de guarda na porta com as armas mirando qualquer
movimentação. São os homens de Sasha e Gabe, os de Mário usam roupas
de combate. O peito aperta angustiado para saber alguma informação.
— Sabe alguma coisa? Eles estão bem? Vou descer!
— Fique na aeronave, senhor. Gabrielle mandou aguardar que está
vindo.
Subitamente Sasha vem correndo com Carmela nos braços
segurando a cabeça. A mulher murmura um agradecimento baixo assim que
ele a faz entrar no helicóptero.
— Meus filhos, Sasha?
— Seu irmão está com eles. Deu tudo certo!
Nem consigo expressar o que essas palavras provocam em mim.
Nada mais importa agora, do que segurá-los e protegê-los do mundo.
Ele gira correndo de volta para a escuridão de onde veio e vejo meu
irmão com os dois bebês conforto. Desço eufórico e agradeço por ter salvo
os meus tesouros.
O chorinho dos dois me faz rir dentro da aeronave.
— Papà está aqui — beijo suas testas conversando com eles. —
Logo vamos chegar em casa e ver sua mamma.
O choro continua, pego Luna no colo e embalo um pouco e vejo
Domenico chupar o dedinho se acalmando. Estão famintos, meus filhotes
estão bem. Estão a salvo! Assim que converso com eles um pouco mais, os
dois param de chorar. Voltar para casa com eles em segurança é a melhor
sensação que senti em toda a minha vida.
Agora dentro da sala do meu pai, após quarenta minutos voando, dr.
Bianco examina as crianças. Graças a Deus está tudo bem com elas.
Quando enviei mensagem para o celular de Jess, avisando que
estávamos chegando, perguntei de Selena e fui informado que minha
mulher não despertou, teve alguns resmungos em meio a um pesadelo e
Jessica a deixou descansar. Passaram-se um pouco mais de cinco horas
desde que apagou, agora próximo ao amanhecer, ela terá os filhos com ela.
— Pode me ajudar a trocá-los, Jess?
— Claro, irmão. Vamos prepará-los para que possam se alimentar da
mamãe.
— Preciso jogar uma água no corpo rapidinho. Esse colete e o
nervosismo me fez suar como um camelo no deserto.
Eu e Jess somos rápidos em trocar as fraldas e lavar os dois.
Enquanto Jess termina de secar os dedinhos e colocar as roupas em
Domenico, corro para a ducha.
Enquanto a água morna lava a tensão do meu corpo, nesse espaço
solitário, permito que as lágrimas escapem dos olhos. Choro desabafando
por um minuto inteiro, alívio, alegria, não sei do que exatamente, mas deixo
fluir. A tensão de todas essas horas castiga meu corpo dolorido, mas não há
como medir minha alegria neste momento.
Assim que me acalmo e termino o banho, seco meu corpo e coloco
uma calça leve. Já ouço o chorinho dos dois quando abro a porta de vidro.
Agradeço a Jess que prefere se retirar para aguardar o retorno de
Sasha e me aproximo com os bercinhos próximo a cama.
Selena ainda demora uns segundos para assimilar o que está
havendo. Desperta e coça os olhos assustada com o choro dos dois.
— Oh, Santo Dio! Tizi! ... — segura a boca surpresa e as mãos
estremecem — Oh Dio! As crianças? Você trouxe nossos filhos de volta?
Ela se aproxima em lágrimas e pega nosso menino no colo. Beija a
testa de Luna e me encara sorrindo e chorando de felicidade.
— Eles estão bem? Quando... Quando chegaram? Por que não me
acordou? Estão famintos pobrezinhos.
— Sì, è la tua mamma, mio principe — fala ela com voz doce para
nosso bebê, que ao ouvir sua voz, magicamente silencia.
— Chegamos há pouco, o médico examinou e estão perfeitos. Jess
me ajudou com as fraldas e tomei uma ducha rápida apenas para não sair
mais do lado de vocês.
Selena se acomoda sentada na cabeceira da cama e estende a mão
para mim com seu sorriso gigante e olhos brilhantes.
— Traga Luna, meu viking. Vou alimentar os dois ao mesmo tempo.
Ajudo e acomodo os bebês nos seios e fico em silêncio observando
minha família reunida. A mulher mais corajosa e linda do universo. E os
sons dos meus gulosinhos finalmente com a pessoa mais importante da vida
deles, sua mamma.
Admirando a cena, circulo a cama e me acomodo atrás de Selena,
como se fosse seu apoio, numa posição que ela junto aos nossos filhos
esteja entre minhas pernas e a faço se apoiar em meu peito. Hoje vi como é
fácil perder tudo. Numa fração de segundos nossa família poderia ser
destruída e se perdêssemos as crianças, nos perderíamos para sempre.
Portanto, a cada instante quero estar com eles daqui em diante. Serei o que
eles precisam, seu herói e sua rocha. Talvez, uma só vida seja pouco para
demonstrar o tanto de amor que tenho guardado por eles, mas vou me
esforçar para fazê-los sentir esse amor imenso.
Beijo o pescoço de mia ragazza e ela vira o rosto com seus cílios
úmidos: — Tô tão feliz, Tiziano, que não consigo nem falar — murmura
baixinho. — Obrigada, amo você, amo nossa família.
Seco suas lágrimas com beijos suaves.
— Eu que tenho que agradecer por ser você o maior motivo dos
meus instantes eternos de felicidade. Saiba que é seu o meu dormir, o meu
despertar e o meu viver. Eu amo vocês para sempre.
CAPÍTULO 77