Osman Lins - Os Casos Especiais - Cepe, 2019
Osman Lins - Os Casos Especiais - Cepe, 2019
Osman Lins - Os Casos Especiais - Cepe, 2019
Direitos reservados à
Companhia Editora de Pernambuco — Cepe
Rua Coelho Leite, 530 — Santo Amaro
CEP 50100-140 — Recife — PE
Fone: 81 3183.2700
*
Lins, Osman, 1924-1978
Osman Lins : os casos especiais / prefácio e notas
Adriano Portela. – Recife : Cepe, 2019.
Inclui referências.
ISBN: 978-85-7858-812-0
Governo do Estado de Pernambuco
Conselho Editorial:
Maria Lúcia Moreira
Evaldo Costa
Haidée Camelo Fonseca
Sidney Rocha
II
Veio andando pelo cais da Rua da Aurora e deteve-se, como tantas outras
vezes, naquela mesma hora, a contemplar a massa de concreto que se erguia
ante ele, com suas inúmeras janelas cintilantes, sobre o estrelado céu de
março. Ali, entre tantos retângulos de luz, no antepenúltimo andar, estava a
sua casa.
Lutara com a mulher, que o induzira a vender o chalé na Madalena,
despender economias de anos, endividar-se nos bancos para dar a entrada
do apartamento; e depois assinar um contrato cheio de cláusulas,
autorizando a sangria no ordenado.
— Se for preciso, eu me emprego, ou você consegue emprego para uma
das meninas, contanto que fiquemos com o apartamento.
Compromisso tomado, ninguém voltara a falar naqueles empregos
possíveis: ele é que vinha pensando em aceitar umas escritas, para fazer em
casa, à noite, esforço que assumiria agora sem repulsa, pois começara a
orgulhar-se do edifício, dos polidos nas escadas, dos elevadores
automáticos, do revestimento de mármore nas paredes do hall, e, sobretudo,
no espaço ocupado pelos vinte andares daqueles blocos gêmeos, um atrás
do outro e ambos voltados para o oceano.
Um dia, pensava, desaparecidas as pobres velharias da Rua da Aurora,
uma fila imponente de arranha-céus se refletindo no Capibaribe, ele poderia
dizer:
“Sou dos antigos. Nosso edifício foi o pioneiro, o primeiro a ser erguido
nesta rua.”
III
Sentado no living (as duas filhas — sempre tão distantes! — tinham jantado
fora, festa de noivado no Espinheiro, nunca faltavam noivados, chegadas de
viagem, aniversário, ambas saíam demais), dispôs-se a escutar
placidamente, olhos nas guilhotinas de vidro, as reclamações da mulher.
— Isso entristece.
— O quê?
— Ora o quê! Apartamento bom, sem tapete na sala, sem um abajur, sem
quadros nas paredes. Os móveis antigos.
— Estão em moda.
— Sim, mas não os ordinários como estes. E, ainda por cima, essas
cortinas!
— Você pensa demais em tolices. A vida é tão curta! Quando menos se
espera...
— É isso mesmo, insistia a mulher. A vida é curta. Hoje morreu mais um,
no 5º andar deste bloco.
Com um sobressalto, Arantes contemplou-a:
— Hoje?...
— Sim. Enterra-se amanhã. Quarenta e cinco anos. É por isso que eu
digo: aproveitar a vida...
Arantes levantou-se, ficou de pé diante da janela:
— Morreu de quê?
— Quem sabe?
— Não se sabe...
— Não.
Fora da barra, um comprido navio estava fundeado. O farol de Olinda
voava sobre a noite, projetava nas cortinas a sua intermitente claridade. Três
mortes num mês — Arantes refletia — e todas inexplicáveis. Que estava
sucedendo no edifício?
Lembrou-se então, jamais viria a esquecer isto, de que faltava exatamente
uma semana para o seu 41º aniversário. Não era, bem o sabia, um homem
feliz. Mas ninguém o era inteiramente e ele gostava da vida. Seria triste
morrer naquela idade. Quem sabe não viria ainda a conhecer alguém que o
amasse de verdade, uma mulher ou mesmo uma criança, um neto? Alguém,
não importavam os anos, beleza ou condição, alguém que o amasse?...
Dionísia se fora para o quarto. Desde muito, afetava um cansaço
inexplicável, principalmente nas noites que ficavam em casa e nas primeiras
horas da manhã: oblíquo modo de atingir o homem — não mais o amava,
pois não enriquecera — e de fazê-lo sentir-se responsável pela sua ausência
de coragem, pela sua carência de alegria.
Arantes encostou o rosto na vidraça, contemplou mais uma vez a
paisagem noturna: um pouco à esquerda, com suas luzes claras, por trás dos
imensos tambores de combustível, petroleiros ancorados: depois, a silhueta
cinzenta dos Grandes Moinhos, os pavilhões das docas, com suas muitas
janelas, a Torre Malakoff e seu relógio; a Ponte Santa Isabel, a Ponte Duarte
Coelho, luzes nas águas do rio, arranha-céus.
IV
Na manhã de 27 de março, que era a do seu aniversário, soube, no elevador,
haver morrido um homem, pela madrugada, no 11º andar do bloco “B”. No
banco, telefonou para o seu velho amigo Guimarães, lembrando, como fazia
há anos, a data e o jantar.
Bem antes da hora costumeira, saiu para fazer compras, queijo, vinho,
ameixas, um paliteiro decente. A manhã estava ensolarada, Cláudio Arantes
sentia-se disposto. Não podia, mesmo assim, conter sua tristeza, a
estonteante impressão de que a morte procurava-o no “Capibaribe”, como
alguém que esqueceu um endereço e põe-se, impaciente, batendo em várias
portas, ao azar.
O paletó num braço, na outra mão o embrulho de especiarias, decidiu
comprar uma gravata. Era o presente que a si mesmo concedia: as filhas, a
mulher, nunca se lembravam de fazê-lo.
Diante da vitrina, no passeio, olhava a exposição, as gravatas lisas ou de
listas, feitas de lã, de seda, as gravatas rubras, amarelas, verdes, presas em
finas hastes niqueladas. E sentiu, de repente, o sangue queimar, como nos
tempos de sua adolescência, mesmo antes de apreender — havendo, antes,
apenas pressentido — a beleza do rosto de mulher que parecia (flor num
aquário com peixes) boiar sobre as alegres gravatas. Mais: ele estava nos
olhos desse rosto juvenil e curto, de uma majestade dócil, tranquila e como
que purificada. Aqueles olhos banhavam-no e Arantes sentiu a crosta de
seus anos diluir-se; transformou-se ante aquela vitrina, e
momentaneamente, num rapaz de vinte anos, sem nenhuma ruga nos olhos
ou na boca, o coração como um arco distendido. Ou como um tigre à
espreita.
Tudo foi vago e intenso. Espécie de alucinação, muitos indefinidos
sonhos seus cumprindo-se naquele instante único. Estavam lado a lado, ante
o balcão, e Arantes sentia o seu perfume, via as suas mãos de unhas bem
tratadas, escutava a sua voz. Ela falava com os dentes meio cerrados, como
se tivesse frio; ele mal percebia, entre as caixas abertas, os padrões das
gravatas.
Teria contemplado aquele rosto em sonho?, nas colunas sociais?,
conheciam-se de alguma existência submersa e de que restara, como único
sinal, a recordação dessa beleza que lembrava — não sabia por quê — um
veleiro ancorado?
Então, o empregado afastando-se um momento, eles ficaram sós. E
Arantes sentiu desamarrar-se nele uma ternura velha e séria, tão grande que
chegava a ser solene. Murmurou, olhando-a de perfil:
— A senhorita... é tão linda!
As palavras eram navalhas, cortavam-lhe a garganta e a alma, fora difícil
falar.
Ela voltou-se, tocou-lhe a mão, de leve, como quem tenta aplacar uma
raiva e seu olhar era de gratidão. Não falou.
Ele apanhou o pacote, o paletó, saiu sem comprar. Não quero que a morte
me encontre agora, pensava, talvez a vida ainda me reserve um bem, tão
grande como eu jamais poderia imaginar.
O jantar foi diferente dos anteriores. Guimarães e a mulher, alegres
quando sóbrios, mais alegres ficaram com as bebidas. Dionísia alegrou-se,
as filhas riram muito, enquanto ele pensava naquele assunto, não
mencionado, que Guimarães ignorava e a família esquecia, as sucessivas
mortes no edifício.
Quando a porta do elevador correu, pesada, sobre o último aceno dos
amigos, ele ficou de pé, sozinho, lembrando-se da jovem da manhã, certo de
que não voltaria a encontrá-la e desejando que a morte não o descobrisse,
em meio à multidão que ocupava os dois blocos gêmeos do edifício.
V
Entre o Domingo de Ramos e a Sexta-Feira da Paixão, registraram-se três
óbitos. O porteiro do prédio, alegando sentir-se mal do peito todas as vezes
que ajudava a transportar defuntos pelo elevador, solicitou demissão.
Alguém, a essa altura, teve a ideia de promover uma assembleia de
inquilinos e condôminos, para debater o assunto, que começava a alarmar
os moradores.
A reunião foi na garagem do bloco “B”, um mal iluminado recinto abaixo
do nível da rua, mas espaçoso e abrigado dos ventos. Atestando o temor de
que todos estavam dominados, poucos não foram. O número dos que
Arantes conhecia era pequeno, sendo que muitos ele não se lembrava de ter
visto nunca. Certo major do Exército, ninguém sabe por que, assumiu a
presidência, prometendo que seria breve e direto na sua exposição, e que
ouviria com o máximo interesse quem quer que tivesse algo importante a
dizer. E soube-se, o que a maioria ignorava ainda, que os médicos estavam
embaraçados, não podendo indicar, com segurança, de que haviam morrido
aquelas várias pessoas, aliás moradoras em diferentes andares, com hábitos
próprios, diferentes fontes de abastecimento e cujas mortes, com uma
assustadora uniformidade, apresentavam as mesmas circunstâncias: todos
gozavam saúde, tinham falecido dormindo — um durante a sesta — e
apresentavam no corpo, principalmente no tronco, manchas rubras.
Houve um momento de silêncio e logo começaram as perguntas. Não se
registravam mortes semelhantes em outros pontos da cidade? Não haveria,
no edifício, quem se dedicasse a experiências termonucleares? Não estaria
poluída a água? O militar falou, superior, com fastio e talvez com ironia:
não, por duas vezes mandara examinar a sua. Houve então quem indagasse,
não teriam aquelas pessoas sido vítimas dos resíduos letais trazidos pelo
vento — fumaça dos navios, pó dos Grandes Moinhos, emanações dos
combustíveis na outra margem do rio ou da fábrica de refrigerantes, que
ocupava o quarteirão quase todo, à esquerda e por trás do edifício.
Um sujeito de aspecto musculoso e baixo provocou exclamações e risos,
perguntando se não podia ser assassinato, se as mortes não seriam causadas
por uma espécie de vampiro de Londres. Ao que se respondeu,
judiciosamente, que um vampiro de Londres não podia existir senão em
Londres.
Neste ponto, um homem de aspecto bovino6, falando pausadamente,
interrompendo a série de suposições, que ameaçavam converter a
assembleia numa palestra sem consequências e mais ou menos sinistra, fez
uma proposta lúgubre e que provocou, sem exceção, mal-estar profundo.
Sugeriu fosse feita, na próxima vítima, rigorosa autópsia, verificando-se
inclusive se não acusava irradiações atômicas. Do extremo da garagem, um
tipo desenvolto e sanguíneo, de cabelo vermelho e dentes de carnívoro, saiu
da sombra e caminhou para ele. Parecia ter a intenção de esbofeteá-lo.
Parou no caminho, olhou acintosamente em redor e falou alto:
— Comunico aos senhores que vou tomar a única medida sensata. Mudar-
me quanto antes. Amanhã, se puder.
Alguém lançou um “mas” indeciso, logo cortado por ele:
— Não fico mais aqui. Boa noite.
Sua retirada teatral encerrou a assembleia, havendo antes sido posta em
votação e aprovada, por unanimidade, a proposta do homem que falava
medindo as palavras.
O exemplo do indivíduo sanguíneo (soube-se depois, com admiração, que
não tinha filhos e era enganado pela mulher) foi seguido. Em dois dias, três
inquilinos rescindiram o contrato de locação, não obstante o prejuízo, e
desocuparam seus apartamentos. Mas decorreram mais de três semanas,
antes que o próximo cadáver fosse examinado. Seria o de um polaco ou
estoniano, que negociava com joias e guardava, sobre o próprio passado,
rigoroso segredo, nem mesmo revelando ao certo há quantos anos estava no
Brasil.
Promoveu-se logo outra reunião e o comparecimento foi bem inferior ao
da primeira; fato notável, no qual se acrescentou, nesta segunda assembleia,
o desejo manifesto e unânime de que mortes semelhantes fossem noticiadas
em outros pontos, para dissipar a impressão presente em todos, de
habitarem num lugar infausto, talado por um cerco invisível. Cerco este
cuja impiedosa realidade fez-se mais clara na manhã seguinte, quando
correu a notícia de que haviam amanhecido mortos o eficiente major e uma
jovem esbelta, notável por sua beleza e que trabalhava como recepcionista
numa companhia aérea.
Então, o edifício tremeu, abalado por uma espécie de pânico. Vizinhas
que jamais trocavam um cumprimento,
visitavam-se, faziam comentários. Murmurava-se através dos corredores,
soavam campainhas, telefones batiam de um andar para outro, discutia-se
em voz alta nos elevadores. Todos, em maior ou menor grau, lutavam contra
o medo. Em cada brecha, em cada recanto sombrio, parecia esconder-se,
com seus olhos frios, sua língua partida, uma serpe.
VI
A noite, para Cláudio Arantes, foi tristíssima. Triste e exasperadora. Os
jornais da tarde estampavam uma fotografia da moça, outra do “Edifício
Capibaribe” e enumeravam as mortes ali verificadas nos últimos três meses.
Uma lista completa, mas com a insinuação de que faltavam nomes. Na rua,
havia caminhões parados e os elevadores de serviço trabalhavam sem
pausa, descendo carregados com utensílios, móveis, objetos de adorno.
Dionísia olhava da janela, voltava-se e perguntava se a família ia ficar ali,
à espera. Argumentava Arantes que era insensatez fugir da morte; e que,
além de tudo, empregara, contra a sua vontade, as economias juntas em
mais de 15 anos, não podendo pagar, ao mesmo tempo, as amortizações do
apartamento e o aluguel da casa.
As filhas pressionavam, argumentando que ele assim dizia porque não era
jovem como seriam elas, com a vida inteira pela frente.
Respondia que estavam todas com a razão, que era velho e
desesperançado e sem alentadoras ambições.
— Mas não me é possível largar o apartamento. Outros, sendo ricos ou
simples inquilinos, poderão fazê-lo. Eu, não. Tenho de seguir até o fim, dê
no que der.
— Você não tem amor à sua família.
— Não se trata disso — gritou. Assumi responsabilidades mais altas do
que devia. Assinei promissórias, estou enforcado.
— Que valem promissórias, com as nossas vidas em perigo? Não pague
mais as letras.
— Irão a protesto, serei interpelado pelo banco, posso perder o emprego.
Vocês não entendem?
— Pois o senhor pode fazer o que quiser — disse a filha mais velha.
Amanhã mesmo, vou morar com uma amiga. Ela me chamou hoje e eu
fiquei de dar a resposta.
— Vou também — acrescentou a outra.
Arantes, nos seus olhos, sentiu um brilho de ódio ou de desprezo, que o
feriu. Quão depressa, pensou, tinha perdido sua delicadeza infantil aquele
rosto de 16 anos! E que havia, perguntou a si próprio, que havia nele de
errado, que em ninguém no mundo despertara uma afeição durável?
Sozinho na sala, ouvia ainda as vozes encolerizadas das mulheres, dentro
do quarto. Na outra noite, quando quis ouvir o noticiário, soube que as
filhas tinham levado com elas o rádio de cabeceira.
Agora, sempre que voltava para casa, duas coisas o afligiam: o número
crescente de janelas apagadas e o ar de humilhação, de vítima resignada,
com que sua mulher o recebia.
A polícia, mais de uma vez, compareceu ao edifício, fez interrogatórios
inúteis. Também esteve lá, em consequência da morte do major, uma
comissão de oficiais do Exército. O secretário (interino) da Saúde,
acompanhado de médicos, visitou o local, foi fotografado, prestou
declarações que alarmaram o Recife:
a) Era absolutamente desconhecida a doença que vitimava os moradores
do “Capibaribe”;
b) O vírus, possivelmente, fora trazido de países distantes, talvez das
margens do Ganges ou do Nilo, por algum navio empestado;
c) Fora assim com o cholera-morbus, que nos flagelara há um século e
que viera, de regiões levantinas, na barca “Defensora”;
d) A posição especial do edifício, muito alto e isolado, exposto aos ventos
do mar, favorecera o contágio;
e) Humanamente impossível assegurar que o misterioso mal não atingiria,
dentro em breve, outros pontos da Capital.
Por coincidência, nesse mesmo dia, um carregador falseou um degrau
entre o 1º e o 2º andar do bloco “A”, com uma pesada escrivaninha à
cabeça, rolou escada abaixo e morreu. A imprensa tirou partido do acidente,
o público sobressaltou-se ainda mais e o êxodo recrudesceu.
Então, Dionísia foi embora. Regressando do trabalho, Arantes encontrou
o apartamento apagado e um bilhete na mesa, sob a cafeteira:
“Meu caro, resolvi hoje à tarde ir para a casa de meus pais, se quiser ir
também, lá estarei. Mas não vá me pedir para voltar, é perder tempo. Não
vá.”
Menos pelo desejo de trazê-la, que por formalidade, foi à casa dos sogros,
articulou sem convicção os argumentos próprios, ouviu as réplicas
inevitáveis, despediu-se de todos, voltou só.
VII
O edifício parecia agonizar em silêncio e começava a exalar um cheiro
indefinível, de recinto fechado, onde murcharam flores.
Mesmo assim, Arantes, nessa noite, chegou a encontrar uma alegria meio
perversa na sua liberdade. Era um alívio não ver, antes de apagar a luz, o
breve olhar que Dionísia lhe atirava, olhar cortante e amargo — como a
frase final de um suicida.
No dia 30 de junho, às 19h, vindo pela Rua da Aurora, recusou acreditar
no que via: o prédio estava às escuras. Somente no térreo, clareando o hall e
a calçada, com o vigia sentado num banquinho, junto à porta de vidro e
ferro trabalhado, havia luzes.
Arantes debruçou-se na amurada, olhando o rio e os reflexos do rio, o
coração batendo. Devia haver alguém ainda. Era possível que somente
ele?...
Cumprimentou o velho sentado na calçada, entrou com passo firme,
tomou o elevador, parou em andares que não eram o seu, fez pressão em
algumas portas, escutou como se fossem de um desconhecido os próprios
tacões nos empoeirados vestíbulos e verificou que o odor de flores secas
trancadas numa sala acentuara-se. Chegou ao 18º, entrou no apartamento.
Em seguida, ouviu com alegria o som de ferros arquejantes, alguém
chamara embaixo o elevador. Depois foram vozes de homens, rumores de
passos, tocaram a campainha. Levantou-se, abriu a porta e leu, nos três
pares de olhos à sua frente, um misto de avidez, perplexidade e
comiseração. Conhecia-os. Eram os donos do “Capibaribe”, cujo dinheiro
estava ameaçado e vinham-lhe fazer uma proposta. A conversa foi longa,
ele próprio estendeu-a, mas tudo pode resumir-se nisto: receberia grátis o
apartamento, se permanecesse nele, vivo, até que o seu exemplo
desmentisse o medo de todos os que haviam fugido.
— Mas isto vai ser invadido por toda sorte de bichos. Os ratos vão subir
do rio e fazer morada aqui. E os morcegos e as baratas? O edifício vai ficar
como uma dessas casas mal-assombradas, mas cem vezes maior.
— Nós zelaremos, daremos toda a assistência, faremos o possível para
tornar agradável a sua moradia.
— Os senhores vão precisar de um exército, para manter limpo este
monstro.
— Que vista magnífica — disse um dos visitantes, olhando através da
vidraça.
Outro perguntou: — Então?... É coisa séria, subscreveremos um contrato.
Um tilintar ritmado e insistente, altas horas da noite, despertou-o. Quem
telefonaria? E em que andar chamava o telefone? Naquele mesmo andar, em
cima, embaixo? Quem seria? Uma pessoa doente, procurando um médico?
Um trote? Parente ou amigo que chegava de viagem, inesperadamente, e
telefonava do aeroporto? Os chamados não cessaram: alguém, com
paciência inumana, insistia. De súbito, sentando-se na cama, Cláudio
Arantes sentiu uma necessidade premente de ligar-se àquele semelhante.
Era tão fácil! “Chega ao extremo do fio, atende a este chamado. Fala a esse
homem, a essa mulher. Delicadamente. Faz com que te desejem, para além
da sombra, de fora desta solidão, faz com que te deem boa noite.”
Saiu de pés descalços, desceu alguns degraus, ficou mais longínquo o
chamado, ele voltou às pressas, subiu para o andar superior. Que o chamado
não cessasse, que não se exaurisse a paciência daquele desconhecido.
Localizou a porta. E foi, diante dela, como se estivesse preso e urgisse
livrar-se quanto antes, ganhar os descampados. Deu de ombros, de pés,
quebrou a fechadura, precipitou-se aos trambolhões, como um ébrio, para o
telefone:
— Alô!... — Outra vez, com mais força, gritou. Chamou ainda: — Alô!
Do outro lado, nenhuma voz respondia. Era apenas um silêncio derrisório,
o vazio deste silêncio, o nada. Pôs o fone no gancho, olhou, com remorso, a
porta arrombada. Por que fiz isto? Eu próprio comecei a implantar a
desordem, aqui, onde vou viver sozinho. Comecei a destruir, a desorganizar,
adiantei-me ao vento, ao próprio tempo, à podridão, ao cupim, às ratazanas.
VIII
No outro dia, indo visitar Dionísia, lá encontrou por acaso as duas filhas e
comunicou, no tom mais indiferente que lhe foi possível, a conversa da
véspera. Todas se alegraram, quando lhes falou na possibilidade de obter o
apartamento sem pagar as árduas prestações restantes, e esta alegria
também o fez feliz. Quando saiu, porém, achou-a impiedosa e admirou-se
da própria ingenuidade. Arriscava a sua vida e curtia o isolamento, bastando
que isto representasse uma vantagem possível, para causar na família uma
satisfação que chegava a ser cruel. E posso censurá-las? — perguntava. Não
me degradei, eu mesmo, trocando a minha vida por dinheiro? Vendi uma
aparência de coragem ou de obstinação. Não fosse isto e eu, Cláudio
Arantes Marinho, fugiria, me arruinaria, mas iria embora, fosse para onde
fosse. E o pior é que não vencerei a luta, não obterei o apartamento: a
Morte, aqui escondida, mais dia menos dia me descobrirá.
Vieram repórteres, fotografaram-no, mal perguntaram seu nome.
Publicaram, pagos pelos donos do “Capibaribe”, uma entrevista falsa, com
seu retrato numa das janelas, contemplando a paisagem. Ele era o homem
sem medo, o que não receava a morte e o mistério, o que preservava o
edifício do abandono, sendo também um símbolo de fé. Tenho fé em Deus,
dissera aquele desconhecido com a sua mesma idade, com um rosto
semelhante ao seu, cujo retrato saíra na entrevista e que o repórter
assegurava morar no seu apartamento, de onde contemplava, sobre o mar, o
despontar do Sol e as luzes dos navios. “Mas eu não creio em Deus, não
disse isso, há quantos anos não me lembro d’Ele?”
Soube que seus três algozes haviam oferecido, sem sucesso, dinheiro a
algumas pessoas, para morarem uns meses no “Capibaribe”. E ele? Também
não devia ganhar? Não valia milhões, o seu trabalho? Lesavam-no, esta era
a verdade, os três ricaços lesavam-no. Foi difícil vencer a própria intensa e
humilhante ambição de forçar exigências, ameaçar deixar o apartamento se
também não lhe dessem uma mensalidade, vender — ou pelo menos tentar
vender — por melhor preço a sua permanência, corromper-se ainda mais.
Quase não visitava Dionísia e só via as filhas quando iam ao banco, pedir-
lhe dinheiro. Telefonou, mais de uma vez, para o seu amigo Guimarães,
perguntando se podia visitá-lo à noite, mas o outro pretextava um
compromisso. Infelizmente, um compromisso inadiável. Chamasse outro
dia.
— Então, aparece lá, na casa assombrada — gracejava.
— Está bem — respondia o outro sério.
Não ia, mantinha-se arredio, tinha um juízo qualquer a seu respeito,
algum juízo errado. Todos se afastavam. Isto, porém, não duraria muito,
pois seus dias estavam bem contados, a Morte procurava-o, farejante e cega,
nos dois blocos, pelos vinte andares ocos.
Sempre que tornava, no silêncio da noite, a noção das distâncias
existentes, sem uma voz humana, sem nenhum coração, entre seu leito e o
porteiro, sentado no banquinho, meio adormecido, diante do edifício,
Arantes como que perdia os seus apoios e se esforçava para não chorar.
Propôs aos donos do “Capibaribe” transferir-se para um andar mais baixo.
A resposta foi não; precisavam dele bem no alto, para que a luz do seu
apartamento fosse vista de longe. É ali, que você precisa resistir. Mais
algumas semanas e outra janela haverá de acender-se, você já não estará
sozinho. Quis fazer outra proposta: deixaria acesa a sua sala, contanto que
dormisse no 1º ou no 2º andar, perto do chão. Mas foi embora.
Entrava em casa, quando se lembrou do telefone, em cima. Nunca mais
tocara... Chamar alguém, alguém, fosse quem fosse. Subiu aos saltos. A
fechadura da porta continuava em pedaços, o telefone fora removido. O
piso, as paredes, vidraças, portais, tudo ressoava como um órgão.
IX
Lia muitas revistas, para distrair-se. Comprava-as, quase todas as noites,
numa barraca da Martins de Barros, onde ficava o banco.
A moça que vendia revistas começou a dar-lhe confiança. Tinha o rosto
redondo e amarelaço, fácil de esquecer, os cabelos pintados num tom claro e
Arantes não sabia como eram os seus quadris ou suas pernas. Encontrara-a
jamais em outra parte que não entre as revistas, atrás daquele balcão, por
entre as muitas dezenas de rostos de mulheres que pareciam rir da sua
pálida beleza suburbana?
— Quero falar com você. Marque um lugar.
— Está passando um filme...
— Filme, não. Não posso. — E mostrou o dedo com a aliança, cheio de
compaixão de si mesmo, pois conhecera um momento de beleza, a mulher a
quem poderia amar com as forças mais antigas do seu coração tocara-o,
desaparecera, decerto esquecera-o e ele abdicava do sonho, descia até à
vendedora de revistas, só para fugir da solidão, ouvir no apartamento,
depois de tantos dias, uma voz humana. — Espero por você entre 19h30 e
20h horas, na Rua da Aurora, em frente à Câmara.
Saíram lado a lado, sob as castanholas, escutando o som das águas na
amurada. Era a primeira noite de setembro. Arantes sentia-se ridículo em
caminhar de mãos dadas. Sem havê-la beijado, sem quase haver falado,
parou, olhou-a de frente. Na sombra, o rosto inexpressivo e redondo
adquirira uma espécie de doçura. Mas aqueles olhos úmidos, que
procuravam imitar a flama da paixão...
— Quero que você suba ao meu apartamento.
— E sua família?
— Está fora.
Ela apertou-lhe o braço e acompanhou-o. Cláudio Arantes sentiu pela
mulher uma gratidão desmedida e espantou-se com o júbilo que tentava
conter e que, contido, parecia mais irrefreável. Andou depressa, sempre
mais depressa e quase esquecido da mulher, que trotava a seu lado. Desceu
o passeio esburacado, ganhou o meio da rua. À altura do último pé de
castanholas, a uns sessenta metros do edifício, segurando-lhe o braço com
mais força, ela deteve-o:
— Onde é que você mora?
Então, ao gesto indeciso de braço em direção à grande massa escura de
concreto, olhou-o como se ele fosse um espectro.
— Está com medo? Com medo de quê?
Ela fugiu. Tropeçou adiante, olhou para trás, ergueu-se outra vez,
descalçou os sapatos, disparou. Arantes se voltou com ódio para o arranha-
céu. Imensa baleia morta apodrecendo no cais? Morta, pensou, e nem assim
me governando menos. Baixou-se, catou uma pedra — mal suportando o
ódio, a cólera —, avançou. Ergueu o braço e a pedra caiu da sua mão: havia
uma janela acesa, no bloco posterior. Sorrindo, contou os andares, correu,
passou pelo porteiro sem cumprimentar, tomou um elevador do bloco “B” e
não localizou o apartamento.
Desceu. A luz continuava acesa, era no 6º andar, ele subiu outra vez. Não.
Nenhuma claridade sob as portas do 6º, do 7º e do 5º andar. Então, retomou
o elevador, saltou no térreo, apanhou o elevador do bloco “A” e entrou no
seu apartamento. O luar despontava.
Durante uma semana inteira, aquela sala acesa desafiou-o. Por duas
vezes, explicando ao porteiro que se sentia aborrecido e só, pediu-lhe para
fechar o portão e dar uma volta em sua companhia. Ia andando com ele,
falando por falar, detinha-se, olhava para cima, nenhuma luz havia. E o
velho não tocava no assunto, não mencionava a existência de outro
morador.
Uma noite, vendo o apartamento aceso, decidiu esclarecer aquilo de uma
vez. Junto ao portão que abria para a Travessa do Costa; um grupo de
meninos discutia. Gratificaria um deles para ficar embaixo, olhando a janela
do 6º e subiria sem sapatos pela escada. Podia ser que o hóspede, ouvindo o
elevador, desligasse a lâmpada. Se, chegando em cima, encontrasse o
apartamento às escuras, voltaria depressa, perguntaria ao menino em que
momento desaparecera a luz. Aproximou-se do grupo, tomou o braço de um
garoto de muletas. Voltou-se para o prédio e viu — viu a luz apagar-se.
Então saiu às pressas, escutando as vaias dos meninos, tomou o elevador,
subiu, deixou a sua porta escancarada. Era preciso que alguém o visitasse
aquela noite. Viria alguém, alguém, fosse quem fosse. Os minutos
passavam-se e a sua esperança, longe de morrer, tornava-se mais intensa.
Por sobre o elevador, no retângulo dourado, continuava aceso o número 18,
ninguém chamava embaixo, ninguém ia subir.
Meia hora depois, ele ouviu uma tosse, um gemido, resmungo de ferros e
levantou-se de um salto. O número 18 se apagou, e o registro mágico foi
indicando, dócil, o mergulho do ascensor através dos andares vazios, ao
encontro daquele que esperava embaixo.
E se não voltasse a subir?... Ficou de pé, os lábios secos, sem bater com
os olhos, olhando para os números. Começou o registro da subida — e seu
coração estacava a cada número, receando que este não se apagasse como
os anteriores, interceptasse a vida que subia, o fim de sua angústia, um jato
de alegria. Recuou um passo, hirto, o número 18 se acendera. O elevador
parou, abriu-se a porta e Arantes vacilou, com um grito surdo: não havia
ninguém dentro.
Trancou-se e deitou-se na cama, lutando contra pensamentos absurdos.
Era loucura pensar que a Morte, invisível, subira de elevador. E que
estava a seu lado, na sombra, silenciosa, olhando os reflexos das luzes nas
paredes.
X
Na manhã seguinte, em vez de ir ao banco, apanhou um ônibus, saltou na
Encruzilhada e dirigiu-se ao mercado. Comprou alpiste, uma gaiola de
arame, um periquito branco, apanhou um táxi e levou-o para o seu
apartamento, onde entrou como um recém-casado. Assoviando, pôs comida
no coxo, água fresca no papeiro de matéria plástica, estalou alegremente os
dedos e foi para o trabalho.
Quando voltou, não acendeu logo a luz. O pássaro dormia na gaiola,
sobre a mesa. A um gesto seu, quando ligasse a lâmpada, despertaria, faria
acrobacias, cantaria. E assim foi. Ficaram até bem tarde, frente a frente, o
periquito saltando, ele estalando os dedos e assoviando, cantou algumas
canções, falou da solidão, de sua infância, da vida que ainda o esperava, de
como era bonito uma rosa boiando sobre os coloridos peixes de um aquário,
do seu amor guardado e de como veriam, ele e o pássaro, daquela alta
janela, o despontar do Sol na linha do mar. Por fim, num gesto de ternura
que não pôde encontrar outra expressão, pôs, antes de dormir, um alvo
lenço de linho em cima da gaiola.
Pela madrugada, despertando, sentiu uma pontada de terror. Mas se
lembrou do periquito branco, adormecido na sala e abrigou-se, tranquilo, no
lençol. Mas não dormiu. Começou a pensar naqueles vinte andares,
naqueles apartamentos fechados, segregando mofo.
Ficou de pé. Não toleraria, nem por um minuto mais, o silêncio de aço,
aquela solidão constrangedora. Quem ouviria o seu grito, se tivesse uma
dor, se corresse um perigo? Um perigo?... Ia gritar, mas conteve-se. Gritar
para quê? E veio-lhe, premente, o desejo de falar, como fizera à noite, ao
pássaro. Saiu do quarto, ligou o interruptor e viu que o periquito estava
morto. Compreendeu então que iria enlouquecer e decidiu sumir,
imiscuindo-se, por um artifício que teria de inventar, naquela espécie de
mistério em que se vira envolvido.
XI
Sua providência inicial foi comprar calça e paletó escuros, numa liquidação
de roupas feitas. Em seguida, vindo do trabalho no sábado, trouxe
comestíveis e avisou ao porteiro que, tendo necessidade de descanso, ficaria
em casa durante o fim de semana, nem sequer visitando a família. No
sábado seguinte, fez o mesmo. Antes, porém, adquirira uma corda e,
pretextando haver perdido a sua chave, pedira ao velho as sobressalentes
(jogadas numa caixa, sem etiqueta indicativa) e experimentou-as uma a
uma, na porta do apartamento inferior ao seu, até abri-lo. Roubou a
duplicata e devolveu a caixa com as outras.
A madrugada de 28 de setembro, que fora a escolhida, não lhe saía da
mente. Tinha tudo: roupa e sapatos desconhecidos da família, dinheiro, a
corda, a chave de baixo, a faca, a esperança. O resto dependia de seus
punhos e de conseguir prender um gato, dos muitos que vagavam pelos
arredores. Então, começaria vida nova. A pobreza futura não contava;
importava era deixar a carapaça inútil, aquela vida velha e sem amor.
No sábado, luzes apagadas, havendo novamente avisado que passaria o
seu fim de semana sem sair, repassava o plano pela centésima vez. Nascera
a lua cheia, sua claridade iluminava o living. O gato, com seus olhos de
ouro refulgindo, bebia leite num pires. Fez tudo como se fosse dormir.
Trancou as portas por dentro, deixou as chaves na fechadura, escovou os
dentes, vestiu o pijama; ficaram os chinelos ao pé da cama, na mesa de
cabeceira o relógio de pulso. Às 2h30 da madrugada, barbeou-se, meteu o
gato num saco e deixou-o, juntamente com a roupa e os sapatos, no
apartamento por baixo do seu, abrindo a janela da frente. Subiu novamente,
trancou-se por dentro, verificou se não faltava nada. Não. Tinha no bolso do
pijama a faca e a chave do outro apartamento, o dinheiro estava na roupa.
Ergueu a vidraça. A Lua iniciara a descida; a fachada do prédio não
recebia mais o seu clarão. Havia, ao pé da janela, pequena grade de ferro:
mais que proteção, era um ornato. Num dos curtos varões, passou a corda,
de modo que as duas extremidades se tocassem embaixo, deu no meio da
corda um nó — e, com um medo terrível de cair, mas firme na sua decisão,
iniciou a descida. Viu quanto pesava seu corpo e arrependeu-se, mas voltar
era impossível, tinha de descer e quanto antes, as forças lhe fugiam. E se
tombasse dali, daquela altura, nem cairia na rua, mergulharia na lama da
maré e talvez nunca mais fosse encontrado. O piso dos andares, no
“Capibaribe”, prolonga-se numa espécie de ressalto mais ou menos largo,
na fachada, de modo que Arantes, em frente à janela na qual devia entrar, e
sentindo-se no limite de sua resistência, teve de provocar na corda uma
oscilação perigosa e de êxito difícil, porque o vento jogava-o para os lados.
Afinal, conseguiu meter as pernas no peitoril da janela e, quase sem
fôlego, sentindo que as mãos fugiam ao seu governo, impulsionou em um
último esforço o corpo, decidido a cair no apartamento ou despencar de
uma vez.
Os únicos sons que ouvia, quando voltou a si, eram os da ventania e os
movimentos do gato, agitando-se na sua prisão. E um outro rumor,
constante e sem ritmo, um roçagar na parede... Lembrou-se da corda. O
vento jogava-a, ela batia na parede, mas longe da janela.
Dispunha-se a arriscar a vida novamente, ficando de pé no ressalto da
fachada, quando a corda guinou em sua direção e ele agarrou-a, cortou um
dos lados acima do nó, puxou-a e cingiu-a à cintura. Tinha vontade de rir e
estava com sede. Com dificuldade — as mãos inchadas, endurecidas —,
vestiu-se, calçou os sapatos, fechou a janela e apanhou o saco, fechou a
porta, guardou a chave no bolso. Aí, lembrou-se de que melhor era descer
sem sapatos; descalçou-os. E se foi pelas escadas, contando os degraus,
tateando com os pés e os ombros, pois tinha as mãos ocupadas. Era
interminável: quase vinte andares, e às cegas!
No térreo, sentou-se no penúltimo degrau, as pernas trêmulas, o corpo
como que esvaziado. O portão de aço e vidro estava fechado, o velho
preferia passar as noites fora, enrolado num capote, sob os ventos, a ficar
dentro do “Capibaribe”. Arantes dirigiu-se, com o saco, para um depósito
de lixo, que há dias vinha observando. Com extremo cuidado, abriu o saco,
tirou a faca, feriu o gato e prendeu-o no depósito. Os miados,
ensurdecedores, rasgaram a madrugada. Ele correu, ocultou-se no pequeno
balcão da portaria e esperou. O gato saltava na prisão, seus miados
cresciam, davam medo. O vigia não vinha.
Por fim, a chave girou, rangeu o portão, o velho entrou, passou falando
só. Antes que ele desaparecesse, Cláudio Arantes saiu do esconderijo,
esgueirou- se pelo portão semifechado e respirou o ar da liberdade. Correu
pelo meio da rua ainda de sapatos na mão. Isto é um domingo, dizia a si
mesmo, é o começo de um domingo! Na Ponte Santa Isabel, calçou-se.
Lavou o rosto no repuxo da Praça da República e ali jogou a chave. É um
domingo que começa — repetia. E agora estou livre, vou em busca do
amor, das vozes, dos risos dos homens. Os sinos do Carmo chamavam para
a missa.
XII
O Edifício Capibaribe voltou a ser habitado. Com esta diferença: pertencia a
um só proprietário, que comprara os dois blocos por metade do preço,
quando lá moravam apenas ratos, aranhas e baratas. E a Morte, com sua
foice invisível. Ele próprio, com a família e a coleção de objetos antigos,
instalou-se num dos apartamentos, até que o episódio fosse esquecido.
Algum tempo mais tarde, viajou para o interior de Minas, onde
tencionava adquirir certa imagem raríssima sobre a qual alguém lhe havia
escrito, e lá encontrou — de barba, casado, com filhos e ateliê de fotógrafo
— Arantes Marinho. O ex-bancário, embora negasse a princípio, acabou
confessando sua identidade e descrevendo a fuga.
— Segredo puxa segredo — sentenciou o empresário. Era eu que matava
os moradores do prédio: todos os meios são lícitos para um bom negócio.
Numa cômoda do século XVIII, que adquirira na Bahia, tinha encontrado
a fórmula, escrita em latim, de um veneno que, parece, fora inventado para
Lucrécia Bórgia. Conseguiu prepará-lo e misturava-o com a cola dos
envelopes que, sob qualquer pretexto, enviava abertos para os moradores.
Não escrevia o endereço, de modo que jogava com o espírito de economia
do destinatário. Este, caso reaproveitasse o envelope e passasse a língua na
cola, estava morto.
— Se o senhor gosta assim de dinheiro, posso fazê-lo ainda mais rico —
disse Arantes. Não estou em condições de explorar o processo que inventei
de fotografar a cores. Podemos chegar a um acordo. Sabe, meus
documentos são falsos e tenho de viver na obscuridade.
Rindo do passado, subiram a rua tortuosa e deserta, ao sol do entardecer.
Arantes acomodou numa cadeira de braços o responsável por sua libertação,
mas também por tanta angústia inútil, preparou a máquina, pediu ao rico
assassino que sorrisse e apertou um botão. O disparo fez tremerem as
janelas nos caixilhos, a cabeça do homem tombou ensanguentada. Arantes
moveu outro dispositivo: a cadeira foi descendo com o morto; subiu pouco
depois, já sem ele. No ateliê, afora um pouco de fumaça, que o fotógrafo
afastou com as mãos, era como se nada houvesse acontecido.
O título chama logo a atenção para a tendência, que se impunha entre o
povo brasileiro convertido em “público telespectador” deste grande
monopólio empresarial da informação e do entretenimento que se instalava
no Brasil, de buscar notoriedade nos apelidos estrangeiros, sobretudo
quando designavam as figuras “ricas e famosas” dos filmes e seriados. O
nome dado à protagonista desta história, “Shirley Temple”, não foge,
portanto, à regra. De origem no inglês antigo, “Shirley” deriva de scir, que
significa “brilhante, luminoso, iluminado” e leah, “pasto, campo, condado”.
O nome, incomum e considerado masculino, foi popularizado
mundialmente após o estrelato da atriz estadunidense na década de 1930.
Até então, só fora atribuído a uma pessoa no livro Shirley, de Charlotte
Brontë, em 1849. À semelhança do que se sucede em Jane Eyre, seu
primeiro romance, a história é protagonizada por uma mulher de
personalidade forte. Neste caso, são duas heroínas, Shirley Keelder e
Carolina Helstone (personagem inspirada na irmã de Charlotte, Anne),
cujos comportamentos desafiam os padrões da época. Em pleno Século
XIX, em Yorkshire, no auge das Guerras Napoleônicas e no período mais
tumultuoso da Revolução Industrial, estas mulheres vão procurar impor-se
num mundo patriarcal, enfrentando duras provações, sobretudo no amor.
A peça repousa num poderoso elemento visual: a excessiva altura de
Shirley. A atriz deve dar uma ideia, ao mesmo tempo, de arrebatamento,
poesia e desamparo. Sua figura deve ser esgalga, longa, um El Greco. Os
cabelos corridos, bem lisos. Gosta de chapéus: na maior parte das vezes,
usa-os e tem, deles, uma pequena coleção, em geral puxando para o
esportivo. Sublinha sempre os olhos, fortemente, com traços negros. Na
SEGUNDA PARTE (e só na segunda) fuma com uma longa piteira (Não,
naturalmente, em todas as cenas).
Sua mãe fixou-se na figura de Shirley Temple7. Mais ou menos aos 47
anos, usa vestidos rodados e os cabelos em cachinhos. Procura sorrir com a
ingenuidade e o ar infantil da antiga menina-prodígio do cinema.
Quanto aos outros elementos, pouco preciso acrescentar. Já estão
suficientemente delineados e a sua aparência física não é tão importante
como nos dois casos anteriores.
Gostaria que Candinho, por vezes, usasse óculos escuros e bengala. Como
se fosse cego. Para merecer, nas ruas, uma certa atenção.
ABERTURA8
Letreiros alternando com algumas fotografias, que anunciam o tema e
constituem uma espécie de retrospecto da vida da heroína. As fotos, em
sépia, devem aparecer na seguinte ordem: o batizado: é tão comprida que os
pés são sustentados por outra pessoa, ao lado da madrinha; festa infantil de
aniversário: uma criança alta, soprando cinco enormes velas num bolo;
primeira comunhão: um grupo de crianças, salientando-se uma, mais alta do
que todas; a câmara aproxima-se e isola-a;
À medida que essa última imagem fica fora de foco, vão entrando vozes da
torcida. As vozes avultam com o aparecimento de rápidas imagens do jogo:
a personagem, pulando quase da altura da cesta, faz alguns pontos. Já se
ouvem alguns gritos: “Isto, Cegonha!”, mas ainda pouco claros.
PRIMEIRA PARTE
PERSONAGENS:
Shirley (a “Cegonha”) e, depois, o Técnico.
CENÁRIO:
vestiário do clube, com os armários ao longo das paredes e um banco
comprido no meio.
TÉCNICO
(Entra rápido.) Que é que há? Agora deu pra isso! A maior figura em campo
e, mal acaba o jogo, some. Está ficando mascarada?
SHIRLEY
(Senta-se no banco e vai tirando os sapatos.) Não vou mais jogar. Encerrei.
TÉCNICO
Close.
(Perplexo.) Ficou louca?
SHIRLEY
Enchi.
TÉCNICO
Pode-se saber por quê? Uma jogadora com as suas qualidades!
SHIRLEY
(Quase chorando.) Estou farta de ouvir esses gritos da assistência.
“Cegonha! Cegonha!”9 Eu tenho nome. Sei que é ridículo alguém chamar-
se Shirley. Principalmente eu. Mas é meu nome. Shirley. Shirley. Shirley!
TÉCNICO
(Agitado.) É um inferno. Nunca se pode organizar um time que preste.
Quando menos se espera, lá vem uma e casa com o primeiro torcedor que
aparece. (Enquanto isso, sobe no banco.) Outra, fica histérica. Você não
pode me deixar na mão.
SHIRLEY
Não adianta.
TÉCNICO
Isso é uma irresponsabilidade. Um crime!
SHIRLEY
E você? Que está fazendo em cima desse banco?
(Empurra o banco, bruscamente, com a planta do pé.)
TÉCNICO
(Caindo do banco, que vira.) Quer me matar? Quer me matar?
PERSONAGENS:
Shirley e Albano.
CENÁRIO:
lagoa com pequenos barcos e ancoradouro.
(Shirley, num barco, está quase parada. Albano pedala mais rápido, fazendo
círculos em redor.)
SHIRLEY
Quer parar com esse giro? Estou ficando tonta.
ALBANO
Então, vamos seguir lado a lado. Pode ser?
(Gesto de quem consente, mas sem dar muita importância. A câmara afasta-
se dos dois barcos juntos. Nota-se que conversam e que o moço fala mais
do que ela. Três ou quatro tomadas de uns quatro segundos cada. Agora, os
barcos chegando ao ancoradouro, com o casal já fotografado de perto. Ele
salta primeiro. Vai ajudá-la a descer. Sua surpresa [um tanto discreta],
vendo a altura da moça.)
ALBANO
Quer tomar um refrigerante?
SHIRLEY
Pode ser.
ALBANO
(Dirigem-se para o bar.) — É quente, a sua cidade.
SHIRLEY
Entre dezembro e janeiro é sempre assim. Depois do Carnaval, aí pela
Páscoa, melhora.
ALBANO
É animado, aqui, o Carnaval?
SHIRLEY
Mais ou menos.
ALBANO
Pensando bem, não estou assim com tanta sede. Você está?
SHIRLEY
Pensando bem, não. (Riem os dois.)
Fading.
PERSONAGENS:
Shirley e Menino.
CENÁRIO:
caminho estreito, o campo, poucas árvores, inclusive uma com um papagaio
preso nos ramos.
(Os pés de Shirley pedalando. — Seu rosto. Ela está de chapéu e com outra
roupa: é outro dia. — Ela na estrada. — Novamente seu rosto. Vemos que
ela percebe algo. — Uma criança, com um pau, tenta tirar o papagaio
enleado na árvore. — Ela desce da bicicleta. Como é alta, consegue tirar o
papagaio. O menino recebe o brinquedo, sorrindo. Ela bate na cabeça dele.
— Ela na bicicleta: acena para o menino. Ele não responde. — A câmara
distancia-se do menino. Este põe as mãos na boca, à maneira de porta-voz.)
MENINO
(Gritando.) Cegonha!
(Corte rápido. O rosto tenso de Shirley, que freia a bicicleta.)
MÚSICA:
sublinha o efeito, dramaticamente.
Fading.
(À direção: este breve incidente, que, embora reforce a tensão entre Shirley
e o meio, pareceria um tanto dispensável, é necessário. Ele é a miniatura de
episódios mais amplos, a serem ainda desenvolvidos.)
PERSONAGENS:
Shirley e Albano.
CENÁRIO:
o campo, a bicicleta ao lado.
(O casal sentado no chão. Vez por outra, mas não com muita frequência,
passam a mão diante do rosto, espantando os mosquitos: estamos no trópico
e é verão.)
ALBANO
Quero abrir uma firma de representações. Posso ficar rico em pouco tempo.
Pra mim, é fácil, tenho bons amigos no comércio de São Paulo. Gente
minha. Faz quase um mês, sabe?, que estou viajando por aí, observando:
não quero dar ponto sem nó. Já sondei a cidade. Parece ótima. Grana
bastante e otários não faltam.
SHIRLEY
Não é o único lugar com essas... qualidades.
ALBANO
Não estou dizendo que vou ficar aqui. Que já escolhi. Tudo vai depender de
conseguir o capital que falta. Por enquanto, filha, o que está me prendendo,
é você. Só.
SHIRLEY
Você nunca me disse o que fazia antes.
ALBANO
Comércio... Comércio. Pensa que estou duro? Tenho um pé-de-meia. Mas é
pouco.
SHIRLEY
Albano! De repente, você vai embora. Não é verdade?
ALBANO
Shirley! Acha que sou ave de arribação? Tenha calma. De qualquer
maneira, estou vidrado. Nunca encontrei alguém como você. No duro!
PERSONAGENS:
Shirley; depois, o Pai; depois, a Mãe (Janete) e os dois meninos, irmãos de
Shirley.
CENÁRIO:
quarto de Shirley. Cama, guarda-roupa (não-embutido), um porta-chapéus
com os seus chapéus etc. Dois posters: um de Greta Garbo e outro de um
louva-a-deus. Mesa de trabalho. Uma vitrola antiga. Discos. Livros.
A figura do Pai, enquadrado na porta, na mão direita uma lata com uma
planta e na outra um dicionário. Zoom rápido e o seu rosto perplexo. — É
atropelado pelos dois meninos, que acabam de irromper no quarto, seguidos
pela mãe, de roupão e papelotes. Confusão. — Expressão desolada da
Shirley.
PERSONAGENS:
Shirley e o Pai. Depois, Janete.
CENÁRIO:
escritório do Pai. Mesa de trabalho e cadeira. Telefone. Um rádio de pilha.
Papéis e 2 ou 3 livros sobre a mesa, sendo que um é o dicionário.
Passarinho de plástico, desses que metem o bico na água, levantam o bico e
voltam à mesma posição. Estante sem portas, com 20 ou 30 livros, no
máximo. Rede. Na parede: diplomas emoldurados e o retrato de formatura
do seu ocupante. Cadeiras. O rádio toca música caipira, em surdina.
PAI
Estou muito contente. Só ontem eu soube que você parou de jogar. Ótimo.
Não ficava bem, você, filha de um professor universitário, metida nessa
história de basquete.
SHIRLEY
Não foi por isso. Posso desligar? (Desliga o rádio.) Só que não quero mais
jogar.
PAI
Seja como for, dou o meu apoio. Afinal de contas, tenho uma certa
evidência na escola e... (Toca o telefone.) Alô... É da casa do Professor
Doutor Franco Tobias. Ele mesmo. Sim... Não. São dois sacos de farelo e
um de fosfato. Isso! Até logo. (Desliga.) Como eu ia lhe dizendo, aí está a
minha tese sobre o mundo carnavalesco, uma bibliografia enorme, mais uns
três ou quatro meses acabo de escrevê-la e, lá para o fim do ano — ou antes
— defendo-a. Eis-me, por assim dizer, no máximo da carreira: livre-
docente. E você misturada com essas moças sem reputação, numa quadra de
basquete...
SHIRLEY
Não foi por nada disso.
MÚSICA:
faixa
INTERVALO
PERSONAGENS:
Pai e Mãe. Esta, sentada na rede, balança-se de leve e faz tricô. O Pai está
na sua cadeira, junto ao birô.
CENÁRIO:
escritório do Pai.
PAI
De repente, a Shirley parece outra. Mais acessível, menos tensa. Você não
acha?
MÃE
É mesmo. Parece outra.
PAI
Você já viu o moço? Eu vi. É menor do que ela. Mas tinha que ser, não é?
Os cabelos compridos, por aqui. Agora, só usam assim.
MÃE
É. Agora estão usando assim. (Para de mexer com as agulhas. O Pai
levanta-se, dá-lhe um tapinha na mão, ela recomeça a trabalhar.)
PAI
Não é bem o par ideal para a filha de um livre-docente.
MÃE
Já está pronto, o artigo?
PAI
Não. Quase. Não é um artigo, Janete; é uma tese. O que me entristece, sabe,
é a obstinação da Shirley em não concluir o curso superior. A filha de um
mestre universitário! É um absurdo.
MÃE
Também acho. Um absurdo mesmo. (Para de tricotar. O marido “dá-lhe
corda” outra vez, batendo na sua mão. Ela recomeça.)
PAI
Não gostaria que ela casasse tão cedo. Além do mais, esse rapaz não me
entusiasma. Uma pessoa de fora, que ninguém conhece. E com os cabelos
compridos.
MÃE
Não sei pra quê, não é?, esses cabelos pelos ombros.
PAI
(Liga o rádio. Mais uma vez, música caipira.) Ofereceram um bom preço
pela nossa fazenda.
MÃE
Você vendeu?
PAI
Se eu tivesse vendido, Janete, você saberia.
MÃE
Precisava a minha assinatura, não é?
PAI
Vou convidar esse rapaz para jantar aqui em casa. Você não acha? Assim, a
gente pode conhecê-lo melhor.
MÃE
Boa ideia. Mas será que ele vem? Parece tão desconfiado!
PAI
(Desliga o rádio.) Desconfiado? Você o viu onde?
MÃE
Aqui. Quer dizer: na sala. Shirley tocou um pouco e ele ficou sentado,
ouvindo. Quase não falou.
MÚSICA:
tema, à base de cordas, servindo de cortina às próximas cenas.
PERSONAGENS:
Shirley, o Pai, a Mãe, os irmãos e Albano.
CENÁRIOS:
vários.
(Obs.: não veremos os atores pronunciando as frases que se seguem.)
VOZ DE SHIRLEY:
De repente, o vento chega. Sopra horas e horas, sem parar. Você precisa ver.
(Breve pausa.)
VOZ DE ALBANO:
Acho que vou-me fixar aqui. O único problema é o capital. (Breve pausa.)
VOZ DE SHIRLEY:
Minha mãe, quando menina, era fã de Shirley Temple. Quando nasci, pôs-
me este nome ridículo. (Pausa.)
VOZ DE ALBANO:
Bonita, essa música. É Chopin? (Ele pronuncia “IN”.)
VOZ DE SHIRLEY:
Não. É O Cisne, de Saint-Saens. O carnaval dos animais. Qualquer música,
você sempre acha que é Chopin.
VOZ DE ALBANO:
Gosto muito de Strauss.
IMAGENS:
Shirley e Albano, ela na bicicleta, pedalando vagarosamente, e ele
acompanhando-a a pé, gesticulando; os dois andando na rua, ele um pouco
afastado; numa mesinha de bar; os dois no mesmo barco; ela tocando
violoncelo; ele dando um presente a ela; a mãe com as mãos paradas no ar,
o pai dando-lhe um toque na mão e ela recomeçando a tricotar; Shirley
lendo um livro; Shirley falando ao pai, a mãe entra, o pai lhe conta algo, ela
ergue as mãos, a cena continua, a mãe com as mãos levantadas, o pai baixa-
lhe as mãos; vêm Shirley e Albano andando, ele em cima da calçada, ela
embaixo, param, ele beija-a.
Fading.
MÚSICA:
morre, juntamente com a última imagem.
PERSONAGENS:
Shirley e o Pai.
CENÁRIO:
escritório do Pai.
SHIRLEY
O senhor vai vender o carro velho?
PAI
Sim. Tem mais de três anos. Estou dando entrada em um novo.
SHIRLEY
Bem. É que... Por que não me dá o outro?
PAI
Você precisa de carro, Shirley? Pra quê?
SHIRLEY
(Não responde logo.) Tanta coisa! É, talvez eu não precise mesmo. Mas o
senhor nem sempre pode me emprestar o seu.
PAI
Shirley... E esse tal de Albano?
SHIRLEY
(Gesto vago, que nada quer dizer.)
PAI
Por que não rompe?
SHIRLEY
Romper?... E depois?
PAI
Tenho de convir que você, este último mês, está feliz. Mas... não me parece
que ele sirva.
SHIRLEY
E quem serve? Foi o primeiro, até hoje que me deu atenção. Quer montar
um escritório. Representações.
PAI
Traga-o para jantar. Por que ele não veio ainda?
SHIRLEY
Eu não quero insistir. Tenho medo.
PAI
Medo? Medo?!...
(A câmara focaliza-o. Por trás dele, o passarinho de plástico, no seu
movimento inexorável e sem sentido.)
MÚSICA:
torna o motivo anterior. Vai acelerando no fim da cena.
PERSONAGENS:
Shirley, Albano, o Pai, a Mãe e os irmãos.
CENÁRIOS:
vários.
VOZ DE ALBANO:
Mas quem é Shirley Temple?
VOZ DE SHIRLEY:
Uma criança, atriz dos anos 30. Representava um mundo aparentemente
ingênuo e sem maldade. (Pausa)
VOZ DE ALBANO:
Claro. Gosto de você. Mas jantar lá, com o velho?! (Ligeira pausa.) Essa,
agora, é de Chopin?
VOZ DE SHIRLEY:
Não. De Mozart. Ele, às vezes, também escrevia peças fáceis. (Pausa.)
IMAGENS:
Shirley no carro, dirigindo; ela tocando violoncelo, entram os dois irmãos
mascarados e fazem gestos, ela enxota-os com o arco; Shirley e Albano no
carro, mas este é que vai dirigindo; um circo, visto de fora; Shirley e
Albano discutindo, ele parecendo muito abalado; cena de Carnaval, ela
dançando sozinha e Albano tirando a máscara (é uma máscara sorridente),
fitando-a com ódio intenso; mesa de jantar na casa de Shirley, todos à mesa,
inclusive os irmãos e Albano; uma criança empurra a outra, esta revida, cara
espantada de Albano, a mãe dá um cascudo no Menino 1, a cara dele
chorando, cara do Menino 2 rindo, plano geral com o pai levantando-se e
arrastando este último pela orelha; o outro, ainda chorando, joga um pão na
mãe; a mãe reclama do marido, o marido briga com a criança, esta sai da
mesa correndo, o pai sentando-se na mesa, oferecendo molho ao visitante, o
visitante estendendo o prato de macarrão, o pai vira o molho, close: cai a
tampa do vidro e o molho derrama-se no prato.
(Música: encerra.)
PERSONAGENS:
o Pai e Albano.
CENÁRIO:
Sala de estar. Poltronas, TV, mesinha de centro com flores de plástico, o
Coração de Jesus, uma dessas incríveis tapeçarias de parede representando
um tigre.
PAI
E sua família, meu rapaz? São todos de Minas?
ALBANO
Não saem de Mariana. Aliás, ficam pra lá de Mariana.
PAI
Por que não se formou?
ALBANO
Sabe? Gosto do comércio. Nasci com esse troço. Comprar e vender. Quero
me instalar aqui como representante. A cidade é joia. Indústria e café. Muita
grana.
PAI
Também sou um pouco fazendeiro. Tenho uma propriedade a três
quilômetros daqui.
ALBANO
É grande?
PAI
Mais ou menos. Estou pensando em passar uns dias lá, terminando a minha
tese. Boas terras, sabe? Aqui, nós, do magistério, sempre temos outra
atividade.
ALBANO
Ah!
PAI
E seu pai, faz o quê?
ALBANO
Ele se vira. Gado, cereais, essas coisas. Cara bacana, o velho. Vivo.
PERSONAGENS:
Shirley e a Mãe.
CENÁRIO:
o escritório. Shirley está meio deitada na rede, olhando um álbum de
fotografias. A mãe sentada, a certa distância.
(A câmara focaliza a cena, de tal maneira que vemos as fotografias no
álbum. Algumas, justamente, são as que já vimos na abertura da peça.)
SHIRLEY
(No álbum, vemos o retrato de Shirley com o pretinho.) Por onde andará o
Geraldo?...
MÃE
Que Geraldo? (Tem as mãos meio erguidas e não as muda de posição
durante a cena.)
SHIRLEY
Este aqui. Era nosso vizinho naquelas férias em Santos.
MÃE
O negro? Como você foi agora se lembrar daquele traste?
SHIRLEY
(Sorri.) Um dia, fiz uma aposta com ele e perdi. Não me lembro como era a
aposta, nem qual era o pagamento. Sei que não paguei. Coitado.
MÃE
Coitado, por quê, minha filha?
PERSONAGENS:
o Pai e Albano.
CENÁRIO:
sala de estar.
ALBANO
Só preciso de um sócio. Um sócio ou, então, um bom avalista.
PAI
Não vai ser tão fácil. Eu, que nasci aqui, às vezes tenho dificuldades!
ALBANO
Quero operar no ramo de eletricidade. Mesmo porque, nesse ramo, eu sou
doutor. Conheço bem eletrônica.
PAI
Minha TV não está funcionando muito bem. Deu para apresentar umas
barras transversais, horríveis. Às vezes, foge o som.
ALBANO
Ah, precisava ver o diagrama esquemático. Um problema de circuito. Às
vezes, os resistores não estão de acordo com os capacitores. Amanhã ou
depois, durante o dia, eu venho aqui, se o senhor quiser, e olho. Mas já é
tarde, acho que vou indo. Minha mãe gostaria de conhecer o senhor.
PAI
Por que a sua mãe?
ALBANO
Meu pai também, é claro. Mas ela ainda é mais exigente do que ele. Bem...
(Estende a mão rapidamente.) Um seu criado.
PAI
(Olha-o, suspicaz.)
Corte
PERSONAGENS:
Shirley e Albano
CENÁRIO:
espetáculo circense.
(Panorâmica do público, enquanto se ouve a voz do empresário. Termina
focalizando o rosto de Shirley. Albano está a seu lado.)
VOZ DO EMPRESÁRIO:
E agora... respeitável público, tenho o grande prazer de apresentar-lhes... O
Maior Homem do Mundo e o Menor Homem do Mundo! Maestro!
MÚSICA:
faixa circense.
Corta.
PERSONAGENS:
os mesmos.
CENÁRIO:
estão dentro do carro.
SHIRLEY
Nós não devíamos ter ido.
ALBANO
Deixa pra lá.
SHIRLEY
Você acha que eu pareço retardada? A gente cresce muito, fica parecendo
meio anormal. Depois, precisa provar que não, que não é.
ALBANO
Shirley... Acho que vou embora. (Ela vai ligar o carro.) Não. Não sei se
você está entendendo. Vou me mandar. Vou cantar noutra paróquia.
SHIRLEY
Quando?
ALBANO
Queria muito ficar aqui, sabe? Mas não estou encontrando um ambiente
sadio. Tudo muito fechado. E não preciso de tanto para iniciar. Uns quinze
ou vinte mil, juntando com o que eu tenho, estava tudo azul. Bom. Não
adianta chorar. Não é mesmo?
SHIRLEY
Tenho pensado nisso. Talvez possa dar um jeito.
Corte
(Uma janela bate com força. Ruído de ventania. Uma avenca pendurada,
balançando. Shirley vem correndo sob o vento forte, à luz suja da manhã.)
PERSONAGENS:
Shirley, o Pai e a Mãe.
CENÁRIO:
quarto de Shirley. A porta, que está entrefechada, é aberta violentamente e
ela irrompe feito louca. Atira-se na cama, soluçando com violência. Entram
o Pai e a Mãe.
PAI
(Agitando-a.) Shirley! Shirley! Que aconteceu?
MÃE
(Olha tudo atônita, sem saber o que fazer.)
PAI
Fale. Que foi que houve?
SHIRLEY
(No meio das lágrimas.) Ele foi embora.
PAI
Pode ser que volte.
SHIRLEY
Enganou-me. (Levanta-se com violência.) Enganou-me.
PAI
Quando foi isso?
SHIRLEY
Hoje. De madrugada. Nem pagou o hotel.
PAI
Se foi embora, é porque não prestava. Não se perde nada.
SHIRLEY
Eu não fico mais nessa cidade.
PAI
Que tem a cidade com isso? Vou chamar um médico.
Exit.
MÃE
Tenha calma. Calma.
SHIRLEY
Não quero mais saber de nada. Odeio tudo. Tudo!
PAI
(Voltando, lívido.) Shirley... Por que você não veio de carro? Onde deixou o
carro?
SHIRLEY
(Abraça-se com ele.) Vendi. Dei o dinheiro a ele, para abrir a loja, o maldito
escritório, começar a vida. Como pôde fazer isso?!
PAI
(Desprende-se.) E você? Como pôde fazer uma cretinice igual? Vender o
que lhe dei? E meter o dinheiro no bolso de um ladrão? Com aquele cabelo,
não podia mesmo prestar pra coisa alguma.
SHIRLEY
Não foi por isso que ele me enganou. Não foi por isso. (Esmurra a parede.
Atira-se na cama. Close, o rosto cheio de ódio e desespero.) Não fico mais
aqui. Nem um dia. Não suporto mais que ninguém ria de mim. Se ficar, me
mato.
MÚSICA:
sublinha a cena, com frase rápida e tensa.
PERSONAGENS:
os mesmos.
CENÁRIO:
estação ferroviária.
SHIRLEY
(Beija e abraça, rapidamente, o Pai e a Mãe. Sobe no trem11, levando o
violoncelo. Toque de sineta. O trem parte. Ela fita os pais, enquanto o trem
vai afastando-se. O Pai e a Mãe andando.)
PAI
Que será da minha filha em São Paulo?... Uma cidade tão grande!
MÃE
(Comovida e com ar infantil.) É isso que estou aqui pensando. Uma cidade
tão grande!
SEGUNDA PARTE
PERSONAGENS:
Shirley e o Pai.
CENÁRIO:
sala do apartamento em que ela está morando. Pequeno e um tanto
antiquado na sua decoração, mas de relativo bom gosto, com algumas peças
antigas (poucas); um jarro, uma estatueta. Tapete. Telefone. Cortina. O
abajur aceso. Livros. Vê-se ainda o violoncelo. O apartamento fica no 10°
andar.
PERSONAGENS:
o Pai.
CENÁRIO:
o banheiro.
PAI
(Ante o espelho [cena rápida], compõe-se com um ar de vaidade que indica
a natureza da “visita” a fazer.)
PERSONAGENS:
o Pai e Shirley.
CENÁRIOS:
o quarto de dormir e, depois, a sala.
PERSONAGENS:
Shirley.
CENÁRIO:
rua central de São Paulo.
PERSONAGENS:
o Chefe e a Recepcionista.
CENÁRIO:
sala do Chefe. É um escritório elegante. Seu birô fica de lado para a janela.
Do alto, mais ou menos sobre o ponto em que fica a sua poltrona giratória,
pende uma lâmpada, protegida por um quebra-luz largo, art nouveau.
Há duas portas e um cofre.
CHEFE
De todos os testes, o melhor é mesmo o dessa moça. De longe. Além do
mais, conhece línguas. Tem boa aparência?
RECEPCIONISTA
Bem, o senhor sabe, pra mim, como mulher, é difícil dizer.
CHEFE
Mas é preta? É mal-arranjada? Enfim...
RECEPCIONISTA
Não. Não é nada disso. Usa um chapeuzinho.
CHEFE
Vinte e dois anos... Na força da idade. Isso é bom, é ótimo. O inconveniente
que eu acho é ser crua em matéria de escritório. Nunca ter trabalhado.
Capaz de pensar que emprego é camping. Piquenique. Usa um
chapeuzinho?
RECEPCIONISTA
Pois é. Assim. (Faz um gesto.)
CHEFE
Grau de escolaridade... Não tem diploma superior e não está estudando.
Abandonou o Curso de Letras no primeiro ano. Estranho. Como se chama?
RECEPCIONISTA
Shirley.
CHEFE
Shirley? Puxa! Eu era fã de Shirley Temple.
RECEPCIONISTA
De quem?
CHEFE
Shirley Temple. Não conhece?
RECEPCIONISTA
Não. Nunca ouvi falar.
CHEFE
É verdade. Você é muito nova. Mas nunca viu na TV?
RECEPCIONISTA
Não.
CHEFE
Ela era o máximo. Menina-prodígio. Fez filmes lindos. A Mascote do
regimento. A Queridinha do vovô. Hoje é embaixadora, qualquer coisa
assim. Entrou na política. Mas naquele tempo... Eu não perdia um filme de
Shirley Temple. Telefone para a candidata. (A Recepcionista vai retirando-
se.) Um momento. (Ela volta.) (Ele abre uma gaveta e retira uma pasta de
cartolina cheia de papéis. Acha o que procura, uma foto e mostra-a.)
Conhece?
RECEPCIONISTA
Não. Sua filha?
CHEFE
Quantas vezes preciso repetir-lhe que não sou casado?
RECEPCIONISTA
Eu esqueço. Sobrinha?
CHEFE
Nada disso. É ela. Shirley Temple!
PERSONAGENS:
Shirley.
CENÁRIO:
sala do seu apartamento.
SHIRLEY
(Vai saindo13, sempre de chapéu. Fecha a porta. O apartamento vazio. A
câmara busca o telefone, que tilinta cinco ou seis vezes. A mão de Shirley
apanhando-o. Seu rosto, com o telefone no ouvido. Vê-se, por trás dela, a
porta ainda aberta.) Alô... Para que número ligou? (Até aí, ela está ainda a
meia distância, não se ouvindo quem fala do outro lado. A câmara vai
aproximando e vamos distinguindo a voz que lhe fala.) Não, não é este
número.
MOÇO
(Off) Que número é, então?
SHIRLEY
Por que o senhor quer saber?
MOÇO
(Off) Que idade você tem?
SHIRLEY
Vinte e dois, vinte e três... Por aí.
MOÇO
(Off) Então, não me chame de “senhor”. Eu tenho vinte e seis. Use o
“você”. Que tal?
SHIRLEY
Olhe: desculpe, mas eu preciso sair: Ciao.
MOÇO
(Off) Alô... Eu não lhe disse por que estou insistindo. Deixe-me dizer e,
depois, pode desligar: você tem uma voz linda14. Cálida. Musical. É mesmo.
MÚSICA:
Inicia tema delicado, que entra logo em cortina.
SHIRLEY
(Tira o chapéu.) Você acha?
MOÇO
(Off) Claro.
(Esses diálogos, como se sabe, são sempre altamente banais e não vale a
pena continuar. Vê-se que Shirley continua falando animadamente.)
Fading.
MÚSICA:
cresce e se esvai com a imagem, quase desaparecendo.
PERSONAGENS:
o Chefe.
CENÁRIO:
o escritório.
CHEFE
(A campainha do interfone chama. Ele atende.) Pronto.
RECEPCIONISTA
(Off) Continua ocupado.
CHEFE
Daqui a uns dez minutos, chame outra vez.
PERSONAGENS:
Shirley.
CENÁRIO:
seu apartamento.
MÚSICA:
cresce, com a mesma imagem que retorna, sem que se ouça a voz da moça,
evidentemente alegre com a inesperada conversa telefônica. Novo fading. A
música quase desaparece outra vez.
PERSONAGENS:
o Chefe.
CENÁRIO:
o escritório.
CHEFE
(A campainha do interfone chama. Ele atende.) Diga.
RECEPCIONISTA
(Off) Ainda continua ocupado.
CHEFE
Talvez esteja quebrado. Chame daqui a uma hora. Ou amanhã. Não. Passe
um telegrama. Mande um boy. Como achar melhor.
RECEPCIONISTA
(Off) Está bem.
CHEFE
(Sozinho, fica um instante pensativo, abre a gaveta, retira novamente a
pasta e contempla o retrato de Shirley Temple. A câmara focaliza esse
vestígio amarelado de um passado inteiramente morto.)
PERSONAGENS:
Shirley e a Voz do Moço.
CENÁRIO:
seu apartamento.
SHIRLEY
(Está sentada no chão, sobre o tapete.) Altura, um metro e sessenta. Talvez
um pouco menos.
MOÇO
(Off) A gente podia se encontrar. Que tal? Sem compromisso.
SHIRLEY
Podia ser. Mas... Mas não sei se vale a pena.
MOÇO
(Off) Dê o seu telefone.
SHIRLEY
(Hesita.) Não posso.
MOÇO
(Off) Por quê?
SHIRLEY
Sou casada.
MOÇO
(Pausa.) (Off) Então, nunca mais nos falamos? Tudo acaba aqui?
MÚSICA:
entra levemente com som de violoncelo: Apenas um Coração Solitário.
SHIRLEY
E se você me desse o seu número? (Imitando-o.) Que tal?
MOÇO
(Off) Pode ser. Tome nota.
SHIRLEY
(Apanha o lápis e abre o caderno de endereços.)
Fading.
PERSONAGENS:
Shirley e a Recepcionista.
CENÁRIO:
o mesmo e o escritório.
MÚSICA:
cresce com a música de violoncelo.
SHIRLEY
(Está sentada, a partitura na sua frente, tocando. Vê-se o título da música:
Apenas um coração solitário. Tocam a campainha. Ela olha na direção da
porta, sem parar de tocar. Vê-se a parte inferior da porta. Alguém introduz
um envelope.)
SHIRLEY
(Ela para de tocar, levanta-se e apanha a correspondência. Seu rosto,
alegrando-se com a leitura da mensagem. Precipita-se para o telefone, bate
com a perna numa cadeira, pula de dor e o salto se transforma num breve
passo de dança. Liga o telefone.)
SHIRLEY
Alô... Recebi o chamado. Quando devo ir ao escritório?
RECEPCIONISTA
O chefe quer que você venha hoje, bem. Hoje, ainda? Já são mais de cinco
horas.
Corte
RECEPCIONISTA
É que ele viaja amanhã e vai passar fora três ou quatro dias. Queria ver se
entrevistava você hoje.
Corte
SHIRLEY
A que horas termina o expediente?
Corte
RECEPCIONISTA
Às sete, sete e pouco.
Corte
SHIRLEY
Está bem. Dentro de meia hora, mais ou menos, estou aí. (Desliga.)
PERSONAGENS:
Shirley, o Chefe, a Recepcionista e dois Assaltantes.
CENÁRIO:
o escritório.
CHEFE
(Está folheando papéis. Toca o interfone. Ele atende.)
RECEPCIONISTA
(Off) Dona Shirley está aqui. Posso mandar entrar?
CHEFE
Pois não. (Levanta-se. A lâmpada ilumina a sua cabeça. A porta se abre.
Vê-se o seu rosto um tanto atônito. A câmara acompanha lentamente o
longo corpo de Shirley, subindo dos pés à cabeça. Está de chapéu. O Chefe
senta-se.) Queira sentar-se, dona Shirley, faça o favor.
SHIRLEY
(Ocupa uma cadeira ao lado da mesa. Tira o chapéu.)
CHEFE
(Mexendo nuns papéis.) Estive examinando o seu teste. Compreenda, tenho
várias candidatas em vista, mas a escolha final depende... bem... desta
conversa. Qual é a sua pretensão salarial?
SHIRLEY
(Vagamente espantada.) Está aí, na ficha que preenchi.
CHEFE
Ah, sim. É verdade. Um tanto elevada...
SHIRLEY
(Mexendo na bolsa, tira a carta recebida.) A carta que o senhor me mandou
não fala de nenhuma condição. Diz que eu fui aprovada e que me apresente
com urgência, trazendo os meus documentos. É isso que está escrito.
CHEFE
Não. Para ser franco, o cargo já está preenchido. Apenas, como o seu teste
foi bom, eu fiz questão de vê-la, para... no futuro...
SHIRLEY
(Dura e calma.) O senhor está mentindo.
CHEFE
Não ouvi bem.
SHIRLEY
Ouviu. O senhor está mentindo. Como tantos outros não aceitam negros,
não me aceita devido à minha altura.
CHEFE
Não estou entendendo.
SHIRLEY
(Levantando-se. Seu chapéu cai no chão.) Está entendendo demais. Não
admitem que uma mulher seja superior em nada a vocês. Nem mesmo na
altura. Mas eu quero trabalhar. Quero viver a minha vida. Por que vocês não
deixam?
CHEFE
Acalme-se.
SHIRLEY
Por que vou ter calma? Querem que eu corte as pernas? Eu tenho direito ao
meu lugar no mundo.
CHEFE
A senhora está louca!
SHIRLEY
Não tenho culpa de ser como sou. Não tenho culpa do mundo que encontrei.
(Em tom mais baixo.) Não tenho culpa...
CHEFE
(Fita-a, sem ação.)
SHIRLEY
(Baixa-se para apanhar o chapéu. A porta abre-se violentamente e dois
homens armados invadem a sala, jogando para dentro a Recepcionista
aturdida.)
ASSALTANTE
Todo mundo quieto. Mãos para cima. (A Shirley.) Você também.
SHIRLEY
(Vai levantando-se, braços para o alto, o chapéu na mão direita.)
CHEFE
Como entraram aqui?
ALBANO
Feche a matraca. Veja a chave do cofre.
SHIRLEY
(Está de pé. Sua expressão é de ódio, um ódio duro e concentrado. Fita
Albano de maneira implacável.)
ALBANO
(Reconheceu-a. Mas faz como se nunca a tivesse visto.) Você, mais pra trás,
se não quer levar bala. (Ela recua um pouco. Devido à sua altura, seus
braços, levantados, ultrapassam a lâmpada com sua campânula art
nouveau.) (Ao Chefe.) Vamos depressa. A chave.
MÚSICA:
faixa vibrante.
INTERVALO
PERSONAGENS:
os mesmos.
CENÁRIO:
o mesmo.
CHEFE
Posso abrir o cofre, mas vocês...
ASSALTANTE
Para com o papo, velho. Pega a chave e abre o cofre. Não podemos perder
tempo.
ALBANO
Tem um minuto. Corra. E não se meta a bacana. (Faz um gesto ostensivo,
olhando o relógio de pulso.) Dois segundos... Quatro segundos... Cinco.
CHEFE
(Com a chave na mão, precipita-se para o cofre. Série rítmica de imagens.
As mãos do Chefe contando os números no segredo do cofre. Cara de
Shirley, que lança um rápido olhar para a lâmpada à sua frente. Cara da
Recepcionista. Do outro Assaltante. Relógio de Albano: passaram-se quinze
segundos. Mão firmada no revólver. O rosto suado do Chefe. Shirley. A
lâmpada. O relógio: vinte e cinco segundos. Toda a responsabilidade da
cena a cargo da montagem.)
MÚSICA:
sublinha e reforça o ritmo da sequência.
ALBANO
Cinquenta segundos. Abre esse troço ou não abre?
MÚSICA:
acorde decisivo.
SHIRLEY
(A câmara, rapidamente, elucida o seu pensamento. Baixando as mãos
erguidas, ela dá um golpe e arrebenta a lâmpada.)
(Escuridão. Três ou quatro disparos. Rumor de corpos rolando e de passos
precipitados. Cai um móvel.)
VOZ DE ALBANO
Cai fora, enquanto é tempo.
CANDINHO
(Abre a porta. Um disparo quase o atinge, seu vulto desvencilha-se. Os dois
assaltantes fogem pela porta.)
VOZ DO CHEFE
Onde estão vocês? Estão feridas?
RECEPCIONISTA
(Começa a gemer.)
CHEFE
(Acende o isqueiro.) Você está ferida?
RECEPCIONISTA
(Move a cabeça afirmativamente, apavorada.)
CHEFE
(Dirige-se para a mesa, o isqueiro na mão. Põe o isqueiro na mesa. Apanha
o telefone e ergue o rosto. Vê-se Shirley, que não se protegeu dos tiros, de
pé, hirta.) Como posso retribuir o que fez?
SHIRLEY
Eu tinha uma conta a ajustar. Estou me lixando pelo seu cofre.
PERSONAGENS:
Shirley, Voz de Policial e Candinho.
CENÁRIO:
Delegacia de Polícia.
SHIRLEY
(Examina um papel, seu depoimento.)
VOZ DE POLICIAL
Tudo O.K.?
SHIRLEY
Tudo O.K.?
VOZ DE POLICIAL
Então, assine.
SHIRLEY
(Assina e devolve o papel.) Posso ir?
VOZ DE POLICIAL
Faça o favor.
CANDINHO
(Aproximando-se.) Também estou liberado?
VOZ DE POLICIAL
Já devia ter ido.
CANDINHO
Obrigado.
PERSONAGENS:
Shirley e Candinho.
CENÁRIO:
rua.
CANDINHO
(Andando ao lado de Shirley.) Puxa! Nunca senti tanto medo na minha vida.
É assim que a gente morre. Caminha para a morte.
SHIRLEY
Que é que o senhor foi fazer lá?
CANDINHO
Já trabalhei com aquele sujeito, quando ele não estava tão bem de vida.
SHIRLEY
Por que saiu?
CANDINHO
Eu? Sair? Sair o quê? Fui demitido. Mas, às vezes, apareço lá e ele me larga
uma nota. Não é toda vez, sabe? Mas não custa arriscar.
SHIRLEY
Por que ele lhe demitiu?
CANDINHO
Por causa da idade. Ninguém acha que eu ainda possa dar no couro.
SHIRLEY
Estou com fome. Quer fazer um lanche?
CANDINHO
Se a senhora paga, eu aceito.
PERSONAGENS:
os mesmos.
CENÁRIO:
lanchonete.
CANDINHO
Escute: a senhora não teve medo? Não pensou que um daqueles tiros podia
acertá-la?
SHIRLEY
Sim, pensei nisso. Mas não tive medo. Ao contrário: dizia a mim mesmo: é
agora. Agora!
CANDINHO
Pois eu, acho que antes de ouvir o tiro já estava no chão. Nunca pensei que
ainda pudesse ser tão ligeiro. Mas o esforço foi tão grande que ainda estou
doido. Acho que amanhã nem consigo sair da cama.
SHIRLEY
Onde é que o senhor mora?
CANDINHO
Numa pensão. Quer dizer, pensão é o modo de dizer. É um cortiço. Mora
gente, lá, da pior laia. E o aluguel sobe sempre.
SHIRLEY
Não tem aposentadoria?
CANDINHO
Tenho. Mas sempre ganhei pouco. Mesmo quando era moço, nunca recebi
grande coisa. De modo que a pensão — vou lhe ser franco — não dá para
comer todos os dias. E eu não tenho filhos, não tenho ninguém que me
ampare nesse mundo. Envelhecer é muito chato. Mas envelhecer sem grana,
é uma peste.
PERSONAGENS:
os mesmos.
CENÁRIO:
quarto de Candinho. Cama turca. Velha mesa de pau, sem verniz. Uma
pequena valise. Nada nas paredes. Som de bate-estacas.
CANDINHO
Muito obrigado pelo auxílio, dona Shirley. Mas ouça um conselho. Tenha
cuidado com a vida. Aqueles caras. Quando menos se espera, saem da
cadeia. Eles podem querer tomar uma vingança.
SHIRLEY
Já pensei nisso. Mas a cidade é tão grande!
CANDINHO
Não confie. É um conselho. E não se esqueça. Se encontrar um trabalho pra
mim... Qualquer coisa. Mesmo que o ordenado seja só pra constar. Eu lhe
confesso: tenho medo de viver neste miserê. De repente, alguém pode me
fazer uma proposta suja e eu aceito. (Ri.) Minha finada mulher às vezes me
dizia: “Você, Candinho, não é flor que se cheire”. E não sou mesmo.
(Cresce o barulho de bate-estacas. Agora, também uma serra elétrica.)
SHIRLEY
Estão construindo dos dois lados, não é?
CANDINHO
É. As construtoras, agora, descobriram esta zona. Aqui também vão fazer
um edifício.
SHIRLEY
Aqui, onde?
CANDINHO
Aqui. Vão derrubar a casa. Não viu a placa lá fora?
SHIRLEY
Vai ter de se mudar?
CANDINHO
Que jeito? Se, pelo menos, eu arranjasse um lugar de vigia na obra... Mas
eles não me aceitam.
SHIRLEY
O senhor fazia o quê?
CANDINHO
Fiz de tudo. Trabalhei em circo... Ator, sabe? Galã. Aprendi o ofício de
eletricista, fui aprendiz de alfaiate, zelador, baleiro em cinema... Nem me
lembro mais de tudo.
SHIRLEY
(Pensa um pouco.) O senhor... se importava de morar num quarto de
empregada?
CANDINHO
E eu tenho esses orgulhos? Mas na casa de quem?
SHIRLEY
Na minha.
CANDINHO
Dona Shirley! Está perguntando se alma quer reza?! Quando me mudo?
SHIRLEY
(Sorri.)
Fading.
PERSONAGENS:
Shirley e Candinho.
CENÁRIOS:
vários.
MÚSICA:
faixa servindo de fundo às cenas que se seguem.
PERSONAGENS:
Shirley e Candinho.
CENÁRIOS:
sala do apartamento, com a mesa enfeitada.
SHIRLEY
Como conseguiu enfeitar a mesa desse jeito?
CANDINHO
Você não sabe que eu já fui garçom? (Sentando-se.)
SHIRLEY
Não.
CANDINHO
(Sentando-se na frente dela.) Pois é, já fui.
SHIRLEY
Não é todo garçom que sabe enfeitar uma mesa.
CANDINHO
Vi os enfeites, numa dessas revistas, e copiei.
SHIRLEY
Mas por que isso? É seu aniversário?
CANDINHO
Não. Você não sabe?
SHIRLEY
(Gesto de quem ignora.)
CANDINHO
Hoje, fez dois meses que eu estou aqui.
SHIRLEY
(Perpassa uma sombra de apreensão no seu rosto.) Já?
CANDINHO
Já. Dois meses que eu estou nessa mamata. Sabe? Estou até começando a
gostar de ser velho.
SHIRLEY
(Vendo-o servir vinho.) Onde arranjou esse vinho?
CANDINHO
Tem uma caixa no meu quarto. É vinho português. Deve ser da dona da
casa.
SHIRLEY
Você não devia ter usado. Não é nosso.
CANDINHO
Que é que tem? Só uma. Ela nem vai notar.
SHIRLEY
Dois meses... Já estamos em agosto.
CANDINHO
As noites têm estado menos frias.
SHIRLEY
(Como se só então houvesse feito as contas.) Candinho! Faz cinco meses
que eu estou em São Paulo. Cinco!
CANDINHO
Falta de sorte, Shirley.
SHIRLEY
Eu não tinha feito as contas. É tempo demais.
CANDINHO
E eu, que procuro emprego há três anos? Mas eu sou um velho.
SHIRLEY
É verdade que não vou todos os dias. Mas quem aguenta procurar trabalho
todo santo dia? Às vezes, me dá um cansaço! Uma fadiga! Uma vontade de
desistir!
CANDINHO
É... Eu conheço isso. Mas, vamos esquecer por hoje essas chateações.
(Levantando o copo.) Saúde. (Mudando de tom.) Shirley... Levante a toalha.
Veja o que tem embaixo.
SHIRLEY
(Levanta a toalha. Há uma folha de revista, embaixo, dobrada. Shirley
desdobra-a. Vemos o que é: Shirley Temple num dos seus filmes,
dançando.)
MÚSICA:
entra, em cortina, com faixa musical de um velho filme de Shirley.
SHIRLEY
Vou mandar pra mamãe. Ela era louca por Shirley Temple. É por isso que
eu me chamo Shirley.
CANDINHO
Vi todos os filmes dela. Dezenas de vezes.
SHIRLEY
Você também era fã?
CANDINHO
Não. Vendia balas no cinema. Era capaz de imitar uma porção de artistas.
SHIRLEY
Imitava Shirley Temple?
CANDINHO
Como não? (Levanta-se. Afasta-se para o meio da sala.)
MÚSICA:
sobe com o motivo e Candinho sapateia um pouco, numa cena entre lírica e
grotesca, imitando a garota.
(Ri.)
Fading.
MÚSICA:
termina subitamente.
PERSONAGENS:
os mesmos.
CENÁRIO:
o mesmo, sendo que agora o jantar já terminou e os dois estão ainda à mesa.
SHIRLEY
(Fuma, com a sua piteira.) O pior, é que eu me sinto cheia de amor. Cheia
de ternura. Quem me vê, não pode imaginar o que eu trago em mim. Mas
quase todos os homens são menos altos que eu. Acham-se ridículos,
andando ao meu lado. E eu, também, começo a achar-me ridícula.
(Candinho quase não a ouve. Está avinhado, os olhos meio pesados.)
Felizmente, descobri o telefone. Tenho um amante invisível. Para ele, eu me
fiz diferente. Outra. Normal, um metro e sessenta, sei lá... Ele insiste:
“Vamos nos encontrar em tal lugar. Sem compromisso. Que tal?” Está
sempre perguntando: “Que tal?” Mas nunca permitirei que ele me veja. Que
saiba quem sou. E assim vou indo. Pensei que aqui, uma cidade tão grande,
as pessoas fossem menos mesquinhas e não prestassem atenção à minha
altura. Mas não, é tudo a mesma coisa. A mesma coisa.
CANDINHO
(Não chega a estar bêbado. Numa semi-ebriez, talvez embalado pela fala de
Shirley, alguma lembrança amarga veio à tona e um ódio antigo sobrenada
nos seus olhos.) Minha mulher não me deu um filho. Ela amargou os meus
melhores anos. Era epilética, uma doente. (Vai subindo de tom.) Vivia tendo
ataques e eu nunca tive sossego, perdi minha saúde, o pouco dinheiro,
minha mocidade toda cuidando dos seus ataques. Eu não vivi, ela consumiu
a minha vida, aquela...
SHIRLEY
(Sacudindo-o.) Candinho! Candinho! Ela não era culpada. Pense nisso. Para
ela, foi pior do que para você. Ela não era culpada!
MÚSICA:
faixa forte.
PERSONAGENS:
Shirley e o Pai, depois Candinho.
CENÁRIO:
sua sala no apartamento.
SHIRLEY
Conseguiu a bolsa?
PAI
Não. Não foi possível. Mas a tese está quase pronta. Preciso modificar uns
capítulos. E você? Por que não vai passar uns dias conosco? Não quer mais
ir em casa?
SHIRLEY
Não posso ir, por enquanto.
PAI
Podia ter ido na Semana da Pátria. Eu lhe telefonei duas vezes, pedindo que
fosse. Sua mãe tem sentido muito a sua falta.
SHIRLEY
Quando eu definir aqui a minha vida, então vou.
PAI
Quando definir, quando definir... Está custando muito. Várias pessoas que
vieram de lá muito depois de você já conseguiram emprego. Moças da sua
idade, é verdade que formadas.
SHIRLEY
Nenhuma tem um metro e oitenta e oito.
PAI
Isso não é motivo.
SHIRLEY
Que é que o senhor pensa, então? Que não estou procurando? Que não estou
tentando? Não é justo. Eu tenho tentado.
PAI
E como continua assim? Ociosa?
SHIRLEY
Não consegui nada. Parece absurdo, mas não consegui. Sou alta demais,
ridícula, perturbo a visão ou pareço imbecil. É difícil.
PAI
Então, volte pra casa.
SHIRLEY
Não. (Ligeira pausa.) No fim do mês, no máximo até início de outubro, vou
voltar para o pensionato. A dona do apartamento me escreveu. Deve
regressar dentro de uns 15 dias.
PAI
Vou dar-lhe um prazo, Shirley. Um mês ou dois, três meses, vá lá. Não me
incomodei de manter você aqui, embora fosse contra a sua vinda. Mas esse
tempo todo... enfim...
SHIRLEY
Eu sei, eu sei que não é justo. Mas eu não esperava, sinceramente, nunca
acreditei que... que fosse tão difícil. Mas pode ser também uma questão de
sorte, ou de jeito, não sei.
PAI
Volte para casa, Shirley. Não gosto que você fique aqui, sozinha. Não é
lugar para uma moça, a cidade é muito grande, perdição demais, podem
acabar falando mal de você. Não pensa nisto?
SHIRLEY
Falando mal? Onde? Dizendo o quê?
PAI
O que se pode dizer? O que se pode dizer de uma moça sozinha, vivendo
em São Paulo?
SHIRLEY
Meu pai... O senhor acha que eu sou ainda criança? Acha que eu sou
inocente? Virgem? Que ninguém... tocou em mim? É isto?
PAI
Que está você dizendo, Shirley? Que está tentando dizer-me?
SHIRLEY
(Parece não encontrar mais palavras.)
PAI
(Sem mais dúvidas e colérico.) Então, arranje-se. Comigo, não conte mais.
Fique sabendo que me sinto desonrado e que não a considero mais minha
filha. Arranje-se. Fracassei como pai, fracassei na carreira, fracassei em
tudo!
SHIRLEY
Meu pai! Não é assim tão horrível.
PAI
(Menos exaltado.) Fracassei em tudo. Minha tese foi recusada hoje.
(Novamente exaltando-se.) E a culpa, em parte, é sua. Estas preocupações
com você, estes sobressaltos...
CANDINHO
(Abre a porta entre a cozinha e a sala, espantado.) Que foi que houve,
Shirley?
PAI
Que é isso? Quem é esse velho? Avô seu, não pode ser. Tanto o meu pai
como o pai de sua mãe eram diferentes desse aí, e estão mortos, e nem
sequer foram enterrados em São Paulo.
CANDINHO
Que quer dizer com isso? Que eu saí da cova?
PAI
E está com meu pijama... É um cliente, Shirley? Chegou a esse ponto?
(Breve pausa.) Eu sabia que a sua vinda ia dar nisso.
SHIRLEY
Ouça... Não foi aqui que aconteceu. Foi lá. Lá!
PAI
(Olha-a espantado.) (Sai, batendo a porta.)
Corte
(Shirley deitada, chorando.)
Corte
(Candinho na sala, meio apalermado, olhando o mundo para ele confortável
e que, segundo pressente, vai perder.)
Corte
(Shirley jogando rapidamente roupas numa valise. Chorando, ainda.)
Corte
SHIRLEY
(Jogando algum dinheiro na mesa.) Tome conta da casa. Talvez viajemos no
mesmo ônibus, eu e ele. (Sai.)
Corte
(Shirley curvada sobre o guichê da Estação Rodoviária. Seu rosto, visto de
dentro do guichê.)
VOZ DO BILHETEIRO
Pra hoje, está tudo lotado. Só amanhã. (Shirley pensando, a valise na mão.
Ela andando. Ela entrando num táxi. Ela dentro do elevador. Com ela sobe
um jovem de cor, bem mais baixo que ela, tendo à mão o estojo de um
instrumento musical. Ela e ele descendo no mesmo andar. Abrem a porta do
apartamento vizinho. Vozes. Risos dos que estão lá dentro: é uma festa,
contrastando com o estado de espírito de Shirley. Shirley diante da porta do
seu apartamento. Põe a chave. Seu rosto e uma frase musical. Não se sabe o
que ela viu lá dentro.)
MÚSICA:
faixa expressiva.
INTERVALO
PERSONAGENS:
Shirley, Candinho e Desconhecidos.
CENÁRIO:
sala do apartamento.
CANDINHO
(Imitando-a, fumando numa longa piteira e tendo à cabeça um dos chapéus
de Shirley.) Pois é, meu amor. Sabe qual é a minha altura? (Os
desconhecidos, que riam, silenciam e levantam-se com a entrada de Shirley.
Vão saindo.) Um metro e sessenta. Não. Um metro e cinquenta. Não,
menos. Eu sou Shirley Temple. Que tal?
SHIRLEY
(Seu rosto concentrado, os olhos baixos.)
CANDINHO
(Filmado de trás. Importante que não se veja o seu rosto. Percebe que o seu
“público” se foi, que está sozinho e qual é a razão disto. Põe o telefone no
gancho e tira o chapéu. Agora, é filmado de frente. Vê-se que tem os olhos
fortemente sublinhados de negro, tal como sempre o faz a sua amiga
Shirley.)
SHIRLEY
Você?! Você?!... Eu esperava isso de todos. Mas de você! (Candinho passa
por ela e vai para a cozinha. Ela imóvel, na porta da entrada. Logo em
seguida, vê-se por trás dela, Candinho com a maleta. Ouve-se o bater da
porta da cozinha.)
MÚSICA:
passagem rápida e dramática. Entra em cortina, acompanhando as cenas
em que Shirley está só.
(Shirley abre a porta. À sua frente, está um moço bem-parecido, ainda mais
alto que ela, com um balde na mão.)
MOÇO
Posso lhe pedir um favor? (Shirley olha-o com embevecimento.) (Ele passa
a mão diante do rosto da moça.) Que é que há? É sonâmbula? (Ela acena
que não.) Pode arranjar-me umas pedras de gelo? O nosso está acabando.
SHIRLEY
Ah, sim, pois não. (Vai para a cozinha e abre o refrigerador. Ele entra e olha
a sala. Ela volta e entrega o balde.)
MOÇO
Não era você que morava aqui. Mais de uma vez pedi gelo emprestado à
outra dona. Era sua tia?
SHIRLEY
Eu... O apartamento não é meu. Ela está viajando. Vai voltar e então...
MOÇO
E então, você se manda?
SHIRLEY
Sim, é isto.
MOÇO
Precisa deixar o endereço. Não gostaria de perder você de vista. Quer vir à
nossa festa? Afinal, é vizinha da minha prima.
SHIRLEY
Não, obrigada. Tenho o que fazer.
MOÇO
Que pena. Toca violoncelo?
SHIRLEY
Assim... Não muito bem. Mas vou estudar. Ainda é tempo.
MOÇO
Isso. Ainda é tempo. Qualquer dia desses, venho ouvir você tocar. Pode ser?
Que tal?
MÚSICA:
acorde.
MOÇO
Bem... Obrigado. (Exit.)
MÚSICA:
acompanha o estado de espírito de Shirley. Eis que, de repente, tudo parece
novo.
(Shirley abre a porta. Diante dela está o mesmo rapaz de cor que subiu com
ela no elevador. Vê-se agora qual o instrumento que trazia no estojo: é um
trompete.)
MÚSICO
(Sorrindo.) Alô...
SHIRLEY
(Decepcionada.) Acabou o gelo.
MÚSICO
Não quero gelo. Posso entrar? (Ela dá-lhe passagem.) Ouvi dizer que aqui
havia um celo. Você toca mesmo? No duro?
SHIRLEY
Não sou grande coisa. Não pude ainda estudar como desejo.
MÚSICO
Mas gosta de música?
Corte
PERSONAGENS:
Shirley e o Moço. Depois, o Músico.
CENÁRIOS:
entrada do edifício e exterior (a rua). (Shirley, de chapéu e capa, e o Moço
Alto saindo do prédio. — Os dois entrando no carro. — O carro saindo. —
Shirley e o Moço Alto dentro do carro em movimento. O rosto de Shirley
não está muito alegre e revela certa preocupação. — Passam pelo Músico,
que vai caminhando na calçada, lentamente, com o seu trompete: a câmara,
de dentro do carro, mostra-o ficando para trás. — Rosto tenso e hesitante de
Shirley. Como que vai olhar ainda uma vez para trás. — Close do Músico,
andando. Ouve-se, de longe, a batida da porta de um carro e o rápido ranger
dos pneus no asfalto. Ele vai andando e, de súbito, para. Sua cara se
ilumina. — Close de Shirley, parada na calçada, olhando-o de cima para
baixo, sorrindo.)
MÚSICO
Você?!
SHIRLEY
Então? Vai ver os seus amigos?
MÚSICO
Eu ia. Mas, se você quiser, podemos sair por aí. Só sei que não vamos para
Nova Orleãs. (Saem andando. A câmara vai-se afastando. Eles conversam e
gesticulam. De súbito, timidamente, ensaiam um passo de dança, talvez
estejam cantarolando uma marcha-rancho. Vê-se que o Músico levou o
trompete à boca. Ouve-se a sua música, enquanto os carros passam. Os dois
dançam lado a lado, com grande discrição.)
MÚSICA:
associa-se, orquestralmente, ao trompete do Músico.)
SOBEM OS LETREIROS
Escrevendo para o programa Caso Especial da Rede Globo, Osman Lins,
por motivos já discutidos anteriormente, ingressava em um novo desafio: a
escrita para a televisão. O consagrado autor literário estava em vias de se
tornar um roteirista. Mesmo sendo ainda um aspirante ao ofício, o
vitoriense experimentou a linguagem e chegou a escrever três narrativas
para TV. Marcha fúnebre foi o último episódio osmaniano no programa.
Como este foi o terceiro texto que ele ousou em escrever para a televisão, é
notável uma evolução técnica em relação aos anteriores (A ilha no espaço e
Quem era Shirley Temple?).
A ação decorre em 1990. Contudo, para não sobrecarregar o trabalho com
elementos alheios ao tema central, não insistiremos em exterioridades:
roupas etc. Esses dados, portanto, são poucos: os jovens de ambos os sexos
usam cabelos curtos e repuxam os olhos com traços oblíquos; a única
diferença é que todos os rapazes usam roupas negras e todas as moças
roupas em tons amarelos.
Um elemento plástico da maior importância são os capacetes dos
motociclistas, inspirados nos capacetes dos espanhóis comandados por
Cortez à época da conquista. As possíveis diferenças entre os jovens de
então e os de hoje também não foram acentuadas.
Há certa orientalização em alguns ambientes e que assinalo.
Dois papéis principais: Selene15 Raquel e seu filho Tarcísio.
O jovem, que anda por volta dos 20 anos, deve ter algo de arrebatado, de
inocente e, ao mesmo tempo, de duro.
A mãe será, forçosamente, uma atriz de rosto bem conhecido do público,
a fim de ser imediatamente reconhecida nos seus vários disfarces: está
sempre mudando de vestuário. Quanto maior for a sua aura como atriz,
melhor. Rogo não fazê-la caricatural.
Os intervalos da SEGUNDA PARTE ficam a critério da Direção.
PRIMEIRA PARTE
Abre-se o filme com um lento e prolongado travelling do Cemitério do
Araçá, em São Paulo, tomado de fora, de modo que o terço inferior da tela
fique ocupado pela parte superior do muro e os outros dois terços pelos
perfis dos túmulos, ao fundo. O travelling não será interrompido nem
mesmo se passar a câmara ante o portão. Interessante se, aqui e ali, pegar
algo das barracas de flores que ficam junto ao muro.
Sobre essa imagem, projetam-se os letreiros, que tanto podem ser
pequenos blocos imitando inscrições funerárias sobre mármore, como essas
letras prateadas que se usam para coroas mortuárias.
Trilha musical a critério do músico. O Autor19 preferiria algo com um
certo acento moderno, um tanto dissonante, mesmo no caso de se usar
música de órgão.
PERSONAGENS:
Selene Raquel e Tarcísio. Ela lê jornal junto a um abajur, sentada. Ele
move-se e olha o relógio com uma certa ansiedade. Uma vez chega junto do
telefone, como se fosse usar o aparelho.
CENÁRIO:
sala na casa de Selene. Ambiente não propriamente requintado, mas com
claras intenções decorativas. Poltronas fofas, muitas almofadas, tapetes,
flores e abajures.
SELENE
(Por cima do jornal.) Por que não se senta? Se tem algum encontro, saia.
TARCÍSIO
Não. Não tenho encontro nenhum.
SELENE
Então, por que fica assim, nesse vaivém? Até dá tonturas.
TARCÍSIO
(Vai até perto do telefone.) Ninguém me telefonou? Ninguém mesmo?
SELENE
Você quer saber se a Regina lhe telefonou? É isto?
TARCÍSIO
Sim. É isto.
SELENE
Pois bem. Não telefonou. Que foi que houve? Rompeu com ela?
TARCÍSIO
Não. Ela viajou.
SELENE
Ah, sim. (Virando a página do jornal.) Interessante. Ainda ontem, por acaso,
achei entre meus álbuns de recortes um jornal de 1977. Comparei os dois
jornais, o de 1977 e o de ontem. Quer dizer: foi como se comparasse o
mundo atual com o de 13 anos atrás. Pude examinar bem as mudanças. São
muitas. Tanto no jornal de 1977 como no de 1990 havia inundações. Mas
eram em lugares diferentes. Os dois jornais trazem notícias de guerra. Mas
os países em guerra são outros. O consumo de drogas continua preocupando
as autoridades. Mas as drogas têm nomes completamente novos. A inflação
continua. Mas o Ministro da Fazenda já não é o daquele tempo. Sabe o que
parece o mundo? A mesma peça, com uma nova montagem.
TARCÍSIO
(Aproximando-se.) Mamãe... E se você pensasse mais um pouco no mundo
de hoje? Se a senhora pensasse mais no que está vivo do que no que está
morto?
SELENE
(Largando o jornal.) Que quer você dizer com isso? Que tudo que eu criei
no palco desapareceu? Que ninguém se lembra mais de Selene Raquel
como Cleópatra ou Lady Macbeth? Muita gente se lembra. E se não volto
ao palco é porque não quero. Afastei-me.
TARCÍSIO
Não é isso. É que você vive em nosso tempo como se ele ainda não
houvesse chegado. Como se muitos anos ainda não houvessem passado e
você estivesse no viço da idade e eu fosse ainda um menino. Mas estamos
em 11 de maio de 1990 e eu tenho vinte anos.
SELENE
E eu sou uma velha. Não é o que você quer dizer?
TARCÍSIO
(Abraça-a.) Não, você é ainda tão bonita! É que não se pode prender o
tempo. E você vive tentando prendê-lo. Aqueles armários, com todos esses
vestidos17 que usou nos seus tempos de atriz...
SELENE
(Afastando-o e rindo.) E não esqueça que quase todos ainda cabem em
mim. Poucas mulheres podem dizer o mesmo. Continuo com o meu corpo
de moça.
TARCÍSIO
Eu sei. Eu sei.
SELENE
E é este corpo que levarei para o túmulo. E que, como lhe disse mil vezes,
você sepultará com honras...
TARCÍSIO
Não fale nisso.
SELENE
Em jazigo perpétuo, onde ninguém mais me toque. Onde eu fique como
essas bandeiras de guerra, guardadas numa urna de cristal, e que ninguém
toca. Ninguém. (Segura a cabeça dele.) Você fará isto?
TARCÍSIO
Sim. Farei. (Levanta-se.) Mas por que você pensa tanto em morte? Por que
pensa tanto no passado e na morte?
SELENE
Então você não sabe? É porque amo o corpo. Eu amo o corpo, Tarcísio18, e
principalmente o corpo na mocidade. O corpo, essa coisa que anda, que toca
e é tocado, que se agita, que sente dor e prazer, entende? Esses ossos e carne
com um coração lá dentro, às vezes tímido, às vezes rebelde, sempre
inquieto, batendo por tudo. (Acompanha, com o punho fechado, o ritmo do
próprio coração.)
TARCÍSIO
Mamãe... Há dois dias meu coração está batendo com angústia. Regina...
rompeu comigo. Não sei para onde ela foi.
SELENE
Com você?! COM VOCÊ?! (Soa o telefone. Close19 de Tarcísio20. Breve
expectativa. Ele corre e atende.)
TARCÍSIO
Alô... Regina?
SELENE
(Em voz baixa.) Não se mostre expansivo. Imponha-se.
TARCÍSIO
(Mais contido.) Quando chegou? (Pausa.) Ah, sim. Falar comigo? Onde?
Vou ver se posso ir. Ciao. (Desliga.) (Expansão de alegria.) Ela voltou,
mamãe. Ela voltou. E telefonou para mim.
SELENE
Eu ouvi.
TARCÍSIO
E eu, que já estava pensando que nunca mais ia vê-la.
SELENE
(Erguendo-se. Teatral.) “Amém, amém. Haja o que houver, no entanto, nem
toda a dor do mundo é um preço bastante para o gozo de vê-la um só
instante!” Romeu e Julieta, segundo ato, última cena21. (Riem. Esboçam um
passo de dança.)
INTERVALO
PERSONAGENS:
Tarcísio e Regina. Figurantes. Ele e ela estão sentados no chão, em
almofadas.
CENÁRIO:
boîte de jovens, em 1990. Estilo francamente oriental e música ambiental
com instrumentos do Oriente. Alguns jovens dançam, mais ou menos à
maneira dos bailados siameses.
TARCÍSIO
Minha mãe vive no passado, com seus álbuns de recortes e o guarda-roupa
cheio de vestidos que usou no teatro. Mas somos muito ligados.
REGINA
Não sou contra isso. Eu bem queria ter pelos meus pais a admiração que
você tem por ela.
TARCÍSIO
Talvez seja por não saber quem é meu pai. Quero-a como se ela fosse, ao
mesmo tempo, meu pai e minha mãe. (Ri.)
REGINA
Isso não quer dizer que você vá permanecer criança a vida inteira. Não tem
mais sentido, na sua idade, viver às custas dela. Ela nem tem uma renda tão
alta.
TARCÍSIO
Priva-se de comprar certas coisas, contanto que não me falte nada. Mas não
quer ainda que eu trabalhe. Vive muito só. Precisa de minha companhia.
REGINA
É por isso que você tem de ir embora. Vamos fugir, Tarcísio. Vamos embora
juntos.
TARCÍSIO
Pra onde? Fazer o quê?
REGINA
Não interessa. Se não importa pra mim, por que interessa pra você? A gente
se arranja.
TARCÍSIO
Regina, não há nada contra as nossas relações. Por que temos de fugir?
REGINA
Eu quero fugir com você para o mundo, Tarcísio. Você precisa nascer. Até
quando quer ficar assim? Achei incrível quando estive na sua casa. O seu
quarto parece o de um menino. Tem até urso de pelúcia!
TARCÍSIO
Você não vai supor que eu brinco com o urso.
REGINA
Mas o urso está lá. Você tem que pegar aquele urso e jogá-lo pela janela.
Vamos embora comigo. Seja pra onde for. Montamos na sua moto e vamos.
Quanto antes. Eu não vou perguntar pra onde você me leva. Quero que
fique bem claro: pra onde formos, está bem.
TARCÍSIO
Regina... Você é formidável. Sim, eu quero ir com você. Mas tenho pena.
Eu nasci tarde demais, quando ela não contava mais ter um filho. Acho
também que é por isso que se apega tanto a mim. E pensa tanto na morte...
Engraçado: ela esquece as datas de aniversários de nascimentos. Mas não as
datas em que morreram os amigos. Amanhã quer que eu vá com ela ao
cemitério, visitar o túmulo de alguém que morreu há 15 anos.
REGINA
E você vai?
TARCÍSIO
Já prometi que ia.
REGINA
Isto quer dizer que, pelo menos amanhã, não vamos embora.
TARCÍSIO
Vamos. De noite. (Toma-lhe a mão.) Regina... Ela tem a saúde frágil. E vai
sentir tanto a minha falta!
PERSONAGENS:
Selene e Tarcísio.
CENÁRIO:
ônibus, através da cidade.
SELENE
Ah!... Há quantos anos não vou ao Cemitério de São Miguel. Uma
ingratidão. Quinze anos hoje que morreu Arnaldo Heleno e eu nunca visitei
o seu túmulo.
TARCÍSIO
Logo você, que tem mania de visitar os mortos.
SELENE
Mania? Então não é para isto, para receberem as homenagens dos vivos,
que eles estão lá? E Arnaldo Heleno, mais que nenhum outro amigo,
merecia que eu me lembrasse dele. Trabalhamos juntos em tantas peças!
Arnaldo Heleno... Ele não reconheceria mais São Paulo. Como a cidade
mudou! Aliás, pensando bem, deste lado até que não mudou tanto. Sabe? A
cidade não mudou. Cresceu. Crescer não é o mesmo que mudar.
TARCÍSIO
Eu cresci... e mudei.
SELENE
Para mim, você não cresceu nem mudou. É o mesmo garoto que eu —
quando podia — levava para brincar no Parque Ibirapuera. Às vezes, íamos
os três; eu, você e o canastrão do Ornelas. Pobre Ornelas, foi canastrão na
vida e na morte. Quis ser incinerado e as cinzas jogadas ao mar. E sabe que
música ele escolheu para a cerimônia? La Cumparsita.
TARCÍSIO
La Cumparsita? Que é isso?
SELENE
Oh, Deus, como vou explicar a você o que era La Cumparsita? Era um
tango. Uma canção para infelizes. Para amantes enganados e sem a mínima
esperança ... O pior foi levar as cinzas a Santos. Era um sábado e chovia!
Abrimos a urna, mas o vento soprava em direção à terra e as cinzas vinham
era pra cima de nós. Acho que não caiu um único grão no mar. (Ri, de modo
um tanto crispado.)
TARCÍSIO
(Pede parada.) Estamos chegando. (Descem.)
PERSONAGENS:
Selene, Tarcísio e Homem 1.
CENÁRIO:
rua em frente a estacionamento.
SELENE
Aqui? Tem certeza de que é aqui?
TARCÍSIO
Pelo menos era.
SELENE
(Ao Homem 1, que se aproxima.) Onde fica o Cemitério de São Miguel?
HOMEM 1
Era aqui. Mas não é mais. Há muito tempo que foi transferido.
SELENE
Transferido? Transferido, como?
HOMEM 1
Sei, porque trabalho aqui perto há vinte anos. Quatrocentos e cinquenta
jazigos e 11 mil urnas. Tudo transferido para o Cemitério da Saudade.
SELENE
Para depois ser transformado nisso? Num estacionamento?
HOMEM 1
Não. Ia ser uma praça ou uma biblioteca. Mas faltou verba. A senhora sabe
como é.
SELENE
Pois o senhor sabe como era em Roma, na antiga Roma?
HOMEM 1
Não sei não senhora.
TARCÍSIO
Vamos, mamãe.
SELENE
Um túmulo era uma coisa sagrada. Para ser mudado de lugar, precisava a
autorização sabe de quem? Do Papa!
HOMEM 1
Mas aqui no Brasil, é tudo assim.
SELENE
Em Roma, se eu vendesse um terreno onde houvesse um parente enterrado,
eu conservava o direito de cruzar o terreno, mesmo que fossem cem léguas,
para visitar o túmulo. Não perdia nunca esse direito. Nunca.
HOMEM 1
Pois é. A senhora vê. Um estacionamento. Bem, com licença. (Sai.)
SELENE
Querido Arnaldo Heleno! Que automóvel descansa agora no lugar dos teus
pobres ossos?... (Faz um gesto vago de adeus. Corte rápido.)
PERSONAGENS:
Tarcísio e Regina.
CENÁRIO:
rodovia à noite. Seguem os dois numa moto. Tarcísio dirigindo.
REGINA
Se eu fosse pólvora, você queria ser o quê?
TARCÍSIO
Estopim. E se eu fosse bala, você queria ser o quê?
REGINA
Gatilho.
TARCÍSIO
E se eu fosse um tiro?
REGINA
Eu era o alvo.
TARCÍSIO
E se eu fosse uma faca?
REGINA
Eu era a ferida. E se eu fosse a manteiga, você fazia o quê?
TARCÍSIO
Eu lambia. E se eu fosse a corda, você fazia o quê?
REGINA
Um par de ligas. E você, se eu fosse corda?
TARCÍSIO
Me enforcava. Me surrava. Me amarrava.
REGINA
E se eu fosse um capacho?
TARCÍSIO
Eu não usava mais sapatos. E se eu fosse um lenço?
REGINA
Eu chorava. Se eu fosse uma porta?
TARCÍSIO
Eu entrava e saía. (Riem.) (Fusão. Os mesmos personagens, ainda na moto,
na estrada, à noite. Mas agora vão calados e em menor velocidade. Tarcísio
para.)
REGINA
Que foi que houve? Algum problema?
TARCÍSIO
Não, o problema é comigo.
REGINA
Qual?
TARCÍSIO
Vamos voltar, Regina.
REGINA
Você volta só.
TARCÍSIO
Está louca?
REGINA
Não quero saber. Você volta só. Para a sua mãe. Para o seu berço, e pronto.
TARCÍSIO
Regina, entenda. Eu gosto de você. Gosto mesmo. E eu sei que você tem
razão. Mas quer saber? Mesmo este negócio de escapar, de ir por aí, é
infantil.
REGINA
Está bem. Então você escolhe.
TARCÍSIO
Escolhe o quê? Não há necessidade disso. Vamos voltar, Regina. Tudo foi
decidido muito depressa. Não amadureci a ideia. E não adianta eu fingir que
estou indo com você. Não estou. Estou em casa. Penso que vou magoar a
minha mãe.
REGINA
E a mim não magoa?
TARCÍSIO
Não. Você é tudo que eu quero. Quero casar com você.
REGINA
Quando? Daqui a vinte anos?
TARCÍSIO
Não ponha a coisa nesses termos. Um pouco de paciência.
REGINA
(Aludindo pela primeira vez a algo que ocorreu na estrada, entre a primeira
cena na moto e esta.) Você não teve paciência há pouco, quando paramos na
estrada e... Tarcísio, Tarcísio!
TARCÍSIO
(Abraça-a.) Eu não vim só pra isso. Queria ir embora com você, queria
mesmo. (Solta-a.) Mas não tenho coragem, Regina. O que é que eu vou
fazer? Não tenho coragem. Penso em mamãe me procurando e isso me dói.
REGINA
Está bem. Você volta. Eu fico aqui.
TARCÍSIO
Aqui, onde? Na estrada? De noite?
REGINA
Por que não?
TARCÍSIO
É perigoso.
REGINA
Dormir na cama também é.
TARCÍSIO
Regina!
REGINA
Não toque em mim. Some! Vai dormir com o ursinho de pelúcia! (Tarcísio
liga a moto e vai embora. Close de Regina.)
PERSONAGENS:
Selene, depois ela e Tarcísio.
CENÁRIO:
seu quarto de dormir, com espelhos tríplices, um leito faustoso e armários
cheios de vestidos de teatro. Sobre a cama está a roupa de Julieta, de
Shakespeare. Numa mesa ao lado da cama, uma garrafa de cristal com
vinho e um cálice.
SELENE
(Cena importante. Aqui começamos a ingressar no fantástico, que, embora
não deva ser demasiadamente sublinhado, é uma das constantes da peça.
Selene, numa camisa de dormir, contempla-se ao espelho. Levanta-se e põe
na cabeça uma espécie de solidéu, um colar e, num gesto harmonioso, o
manto de Julieta. Vê-se então que o seu rosto rejuvenesceu.) O teatro está
cheio e as luzes se concentram em mim. Silêncio absoluto na plateia. (Faixa
musical sublinha a cena que se segue.) É o quinto ato, cena terceira, de
Romeu e Julieta. Romeu, equivocado, pensa que Julieta está morta... “Oh,
Julieta querida... Julieta? Não. Oh, juventude amada, por que és ainda tão
bela? Devo crer que esse fantasma chamado ‘o fim das coisas’ enamorou-se
de ti e te esconde na escuridão para fazer de ti sua amante? Por temer isso é
que eu quero ficar contigo. E nunca, nunca mais sairei deste palácio
tenebroso. Olhos meus, contemplai pela última vez a mocidade; braços,
apertai-a pela última vez; e vós meus lábios, portas do alento, selai com um
legítimo beijo um contrato sem termo com a morte insaciável. (Verte o
vinho no cálice.) Vem, amargo condutor, guia insípido, piloto desesperado.
Lança de uma vez teu barco fatigado dos trabalhos do mar, sobre os
rochedos fragorosos. (Bebe.) Honesto boticário, teu veneno é eficaz; eu
morrerei num beijo.” (Cai sobre a cama. O cálice parte-se no chão.) (A
câmara desvia-se da cena e fixa um relógio, que marca onze horas.) (Fusão
sobre o mesmo relógio, agora marcando quatro horas e dez minutos.)
MÚSICA:
encerra a faixa.
TARCÍSIO
(Abre a porta e entra em casa. A câmara acompanha-o até o quarto da mãe.)
Puxa! Sempre com as suas encenações para uma plateia de fantasmas.
(Apaga a luz e vai sair. Mas acende outra vez a luz e aproxima-se. Toca o
rosto de Selene novamente envelhecido e recolhe a mão, assustado.)
Mamãe! Mamãe! (Apanha no chão o cálice quebrado.) Veneno! Foi por
minha causa! Foi por minha causa! Mas eu vou ter o que mereço! (Segura o
cálice quebrado, decidido a cortar o pulso.) (Fora de cena por trás dele.)
Solte isso. Quem é você? (Dá um pulo de medo e cai sentado junto à cama,
com um grito sufocado.)
SEGUNDA PARTE
SELENE
Não conhece mais a sua mãe? (Está vestida como a Dama das Camélias e os
traços de velhice desapareceram.) Agora, posso usar eternamente todas as
roupas que desejo.
TARCÍSIO
Você se matou. Tomou veneno por minha causa.
SELENE
Que pretensão. E que tolice. Morri porque chegou a hora. Eu nunca me
mataria. Sempre tive horror a necrotérios e autópsias.
TARCÍSIO
E esse cálice e tudo?
SELENE
Qual a boa cena de teatro que não tem um revólver, uma espada, um punhal
ou uma taça de veneno? Mas não quero que fique muito triste. Para falar a
verdade, eu tinha medo de ficar velha demais. Agora, embora seja difícil,
assuma a direção da sua vida; sepulte-me como eu desejei. Naquela gaveta
há algum dinheiro. Acho que é suficiente. Tarcísio, meu filho querido:
quero um lugar permanente, na terra que amei e onde passei uma jornada
tão breve que, quando pensei que o dia começava, a noite já descia...
TARCÍSIO
(Ergue-se.) Mamãe! (Dirige-se para ela, os braços estendidos. Ela
desaparece. Ele se vê novamente sozinho.)
PERSONAGENS:
Tarcísio e Funcionário.
CENÁRIO:
a Funerária. O modelo deste cenário é a Funerária de São Paulo, um grande
salão, com mesas e funcionárias, e placas indicando: CERTIDÕES,
PARTICIPAÇÕES, IMPRENSA etc. Afora isto, nada de fúnebre. Um
ambiente limpo, polido, com gente bem vestida ocupando as mesas, ante
algumas das quais há filas esperando a vez.
FUNCIONÁRIO
(Apertando a mão de Tarcísio.) Tudo bem?
TARCÍSIO
Bem por quê? Perdi a minha mãe. Vim tratar do enterro.
FUNCIONÁRIO
Ah, sim. Trouxe a certidão de óbito?
TARCÍSIO
Está aqui.
FUNCIONÁRIO
Sua identidade.
TARCÍSIO
(Entrega-lhe o documento.)
FUNCIONÁRIO
Tão moço! Não havia ninguém de mais idade na família para tratar do
assunto?
TARCÍSIO
Nossa família éramos eu e ela. Agora, não tenho mais ninguém.
FUNCIONÁRIO
Lamentável.
TARCÍSIO
Ela achava que ainda ia viver muitos anos. Não pensava que morresse tão
cedo. (Tarcísio vai esquecendo que fala com um simples funcionário e
como que mergulha nas suas próprias emoções.) Deixou algum dinheiro,
que está aqui comigo. E a casa era nossa. Agora eu fico sozinho naquela
casa, cheia de vestidos que não servem mais para nada, uma casa grande
demais para mim. Ela possuía algumas joias. Mas estão todas empenhadas.
Eu soube hoje.
FUNCIONÁRIO
Sua profissão?
TARCÍSIO
Estudante.
FUNCIONÁRIO
Não trabalha?
TARCÍSIO
Não, eu fazia companhia a ela. Ela, no seu tempo de atriz, tinha sempre o
público. Agora vivia muito só. Eu era o seu público. A partir de hoje, eu é
que estou só. Bem... (Emocionado.) O palco está vazio.
FUNCIONÁRIO
Tenha calma, meu jovem. Tenha calma e vamos ao ponto. Como deve saber,
o Serviço Funerário de São Paulo, a apenas dez anos do século XXI, é uma
autarquia gigantesca, um monopólio fantástico, uma esplêndida máquina
bem lubrificada, com a finalidade de prestar aos nossos clientes, desde os
mais ricos aos mais desprotegidos, a preços que variam segundo a
modalidade de serviços, uma assistência perfeita na hora mais crucial e
amarga de nossas vidas. Que tipo de pompas prefere?
TARCÍSIO
Que tipo como?
FUNCIONÁRIO
Oferecemos alternativas para todas as bolsas. Temos por exemplo quatro
classes de ornamentação de câmaras fúnebres. E quatro tipos de transportes
para os mortos. Não seria lógico nem justo ver um cliente que transitou na
vida em carros luxuosos, fazer a última viagem num transporte
inexpressivo. Não. A morte, absolutamente, não igualha.
TARCÍSIO
O senhor acha?
FUNCIONÁRIO
A instituição acha. E se o nosso leque de opções já é amplo no que diz
respeito aos itens condução e ornamentação, chega a requintes que ninguém
imagina quando se trata dos tipos de sepultamento. Temos: popular,
especial, médio, luxo um, luxo dois, luxo três, luxo quatro, luxo cinco e o
super luxo.
TARCÍSIO
E luxo seis, não tem?
FUNCIONÁRIO
Ainda não.
TARCÍSIO
E como é o super luxo?
FUNCIONÁRIO
Caixão italiano envernizado, transporte em carruagem, remoção, carretos,
urna para missa, abajures — pois não há mais velas —, cruz para os carros
do cortejo, manto de seda lavrada, um par de meias e um par de sapatos,
tule de seda, tampa artística com motivos sacros de cobre, toda assistência e
enfeite de rosas. Num enterro dessa classe, evidentemente, a sofisticação é
outra.
TARCÍSIO
E quanto custa?
FUNCIONÁRIO
Está aqui a tabela de preços. Dez vezes mais barata que a de qualquer
Capital do Brasil.
TARCÍSIO
Não... Não tenho dinheiro para o super luxo. Escolho mesmo esse: luxo
três.
FUNCIONÁRIO
Muito bem. Luxo três. É um bom enterro.
PERSONAGENS:
Tarcísio e Moça, depois Funcionário.
CENÁRIO:
sala comum, de escritório, provida com um receptor de TV.
MOÇA
Por que não o fogo? A cremação é o ideal: limpo, rápido, prático. E
economiza espaço.
TARCÍSIO
Não. Ela gostava da terra. É... amava a terra.
MOÇA
Nesse caso... Dispomos hoje de trinta campos rotativos. Tem alguma
preferência?
TARCÍSIO
Se eu pudesse ver...
MOÇA
Pois não. (Liga a TV.) Este é o do Araçá, fundado em 1897. (No vídeo,
vemos trecho do cemitério e pessoas da classe média fazendo um
piquenique.)
TARCÍSIO
Que é isso? Um piquenique?
MOÇA
Os campos rotativos são hoje um lugar como os outros. Veja! Ampliaram-
se, com isto, as áreas de lazer.(Outro cemitério no vídeo. Vê-se uma mulher
pobre roubando flores.) Este é o de Vila Formosa. Fundado em 1949.
(Outro cemitério no vídeo. Vê-se gente andrajosa, que mora nos túmulos.)
O da Freguesia do Ó, fundado em 1908. (Falando num microfone.)
Atenção, Ordem Geral. Atenção. Ordem Geral. Voltamos a registrar
marginais alojados no campo rotativo da Freguesia do Ó. Desalojá-los com
urgência. Cumpra-se. (Há, nesta sequência, tomadas rápidas, alternando as
imagens na tela de TV com o rosto de Tarcísio. Outro cemitério, com um
grupo de pessoas de mais ou menos quarenta anos, dançando.) Consolação,
o mais antigo de todos, junto com o de Santo Amaro.
TARCÍSIO
Esse é bem animado. Não é aí que está a Marquesa de Santos?
MOÇA
Sim. Na Consolação, dispomos de gavetas temporárias.
TARCÍSIO
Eu quero um jazigo perpétuo. Ela sempre desejou um lugar onde o seu
corpo ficasse para sempre.
MOÇA
Isso acabou, meu caro. Não há mais. Caiu em desuso. A cidade cresceu
muito. Os terrenos, mesmo distantes, ficaram muito caros. A solução para
atender à demanda...
TARCÍSIO
Demanda? Que demanda? Ninguém pede pra morrer.
MOÇA
A solução para atender à demanda é a alta-rotatividade. Isto é, seis gavetas
superpostas, ocupáveis pelo espaço de três anos.
TARCÍSIO
É por isso que você fala em campo rotativo? Não se diz mais cemitério?
Agora é campo rotativo?
FUNCIONÁRIO
(Abrindo a porta e entrando.) Esqueci-me de perguntar. De que cor prefere
os abajures do velório?
TARCÍSIO
(Exaltado.) Um verde, um roxo, um vermelho, um azul, um amarelo, de
todas as cores. Um troço alegre, velho, o melhor luxo três que for possível.
O melhor!
PERSONAGENS:
Tarcísio e, depois, Selene.
CENÁRIO:
cabine telefônica. (Em nenhuma hipótese o atual “orelhão”.)
TARCÍSIO
(Chorando, faz uma ligação. Ouve-se a chamada da ligação; ninguém
atende. Ele desliga. Volta-se. Vê-se seu rosto passar das lágrimas para um
sorriso discreto de alegria.) Não está nada fácil cumprir aquele seu desejo.
SELENE
(Agora está vestida como uma personagem de Tchekov, de branco.) Não há
mais, nos cemitérios, um canto onde alguém possa ficar até ser esquecido?
É isto?
TARCÍSIO
É isto. E não existem mais cemitérios. Agora chamam-se campos rotativos.
SELENE
Que mau gosto! (Riem os dois.) Vamos ainda uma vez dar um passeio no
parque? Como antigamente?
TARCÍSIO
Preciso falar com alguém que me leve ao Vice-Prefeito. Só ele, atualmente,
pode autorizar a compra de um jazigo perpétuo.
SELENE
Depois você vai. É cedo ainda. Vamos comigo.
PERSONAGENS:
os mesmos.
CENÁRIO:
Parque do Ibirapuera. (Obs.26: trata-se de um interlúdio leve, compensando
o tom algo pesado e mesmo grosseiro das cenas na Funerária. Pede-se,
portanto, que se mantenha a cena e que o tratamento seja o mais delicado
possível.)
SELENE
(Andando ao lado do filho.) “Sempre joguei fora o meu dinheiro, como uma
verdadeira louca; e casei-me com um homem que só sabia fazer dívidas.”
TARCÍSIO
Você nunca me disse que tinha sido casada.
SELENE
“Foi a província que matou meu marido — ele bebia tanto! —, e eu, para
minha desventura, apaixonei-me por outro homem, liguei-me a ele, e
então... — foi o primeiro castigo, um golpe na cabeça — aqui... neste rio.
TARCÍSIO
Não há rio nenhum.
SELENE
“...aqui, afogou-se meu filho, e eu parti para o estrangeiro, parti para
sempre, para não voltar mais nunca, nunca mais ver este rio.” (Muda
subitamente de expressão e corre, rindo.) A cena é de Tchekov. O cerejal.
Meu filho está vivo e bem vivo, e é jovem, e lindo, lindo! (Dançam
levemente, sob o olhar encantado e comovido do filho. De súbito, ela para e
recita, com grande poesia, esta nova fala de O cerejal): “Sim, eis a Lua, e
eis a felicidade, eis que se aproxima, que vem na nossa direção, cada vez
mais perto, eu já escuto seus passos.” (Como voltando a si.) Mas já
brincamos bastante. Vou olhar um pouco o meu velório. Não gosto muito de
velório, mas enfim... sendo o meu...
PERSONAGENS:
Selene e figurantes.
CENÁRIO:
é a sala da primeira cena. Os móveis foram afastados e o esquife está dentro
da peça, cercado de abajures de pé, coloridos. Há vários grupos espalhados
no salão: homens e mulheres bem vestidos; e jovens sentados pelo chão,
vestidos segundo as “Instruções Gerais”.
MÚSICA:
solene, de órgão. Mas não chega a ser música sacra.
SELENE
(Não fala. Tudo que faz é passear entre os figurantes, reagindo com
expressões fisionômicas, segundo o que ouve. Aliás, dependerá das
possibilidades da Produção apresentar realmente os rostos dos vários
comparsas que aqui surgem, em certos casos para uma única fala, ou apenas
fazer ouvir as suas vozes, mostrando como reage ante elas Selene Raquel.)
HOMEM DE IDADE
Selene Raquel! Selene Raquel! Passamos belos momentos na Riviera.
Grande mulher. Não posso queixar-me. (Expressão de Selene, como quem
diz: “Que filho de uma puta!”)
ATRIZ JOVEM
Tinha qualidades. Mas grande atriz, nunca foi.
MULHER 1
Ultimamente, andam falando muito de nós dois.
GALÃ
Como não há nada, nada temos a temer.
MULHER 1
Mas você sabe, não é? Quando o povo fala, ou é ou está pra ser.
CAPITALISTA
Vão fazer cortes severos no orçamento. A taxa de juros...
HOMEM 3
Pois o sujeito não tinha nenhum senso de oportunidade. Imaginem que, em
pleno cemitério, começou assim a oração fúnebre: “Mocidade esportiva da
minha terra!” (Risos.)
CRÍTICO 1
O papel do crítico é meter o pau. Se o crítico não mete o pau, não é
respeitado.
CRÍTICO 2
A verdade é que o teatro está em crise.
HOMEM 2
Estou decepcionado com você.
MULHER 2
Por quê?
HOMEM 2
Quando seu marido morreu, passei aquela conversa e você me deu o contra.
No entanto, eu soube que...
MULHER 2
Ah! Você é que é culpado.
HOMEM 2
Culpado por quê?
MULHER 2
Por que não insistiu?...
PERSONAGENS:
Tarcísio e Presidente da Câmara dos Vereadores.
CENÁRIO:
Gabinete oficial.
TARCÍSIO
Informaram que o senhor, como Presidente da Câmara, tem prestígio com o
Vice-Prefeito.
PRESIDENTE
Exageros, exageros, somos apenas amigos que se respeitam. Qual é o
problema?
TARCÍSIO
Sou filho de Selene Raquel. A atriz de teatro. Ela morreu hoje. E eu queria
para ela um jazigo perpétuo. Sabe... o túmulo, para ela, era uma coisa
sagrada. Eterna.
PRESIDENTE
Antigamente, meu caro, antes do Grande Surto Imobiliário, isso ainda era
possível. Hoje não. Temos de aproveitar os terrenos existentes.
TARCÍSIO
Ela deixou algum dinheiro e eu quero cumprir a vontade dela.
PRESIDENTE
Aceite o meu conselho. Guarde o seu dinheiro. Alugue uma gaveta por três
anos. É barato. Um terço de um salário-mínimo, talvez menos.
TARCÍSIO
Presidente: ela nunca morou em apartamento. Gostava da terra e sempre
quis em torno dela um... um anel, entende?, um espaço. Não vou metê-la
numa gaveta, num birô, não tenho nada com a alta-rotatividade de vocês.
Quero um lugar onde ela fique isolada e para sempre. Será possível que o
Brasil, tão grande, não tenha um lugar permanente para um morto?
PRESIDENTE
O Brasil, sim. Mas São Paulo, não. Somos quase vinte e cinco milhões, pelo
último censo. Não há mais lugar para esses caprichos. Em todo caso, como
o
Vice-Prefeito gosta de teatro, principalmente do teatro japonês, e
certamente conhecia sua mãe, quem sabe?... Vou encaminhar você a ele.
(Toca uma campainha.)
PERSONAGENS:
Figurantes do velório. Selene está ausente.
CENÁRIO:
o velório.
MÚSICA:
de dança, discreta.
PERSONAGENS:
Tarcísio e Vice-Prefeito.
CENÁRIO:
Gabinete do Vice-Prefeito, ambiente oriental, com luminárias redondas de
papel etc. Sobre a mesa, em português e japonês, a placa VICE-PREFEITO.
VICE-PREFEITO
(Está de quimono, sentado diante de uma mesa baixa, à moda oriental.
Sobre a mesa, uma espada. Ele próprio é um japonês. A certa distância, uma
japonesa vestida a caráter toca um samissen. Não fala com sotaque
japonês.) O que há é a racionalização do uso do espaço, com o
aproveitamento do subsolo. Os tempos mudam. Antes, as pessoas eram
sepultadas nas igrejas. Os cemitérios a céu aberto ficavam apenas para os
indigentes, os escravos, os supliciados e os que morriam de varíola.
TARCÍSIO
(Também sentado no chão, diante dele.) O senhor sabe o que aconteceu com
o poeta Casimiro de Abreu? Foi enterrado num lugar chamado Barra de São
João. O cemitério ficava entre uma igrejinha e o mar. Mamãe contava essa
história e toda vez ela chorava. O mar foi subindo e acabou com os túmulos.
O coveiro guardava um crânio debaixo da cama. Quem quisesse ver o
crânio, pagava dois mil réis. Era o crânio de Casimiro de Abreu! (Pausa.)
Mesmo naquele tempo, dois mil réis não valiam grande coisa.
VICE-PREFEITO
Nós aqui não temos mar.
TARCÍSIO
Mamãe tinha horror à falta de respeito pelo corpo. Ela viveu o próprio
corpo. O corpo, para ela, era uma coisa que merecia honras. Ela dizia que o
corpo... era como o estandarte de batalhas perdidas e vencidas, e que não
podia ser jogado por aí. Consegue ou não consegue o terreno?
VICE-PREFEITO
(Pondera um pouco.) Em que campo você queria?
TARCÍSIO
No campo... no Cemitério da Consolação.
VICE-PREFEITO
Dispõe de quanto?
TARCÍSIO
(Abre a pequena maleta em que traz o dinheiro diante do Vice-Prefeito.) É
tudo que eu tenho.
VICE-PREFEITO
Nenhum cheque?
TARCÍSIO
Na minha conta, quase nada. E mamãe morreu de repente.
VICE-PREFEITO
Eu sinto o seu problema e gostaria muito de ajudá-lo. Mas quanto calcula
ter aí? Cem mil? Cento e cinquenta mil? Por esse preço, no máximo, eu
poderia conseguir-lhe um terreno na periferia. No Cemitério da Consolação,
impossível. Se esse é realmente o dinheiro que possui, conforme-se. Alugue
uma gaveta. Sai tão mais em conta!
TARCÍSIO
Não sabia que estava assim tão caro. Então... (com humor amargo) que
venha a gaveta. Vou alugar a gaveta.
PERSONAGENS:
Tarcísio e dois ladrões de moto.
CENÁRIO:
ruas de São Paulo. Viadutos. (Música forte, acompanhando a cena, também
sem palavras.)
(Tarcísio vai saindo da Prefeitura. Sai tão perturbado que a maleta se abre.
Algum dinheiro cai no chão. Ele se curva e apanha-o. Os dois malandros, a
certa distância, veem o que se passa. Tarcísio pega a moto. Eles também, e a
perseguição começa. Cena importante, mas decorativa, entregue à
habilidade do Diretor e do Cameraman. Do mesmo modo que a cena do
Parque compensa a grosseria das cenas anteriores, esta perseguição a céu
aberto traz certo oxigênio, certa impressão de aventura e dinamismo,
contrapondo-se aos diálogos em ambientes fechados. Não chegamos a
saber, na cena, se o roubo se efetivou. Isto vai ser esclarecido através de
Tarcísio, na cena seguinte.)
PERSONAGENS:
Tarcísio, Funcionário, Homem 2, Padre, Atriz Jovem e figurantes.
CENÁRIO:
o velório.
MÚSICA:
agora, tornou-se mais ruidosa e menos solene.
PERSONAGENS:
Tarcísio, Jovem 1 e Jovem 2.
CENÁRIO:
o quarto onde morreu Selene Raquel.
TARCÍSIO
Não sei o que faço. Os dois caras me levaram tudo.
JOVEM 1
Sabe, Tarcísio, essa história do jazigo perpétuo me lembra essas atrizes que
querem um teatro com o nome delas. Estou sendo franco.
JOVEM 2
Isso é julgamento. Coisa inoperante. Não resolve nada. O negócio é
transformar o problema em ação. Vamos resumir. Ela queria um túmulo
para sempre. Não era possível comprar um em vida.
TARCÍSIO
Não. O Serviço Funerário não permite.
JOVEM 1
Por quê?
TARCÍSIO
Pra evitar que o pessoal comece a especular. Como acontece até no interior
de São Paulo.
JOVEM 2
E quem escolheu o Cemitério da Consolação?
TARCÍSIO
Fui eu. Mas depois eu me lembrei: muitas vezes ela havia falado nesse
cemitério.
JOVEM 2
Mesmo em outros, o terreno está custando uma nota, não é isto?
TARCÍSIO
É. Um absurdo. E não é só aqui em São Paulo. No Recife, em Belo
Horizonte, é muito mais caro. No Rio, então, nem se fala.
JOVEM 2
Quer dizer que você tinha decidido alugar uma gaveta. Aí vieram os gajos e
roubaram a maleta com o dinheiro. A velha tinha depósito no banco, mas
você não pode passar cheque. Está na mão.
TARCÍSIO
Isto.
JOVEM 1
Esse troço todo aí já está pago? Canapés e tudo?
TARCÍSIO
Está. O que falta é pagar o aluguel da gaveta.
JOVEM 2
Bem. A solução velha é fazer uma coleta. A solução nova é muito diferente.
TARCÍSIO
Qual é?
MÚSICA:
acorde inquietante.
PERSONAGENS:
Padre, Milionário e figurantes.
CENÁRIO:
portão da casa de Selene Raquel.
(O padre vai saindo, acenando para algumas pessoas que o levam até o
portão. Há um táxi esperando-o, um Volks. Ele toma o táxi e, atrás, encosta,
se possível, um Rolls-Royce. De qualquer modo, deve ser um carro de luxo,
com motorista. Dele, desce um cavalheiro já idoso, mas de peruca,
aparentando um ar de juventude, muito bem vestido, de luvas e bengala. O
chofer abre a porta e ele desce do carro. Cumprimenta com a cabeça as
pessoas que foram levar o padre até o táxi. A câmara acompanha-o através
do velório, até o momento em que ele chega junto do ataúde. Este pequeno
papel deve ser preparado com carinho. É uma fase do passado luminoso e
romântico de Selene Raquel que vem à tona. Um velho amante, no declínio
da vida, vem contemplar pela última vez o objeto de uma forte e antiga
paixão.)
PERSONAGENS:
Milionário, Tarcísio, Jovem 1, Jovem 2, Selene e figurantes.
CENÁRIO:
quarto onde morreu Selene Raquel.
TARCÍSIO
Eu acho que topo a ideia. Quando eu era criança, ela gostava de me levar ao
Parque. A gente se deitava na grama, junto do obelisco. E agora... (Batem à
porta. Tarcísio vai abrir.)
MILIONÁRIO
(Entra seguido de outras pessoas e estende a mão a Tarcísio, olhando-o com
intensidade. Talvez esse homem seja o pai de Tarcísio, coisa que não deve e
nem pode ser esclarecida. Depois de estender a mão, ele ainda o abraça.)
Você está com um problema.
TARCÍSIO
Sim. Quer dizer... Estava.
MILIONÁRIO
(Tirando do bolso um talão de cheques.) A vontade da minha querida e
inesquecível amiga Selene Raquel será cumprida. De quanto precisa?
(Breve momento de hesitação. Tarcísio pensa se deve aceitar a oferta
inesperada ou cumprir o que acabou de combinar com os seus amigos. De
repente, vê-se que a sua expressão muda. A câmara, então, mostra-nos,
entre as outras pessoas, um pouco afastado, o rosto de Selene Raquel, que
acena negativamente. Está de cabelos curtos e a câmara deve deter-se um
pouco sobre ela, para que o público a reconheça bem.)
TARCÍSIO
Agradeço muito, mas já decidimos outra coisa. Vamos enterrá-la no Parque
Ibirapuera. (Novamente o rosto de Selene Raquel, que sorri, aprovando e
põe o elmo na cabeça. Ela agora é Joana d’Arc.)
MÚSICA:
acorde grave, cortando a cena. Esses acordes vão acompanhar o enterro,
logo misturando-se com a música de um realejo.
PERSONAGENS:
os mesmos e dezenas de figurantes.
CENÁRIO:
externos, a caminho do Ibirapuera. O Parque Ibirapuera. (Este é o grande
momento, para o qual caminha a história. Selene Raquel, a morta, abre o
desfile, num cavalo branco, vestida como a donzela de Orléans e tendo à
mão um estandarte vermelho. A seguir, vai o ataúde, sustentado por Tarcísio
e amigos. Tarcísio leva o urso de brinquedo consigo. As outras pessoas
seguem atrás, inclusive alguém que conduz um carneiro e que vai perto do
caixão. Aos acompanhantes do início, associam-se ambulantes.
Principalmente ambulantes que vendem coisas volumosas: um vendedor de
algodão doce; um vendedor de balões: um vendedor de cestas de vime; um
vendedor de sacos de espuma de borracha picada, para travesseiros; um
vendedor de corrupios; um amolador de tesouras e o homem do periquito
com o seu realejo (este, aliás, deve ser um dos primeiros a associar-se ao
cortejo, que passará a ser acompanhado pela sua música, associada aos
acordes graves e majestosos a que já me referi); homens que estão
trabalhando na rua, de capacete, fazendo escavações, também interrompem
o trabalho e seguem, com os seus instrumentos.)
PERSONAGENS:
Tarcísio, Selene e figurantes.
CENÁRIO:
o túmulo recém-coberto, num gramado do Ibirapuera.
(As pessoas vão se afastando e ficam apenas Tarcísio e Selene Raquel,
afastados, um de cada lado do túmulo. Selene, agora, está com um manto
branco, leve. E descalça. A música cessou. Os dois ficam ali alguns
segundos, olhando o túmulo. Ouve-se o barulho do trânsito e algum rugido
longínquo de leões. Tarcísio joga o urso em cima do túmulo.)
(Close de Selene: é o seu último olhar para o filho.)
SELENE
Ciao, filho.
TARCÍSIO
Ciao, mamãe.
SELENE
Ciao, Selene Raquel. Ciao, corpo de Selene Raquel. (Afasta-se. Para uma
charrete. Ela toma a charrete. Vai embora para sempre.)
PERSONAGENS:
Tarcísio e Regina.
CENÁRIO:
gramado no Ibirapuera, ao pôr-do-sol.
TARCÍSIO
(Está sentado. Vemo-lo de perfil, o Sol se pondo por trás dele. De repente,
ele levanta o rosto. Entra no quadro Regina, que lhe estende a mão e senta-
se a seu lado, abraçando-o. Ele pronuncia então, espaçando-as, as seguintes
frases finais, que apontam para diferentes direções e, na verdade, não
pedem resposta:) O Sol está se pondo... (Silêncio.) Procurei tanto você...
(Silêncio.) Sabe? Hoje terminou, de verdade, a minha infância.
MÚSICA:
Faixa final.
REFERÊNCIAS
LINS, Osman. Casos especiais de Osman Lins. São Paulo: Summus, 1978.
WOOD, James. Como funciona a ficção. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
NOTAS
A ilha no espaço
4 O isolamento do artista que Lins enfatiza em Guerra sem testemunhas
(1969) é convertido numa provável alegoria no roteiro de A ilha no espaço.
O autor nos leva à seguinte reflexão: sozinho num edifício abandonado por
todos, seria o escritor um elemento de resistência, tal como o bancário
Arantes, que apesar do enfrentamento da indiferença de todos acaba
sucumbindo ao medo da morte? Refém de um sistema opressor, até que
ponto poderia um revolucionário resistir e combater o silenciamento a que
se vê sujeito? Haveria alguma saída para o artista “num mundo estagnado”
(título de um ensaio escrito por Osman Lins em sua juventude)? Certamente
esta seria uma das críticas subliminares elaboradas pelo autor, entre tantas
outras prováveis leituras desse texto. Graças ao tratamento bem-humorado
do tema, que em alguns momentos beira intencionalmente o ridículo, é
provável que o autor tenha conseguido a aprovação do projeto pela
emissora. De qualquer forma, A ilha no espaço já laborava uma quebra de
paradigmas, com uma temática inovadora e aparentemente improvável de
angariar alguma projeção nacional naquela época.
o batizado: é tão comprida que os pés são sustentados por outra pessoa, ao
lado da madrinha; festa infantil de aniversário: uma criança alta, soprando
cinco enormes velas ...; cena na praia: ela alta, com um balde, ao lado de
um mulatinho ...; grupo da formatura no colégio: ela já adolescente e
sempre mais alta do que todos ...; time de basquete, onde ela — entre os
vinte e vinte e um anos — ainda é a maior (LINS, p. 1978, p. 38).
INTERVALO
PERSONAGENS: Pai e Mãe. Esta, sentada na rede, balança-se de leve e
faz tricô. O Pai está na sua cadeira, junto ao birô.
CENÁRIO: Escritório do Pai.
Pai: De repente, a Shirley parece outra. Mais acessível, menos tensa. Você
não acha?
Mãe: É mesmo. Parece outra. (LINS, 1978, p. 46)
A primeira fala já sugere que houve realmente uma virada no enredo. Se a
personagem parece outra é porque algo aconteceu — nesse caso, ela estava
em paz porque havia contado sobre o namorado ao pai — e,
consequentemente, a trama caminha com novos artefatos.
Osman Lins usou fartamente, neste episódio, uma alusão a um espetáculo
também muito presente em sua obra: o circo, gênero de teatro popular. Um
circo (do latim circus, “circunferência”) é comumente uma companhia em
coletivo que reúne artistas de diferentes especialidades, como malabaristas,
palhaços, acrobatas, contorcionistas, equilibristas e ilusionistas, entre
outros. A palavra também descreve o tipo de apresentação feita por esses
artistas, normalmente uma série de atos coreografados com fundo musical.
Um circo é organizado em uma arena — picadeiro circular, com assentos
em seu entorno, enquanto os circos itinerantes costumam se apresentar sob
uma grande tenda ou lona. A história do circo no Brasil começou no Século
XIX, com famílias e companhias vindas da Europa, onde se agruparam em
guetos e manifestavam sentimentos diversos através de interpretações
teatrais onde não demonstravam apenas interesses individuais, e sim,
despertavam consciência mútua.
9 Na peça osmaniana — termo por ele mesmo usado para identificar o texto
—, a história se concentra num aspecto físico da personagem (interpretada
pela atriz Dina Sfat): sua altura exagerada, que estabelece um contraponto
com o tamanho diminuto da famosa atriz mirim, resultando num efeito
grotesco dentro da narrativa. Para o crítico teatral Anatol Rosenfeld, um dos
elementos da técnica de distanciamento do ilusionismo do teatro burguês e
comercial, proposta por Bertold Brecht, reside na produção de efeitos
grotescos, que podem ter várias gradações: “A combinação entre o
elemento cômico e o didático resulta em sátira. Entre os recursos satíricos
usados encontra-se também o do grotesco, geralmente de cunho mais
burlesco do que tétrico ou fantástico. A própria essência do grotesco é
tornar estranho, pela associação do incoerente, pela conjugação do díspar,
pela fusão do que não se casa — pelo casual encontro surrealista da famosa
máquina de costura com o guarda-chuva na mesa de necropsia
(Lautréamont). Brecht se aproxima de outras correntes atuais, como o
Teatro de Vanguarda ou a obra de Kafka, porém desfamiliariza o mundo
para explicar e orientar, enquanto as demais correntes tendem a exprimir,
através do grotesco, a desorientação em face de uma realidade tornada
estranha e imperscrutável” (ROSENFELD, 1985, p. 158).
14 Depois que Shirley (aquela figura que está sempre à espera de uma
crítica, com medo de a qualquer momento sofrer algum tipo de preconceito)
recebe o elogio, de repente escuta uma frase amável, e ainda relacionando a
sua voz com a música; ela fica encantada, mesmo nunca tendo visto a
pessoa que está do outro lado da linha. Finalmente alguém parece se
interessar por ela. Só que o medo de ser rejeitada ainda continua, Shirley
passou a adorar aquelas conversas, mas não tem coragem de se apresentar
pessoalmente a ele. Isso acontece muito atualmente, as pessoas se escondem
por trás das redes sociais, por vezes usam fotos que não são as delas, toda
uma farsa psicológica por conta do medo da rejeição. No roteiro
osmaniano, a tecnologia era a anterior à internet; se tivesse vivo seria capaz
de o autor usar a simbologia do mundo virtual em seus textos,
principalmente para enredar críticas, e nos fazer raciocinar sobre as
consequências da era on-line; os emoticons seriam as máscaras do teatro
épico.
Marcha fúnebre
15 Marcha fúnebre foi exibido em 1977, com direção de Sérgio Britto. No
elenco principal estavam Tereza Raquel, no papel da atriz Selene Raquel, e
Diogo Vilela, interpretando o filho dela, Tarcísio. O enredo gira em torno
desse casal. Quando jovem, Selene foi uma atriz de teatro muito conhecida.
Agora, na meia idade e longe dos palcos, ela vive de nostalgia. Sua grande
preocupação é com a morte. A artista deseja ser enterrada em um jazigo
perpétuo, onde será eternamente lembrada. Seu filho é quem deve
providenciar a realização do sonho, só que ele se defronta com a cidade de
São Paulo em plena crise para enterrar os seus mortos, não há mais lugar
nos cemitérios; só existem duas opções: cremação ou rodízio de corpos. Ao
contrário das demais, esta obra ingressa francamente no ambiente
fantástico, pois o espírito de Selene Raquel fica vagando, aparecendo e
confabulando com o filho até que ele resolva a situação do enterro. Para
completar, Tarcísio ainda vive sob a pressão da namorada, que deseja fugir
com ele.
Regina — Eu quero é fugir com você para o mundo, Tarcísio. Você precisa
nascer. Até quando quer ficar assim? Achei incrível quando estive na sua
casa. O seu quarto tem até urso de pelúcia!
Tarcísio — Você não vai supor que eu brinco com o urso.
Regina — Mas o urso está lá. Você tem que pegar aquele urso e jogá-lo pela
janela. Vamos embora comigo. Seja para onde for.
(LINS, 1978, p. 97)
INTERVALO
TARCÍSIO
Não. Não tenho encontro nenhum.
SELENE
Então, por que fica assim, nesse vai e vem? Até dá tonturas.
[...]
TARCÍSIO
E eu, que já estava pensando que nunca mais ia vê-la.
SELENE
(Erguendo-se. Teatral.)
“Amém, amém. Haja o que houver, no entanto, nem toda a dor do
mundo é um preço bastante para o gozo de vê-la um só instante!” Romeu e
Julieta, segundo ato, última cena.
TARCÍSIO
Minha mãe vive no passado, com seus álbuns de recortes e o guarda-
roupa cheio de vestidos que usou no teatro. Mas somos muito ligados.
REGINA
Não sou contra isso. Eu bem queria ter pelos meus pais aadmiração que
você tem por ela. (LINS, 1978, p. 95 e 96)
Comparando os estilos, observamos que as mesmas informações têm nos
dois formatos, apenas que no master scenes os elementos aparentam estar
mais organizados; há um trabalho de divisão de cenas, espaços, tempo,
descrições e intenções para a personagem. Isso facilita muito o trabalho do
diretor quando ele for elaborar o roteiro técnico — o exemplo acima é
chamado de roteiro literário —, onde ele tendo uma visualização maior das
cenas poderá arquitetar melhor os planos que deseja usar no filme. A
diferença do roteiro literário para o técnico, é que no técnico o diretor vai
receber o roteiro literário e encher de elementos técnicos: planos,
enquadramentos, cortes, indicações de luz etc. É bom frisar que o formato
master scenes não é obrigatório, cada roteirista escolhe um estilo para
trabalhar, o importante é que a mensagem seja passada de uma forma
simples e que a leitura do texto seja visualizada.
A forma do roteiro é tão simples; tão simples, de fato, que a maioria das
pessoas tenta torná-la mais complexa. Richard Feynman, o físico ganhador
do Prêmio Nobel, uma vez observou que “as leis da natureza são tão
simples que temos que ficar acima da complexidade do pensamento
científico para enxergá-las”. Para ação há uma reação igual e contrária. O
que poderia ser mais simples que isso. (FIELD, 2001, p. 157)
Tanto Quem era Shirley Temple? como Marcha fúnebre segue essa
simplicidade, Osman Lins traz a divisão de uma estrutura clássica do
roteiro: primeiro, segundo e terceiro atos. No primeiro, o roteirista deve
trazer basicamente a exposição do tema e uma expectativa até o problema
surgir; no segundo ato, o problema necessita ganhar uma dificuldade ainda
maior, precisa ficar mais complicado, deve existir também uma tentativa de
sanar a situação, ter uma medida extrema para levar a crise e para poder
chegar ao clímax. Terceiro ato: clímax, resolução e epílogo.
Osman Lins fez isso. A fábula seria a história de uma mulher, que no
passado já fora uma atriz famosa, e que agora deseja ser enterrada de uma
maneira pomposa. A história se passa no “futuro”, ano de 1990, na cidade
de São Paulo. A trama, ou o modo como Osman Lins nos conta é o que
enaltece a fábula, é o que produz a magia do cinema, no caso aqui do
telefilme! Osman leva o telespectador para o lado do fantástico e esse exato
momento é umas das viradas do roteiro (não é impossível, mas muito difícil
o telespectador imaginar que Selene Raquel observaria o seu próprio velório
e influenciaria na decisão do seu funeral). Ele mesmo alerta para o valor
dessa cena:
O amor que não sentimos" é o livro vencedor da categoria Contos do 1º Prêmio Cepe
Nacional de Literatura e traz um bom conjunto de contos que, em geral, tratam as relações
familiares e emocionais de um modo delicado, com uma sensibilidade original e uma
escrita limpa e direta, fazendo um ótimo uso da oralidade. Os personagens são construídos
com cuidado e eficiência pelo autor Guilherme Azambuja Castro, assim como as vozes de
seus diversos narradores. Memória, infância e adolescência são trabalhadas de forma a
retratar situações comuns, mas complexas, de passagem, perda ou conquista da
experiência. O próprio ambiente onde as histórias se desenvolvem é de fronteira,
reforçando essa impressão de transpasse ou transgressão. As referências extraídas da
cultura pop, geracionais, e das tradições gaúchas também soam muito bem equilibradas.
O romance "O grande massacre das vacas" de Sérgio Correa Siqueira, trata de um tema
desconhecido — e aparentemente secundário — da história brasileira, mas que revela
muito daquilo que se denomina de Brasil profundo. No caso, o transigir entre o público e o
privado, seja no campo dos negócios e da política, seja nas relações de amizade. Por meio
de uma narrativa equilibrada, firme e persuasiva, o autor envereda pelo romance histórico,
mas sem fazer da ficção uma mera moldura para um evento da história brasileira. Pelo
contrário, submete a história à ficção e recria pela imaginação o passado brasileiro. Esse
foi o vencedor na categoria Romance do 1º Prêmio Cepe Nacional de Literatura.
O livro "E eu, só uma pedra", do autor Helton Pereira, faz uma aposta prioritária na
invenção, com um trato cuidadoso da fantasia e na ousadia intelectual. O protagonista — a
pedra — é um personagem singular, que foge dos clichês e estereótipos das histórias
infantis. O livro foi vencedor na categoria infantojuvenil e conta com ilustrações de Cau
Gomez. Com um manejo ousado da imaginação, a narrativa apresenta uma visão pluralista
e sem preconceitos da realidade. São feitas referências sutis à tradição e às influências
literárias, tudo com leveza de estilo.