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Boa leitura!
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Chegamos no último!
Saída é o terceiro livro da trilogia Peça-Chave, e deve ser lido
após os dois primeiros.
Saída é uma história com gatilhos. Menção de abuso e abandono
infantil, morte, violência e consumo de drogas e álcool são os mais
importantes de serem sinalizados. Sempre priorize a sua saúde mental
antes de ler.
Os protagonistas, além de seus milhares de gatilhos, possuem
alguns vícios linguísticos. Qualquer erro nas falas faz parte da
caracterização do personagem.
Também, palavras e frases em língua estrangeira têm a devida
tradução assim que aparecem pela primeira vez no texto, e estão em
itálico.
Para todos que são mais visuais, meu Instagram (@anniaelle) está
cheio de informações adicionais, vídeos e imagens que usei de
inspiração ao criar essa história.
Um beijo, e espero que goste do desfecho de Nico e Lana,
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Itália, 1995.
— O que você fez?
Engraçado como nunca pensamos que vamos morrer. A gente
não tem o costume de pensar na morte antes de muitos, muitos
anos vividos. Eu, pelo menos, não tinha. Nunca pensei.
Então, achava sim engraçado como, mesmo sem nunca ter
parado para pensar no meu fim, a morte tinha me achado, tão como
eu tinha encontrado quem usava seu nome. O tive tantas vezes
deitado ao meu lado, o ceifador personificado, e ainda assim, com
minha Morte, criei a vida que ouvia chorar no meu quarto.
Anna.
Abri a boca, sentindo meus músculos formigarem, até que
parei de senti-los por completo. Anna era tão pequena. Ela não
conseguiria sobreviver sozinha, e Armando nem ao menos a tinha
segurado. Ele não tinha, e eu nunca deveria tê-la largado e aberto a
porta da frente. Respirei uma última vez, focando no que havia
deixado cair. O que eu mastigava caiu da minha boca, minha
mandíbula perdendo a força para triturar, meu cérebro ainda
tentando juntar os pedaços para entender o que acontecia.
Os olhos foram a última parte minha da qual perdi o controle.
Fui para o chão, o peito queimando, querendo puxar um ar que não
vinha, e meus olhos percorriam o quarto, indo do vermelho para o
berço onde queria estar. Eu vi vermelho, para então acabar cara a
cara com o verde e marrom que havia me conquistado minutos
antes.
Quem vivia me chamando de ingênua era Barbara, e naquela
tarde, nunca me senti mais estúpida. Minha bebê chorava e
chorava, estando a metros de mim, e minha burrice me impedia de ir
até ela. De aninhá-la em meus braços. De beijá-lo outra vez. Eu
queria tanto sentir seus lábios uma última vez, o homem que era
parte do meu amor distante de mim por tempo demais.
— Sinto tanto, Carina. — Mas não parecia correto ela me pedir
perdão, assim como não parecia certo aquele ser o meu fim. Eu
ainda tinha tanto para viver! Era desesperador perceber que estava
perdendo todos os meus dias. Justo agora, justo quando sentia que
minha vida tinha começado de verdade.
Parecia estar flutuando. Eu estava sem respirar já havia tempo
demais, era por isso. Anna ainda chorava, mas os sons estavam
cada vez mais baixos, e pensei nas últimas palavras que escrevi no
caderno verde. Era uma verdade dolorosa, meu último pensamento
sendo os braços tatuados a segurando, antes de perder o resto da
minha força. Meus lábios levantaram mesmo comigo triste, mesmo
com lágrimas caindo dos meus olhos.
Armando cuidaria do nosso amor, e minhas últimas palavras
escritas se tornaram meias verdades: eu nunca mais pararia de
sorrir.
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Eu sabia que não era normal uma TPM durar um mês inteiro.
Engraçado como, de tudo que havia acontecido nas últimas vinte e
quatro horas, era aquilo que não saía da minha cabeça.
Dane-se o sangue que eu ainda lembrava manchando a neve,
para o inferno o homem que foi e o que ressurgiu dele. Nico estava
sorrindo, eu estava sorrindo, ambos provavelmente não acreditando
no que nossos lábios faziam, mesmo depois de termos armas
apontadas para a cabeça outra vez, em menos de seis meses.
Foi quando quis jogar a casa inteira na cabeça do mais velho
que o alarme disparou na minha mente. Eu fiquei tão nervosa, não
era normal. Não naquele nível, não a ponto de querer agredir
fisicamente alguém. Por mais nervosa que fosse, violência física só
entrava em cogitação quando minha vida dependia dela.
Então eu subi, e agradeci ter um estoque de testes de gravidez
na gaveta. E junto de uma boa vontade de fazer xixi, e um atraso
que eu só agora notava ser bem maior do que o último que me deu
falsas esperanças, eu positivei — positivar era um verbo? — três
testes. Três. Testes. Positivos.
— Parabéns, papai. — Era como tirar três notas dez, ou ao
menos era para Nickolay, uma expressão que parecia tanto
desacreditada quanto orgulhosa no seu rosto.
O italiano se levantou, indo até mim e cobrindo a boca com as
mãos ao olhar para um dos positivos, os olhos escuros alternando
do teste para os meus. Ele sorria, apesar da queimação que deveria
estar sentindo na orelha, mesmo sabendo que mais uma pessoa
havia o abandonado em vida. Nico sorria, uma das palmas tocando
minha barriga ainda reta, ele focando no que crescia ali. Nunca teve
tanto amor em um gesto, e eu sentia que finalmente tínhamos o que
nós dois sempre desejamos, por pior que fosse o tempo. Um filho,
com o homem que eu chamava de lar.
Então, assim que era sonhar de olhos abertos.
— É sério? — Os olhos ainda iam do resultado para minha
barriga, para então voltarem a buscar os meus. — É sério isso,
Alana?
Nem sequer havia considerado a possibilidade com ele fora.
Tendo feito um teste um dia após Nickolay sair de casa, ver o
negativo tinha sido o suficiente para meu cérebro descartar qualquer
possibilidade de sucesso vinda das nossas tentativas. Eu vivia
atrasada e não grávida, afinal. Os seios doloridos eram, com
certeza, culpa do inchaço. A vontade que eu tinha de gritar, para
depois chorar e então ter uma crise de riso era, sem dúvida, culpa
da bagunça que estava minha vida sem ele. Todas as maçãs que
devorava era puramente para irritá-lo nos meus pensamentos.
— Eu acho que sim? — Tinha certeza que sim, as outras duas
varetas descansando sobre a pia nos mostrando o mesmo
resultado. — Bem, eu fiz três testes, e os três deram positivo, então
a não ser que tenha algo de muito errado comigo, eu tô bem
grávida. — Muito, muito grávida.
Meus dedos acharam as bordas do sutiã por cima da camiseta,
notando que a peça, que antes eu lembrava ser larga, estava muito
mais justa.
— Pelo menos um mês grávida. — E fechei os olhos, me
deixando aproveitar por alguns segundos o toque carinhoso do meu
marido. Aquela barriga estaria gigante em alguns meses, e ao
mesmo tempo que já a queria enorme, desejava aproveitar cada
segundo a vendo crescer. — Isso seriam quatro semanas? Eu
nunca entendi como se conta…
Os lábios grossos me calaram, os braços tatuados me
puxando para ele. Nico tinha o melhor dos gostos e dos cheiros, e
do mesmo jeito que ele se modelava em mim, eu me agarrava ao
seu corpo, meus dedos amassando o tecido da sua camiseta, meus
olhos fechando e imaginando uma vida com nós três.
Só voltei a enxergá-lo minutos depois, quando sua boca deixou
a minha, e ele ainda vestia o maior dos sorrisos.
— Um filho.
— Ou filha. — E eu tive que rir com a memória que me veio. —
Ou, o que você disse mesmo da última vez? Os dois, se fez direito?
Acha que fez direitinho, italiano?
A risada dele se juntou à minha, Nickolay me pegando nos
braços como se eu não pesasse nada. Me perguntar se ele
conseguiria fazer o mesmo em alguns meses foi inevitável e fez
meu sorriso aumentar mais, a minha felicidade com certeza sendo
nauseante para quem via de fora.
Mas nem a parte das náuseas que eu talvez viesse a sentir
conseguia me fazer triste, nós dois indo parar na cama, eu
colocando o teste na mesa de cabeceira e me deitando em cima do
meu marido. Apoiando o rosto nas mãos, meus cotovelos em seu
peito, estudei o italiano. O homem, para mim, já era o melhor pai do
mundo, por mais que soubesse que Nickolay fosse me irritar e
discordar da minha certeza.
— Como consegue, Alana? — Era como se as últimas horas
não tivessem existido, e eu nos deixaria esquecê-las por mais
algumas. A mão grande tirava os fios que insistiam em cair no meu
rosto sempre que soltos, e eu via nossa alegria refletida em seus
olhos. — Como consegue melhorar até meu pior dia? Sou um
puttano[1] sortudo por te ter do meu lado.
E então, a preocupação que aquele dia — aquela noite — não
precisava.
— Amore mio[2], está bem? — Era eu quem deveria perguntar
aquilo. — Essa briga, Armando… — Entendia o motivo da
preocupação, e por um segundo, desejei saber se o excesso dela
que com certeza viria me deixaria louca nos próximos meses.
Era minha vez de calá-lo, e eu esperava que conseguisse
expressar com o beijo que lhe dava o quanto estava longe de
qualquer coisa ruim. Não iria pensar em nada, naquela noite, além
de nós três. Me afastei apenas o suficiente para conseguir falar,
meus dedos ainda roçando pela barba maior do que a que estava
acostumada, eu notando os detalhes de sua íris. Já imaginava
aquela cor no bebê que não sairia de nossos braços, o castanho
esverdeado sendo tudo que desejava ver no que chamávamos de
nosso.
Talvez eu realmente fosse parecida com Carina. Mas não
admitiria aquilo jamais para quem se atrevia a me chamar de filha.
— Nico — o coração dele batia contra o meu, e sabia que nós
dois não víamos a hora de começar a sentir o terceiro entre nós. —
Eu nunca estive melhor.
2001
O pouco que vi da Itália nos últimos dois dias era tão lindo
quanto o homem que dormia todas as noites ao meu lado. Italiano
era necessário de se aprender, e as aulas que eu começaria na
próxima semana tomariam uma boa parte da minha manhã.
Os negócios da máfia também pareciam tomar uma boa parte
do tempo de Nickolay, eu abrindo os olhos pela segunda vez no dia
e encontrando o lado dele da cama frio. Voltei a fechá-los e me
agarrei no edredom, o eterno cansaço que sentia desde que pisei no
país quase me fazendo dormir outra vez.
Foi o barulho da porta abrindo e fechando que me trouxe de
volta, e eu sabia quem se sentava no colchão, mesmo de olhos
fechados.
— Buon giorno[24], italiano — arrisquei assim que senti os
lábios grossos na minha testa, o cheiro cítrico dele me acordando
melhor do que o café que sentia falta de tomar.
— Buon giorno, dolcezza. — Abri os olhos quando o senti se
afastar, Nickolay de roupa social sendo tão delicioso quanto sem
nada. O puxei de volta para mim pela gola da camisa, minha boca
finalmente provando da dele, a língua do homem com gosto de
Listerine. — Vamos nos atrasar se eu não te tirar da cama.
Vê-lo vestido daquele jeito deixava meus hormônios piores que
no nosso começo.
— Eu já saí dela hoje — respondi, moldando meu corpo no
dele. — Até fui forçada a escovar os dentes.
O vi levantar as sobrancelhas, os beijos indo para minha
bochecha.
— Enjoada? — Fiz que sim, deixando as alças da camisola
caírem, do mesmo jeito que meus lábios baixavam até seu pescoço.
— Ouvi dizer que chá de gengibre ajuda. Dolcezza…
— Acho que prefiro outro remédio. — Fui para seu colo, eu
amando todas as calças sociais, e o quão bem conseguia senti-lo
duro mesmo por cima delas. — Vai deixar sua mulher doente?
A risada rouca fazia meu coração bater tão forte quanto seu
toque.
— Sou remédio, agora?
— O melhor — já desafivelava o cinto quando respondi, Nico
fazendo pouco esforço para me parar. As mãos tentaram segurar as
minhas, agarrando o lençol assim que suspirei ao conseguir a
fricção que precisava me esfregando no seu pau. — Você não é
muito bom em fingir que não me quer.
O jeito que as tatuadas me incentivaram ao me puxarem pelos
quadris apenas reforçavam o quanto eu abriria seu zíper.
— Corpo traidor — ele reclamou num suspiro, os lábios
colando no meu pescoço, eu sentindo seu gemido contra minha
pele. — Está pior que eu.
— Não vou negar — sussurrei, minha voz sumindo ao sentir o
calor da sua língua envolver um dos mamilos, Nickolay sugando
forte, me obrigando a agarrar os cabelos pretos.
— Não cuidei direito de ti esses dias, bella, eu sei — veio com
a boca me deixando, da minha, um suspiro frustrado. — Mas estão
nos esperando do lado de fora.
— Eu não ligo. — E joguei a camisola no chão, o sentindo
pulsar contra minha boceta.
— Nem tranquei a porta, Alana.
— Deixa eles abrirem. — O som do zíper abrindo naquele
momento era tão bom quanto o gemido contento que ouvia sair
dele.
— Quer ser pega novamente? — Eu gostava de quando
conseguia lê-lo bem, Nickolay nem mais tentando esconder sua
desistência e afastando minha calcinha. Os dedos apenas
provocaram, arrancando de mim os choros que ele amava ouvir. —
Gosta de mostrar para o mundo como meu pau te faz gozar?
— Se eu culpar os hormônios — comecei, dando meu melhor
olhar inocente. — Você deixa eu abaixar sua calça?
Sim, eu adorava chegar no limite do italiano. Enrolei as pernas
na sua cintura quando ele nos levou para o banheiro da suíte,
Nickolay não se importando em ser silencioso ao bater atrás de nós
a porta. Trancando-a, ele me encostava contra ela enquanto voltava
a sugar meu pescoço, eu me perguntando se o homem começaria a
me foder ali.
— Dio santo[25], Alana — Não começou, Nico me levando para
frente do espelho da pia, meu corpo lembrando bem demais de
todas as vezes que ele me fodeu contra um. — Depois eu que sou a
má influência.
Sorri, nos olhando pelo reflexo, Nickolay abaixando minha
calcinha antes de contornar meu corpo com as mãos tatuadas.
— Você gosta da má influência — provoquei com um meio
sorriso quando os olhos escuros acharam os meus pelo espelho, o
italiano me devolvendo a mesma expressão.
— Eu amo a má influência. — A barba roçou nas minhas
costas, eu vendo a calça social cair até o fim de suas coxas. — Não
acho que vão nos dar mais do que cinco minutos antes de entrarem
para me infernizar.
Agarrei as bordas da pia de mármore, meus olhos nunca
deixando os dele.
— Dá pra fazer muito em cinco minutos. — Finalmente o senti
sem nada entre nós, Nickolay me deixando sem fôlego ao
pressionar-se contra minhas nádegas. — Precisamos treinar,
lembra?
E quase não consegui falar quando senti a cabeça ser
pressionada onde até agora, apenas havia tido seus dedos. Minha
mão fechou ao redor do seu pau, a outra trazendo a dele para
minha boceta. Fechei os olhos, meu coração batendo rápido, eu me
perguntando se gozaria só com a antecipação de uma boa foda.
— Che, bella? — Dava para gozar só ouvindo aquela voz, as
mãos dele agarrando minha cintura quando me debrucei na
bancada. — O que quer?
— Vou ter que implorar outra vez? — Soltei um suspiro
satisfeito quando Nico deslizou para o meio das minhas pernas, eu
pressionando as coxas juntas.
— Não acho que consiga te dar isso agora, é impossível te
foder com calma tendo cinco minutos — a confissão veio com os
dedos apertando minha bunda, meus olhos o achando pelo reflexo
novamente antes de eu perguntar.
— Já fez isso antes? — Não esperei uma resposta antes de
continuar, ele entendendo que minha pergunta não era sobre sua
pressa. — Eu não.
O sorriso que apareceu nos lábios grossos me fez antecipar o
dia que ele tornaria aquele nosso desejo verdade.
— Casei com uma virgem, então? Eu faço ser especial,
dolcezza — a voz rouca sussurrou no meu ouvido, o italiano se
posicionando entre minhas pernas, mas desistindo no último
segundo.
— Dizem que não se deve deixar uma grávida com desejo —
reclamei, fazendo um bico antes de ser posta sentada no mármore,
Nico me deixando saber em silêncio que seu descontrole andava
fora de cogitação.
O fogo que havia no meu corpo aceitava qualquer gota de
água no momento.
— Quer dizer que além de maçãs, tem desejo de mim? —
Deixei minhas unhas arranharem a pele coberta de seus braços, ele
soltando um gemido rouco pelos lábios entreabertos, eu o copiando
ao ser penetrada numa velocidade tortuosamente lenta. — Cazzo
Alana, está pingando. — Arranhei mais forte quando o senti por
inteiro, sua boca colada no meu pescoço, a voz reverberando na
minha pele. — Vai ser sempre assim nos próximos meses? Um
olhar basta pra ficar pronta pro meu pau?
Soltei um suspiro satisfeito quando a mão com a caveira foi
para o meio das minhas pernas, Nico me esfregando no mesmo
ritmo que estocava.
— Não era sempre assim antes? — As palavras quase não
saíram, mas os gemidos que ele arrancava fácil demais ecoavam
pelo banheiro.
— Sshh, quieta — A palma grande tampou minha boca, o
italiano se calando em qualquer pedaço de mim que os lábios
conseguiam tocar. — Quieta Alana, vai se importar... — Era bom vê-
lo mal conseguindo falar, o ritmo mais rápido, Nickolay fazendo tudo
menos me ajudando a ficar em silêncio. — Vai se importar se nos
escutarem dessa vez. Estão na frente da porta.
— Você se importa? — perguntei com a mão ainda abafando
minha voz, ele parecendo desistir de me calar, eu voltando para
seus braços.
Gozar quieta com Nickolay era mais difícil do que não ficar
encharcada ao vê-lo de social, mas eu tentava diminuir os barulhos,
o lábio inferior entre meus dentes. Me sentia muito mais sensível
que o normal em nossas últimas vezes, cada roçar dele me
deixando em chamas.
— Me morde — ele sussurrou entre respirações rápidas, a
testa suada molhando meus cabelos, ele novamente se calando no
meu pescoço.
— Morder você? Onde? — Dedos foram para minha boca,
Nickolay nem mesmo precisando dar a ordem como sempre fazia
para eu chupá-los.
Não que isso estivesse adiantando muito para me fazer menos
barulhenta, os ecos do cômodo tornando até mesmo os gemidos
abafados altos demais. Não, nunca dava para ser quieta, minha
boceta pulsando, eu cravando ainda mais as unhas nele ao me
sentir tão perto.
— Morde, Alana! — ele mandou, os dentes cerrados, eu
obedecendo e congelando ao ser tomada forte pelo orgasmo.
Travava a mandíbula e gozava quietinha, do jeito que ele tinha
mandado eu fazer na primeira vez que me tocou num carro.
Diferente de mim, Nickolay nunca era quieto, ele me provando o
quanto gostava de ser marcado no sexo e gozando assim que
sentiu a mordida. Contraía forte ao redor do seu pau quando senti o
primeiro jato quente, o italiano se calando tarde demais. Com
certeza dava para ouvir o gemido por detrás das portas, com
certeza levaria mais de cinco minutos para eu ficar apresentável —
para ele voltar a ficar.
— Lorenzo vai me matar — ele deixou sair ao me olhar, e mais
sons encheram o ambiente, o italiano estocando uma última vez
antes de nos separar.
Voltei para o chão, meus pés tocando o tapete no instante em
que a camisa dele fez o mesmo.
— Estamos tão atrasados — a reclamação veio, mas não o via
se apressar muito ao me levar para baixo do chuveiro.
— Atrasados pra que?
Nico escolheu ignorar minha pergunta por mais dez minutos.
1997
— Don Morte.
Sol Garcia era uma cópia de seu irmão, Teo Garcia. Nenhum
dos nomes impunha qualquer respeito, os dois soando fracos no
meu meio. Ambos queriam me matar. Teo tinha mais chance quando
vivo.
— Garcia. — Sol, com certeza, queria fazer eu me juntar ao
gêmeo falecido. Ele só estava procurando um motivo, e eu
precisava me lembrar disso todos os segundos.
— Sozinho hoje? — Os olhos castanhos estreitaram quando
me sentei, o homem tão confortável quanto eu estava por dentro.
A morte de Teo foi a gota que me levou para o Brasil. De um
certo modo, tinha que agradecer Sol por ter mandado justo o irmão
inconsequente para o meu país: o morto me fez achar toda a minha
vida de volta.
— Acompanhado o suficiente. — Tinha motivos para mantê-la,
agora. — Mas me viro bem sozinho. Acho que ainda lembra o quão
bem.
— Bem demais. — O garçom serviu água de uma jarra, os
copos transparentes suando com o líquido gelado. Já era quase
maio, a primavera na Itália sendo quente o suficiente para o gelo ser
necessário. — Nem as balas têm coragem de te acertar direito.
Olhei ao nosso redor, o pátio aberto tirando um pouco do meu
conforto. Armando estava no meu campo de visão, tê-lo como meu
segurança sendo reconfortante e irritante ao mesmo tempo. Não
queria depender dele, mas confiar a vida a um assassino melhor do
que eu me acalmava.
— É um almoço de negócios, ou mais um de boas-vindas? —
Com certeza, acalmava Alana. — Minha agenda não está
exatamente livre hoje.
— Então considero uma honra a hora que vamos gastar. — A
mão limpa de tatuagens foi levantada, um atendente se
aproximando, eu inclinando a cabeça, sentindo o cheiro da comida
antes de ver o prato. — Aqui eles servem a melhor Paella da Sicília.
— A Paella daquele restaurante era uma merda, a quantidade que
nos era servida passando do suficiente para uma mesa cheia. —
Compartilhar o prato é uma tradição na sua Famiglia, estou certo?
Preferia o borcht da minha mulher.
— O que quer, Garcia? — Além de me matar, pensei.
O moreno brincou tempo demais com um marisco antes de
colocá-lo na boca, os olhos voltando a subir para os meus.
— Por que abriu os portos para os russos, mas não abre para
seu vizinho?
— Porque os russos não me tiram clientes. — Era mentira,
mas ninguém de fora tinha conhecimento daquela informação, e eu
faria de tudo para que não soubessem.
— Mas tiram meus. — Ele fez o que mastigava descer com a
água, eu não tendo coragem de colocar nada na boca. — E se eu
perco dinheiro por causa de italianos, acho justo vir buscar o que
perdi na Itália.
Odiava Paella, e odiava espanhóis. Teria que aturar os dois, e
abri o guardanapo branco no meu colo.
— Quer recomeçar a guerra que eu botei um ponto final? —
perguntei enquanto mastigava aquilo. Dava para ver na minha cara,
eu sabia, o quanto estava desgostando de toda a situação.
Bem, não precisava esconder meu desprazer.
— Você começou da primeira vez, talvez agora seja o meu
turno. — Sol me lembrou do quanto eu odiava receber ameaças,
minha boca secando com a comida ainda nela. — Quero saber o
que a irmandade russa tem, que nós espanhóis não temos. —
Alcancei a água: talvez fosse mais fácil dizer o que eles não tinham.
Juízo era mesmo algo para poucos. — O novo Pakhan é um
incompetente. O pai nunca quis que ele assumisse. Viveu até o
último minuto procurando o filho perdido, e isso deve ter feito o mais
velho surtar. — Era impossível não lembrar da única vez que vi
Nikolay Demidov. — Porque se achamos você louco, Morte, o novo
chefe é três vezes mais instável.
— É engraçado. — Eu ri: não tinha graça. — Chama o russo
de louco, mas aqui está tu, arriscando manter essa boca aberta
quando pode sair daqui sem a língua.
Se não tivesse vivido no meio, o gesto feito pela mão sem
tatuagens teria passado despercebido. Sol tinha tinta apenas nos
braços, tinha dois seguranças disfarçados atrás dele — eu tinha
quatro — e a mira de uma arma de precisão no meu peito.
Não enxergava mais Armando. Cazzo.
— Basta um sinal.
E eu, esperando que não houvesse sangue naquela quinta.
— O que quer que eu faça? Que eu comece uma guerra com
os russos? — Queria que minha água fosse vinho. — Acha que a
loucura de Alexei vai parar em mim? — Que fosse vinho o que
acabaria manchando meu guardanapo.
Nunca entendi o porquê da cor branca. Guardanapos escuros
devem ser muito mais fáceis de se manter num restaurante que
vende pratos feitos para manchar. A camisa preta que eu usava não
mancharia caso o tiro me acertasse, assim como continuaria preta
caso decidisse fazer Sol se juntar ao irmão.
Se a luz vermelha não saísse do meu peito, eu pintaria da
mesma cor muito mais do que o tecido branco que segurava. Garcia
também usava um colete à prova de balas? O que eu usava era o
suficiente para parar o tiro do rifle? Duvidava ser, mas não seria
meu primeiro tiro no peito.
— Você é um louco competente, Morte. — Também duvidava
da competência do homem sentado à minha frente, e eu contava os
segundos para acabar com sua confiança. — Loucos incompetentes
não sobrevivem as coisas que você sobreviveu.
— Sou difícil de matar. — E era sábio da parte de todos não
considerar comprovar aquilo.
Houve minutos de silêncio antes da boca voltar a abrir, eu
descobrindo ter achado uma voz mais irritante que a de Levina.
— Sabe, eu ouvi dizer que Alexei está noivo. Já era para o
homem estar casado, mas a mulher escapou. Ele virou uma piada
para muita gente. — Levantei as sobrancelhas, esperando uma
continuação. — A mulher está escondida aqui. — Daquilo, eu não
sabia. — Ou pelo menos, é o que dizem os boatos que correm. O
Pakhan tem homens para tudo, mas parece que a donna é mais
competente que todos eles juntos.
De repente, fazia muito mais sentido o interesse do russo no
país.
— E o que me interessa saber que o homem é um
incompetente?
— O que seus homens vão dizer quando souberem que o cara
que a Morte anda lambendo é um inútil? — Ameaças eram mesmo
uma das coisas que eu mais detestava.
Precisar reconhecer o quanto meu pai era um assassino
competente estava entre essas coisas. Eu não ouvi o tiro, mas sabia
que a luz vermelha tinha sumido porque quem a apontava não
estava mais nesse mundo. Fechei os olhos, esvaziando o copo
d’água antes de focar na camisa colorida ridícula que o espanhol
vestia.
Quase não dava para perceber a mira da arma de precisão no
meio daquela estampa pavorosa, mas eu a via brilhar, bem sobre o
coração. Sol ainda permanecia ignorante ao quão perto da morte
estava.
— Como gosta disso? — Limpei a boca com o guardanapo, o
jogando sobre a comida que me negava a terminar. — Tem gosto de
merda. — Demorou pouco para o homem entender o que estava
acontecendo. — Não está mais tão confiante agora, vero?
Demorou tão pouco quanto para vir uma resposta.
— Acha que eu te revelei minha mão inteira? — Sabia que
não, assim como tinha total confiança em quem dividia o mesmo
apelido que eu.
Aquilo sim me fazia querer rir: além de não conseguir odiá-lo
por ser um dos responsáveis por minha mulher ter nascido, confiava
no puttano quanto a me manter vivo. Eu confiava nele.
— Se eu morrer, morre também. — Saiu com toda a calma que
possuía, eu permanecendo sentado enquanto ouvia a cadeira de
Sol se arrastar no chão rústico do restaurante.
— Eu vou explodir todos os navios que tiverem mercadorias
russas. — A expressão era raivosa, eu duvidando que havia outro
atirador de elite em um dos telhados. Por mais que o cão espanhol
tivesse ameaçado, ele parecia apenas latir. — Estando no meu, ou
no seu território.
Só que descobrir se o animal mordia não estava nos meus
planos. Era detestável ter que deixá-lo ir embora respirando, e era
detestável como, em poucas semanas, eu me tornava outra vez
quem o amor de Alana tinha apagado.
Ela fazia bem menos birra do que imaginei que faria, Giovanna
grávida me dando um inferno que o comportamento de Alana não
chegava nem perto de criar. Eu também consideraria assassinato,
afinal, se me tirassem o café.
Claro que um assassino consideraria aquilo.
Abri os olhos com o sol batendo no rosto, a noite de ontem
tendo sido exaustiva, eu chegando tarde. Alana ter me esperado
sem nada embaixo dos lençóis me fazia lamentar a demora, a visão
do corpo nu contra o sol fazendo o meu responder bem demais.
— Buon giorno, bella — sussurrei, beijando o pescoço, a
bunda dela roçando sobre a minha cueca.
Cazzo, que delícia. Alana era tudo que eu precisava para
relaxar.
— Uhum. — Não era mútuo naquela manhã, minha mulher
sonolenta demais para deixar os olhos abertos. — Cinco minutos,
italiano. Só mais cinco.
Um banho gelado seria a melhor alternativa, Alana tendo
contado que passou a semana inteira cansada, eu querendo deixá-
la dormindo. Aquela noite seria tranquila, minha mente fazendo
planos para compensar todas as que cheguei mais tarde. Ela
sempre desfazia os bicos que a ausência lhe dava quando minha
cabeça parava no meio de suas pernas.
E com aquele pensamento, desci para a cozinha. Já passavam
das nove, mas ainda não havia ninguém ali — ou não havia mais
ninguém, todos já tendo saído. Abrindo a geladeira, me perguntei
quantas merdas iniciadas pelo velho eu conseguiria salvar.
Eu não sabia, antes de começar a investigar mais a fundo, que
Matarazzo estava sangrando dinheiro. Maus negócios, mercadorias
roubadas, gastos que deveriam ter sido cortados, e os zeros, que
antes eram muitos, ficavam cada vez mais depois da vírgula. Ele era
um incompetente, mas não sabia que a incompetência se estendia
para a única coisa boa que o homem havia deixado.
Menos dinheiro me tirava o cazzo do poder de muitas decisões
que poderiam ser não tomadas. Menos dinheiro me fazia sujar mais
as mãos.
Deveria vender logo a merda daquele avião. Do que me
adiantava um, preso à Itália? Deixei a água escorrer nas batatas:
deveria fazer ovos com bacon. Deveria passar a manhã correndo, a
vontade de me exercitar pequena demais nas últimas semanas.
— Cozinhando? — Não esperava vê-lo ali, o olhar que eu
ganhei curioso demais.
— Não tenho nada pela manhã, e cozinhar me relaxa —
escolhi dar uma resposta sincera, esperando que isso cansasse
quem não deveria mostrar nenhum interesse em mim.
Era irritante como, lá no fundo, aquele interesse era uma das
coisas que eu mais queria.
— Não sabia que cozinhava.
Também era uma das coisas que eu menos andava disposto a
aceitar.
— Nunca esteve presente para saber de muitas coisas —
respondi, o barulho da faca batendo na tábua enchendo o ambiente.
— Não parece muito relaxado. — Respirei fundo, me
acalmando ao pensar em como faria Alana manter acordada o
cazzo de toda a casa durante boa parte da noite. — Com certeza
deve haver algo melhor do que picar batatas.
Não estava funcionando.
— Minha mulher não quer foder, então picar batatas me basta
— retruquei irritado, no segundo em que Barbara entrava pela porta
dos fundos.
— Nico! — A mais velha era uma das duas que tinham
coragem de bater na minha cabeça, a segunda ainda presa nos
lençóis. — A boca!
— Desculpa, Barbara. — Ela também era uma das poucas
pessoas que escutavam tal palavra sair dos meus lábios.
— Você não fala foder para sua mulher! — Ah, se ela
soubesse da metade das coisas que Alana gostava de me ouvir
gemer.
— Eu não falei para minha mulher — respondi com um meio
sorriso, voltando as batatas.
— Bianca não quer entrar contigo na cozinha, menino. — Ah,
então era Bianca o nome da cozinheira que sempre se escondia
comigo perto. — Está me perturbando que o Don está fazendo o
trabalho que não deve, perguntando se chegou o dia da demissão.
Minha fama realmente era a melhor e pior naquela cidade.
Estava para responder que passaria toda a manhã ali quando
Levina brilhou na tela preta. Deveria salvar o contato como puttano
irritante.
— Pode falar para a garota vir fazer o almoço. — “Me encontre
AGORA” não parecia ser negociável, muito menos bom.
Armando me seguiu até a porta, e já escondia uma arma extra
embaixo do casaco quando o parei.
— Lorenzo está viajando, fique com Alana. — Meu pai nunca
foi muito bom em obedecer às ordens de um Don.
— Nickolay, não vai sozinho…
Mas eu tinha a melhor carta para ir só — não que eu quisesse.
— Ela que não vai ficar sozinha, Armando. — Eu nem queria ir,
algo me dizendo que o dia duraria um ano inteiro. — Sei me virar. —
Peguei as chaves de um dos carros, o encontro com o russo me
obrigando a ir sem mais nenhum segurança. — Estou vivo e cheio
de tatuagens para comprovar isso.
Não faria, eu sabia que não. Meu marido não tinha a mesma
opinião, e era por isso que eu tomava café e mergulhava no
Listerine, depois de escovar três vezes os dentes sempre que me
dava aquele pequeno prazer.
Não deu para fazer isso naquela sexta, Nickolay estando,
surpreendentemente, sentado no sofá da sala quando cheguei.
— Buonasera, italiano! — Talvez ele não fosse notar.
Mesmo se notasse, passar reto por quem andava tão ausente
estava fora de cogitação.
— Tomou café. — Meus lábios nos dele não ajudavam
exatamente meu caso, a língua que acariciava a minha me fazendo
culpada. — O que falamos sobre café?
— Falamos que a médica disse que posso tomar um pouco, se
eu quiser. — Mordisquei seu lábio inferior, Nico relaxando a
expressão sempre que ganhava meus carinhos. — Quer que sua
filha nasça com cara de café? — perguntei, beijando seu queixo, as
mãos tatuadas me mantendo no seu colo.
— Tome seus cafés comigo — veio numa voz séria, por mais
que sentisse meu italiano bem mais relaxado.
— Pra você me pedir pra experimentar, e tomar mais da
metade do meu cappuccino com cara de nojo? Eu passo. — Ignorei
os olhos escuros estreitando, decidindo que o melhor era me perder
outra vez nos lábios grossos.
Era pouco mais de um ano que tínhamos de convivência, o
suficiente para eu saber de muitas coisas de Nickolay. Eu sabia que
ele gostava quando minha mão fechava nos seus cabelos, assim
como tinha conhecimento de como sentar no seu colo bastava para
deixá-lo duro. Sempre funcionava, ainda mais quando não tínhamos
audiência. Mesmo cansado, aquele era nosso escape bom.
Respirei fundo e forcei mais um sorriso: eu estava imaginando
coisas.
— Bem, se o que agora tá me fazendo querer laranjas for
menina, e nascer com a beleza do pai mais a tentação do café —
ele me encarava curioso. — Que Deus te ajude a aguentar todos os
homens que vamos ter batendo na porta.
Sabia que aquela provocação o faria fechar a cara.
— Nenhum homem vai tocar na minha filha. — Eu rir não
ajudou.
Estava prestes a retrucar quando a mão tatuada coçou o nariz,
vermelho tingindo a caveira. Eu estava imaginando coisas, eu só
poderia estar.
— Um minuto, dolcezza. — Saí do seu colo, o vendo sumir
pela porta de um dos banheiros.
Queria estar imaginando coisas, mas eu não era idiota. Não
era idiota, e era irritante como Nickolay, às vezes, parecia achar o
contrário.
Ainda assim, não falei nada durante o jantar, aquela noite
sendo dividida apenas com ele, nós sozinhos numa sala gigante.
Meu banho foi sozinha, Nico em casa, mas demorando demais para
chegar no quarto, e então na cama.
— Nico, tá tudo bem? — Eu queria fazer outra pergunta, mas
achei mais sábio deixá-lo me falar. Ele sabia que podia me falar
tudo.
Por que Nico não falava?
O sobrenome Orlov e todos os seus integrantes voltaram à
minha cabeça, eu mesma respondendo que aquilo, com certeza, era
carma.
Minhas mãos apertavam os ombros largos, meus lábios outra
vez no corte que ainda curava na sua bochecha. O machucado era
parecido com o que um dia ganhei de Emília, eu sabendo que aquilo
havia sido feito por uma unha.
O italiano desviou do beijo como se meu toque machucasse.
— Estou exausto, Alana. — Ele estava irritado. — Hoje,
principalmente.
— E ontem também. — Doía quando ele me afastava, mas eu
tentava não me importar. — E anteontem. Noites atrás, você dormiu
no banheiro...
— Cazzo, não posso ficar cansado? — Arfei, surpresa com o
tom raivoso escolhido.
O rosto dele mostrou arrependimento no segundo que me
ouviu, as mãos tatuadas me puxando para seu peito.
— Desculpa — escutei a voz, abafada nos meus cabelos,
pedir. — Desculpa, Alana. Só estou com coisas demais na cabeça.
— Tá pegando meu mau humor? — tentei brincar, por mais
que o momento não tivesse graça. — Quer que eu te ajude a
relaxar? — perguntei, outra vez no seu colo como mais cedo, a
calça de pijama o deixando muito mais acessível.
Foi a primeira vez que Nico negou sexo, minha mão dentro da
cueca me rendendo apenas um suspiro frustrado. Eu não estava
imaginando coisas.
— Você tá realmente cansado. — Fechei os olhos, me
forçando a ficar calma. — Nico…
E como se ele soubesse o que eu perguntaria, o italiano me
deitou na cama, se aconchegando em mim.
— Fica.
1995
Era mais uma noite que chegava tarde, mais uma que limpava
a sujeira no banheiro da entrada. Fazer isso era bem mais
automático depois da quinta vez, naquela quarta, o vermelho vindo
apenas de ameaças.
O maiô amarelo mantinha minhas piores obrigações bem mais
coloridas, eu prometendo tirá-lo dois dias atrás, e nunca o fazendo.
Lavava as mãos me sentindo derrotado, pensando em quanto
tempo mais demoraria para Alana começar a desistir de mim.
Havia dias nos quais dormia no banheiro, madrugadas onde eu
resolvia que apagar no escritório fingindo trabalhar era o melhor a
ser feito. Eu ligava para Adrianno numa frequência maior que a
esperada, não me sentindo no direito de ter qualquer conforto nas
noites que chegava dopado.
Sempre me sentia no direito de tocá-la quando passava um dia
sóbrio, sem tirar nenhuma vida. Chutando meus sapatos, colocando
a arma sobre a cômoda, entrei ainda vestido embaixo do lençol e
abracei Alana por trás. Hoje não tinha nem morte nem coca no
sangue, eu não me sentindo um puttano fechando os olhos ao lado
dela e da barriga que crescia. Não esperava um suspiro, as mãos
indo até meus cabelos num carinho.
— Acordada? — perguntei contra a pele de seu pescoço,
minha língua provando seu gosto, framboesa sendo o melhor
perfume.
— Agora eu tô — veio numa voz preguiçosa, Alana me
arrancando um suspiro ao pressionar a bunda contra meu pau.
Fazia mais de um mês da primeira noite que precisei cheirar
para matar um homem. O poder que sentia ter depois das gramas
de pó branco era o suficiente para aguentar todos os pensamentos
que acompanhavam as vidas que tirava. O problema era o que
vinha depois dele.
Os sintomas físicos eram ruins o suficiente. Os emocionais
estavam perto de me derrubar, cada dia passado sem a droga
ficando mais difícil. Quando Emília morreu, havia alcançado a
cocaína após trancar Alana no quarto, precisando consumir meu
vício para poder passar pela noite. Usar mesmo sem necessidade
mostrava bem minha dependência.
Não a tocar nos dias de fraqueza era um castigo que impunha
a nós dois, Alana pagando novamente pelos meus erros. Ela não
merecia as vezes que me afastava, e eu a compensaria hoje: aquela
noite era dela.
Já fazia tanto tempo, vinte dias sendo uma eternidade. Minhas
mãos foram da barriga para seus seios, o tecido contra minha pele
estimulando bem minha imaginação. Alana me deixava duro em
segundos, e eu precisava esquecer de tudo que havia fora do nosso
quarto para continuar assim.
Minha mulher fazia um trabalho espetacular em ocupar todo
meu cérebro quando perto.
— Cansada? — sorri ao ouvi-la arfar, meus dedos torcendo os
bicos por cima do sutiã, Alana fazendo que não. — Sensível?
— De um jeito bom — ela respondeu numa voz preguiçosa,
virando a cabeça e me oferecendo seus lábios.
Deveria viver com Alana ao meu lado, os efeitos do toque da
minha mulher sendo melhores do que qualquer outra coisa que
poderia consumir. Devorei sua boca, parando de provocá-la e
abrindo minha calça. Soltei um suspiro satisfeito quando a mão
pequena abaixou minha cueca, a renda agora roçando no meu pau,
me fazendo puxar o lençol para baixo.
— Cazzo, Alana. — Aquilo que minha mulher vestia era uma
versão melhorada da primeira foto que recebi dela. Me obriguei a
parar e observar direito a lingerie, o conjunto rendado perfeito no
seu corpo. — Onde achou isso?
A virei de costas, a observando de cima, os seios enchendo
bem demais o sutiã.
— Fiz umas compras por aí. — Ela levantou os lábios de um
jeito que fazia eu querer mandar qualquer controle para o inferno e
me enterrar nela. — Gostou?
Vi o instante que o arrepio percorreu seu corpo, meu indicador
traçando as bordas da calcinha até eu deixá-lo deslizar para dentro.
Alana também o deixou entrar, e descobri-la tão molhada me fez,
pela primeira vez, mandar qualquer preliminar para o inferno.
Bastou afastar a calcinha. Sua boceta pulsou ao meu redor
quando a cabeça entrou, o tecido raspando no meu pau apenas me
estimulando mais. Minha mulher nunca era silenciosa, os sons
vindos de sua boca sempre maravilhosos, por mais que cada choro
me deixasse próximo demais de gozar.
— Isso responde sua pergunta? — foi minha vez de gemer ao
deslizar mais, e pela primeira vez, gostei de fechar os olhos e
lembrar das piores cenas da noite.
— Vamos acordar a casa inteira… — Ela nunca terminou de
falar, meu dedão achando seu clitóris a deixando entregue em
minhas mãos.
— No me frega un cazzo[44], eu tranquei a porta. — Expirei
forte ao me sentir por inteiro nela, ficar parado perto do impossível.
Alana não ficava, cada movimento circular a fazendo pulsar, meu
controle quase extinto. — Abre para mim, bella. — Mas ela fez o
oposto ao me ouvir, as mãos agarrando o lençol, um som rouco
saindo dos lábios finos.
Já fazia tempo demais, e eu não aguentaria um minuto com
minha mulher me apertando daquele jeito. Alana reclamou quando a
deixei, mas os olhos mel ficaram curiosos quando abri a gaveta da
mesa de cabeceira.
— Também fiz umas compras. Quer ver? — Os lábios
formaram um “O” como na tarde da piscina, ela entendendo o que
eu tinha nas mãos antes de colocá-la de quatro. — Isso vai ter que
sair. — Enganchei os dedos na renda, abaixando a calcinha, ela
torcendo o lençol com a bunda para cima sendo uma visão
deliciosa.
Escutei-a arfar quando o lubrificante tocou sua pele, o líquido
escorrendo pelas nádegas, o arrepio percorrendo outra vez todo o
corpo.
— Lembra do que disse quando eu voltei? — Os dedos
apertaram mais o lençol quando pressionei o plug de metal, a
deixando sentir o gelado a penetrando devagar. — Que, um dia,
seria meu pau aqui? — Ela fez que sim, pressionando-se contra o
brinquedo antes de eu puxá-la para o meu peito.
— Nico, por favor — escutei quando parei com a pressão,
Alana procurando meus lábios, o corpo procurando algum alívio. —
Não para agora...
— Eu não vou, mas precisa relaxar. Não morda — pedi,
beijando a curva da sua mandíbula. — Tocatti[45]— sussurrei no seu
ouvido, colocando uma das mãos pequenas no meio de suas
pernas. — Se toca, abre a boca e geme pra mim.
Nós realmente acordaríamos a casa inteira. Amava Alana e
todas as vezes que ela seguia minhas ordens, um gemido longo
enchendo o quarto quando voltei a pressionar o plug, o lubrificante o
ajudando a chegar até o final.
— Così bella — afirmei, a cabeça dela apoiada no meu peito,
minha mulher não se esforçando para ser silenciosa. Substituí a
mão dela pela minha, meu pau deslizando pela pele melada de
lubrificante. — É demais se eu te foder agora?
Alana sacudir a cabeça, me dizendo que não era, bastou, o
choro que saiu dos lábios abertos quando me enterrei nela sendo o
melhor dos estimulantes. As mãos voltaram a apoiar no lençol e eu
fechei meus olhos, minha boca copiando a dela com cada estocada.
— Cazzo, que boceta gostosa — deixei escapar, o cheiro dela
com o prazer que me dava me obrigando a ir mais rápido.
— Ah, D-deus…
— Meu nome, Alana — rosnei ao puxá-la de volta para mim,
agarrando os seios cobertos pela renda branca. — Não é Deus que
está te fodendo.
Ela obedeceu bem demais, tremendo no meu pau após mais
uma estocada e me fazendo aumentar o ritmo. Pulsei dentro dela,
jorrando em sua boceta com Alana ainda gozando, meus dentes
achando seu ombro e me deixando ouvir apenas meu nome vindo
da voz que mais amava.
Caí com ela de volta nos travesseiros, sorrindo com a mão que
tentou cobrir minha bochecha. Abri os olhos, ela parecendo estar
esperando aquilo para começar a falar, seu sorriso, diferente do
meu, parecendo triste.
— O que foi? — Franzi a testa, uma bola se formando na
garganta. — Te machuquei? — Ela fazer que não era um alívio.
Pena que alívios, na minha vida, duravam pouco demais.
— O que foi, Nico? — Ela respirou fundo antes de continuar. —
Eu te conheço bem demais pra não ver que tem algo errado.
Fugi dos seus olhos, e era minha vez de fazer que não com a
cabeça, o motivo agora sendo um longe do prazer de segundos
atrás.
— Só hoje. Só essa noite, Alana. — Achei seus lábios antes de
continuar. — Eu preciso disso.
Ela pareceu considerar o pedido por um momento antes de
decidir pelo sim, uma mão empurrando meu peito.
— Eu também preciso. — A confissão veio junto dela, Alana
indo para cima de mim. — Do meu jeito.
E assim, minha mulher me contava que não conseguia mais
ignorar minhas omissões.
— Do jeito que quiser.
1995
Acabar num ringue de boxe com quem foi meu pai fez um bom
trabalho em me surpreender. Era quase engraçado. Depois de tudo
que passei, algo tão simples para alguns foi justo o que conseguiu
me desestabilizar.
Todos os anos que passei aprendendo a lutar: krav maga,
judô, como socar e onde para levar um homem para baixo comigo.
Em todos os minutos, pensava no meu pai. Em todas as brigas
ganhas, desejava saber o quão orgulhoso ele estaria, se houvesse
algo além da vida que eu achava ele ter perdido.
Armando não parecia orgulhoso. Os olhos mel me encaravam
com irritação e desgosto cada vez que viam sangue em mim.
E aquilo doía. Agoniava tanto quanto não conseguir focar o
suficiente para derrubá-lo, e acabar no chão com ele me
imobilizando. Odiava boxe, e queria arrancar as luvas e lutar de
verdade.
— Por que estamos fazendo essa merda? — Já passavam das
onze quando perguntei, meu corpo exausto e pedindo por nicotina.
O short que eu usava parecia largo, as tatuagens novas coçavam.
— Era muito mais fácil me trancar num quarto e deixar eu me
debater em paz, como seu amigo fez.
Armando se levantou, me trazendo junto com ele. Eu tinha
perdido peso, tomaria a surra da minha vida caso isso fosse uma
luta real, e com certeza precisaria fazer retoques nos desenhos, eu
os arranhando sem me importar com as cascas que saíam ao coçar.
Mas o que mais me irritava era meu eterno monólogo. Eu
perguntava algo, e Armando me levava para o chão. E então me
levantava, e o silêncio reinava até minha próxima frase. Não ter
respostas me agoniava, e talvez a raiva que vinha dessa agonia foi
o que, depois de mais de dez derrubadas, conseguiu fazê-lo cair.
Será que se perguntasse qualquer coisa agora, viria alguma
resposta? Em cima dele, meu antebraço contra seu pescoço, eu
esquecia o acordo de permanecer no boxe e cortava sua respiração,
tentado a fazê-lo apagar.
Armando não me impedir foi o que me fez parar. Levantei
sozinho, jogando o capacete no chão, as luvas seguindo. Eu tinha
tantas perguntas, mas me virei para fazer justo a que não conseguia
mais calar.
— Por que a mandou embora? Por que escolheu me salvar
naquela tarde? — Eu não precisava falar que tarde era, e eu não
esperava ganhar uma resposta.
— Porque tu é meu filho!
Limpei o suor que escorria da testa, procurando por algo que
não existia nos bolsos do short.
— Não, Alana é sua filha! Ela é, e tu deixou bem claro por
anos…
— Alana nunca foi minha filha! — O homem gritar aquilo fez eu
finalmente me virar, o equipamento de Armando parando no chão
junto com o meu. — Eu nem a segurei antes de mandá-la para o
Brasil. Eu mal a vi.
Dei uma risada nervosa: não queria mais escutar nada. Não
queria empatizar com quem eu amava quando morto, e odiava
tendo agora vivo. O suor me incomodava, a dor de cabeça me
incomodava, Armando me incomodava.
Mas ele não parou de falar.
— Talvez devesse ter visto a bebê, me despedido. Fugido com
os três que me restaram, cumprido o plano que fiz com ela. — Ele
também sorria de um jeito amargo, os olhos não seguindo, as
informações, machucando.
O homem se encostou na rede do ringue, os braços
descansando no fio grosso, a expressão derrotada, por mais que
tivesse me vencido.
— Eu fodi com tudo, eu sei que fodi. Mas vê-la morta, no
chão... — Uma mão coçou os olhos, como se a lembrança
trouxesse as lágrimas que nós dois detestávamos derrubar. — Ela
morreu sorrindo. Era tão Carina, ela sempre estava sorrindo, mesmo
quando contava para mim sobre a vida fodida que tinha no Brasil. —
Puxei uma respiração, a imagem da mulher de olhos abertos vindo,
Carina deitada no chão. — Deveria ter ido embora quando ela foi,
mas eu jurava que ia conseguir. Eu não queria ir. Eu tentei tanto.
Eu me enganava serem apenas sonhos. Assombrações que
matavam alguém parecida demais com minha mulher. Nunca eram
apenas sonhos.
— Alana nunca foi minha filha. Ela foi um sonho lindo que tive
com a mulher que amei. E do qual eu precisei acordar quando sua
mãe se foi. Quando elas se foram.
— Quando eu sobrei. — Era injusto falar aquilo agora, mas
não me impedi.
Armando apenas sacudiu a cabeça, agarrando uma das
garrafas d’água e me jogando a outra.
— Melhor, moleque? — Esvaziamos as duas em segundos.
— Não. — Ele deveria imaginar que não. — Até quando vai me
fazer perder o tempo que poderia estar com ela?
— Até eu ver que não está procurando a porra da coca no seu
bolso. — Estava para responder quando notei onde estavam minhas
mãos. — Até a noite que dormir sem suar e se debater, até acordar
sem quase me levar para o chão. — Estralei o pescoço: quantos
Camels ainda tinham no maço? — Até essa ressaca de droga
passar. Pronto para continuar?
Não saí de casa por dias, mas Nickolay, sempre que fora do
telefone, não deixava o meu lado. Aquele era um pequeno conforto,
assim como me acalmava o ouvir bem menos nervoso nos dias que
seguiram.
Já era quase agosto, e doía pensar que mais um aniversário
dele passaria sem meu italiano ter o que tanto merecia: paz. A gente
nunca parecia alcançar aquilo, por mais que ele falasse outra e
outra vez que eu e Hope éramos sua paz inteira.
— Bom dia, cuore mio. — Eu ainda estava de olhos fechados
quando ouvi, meus lábios levantando automaticamente. — Hoje eu
vou levar as duas para passear. — Não era comigo que Nickolay
falava, a primeira parte do meu dia sendo o ouvir falar com minha
barriga. — Acha que sua mãe vai querer te dar sorvete, ou vai tentar
me comprar para tomar café?
— E se for sorvete de café? — Não aguentei mais ficar quieta,
e o achei dando um sorriso que tinha sumido por tempo demais.
Meu marido sorria com os olhos, mas ultimamente, apenas seus
lábios faziam aquilo.
— Acho que estou em minoria aqui. — Ele assumiu o
movimento que nós dois sentimos como um sim, e eu desejei saber
o que tinha mudado. — Também acho que preciso te dar um pouco
do normal, dolcezza.
— Impossível. — Me estiquei até seus lábios, o beijo que
roubei passando longe de qualquer comum. — Tudo que você me
dá é extraordinário. — Nada com Nico merecia o adjetivo comum.
Eu gostava quando meu marido revirava os olhos.
1993
Três horas. Eu estava com aquela maldita dor por três malditas
horas, e só tinha a mão com o rosário para apertar. Nunca quis tanto
ver uma caveira na vida, meus olhos sempre na porta, esperando.
Ele iria entrar.
Ele iria atender o telefone.
Nico estava vivo.
Alguém ia chegar com a merda da minha epidural.
— Carina demorou um dia inteiro — escutei com ele espiando
porta afora, tentando ficar confortável vestindo apenas o avental do
hospital na frente daquele homem.
Por mais que ele fosse o pai do meu marido, por mais que ele
fosse o meu pai biológico, o único que me deixava calma sem
roupas estava em algum lugar que ninguém sabia. Nickolay foi
embora sabe-se lá para onde, eu estava sentindo a maior dor da
minha vida, e me sobrou Armando.
— Ao menos, foi o que Lorenzo disse. Eu não fiquei com ela,
eu estava… — Longe, ele estava no aniversário de Nico, e aqui
estava eu, seguindo demais o destino da minha mãe.
Tirando o fato de que eu não sabia onde meu marido estava.
Por que não chamei por Barbara?
— Não é muito animador ouvir isso! — E eu agarrei o encosto
da cadeira, querendo chorar enquanto mais uma contração me
dobrava.
— Alana, não acha melhor…
— Não, eu não acho! — O melhor estava muito longe, e eu
senti que iria vomitar.
— Cama, agora. — Ele não me deixou responder antes de me
levar, e nem tentei contrariá-lo. A cada segundo que passava, eu
parecia ser mais dominada pela derrota.
Deveria ter desconfiado quando comecei a pensar que minha
vida estava perfeita demais. Deveria ter desconfiado, e agora, eu
chorava sem ele no hospital.
— Onde ele tá, Armando? — Era desnecessário responder:
ninguém sabia onde Nico estava. Ninguém sabia, e eu não
conseguia entender, por mais que tentasse, porque ele foi embora
sabendo que Hope estava para vir. Por que ele foi embora sem nem
ver a filha?
Ele tinha mesmo ido embora?
Eu só conseguia pensar no pior. Se ele decidiu não ficar mais,
era porque nunca mais voltaria.
E respirar outra vez era difícil, eu puxando um ar que não
vinha, e isso, definitivamente, não era uma cólica menstrual piorada.
Não, isso era uma cólica do inferno vezes um milhão, e era um
demônio que queria sair de mim, porque tudo por dentro parecia
estar pegando fogo.
— Ele disse que ficaria do meu lado — choraminguei,
enterrando o rosto no travesseiro. — Ele disse que ficaria do meu
lado e me contaria piadas ruins!
Mentiroso do caralho.
— Quer uma bem ruim? É a pior que eu tenho. — Era tão
irritante Armando ter que servir.
— É alguma bem ruim de máfia? — Era triste, e doído, e
deixava um gosto amargo na boca, num dia que queria uma dor
doce.
Fiz que sim quando veio uma resposta positiva dele.
— Aproveite, porque não vou contar mais como essas depois
que a bambina sair. — Ao menos, a fala havia me arrancado um
sorriso.
Quando ela sair.
Quando ela sair, sem o pai ao lado, e eu não deveria mais
pensar naquilo.
— O Don chama seu braço direito para fazer um serviço.
Entrega um pote para ele e fala: vá bater uma no banheiro, encha o
pote e traga para eu ver.
— Esse foi o pior começo que eu já ouvi! — reclamei, a cara
ainda no travesseiro, o cheiro de limpeza incômodo, eu querendo
laranja e nicotina.
— Eu disse que era ruim, como gosta. — Revirei os olhos. —
O braço direito não fazia ideia do porquê daquilo, mas ninguém
desobedece ao Don. Então ele vai, bate uma, e traz o pote de volta.
O Don diz: ótimo, agora faça outra vez. E dá para o braço direito um
pote limpo. Então o cara vai lá, bate uma, e traz o pote com metade
do que tinha no primeiro.
— Nossa, você guardou essa pro melhor momento, hein? —
Mas eu sorria.
— O Don vê o pote, balança a cabeça: muito bom, filho, agora
faça só mais uma vez. E dá um pote novo ao homem. Ele vai, bate
mais uma e volta com o pote quase vazio. — Olhei para ele quando
a pausa foi maior, um meio sorriso parecido demais com o do meu
marido fazendo meu peito apertar. — Então o Don finalmente fala:
ok Pietro, quero que leve minha filha para o aeroporto.
Não entender a piada fez um ótimo trabalho em me tirar uma
parte da dor.
— E porque diabos ele tinha que… — Parei no meio da frase,
compreendendo que o homem fictício não teria mais forças para
ficar duro depois de gozar três vezes. — Pra não foder com a filha
do velho. Essa foi a piada mais péssima que eu já ouvi!
Eu deveria ser apaixonada por piadas ruins, porque em um
momento as lágrimas que queriam sair eram de dor. Agora, elas
escorriam pelo meu rosto comigo dando risada. Filho da mãe, eu
não queria rir com ele, mas o homem estava fazendo um bom
trabalho em ser o pior contador de piadas do mundo.
Filho da mãe, e a próxima contração parecia querer quebrar
meu quadril, levando toda a graça embora.
— Acha um médico! — Não era possível sobreviver àquela
merda, não era! — Acha a porra da minha epidural, pelo amor de
Deus!
— A doutora disse que…
— ACHA ELA AGORA! — Se eu não estivesse morrendo, teria
sido engraçado vê-lo sair tão rápido do quarto.
Eu estava suando, dava para sentir os fios grudando na minha
testa, as gotas escorrendo pelo meu rosto. Eu estava suando, e
nem mesmo tinha começado a fazer força. Parecia que tinha uma
brasa queimando dentro de mim, cada vez mais quente, e eu só
queria que o italiano estivesse aqui do meu lado. Porque, depois da
última contração, era óbvio: a única pessoa que podia pensar em
matá-lo era eu. Só eu tinha direito de acabar com a vida do filho da
mãe, e eu não aguentava mais nem respirar.
Merda, aquilo foi um erro, foi um erro e eu não queria que
Hope saísse nunca da minha barriga. Se eu negociasse com ela,
será que ela ficaria para sempre? Eu não ia conseguir fazer aquilo
sozinha, eu não ia, e isso tudo estava sendo o maior erro da minha
vida!
Não dava mais para pensar com aquela dor, mas graças à
Deus pelas pessoas que entraram com Armando, meu sorriso
ficando tão grande que eu conseguia senti-lo.
Os sorrisos nunca se mantinham por muito tempo.
— Parece que chegamos tarde demais para a epidural, você
dilatou rápido, mamãe! — O quê?
— Isso é brincadeira, não é? — Eu queria não entender
italiano agora. — Fala que é brincadeira!
A ignorância poderia sim ser a maior das bênçãos. Saber que
eu ia passar por um parto que ia dilacerar o meu corpo e a minha
alma sem a porra de uma anestesia me fazia querer chorar. Eu já
queria chorar agora, e nem mesmo havia começado.
Só que havia começado.
— Acha que está pronta para começar a empurrar?
E no meio de toda a dor que eu sentia, vinha ainda um banho
de água fria, que em nada ajudava a apagar o incêndio que parecia
ter dentro de mim. Como eu cancelava aquilo?
Agarrar a mão de Armando e cravar as unhas nela parecia um
bom começo.
— Acha o meu marido! — Eu não queria me posicionar na
cama, eu não queria fazer força, eu não queria a mão errada. —
Acha o meu marido! Acha ele, por favor, por favor…
Eu não podia nem mais morrer em paz, mas por que eles não
me matavam logo? Nunca mais teria nenhum filho, Hope não teria
irmãos, e meu cérebro masoquista me torturou outra vez: ela, talvez,
nem tivesse mais um pai.
— Precisa empurrar! — Eu precisava de Nickolay! — Precisa
fazer força, Alana!
— Onde ele tá? — Eu também precisava de um analgésico.
Precisava apagar. Precisava de algo que não fosse dor. — Eu não
consigo fazer isso sem ele, eu não consigo…
— Consegue sim. Sabe por que eu sei disso? — Eu só sabia
fazer que não. — Porque Nickolay me disse que tu é a mulher mais
corajosa que ele já conheceu na vida. E Nico não mente. Nico
nunca mentiu, mesmo quando suas verdades lhe rendiam
problemas. Eu acredito no moleque. — E outra vez, as lágrimas se
misturaram com o suor, eu sentindo o salgado na minha boca. — E
acredito que consegue, e acredito que Nico vai chegar. Mas agora, a
sua filha precisa que faça força, ok? — E eu puxei o ar, e fiz que
sim.
E de repente, não tinha mais nada para ocupar meu cérebro:
era tudo dor. Minha mãe — Astrid — disse, anos atrás quando
perguntei, que era como se o mundo inteiro desaparecesse, só
restando você e a dor. Ela não mentiu sobre aquilo, e eu mal
escutava alguém me encorajando a fazer força. Eu estava fazendo
força, e também estava quase desmaiando — como eu ainda não
tinha desmaiado de dor? Quem conseguia lembrar de qualquer
exercício de respiração numa hora dessas?
Pareceu uma eternidade até o choro finalmente vir, minhas
costas voltando para o colchão: eu consegui. Eu consegui, e por um
momento, eu só queria chorar, fechando os olhos e imaginando que
a mão que tirava o suor do meu rosto era a dele.
Mas a fantasia não durou muito, as írises que via, iguais às
minhas. Eu conseguia. Nico disse que eu conseguia, e a confiança
dele em mim teria que bastar agora. Teria que bastar, porque eu
precisava bastar para ela.
— Pronta para conhecer sua filha?
Um dia, eu li que as crianças pareciam mais com os pais
quando nasciam, e isso era um traço evolutivo. Os bebês tinham
que parecer com os pais, num passado bem distante, para
continuarem vivos. Tendo minha filha nos braços pela primeira vez,
descobri que aquilo era verdade conosco. Hope não tinha só os
olhos de Nico: ela era Nickolay inteira. Dos cabelos pretos ao jeito
que fazia manha até minhas mãos estarem nela, nossa menina
tinha tudo do pai.
A segurei, nós duas nos conhecendo enquanto eu aprendia
que o que sentia com ela na minha barriga não era metade do amor
que sentia agora. Era desesperador e maravilhoso, e eu descobri
em segundos que, por mais que não tivesse Nickolay ao meu lado,
eu ia viver. Eu ia viver por ele, mas principalmente, por ela.
Respirei fundo, Hope pegando meu peito, os olhos grandes e
escuros nos meus. Ela mamava me encarando, e eu estava
apaixonada por aquele nosso conjunto perfeito. Ela era perfeita, e
eu, no final, era mais parecida com minha mãe do que imaginava:
poderia nunca mais ter o meu italiano, mas seus olhos seriam meu
amor para sempre.
E aquilo bastaria.
ㅤ
A última vez que havia passado um dia inteiro num quarto, não
havia sido por um bom motivo. O que me fazia levantar vez ou outra
da cama agora era o melhor motivo que existia no mundo.
Nickolay parecia concordar, e levantava mais vezes que eu
para trazer Hope até meus braços.
Deixamos o hospital dois dias atrás, e eu o peguei duas vezes
conversando com Armando. Eu fingia não ver e sorria escondido, e
se ele visse, afirmaria que o motivo da pequena felicidade estava
nos meus braços — Hope quase não saía deles, afinal. Quem
mamava pela décima vez no dia gostava do colo do pai tanto quanto
amava meu peito, mas chorava cada vez que o avô chegava perto.
Bem, ela fazia isso como o avô mal-humorado, como o
apelidei, Lorenzo sendo o vovô legal. Me perguntei algumas vezes
se deveria incluir Matteo na família postiça, assim como desejei
saber se Hope faria manha no colo do meu pai.
Mas não iria pensar na minha família brasileira, sempre
forçando tudo que me deixava triste para longe. Minha menina
sentia demais quando eu não estava bem, e eu ficava feliz com
aquele nosso laço.
A mãe triste também tinha menos leite, e minha bebê, que
finalmente pegava no sono nos meus braços, era uma fominha
eterna. A colocava de volta no berço quando, de canto de olho, vi
quem abria a porta encostada.
— Se entrar aqui com esse café, eu te mato, italiano. — Nico
sabiamente virou o líquido e abandonou a xícara do lado de fora
antes de vir para nosso lado.
O quarto de Hope era amarelo, lindo, e talvez nunca fosse
usado. Ou ao menos naquele primeiro ano, fosse ignorado por nós.
O berço tinha sido movido para o nosso assim que chegamos,
nossa filha passando todos os momentos, desde que veio ao
mundo, tendo companhia. Tinha certeza de que estava a deixando
mal-acostumada, e ao mesmo tempo, não conseguia deixá-la só.
Depois lidaria com aquele problema. Agora, tinha outro que
ocupava muito mais a minha mente.
— Ainda vai querer me matar se contar que achei seu doce de
leite? — A informação conseguiu colocar um sorriso no meu rosto.
— Acho que posso te deixar vivo até o pote acabar. — E
aproveitei um segundo dos lábios grossos nos meus, o gosto de
cafeína os deixando ainda melhores, antes de cobrir a fominha. —
Não deveria comer café como anda fazendo.
— Se eu não comer café, a fominha vai gritar durante a noite e
eu mal vou ouvir. — Revirei os olhos.
— Mas eu vou!
— E eu te disse que te daria todo o descanso que precisasse,
dolcezza. — Precisei cobrir a boca para abafar o susto quando ele
me pegou no colo sem aviso, levando nós dois para a cama. — Já
te dei bastante preocupação. Deixa eu te dar calma.
Calma tendo Nickolay na cama era impossível, e, apesar do
nosso cansaço, achava bom manter aquilo. Meu coração batia
rápido pela primeira vez desde que segurei nossa filha, meus olhos
fixados nos escuros do italiano.
— Acho que estou pronta pra saber o que aconteceu, Nico.
1989
A primeira coisa que meu cérebro processou foi que ela estava
mais velha.
Claro que estaria, haviam passado vinte e cinco anos desde a
última vez que a vi. Vinte e cinco anos, e devem ter se passado pelo
menos vinte e cinco segundos. Alana pegou Hope. Armando
apertou mais o gatilho. Eu falei.
— Mãe?
A certeza saiu como uma pergunta. Claro que era minha mãe.
Em vinte e cinco anos, nunca vi olhos como os dela. Heterocromia
não era algo comum, o castanho e o verde claro sendo a floresta
que eu tinha amado ver todas as manhãs de uma parte da minha
infância. E eu via outra vez, agora.
Eu não queria ver. Porque vê-la viva doía mais do que
descobrir a morte falsa de meu pai, e só conseguia lembrar da foto
que carregava na minha carteira. Nós três e o mar, pelos olhos de
Armando, a imagem perto da de Alana e Nicolas, perto da família
que ela não tinha o direito de estar.
Hope fungava atrás de mim, ninguém além dela tendo
coragem de fazer qualquer som. Katerina estava de joelhos, a arma
pressionada na nuca, e por um segundo, desejei que a pistola
disparasse. Alana, e sua mania de ficar insistindo que eu era bom.
O que desejava agora passava longe de qualquer bondade.
Ou talvez passasse perto. A raiva que via nos olhos do mais
velho fazia a morte rápida ser uma boa escolha.
— Não atira, Armando. — Vi os olhos coloridos suavizarem,
entendendo de forma errada minhas palavras. — Deixa ela explicar.
Pode fazer o que quiser depois, eu só quero saber o porquê.
O que enxergava como verdade fazia meu cérebro entrar em
pane, e me forcei a não olhar para o teto. Katerina estar viva
implicava em mais coisas do que eu estava pronto para pensar,
minha vida, agora, uma mentira completa.
Armando sabia. Lorenzo sabia. Victor também sabia? Ele não
parecia saber que nossa mãe permanecia viva, e lembrando de
minutos atrás, entendi que foi ela quem deu a corrente para minha
mulher.
Alana sabia?
— Conhece essa mulher? — Me senti a pior pessoa ao
perguntar aquilo numa voz grosseira.
Não foi Alana quem respondeu.
— Ela não sabe quem eu sou, Kolya. — A voz era igual à que
eu me lembrava, o detalhe secando a minha garganta. — Eu só a vi
uma vez. — Mas era mentira: Alana poderia lembrar de apenas uma
vez, só que Katerina tinha visto minha mulher pelo menos duas.
E o choro da cena que voltava para minha cabeça se igualava
com o que vinha da minha filha.
Armando não foi gentil quando a mulher tentou se mexer, e em
segundos, ela estava com a cara pressionada no chão, o barulho
repentino fazendo Hope chorar ainda mais alto.
Semanas atrás, eu as trancaria num quarto. Agora, minha
família não sairia da minha vista, e eu as mantive atrás de mim.
— Eu não vou machucar ninguém, filho…
— Ele não é seu filho! — Se algum dia achei ter visto meu pai
bravo, o homem de agora mostrava que a braveza do passado era
uma suave.
— E ele é seu?
Por um instante, achei que ele torceria o pescoço que
segurava. Realizar que eu não o impediria era assustador. Alana
falaria que eu tinha direito de estar magoado, enquanto eu sabia
que havia sim uma parte dentro do meu peito que só queria que
tudo queimasse, por mais que a mantivesse no fundo.
Eu deveria querer abraçá-la.
— Eu disse que, se algum dia conseguisse fugir, era para
nunca mais voltar! — Armando rosnou, e me lembrei de todas as
vezes em que os dois se comportaram como um casal normal na
minha frente. Era um contraste gritante. — Que cazzo está fazendo
aqui, assassina?
— Armando, para! — era Alana quem se metia, a voz
assustada, todo o estresse que eu não queria que minha mulher
vivesse a alcançando. — Eu também quero saber do porquê, deixa
ela contar antes de fazer merda!
Minha risada não tinha graça, e chamou a atenção de todos.
— Fui eu, Alana. — Ela ainda não sabia do detalhe, eu o tendo
finalmente lembrado minutos antes de descobrir que era pai. Um
bebê realmente nos deixava exaustos, porque não tinha mais forças
para esconder, a informação saindo como algo corriqueiro. —
Lembra que havia maçãs, não lembra? Eu dei uma para sua mãe.
Fui eu, não foi ela. Então…
O rosto preocupado se transformou, e me lembrei com atraso
do que geralmente seguia aquela expressão.
— Segura a sua filha. — Hope parou nos meus braços antes
que eu tivesse reação, meu cérebro lembrando de como minha
mulher reagiu durante as primeiras conversas com o pai biológico,
ainda no Canadá.
Alana era realmente parecida com o pai: ela tinha os mesmos
olhos, a mesma cor de cabelo. Ela também tinha o mesmo
temperamento quando brava.
— Você deixou veneno pra uma criança pegar? Que tipo de
mãe é VOCÊ? — Armando deixava Katerina livre no próximo
segundo, nos seus braços agora uma mulher que aparentava ser
muito mais perigosa. — Você sabe de tudo que seu filho já se
culpa? — Muito mais, e ela tentava, com todas as forças que tinha,
alcançar quem meu cérebro insistia em chamar de mãe. — Sabe
como a vida dele foi ruim por causa de um descuido estúpido?
— Alana, é maluca? — Quase ri: o homem, com certeza, ainda
não havia entendido a filha e suas explosões de raiva. — O que
acha que está fazendo?
— Defendendo o meu marido, já que ninguém aqui parece
fazer isso!
Não sentia que precisava de defesa, mas precisava admitir que
minha mulher era dona das melhores respostas. Ela, também, não
me culpava, e depois daquilo, os motivos de Katerina perdiam cada
vez mais a importância para mim.
— O Nico já se dói com tanta coisa, e agora vai ter que se
machucar com mais isso! Vocês dois deveriam ou ter continuado
fantasmas, ou ter se esforçado mais pra gente continuar na
ignorância!
Ela também chorava, e minha mulher chorando era tão ruim
quanto o embrulho que berrava nos meus braços. As duas pareciam
arrancar partes de mim com suas lágrimas.
As duas eram as únicas que me importavam.
— Dolcezza, vem. Não vale a pena — copiei as palavras que
disse quando era Armando no lugar da mulher mais velha, já me
perguntando o que faria se ela decidisse continuar brigando.
Alana surpreendeu a nós dois, parando de lutar contra o aperto
do pai e voltando para o meu lado, a filha de volta em seus braços,
os meus às mantendo perto. Minha calma tinha cheiro de
framboesa, e eu as protegeria do mundo, para sempre.
A mulher mais velha ainda massageava o pescoço quando se
levantou, pigarreando antes de voltar a me olhar. Era triste como eu
não queria aqueles olhos em mim.
— Não sou só eu quem precisa de respostas, mãe. —
Pronunciar a palavra deixava um gosto amargo na boca.
Katerina respirou fundo, Hope gritou mais alto, e eu considerei
duas vezes deixar a mulher mais velha sozinha com Armando. Ele
poderia me contar toda a verdade depois. Poderia até mentir, e
naquele instante, eu realmente não me importava. O que era uma
mentira a mais?
Ela ter esperado meus olhos estarem em seus coloridos para
começar a falar foi irritante, e gastou um pouco mais da minha
paciência.
— As maçãs eram para os homens da mansão. Todos tinham
esse vício ridículo nessa fruta sem graça. Matarazzo sempre comia
uma depois do almoço, e se ele morresse, ninguém viria atrás de
nós. De Catarina e eu. — E então, os olhos foram para Armando. —
Eu sabia que vocês fugiriam. Naquela manhã, meu plano era deixar
as maçãs, pegar Catarina e sumir. Mas Kolya estava com febre, e a
escola o mandou de volta para casa. Eu o deixaria com Carina, e
sumiria.
— Só que eu peguei uma maçã, e fodi com todo o plano. — E
Hope chorava, do mesmo jeito que Alana havia gritado assim que o
barulho da mulher caindo a assustou, anos atrás.
Uma maçã. Um detalhe tão pequeno, que mudou a vida de
todos naquele quarto. Uma maçã que, ao olhar para minha filha, eu
não conseguia mais me sentir mal por ter pegado.
— E Catarina? — Foi Armando quem quebrou o silêncio. —
Ela te amava!
— Eu também a amava! — A voz tremeu, os coloridos
encarando o chão. — Mas a mulher desistiu depois de saber de
tudo, e eu decidi que amava mais a minha liberdade. — Katerina
não deveria ter direito de chorar, mas as lágrimas caíam. — Quando
vi, ela estava dando um pedaço para a filha…
— Me fez segurar Stella sabendo que a criança ia morrer? — a
interrompi, meu cérebro se negando a acreditar naquela parte. —
Eu achei que tinha matado a menina!
— E eu achei que ela fosse viver! Eu achei que tudo daria
certo, que fugiria com Catarina e finalmente poderia respirar! E de
repente, Carina estava morta, você estava na praia comigo, e o
homem que nos tiraria de lá dizia que não levaria o filho do russo!
Então eu coloquei Stella no seu colo e falei para não olhar mais para
mim…
— Porque ia me deixar!
— Porque eu precisava atirar! Porque eu não queria que visse
que sua mãe era uma assassina! — Ela escondeu o rosto nas
mãos, os ombros tremendo, e eu preferia que Katerina tivesse
ficado morta. Era egoísmo meu preferir que a mulher tivesse
morrido? — Eu achei que fosse dar certo, e mesmo quando estava
dando tudo errado, eu não queria te deixar na praia! Mas depois de
seis anos presa na Itália, ter a chance de sair dali sozinha…
— Presa na Itália — repeti amargo, as reais palavras na minha
mente: presa com os filhos. — Se não queria viver presa, talvez não
devesse ter me tido. — Sabia que minha fala era injusta, as
mulheres dos chefes nunca tendo qualquer escolha sobre dar ou
não herdeiros.
Katerina levantou o rosto, parecendo considerar por alguns
instantes antes de decidir falar a última coisa que faltava eu saber.
Aquela última peça, eu não estava esperando.
— Eu nunca tive você, Nickolay. Eu nunca tive ninguém. — O
rosto molhado foi limpo na manga do casaco, a mulher fungando
antes de procurar meus olhos. — Você só se lembra de mim, mas
eu não sou a sua mãe.
— Che?
Ele não é seu filho! Mais uma surpresa vinha, e meu cérebro
exausto queria rir.
— Katerina Orlov morreu na Rússia, tentando fugir com vocês.
Foi rápido, um tiro na cabeça. Quando ela caiu, deveria tê-los
deixado na neve, mas eu não consegui. Armando nos achou, e
concordou com o que eu pedi: ganharia minha liberdade, e nenhum
de nós três jamais pisaria na Rússia novamente. — O sorriso triste
combinava com o que senti ganhando a nova informação. — Mas eu
não era livre para fazer o que quisesse, e uma liberdade com
limitações estava me matando aos poucos. Cuidar de vocês era
mais difícil do que a vida que levava antes. Naquela manhã, eu
deveria ter assumido meu papel de péssima mãe, ter te deixado
sozinho em casa e partido.
Poucos dias depois de descobrirmos Hope, Alana me contou
sobre como havia ficado magoada com a mãe. Ela também me
contou que, por mais magoada que estivesse, não conseguiu se
despedir dela com palavras ríspidas.
Talvez eu não conseguisse me despedir com palavra alguma.
Peguei Hope para mim, nossa menina parando de soluçar assim
que a mãozinha achou a corrente que vivia no meu pescoço. Eu
queria ficar sozinho com as duas para poder desabar, e Alana
sempre me entendia bem demais. Os lábios finos estavam prestes a
se abrir quando a russa — ela era russa? — voltou a falar.
— Não tem como voltar no tempo e devolver o que tirei dos
três. Mas eu posso te dar o que busca, Kolya. — Katerina, e aquele
provavelmente não era seu nome, deu um sorriso fraco. Tentava
imaginar se conseguiria dar qualquer coisa boa para a mulher antes
dela ir para sempre. — Demidov sabe que estou aqui. — Porque
antes dela me dar aquela certeza em palavras, seus olhos me
passaram que o momento que dividíamos era nosso último. — Com
certeza o carro estacionando é dele — ela continuou, ao afastar a
cortina e olhar janela afora. — Sei que quer me matar, Armando.
Mas eu estou me entregando para que seus filhos sejam livres,
então escolha. Você quer vingança, ou quer dar algo bom para
esses dois?
Livres. Alexei procurava ela. Era por causa dela que eu havia
levado o sobrenome Orlov no passaporte canadense. Por causa
dela que eu estava correndo riscos na Itália. A irmandade queria a
mulher que roubou os filhos do Pakhan, e achavam que ela viria
para mim, por mim.
E ela veio.
— Por quê? Esse sacrifício, por quê?
— Porque viver fugindo é cansativo. — Katerina soltou o ar,
como se estivesse soltando um peso carregado por anos. — Quis
tanto minha liberdade, mas desde que fugi da Itália, nunca me senti
tão presa. Se eu for desistir, ao menos posso desistir em grande
estilo. Vamos? — continuou ao virar-se para Armando, o homem
sacudindo a cabeça antes de guardar a arma e pegá-la pelo braço.
Ao passar, os olhos coloridos foram para Hope, e então para
mim.
— Pode parar de procurar o responsável pelo acidente no seu
jantar. — Congelei quando os dedos longos tocaram meu braço,
meu coração acelerando de forma desconfortável no peito. —
Nunca gostei de vinho branco, nem de loiras que falam demais. O
veneno estava nas taças, e a da sua mulher estava limpa. Lorenzo
sentou no lugar errado, como sempre.
Tirei coragem da mão de Alana, o calor espalmado nas minhas
costas sendo o suficiente para eu abrir a boca.
— Obrigado. — Eu não tinha mais nada para dizer.
Mas, para quem se entregava por mim, pareceu ser o
suficiente.
— Ela é linda. As duas são. Tchau, Kolya.
E eles saíram, a porta se fechando. Tinha uma preocupação
que não precisava existir nos olhos mel, e eu pensei: nossas
preocupações, depois de hoje, poderiam ser muito mais simples.
Não me importaria em me preocupar sobre cores de quarto.
Sobre a chuva que caía, se Alana ficaria ou não irritada comigo
dando informações para uma turista. Preocupações que conseguia
resolver sem me matar no processo, eu abraçava, do mesmo jeito
que colocava os braços ao redor das que eram meu mundo.
— Nós vamos embora, dolcezza. — As palavras ainda
pareciam irreais. — Nós vamos para casa.
Presente
Fazia anos que não pisava ali. O cemitério que dava para o
mar era estranhamente calmante, e foi minha casa por diversas
noites regadas de álcool. Madrugadas passadas naquele chão,
abraçado a lápide, o cano prateado da arma que sempre estava
comigo sendo tão tentador. Carina sempre me tentou, e era uma
promessa que me mantinha longe dela.
Eu não trazia álcool hoje. Eu, depois de tantas reclamações,
trazia boas notícias.
— Tu ia querer me matar se eu fizesse o que planejei todos
esses anos, não ia? — Dei um meio sorriso, sacudindo a cabeça: se
eu puxasse o gatilho e houvesse outra vida, Carina me acharia até
no inferno e passaria uma eternidade me atormentando. — Tu ia,
mas eu já estaria morto. Eu estive morto, por muito tempo.
A foto parecia mais desbotada, mas ainda estava ali, a lápide
cuidada por Barbara durante meu tempo longe, o sobrenome que
Carina levava sendo o da mulher que eu chamava de mãe. Mesmo
depois de vinte e cinco anos, meu peito ainda apertava ao pisar na
casa que era só dela. Mas respirar já não era mais um trabalho tão
difícil. Não era, eu, finalmente, podendo contar que havia realizado o
que jurei na última vez que a tive nos braços.
— Senti sua falta, amore mio. — Me ajoelhei e toquei seu
rosto, tentando imaginá-la mais velha. Ela já teria cabelos brancos
como eu tinha? Os arrancaria, como vi meu filho fazendo um dia
desses, com o fio prateado que insistia em aparecer perto da sua
testa?
Eu tinha tanto para falar, se fosse falar tudo. Tinha tanto que
poderia passar uma vida inteira lhe contando histórias — ou ao
menos, o que restava da minha. Carina odiava minhas enrolações,
sendo uma eterna impaciente.
Como a filha.
— As crianças estão bem — me mantive no que realmente
importava. — Victor cresceu e formou uma família maravilhosa. E
Nico...
Nickolay teve uma vida difícil, por mais que eu tivesse me
esforçado. Mas ele estava vivo, e continuava com o mesmo sorriso
bondoso com todos que amava. Ele amava, e tinha alguém que o
amava de volta na mesma intensidade. O homem viveria tudo que
eu nunca tive a chance de viver, e aquilo me confortava o suficiente.
— Ele cuidou de Anna. Ele ainda cuida dela, e cuida tão bem!
Meu menino é o homem que iríamos querer que nossa menina
escolhesse, então não se preocupe. Estão todos bem. — Respirei
fundo, falar aquilo para minha mulher parecendo tirar um peso dos
meus ombros. — Eu também estou bem.
Tirei a arma do casaco, removendo a bala que tinha o nome
dela e a enterrando na grama.
— Acho que vou descansar um pouco agora, magrela.
ㅤ
Fazia tempo que eu não dormia tanto. Talvez uns bons onze
meses, e despertar sem escutar Hope era estranho. Ainda de olhos
fechados, lembrei da noite passada e sorri, a ação sendo uma que a
cada dia ficava mais frequente na minha vida. Era bom viver
sorrindo, e era bom saber que contava com duas babás no andar de
baixo.
Era bom também o que eu sentia debaixo das cobertas. O sol
brilhava por entre as árvores do lado de fora, o clima ajudando a
fazer o dia ainda mais perfeito. Os lábios que percorriam o interior
das minhas coxas me faziam agarrar o lençol, tornando o começo
daquela manhã impecável.
— Eu gosto desse sonho — sussurrei, mordendo o lábio ao
sentir a primeira lambida. Os sonhos da noite passada eu também
tinha amado, Nickolay no meio das minhas pernas fazendo muito
mais barulho do que agora.
— Eu também. — A voz rouca reverberou na minha boceta e
eu precisei cobrir a boca com as palmas das mãos, não confiando
na minha capacidade de manter o silêncio sem ajuda.
Nickolay descobriu a cabeça, os olhos fixando nos meus
enquanto o italiano me chupava com vontade. Os raios de sol me
impediam de enxergar direito seu rosto, os dedos que levavam
Hope achando meu seio por debaixo da camisola. Deu para sentir o
sorriso quando me pressionei mais contra sua língua, e eu suspirei
frustrada quando ele subiu até minha boca. O beijo me dava gosto
do café que ainda precisava tomar, me fazendo imaginar que a noite
dos meninos havia sido bem mais agitada.
Não tinha nada para reclamar da minha, as duas taças de
vinho junto das conversas que viraram a noite tendo feito minha
despedida perfeita — foram minhas últimas, por um tempo, descobri
quando já era madrugada. Tudo nas últimas vinte e quatro horas
andava merecendo aquele adjetivo, até mesmo as provocações do
italiano. Nico mordiscava meu pescoço e tampava minha boca, suas
tatuagens contra o sol.
— Resolveu aproveitar as babás e chupar sua noiva antes do
casamento? — Usar da língua-mãe do meu marido era minha
cartada para ele parar de nos provocar.
— Sua boca em italiano é deliciosa — ele gemeu baixo, a boca
indo para meu seio, os dentes roçando no bico assim que minha
mão achou seu pau. — Fala que estou te deixando com vontade de
foder.
Como se não fosse óbvio que estava. Aquela era a frase que o
homem, sem dúvida, mais gostava de ouvir sair da minha boca
naquelas horas, e eu agarrei seus cabelos escuros, puxando o rosto
para cima.
— Você… — Os olhos do italiano também eram escuros, e
perceber um muito mais escuro do que o outro me fez arfar. — Tá
com um olho roxo no dia do casamento!
A despedida dos homens realmente foi mais agitada, e eu,
lembrando das palavras da minha mãe, me perguntei se queria
saber o quão agitada ela tinha realmente sido. “Seu pai foi falar com
outra pessoa primeiro” combinava demais com aquele olho roxo.
Nickolay tirou todas as minhas palavras ao se enterrar em mim,
o filho da mãe com certeza imaginando que algo sobre o
machucado sairia da minha boca. Daquele jeito, eu gostava de ser
calada.
— Pode beijar pra sarar, dolcezza. — Estreitei os olhos, mas o
italiano acabou com minha expressão brava ao prender meus
pulsos com uma das mãos, os pressionando contra a cama. Ele me
mantinha quieta com estocadas rápidas e curtas, a palma contra
minha boca sendo de ótima ajuda. — Foi um acidente. Tu não
pergunta do acidente, e eu não pergunto o que fez para estar com
essa cara de culpada.
E foi minha vez de dar um sorriso safado, que ele com certeza
sentiu, Nico se enterrando por completo em mim antes de me
colocar por cima.
— Eu não estou com cara de culpada — o contrariei enquanto
jogava a camisola no chão, as mãos tatuadas encaixando nos meus
seios antes de descerem para meus quadris, incentivando um ritmo
longe de calmo. — E isso é injusto!
— Posso compensar essa injustiça, bella. — E ele subiu os
lábios até meu ouvido. — Só lembre de gozar quietinha.
Era injusto o quão mais forte que eu Nico era, assim como me
enchia de tesão o jeito que, para ele, era fácil demais me colocar na
posição que bem queria. Num instante estava sentada nele, no
outro, olhava nosso reflexo no meu espelho favorito. Meus dedos
outra vez torciam o lençol, meus joelhos e cotovelos no colchão
enquanto o italiano me fodia do jeito que eu amava.
Filho da mãe, eu ia gozar em segundos, e pela mão cobrindo
minha boca, ele sabia. Mordi os dedos contra meus lábios,
respirando mais rápido a cada estocada. Nickolay também se calou
na minha pele, seus grossos chupando meu pescoço, eu longe
demais de me importar com a marca que ficaria.
Escutar ele sussurrar um quietinha no meu ouvido foi o que
bastou, a voz rouca sendo meu melhor gatilho. Cravei os dentes
nele, minha boceta contraindo, Nickolay não diminuindo o ritmo. Era
quase impossível ficar quieta, era impossível não ficar hipnotizada
com ele prestes a me seguir.
Ainda recuperava meu fôlego quando ele saiu de mim, o
italiano apertando os olhos enquanto gozava na minha coxa.
Sacudi a cabeça: tarde demais para nós nos lembrarmos de
fazer aquilo. Deitando com ele na cama, sujando o lençol, me
perguntei se minha cara de culpa ainda estava igual, ou tinha
aumentado.
— Vou chegar com um olho roxo mais vezes. — Se estava
maior, Nico resolveu ignorar.
— Ridículo — provoquei, os raios de sol o fazendo cobrir os
olhos com o antebraço, o sorriso voltando para os lábios. — O que
cê tá pensando?
— Se é hoje que vai decidir que fez uma loucura, e finalmente
fugir de mim. — E eu revirei os olhos, achando o relógio digital que
marcava nove e vinte. Fui presa num abraço quando tentei me
levantar, meu marido resolvendo me esmagar e indo para cima de
mim.
— Você vai nos atrasar com seus absurdos, italiano.
— É a noiva, tem carta branca para atrasar quantas horas
quiser. — Hope choramingando no andar de baixo me salvou, Nico
saindo da cama depois de um último beijo. — A fominha precisa
aprender a ficar sem um de nós por mais tempo — ele já colocava a
calça quando reclamou.
E eu sacudi a cabeça: nenhum dos dois estava exatamente
preocupado em fazer a fominha ficar longe de nós por mais tempo
que o necessário, Hope sendo nosso grudinho bom. Mas com Nico
vestindo a camiseta, pensei que talvez fosse esperto, depois de
ontem, acostumar a grudinho a ficar, pelo menos, com os tios.
Ou nós simplesmente daríamos conta de dois.
Ainda estava nua na cama quando os lábios grossos se
aproximaram para um último beijo, os olhos de Nickolay brilhando
contra o sol. Ele sorria, e Hope, eu via todos os dias, tinha o mesmo
sorriso do pai.
— Te espero no final do altar, dolcezza. — Nico fechou a porta,
me deixando sozinha com meus pensamentos.
Mas eu, outra vez, não estava sozinha, e segui para o
banheiro. Abri o registro, o chuveiro esquentando, eu molhando os
cabelos e pegando o shampoo que tinha o cheiro que o italiano
amava.
Menos de três anos, e lembrava de estar tão perdida debaixo
da água morna. O enjoo era pelas ressacas, os arrepios, pelas
batidas que ouvia. Olhava para trás com medo, a morte em lugares
onde ela não deveria existir. Respirei fundo, minhas mãos voltando
para a barriga, como fiz por meses antes de ter minha filha nos
braços.
Hoje, a única morte que existia era o antigo apelido do homem
que me trouxe de volta à vida. O italiano, que me dava outra vez um
pedacinho dele, me fazia ter a resposta do que um dia me perguntei.
Lembrava que estava na frente da faculdade que nunca
terminei quando a pergunta veio à minha cabeça. Uma vida sem
fantasmas era sempre tentadora de se imaginar. Uma vida sem
fantasmas era, também, tão difícil de se conseguir. As dores faziam
parte do caminho, uma existência apenas feliz sendo uma utopia.
Meu marido fazia todas as minhas dores crônicas menores
com seus beijos. Por mais difícil que meus fantasmas fossem, eu
sabia que enfrentaria todos eles outra e outra vez para ter uma vida
com Nickolay. Mesmo quando acordava do pior pesadelo, tê-lo ao
meu lado era o suficiente para me dar calma.
Por mais vermelho que tivesse em nosso passado, o colorido,
no final, venceu. Nico foi o responsável por trazer toda a minha cor
de volta, e ele pintava o meu mundo com as dele cada dia mais um
pouquinho. Alcançando a toalha, vi o novo positivo em cima da pia e
sorri.
Eu não mudaria nada.
ㅤ
Nem estava tão feio. Não, estava aceitável, o meu rosto tendo
vivido dias muito piores. O roxo que contornava o inferior do direito
não era nada perto da minha orelha esquerda, ou dos dias — meses
— que fiquei sem algumas das unhas.
Normal o suficiente, decidi ao terminar o nó da gravata. O
último terno que havia usado, ainda estava na Itália, eu tendo me
apaixonado por me vestir de forma mais normal do mesmo jeito que
me apaixonava pela minha vida simples a cada dia.
Simples. Era uma mentira usar aquela palavra para uma vida
com ela: Alana passava tão longe do simples. Ainda assim,
simplicidade era algo que ela vivia querendo implementar na nossa
vida. Minha mulher dizia que o vestido que tinha escolhido era
simples, e eu não conseguia — nunca consegui — ver algo nela
merecedor do adjetivo.
Não, Alana não era simples, e vê-la vestida de noiva passaria
longe do simples. Ver pelo reflexo Esteban encostado no batente da
porta era infinitamente mais trivial.
— Oi, filho. — E eu quase ri: filho. Eram muitas as pessoas me
chamando daquilo nos tempos de agora.
Sorria para todos que usavam o título, mas só dois eu
chamava de pai.
— Senhor Martins. — Ele estava vestido, os cabelos
arrumados para trás, a postura impecável, bem diferente da noite
passada. — Nunca vou conseguir me desculpar o suficiente: eu
sinto muito — falei ao me virar.
Me desculpava, mas era eu quem levava o olho roxo. Ver
aquilo deveria deixá-lo bem mais suave com o homem que lhe
roubou a única filha — ou ao menos, era o que esperava acontecer.
— Aposto que sente. — O mais velho cruzou os braços, o
terno claro contrastando com o meu escuro. — Astrid quer te
assassinar. — Levantei as sobrancelhas, a informação confirmando
minhas dúvidas sobre as intenções da mulher, ela nem ao menos
me olhando na cara quando cheguei naquela manhã. — Consegui
assustar você?
— Se ela for como Alana, tenho certeza de que vai conseguir.
— Cocei a barba, não querendo que aquela similaridade fosse
verdadeira. — Posso pedir para ela esperar até o final do
casamento?
— Ninguém vai te matar, moleque. — Quem interrompeu foi
Armando, Lorenzo e ele entrando logo atrás do pai da minha noiva.
Noiva. Finalmente usava aquela palavra de um jeito bom.
— Que porra é essa no seu olho? — Sacudi a cabeça antes de
virar a cara.
Realmente tinha sido o único sóbrio da noite. Estava para
responder quando escutei o choro se aproximando, a mulher que
aparentemente queria a minha cabeça entrando com a pequena que
parecia igualmente brava. Hope tinha a mesma tenacidade de
Alana, assim como copiava sua paciência.
— Ela não para de chorar, eu acho que Hope não me entende.
Meu amor, não precisa ter medo da vovó! — Dava para reconhecer
a frustração de Armando em Astrid, ele tendo demorado alguns
bons meses para conseguir ficar com a fominha sem ela abrir um
berreiro. — Flávia disse para eu trazer a pequena para você, já que
minha filha, como toda boa noiva, está atrasada.
Era engraçado como nossa filha parecia só ficar à vontade
com poucas pessoas. Lembrava com um pouco de tristeza o quanto
Nicolas não era seletivo, semanas atrás tendo comentado com
Alana sobre a memória. Perguntava se o que eu tinha dado não era
o bastante para o menino querer o colo de todos, minha mulher
pedindo para eu parar com minhas besteiras.
As crianças eram diferentes, e ela me fez entender bem
demais suas palavras. Aprendia tudo que Alana falava quando em
cima de mim, e tinha até brincado que poderíamos tentar mais um.
Ela respondeu que a desculpa de Hope estar ficando mimada era a
melhor que poderia achar para ocuparmos o berço do segundo
quarto.
Mas nós ainda não estávamos tentando, por menos
cuidadosos que algumas vezes insistíssemos em ser.
— Vem, dolcezza. — Hope ainda soluçava quando parou nos
meus braços, as mãozinhas amassando minha camisa. Alana não
ligaria, e eu com certeza não liguei para a pequena destruindo o que
antes era liso.
Os olhos claros de Lorenzo eram ótimos em julgar, e já
escutava a bronca que viria quando ficasse sozinho. Deixa a
ragazza fazer o que bem entende, eu não fazia isso contigo, e me
sentia um pouco culpado por aquilo ser a verdade, Alana sendo
muito mais firme do que eu.
Até Armando se rendia às manhas de Hope, e agora que se
davam bem, o velho a ganhava sempre com a fruta favorita do
momento quando vinha visitar.
— O que foi, cuore mio? — Minha filha deu um suspiro sofrido,
o rosto molhado já escondido no meu peito. — Está com vergonha?
Alana era, definitivamente, mais firme. Ainda assim, era por
Alana que a fominha sempre chamava.
— Mama? — A voz veio abafada, e eu já procurava o que
sempre trazia comigo nos últimos meses.
— O papai serve? — arrisquei, os olhos iguais aos meus me
encarando, vermelhos. A cabecinha fez que não, os cabelos da cor
dos meus balançando. Escutei uma risada abafada, e continuei em
italiano. — Se falar que ela é dramática como o pai, te mato.
— Vai matar o irmão agora, moleque? — Victor riu, entrando
com seu mais velho. Mattia estava com a pior cara de todos nós, e
por mais que houvesse ameaças e um olho roxo, eu abraçava
sorrindo aquela minha normalidade.
— E se o papai tiver o senhor coelho? — O coelho de pelúcia
sempre arrancava um sorriso dela, e não foi diferente naquela
manhã. — Papai serve agora? — Ela fazer que sim conseguiu
arrancar uma risada da maioria no quarto, Hope abraçando seu
brinquedo, um suspiro satisfeito ao se encostar com ele em mim. —
Ela comeu? — Astrid já saía, o rosto derrotado, quando perguntei.
Ela levantar a papinha que segurava me deu certeza do
desgosto da neta.
— Ah, maçã. — De canto de olho, o avô ranzinza deu os
ombros, murmurando um “ela que insistiu”. — Hope detesta maçã.
Não sei como, Alana me obrigou a gostar durante os cinco primeiros
meses disso. E se nós tentássemos a que gosta, hum? — perguntei,
obtendo zero resposta.
Tinha que admitir que, por mais que a fominha estivesse
treinando para ser a rainha do drama, ela dava muito menos
trabalho do que minha vida antiga. Não podia nem mais reclamar
sobre demoras para dormir, Hope decidindo desde o mês passado
que apagaria sempre depois de um bom choro ou uma boa refeição.
— Igual ao pai — veio de Armando, o homem arrumando os
cabelos não mais raspados em frente ao espelho, os olhos mel
achando os meus por um segundo.
— Alana também não era muito diferente — era Astrid quem
dizia, voltando para a sala com o carrinho. — Tinha dias que ela
chorava e chorava, e ninguém sabia o que fazer. Eram as coisas
mais peculiares que a faziam parar. — Ela sorriu para Armando ao
continuar. — O bichinho dela era um gatinho.
Colocando Hope no carrinho, vi a tempo o sorriso que o
homem tentou conter. Armando voltou a sua eterna cara irritada, e
talvez a pequena que eu cobria estava na fase de gostar do difícil,
visto seu novo favorito.
— Pronto para casar?
— Se minha noiva não tiver fugido — respondi Lorenzo,
esfregando os círculos úmidos na camisa branca. Aquilo grudando
era, sem dúvida, purê de maçã, e nós dois éramos os últimos dentro
do cômodo.
Ah, Hope.
— Ela não fugiu, vero? — Esfreguei mais, e a possibilidade,
irritantemente, não deixava a minha cabeça: ela poderia desistir. Ela
poderia ver a família, e repensar o que fazia comigo longe de todos
que amava, agora que era livre.
Alana era livre, do mesmo jeito que eu era. Alana era livre, e se
ela escolhesse ficar, agora que poderia ir embora, eu nunca mais
duvidaria da minha sorte. Por cima da camisa, tateei o pingente que
estava sempre comigo, nossa promessa cravada atrás da santa.
Fica.
— Não sei por que insiste nessas besteiras, filho. — Ele só
usava aquela palavra quando estávamos sozinhos, e eu me
perguntava se era em respeito ao amigo.
— Pai, Alana sempre soube que poderia escolher partir. — Eu
também só a usava quando Armando estava longe.
— E o que você faria se ela fosse embora? — Franzi a testa:
não era óbvio?
— A deixaria ir — suspirei, arrumando uma última vez a
gravata. — Eu iria para onde ela fosse por Hope, mas eu a deixaria
ir se ela pedisse.
Tinha brilho demais nos olhos azuis, a mão limpa de tatuagens
apertando meu ombro.
— Todos os seus pais se orgulham de você, filho. — E ele,
finalmente, sorriu. — Vou te contar um segredo: sua mulher
implorou para eu não te deixar fugir.
Puxei uma respiração, meu sorriso, largo.
— Che?
— Ela vai ficar, Nico. Tira esse olhar nervoso da cara, porque
Alana já me disse que se você quiser, ela fica para sempre.
Grazie para você que chegou até aqui! Espero que tenha
valido a pena ter se perdido nas mais de mil páginas dessa trilogia.
Meu Nico continua cadelando as minhas ideias, e me dando
todo o apoio para chegar até aqui. Sonso, você não sabe que está
nos meus agradecimentos, mas um dia eu vou deixar você ler todos
os livros e você vai saber, eu prometo.
Wedla, que virou minha marida literária: tá na hora de ter
vergonha nessa tua cara, não tá não? Tá na hora de gostar do
Armando também, porque se depois de tudo isso eu ainda não tiver
te convencido, o próximo passo vai ser escrever um livro dele pra
você betar, sua safada. E eu não tô afim.
Carol, estou guardando umas marmitas como agradecimento
por ter aceitado defender a minha cristalzinho da beta má (a marida
citada acima). E se eu agradecer aqui, eu vou ter que agradecer lá
em cima também, porque a Wedla é ciumenta, então vou me limitar
a: te pago uns salgados (eu pago pra ti também, Wed).
Um obrigada especial a todas que mandaram mensagens
positivas e apoiaram meu trabalho até aqui. As palavras de vocês
foram essenciais nos dias mais difíceis, e me fazem estar apenas
começando.
Até a próxima história!
Um beijo,
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[44] Não dou a mínima
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[47] Preguiça, em espanhol
[48] Esperança, em inglês
[49] Ódio, em inglês
[50] Que bela gozada
[51] Cinta peniana, em inglês.