Bendito Maldito - Uma Biografia - Oswaldo Mendes
Bendito Maldito - Uma Biografia - Oswaldo Mendes
Bendito Maldito - Uma Biografia - Oswaldo Mendes
M endes, Oswaldo
Bendito maldito : uma biografia de Plnio M arcos / Oswaldo M endes.
So Paulo : Leya, 2009.
Bibliografia.
ISBN 9788580440089
1. M arcos, Plnio, 1935-1999 2. Teatro brasileiro 3. Teatrlogos
brasileiros - Biografia I. Ttulo.
09-10079
CDD-869.9209
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Para Walderez, Lo, Kiko, Aninha, Vera e Tiago
PREFCIO
Latncia e tica
Ilka Marinho Zanotto
Quinhentas pginas de um livro hbrido que vibra nas mos de quem o l, tal a vertiginosidade
dos fatos encadeados, pesquisados exausto, que nos revelam seis dcadas da trajetria do
cometa Plnio Marcos. Plnio Marcos, ele mesmo, o tempo todo, como se autodefiniu. Cometa que
arrebata no seu rastro seiscentas e tantas outras vidas citadas no ndice onomstico, que, de algum
modo, compartilham da epopeia pliniana, de seu tempo e vez, numa poca de trevas do pas
Brasil. A Ptria vira truncada a esperana dos febricitantes anos JK industrializao, 50 anos
em 5, cinema novo, bossa nova, imprensa livre etc., etc. , quando o futuro parecia nos pertencer
e a nossa v filosofia garantia no apenas a contemplao, mas a transformao do mundo...
A obra ciclpica de Oswaldo Mendes dividida em atos e cenas como se espetculo teatral
fosse, eivada de flashbacks e zooms prprios do cinema, esclarecidos nos seus vaivns pela
rigorosa Linha do tempo que situa historicamente fatos e datas de mais de meio sculo. Oswaldo
mergulha no cipoal de relatos, memrias e emoes flor da pele, esmia detalhes de uma vida
vivida sofregamente, com o mpeto de um trem em movimento. Ao faz-lo, traz de volta a cidade
que salta do passado em letra de forma, mas com tal arte evocada que alguma coisa acontece em
nosso corao: A cidade dos bondes comeava a ficar no passado quando Plnio Marcos
desembarcou em So Paulo. A garoa e o frio ainda resistiam. Na dcada de 1960, andava-se a p
com certa segurana pelas ruas e praas, olhos atentos apenas nos batedores de carteira, e as
distncias eram mnimas entre os pontos nos quais Plnio estabeleceu o mapa de suas descobertas
profissionais e humanas.
Mas antes de So Paulo houve Santos, cidade mtica beira-mar, bero de geraes de artistas
e intelectuais de primeiro time com os quais Plnio travou conhecimento a partir de 1950; Santos
e a efervescncia da era Pagu, aos quais Plnio presta um preito de gratido e orgulho em Mestres
do teatro, crnica que escreveu no ano de sua morte. No livro so descritas as razes da famlia e
da infncia do futuro dramaturgo, a adolescncia e juventude rebeldes e j vocacionadas para suas
paixes mais duradouras, o futebol e o teatro (paixes compartilhadas com Nelson Rodrigues a
par do ineditismo do linguajar); acompanha-se o fugitivo da escola e das peias dos regulamentos,
quaisquer fossem eles, o peregrino das docas e dos botecos do cais de Santos que, ao embrenhar-
se na agitao daquelas vidas vividas perigosamente, nascia como autor. Radar precoce da misria
e do sofrimento humanos. A sensibilidade para o pulsar dos coraes alheios, a solidariedade
infinita revelada no episdio do Cobrinha, morador de rua, coberto pela capa nova de gabardine
comprada custa pela me, um dos tantos momentos vincados pelo esprito de doao, motor
movente de uma longa histria. A atrao pela aventura forte e livre do circo que passa a se
integrar nos panos arlequinados do palhao Frajola. Ao picadeiro e ao povo circense dedica
admirao irrestrita: Quando escrevi Barrela eu tinha a escola do circo. Eu sabia andar no palco,
o que facilita muito para quem dramaturgo... e eu sa quase no mesmo nvel de Molire que
andava to bem no palco como Guarnieri .... Boutade parte, iniciara a fala com a definio
paradigmtica de sua conduta: Escrever uma arte solitria demais. Voc s respeitvel e
digno, como autor de teatro, se souber que tem de servir ao ator. Aqui comea a histria de Plnio
Marcos. O resto no silncio. H muito ainda para contar.
Na primeira frase deste prefcio falei em livro hbrido, porque salta aos olhos o intuito de
Oswaldo Mendes de recolher-se atrs do pesquisador que sabe ter em mos a biografia de um
autor e de um ser humano absolutamente acima e alm de qualquer definio.
Oswaldo, ele mesmo jornalista, ator, dramaturgo, diretor, crtico, homem de teatro completo,
realiza a proeza da objetividade jornalstica, mas no consegue escapar poesia das snteses
estupendas em momentos do Prlogo, na introduo do Segundo Ato (1967-1985), intitulada Da
navalha luz de um abajur lils, e em inumerveis trechos nos quais, graas ao seu dom de
escritor, brota insopitvel a comoo temperada pelo humor cido do biografado seu dileto
amigo fielmente retratado e devidamente engrandecido neste livro. Leiam-se estas pginas para
saber tudo sobre ele. Vale a pena.
chegada a hora de posicionar-me como crtica de teatro e dar o testemunho que Oswaldo
Mendes me pediu sobre o cruzamento de nossos destinos em momento crucial da vida de Plnio
por ocasio da truculenta proibio de O abajur lils, vspera da estreia, em maio de 1975, em
So Paulo.
J em 1959, como segundanista da Escola de Arte Dramtica de Alfredo Mesquita, eu
participara do 20 Festival do Teatro do Estudante, em Santos, como atriz-aluna do espetculo
Pranto por Ignacio Sanchez Mejas, de Garca Lorca, quando o sucesso de escndalo causado
pela estreia e proibio de Barrela no Clube Portugus, sem o sabermos poca, constituiu-se em
turning point da temtica teatral at ento conhecida. Nos anos finais da dcada de 1960, enquanto
cursava filosofia na USP, acompanhei as montagens que vinham luz das peas de Plnio: Dois
perdidos numa noite suja, Navalha na carne, com atores egressos da EAD, colegas meus.
Quando, em 1968, a censura se tornou to feroz que somente passavam pelo seu crivo os textos
nebulosos, alegricos, no mais das vezes incompreensveis para o grande pblico, de linguagem
cifrada para poucos entendedores detentores de senhas ocultas, Plnio Marcos jamais tergiversou.
Como um touro indmito investiu ininterruptamente contra o paredo da arena custa de no ser
mais encenado, de ser escorraado de qualquer lugar que lhe garantisse uma sobrevida como
comunicador imprensa, rdio, TV, cinema, circo. Era o perigo, aquele cujas palavras tinham
o poder de abalar estruturas, costumes, regimes. Aspectos estticos parte ningum punha em
dvida o valor artstico de textos cujas personagens de carne e osso remetiam, entre outros, aos
humilhados e ofendidos dostoievskianos, ral de Gorki, aos prias de Zola.
Em 1972, concomitante ao incio de minha atividade crtica no Suplemento Literrio de O
Estado de S. Paulo, no prprio jornal, na TV Cultura e nas revistas lsto e Viso, assumi a
presidncia da Associao Paulista de Crticos de Arte, cujo estatuto reza no artigo 2: A APCA
visa a defender a liberdade de expresso e os interesses coletivos, morais, culturais e
profissionais dos que exercem a crtica de teatro, msica, artes visuais, cinema, rdio, televiso,
literatura, dana e circo, e visa, de um modo geral, a incentivar todas as atividades do esprito e o
progresso da cultura brasileira.
Sendo a crtica uma reflexo sobre o trabalho dos artistas sem ele no teria sentido a nossa
profisso , evidente a necessidade de liberdade na atividade criativa. Por conseguinte, aps a
proibio de O abajur lils vspera da estreia, na quinta-feira, 15 de maio de 1975, consultados
por telefone alguns membros da diretoria, fui ao Correio Central no sbado tarde, dia 17, e
enviei, em nome da associao que reunia 140 crticos e jornalistas representantes de 35 rgos de
comunicao, um telegrama assinado por mim, como presidente da APCA (e com o RG
obrigatrio, no caso), ao presidente da Repblica, general Ernesto Geisel. O texto foi publicado
na ntegra no Jornal da Tarde de 3115, ao qual Plnio respondeu na ltima Hora com o artigo
Um manifesto comovente posteriormente includo por ele como prefcio da 1 edio de O
abajur lils.
Entre um fato e outro, houve no Museu de Arte de So Paulo (MASP), no dia 26 de maio,
segunda-feira noite, a premiao anual que abrangia todos os setores de arte, com o auditrio
lotado at o saguo, gente extravasando pelas caladas, com a presena macia da classe artstica
e intelectual, alm de familiares dos contemplados antecipadamente notificados, porque vindos de
todo o Brasil.
Era enorme a expectativa, inclusive dos jornalistas presentes, em relao ao esclarecimento dos
prmios s obras conservadas inditas, eufemismo usado por ns da APCA para premiar obras
proibidas e assim driblar uma eventual censura prvia nossa festa. (Censura quase exercida
quando, comparecendo sede do MASP dias antes para acertar detalhes com Pinky Wainer e
Roberto de Oliveira, que colaboraram nos preparativos de som e luz, fomos comunicados que a
data de 26 de maio fora cedida ao Instituto Goethe para projeo de um filme. Corre-corre at o
Consulado Alemo e ao Goethe que nos devolveu a data, desde que reimprimssemos os convites
deles para a projeo.)
Tambm a certa altura, na noite de festa, quando a emoo e os aplausos tomaram conta do
auditrio em face do desfile de malditos premiados, cortou-se a energia e Elizeth Cardoso
cantou sem microfone, luz de lanternas, em substituio a Elis Regina que no conseguia cantar
sem ele, tal era a confuso.
A carga voltaica daquela noite inesquecvel deixo a cargo de Plnio Marcos narrar-nos em sua
belssima crnica Abajur lils brilha nas trevas, de 28 de maio, na ltima Hora:
Se alguma mgoa eu tivesse da vida, ou do mundo, ou de gente, teria deixado de ir segunda-
feira noite na festa da Associao dos Crticos. Minha alma foi lavada pelo carinho dos artistas
e intelectuais de So Paulo. Eram artistas plsticos, gente de msica, de bal, escritores, artistas e
tcnicos de televiso, cinema e, naturalmente, teatro, respondendo presente, dizendo que sofrem
junto toda a afronta que se faa liberdade de expresso. E o Abajur lils se acende cada vez
mais forte. Permita Oxal que essa luz plida que quiseram apagar seja farol de muito brilho que
nos guie no rumo certo do dilogo franco e democrtico, que condio necessria para a
preservao plena dos direitos humanos, condio essa primordial para que se possa fazer do
Brasil a grande nao. Segunda-feira noite, a Ilka Zanotto me chamou no palco da Associao
dos Crticos apenas para entregar um prmio. E ao pronunciar meu nome, oAbajur lils se
acendeu. Os aplausos que me tiraram na violncia, na fora bruta, a minha gente, os artistas de So
Paulo, me devolveram em dobro, em triplo, em quantidade maior do que eu mereo. E, creiam, os
aplausos so a nica recompensa do artista. E eu os ganhei dos artistas e crticos brasileiros na
noite de segunda-feira. No chorei. Quem tem recebido essa solidariedade toda no tem esse
direito. No tremi nas bases. Quem est junto com sua gente no tem esse direito. Recebi os
aplausos. Agradeci a Deus por ter me concedido esse momento to belo e pedi foras para que eu
nunca traia a confiana dos que me aplaudiram com tanto afeto na noite dos crticos.
Encontramo-nos muitas vezes nas ruas em frente aos teatros de So Paulo e lembro-me com
gratido da vez em que Plnio Marcos me presenteou com o intil canto e intil pranto pelos
anjos cados, nada querendo receber em troca, e com belssima dedicatria. E quando nos honrou,
a mim e ao Gian Paolo, meu marido, com sua presena na mesa do Gigetto, abandonando a sua
cativa perto do caixa; dividindo conosco o jantar e deitando conversa fora, o modo santista
chiado de falar, os olhos vivssimos, o sorriso malandro, a simpatia cativante... Lembro-me da
presena provocadora em inmeros debates no Arena, no Galpo do Ruth Escobar, em palcos e
plateias, provocando um cala-boca geral quando soltava as labaredas de uma indignao
irrefrevel. A ltima vez em que estivemos juntos foi numa mesa de calada de um caf na Place
Vendme, em Paris: no mais, ali, o saci-camel de gorro e sandlia de dedo, mas o bem-
apessoado e mais bem trajado parece-me que a sandlia persistia autor brasileiro
homenageado no 18 Salo do Livro Parisiense, realizado de 20 a 25 de maro de 1998.
Neste ano em que se comemora no Brasil os quarenta anos da gerao de 69, responsvel pela
ecloso de uma nova dramaturgia, cumpre registrar que a pedra angular desse edifcio fora
assentada em 1959, de 2 anos antes, pela Barrela seminal de Plnio Marcos.
Transcrevo aqui palavras minhas sobre o tema para o verbete do Dicionrio do teatro
brasileiro[1] publicado pela Editora Perspectiva: Ele por primeiro escavou fundo nas
motivaes de personagens verazes at a medula, que falavam a linguagem do desespero colhida
nas quebradas do mundaru, os dilogos cola-dos ao. E procedera sem a idealizao dos
operrios urbanos das peas nacionais populares mesma poca que, embora fundamentais
para a fixao de uma dramaturgia brasileira, seguiam uma vertente engajada deliberadamente
realista que passava ao largo da arrebentao pliniana.
E transcrevo trechos do prefcio que escrevi para a coletnea Melhor Teatro. Plnio
Marcos[2], que corrobora a influncia mpar de sua obra na ecloso da nova dramaturgia: A lupa
realista de um olhar contundente beira o expressionismo quando, aps o crescendo das aes
concretas, reiterantes, exaustivamente repetitivas, estala o conflito, encenado como uma dana
macabra. Em Barrela, como em Dois perdidos, em Navalha na carne, em Abajur lils ou em
Quer, peas escolhidas para exemplificar a descida aos infernos, caracterstica da obra de Plnio
Marcos, mas no apenas nessas peas, o conflito existe agudssimo desde a primeira cena,
beirando o insuportvel no desenlace que sempre brutal e acelerado. [ ... 1 Nada discursivo, no
entanto, sempre a partir de falas e aes concretas, resultando a compreenso daquele submundo
da ao de personagens que se revelam sem explicar-se, numa caracterstica pliniana de profundo
insight das motivaes do comportamento humano, dando luz uma obra coesa, autntica, que
sofreu desde sempre as consequncias de sua unicidade: ineditismo de personagens e de temas,
enfocados sem mediao, flagrados na realidade com raiva e denncia jamais vistas, fora de um
linguajar absolutamente fel aos guetos de onde brotava; linguajar que gemelar virulncia,
crueldade e velocidade da ao que se desenrola em cena. Gria mais verdica impossvel, cdigo
exclusivo daqueles subterrneos, mas tambm marca de um estilo nico na dramaturgia
brasileira.
Peo vnia para voltar ao verbete:
Em Exerccio findo, Dcio de Almeida Prado diz que Plnio Marcos, ao instaurar a gria no
palco, contribui para o reajuste de linguagem facultado pelo Modernismo entre o que se escreve e
o que se fala; injeta no dilogo teatral, como Nelson Rodrigues havia feito antes dele, uma dose
macia daquelas sintaxes de exceo que Manuel Bandeira reclamava na sua Potica.
O palco povoado de cafetes, prostitutas, lsbicas, assassinos, suicidas, homossexuais,
gigols, bbados, drogados, policiais corruptos, escria das escrias, das docas de Santos, das
zonas, dos bordis, dos bares, sequer so personagens do lumpezinato brechtiano que ao menos
sabiam da prpria abjeo, mas os marginais mais absolutos, aqueles que no tm voz nem vez.
Plnio Marcos, aos olhos do Sistema que governou o pas a partir de 64, era o perigo, aquele
cujas palavras tinham o poder de abalar estruturas, costumes, regimes... Por que a proibio
paulatina e reiterada de sua obra? Muito provavelmente, a resposta est na raiz da dramaturgia do
autor: ela mostra como gente aqueles que normalmente so considerados marginais e traz ao
palco uma nova classe integrada por indivduos at ento ignorados pela saga teatral, aos quais
devota solidariedade irrestrita pelo simples fato de faz-los existir. Acende-se a luz vermelha da
represso ante o possvel despertar da conscincia de estruturas sociais injustas que clamam por
modificao.
Credor confesso dos dilogos especialssimos de Nelson Rodrigues, Plnio Marcos revela-se
dramaturgo de uma intuio e de um talento geniais, autor da obra mais revolucionria entre todas
as assumidamente militantes de seu tempo, embora nem por um momento se mostre explicitamente
engajada. A ferocidade da censura que se abateu sobre essa obra seminal deu azo ecloso da
dramaturgia da arrebentao da gerao 69, cujos autores, no dizer de Lauro Csar Muniz, na
impossibilidade de externar explicitamente seu desacordo com o mundo, explodiram para dentro,
buscando no mago das personagens motivaes bizarras para condutas aberrantes, o equivalente
psicolgico para o caos reinante nas relaes entre os homens.
*
esse ofcio de autor em tempo integral que este livro revela de forma exemplar. Artista
multimeios, como se diz hoje, h que acompanh-lo nas suas andanas na arte e na vida para
certamente t-lo impresso na mente e no corao como exemplo de talento, coragem, vocao e
teimosia em ser Plnio Marcos, ele mesmo, o tempo todo.
A arte no pode ser subordinada ao seu sujeito, pois nesse caso no arte e sim biografia, e
biografia a malha atravs da qual a vida real escapa. Eu estava comeando a pensar este
trabalho quando li a frase de Oscar Wilde, personagem da pea de Tom Stoppard The Invention of
Love, citada em crnica de Luis Fernando Verissimo. A frase to boa que se basta. Toda
biografia oscila entre a literatura e a reportagem, o registro documental. No caso de Plnio
Marcos, ele a escreveu em crnicas, contos e entrevistas, em que fatos e verses se misturam. Da
ter concludo, em momento de crise, que toda biografia mentirosa, pois ele mesmo mentiu tanto
sobre a sua vida que no sabia mais distinguir o verdadeiro do falso. Assim ele dava razo ideia
de que a vida real escapa nessa malha chamada biografia. Para driblar a armadilha, s mesmo
caminhando entre a literatura, com o colorido ficcional que Plnio deu a episdios reais, e o
mximo de rigor jornalstico possvel.
Para que servem as biografias? Em alguns casos, no este, elas so o buraco da fechadura
atravs do qual o leitor convidado a invadir a intimidade da personagem. Quase sempre, elas so
produzidas para documentar uma vida e disso, afinal, que se trata e a sua contribuio
histrica na rea em que se destacou o biografado. Quando, ainda no Crematrio de Vila Alpina,
no comeo da tarde de 20 de novembro de 1999, o editor Quartim de Moraes, que havia comeado
a tarefa interrompida por Plnio em 1992, e Lo Lama me lanaram o desafio de escrever essa
biografia, a minha reao foi de recusa. Ou melhor, pedi tempo. Um longo tempo, como se v.
Escrever na emoo da perda de um amigo seria um risco. Uma biografia no pode ser apenas
homenagem ou tributo. Ou ela serve ao leitor ou intil. Porm, a que leitor? O contemporneo de
Plnio, que o conheceu, acompanhou a sua trajetria ou com ele conviveu? A est um leitor que
sabe, ou supe saber, tanto ou mais do que se puder contar aqui. Ao perceber o interesse que, dez
anos aps a sua morte, a obra de Plnio Marcos desperta, a questo se resolveu. Muitos que esto
se aproximando agora dos seus textos, sejam as peas ou os contos, talvez nada saibam desse
homem que no se rendeu amargura. Um homem que no subordinou a sua arte, o teatro, s
aflies e angstias pessoais; que no escreveu pea para falar de si mesmo, mas deu voz aos que
no a tinham. A quem vir depois de ns, como pedia Brecht, que tem sentido uma biografia de
Plnio Marcos. Para que esse leitor compreenda os tempos difceis que vivemos e tenha um olhar e
uma palavra de amigo quando falar de Plnio. No para desculp-lo para conhec-lo.
O mal que os homens fazem vive depois deles; o bem quase sempre enterrado com seus
ossos, argumentava Shakespeare em Jlio Csar. S o tempo mostra a bondade de um homem j
a maldade se v no mesmo instante, sugeria Sfocles em dipo Rei pela voz de Creonte.
Acolhendo as vises contraditrias de dois mestres do teatro, no se queira qualificar a priori
Plnio Marcos pela cumplicidade ou averso que desperta no leitor. Nem gnio, nem analfabeto.
Nem anjo, nem demnio. Nem marginal, nem heri. O teatro ensina que um personagem se define
pelas suas aes. No o que ele diz de si mesmo, ou o que os outros dizem a seu respeito, que
importa. So os seus atos que do consistncia e veracidade ao pensamento. E os atos, mesmo
fincados no real, tm os contornos das verses que se misturam para compor a trajetria do
personagem, que s vale ser escrita se for de alguma serventia para a vida do leitor. Sem querer
sugerir uma moral da histria como nas fbulas de Esopo ou La Fontaine, Plnio Marcos resumiu
numa frase a sua vida: Eu fiz por merecer. Ao contrrio dos que culpam a sorte madrasta ou a
fria dos algozes, ele no pede indulgncia nem que as geraes futuras o indenizem, ou aos seus
descendentes, pelo que sofreu.
Poucos foram to cerceados no direito ao trabalho e liberdade de expresso quanto ele. E
nisso no h verses, h fatos.
Compor a biografia de Plnio Marcos com a estrutura clssica de uma pea de teatro, em trs
atos, no s uma escolha formal. Ela permite acompanhar, dramaticamente, a evoluo do
personagem, enquanto outras vidas cruzam seu caminho toda biografia pressupe inmeras e
breves biografias, como os coadjuvantes de maior ou menor peso em torno do protagonista de uma
pea. No primeiro ato, o heri se apresenta, define caminhos, faz opes que determinaro a sua
histria. No segundo ato, uma sucesso de acontecimentos aflora as certezas e as contradies, os
conflitos explodem em toda a sua intensidade. No terceiro ato, o desfecho que sintetiza as aes de
uma vida inteira, a difcil busca interior de uma serenidade sempre perseguida e raramente
encontrada. Uma linha do tempo acompanha a narrativa, para o leitor desenhar o cenrio em que
aconteceu a ao e viveu o personagem e para ajud-lo a entender as razes e motivaes de
muitos episdios.
Conheci Plnio Marcos no segundo semestre de 1967, em Marlia, quando ele excursionava com
Dois perdidos numa noite suja pelo interior de So Paulo, tendo Berilo Faccio no papel de Tonho
antes feito por Ademir Rocha. Plnio foi minha cidade levado por Orozimbo Luiz Giraldi,
apaixonado homem do teatro amador, presidente da Federao de Teatro Amador da Alta Paulista.
No digo que ficamos amigos de infncia, mas nos dois dias que ele passou em Marlia
consumimos maos e maos de cigarro em conversas. Em meados de 1969 eu j estava em So
Paulo cursando a Escola de Arte Dramtica e nos reencontramos na redao do jornal ltima
Hora. Ele cronista, eu reprter e redator do caderno de Variedades editado pelo poeta portugus e
crtico de teatro Joo Apolinrio; o editor-chefe era o santista Alcides Torres, artista grfico do
primeiro time. Plnio e eu seguimos amigos. A convivncia mais estreita, porm, veio com o
tempo. A gente nunca se estranhou. Segurei o Plnio para ele no brigar, mas ele nunca brigou
comigo. Nos seus ltimos anos estivemos mais prximos. Havia ternura, ento. Fosse eu Plnio,
inventaria uma histria como a da sua visita ao ator Procpio Ferreira no hospital. Sem a mesma
imaginao, limito-me a contar que ao v-lo no quarto privativo do governador Mrio Covas, no
Instituto do Corao, numa de suas ltimas internaes, fiz piada:
Porra, Plnio, finalmente te colocaram num hotel cinco estrelas! E ele, srio:
o que vale ter amigos, Oswaldinho. Melhor que ter dinheiro, ter amigos. Quando Vera e
Tiago se distraram, ele me pediu baixinho:
Da prxima vez, v se me traz uns chocolates escondidos.
Voc no pode comer chocolate, diabtico.
No enche o saco, caraco, traz o chocolate escondido, ningum vai saber. No deu tempo,
Plnio. Fiquei te devendo essa.
Oswaldo Mendes
Outono de 2009
PRIMEIRO ATO
1935 - 1966
Da Vila Sapo
noite suja
FIQUEI VIOLENTO, VIREI O FAMOSO FRAJOLA, QUE TODO MUNDO CONHECIA E RESPEITAVA.
Quando Plnio Marcos nasceu, a sua cidade era um canteiro de obras. L fora, o mundo fazia
ensaios para a Segunda Guerra Mundial, com o avano do nazismo na Alemanha e do fascismo na
Espanha e na Itlia, e a economia mundial ainda enfrentava as consequncias do desastre
econmico de 1929, com a primeira grande crise do capitalismo nos Estados Unidos. Aqui, no Rio
de Janeiro, capital da Repblica, as tenses polticas apontavam para um desfecho ditatorial, em
1937, com a imposio ao pas do Estado Novo e seu aparato de represso e de censura. Mas em
Santos tudo se projetava para o festivo janeiro de 1939 e as comemoraes do primeiro centenrio
da cidade, desde que deixou de ser vila. O frenesi de obras favoreceu at mesmo a famlia de
Armando de Barros e dona Hermnia, que se mudou do Macuco para ali perto, para a recm-
construda Vila dos Bancrios, conjunto de no mais de quarenta casas, sempre de portas abertas,
formando uma grande e variada famlia, da qual Plnio se lembraria com certa nostalgia at a sua
morte.
Se as pessoas ainda colocassem suas cadeiras na frente das casas nos finais de tarde, com as
comadres fofoqueiras falando da vida alheia, as cidades e o mundo seriam melhores.
Plnio fez esse comentrio ao voltarmos da estreia de A rainha da beleza, a ltima vez em que
ele viu a sua Dereca em cena, no Teatro Alpha, em setembro de 1999. Ele queria saber da minha
irm Dina, se em Tup, no interior onde ela morava, ainda havia o hbito de as pessoas sentarem
nas caladas nos fins de tarde para conversar. No, no havia mais. Plnio lamentou.
Desde a inaugurao do novo porto, em fevereiro de 1892, desocupando a antiga rea na Ponta
da Praia, e graas expanso da cafeicultura no interior de So Paulo, Santos experimentou
invejvel crescimento econmico e populacional. A cidade devia muito chegada dos imigrantes,
que iniciaram a ocupao dos morros, principalmente por meio dos portugueses vindos da Ilha da
Madeira. Eles se instalaram no morro de So Bento e depois em Nova Cintra, com uma linha de
bonde ligando o bairro do Jabaquara ao topo do morro. Para se ter uma ideia: em 1913, dos perto
de 89 mil habitantes de Santos, 42% eram imigrantes, dos quais 23 mil portugueses, 8 mil
espanhis e 3 mil italianos, seguidos em menor nmero por turcos, japoneses, alemes, ingleses,
austracos e franceses. Com o ciclo do caf, a cidade viveu dcadas de ouro, tendo como marcos a
construo de dois teatros, o Guarany, obra comeada em 1881, e o Coliseu, em 1924, onde, mais
de sessenta anos depois, Plnio Marcos foi preso pela primeira vez por atentado violento ao
pudor. Nesse perodo surgiram bairros como Paquet, Vila Mathias e Macuco, este ocupado por
trabalhadores do porto e cujo nome reme-te ao dono da maior parte das terras da regio, o
portugus Francisco Manuel Sacramento, um aougueiro que gostava de caar macucos, da o
apelido, acrescido ao sobrenome da famlia.
At o abalo na economia mundial, com a quebra da Bolsa de Nova York em 1929, Santos era
uma segunda capital de So Paulo, graas liderana econmico-fi nanceira gerada pela
exportao de caf, segundo Miroel Silveira, um apaixonado homem de teatro, santista e
responsvel por revelar o talento de Cacilda Becker, que antes de atriz quis ser bailarina. As
grandes fortunas estavam ligadas a Santos e isso fazia com que a cidade se transformasse tambm
em um pouco de faroeste, no sentido de jogatina, de diverso, dizia Miroel. Na avenida
Conselheiro Nbias, de frente para a praia, ficava um endereo famoso, o Miramar, um local
onde havia o jogo aberto, o que possibilitava certa atividade artstica. Para ter o jogo aberto, eles
eram obrigados a manter grtis cinema e teatro, diverses, bailes e tudo isso.
Armando, pai de Plnio, veio de uma famlia de ferrovirios. Lucila Camorim, que ainda
pequena emigrou da Itlia para o Brasil, e Francisco Martins de Barros tiveram tambm dez filhos.
Da av Lucila, Plnio dizia ser uma grande feiticeira e benzedeira, que fazia uns xaropes de
agrio e curava at tuberculoso. Para sempre ficou nele a lembrana de uma pessoa generosa,
cmplice da humanidade, de quem todos gostavam; era impossvel algum passar pela casa dela,
um lixeiro que fosse, sem que ela oferecesse alguma coisa para comer, aquelas coisas
maravilhosas que ela cozinhava. O av Chico Barros, que ele conheceu j aposentado e com
sonhos de inventor, morreu aos noventa anos e ainda paquerador, garantia o neto vaidoso da
ascendncia galante.
Meu av deu guarida e cobertura a um dos maiores feiticeiros de todo o Brasil, um mdium
fantstico, Mirabelli, que levitava. Como mdium, naquele tempo ele era muito perseguido,
discriminado. E Santos sempre foi uma cidade muito mstica.
Tantas lembranas de Lucila e Chico Barros tm uma explicao, dada por Plnio:
Eu ia muito casa deles, que moravam mais ou menos longe. Mas isso era bom, porque era
para l que eu corria quando fugia da escola.
JANTAR EM SILNCIO COM HORA MARCADA Foram quatro filhos mortos na gravidez
at que o casal Hermnia Cunha Barros e Armando Martins Barros tivesse o primognito Srgio,
em 1933. Depois viriam Plnio Marcos (1935), Francisco Neto (1939), Cludio (1940), Mrcia
(1941) e Flvio Roberto (1946). Armando, bancrio e convertido ao espiritismo de Allan Kardec,
era homem de hbitos simples e austeros. Uma de suas poucas exigncias era que a famlia se
reunisse pontualmente na hora do jantar. Nas cabeceiras da mesa comprida, ele e dona Hermnia,
com os filhos volta. Durante a refeio, silncio. Se algum quisesse falar, devia erguer a mo e
esperar a autorizao paterna.
Foi num desses jantares que o Plnio me aprontou uma, lembra a irm Mrcia. Ele ergueu o
brao e pediu para me fazer uma pergunta: o que ptria? Eu no sabia. Inconformado, meu pai
explicou: ptria o lugar onde a gente nasce. Como castigo, ns dois passamos o resto da noite
escrevendo num caderno a definio de ptria, pra nunca mais esquecer, enquanto da rua vinha
barulho de fogos, vozerio, algazarra das crianas da vila. Era noite de So Joo, nunca me
esqueci. Perdi a festa por causa do Plnio.
Como o pai tinha nove irmos e a me outros nove, quando a famlia se reunia era festa, sempre.
O que, para Plnio, explicaria a sua tendncia natural de gostar demais de viver. Porque a vida
sempre foi para mim uma coisa muito bela.
A casa na Vila dos Bancrios no era grande, mas havia no quintal um barraco que seu
Armando mandou fazer. Plnio falou disso:
O barraco era um local especial. A qualquer momento que voc chegasse em casa tinha
comida ali, que minha me fazia. Uma fantstica cozinheira. At tainha, na mo dela, virava peixe.
Meu irmo Neto era caador e saa para pegar r, siri. De noite sentvamos no barraco e
ficvamos comendo e ouvindo meu pai, um grande contador de histrias. Minha me, uma pessoa
muito alegre, tambm era contadora de histrias. Minha tia Zil, tio Gilberto, tia Adalgisa...
Quando todos se reuniam, era sempre uma festa.
Sua viso de adulto registrava a me como muito alegre, mas dona Hermnia de fato era
enrgica com os filhos, mais ainda com a nica filha, que, nos finais de semana, em vez da praia,
tinha de consumir as manhs na escola dominical da Igreja Presbiteriana Independente. Em sua
defesa, Mrcia contava com Plnio, que tambm no escapava das surras com cabo de vassoura, s
quais reagia aos gritos, que alarmavam a vizinhana:
Socorro, minha me est me matando, socorro!
Esperneio parte, devia saber por que estava apanhando, pois aprontar era com ele mesmo.
Uma de suas diverses favoritas de criana era acordar de manh, antes de todos, e molhar as
escovas de dente dos irmos, s para v-los se engalfinhando: Quem usou a minha escova?
Ele ficava assistindo, escondido, s gargalhadas. At que um dia algum descobriu e a
brincadeira perdeu a graa.
PRIMEIROS VERSOS PARA A VILA SAPO A Vila dos Bancrios na Ponta da Praia, para
onde a famlia se mudou pouco depois de Plnio nascer no Macuco, era mais conhecida como Vila
Sapo e mereceu dele um de seus primeiros versos e canes:
Vila Sapo
a vila boa
no h sopapo nem sururu
tudo risonho e bem fadado
eu gosto muito da Vila Sapo.
Na geografia que Plnio guardou na memria, a vila comeava na Ponta da Praia, perto do
Aqurio, e se estendia at o Macuco, no outro lado da ilha, o Pau Grande. Na lembrana do irmo
Neto, o bairro era meio deserto, um lugar terrvel, matagal, cheio de bandido. A Vila dos
Bancrios, formada por duas ruas, logo foi dividida em Vila Sapo, onde a famlia Martins Barros
morava na rua das Laranjeiras, e Vila Fossa, uma ladeira pela qual corria esgoto a cu aberto. E
havia sempre um joguinho de futebol entre os times das duas vilas, lembra Neto, que se formou
em administrao de empresas e enveredou pelo servio pblico, aposentando-se como auditor-
chefe do Ministrio Pblico da Unio.
No s do futebol que Neto se recorda:
Como a gente morava num bairro da pesada, papai sempre ensinou: no provoque briga, mas
nunca fuja de uma. Respeite para ser respeitado e, se no for respeitado, voc tem que agir. Plnio
era o mais briguento, no levava desaforo pra casa, no. Por qualquer coisinha, partia para o pau.
Volta e meia tinha uma briguinha boa l na rua. A todos os irmos se metiam. Um dia o Cludio
chegou chorando do grupo escolar, dizendo que um nego bateu nele. Pode deixar que amanh a
gente vai l pegar o nego, o Plnio falou. No dia seguinte chegamos e perguntamos: Cludio,
qual o nego que te bateu?. Ele apontou um neguinho, menor do que ele. Rapaz, tenha vergonha
na cara, vai l e bate naquele neguinho!, a gente disse. Ele foi e bateu.
A vila era s alegria contou Plnio. No Natal e no Ano Novo, todos abriam as portas e
botavam o que tinham para comer, e todo mundo fazia a via sacra, todo mundo recebia todo mundo.
E se no houvesse festa, ele a inventava.
Belo dia constatou que tinha muita menina no pedao, cada qual com a sua boneca de loua.
Precisamos batiz-las, decretou. E l foi, vestido de padre, batizar as bonecas, numa festa que
mobilizou a Vila Sapo e toda a vizinhana, com direito a cantoria e reza. Mrcia garante que, nessa
poca, ele ainda no lia cartas nem fazia curas com as mos.
Porm, foi outra inveno mais ousada de criana que repercutiu forte na vida e na histria de
Plnio. Entre os amigos, um dos mais chegados era Luciano Fonseca, o Luciano Caveira, que
cantava, e cantava muito bem, e depois me levou para o rdio quando foi participar de um
programa de calouros. Crianas, os dois abriram um circo-teatro na Vila Sapo, embora Luciano
morasse na Vila Fossa, ou seja, na outra rua. Escolheram um terreno baldio, capinaram e com
caixotes armaram um palco onde os artistas do pedao se apresentavam. Luciano cantava, Mrcia
e a me Hermnia declamavam e Plnio era o palhao. No ainda o palhao Frajola, embora j
carregasse o apelido, que acompanharia Plnio vida afora e assim era por ele explicado:
Na poca lanaram uma revista em quadrinhos chamada Mindinho, com o gato Frajola que
queria pegar o passarinho Piu-Piu. Um dia eu estava tentando pegar um passarinho e ca do
telhado. Meu pai me chamou de gato Frajola e o apelido pegou. At que saiu o gato e ficou s
Frajola.
No circo-teatro o pblico pagava ingresso, coisa pouca, mas tinha que levar de casa a cadeira
ou sentar no cho. O elenco dos espetculos crescia com o interesse dos vizinhos em mostrar o seu
talento e at apareceu um andarilho que cobria com pano uma cama de cacos de vidro e deitava-se
nela para arrepio da plateia. Um sucesso!
Se em casa vivia sob algum controle, nas ruas Plnio j ganhava fama de valente e brigo. Na
memria de Mrcia ficou um episdio da infncia. Uma tarde o pai foi chamado rua para segurar
o filho que, furioso, surrava um carroceiro. Ningum entendeu a razo de tanta violncia, at que,
sob controle e gaguejando, ele explicou. O cavalo que puxava a carroa caiu e o carroceiro ps-se
a bater no animal com um pedao de pau. O sangue do moleque ferveu e ele partiu pra cima do
homem. Foi um custo segurar o Plnio, lembra Mrcia.
Muito ligados, os irmos frequentavam a piscina do Clube Saldanha da Gama, do qual o pai era
scio. Mrcia se revelou uma nadadora campe. Plnio nadava um pouco e logo ia jogar bola no
campo do Jabaquara, ali perto. Ainda assim conquistou medalhas que guardou para sempre, ao
contrrio dos trofus que recebeu no teatro e distribuiu aos amigos. Como o seu rendimento
escolar era baixo, o pai fez o que pode para ele terminar pelo menos o curso primrio, iniciado no
Grupo Escolar Dona Lourdes Ortiz. Dos filhos, Srgio era o mais estudioso, seguido pelo aplicado
Cludio. Em uma ltima e intil tentativa de fazer Plnio se dar bem nos estudos, seu Armando o
matriculou, com Neto e Mrcia, no Instituto Educacional tem nome de priso, mas era uma
escola particular, observa Neto , que ficava na avenida Conselheiro Nbias, do lado da linha
dos trens da Estrada de Ferro Sorocabana.
Ele assistia a uma ou duas aulas e fugia da escola levando a gente junto. O Neto ainda hoje me
diz: Mrcia, eu tive que estudar agora, depois de velho, porque o Plnio no me deixou estudar
naquela poca. O Plnio era muito inteligente e rebelde, no conseguia ficar trs, quatro horas
numa sala fechada escutando a professora falar e no gostava de ordens do tipo voc tem que
fazer isso, voc tem que fazer aquilo. E nas suas escapadas levava junto eu e o Neto.
Numa dessas fugas, Plnio e Neto pularam o muro e saram cor-rendo. Dona Erclia, a diretora,
no sei como, conseguiu subir no muro. L de cima ela gritava volta, Netinho, volta!. No gritou
volta, Plnio, volta, porque sabia que no adiantaria nada. Eu voltei e o Plnio ficou puto: Voc
no tinha nada que voltar, agora vai sobrar s pra mim!. E sobrou mesmo, diverte-se Neto.
PEQUENO, MAGRO, FEIO E VIOLENTSSIMO Fora o mais velho, Srgio que,
segundo Plnio, sempre quis se afirmar socialmente, no se envolvia nas brigas de rua e se
formou em direito , os outros irmos viviam sob a proteo de Plnio, embora a me evitasse
que sassem juntos. Eu era muito violento e ningum se metia com eles, porque eram meus
irmos, contou Plnio. Entre o fim da infncia e o incio da adolescncia, ele j andava vontade
por tudo quanto era canto, coisa de que se gabava.
Eu era uma das poucas pessoas que tinham trnsito em Santos inteiro, porque jogava bola
muito bem e em times de outros bairros, era contador de casos e metido a valente.
Como dizia, sua vida de menino era pau e bola. Futebol e confuso. Del Bosco Amaral, um de
seus contemporneos na escola particular, aquela de onde Plnio fugia arrastando os irmos, s foi
reencontr-lo muito tempo depois. Foi em maio de 1979, num simpsio sobre censura na Cmara
dos Deputados em Braslia, do qual o colega de classe ento famoso participou. Deputado federal
atuante na oposio ao governo militar, Del Bosco Amaral se confessou uma das vtimas das
surras de Plnio no quarto ano primrio.
A bem da verdade, devo dizer que nenhum dos dois foi bom aluno informou Plnio antes
de ouvir a sua curta biografia traada por Del Bosco.
Esta:
O Plnio era maiorzinho e eu menorzinho. Ele me batia muito. Mas batia mesmo. Meu pai, um
luso-brasileiro, era o dono da escola. Plnio tinha bronca por isso e me batia. Sa dali com
vitamina e bife e vim ser deputado, e ele foi para o cais conviver principalmente com a maior
pesada, a chamada pesada de Santos.
Em autorretrato, Plnio se descreve como pequeno, magro, feio pra caralho, mas
violentssimo. Armava-se de um pedao de pau e, bobeou, dava com essa porra no meio da
cabea de quem o encarasse. Metia-se em brigas sem nem precisar de motivo. Atribua o gnio
briguento insegurana que resultava da violentao sofrida na escola:
Quando eu ficava nervoso, gaguejava e virava bicho.
Se batia, Plnio tambm apanhava. Pertencia a uma turminha que saa para roubar passarinho,
roupa nos edifcios e coisas na praia. Era tudo ladro mesmo, dizia. Nem precisava fazer
arrasto, como se tornou prtica nas praias brasileiras dcadas depois. Era moleza:
Tinha os paulistas, aqueles branquelos que iam a Santos passar o domingo e trocavam de
roupa nas cabines na beira da praia. A eles alugavam aqueles mais de l e quando caam na gua
aquilo virava um coador. Eles ficavam assando no sol, vermelhos pra caralho, e com os mais
cheios de areia mal podiam andar, at porque usavam aqueles baitas sapates de amarrar. A era
s chegar, dizer oi, tudo bem, pegar o que queramos e sair correndo, que eles no conseguiam
correr atrs. A cada piquenique que eles faziam, depois de muita banana com cachaa, caam na
gua e sempre morria algum afogado. Era muito gozado.
Plnio no via nisso atos de violncia. Era coisa de moleque, para tirar sarro, gozar as
pessoas. At porque, se algum reagisse, eles davam no p. A turminha se reunia no centro, perto
do Aqurio, de onde saa para zoar. Valia tudo, at roubar o pato de um laguinho que havia ali. A
graa estava em tirar sarro do guarda, grando, cara de bobo e manco. Sem dar a mnima para a
presena do guarda, Plnio entrou no laguinho com a maior calma, ps o pato debaixo do brao e
se mandou.
O guarda ficou l, gritando: Me d o pato, me d o pato. Vou te pegar, vou te pegar!. E saiu
mancando atrs de mim. E eu me divertindo paca: , manco, vai tomar no cu!. Tudo pra tirar
sarro, pelo divertimento, pela sacanagem.
Nessa turminha se destacavam o Tamborim negro, um puta de um guarda-roupa e um tal
de Clarimundo, que parecia um vampiro, com s dois dentes na frente. Tarde sem graa,
chovendo, sem paulista na praia pra sacanear, s restava ficar vendo bonde passar. De repente,
vem um daqueles bondes abertos, com as cortinas fechadas, e um sujeito no estribo, de chapu,
palet, gravata, guarda-chuva e a capa dobrada no brao. Clarimundo no se conteve e deu voz de
comando ao Plnio:
Vai l, moleque, e d com o meu guarda-chuva no cu daquele idiota, que pra ele saber que
tem que entrar dentro do bonde.
O moleque no se fez de rogado, conta Plnio:
Quando o bonde passou, dei uma guarda-chuvada na bunda do cara e camos todos na
gargalhada. A o cara desceu do bonde e veio vindo. O Clarimundo j foi dizendo: O chapu
meu, gostei dele. O outro: Eu fico com a capa. E eu: Ento eu fico com o guarda-chuva.
No, o guarda-chuva tambm meu, falou o Clarimundo. Voc fica com outra coisa, com o
relgio, se quiser. E estvamos l fazendo a partilha prvia das coisas do cara quando ele,
chegando perto e me topando na frente, me deu uma bordoada na orelha que me jogou no cho. Eu
j fiquei ali, fingindo de morto. A o cara foi pra cima dos outros e cobriu todo mundo de porrada.
Clarimundo e Tamborim apanharam pra caralho. A o cara pegou a capa, o guarda-chuva e foi
embora. Os dois se levantaram putos da vida, sangrando, uma das presas do Clarimundo tinha
cado, e eles bronqueando comigo: Moleque filho da puta, o que que tem que se meter com
quem no conhece?. Dois dias depois saiu a fotografia do cara na Tribuna de Santos, dizendo
assim: Transferida a luta do peso-pesado uruguaio fulano de tal, que se contundiu na mo. Se
contundiu de tanto dar porrada na gente com aquela puta mozona.
Os dois primeiros anos foram os mais penosos e desenvolveram em Plnio o pnico de ir pra
escola. Criana, meio boboca, apanhava das professoras e chorava, contou. A me o levava
fora fora mesmo, me arrastando pela rua. Estacionado no segundo ano do primrio e
convivendo com os meninos maiores, passou de repente a ser o terror das escolas, como ele
mesmo reconhecia:
Fiquei violento, virei o famoso Frajola, que todo mundo conhecia e respeitava. Se a
professora ameaasse me bater, eu cuspia, dava pontap, ameaava pegar na sada da aula,
esculhambava e xingava na rua, essas coisas. No foi toa que eu mudei de uma escola para outra,
nem me lembro quantas.
A ningum, menos ainda aos seus pais, ocorreu que os problemas na escola vinham,
basicamente, do fato de ele ser canhoto. Os professores reclamavam, lgico mas o meu pai
nunca me bateu; na verdade, que eu me lembre, acho que apanhei dele s uma vez. Seu Armando
era mesmo um homem paciente e compreensivo, o que muitos atribuam sua f esprita. Fez o que
pde para que o filho estudasse e, quando viu que seria intil, tentou arrumar-lhe uma ocupao:
vender livros espritas numa banca na praa Mau. Durou pouco, o suficiente talvez para despertar
nele o talento de camel, capaz de vender qualquer coisa, levantar uma grana e lev-lo alm dos
limites da Vila Sapo.
Plnio vendia livros pra burro, sim, mas a compradores de araque, como o irmo Neto, que um
dia se assustou:
Porra, Plnio, eu no comprei livro nenhum e agora me vem essa merda de fatura para pagar?
No esquenta, no. Depois eu cancelo, s pra eu ganhar a comisso.
Entre outros produtos que vendia nessa poca e venderia depois, nos primeiros e difceis
anos em So Paulo estavam canetas com a figura de uma mulher pelada dentro, que aparecia
quando se virava a caneta. Foi com o tal Giacomo que Plnio aprendeu o macete da venda:
No oferea, que os caras no compram. Deixe a caneta cair perto do p do cara.
Ele fazia isso. Esta caneta do senhor?, dizia. No, imagine se eu vou ter uma caneta
dessas! que eu achei aqui e pensei que fosse do senhor.
Mostrava a mulher ficando pelada. A o cara, j interessado, perguntava se ele queria vender e
quanto custava. Sei l, d a o que quiser. Cem paus t bom?
E assim, eu, que paguei um pau por caneta, vendia umas dez por dia e sempre tinha dinheiro
no bolso. Nessa poca j fazia teatro amador e ningum tinha tanto dinheiro como eu, com esse
trabalho de camel.
Mas essas so histrias de um tempo em que a infncia de Plnio Marcos j estava distante.
QUEM PRECISA DE DOIS PARES DE SAPATO? No fim dos anos 1940, seu Armando teve
um problema cardaco e achou que a morte estava prxima, no que se enganou. Escreveu ento
uma espcie de carta-testamento e entregou cpias datilografadas a cada um dos filhos. Era uma
smula de como encarava a vida e do que deixava de herana: Aos meus filhos. Nada tenho a
dizer-lhes diferente do que tenho sido aos demais homens. S lhes peo que me superem na
gratido. A melhor coisa que encontrei no mundo foi o amor. Que cada qual, nas suas tarefas, sirva
a Deus. Vivam com a inocncia da criana e a humildade de corao e tero a alegria do prmio
da obedincia. Se me entenderem, no me pranteiem aps minha partida, isso faria com que me
compadecesse da ignorncia de vocs. Sigam pelo meu caminho. Irei sempre com vocs. Sempre
me sentiro ao seu lado.
Seu Armando morreu no dia 13 de maio de 1966 sem conhecer o neto Ricardo, segundo filho de
Plnio e Walderez, e antes da estreia de Dois perdidos numa noite suja. Era um homem bom, diz
Walderez, concordando com a cunhada Mrcia. E Mrcia comenta: Como Plnio, que tinha
acabado de fazer 64 anos, o meu pai morreu muito cedo, com 63 anos. Ele era demais. Um dia
roubaram a sua carteira com todo o salrio. E agora, o que vamos fazer para passar o ms?
minha me e at os filhos ficamos todos desesperados. Meu pai, no. Calma, ele disse, a gente
pode viver um ms sem dinheiro. Quem levou a minha carteira deve estar precisando muito mais
que a gente. Se comprava um sapato novo, dava o velho pra algum. Pra que eu preciso de dois
pares de sapato?, dizia. Meu pai era bom no futebol e na natao. Uma semana antes de morrer
ele me chamou pra nadar no mar. Vamos puxar um brao?, desafiou. E ganhou de mim.
Dona Hermnia nunca saiu de Santos. Viveu para ver o sucesso e as agruras do filho no teatro.
Viva, por vinte anos teve a companhia do filho Flvio, cujos problemas mentais no o impediram
de ilustrar a capa de um dos livros de Plnio, Intil canto, intil pranto pelos anjos cados.
Quando Flvio morreu em 1986, dona Hermnia manteve seu quarto intocado, sem mexer em
nenhuma pea. Nos seus ltimos meses, ela se queixava das visitas que recebia do filho morto, em
cuja cama se deitou para morrer, em 1989.
O Flvio vem me buscar, ela vivia dizendo para Mrcia, que conta: Na vspera da sua
morte, eu estava cheia de tarefas, minha filha ia casar. Minha me resolveu ir a Santos. Insisti que
ficasse pra me ajudar. No, eu s vou pegar o vestido que mandei fazer para o casamento, vou num
dia e volto no outro. Ela foi. No comeo da noite telefonei. E a? Ainda no fui costureira,
vou amanh cedo e volto pra So Paulo, ela respondeu. Como no chegava, voltei a ligar. O
telefone tocou, ela no atendeu, fiquei preocupada. tarde pedi ao meu irmo Cludio para passar
no apartamento. Mame assim mesmo, deve ter sado e encontrado as amigas, por isso atrasou.
Tanto insisti que ele foi. O zelador falou: Seu Cludio, eu ia ligar pro senhor. Sua me chegou da
feira com o carrinho cheio, disse que ia descansar um pouco pra bater perna de novo. Subiu com o
carrinho e no vi ela descer. J toquei a campainha, ningum atende. O Cludio tinha a chave, eles
subiram. O carrinho de feira, ainda cheio das compras, estava na porta da cozinha. Cludio entrou
no quarto. Ela estava deitadinha na cama do Flvio. Morta.
UM GESTO DE AMOR AO IRMO DISTANTE Nos ltimos anos de dona Hermnia, toda
segunda-feira, Mrcia aproveitava o seu dia de folga no salo de cabeleireira e ia com Plnio
visit-la. Chegavam de nibus, almoavam com ela e voltavam para So Paulo no fim da tarde.
Numa dessas visitas, foram recebidos pela tristeza da me:
Acho que vou morrer... J tenho mais de oitenta anos... Subitamente, Plnio ergueu os braos,
balanou o corpo, assumiu uma postura estranha, mudou o olhar e a voz:
Ei... ei... A senhora ainda vai muito longe, a senhora tem mais dez anos de vida.
E assim, tomado sabe-se l por que entidade, falou um monte de coisa para dona Hermnia que,
atenta e meio assustada, s escutou, sem abrir a boca. Mrcia assistiu cena, incrdula, no
entendeu nada. No nibus, de volta a So Paulo, ela cobrou:
Plnio, com que autoridade voc falou tudo aquilo pra mame?
Porra, eu no sei, mas estou chutando ela mais pra frente.
Minha me ficou to animadinha, que achava que no ia morrer, porque o Plnio tinha falado e
contava pra todo mundo. No ano seguinte, ela morreu.
A partir de 1984, Plnio j separado de Walderez, as suas visitas com Mrcia a dona Hermnia
eram divididas com uma parada obrigatria na casa do irmo mais velho, Srgio, que estava muito
doente e cego. Dos irmos, Srgio, bem-sucedido frequentador das rodas sociais na elite da
cidade, sempre foi o mais distante. Ele era muito rico, orgulhoso e afastado da famlia, diz
Mrcia.
Quando a doena dele se agravou, Plnio, antes de ir ao apartamento da me, o visitava e
ficavam horas conversando. Era um gesto de muito amor, porque o Srgio nunca ligou pra ele e
tinha horror do seu jeito. Eu e o Plnio no ramos ningum pra ele. Indiferente a isso, Plnio
dava um jeito de animar o irmo. Quando saa, era a vez de Mrcia. A gente se revezava nas
visitas ao Srgio. Um dia ele me perguntou como era a vida depois da morte. Expliquei do meu
modo, descrevendo o lugar para onde a gente vai quando morre. Ele ouviu e depois fez um ar de
quem no estava entendendo nada. Mrcia, ele disse, eu estou meio encucado, meio confuso. O
Plnio me manda pra um lugar, voc me manda pra outro. Eu fico sem saber pra onde vou quando
morrer. Srgio morreu em 1984, dois anos antes de Flvio. Cludio ficou em Santos at a morte,
em 1998, deprimido com a priso do filho por problemas de drogas. Quando Plnio morreu, o
sobrinho j se consumia numa cela de priso, sem o tio para visit-lo e fazer acreditar que, mesmo
tudo parecendo perdido, h sempre uma possibilidade de vida. Ainda que uma rstia de vida. Foi
assim que Plnio viveu. Acreditando.
CENA II
FUTEBOL MARAVILHOSO PORQUE IMPREVISVEL: DE REPENTE, UM TIME DE MERDA ENTRA EM CAMPO
E GANHA O JOGO.
EU COMECEI TENTANDO O RDIO, MAS ERA MUITO DIFCIL, ENTO FUI PARA O CIRCO.
MULHER EU SEMPRE TIVE, MAS JAMAIS PAGUEI UM MICH NA MINHA VIDA. SEMPRE ACHEI ISSO UMA
COISA VERGONHOSA.
Por modstia, autocrtica severa demais ou coisa que o valha, Plnio nunca se deu importncia
como escritor e dramaturgo. Incrvel! Conhece vinte palavres e consegue escrever uma pea!,
ele se divertia lembrando o que Cacilda Becker teria dito depois de ler Navalha na carne. Cuidou
de difundir a lenda de ser um analfabeto, citando sua maneira uma crtica de Patrcia Galvo.
Aos compradores de seus livros prometia morrer logo para valorizar o autgrafo. Sobre o fato de
vender muitos livros, sacava uma explicao em que se diminua como escritor: O livro uma
merda, mas o camel bom. At o episdio dramtico em que por pouco no teve as pernas
amputadas serviu de piada depois que passou: Ia ajudar a vender mais livros. Mas quando um
jovem dramaturgo que, de repente, comeou a fazer algum sucesso lhe disse que estava aborrecido
por ser chamado de o novo Plnio Marcos, ele entrou de sola: s voc parar de me copiar.
Um ano antes de morrer, na primeira viagem internacional para participar do Salo do Livro em
Paris, em 1998, foi que Plnio se reconheceu um escritor, segundo Vera Artaxo. Cercado por
nomes ilustres como Zuenir Ventura, Dias Gomes, Chico Buarque e Antonio Torres, sentiu-se
vontade.
A modstia e a autocrtica desapareciam em se tratando de futebol. O mnimo de autoelogio que
aceitava era ser chamado de bom de bola. Craque o que ele se achava como ponta-esquerda. Ser
canhoto, afinal, no haveria de lhe render apenas broncas e reguadas das professoras.
Numa poca em que a cidade era, no jargo esportivo, um celeiro de craques pouco antes de
Pel surgir e no ter pra mais ningum , Plnio se orgulhava de ser um lanador de bolas para os
gols de Pago, este, sim, uma unanimidade. Muitos garantem que Pago s no foi melhor que
Pel, mas h controvrsia. Boleiros como Plnio e Chico Buarque apostam que eles estavam pelo
menos no mesmo nvel. Neto no se lembra de Plnio jogando no mesmo time de Pago. Quem
jogou com o Pago foi o nosso irmo mais velho, o Srgio. Mas se o Plnio disse que jogou, vale a
palavra dele.
Bom de bola e de picadeiro, como palhao e contador de histrias, estes os talentos
indiscutveis que, somados ao de camel, Plnio nunca se negou. Talentos, alis, que ele distribua
para toda a sua famlia. me Hermnia, as qualidades de declamadora e cozinheira das boas
bastavam. irm Mrcia, tambm declamadora e artista plstica que o casamento inibiu, as
setenta medalhas de nadadora atestavam as possibilidades de carreira olmpica pelas piscinas do
mundo. Tirando, pois, as mulheres e o Flvio Roberto que tinha problemas de cabea , a
sua famlia foi toda de jogador de futebol, dizia Plnio sem nenhuma modstia.
Meu pai foi jogador de futebol, meus irmos Srgio, Neto e Cludio, todos jogavam futebol.
Meu pai era um craco como centroavante. Cheguei a jogar com ele. Eu era ponta-esquerda,
desses que vo at a linha de fundo e centram ou ento entram driblando na rea. Muitos dos meus
tios jogavam, e um deles, Rodrigo, foi titular do time principal do Jabaquara. Naquele tempo tinha
o campeonato santista, e o que no faltava era time de futebol. Pel convidou meus irmos Cludio
e Neto para treinar no Santos, mas eles no quiseram. O Neto era um bom beque e o Cludio um
bom atacante.
DONO DO CAMPO E DO PRIMAVERA F. C. Como se conclui, todos na famlia batiam um
bolo. Talvez no por tanto tempo como Plnio, que desfilou seu talento de ponta-esquerda at
quando a sade e as pernas deixaram, no comeo dos anos 1980. A primeira coisa que ele fez
quando a grana das suas peas comeou a entrar e os filhos Lo e Kiko eram pequenos foi comprar
um stio na regio de Ribeiro Pires, na Grande So Paulo. Mais que ter um stio, ele ento tinha
seu prprio campo de futebol, onde desde o incio dos anos 1970 reunia os amigos pra bater bola,
comer e falar de poltica.
O stio tinha uma casa grande com oito quartos, onde a famlia sempre se reunia e que ns
batizamos de Casinha Branca, descreve Neto. Nas frias, minha me ia pra l e cuidava das
crianas. No stio, Plnio formou um time de futebol com os garotos da famlia mais os meninos da
vizinhana. Chamava Primavera Futebol Clube, jogou umas quarenta partidas e nunca perdeu. O
nico time invicto em toda a sua existncia que eu conheci. Mas o Plnio era sempre o juiz. Ele
apitava os jogos e roubava pra cacete. Quando o adversrio estava engrossando, ele gritava:
Chuta a bola pra rea, moleque, chuta a bola pra rea que eu dou pnalti!.
Futebol pra mim foi sempre uma diverso, sempre disse Plnio.
Diverso, porm, que ele levava muito a srio. Dos filhos, Kiko, com jeito calado, tranquilo e
de olhos atentos, era uma promessa de goleiro que o tempo no confirmou no por falta de
incentivo do pai, que ia v-lo jogar e dava a maior fora quando surgiu a possibilidade de ele ser
convocado para uma seleo universitria. No caso de Lo Lama, se algum talento de atleta
herdara da famlia, perdeu-o jogando no Primavera Futebol Clube. De temperamento mais
parecido com o do pai, no recebia ordens. Uma vez o Plnio apitou o incio do jogo, eu peguei a
bola, sa driblando e marquei o gol. Ele ficou puto e veio pra cima de mim. No assim que se
joga futebol, tem que passar a bola, ele gritava. S no me bateu porque o Negrini e outras
pessoas entraram no meio.
Pedro Paulo Negrini, advogado como Iber Bandeira de Mello e Carlito Godoy, que se
aposentaria como desembargador, eram alguns dos boleiros que se reuniam no stio de Ribeiro
Pires.
Iber era cupincha de Plnio desde os tempos de criana no Ma-cuco, na piscina do Clube de
Regatas Saldanha da Gama ou filando comida um na casa do outro, coisas de moleques e vizinhos
que se davam bem. Eles se afastaram por um perodo, quando Iber foi cursar direito no Rio de
Janeiro. Formao que foi de muita valia para Plnio, quando a represso arrochou. Qualquer
problema com a polcia, os militares e a Censura, era para Iber que ele ligava. Para socorr-lo ou
para socorrer amigos e mesmo gente que nem conhecia.
Est indo a um pessoal da torcida Mancha Verde te procurar, defende eles.
At torcida organizada do Palmeiras Plnio mandava ao escritrio do Iber. Ele tinha essa
coisa bonita da solidariedade, diz o advogado, testemunha de que Plnio tratava a todos como
iguais, fossem torcedores de time adversrio ou santistas fanticos como o senador e governa-dor
Mrio Covas, amigo a quem ele no tinha pejo de criticar quando achava que devia. E as peladas
no stio eram pretexto para encontros em que se falava de tudo, mas, principalmente, se falava mal
da ditadura. E o Plnio sempre foi boca-dura, sempre, desde moleque, confirma Iber. Ele
desconhecia o medo.
*
O futebol e as amizades nele criadas lhe valeram nas dificuldades. Quando precisou, o
atendimento no Hospital das Clnicas foi imediato, porque muitos daqueles mdicos e enfermeiros
tinham sido seus companheiros nas peladas de fim de semana, no campinho do Centro Acadmico
Oswaldo Cruz (Caoc), cuja piscina tambm frequentava. Graas ao trnsito que tinha nas Clnicas,
Plnio socorreu amigos e at desconhecidos que encaminhava para atendimento no hospital. E no
um atendimento qualquer. Afinal, quando o paciente chegava, vinha logo o aviso de que era amigo
do Plnio.
Conta o ator Hilton Have que, em excurso pelo interior do Rio Grande do Sul com o
espetculo Vagas para rapazes de fino trato, em 1997, um dos atores, Srgio Wagner, sofreu um
aneurisma cerebral e foi hospitalizado inconsciente:
Fiquei desesperado, numa situao muito difcil. A famlia do Srgio era de Sorocaba, eu
no tinha como falar com ela e no sabia a quem recorrer. Ento liguei para o Plnio Marcos e
contei o que estava acontecendo. Ele acolheu o problema como se fosse seu e me colocou em
contato com o diretor-geral do Hospital das Clnicas. Quando desembarcamos no aeroporto de
Congonhas havia uma ambulncia esperando o Srgio, que foi internado imediatamente. Hoje ele
se encontra completamente curado.
CRNICA SALVA UM JOGADOR DE FUTEBOL Se o futebol lhe deu o arrimo dos amigos,
Plnio retribuiu na mesma e generosa moeda. No curto perodo como colaborador da revista Veja,
em 22 de outubro de 1975, a sua crnica O atleta longe da sarjeta o levou mais uma vez a depor
na Polcia Federal. Estevam Soares, que depois seria tcnico de equipes como Palmeiras e
Portuguesa de Desportos, era na poca um zagueiro vigoroso e promissor, convocado para a
seleo brasileira de novos. De olho na possibilidade de o Brasil disputar os Jogos Olmpicos de
1976 em Montreal, os dirigentes no deixavam o rapaz se profissionalizar. Na poca era assim, s
podia disputar a Olimpada atleta amador. Para driblar a exigncia, os clubes, com a cumplicidade
da ento Confederao Brasileira de Desportos (CBD), mantinham atletas como Estevam na
categoria de amador, com um contrato de gaveta. Era o chamado amadorismo marrom.
Com um salrio irrisrio, pago como ajuda de custo pelo Guarani de Campinas, a exemplo de
todos na mesma situao, Estevam, que no queria outra coisa seno jogar bola, fazia alguns bicos,
participando de jogos de futebol em fazendas, patrocinados por gr-finos. Foi numa dessas
fazendas, num domingo tarde em Pouso Alegre, sul de Minas, que Marco Antnio, ponta-
esquerda do Corinthians que tinha se recuperado de uma contuso, quebrou a perna de Estevam em
lance normal de disputa de bola. Os mdicos, ao atend-lo, sem maiores cuidados engessaram a
perna do rapaz e decretaram: est inutilizado para o futebol. No domingo noite saiu a
convocao dos jogadores que disputariam o Torneio Pr-Olmpico. O nome de Estevam, como
previsto, estava na lista. No dia seguinte foi cortado da seleo e continuou a sua sina. A contuso
na perna no foi tratada como devia ter sido e as dores continuavam. Quando foi retirado o gesso,
a perna estava necrosada.
Plnio conhecera Estevam Soares um ano antes, quando criaram com o jornalista Brasil de
Oliveira, correspondente de O Estado de S. Paulo em Campinas, o Sentimento Futebol Clube, um
time de atletas em incio ou fim de carreira, jornalistas, advogados e artistas, que se apresentava
em jogos beneficentes no interior. A estreia do Sentimento tinha sido em 21 de dezembro de 1974,
sbado, em Cafelndia, cidade natal de Estevam Soares, cujo pai promoveu a partida em benefcio
do Asilo de So Vicente de Paulo. Marcado para o sbado tarde, o jogo foi o acontecimento da
cidade. Tudo por causa do Plnio, segundo Es-tevam, que conta:
Na noite anterior, a Walderez tinha ido com o Lo ao programa Clube dos Artistas,
apresentado por Airton e Lolita Rodrigues na TV Tupi. Perguntado sobre onde estava seu pai, Lo
disse que ele tinha viajado pra jogar futebol em Cafelndia. Quando o pessoal da cidade ouviu, fez
o maior au, porque o Vitrio da novela Beto Rockfeller ia chegar. No dia seguinte o campo estava
lotado pra ver o Plnio, que fez o gol da vitria do Sentimento.
Desse gol Plnio nunca esqueceu e o narrava do seu jeito:
Estava chovendo, a bola de couro vinha vindo, pesada pra caraco, na minha direo. Na hora
pensei: se essa bola bater na minha cabea vai me afundar o pescoo, eu no vou colocar a cabea
nela, no. Mas pensei tambm: se eu no colocar, vo me xingar pra caraco. Ento fiquei vendo, a
bola passou, no pus a cabea nela, o pessoal j ia me xingando, bati de joelho e ela entrou...
Goooo!!!... Foi um estrago nos inimigos.
Mas o que conta e pesa na balana que no ano seguinte, revoltado com a situao do Estevam,
Plnio escreveu a crnica em Veja expondo a situao do rapaz na mesma semana em que Ernesto
Geisel enviava ao Congresso projeto de lei criando um Sistema de Apoio ao Atleta Profissional.
Ento, como fica o Estevo?, indagava a crnica sobre o direito ao trabalho do jogador. O que
pareceu uma crtica ao general presidente. A revista foi para as bancas e Plnio Marcos foi para a
Polcia Federal se explicar. O delegado era o dr. Gilberto Alves. E olha como esse pas
fantstico Plnio lembrava a histria sem disfarar a emoo.
O delegado lhe deu uma prensa.
Olha, filho, o negcio o seguinte. Desse jeito, quem vai acabar ficando sem trabalhar
voc.
E o que o senhor quer que eu faa?
Plnio contou ento a histria do Estevam.
Mas isso verdade?
Claro que verdade!
Ento traz o rapaz aqui.
Plnio procurou o Estevam, que no quis ir. S que, se no fosse, deixaria o amigo mal com o
delegado. De muleta e num Fusca, tarde da noite e meio s escondidas, conta Estevam, eles
bateram na casa do dr. Gilberto, que olhou o estado do rapaz e se comoveu.
Poxa, no que verdade? Ento vamos cuidar de voc.
Atendido pelo mdico do Palmeiras, dr. Joo di Vincenzo, que fez a primeira avaliao e
tratamento, Estevam foi mandado para a Escola Superior de Educao Fsica do Exrcito, na Urca,
no Rio de Janeiro, onde conheceu o capito Cludio Coutinho e Carlos Alberto Parreira, que
seriam tcnicos da seleo brasileira. L ele se recuperou para o futebol, jogando e dando
porrada, como falava Plnio, orgulhoso do amigo. No se recuperou a tempo de ir para a seleo,
verdade, mas Estevam Soares era zagueiro titular do So Paulo na conquista do primeiro
campeonato nacional para o tricolor do Morumbi, em 1977. Na final contra o Atltico Mineiro em
Belo Horizonte, disputada no incio do ano seguinte como Muricy Ramalho, que no jogou por
estar machucado , Estevam ficou fora por suspenso. Mas entrou para a histria do So Paulo.
Tempos depois, Plnio vendia livros na porta de um teatro quando o delegado da Polcia
Federal, o dr. Gilberto, passou e reclamou:
Voc me traiu. Prometeu que, se a gente recuperasse o Estevam, ele ia jogar no Amrica.
Ora, doutor, esse time no existe mais nem no Rio de Janeiro. S o senhor ainda torce pelo
Amrica.
Se o Amrica no existia mais, o que dizer do Jabaquara?
Em matria de torcer pra time em fim de linha, Plnio Marcos no tinha por que debochar do
delegado. Mas torcedor de times como Amrica e Jabaquara no se move por resultados e
conquistas fugazes. Move-se por inexplicvel paixo. Quando Plnio morreu, era do velho Jabuca
a bandeira que cobriu o caixo. No entanto, a camisa do time, com a qual sonhava ainda criana,
essa ele nunca vestiu pra valer.
O ENCONTRO COM A BOEMIA PESADA Foi pouco antes dessa poca que Plnio fugiu de
casa pela primeira vez. No tinha ainda completado quinze anos. Aventurou-se sozinho em So
Paulo. Dona Hermnia se desesperou. Meu filho est passando fome, repetia em suas aflies de
me. A pequena Mrcia se encantou com a fuga do irmo: A partir da ele passou a ser o meu
dolo. Seu Armando acionou os amigos bancrios da capital e outras cidades na esperana de
localizar o filho. At que um dia, meses depois, ele apareceu em casa maltrapilho, com um
pedao de po duro no bolso, detalhe que ficou na memria de Mrcia. Plnio voltou para casa e
para a turma da malandragem, da boemia pesada, gente dos cabars. Turmas que ficariam para
sempre na sua memria e a que se referiu assim:
Era a turma do Morocco, do Batman Bar, onde eu tinha uma mulher, o Samba Danas, o Night
and Day, o Broadway, o Eldorado. Ento tinha campeonato de futebol de cabar contra cabar. Eu
jogava pelo Batman Bar por causa da mulher. E todo mundo participava. Cantores, msicos,
choferes de praa, policiais, bandidos, toda a malandragem. E tinha festa, piquenique na Praia
Grande, que naquela poca era longe pra caralho... Um ponto importante era o Samba Danas,
onde a gente no entrava, porque era lugar de picote, onde as mulheres danavam. A gente ficava
esperando por elas no Chave de Ouro, um restaurante da esquina frequentado por todo tipo de
gente. Era num lugar chamado Golfo, l na virada do cais. Ali era o ponto de esperar mulher,
quando a gente vinha de outro programa, de bailes, da sinuca sinuca eu nunca joguei bem,
porque no tinha habilidade nas mos.
De dinheiro Plnio no precisava muito. O suficiente para cada dia. A sua relao com dinheiro
no mudaria, mesmo quando viveu perodo de fartura com o sucesso de suas peas. Por no se
preocupar com a grana, ela vinha de uma maneira ou de outra. Foi assim, da adolescncia ao fim
da vida:
Sempre dei sorte para ganhar dinheiro. Ganhei muito dinheiro sempre que quis. Ganhava e
gastava, ganhava e gastava... Eu no preciso de muito para viver. Nunca tive a ambio de ter um
automvel, viajar, essas coisas. Nunca pensei em juntar dinheiro. As pessoas se preocupam com
dinheiro para ter duas coisas: mulher e poder. Mulher eu sempre tive. Poder nunca me interessou.
Com mulher, eu sempre despertei nelas certo sentimento maternal. Alm disso, sou poeta. E o
poeta tem essa coisa mais poderosa que tudo, o verbo. Jamais paguei um mich na minha vida.
Sempre achei isso uma coisa vergonhosa. So duas coisas das quais a gente sempre se
envergonhava: tomar dinheiro de mulher e pagar mulher. Tomar dinheiro coisa de cafeto, um
cara que degrada a mulher. Alis, eu achava que cafeto era sempre viado. Se voc homem, se
apaixona, ento como que vai tomar dinheiro da mulher? Eu sempre tive muito preconceito com
cafeto.
SURGE O PALHAO FRAJOLA, POR ACASO Como o amigo do bairro com vocao de
artista era o Luciano Fonseca, Plnio o acompanhava em todas as suas buscas de trabalho. Por
isso, quando ele dizia em entrevistas, ao ficar famoso, que tentou o rdio mas era muito difcil,
ento eu fui para o circo , possivelmente estava reproduzindo as pegadas do amigo cantor. O
circo em que estreou ficou instalado uma longa temporada no Macuco. Ao contrrio dos circos da
poca, o Pavilho Teatro Liberdade no tinha animais adestrados, lees, ces, micos nem
elefantes, apesar de em suas narrativas Plnio dizer, para dar colorido histria, que limpava
bosta de elefante. J no era um tempo em que o palhao fazia o nome de um circo, mas ainda era
importante, segundo Plnio:
Se o palhao fracassasse numa praa, o circo podia ir embora, que no tinha mais jeito.
Podia ter bicho, podia ter o que fosse, que no adiantava, o palhao era a chave. Mas nessa poca
as coisas j tinham mudado. A maior atrao no era o palhao, mas os grandes nomes que o circo
contratava para shows, como Vicente Celestino, Tonico e Tinoco, Mazzaropi, Z Fidlis e muitos
outros.
Em Santos e por toda a regio havia circos e pavilhes espalhados, que serviam de palco para
esses grandes artistas que o rdio transformava em dolos populares. No circo Plnio trabalhou em
duas fases, antes e depois do servio militar obrigatrio. Como palhao Frajola, ele era dono das
matins.
Era um circo muito bom. Tinha a famlia Viana, o Olinto Dias, que era um puta diretor de
teatro que depois fez tambm televiso, o Picol e a Nana, o Pirulito, um monte de gente de muito
respeito. E tinha tambm grandes shows com artistas como o Lus Gonzaga e a Caravana do Peru
que Fala, do Slvio Santos. Tinha espetculo a semana inteira, variedades, e sempre uma pea de
teatro que a turma do circo fazia, como Os transviados, Saudosa maloca, O morro dos ventos
uivantes. Nos fins de semana vinham as grandes atraes. Nunca faltou pblico.
Uma das estrelas dos picadeiros era a atriz Vilma Duarte, que levava os seus dramas e
comdias de circo em circo. Plnio dizia ter trabalhado com ela nas suas peregrinaes. Pelo
menos foi o que jurou atriz Analy Alvarez, e ela depe:
Quando eu era menina, minha famlia morou uns nove anos em Paranapiacaba, onde meu pai
tinha um cinema. Era ali que os artistas itinerantes se apresentavam. Nunca me esqueci da vez em
que Vilma Duarte, que era uma estrela de circo, apareceu l. Como o ltimo trem para So Paulo
saa s nove da noite, hora em que estava acontecendo o espetculo, ao terminar a sesso meu pai
levou todo mundo pra casa. Serviu comida e bebida e os artistas passaram a noite, at a manh
seguinte, quando pegaram o trem. Para uma menina de dez anos, ficar a noite toda acordada no
meio de artistas foi um encantamento. Por isso nunca esqueci o episdio. Uma noite no Gigetto,
quando terminei de contar essa histria, o Plnio disse: Ah, ento era voc aquela menininha?.
Se verdade, eu no sei, mas ele garantiu que trabalhou com a Vilma Duarte.
possvel, embora Plnio no tenha registrado as suas andanas com preciso. Datas, lugares?
S lhe interessavam os episdios que ele viveu ou presenciou.
AMIGO DE COBRINHA, MORADOR DE RUA Num dos natais dessa poca, seu Armando
juntou as economias para presentear os filhos com capas de gabardine, o mximo de elegncia e
bom gosto. Difcil foi fazer Plnio usar a sua. Noite fria e chuvosa, a me o convenceu a vestir a
bendita capa. E ele saiu noite adentro. Voltou de madrugada, e de manh dona Hermnia deu pela
falta da capa. Plnio desconversou, disse que tinha deixado sabe Deus onde e que ia dar um jeito.
E foi pra rua. Nesse meio tempo bate na porta um morador de rua:
aqui que mora um moo chamado Plnio?
, sim respondeu a me, j esperando por alguma encrenca. Ele est?
Saiu.
A senhora pode entregar essa capa pra ele? Eu estava ontem dormindo na porta do bar e,
como fazia frio e chovia, ele me cobriu. Disse que morava aqui na vila e que eu entregasse depois.
Dona Hermnia s faltou matar o Plnio por ter emprestado uma capa to boa, comprada com
tanto sacrifcio, para um mendigo que ele nem conhecia. Mas a histria no terminou a. Passados
alguns meses, bate na porta da casa uma senhora.
O Plnio mora aqui?
Sim, eu sou a me dele confirmou dona Hermnia, sempre temerosa das surpresas que o
filho podia lhe reservar.
o seguinte. Eu sou dona da penso tal e o Plnio alugou um quarto para o Cobrinha.
Cobrinha? Quem Cobrinha?
Um amigo dele. O Plnio paga direitinho o aluguel, no disso que eu vim me queixar. A
senhora precisa dizer pra ele que o Cobrinha est com tuberculose, no pode mais ficar na penso,
tem que ir para um hospital, seno acaba morrendo l.
Cobrinha era o tal mendigo pra quem ele tinha emprestado a capa. noite foi um pampeiro. A
me, furiosa com o Plnio. E Plnio, puto com a dona da penso:
Ela no tinha nada que vir aqui falar com a senhora, te encher o saco.
Armando, o pai, tranquilizou me e filho:
Agora precisamos pensar no Cobrinha.
Diz Neto que o Cobrinha, cujo apelido vinha por ele ser manco e andar torto, quase se
contorcendo, ficou uns dias no barraco no quintal da casa, at que foi internado num hospital da
cidade. O Plnio era briguento, meio malcriado, mas tinha um corao enorme, diz o irmo. Ele
cuidou desse homem, com a mesada que a gente recebia do meu pai, e ainda levava roupa e
comida de casa para ele, tudo escondido, completa Mrcia. Plnio no saa do hospital. Um dia
chegou abatido e triste. A me quis saber o que tinha acontecido.
Cobrinha est morrendo. No morreu ainda porque a senhora no foi ver ele.
Ele tanto insistiu que dona Hermnia, na tarde do dia seguinte, se arrumou e foi ao hospital.
Sentou-se cabeceira da cama, falou palavras de conforto, fez algumas oraes e saiu. Dois dias
depois o Cobrinha morreu. Foi como o Plnio disse. Ele s estava esperando a visita de dona
Hermnia.
Se achando engraado, arriscou outras praias. Decidiu que seria humorista de rdio. Aventurou-
se no programa A onda do riso, apresenta-do pelo compositor Gentil de Castro e com atraes que
eram estrelas da Rdio Tupi de So Paulo. Mais que o circo, o auditrio da Rdio Atlntica de
Santos era a plataforma de quem sonhava ser famoso e deixar de ser ningum. Era o caso de
Plnio.
bom saber que ser artista de rdio no era um sonho qualquer. Toda rdio que se prezava tinha
auditrio para desfilar as atraes de grande pblico. Radionovelas, shows humorsticos e de
msica popular eram o carro-chefe da programao. Gentil de Castro, ento, teve a imprudncia
de escalar o palhao Frajola, ou melhor, Plnio Marcos como uma das atraes de A onda do riso.
Com um alerta:
Olhe, eu vou te botar a. Mas quando eu mandar voc sair, voc sai.
Entrou por um ouvido, saiu pelo outro. A verso de Plnio para o episdio:
Quando contei a primeira anedota e o pblico reagiu, eu no sa mais.
Gentil de Castro se desesperou. O relgio correndo e as estrelas da noite, o sambista Wilson
Batista e os Demnios da Garoa, esperando para entrar no ar. No entraram. O programa acabou
antes. Fiz um tremendo sucesso, s que fui despedido. O cara quase me bateu, me chamou de
cretino e no pagou o cach combinado. Falou que eu tinha avacalhado o programa e teve que se
desculpar com os outros artistas.
No satisfeito, na semana seguinte Plnio chegou rdio no meio do programa. Para se exibir?
Claro, por que voc acha que eu queria ser artista? Pra continuar annimo? Eu queria ficar
em evidncia.
Para testar a sua popularidade, esperou o melhor momento de entrar no auditrio, quando um
artista fraco tentava inutilmente fazer a plateia rir.
Entrei e desviei a ateno do palco. Todos s olhavam para mim. A eles proibiram a minha
entrada na Rdio Atlntica.
Em 1957, o Canal 5, TV Paulista, das Organizaes Vitor Costa (depois, TV Globo), durante
seis meses se instalou na cidade, sem sucesso, tentando criar uma programao local. Plnio
arriscou-se com o palhao Frajola. E teve de reconhecer:
Minha primeira experincia na televiso foi um fracasso. O Mrio Santos me levou para
fazer Hoje tem espetculo, um programa de circo. No deu certo, eu no sabia fazer aquilo, um
programa de estdio sem pblico, com o pblico pintado na parede. Por isso no me dei bem, eu
trabalhava em funo do pblico. O resultado dessa experincia na televiso foi que eu no queria
mais voltar para o Pavilho Liberdade.
Tanto quanto escrever, assistir e falar de futebol, Plnio gostava de jogar. Orgulhava-se de dizer
que aos quarenta anos estava em forma e at o enfarte vestiu a camisa de titular do Sentimento
Futebol Clube, criado pelo jornalista Brasil de Oliveira e pelo zagueiro Estevam Soares, em
Campinas, e que perambulava pelos gramados do interior em jogos beneficentes.
O Sentimento F.C. uma seleo de boleiros de corao generoso, que aproveitam as frias
para jogar sua bola em favor de algum que est a perigo, explicou Plnio em crnica na revista
Veja, em 31 de dezembro de 1975, ao relatar a apresentao do time em Pompeia. Antes de ser
criado o Sentimento, ele jogava em um time improvisado, tambm de craques. Se no da bola, de
craques de outras reas, como o jornalista e crtico musical Walter (Pica-Pau) Silva. Desse time
tambm Plnio se orgulhava:
Fomos jogar contra um adversrio de Campinas que levou uma poro de gente da Ponte
Preta, do Guarani e da seleo brasileira... E ns tudo meio coroa. Ento eu falei: no vamos
perder, vamos chutar at a alma deles. A comeou o jogo. Meio-dia, na Faculdade de Educao
Fsica. O jogo terminou dois a dois. E o Juninho e o Estevam queriam me contratar pra jogar no
time deles e eu no quis ir.
O que no o impediu de jogar, no Sentimento Futebol Clube, ao lado desses e de outros craques
e atletas que fizeram histria no futebol. A lista grande. Vai dos zagueiros Juninho e Oscar, este
titular da seleo de 1982, e os goleiros Carlos e Waldir Perez, a Oswaldo Alvarez, o Vado, e
Muricy Ramalho, que se tornaram tcnicos como Estevam Soares.
Era uma seleo brasileira. No Sentimento s tinha craque, e eu passei a ser o ponta-
esquerda titular desse time.
Desembargador aposentado, trinta anos depois Carlito Godoy ga-rantia que no era conversa
fiada do Plnio. Ele era mesmo bom de bola. E Estevam confirma. Quando Carlito, ou melhor, o dr.
Carlos Aloysio Cavellas de Godoy, ento um jovem advogado em incio de carreira, fez concurso
e se tornou juiz de direito, teve de se afastar do futebol. Foi Plnio quem deu a notcia aos boleiros
do Sentimento, no meio dos quais sempre tinha um mais avoado.
O Carlito no pode vir porque agora juiz.
mesmo? Est apitando em que diviso?
Em diviso nenhuma, caralho. Ele juiz de direito, no de futebol.
PONTE PRETA DRIBLA A CENSURA Plnio definia o futebol simplesmente como uma
coisa maravilhosa.
E sabe por qu? Porque ele imprevisvel. De repente um time de merda entra em campo e
ganha o jogo...
Talvez por isso, o futebol nunca serviu de inspirao para as suas peas, a no ser como
personagem oculto em Quando as mquinas param, que pontuada pela transmisso de um jogo
pelo rdio. Foi com essa pea, alis, que ele teve outra prova de quanto lhe valiam as amizades do
futebol. Tanto que, ao edit-la em 1972, no prefcio ele reservou um agradecimento Associao
Atltica Ponte Preta. Quem sabe das coisas do futebol conhece a rivalidade que h em Campinas
entre os dois times da cidade, o Guarani e a Ponte, chamada de a macaca, considerada um clube
de massa, do povo. Pois aconteceu de Quando as mquinas param excursionar pelo interior com
Ginaldo de Souza e Vera Viana, dirigidos pelo autor. At que o espetculo bateu em Campinas.
Um dono da cultura local, ao saber que a pea era do Plnio, virou bicho. Ignorando o
atestado da Censura Federal que liberava a pea para todo o pas, impediu a apresentao no
teatro que era da Prefeitura.
Desgraadamente, eu esqueci o nome do pilantroso, escreveu Plnio. Ao saber da proibio,
a generosa gente da gloriosa Ponte Preta no vacilou e abriu as portas da sua sede social para o
espetculo e garantiu o taco, em nome da liberdade de expresso. O pblico foi em peso, para
avisar ao dono da cultura que o povo brasileiro no gosta de presepada dessa ordem. Claro, o
papanatas se fingiu de morto e no pediu demisso do cargo de dono da cultura. Para Plnio
Marcos, quem saiu ganhando foi ele mesmo: Este autor ficou para sempre agradecido gloriosa
Ponte Preta e sua gente e, por essa luz que me ilumina, muito mais feliz por ver Quando as
mquinas param apresentada na casa do povo, em vez de ser apresentada no templo do fajuto
dono da cultura. De todo o meu corao, obrigado, Ponte Preta, escreveu.
Por essas e outras, chamava a ateno Plnio no ter dedicado uma pea de teatro s para falar
de futebol, como fez Oduvaldo Vianna Filho, que escreveu em 1958 Chapetuba Futebol Clube. ,
mas a pea no boa ele se defendeu, antes de driblar a questo contando outra de suas
histrias:
Oswaldito, o futebol tem cada coisa gozada! Ainda agora eu me lembrei de um center-half do
Santos, o Pitico, que era bom moo, gozado pra caralho, tirador de sarro, mas no era aquele
craque que o Pel gostaria de ter ao lado, no lugar do Zito. Ento o Santos foi obrigado a vend-lo
para o Amrica de So Jos do Rio Preto. E quando ele chegou l pra treinar e viu aquela
caipirada com botina vermelha de terra, falou: Porra, eu no vou jogar aqui. Joguei com Pel,
joguei com o Zito... No vou jogar aqui. Vestidinho de rapaz de Santos, com culos raiban no
bolso, ele chamou o tcnico.
Olha, estou com uma puta dor nas costas, no vai dar pra treinar. Como no vai treinar?
Deixa eu ver. Isso espinhela cada.
Como? Espinhela cada?
espinhela cada, eu estou falando. Quer ver?
Chamou um nego massagista, um nego sarado, forte pra caraco, e falou:
Olha, ele est com dor nas costas, veja se no espinhela cada. espinhela cada. Pe a
mo assim, cruza os braos na frente do peito, com as mos espalmadas nas costas, que eu vou te
curar. Oua, presta ateno!
O nego deu um puxo. Creekk...
Pronto, estourou tudo. Eu no falei que era espinhela cada? Agora, ateno, que vai ter outro
estalo... Creeekkk... E agora mais um... Creekkk... Pronto, agora voc vai ficar bom.
Bom, o caralho, seu filho da puta. Voc quebrou meus culos raiban...
A plateia riu ao ouvir essa histria. O que ela no sabia que esse um caso conhecido de todo
boleiro. Cada um conta do seu jeito. Plnio contou do dele, inventando que o jogador em questo
era o tal Pitico, que jogara com Pel. Um jeito de dar importncia e de assumir a autoria de uma
piada velha. Coisa do bom contador de histrias que ele era.
CENA III
DA EU FIQUEI IMPORTANTE, COM DIREITO DE FREQUENTAR FESTA DE GR-FINO E DE MIJAR NO
AQURIO.
VOC S RESPEITVEL E DIGNO, COMO AUTOR DE TEATRO, SE SOUBER QUE TEM QUE SERVIR AO
ATOR.
NUNCA DEIXEI A PATRCIA SER MINHA MADRINHA, NUNCA FUI DE PEDIR A BNO. NO RESPEITO
ESSA COISA DE MESTRE.
Para encurtar a histria, Plnio dizia que a fase de circo terminou quando comecei a conviver
com a Patrcia Galvo e o grupo dela. O fato que, em 1957, ele intuiu que a fase de palhao
estava se esgotando e a frustrada tentativa na televiso lhe deu a certeza de no querer prender o
seu destino ao circo. Tinha de se aproximar de outras turmas. Como? O acaso o favoreceu. Em
junho de 1958, o diretor de teatro Paulo Lara j o conhecia de vista e o convidou pra quebrar
um galho numa pea infantil dirigida por Vasco Oscar Nunes. O Grupo da Caldeiraria das Docas
ensaiava Pluft, o fantasminha, de Maria Clara Machado essa santa do teatro infantil, dizia
Plnio , e um ator saiu e precisou ser substitudo s pressas, pois o espetculo participaria de
um festival de teatro amador da Baixada Santista.
Eu fui. L conheci uma mulher maravilhosa, a Patrcia Galvo, que amava o teatro e
incentivava o movimento amador.
Antes de Patrcia, porm, os primeiros a lhe fazer companhia no novo ambiente do teatro
amador foram Vasco Oscar Nunes e Julinho Bittencourt. Ele, que no comeo era meio relaxado no
jeito de vestir, agora aparecia sempre de banho tomado e roupa limpa, conta Vasco. A gente
ficava pelos bares, conversando at tarde, e no precisava de dinheiro. A nica despesa era com
cigarro, pois a gente fumava e tomava muito caf. Plnio era muito observador e tinha um humor
custico que s vezes magoava as pessoas. Foi numa dessas noitadas que Plnio se aproximou de
Patrcia Galvo, a Pagu.
Era o ano de 1958, em que surgiu em So Paulo um novo autor de teatro, Gianfrancesco
Guarnieri, que escreveu sua primeira pea, O cruzeiro l do alto, e deu para Jos Renato Pcora,
fundador e diretor do Teatro de Arena, ler. Ele se encantou com o texto, no com o ttulo, que o
autor mudou para Eles no usam black-tie. Ao estrear, no mesmo ano, a pea foi saudada como
marco de renovao na dramaturgia brasileira. Enquanto isso, em Santos, chocado com a notcia
de um garoto currado na priso, Plnio Marcos escreveu tambm a sua primeira pea, Barrela.
No teve a mesma sorte de Guarnieri. Barrela levou um ano para ser encenada, estreou e saiu de
cartaz, proibida. Seu autor diria bem depois:
Juro por essa luz que me ilumina que nunca havia me ocorrido a ideia de escrever uma pea,
mesmo porque, a bem da verdade, eu nem sabia escrever direito. Tirei o diploma do primrio
Deus sabe como.
Escreveu Barrela enquanto trabalhava no Pavilho Teatro Liberda-de, que se instalara no
Macuco, na avenida Pedro Lessa. Aprendia ali o seu ofcio de ator com artistas de tradio no
circo e sonhava, disse tambm muito depois, ter sempre a casa cheia e poder trabalhar em noite
de chuva, coisa que era impossvel naquele pavilhozinho de zinco, todo furado. De dramaturgia,
seu conhecimento no ia alm das peas do repertrio circense, Paixo de Cristo, O brio, O
mundo no me quis, Onde canta o sabi. Escreveu Barrela porque precisava pr pra fora a dor e
a indignao provocadas pela histria do garoto barrelado. Escreveu Barrela do jeito que sabia,
na linguagem que dominava, sem nenhum policiamento, sem se preocupar com os erros de
portugus, nem com as palavras.
Li a pea para alguns companheiros do circo e, naturalmente, eles acharam que eu
tinha enlouquecido, se pensava que podia encenar uma pea com aquela linguagem.
Ficou por isso mesmo.
BARRELA CAI NAS MOS DE PATCIA GALVO Ser possvel ensinar a escrever para
o teatro? A questo foi proposta em 1960 por Alfredo Mesquita em artigo para a revista Dionysos,
publicao do Servio Nacional de Teatro (SNT). No creio. Sinceramente, ele mesmo
respondeu. E acrescentou: Em primeiro lugar, o mais importante o que o autor tem a dizer. Na
Escola de Arte Dramtica (EAD), que havia fundado em So Paulo em 1948, Alfredo Mesquita
acabara de instituir o curso de dramaturgia, o que podia parecer em contradio com o seu artigo.
No, ele tinha claro que o imprescindvel que o dramaturgo conhea o teatro por dentro. Em
seguida, a receita: Tal conhecimento s possvel fazendo-se teatro ou frequentando uma escola
de teatro completa. Na falta do segundo, o primeiro requisito era preenchido por Plnio, que
aprendeu as artes e manhas do palco no Pavilho Teatro Liberdade. Em Barrela ele tinha o que
dizer. Isso explica em boa parte o impacto causado pela pea, que cumpria a primeira condio da
receita de Alfredo Mesquita, cujo artigo certamente Plnio nunca leu.
Mas soube opinar a respeito com autoridade:
Escrever uma arte solitria demais. Voc s respeitvel e digno, como autor de teatro, se
souber que tem que servir ao ator. Quando escrevi Barrela eu tinha a escola do circo. Eu sabia
andar no palco, o que facilita muito para quem dramaturgo. O Gianfrancesco Guarnieri, por
exemplo, esse excelente dramaturgo porque ele um excelente ator. E eu sa quase do mesmo
nvel do Molire que andava to bem no palco quanto o Guarnieri. Ento, quem sabe andar no
palco sempre tem uma vantagem, mas no tem maior. Lauro Csar Muniz, por exemplo. Que autor
magnfico de teatro! E no ator, como no o Dias Gomes, belssimo autor, e tantos outros.
Com a pea escrita mo, um calhamao de folhas enrolado, enfiado no bolso, Plnio era s um
ator a caminho dos 23 anos, estreando fora do circo, no Grmio da Caldeiraria das Docas de
Santos. Mostrou Barrela a Vasco Oscar Nunes, diretor de Pluft, o fantasminha, que a datilografou
com a ajuda de outro novo amigo, Nei Moraes. Mas precisava mesmo da opinio de algum como
Patrcia Galvo. Aproximou-se dela no Bar Regina e esperou o momento oportuno de lhe mostrar
a pea.
Patrcia havia se mudado para Santos em 1954. O marido Geral-do Ferraz, escritor e jornalista,
fora contratado pela Tribuna de Santos, na qual ela passou a escrever matrias sobre teatro e...
horscopo. Pagu, nome de guerra que lhe deu o poeta Raul Bopp, tinha doze anos quando
aconteceu a Semana de Arte Moderna de 1922. Paulista de So Joo da Boa Vista, aos dezoito
anos terminou a Escola Normal da praa da Repblica, na capital, poca em que, segundo
testemunho de Alfredo Mesquita, corriam em So Paulo, cidade provinciana, histrias malucas a
seu respeito: fugas, pulando janelas e muros da escola, cabelos cortados e eriados, blusas
transparentes de decotes arrojados, cigarros fumados em plena rua. Escndalos, para a poca.
(No estranha que ela e Plnio se entendessem to bem.)
Os olhos inquietos e a voz firme e sedutora, tanto quanto seus ta-lentos de poeta e escritora,
encantaram Oswald de Andrade, que se casou com ela no dia 5 de janeiro de 1930, diante do
jazigo da sua famlia. Nesta data, contrataram casamento a jovem amorosa Patrcia Galvo e o
crpula forte Oswald de Andrade. Foi diante do tmulo do Cemitrio da Consolao, rua 17, n
17, que assumiram o heroico compromisso. Na luta imensa que sustentaram pela vitria da poesia
e do estmago, foi grande o passo prenunciador, foi o desafio mximo. Depois se retrataram diante
de uma igreja. Cumpriu-se o milagre. Agora, sim, o mundo pode desabar escreveu Oswald em
O romance da poca anarquista ou Livro das horas de Pagu que so minhas.
A primeira notcia da presena de Pagu em Santos de 23 de agosto de 1931. Chegou, como
militante do Partido Comunista, para atuar com operrios da construo civil. Os estivadores
entraram em greve. Ela discursou em comcio no cais. Foi presa como agitadora. Libertada, o
partido a obrigou a assinar um documento em que se declarava agitadora individual,
sensacionalista e inexperiente.
Quando Plnio Marcos nasceu, Pagu estava presa, em So Paulo e depois no Rio de Janeiro,
acusada de participar da Intentona Comunista para derrubar o presidente Getlio Vargas. Quatro
anos depois, ao sair da priso, a tortura e os maus-tratos haviam desfigurado a sua beleza.
Encontrou apoio em Geraldo Ferraz. Com Mrio Pedrosa, fundaram a Revista Socialista.
Casaram-se em 1940 e juntos viveram at a morte de Pagu. Ao morrer, em 1962, a sua imagem era
de uma mulher que se deixara abandonar, dentes e unhas malcuidados, na lembrana do dramaturgo
Lauro Csar Muniz, que a conheceu na Escola de Arte Dramtica. Escola que ela comeou a
frequentar em 1952 e onde estreitou a amizade com Alfredo Mesquita e Dcio de Almeida Prado.
Para a EAD deixou a sua biblioteca. No se esquea dos livros, so seus, disse a Alfredo,
sentada na cama, o tronco ereto, fumando, fumando sempre, os olhos muito pretos, ainda vivos,
fixos em mim com aquela expresso de angstia e interrogao dos que vo morrer.
UMA ESCOLA NAS MESAS DO BAR REGINA Sem abandonar o circo, a vida de Plnio de
repente passou a girar em torno do teatro. Mesmo amador, ele defendia alguns trocados dirigindo
peas infantis, no comeo. Para a sua me, tinha sido um salto considervel. No incio do ano ela
confortou uma amiga que estava desconsolada.
Veja s, dona Hermnia, meu filho resolveu fazer teatro e vai pra So Paulo. Como que ele
vai viver de teatro?
D graas a Deus, dona Maria Jos, pelo menos o Serginho est estudando. O Plnio no sai
do circo.
Srgio Mamberti, o Serginho desse dilogo, se diverte com a lembrana daquele ano de 1958,
quando ele entrou na EAD estimulado por Patrcia.
At eu eles queriam que fizesse a escola, mas eu no tinha diploma nenhum e no pude entrar
conformava-se Plnio. De fato, o ingresso na EAD exigia no mnimo o segundo grau completo.
Para compensar, Emlio Fontana apareceu meses depois em Santos para dar um curso de teatro, ao
qual se inscreveram, entre outros, o mdico e escritor Oscar von Pfull, autor de A rvore que
andava, e Mylene Pacheco, que seria assistente e substituta da poetisa Maria Jos de Carvalho
como professora de dico na EAD. Plnio deu umas bicadas no curso de Fontana e logo sumiu.
No tinha pacincia para ser aluno, nem mesmo de teatro. Queria logo fazer e acontecer. E fez e
aconteceu.
O seu aprendizado se deu na convivncia com os artistas e inte-lectuais de Santos. Uma gerao
de fazer inveja. Do brilho sereno de Geraldo Ferraz criatividade inquieta do pintor Mrio
Gruber e dos jovens msicos Gilberto Mendes e Willy Correia de Oliveira, que colocaram a
chamada msica erudita de pernas para o ar. Em depoimento escritora Edla van Steen, Plnio
admitiu que, ao encontrar Patrcia Galvo, conheceu um grupo de intelectuais rarssimo, do qual
recebeu forte influncia. Criana, ele ouvia seu pai contando os livros que lia, principalmente o
nada bem-comportado Alusio de Azevedo, com O cortio, Casa de penso e O mulato. Agora
ouvia falar de Samuel Beckett, Io-nesco, Fernando Arrabal. Frequentava os crculos de poesia.
Assistia aos filmes programados no clube de cinema por Maurice Legeard, a quem se referiu como
grande animador das noites santistas, apaixonado por teatro e cinema, que procurava incomodar e
no deixava ningum acomodado. Ficava horas escutando Patrcia desfiar seu encantamento pelo
escultor Bruno Giorgi e, principalmente, pelos amigos do teatro, Alfredo Mesquita e a Escola de
Arte Dramtica frente. Tudo aquilo nos despertava para ler, para estudar, Plnio reconhecia.
Portanto, o que lhe faltava de estudo formal, escolar, sobrava nessa convivncia que se estendeu
por quase dois anos. No Bar Regina ou na casa de Patrcia, que reunia os jovens amigos e
obrigava o marido Geraldo Ferraz a ler uma nova pea a cada domingo para desgosto dele e
alegria dela, e para saco nosso, porque no havia nada para beber nem comer.
Antes de teatro Plnio escreveu poemas, embora no se tenha notcia de sua participao no
Clube de Poesia, no qual brilhavam Narciso de Andrade e Roldo Mendes Rosa, poeta e
comunista, o grande intelectual do grupo, uma espcie de Sartre da turma, no mnimo uns dez anos
mais velho. Quem diz isso Ideo Bava, amigo que Plnio conheceu nessa poca. Eles se
aproximaram graas a Marly Matuck, amiga comum que datilografou o poema Realidade de Plnio
e entregou para Ideo ler. De rigorosa formao catlica, sombra dos Irmos Maristas, Ideo Bava
se definiu, em depoimento ao jornalista Quartim de Moraes, como um catlico numa posio
direitista bem definida, mas com uma atrao incrvel por essas pessoas de esquerda que
escreviam, pensavam, atuavam, com suas ideias to diferentes da minha. Na garagem da casa de
Ideo aconteceu outra leitura de Barrela, antes de cair nas mos de Pagu. O local era ponto de
encontro onde circulava um monte de padres amigos e todos passaram a se interessar tambm por
Plnio Marcos, talvez atrados pelo ar de menino perdido que ele tinha e com o qual conquistava
todo mundo.
Paschoal Carlos Magno, embaixador de carreira, foi um dos responsveis pela renovao do
teatro brasileiro, a partir da dcada de 1940. Em 1938, procurou a Casa do Estudante, no Rio de
Janeiro, iniciativa de Ana Amlia Carneiro de Mendona, me da crtica Barbara Heliodora, para
criar o Teatro do Estudante. Quando, na Segunda Guerra, ele serviu na embaixada brasileira em
Londres, encontrou na atriz Maria Jacintha a animadora do seu projeto, que revelaria o ator Srgio
Cardoso em memorvel montagem do Hamlet de Shakespeare. A repercusso desse espetculo
consolidou o prestgio do Teatro do Estudante.
Para disseminar o gosto por um teatro de qualidade, Paschoal no media esforos nem recursos,
que tirava do prprio bolso. Valia tudo. Vender suas obras de arte e pedir a famosos atores
ingleses que conhecera em Londres, como sir John Gielgud, mensagens desejando sucesso
montagem de Hamlet. Mensagens que ele espalhou pelos jornais e revistas, provocando o maior
au antes da estreia. Mal sabiam que Paschoal havia escrito as mensagens e que os atores, seus
amigos, apenas se limitaram a assin-las e enviar de volta.
No final dos anos 1950, Paschoal criou os festivais nacionais de Teatro de Estudantes,
realizados em grandes cidades dispostas a bancar as despesas do evento. Depois, ergueu na regio
serrana do Rio de Janeiro a Aldeia de Arcozelo, para acolher estudantes e grupos teatrais de todo
o pas, obra que permanece l como testemunha empoeirada dos seus sonhos, patrimnio
esquecido da Fundao Nacional das Artes (Funarte). Quando a experincia do Teatro do
Estudante se esgotou, Paschoal ainda se lanou em uma ltima loucura, ao criar em meados da
dcada de 1970 a Barca da Cultura, levando teatro, msica e dana para as populaes ribeirinhas
do So Francisco, experincia que consolidou a vocao desbravadora do Ballet Stagium de
Mrika Gidali e Dcio Otero. O casal de bailarinos seria responsvel por danar Navalha na
carne no Teatro Municipal de So Paulo, quando Plnio Marcos era um nome proibido nos palcos,
em 1975.
BOM DIRETOR NO SALVA TEXTO MEDOCRE Como ator e diretor, Plnio Marcos
fazia seu nome em Santos e no teatro amador. Como autor, Barrela ficou na memria dos que
assistiram estreia e despedida no Centro Portugus. O eco dos elogios de Patrcia Galvo pedia
que ele escrevesse outra pea. Escrever como? Barrela s saiu porque a histria do menino
currado na cadeia o comoveu tanto que sua nica reao foi escrever uma pea de teatro. O novo
desafio surgiu por conta da arrogncia juvenil diante da insistente campanha de Patrcia e Geraldo
Ferraz.
Eu no queria escrever, ser escritor; minha vocao era ser vagabundo mesmo, andar com o
circo, jogar bola, essas coisas disse Plnio.
At que Patrcia fez Geraldo ler para ele Esperando Godot, de Samuel Beckett (uma pea
maravilhosa, uma das obras-primas da humanidade, mas difcil de ser entendida, ainda mais por
um analfabeto, Plnio admitia). Quando Geraldo acabou de ler, Plnio empinou o topete: Porra,
pea igual a essa escrevo uma penca por ms. Pois ento escreva, moleque, rebateu Patrcia.
Ela apostou que eu no escrevia. E eu escrevi Chapu em cima de paraleleppedo para
algum chutar.
Escreveu, na verdade, Os fantoches. Depois que mudou o ttulo original, sabe-se l por qu.
Escreveu e comeou a ensaiar.
Eu estava to em evidncia que vendia papel. Quer trabalhar na minha pea? Custa tanto.
Tinha um gordo apaixonado que pagou uma nota, o dono de um bar tambm pagou, e foi um puta
fracasso.
Para completar o programa, Plnio incluiu, com Os fantoches, a pea Jenny no pomar, de
Charles Thomas, ambas sob sua direo, produzidas pelo Teatro de Cmara. No dia 24 de agosto
de 1960, o Centro Portugus estava abarrotado para ver as duas peas e, principalmente, o novo
texto de Plnio Marcos. Mas ele cometeu um erro grave:
Eu dei intervalo, as pessoas saram pra mijar e no voltaram mais.
O fracasso foi o de menos. Duro foi ler as crticas. A primeira, de Oswaldo Leituga, publicada
no dia seguinte em O Dirio, acusava a superficialidade do autor ao sugerir os problemas do
capital versus trabalho, mas aliviava ao elogiar a difcil qualidade de um dilogo fluente.
Patrcia Galvo pegou mais pesado no dia 26, em sua crtica na Tribuna de Santos. O ttulo era
Uma pea e um diretor. Portanto, bem diferente de Esse analfabeto esperava outro milagre de
circo, que Plnio cuidou de espalhar para todo o sempre. Do diretor Plnio Marcos, Patrcia no
falou to mal. Mas do autor... Sobrou at para Barrela: Caracteriza (Os fantoches) a tentativa do
autor de passar do plano da reportagem, que era o principal defeito de sua pea anterior, para um
plano de criao, invadindo terreno difcil para sua experincia e seus conhecimentos, desde que
h a inteno de nos proporcionar um texto de tonalidades filosficas. E o nvel mental e
intelectual do autor, infelizmente, se desencontra, como possibilidade, para palmilhar o terreno
ambicionado.
Portanto, chamou o autor de despreparado, no de analfabeto. Ao reconhecer mrito no manejo
do dilogo, observando que a sua crtica no invalida a opinio que temos a respeito das
qualidades de Plnio como autor e diretor, Patrcia no deixa barato: Da reportagem, o autor
saltou para o teatro das ideias e foi o que se viu. Um texto medocre. Do texto medocre saiu um
espetculo tambm medocre.
Nada disso abalava a amizade deles. As feridas se curavam nas mesas dos bares, onde toda a
gente de teatro em Santos acabava reunida. Para o bem ou para o mal, a juventude passa depressa.
E estava passando para aquela gerao em torno de Patrcia Galvo, Maurice Legeard e, com seu
temperamento afvel, Geraldo Ferraz. Cada um comeou a buscar seu prprio caminho.
Tinha nove grupos de teatro amador, que brigavam de porrada, um querendo ser melhor que o
outro. Esse pessoal todo saiu e Santos ficou muito triste sem eles. E como a cidade comeou a
ficar triste, eu fui ser camel em So Paulo.
O vrus do teatro, porm, j o havia infectado. Com Barrela proibida, s lhe restava levar Os
fantoches para onde fosse possvel, em escolas, morros e sindicatos. A Patrcia arrasou a pea
mas os caras achavam engraada, dizia Plnio. Ele viveu 1961 entre Santos e So Paulo.
Quando resolveu ir pra So Paulo, a gente tinha muita preocupao porque ele saiu sem nada,
conta Mrcia, a irm. Um dia o encontrei com o rosto machucado e perguntei o que tinha
acontecido. Ah, eu moro num poro com um negro e da eu consegui um dinheiro. Vendi meu
relgio e cheguei com po, mortadela, refrigerante, tudo pra gente comer. O negro quis saber
onde eu tinha arrumado dinheiro. Eu falei que tinha vendido o esqueleto dele pra escola de
medicina, mas s entregaria quando ele morresse, e os caras me pagaram adiantado. Da o negro
deu uma surra no Plnio. Foi o que ele me contou.
Se no foi assim, o relato foi parecido com o que Plnio incluiria no seu repertrio. Afinal, para
no ficar sem trocados no bolso, ele inventava expedientes. Como o de vender o mesmo livro para
vrias pessoas. A Editora Agir publicou O pagador de promessas, pea de Dias Gomes que tinha
estreado no TBC, com direo de Flvio Rangel. E claro que as livrarias de Santos no tinham
nenhum exemplar. Da vem o Plnio e nos diz que poderia conseguir o texto, conta Pedro
Bandeira. Ele, Melhem e Erclio, entre alguns outros, uns dez, logo se interessaram.
Se quiserem, eu vou a So Paulo e trago o livro pra vocs disse Plnio.
Queremos!
Ento passem a grana.
E cada um deitou o dinheiro. Na volta, Plnio procurou o primeiro: Est aqui a pea. Voc vai
ler agora? No? Ento me deixa ler, depois eu devolvo? Claro. Plnio foi ao segundo, ao
terceiro, enfim, repetiu para todos a mesma lorota. Erclio, o ltimo a quem ele levou O pagador
de promessas, reclamou:
Porra, Plnio, o livro j est todo dobrado.
que eu li antes. E no reclama, no, porque voc quem vai ficar com ele.
Quando os amigos perceberam o golpe, no adiantava mais nada. Nenhum de ns podia dizer
que ele levou o dinheiro e no entregou a encomenda. S podamos dizer que o Plnio tinha pedido
o livro em-prestado e ainda no o havia devolvido, diverte-se Bandeira. Brilhante, no? Seria
vigarice? Graas a uns trocados que perdi nesse episdio, fiquei com uma histria saborosssima
para contar por anos a fio! Isso no vale alguns trocados?
Tambm, eles davam sopa. Plnio j havia engrupido o grupo com a venda de uma malha
argentina, que ele comprava na rua Jos Paulino, em So Paulo, e jurava ser importada! Vender um
mesmo livro vrias vezes era o de menos.
A FAMLIA DELE VEIO INTEIRA. TIAS, TIOS, PRIMOS, TODO MUNDO, PARA SE CERTIFICAR DE QUE ELE
HAVIA CASADO MESMO.
NUNCA, EM TEMPO ALGUM, EU USEI MEUS FILHOS COMO DESCULPA PARA NO PARTICIPAR DA VIDA.
NUNCA.
Plnio esgotava o seu aprendizado em Santos. Das molecagens de menino s aventuras
circenses, passando pelas inteis tentativas de jogar futebol como profissional. Viver pelos bares
da cidade ou pelos cabars no cais no lhe daria futuro. Como no lhe daria futuro o teatro
amador. Em trs anos o palhao Frajola fez seu nome nos palcos da cidade como ator, diretor e
autor. Via os amigos tomando rumo na vida. Viver de expediente era o de menos. Ele sabia se virar
nos trambiques de camel para no ficar sem nenhum no bolso. So Paulo era o destino inevitvel
de quem no se contentava com os limites, mesmo que largos, de uma cidade do porte de Santos.
So Paulo seria tambm o destino de Plnio, que estabeleceu com ela tamanha identificao, que se
transformou em personagem de lendas urbanas, mesmo que o forte sotaque santista acariocado
denunciasse para sempre as origens no cais.
O ufanismo do lema, segundo o qual So Paulo no podia parar, j era contestado por urbanistas
preocupados com o crescimento desordenado que poderia levar ao caos imobilirio e ao colapso
dos servios pblicos. Ainda assim, o alargamento de ruas como a da Consolao e a abertura de
vias de trnsito rpido, como as avenidas marginais e a 23 de Maio, apontavam para a expanso
irrefrevel e a ocupao de reas antes de difcil acesso. A cidade dos bondes comeava a ficar
no passado quando Plnio Marcos desembarcou em So Paulo. A garoa e o frio ainda resistiam.
Na dcada de 1960, andava-se a p e com certa segurana pelas ruas e praas, olhos atentos
apenas nos batedores de carteira, e as distncias eram mnimas entre os pontos nos quais Plnio
estabeleceu o mapa das suas descobertas profissionais e humanas. Ao chegar de Santos, da
rodoviria em frente Estao Jlio Prestes ele seguia em linha reta pelas ruas Duque de Caxias e
Rego Freitas at a Igreja da Consolao. Ali em frente estavam o Teatro de Arena e o Bar
Redondo, de onde no se precisava de conduo para ir aos teatros concentrados no Bexiga.
Cinemas, livrarias e redaes dos principais jornais estavam a um passo. Os Dirios Associados,
na rua Sete de Abril. Logo ao dobrar a esquina com a rua Marconi, a praa Dom Jos Gaspar, a
Galeria Metrpole em obras, a Biblioteca Municipal e, em frente, o imponente prdio do Hotel
Jaragu, sede do jornal O Estado de S. Paulo e, pouco depois, do Jornal da Tarde. Descendo a
ladeira, na rua Joo Adolfo, a Editora Abril, cujo par-que grfico se instalava na marginal do
Tiet. Fora de mo, um pouco, ficava o prdio do Grupo Folha na alameda Baro de Limeira e A
Gazeta na rua Csper Lbero. Mais distantes, os estdios de rdio e televiso da Tupi no Sumar e
da Record na rua Miruna, perto de Congonhas. Saindo do Teatro de Arena, duas quadras acima
direita, a rua Maria Antnia abrigava a maior concentrao de estudantes e cabeas pensantes na
Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo, vizinha do Instituto Mackenzie, na rua
Itamb e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), na rua Maranho. Do outro lado da
Maria Antnia, na rua Caio Prado, o Colgio Des Oiseaux e, atrs dele, o Sedes Sapientiae, na rua
Marqus de Paranagu, exclusivos para moas.
Nessa So Paulo, a convivncia de artistas, intelectuais, jornalistas, bbados, estudantes,
andarilhos, loucos e poetas parecia o Gonzaga e o Bar Regina, em Santos, ampliados. No
estranha que Plnio se sentisse em casa. No tinha cacife ainda para frequentar restaurantes de
artistas, na rua Nestor Pestana. Em frente ao Teatro Cultura Artstica, um velho casaro abrigava o
Gigetto, de onde saram garons que abriram suas prprias casas, como Giovanni Bruno, duas
quadras abaixo na esquina da Avanhandava com a Martinho Prado, e o Piolim e o Orvietto, esses
j nos anos 1970. O Planetas, na esquina da Martinho Prado com a Martins Fontes, existia, mas
no era mais que um bar. Pouco abaixo do Gigetto, na Nestor Pestana, o Eduardos, que comeou
como uma pequena penso, acolhia com pratos fartos e preos honestos os artistas em incio de
carreira, atendidos pelo seu Assis. Cabia-lhe, com ar paternal, acalmar discusses, separar brigas
e autorizar que despesas fossem penduradas para, algumas, e ele sabia, nunca ser pagas. Garons e
clientes se conheciam pelo nome nesses restaurantes. Por duas dcadas eles foram as referncias
noturnas de toda uma gerao.
REQUIEM PARA TAMBORIM ESTREIA NA TV Casado, com a mulher grvida, pronto para
se tornar pai de famlia, Plnio se dividia entre o Teatro de Arena e o Teatro Cacilda Becker. De
quebra, vendia espetculos em escolas para a companhia de Nydia Licia e Srgio Cardoso e
conseguiu emprego na TV Tupi. Tanta virao aliviava, mas no resolvia nem dava para manter
uma casa. Logo depois do casamento o casal se mudou para a residncia de Mrcia, irm de
Plnio, na rua Lus Ges, na Vila Mariana.
Ficaram alguns meses e saram de l porque andou batendo polcia na porta a trs por quatro.
Plnio tinha se desentendido com alguns policiais que tentaram parar o espetculo Arena canta
Bahia no TBC e agora eles no saam da sua cola. Da Vila Mariana eles foram para a casa dos
pais de Walderez, no Alto do Ipiranga. Tambm era um jeito de ficar perto e cuidar de dona
Carmem, muito doente, que sonhava com o primeiro neto. Um ano e quinze dias depois de
Leonardo nascer, em 21 de setembro de 1964, ela morreu. Morreu no dia da estreia para
convidados e crticos de Reportagem de um tempo mau, uma colagem feita por Plnio, com
Cludio Mamberti, Ney Latorraca e Walderez, que saiu direto do cemitrio para o Teatro de
Arena.
No incio de 1964, Plnio procurou Benjamin Cattan, ator e diretor do programa TV de
Vanguarda, na Tupi, na esperana de conseguir emprego como ator ou roteirista do teleteatro. Saiu
com o emprego de chefe de estdio, por um salrio que era uma ninharia, e a aprovao do
seu texto Rquiem para tamborim. O programa, dos mais prestigiados da emissora, foi um espao
de experimentao que jamais se repetiu na televiso brasileira. Exibia ao vivo textos consagrados
de grandes autores e tambm novos e inditos. Foi assim que, no carnaval de 1964, Plnio estreou
como autor de televiso. O jornal Dirio da Noite, do grupo Dirios e Emissoras Associados, de
Assis Chateaubriand, ao qual pertencia a emissora, anunciou em 9 de fevereiro a estreia de
Rquiem para tamborim e um novo autor, ator e funcionrio do Departamento de Trfego da TV
Tupi. Nos meses seguintes, Cattan garantiu um extra ao amigo, escalando-o como ator nos
teleteatros Chaga de fogo, de Sidney Kingsley,
A visita da velha senhora, de Friedrich Drrenmatt, e A vida e a morte de Quincas Berro
dgua, adaptao da histria de Jorge Amado.
Semanas depois da estreia de Plnio como autor na televiso, veio a ditadura. O Brasil assistiu
ao golpe militar que destituiu o presidente Joo Goulart, em 31 de maro, e colocou em seu lugar o
marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, comeando um regime poltico de exceo que se
arrastaria por vinte anos. A vida, mesmo com soldados nas ruas e prises polticas, seguia o seu
curso. Enquanto se arriscava na televiso, no Teatro de Arena Plnio se aproximou do pessoal do
samba e, por encomenda, escreveu um texto para alinhavar o repertrio do show Nossa gente,
nossa msica, dirigido por Dalmo Ferreira para o Grupo Quilombo, que reunia alguns jovens
compositores como Haroldo Costa e Elton Medeiros. A Censura, agora como linha auxiliar da
ditadura, cortou trs pginas do texto e inviabilizou a estreia prevista para 14 de julho. Sem contar
Barrela, proibida desde Santos, comeava ali o confronto direto de Plnio com os censores.
Antecipando-se ao samba de Chico Buarque voc corta um verso, eu escrevo outro , em
1965 ele escreveu Reportagem de um tempo mau, costurando citaes da Bblia a Bertolt Brecht.
Com direo de Lo Lopes e direo musical de Carlos Castilho, os ensaios comearam com Ben
Silva, Clia Watanabe, Regina de Marlia, Toni Penteado, Walter Cunha e os santistas Cludio
Mamberti e Ney Latorraca. Na estreia, em 11 de outubro, o certificado da Censura chegou
proibindo a pea, como lembra Walderez, que tambm estava no elenco: A gente meio que sabia
que o espetculo seria proibido, porque a resposta da Censura estava demorando muito e esse era
um mau sinal. Mesmo assim ns marcamos a estreia e convidamos os crticos para uma
apresentao fechada, quando chegou a proibio.
A pea de Plnio no foi a nica proibida naquela leva da Censura. Havia tambm uma de Csar
Vieira (pseudnimo do advogado Idibal Piveta), Os sinceros, e mais uma dezena. A classe teatral
se reuniu no Teatro Oficina para redigir um manifesto ao presidente Castelo Branco, pedindo a
liberao das peas. Conhecido por sua proximidade com intelectuais, como a escritora Raquel de
Queirs, cearense como ele, e por seu gosto pelo teatro, o marechal-presidente teria uma chance
de fazer um gesto de boa vontade aos artistas. Plnio guardou a reunio na memria e a revelou em
entrevista ao Folhetim da Folha de S. Paulo, em julho de 1977:
A classe teatral no deixou entrar nem a minha pea, nem a do Csar Vieira, nesse manifesto,
porque eles achavam que podia dar a impresso de que a gente era autor querendo aparecer. O
Castelo Branco liberou, ento, as outras dez peas e a minha e a do Csar ficaram proibidas para
sempre. A assembleia foi no Teatro Oficina. As pessoas que lideraram esse movimento de no
deixar as nossas peas entrarem no vm ao caso agora. Elas no esto nem no Brasil.
Se servisse de consolo, e no serviu, naqueles dias Histrias de subrbio, de sua autoria, pegou
terceiro lugar no concurso de peas nacionais do programa TV de Vanguarda. Um terceiro lugar
que no valia nada, pois s os dois primeiros O matador, de Oduvaldo Vianna Filho, e A ilha
no espao, de Osman Lins foram produzidos e exibidos. Em julho, o programa anunciou quatro
novas peas, entre elas Macab, uma verso afro-brasileira de Macbeth de Shakespeare, assinada
por Plnio em parceria com Benjamin Cattan. Ficou no anncio, pois o teleteatro no saiu do
papel. Plnio no desistiu. Encontrou numa coletnea de contos em sua casa O terror de Roma, do
escritor italiano Alberto Moravia. Fez uma adaptao em trs atos para o TV de Vanguarda, que
foi recusada. Mas, ao contrrio de Macab, que se perdeu no tempo, o conto de Mora-via seria
retomado para mudar a histria e a vida de Plnio Marcos, no ano seguinte.
FAMLIA, PARA SEMPRE PORTO SEGURO Com a morte de dona Carmlia, no dia da
estreia proibida de Reportagem de um tempo mau, e decidido a viver de teatro, o casal trocou o
Ipiranga por um apartamento no centro da cidade, na rua General Jardim, ao lado do Teatro
Aliana Francesa, onde j moravam Paulo Jos e Dina Sfat. No apartamento, no tnhamos
mveis, a mesa da sala era um caixote, lembra Walderez, s voltas ento com os cuidados ao
filho recm-nascido, Leonardo. Cuidados que dividia com Plnio, que revelou uma faceta
inesperada, a de um pai fantstico, segundo ela.
Cada filho que nascia era um grande acontecimento, uma festa. E para cada um o Plnio
inventava uma histria. Leonardo, que foi o primeiro, era o Capito. O Kiko (Ricardo) nasceu
quando as coisas estavam comeando a melhorar materialmente para ns, um ms antes da estreia
de Dois perdidos, por isso tinha em torno dele toda uma histria de boa sorte. J com a Aninha
(Ana Carmelita) foi a histria da filha mulher que ele sempre desejou e acabou vindo. Depois que
nasceu o Kiko a gente j achava que era hora de parar, mas o Plnio queria tanto uma fi lha que
acabamos fazendo mais uma tentativa, sete anos depois. Os trs, na verdade, foram planejados.
Nasceram porque a gente, conscientemente, decidiu t-los.
O relacionamento de Plnio com os filhos foi sempre de corujice explcita. O que se aplicava,
alis, a toda a famlia, um porto seguro ao qual se podia voltar, observa Walderez. E justamente
em relao famlia, ela diz, revelava-se um trao marcante da personalidade de Plnio: a
generosidade, a sua capacidade de doao em todos os sentidos, aquela coisa de ser o pai
provedor, de estar sempre atento para atender s vontades dos filhos. Isso tinha a ver com seu
profundo amor pela humanidade, que o fazia ampliar o crculo familiar, somando a ele amigos e
pessoas com quem convivia nas ruas, nos bares, na noite. Conta-se que disfaradamente ele
enfiava dinheiro no bolso de amigos que estavam na pior. Se depois esses amigos vinham
agradecer, ele desconversava:
Pensa que sou louco de pr dinheiro no bolso de qualquer um?
Era. Com os filhos, ele se desmanchava. No como um pai babo, mas se desmanchava. Sem
pieguice, sem bajulao. Um dia ele me viu tocando violo com um amigo. Olha aqui, se quer
fazer msica tem de aprender com quem sabe das coisas. E me levou para conversar com o Jos
Ramos Tinhoro. Que outro garoto, na minha idade, teve o privilgio de conhecer um cara como
Tinhoro?, recorda Leonardo, que para no ser Leonardo Barros se tornou Lo Lama, nome que o
pai ajudou a inventar. Msico, escritor e autor teatral como o pai, Lo o acompanharia depois em
palestras, tocando violo, cantando as prprias msicas. s vezes ele me fazia acordar cedo para
ir com ele nas escolas; eu resmungava, ficava puto, mas ia, meio dormindo, meio acordado.
RELAO EXPLOSIVA E TEMPERAMENTAL Nem tudo era calmaria. Ser filho de Plnio
Marcos custava mais que ter que acordar cedo vez ou outra. O seu temperamento foi motivo de
vrios atritos com Lo, que se acirraram quando o filho chegou idade adulta. O fato que a vida
de Plnio em famlia sempre foi, diz Walderez, marcada por uma relao emocional. Isso
significa que ela podia ser, s vezes, bastante explosiva, temperamental. Quebrava o maior pau
num dia e no outro o Plnio podia estar de joelhos, fazendo as pazes, abraando e beijando. Uma
famlia, enfim, como muitas, ela garante. At o fim, no Natal, reunir-se em casa com os filhos e
depois os netos para Plnio era de lei, com jantar, troca de presentes e tudo o que a festa exige.
Sem falar dos almoos de domingo, aos quais ningum podia faltar. Eles j estavam separados e a
Walderez dizia que precisava voltar correndo das viagens ao interior para preparar o almoo de
domingo, testemunhou Eduardo Tolentino de Arajo, diretor do Grupo Tapa, com o qual a atriz
excursionou no espetculo Nossa cidade, em 1989. Depois da separao, os almoos de famlia
foram transferidos para a segunda-feira e aos poucos foram rareando. Mas este outro assunto.
Da rua General Jardim, a famlia se mudou para um apartamento prprio, na rua Turmalina, no
bairro da Aclimao, adquirido na mar alta do sucesso das peas de Plnio, junto com um stio
em Ribeiro Pires, na Grande So Paulo. Dez anos depois, em 1977, eles foram para outro
endereo, na rua Picarolo, em elegante prdio atrs do Museu de Arte de So Paulo, comprado
com a venda do imvel da Aclimao e do stio.
Com os padres razoveis de uma famlia de classe mdia, Lo e Kiko puderam frequentar,
desde pequenos, escolas particulares. A primeira e mais marcante, a Carrossel, na rua Marqus de
Paranagu, por indicao da atriz Marlene Frana, que tinha o filho Andr Hiplito Matarazzo
matriculado l. Em pouco tempo a escola se tornou a preferida da gente de teatro. Estudavam nela
o Denis, filho de Etty Fraser e Chico Martins; o Hiran, da Irene Ravache; as filhas de Lauro Csar
Muniz; Jlia Lemmertz, fi lha de Lilian e Lineu Dias; Maria Clara, da Cacilda e do Walmor; e
Marcelo, filho de Terezinha Sodr e Carlos Alberto Torres.
Mas, por muito pouco, Leonardo e Kiko no tiveram de sair da escola. Walderez s soube do
ocorrido tempos depois: A dona era uma mulher excepcional, dona Carminha, cujo sobrenome eu
no consigo lembrar. Quando os meninos estavam na pr-escola, com a represso poltica no auge,
um grupo de pais de alunos se reuniu com a direo para pedir que os filhos do Plnio Marcos
fossem expulsos. Afinal, eles diziam, onde j se viu um autor de peas cheias de palavro... Dona
Carminha ps todo mundo pra correr, dizendo que no admitiria aquilo na escola dela e quem no
estivesse satisfeito que tirasse o filho de l, porque ela jamais expulsaria os meninos s pelo fato
de ser filhos de quem quer que fosse.
Entre o fim da infncia e o incio da adolescncia de Lo e Kiko, quando eles j estavam no
Colgio Palmares, a barra pesou para a famlia. Plnio perdeu a grana que recebia como
colaborador na imprensa, as suas peas continuavam proibidas, as possibilidades de trabalho,
reduzidas. Partiu para a literatura, editando seus prprios livros, que vendia em palestras e depois
nas ruas e portas de teatro. Tempos difceis, sobre os quais ele refletiu antes de morrer:
Graas a Deus, tenho o orgulho de dizer para os meus filhos que nunca, em tempo algum, eu
os usei como desculpa para no participar da vida. Nunca me privei de porra nenhuma, de viver a
minha vida por causa deles, alegando a existncia deles como desculpa para no participar. Tem
gente que vive alegando que mulher e filhos so o estorvo deles. Eu, no. Por isso que eu gosto
deles pra caralho. Nunca deixei eles me encherem o saco por isso. Walderez e eu tnhamos na
conscincia que a melhor coisa era a gente no ter lastro. A eu posso ficar fluido, no preciso
estar preso a nada. Tenho que ser como a gua, fluido. Vou pra c, vou pra l. Eu sou o esprito,
sou fluido, no estou preso. Ento, tudo que era excesso, a gente dava. Sempre demos tudo, porque
no precisvamos, tnhamos demais. Tnhamos casa, a Walderez tinha carro, as crianas estavam
na escola. De que mais precisvamos?
Com algumas separaes temporrias, o casamento com Walderez de Barros durou at o incio
de 1984, 21 anos. Bem antes, em 1977, ao se mudarem da casa na Aclimao para o apartamento
na Bela Vista, ela j sentia que o relacionamento balanava. A bem da verdade, eu nunca tive uma
relao tranquila com o Plnio, admitiu depois. Sempre me senti segura no sentido de tribo, que
nunca perdemos. Todos que o conheceram e tiveram uma relao afetiva com ele sabem que o
Plnio era uma pessoa em quem se podia confiar absolutamente. Tornava-se amigo para sempre.
Falo amigo como poderia falar amante. Valia tambm para as suas relaes com as mulheres. Por
isso, mesmo depois da separao, eu sabia que podia contar com ele, como ele contava comigo.
Verdade. Ele se orgulhava de Dereca, que era como tratava Walderez em famlia. Convencido
de que o fato de ser casada com ele criou para ela dificuldades na carreira, vivia dizendo que foi
a atriz mais proibida do teatro brasileiro. Por ela bateu boca com crticos e at com amigos.
Lauro Csar Muniz se lembra da nica vez em que Plnio se alterou com ele, no Gigetto. Nem foi
exatamente comigo. Foi com a televiso e todos os autores de novela. Voc e seus amiguinhos da
TV Globo s escalam a mesma corriola de sempre e no chamam uma das melhores atrizes deste
pas, que a Walderez, ele dizia.
E quando ela fez sucesso em O rei do gado, em 1996, Plnio estufava o peito:
Deram-lhe um papel de merda na novela e ela foi crescendo, crescendo, e no final era uma
das protagonistas.
Quanto vida pessoal e afetiva, ele reservava o silncio. O jornalista Quartim de Moraes,
autorizado por Plnio, comeou em 1991 a pesquisar e levantar depoimentos para uma biografia.
Trabalho sem pressa, minucioso. Dois anos depois, quando ele insinuou perguntar sobre suas
namoradas, Plnio terminou a conversa. No quis mais saber da biografia. Quartim parou o
trabalho e o material coletado, incluindo depoimentos, foi para a gaveta. Ele s o desengavetou
agora, para servir generosamente a esta biografia. Seja feita a sua vontade, Plnio. Walderez, que
nunca ignorou as aventuras do companheiro, tem igual discrio sobre o perodo em que estiveram
casados.
Eu tenho trs filhos, quatro netos, um enteado, o Tiago, filho da Vera, que so pessoas de
muita generosidade!
Foi o que Plnio disse publicamente em 1998, no Festival de Teatro de Curitiba. Era assim,
certamente, que escreveria em sua biografia. Faltou um filho, ento com 27 anos, nascido no Rio
de Janeiro de breve relao com uma atriz. Plnio no o nomeou. Me e filho tambm preferem
ficar margem dessa histria de vida. Assim seja.
CENA V
PARA ESTREAR TIVE QUE PAGAR 70% DA BILHETERIA OU ENTO NO ESTREAVA. CLARO, SE EU FOSSE
DO PARTIDO...
O TEATRO DE ARENA TEM UM VIGIA QUE ESCREVE PEAS? ORA, TENHO MAIS O QUE FAZER...
ESTE JOVEM AUTOR NO UMA PROMESSA; UMA CERTEZA. VAI SER DURO TIR-LO DE TITULAR. O
MOO BOM DE BOLA.
No incio de 1966, se as portas do teatro no se abriam, as da televiso tambm no ofereciam
muito futuro para os textos de Plnio Marcos. Com um filho para criar e outro a caminho, para
pagar as contas ele se contorcia mais que me de porco-espinho na hora do parto, como gostava
de dizer. De uma coisa tinha certeza, sua vocao era o teatro e dele que deveria viver. S no
podia ficar esperando a oportunidade aparecer. Precisava cri-la. Pensou ento em uma pea com
poucos personagens, dois no mximo, cenrio e figurinos que exigissem custo zero. Pegou Os
fantoches, que, apesar da recepo nada calorosa que recebera de Patrcia Galvo, havia
continuado apresentando onde podia. Fez nova verso, deu o ttulo de Chapu sobre
paraleleppedo para algum chutar, mandou o texto para a Censura e, enquanto esperava a
autorizao, comeou a ensaiar em fevereiro. Perdeu seu tempo. Em 29 de abril, saiu a deciso do
censor proibindo a pea. No seu parecer, o censor Geraldino Russomano escreveu que levou em
conta somente o tema a ser censurado, sem cogitar se o autor famoso ou no, ou se
principiante ou veterano. E o autor, um desconhecido que, nas suas prprias palavras, brigava
sozinho e no conseguia nem o apoio da classe teatral, no tinha com quem chorar as pitangas.
Segurando-se como podia at em fio desencapado, Plnio aceitou convite de Augusto Boal e
Gianfrancesco Guarnieri para administrar a temporada do espetculo Arena conta Zumbi a ser
feita, em agosto, em Porto Alegre, no Teatro Leopoldina. Uma pessoa maravilhosa, um cara
simptico e muito engraado, foi a primeira impresso que ele provocou na atriz e cantora
Marlia Medalha, conforme depoimento a Izaas Almada. Marlia contou: Ele vivia no nosso
quarto. Jogvamos cartas e falvamos de diversos assuntos. Eu me lembro de que a Dina Sfat
ganhou de presente um livro que falava da responsabilidade sexual da mulher e me sugeriu que o
lesse tambm. Depois, conversamos com o Plnio sobre o assunto, falamos de orgasmo, enfim, de
tudo o que uma jovem como eu imaginava que fosse a liberdade.
O que Marlia Medalha e Dina Sfat no sabiam que Plnio Marcos aproveitara aquele ms em
Porto Alegre para retomar a adaptao para teleteatro do conto O terror de Roma, de Alberto
Moravia, recusada no programa TV de Vanguarda.
O conto sobre dois bandidos que barbarizam a Roma do ps-guerra e que se confrontam na
disputa por um par de sapatos. Plnio deixou de lado Roma e o terror do conto. Aproveitou a
disputa do pisante novo. Buscou na vivncia pessoal dois homens dividindo um quarto miservel
de penso e as suas agruras. Um som irritante de gaita de boca atrapalhando o sono do parceiro.
Um par de pisantes lustrosos fazendo crescer o olho gordo da inveja. Um revlver para se
defender. E uma linguagem crua, sem fi ltro literrio, viva, saindo diretamente dos guetos imundos
da cidade grande para o palco. Dois personagens que nunca tiveram, at ento, acesso ao palco,
mesmo nos textos mais contundentes da nova gerao de dramaturgos que comeou a despontar no
fim da dcada de 1950. Sem piedade. Sem autopiedade. No dois marginais. Dois marginalizados,
o que muito diferente. Dois homens que no haviam merecido sequer um olhar. De ningum. Nem
do teatro. Em nada parecidos com os operrios de Guarnieri, tampouco com a gente como a gente
de Roberto Freire, nem com funcionrios pblicos de Nelson Rodrigues, sem o lrico amor de
Orfeu de Vinicius de Moraes.
De repente, era como se o teatro e o pblico olhassem pelas frestas de um universo humano
ignorado pelos interesses literrios, estticos e polticos da poca. Ali estavam dois homens de
quem no se podia esperar nenhum gesto de revolta, nenhuma possibilidade de transformao de
uma sociedade de classes. At porque eles no pertenciam a nenhuma. Sociedade ou classe.
Viviam da mo para a boca. Perdidos. Sem passado. Sem futuro. Sonhos limitados a uma noite.
Suja.
Pois , o analfabeto olhou para onde ningum queria olhar. Como em Barrela, olhou e comoveu-
se com os homens sem rosto, sem eira nem beira. Tambm no pedia piedade, nem chorava por
eles. Apenas lhes deu passagem e voz para gritar uma existncia chula com palavras chulas. No
havia ainda a praga do politicamente correto. Mas, para a esquerda mais ortodoxa e a direita mais
raivosa, no podia haver nada mais incorreto politicamente que expor aqueles Dois perdidos
numa noite suja que no levavam a lugar nenhum. Apenas incomodavam. No porque falassem
palavres. Mas porque falavam. E a eles at ento no era dado esse direito.
Como aconteceu com Barrela e Macab, Plnio escreveu mo, como sempre, a nova pea, que
Walderez de Barros datilografou. E saiu procura de algum disposto a encen-la.
DOIS PERDIDOS E RONCOS DE BBADO Quem se atreveria a colocar no palco uma pea
de linguagem to agressiva e de um autor que j no contava com a tolerncia da Censura e
desconhecido do pblico? Um dos primeiros que procurou foi o velho amigo Fauzi Arap, mas
comeou errado a conversa. Disse que tinha escrito uma pea pra ganhar dinheiro e queria que ele
a dirigisse. Fauzi ficou na bronca, por achar que Plnio via nele algum interessado em ganhar
dinheiro. Para jovens politizados e cheios de ideais, aquilo soava quase como uma ofensa. Fauzi
nem quis ler a pea. Assim, como ningum se interessava pelo texto, Plnio concluiu que poderia
fazer ele mesmo um dos personagens, Paco. Precisava de um ator que se aventurasse com ele no
papel de Tonho, formando a dupla de dois farrapos humanos, ligados por uma relao complexa
de companheirismo e inimizade, de dio visvel e tambm, quem sabe, de afeio subterrnea,
segundo o crtico Dcio de Almeida Prado. Plnio convidou Ademir Rocha, ator formado pela
EAD e contratado da TV Tupi, que topou a parada. Outro amigo da Tupi, Benjamin Cattan, deu uns
toques e assinou a direo do espetculo. Embora no ostentasse um currculo precioso como
diretor de teatro, Cattan tinha nome respeitvel pelo seu trabalho no TV de Vanguarda. Depois, o
ator Paulo Jos, recm-chegado de Porto Alegre, entrou na ficha do espetculo como cengrafo.
Na real, Plnio e Ademir ensaiaram pegando objetos de cena na TV Tupi.
Por sorte, o texto caiu nas mos de um censor amigo. Censor amigo? Pois . Havia uma ave rara
chamada Joo Ernesto Coelho Neto, da famlia do escritor homnimo, que fez teatro amador nos
festivais de Paschoal Carlos Magno e tinha uma cultura muito acima da mdia dos censores. Ele
liberou o texto sob a condio de assistir a um ensaio para autorizar a estreia, como mandava a lei.
Consta, pelo menos a verso que Plnio consagrou, que o tal ensaio para a Censura foi feito l
mesmo, num canto dos estdios da TV Tupi, com dois caixotes servindo de cenrio. Sim, porque
ele nem sabia ainda onde apresentar a pea. No tinha dinheiro para alugar teatro e nenhum teatro
se arriscaria em um texto como aquele.
Pea ensaiada, com certificado da censura, e agora? Entre as pessoas procuradas por Plnio, o
diretor Emlio Fontana sugeriu que ele falas-se com a gerente do espao em que se apresentava
Zoo Story, de Edward Albee, com Raul Cortez e Lbero Rpoli Filho dirigidos por Emlio. A
gerente era uma estudante chamada Lulu Librandi, a quem o engenheiro Joo Carlos Meirelles
entregara a tarefa de administrar o Ponto de Encontro na Galeria Metrpole, na avenida So Lus.
O lugar estava entrando na moda. Uma mistura de livraria, loja de discos, galeria de arte e, no
subsolo, um bar com pequeno palco para shows e peas de bolso, onde o mmico Ricardo
Bandeira se apresentava de vez em quando. Em frente Biblioteca Mrio de Andrade e praa
Dom Jos Gaspar, cercada de bares, a Galeria Metrpole virara point, com bares, restaurantes,
cinema, livrarias, lojas, agncias de viagem, casas de ch. A cidade ainda no havia se espalhado
para a periferia dos jardins, o centro reunia todas as tribos, e nem se ouvia falar ainda de shopping
center.
Plnio acertou com o Ponto de Encontro a apresentao de Dois perdidos numa noite suja, na
esperana de que algum crtico, jornalista ou dono de teatro fosse assistir. O pequeno palco foi
cedido por trs noites, num final de semana antes do Natal. Na falta de equipamentos, tomaram-se
emprestados da TV Tupi refletores e as duas camas do cenrio.
A estreia na noite de sexta-feira, 16 de dezembro de 1966, reuniu na plateia cinco pessoas:
Walderez, Cidinha (Maria Apparecida Giuliano), mulher de Ademir, a irm de Cidinha, o mdico
e escritor Roberto Freire e o ator Carlos Murtinho, irmo da atriz Rosamaria. Ah, e um bbado,
que roncou o tempo todo e no pde ser retirado porque era o nico pagante. Quando roncava
muito alto, Plnio dizia que era do cara que morava no quarto ao lado.
O mdico Roberto Freire, que se tornou amigo e confi dente de Plnio (ns falvamos coisas
pessoais um para o outro, que no falvamos com mais ningum), cuja vocao literria fora
inibida pela famlia, era nome conhecido e respeitado no meio teatral. Clo e Daniel, seu romance
de estreia, foi leitura obrigatria dos adolescentes daquela e de outras dcadas. Suas peas,
porm, no faziam o mesmo sucesso. Aproximou-se do teatro ao ser premiado pela Unesco em
1953 com uma bolsa no College de France, em Paris, onde estava tambm, pesquisando e
estudando, um jovem crtico mineiro, Sbato Magaldi, a quem ele acompanhava nas entrevistas
com artistas e tericos e nas idas ao teatro. Graas a Sbato, Roberto ficou amigo de Alfredo
Mesquita, que vira e mexe aparecia em Paris. Ao voltar a So Paulo, ele recebeu convite de
Alfredo para dar atendimento mdico e aulas de psicologia aos alunos da Escola de Arte
Dramtica, ento instalada numa casa na rua Maranho.
Duas das alunas na EAD, Ruthneia de Moraes e Assunta Perez, precisando de um texto para as
provas finais, pediram que ele lhes escrevesse uma pea. Apanhado de surpresa, Roberto Freire
fez Quarto de empregada, para espanto geral. E dele prprio, que nunca se imaginou um
dramaturgo. No dia da estreia, ao chegar ao Teatro Joo Caetano, na rua Borges Lagoa, na Vila
Mariana, Alfredo Mesquita o esperava com a m notcia: a pea estava proibida pela Censura. A
apresentao foi a portas fechadas, para convidados, como exame final de curso das atrizes. Era
dezembro de 1959. Um ms antes a Censura havia proibido em Santos a pea de Plnio Marcos,
Barrela, mas ningum em So Paulo ficou sabendo.
Na sequncia, Roberto Freire escreveu mais duas peas, Gente como a gente e Sem entrada e
sem mais nada, e algumas adaptaes para a televiso. Participou ativamente da criao do Teatro
da Universidade Catlica (Tuca), que encenou Morte e vida severina, de Joo Cabral de Mello
Neto, com msica de Chico Buarque de Hollanda, e O&A, uma experimentao formal de texto e
linguagem cnica para a qual fez o roteiro. Integrou uma corrente poltica de esquerda, a Ao
Popular (AP), nascida a partir da Juventude Universitria Catlica (JUC) e prxima dos frades da
Igreja de So Domingos, no bairro de Perdizes. No abandonou, porm, a vocao de cientista,
mdico e psiclogo, a que se dedicou at morrer, em 2008.
Depois de ver Dois perdidos no Ponto de Encontro, Roberto Freire saiu direto para o
restaurante Gigetto, a poucos metros dali. Entrou no casaro da rua Nestor Pestana ainda
emocionado. A primeira pessoa que procurou foi o crtico Alberto DAversa, insistindo para que
fosse ver a pea do vigia do Teatro de Arena. DAversa foi na noite seguinte. Encantou-se.
Reconheceu a influncia de Alberto Moravia, mas no tinha dvida. O estilo de Plnio era s dele.
At porque, como observou Roberto, ele no saberia fazer de outro jeito.
DAversa recorreu a Brecht, Shakespeare e Jorge Luis Borges para contestar quem pudesse ver
na inspirao de Moravia uma diminuio de Dois perdidos numa noite suja:
Conheo Moravia, escreveu no Dirio da Noite. Ele, que tanto ama o teatro e que nesse
nunca deu certo, acho que agradeceria e admiraria esta pea de Plnio que soube dar vida a um
esquema literrio de modesta importncia, dando-nos uma pea bem brasileira. O crtico observa
que o conto desapareceu e no seu lugar nasceu uma pea nova e original, de uma originalidade
eminentemente teatral, ou seja, baseada sobre a novidade da linguagem, a preciso dos golpes de
cena e dos ns dramticos, a temperatura das situaes, a efi ccia das personagens, a credvel
possibilidade da fbula. Mritos exclusivos de Plnio Marcos. Este jovem autor no mais uma
promessa; uma certeza. Vai ser duro tir-lo de titular. O moo bom de bola. Dois perdidos
numa noite suja, sem dvida a pea mais inquietante e viva destes ltimos e anmicos anos de
teatro brasileiro.
ARENA COBRA 70% DA BILHETERIA Plnio Marcos resumiu assim a histria da estreia
de Dois perdidos numa noite suja no Ponto de Encontro:
A Nydia Lcia, muito minha amiga, foi quem me emprestou os cinquenta mil-ris pra montar a
pea. O Buco (Carlos Andr Bucka), outro amigo, outro dinheirinho. O pessoal da tcnica da
Tupi ajudou a gente a afanar refletores, os praticveis, as camas e tudo aquilo de que
precisvamos para o cenrio. O transporte foi feito pelo pessoal da garagem. O Toninho Mattos e
o Paulinho Ubiratan, depois diretor da Globo, operavam luz e som. Cinco pessoas foram assistir
estreia: a Walderez, o Carlos Murtinho, a mulher do Ademir, um bbado que no quis sair porque
aquilo l era um bar, e o Roberto Freire, que comeou a fazer uma onda em torno, dizendo que a
pea era muito boa, e eu voltei a ser notcia como autor teatral. O Alberto DAversa escreveu
cinco artigos sobre a pea. Fiquei na moda. A Cacilda Becker, quando viu, comentou: Incrvel!
Voc conhece dez palavras e dez palavres, e escreveu uma pea genial. Dois perdidos foi
liberada porque naqueles dias a Censura passou da polcia estadual para a federal. E mudaram os
censores. Mandaram o Coelho Neto assistir ao ensaio. Homem de teatro, diretor de peas. Foi da
comisso julgadora do Festival de Santos, quando a Barrela se consagrou. Numa tarde de sbado,
chuvosa e fria, num estdio abandonado da Tupi, sem cenrio, eu e o Ademir, sentados em bancos
velhos, falamos o texto pra ele. Quando acabamos, ele liberou o texto sem cortes.
Depois das trs apresentaes no Ponto de Encontro, Ademir Rocha voltou a procurar Roberto
Freire. Precisava que ele os ajudasse a conseguir o Teatro de Arena para algumas sesses de Dois
perdidos.
Falem com o Augusto Boal.
J falamos.
E?
O Boal disse no.
Por qu?
Por preconceito, diria depois Roberto Freire. Na poca ele ficou puto com Boal, que acabou
cedendo. Por insistncia de Roberto e talvez por presso do Jos Renato e do Gianfrancesco
Guarnieri. Certo, Boal cedeu, mas cobrou caro por isso. Muito caro. Setenta por cento da
bilheteria bruta do espetculo, para ver se a gente desistia, imagina Walderez. Setenta por cento?
No sobra nada para a produo e para os atores! A maioria dos teatros cobra 20, 25 por cento!
Era pagar ou largar. Plnio pagou. Conseguiu uma grana com a atriz Nydia Lcia, para quem havia
trabalhado vendendo espetculos para escolas. Nydia Lcia, que estava longe de ser uma mulher
de esquerda, ajudou a bancar a temporada de Dois perdidos no Teatro de Arena, onde Plnio era,
diz Lauro Csar Muniz, pau pra toda obra. Literalmente. Como vigia, administrador e batendo de
frente com censores que tentaram impedir a estreia de Arena canta Bahia, como se ver adiante.
Nelson Rodrigues seria mais impiedoso, ao escrever que seus companheiros o suportavam
como administrador, secretrio, gerente, bilheteiro, como dramaturgo jamais. Para ele, foi uma
fatalidade Plnio ter comeado no Teatro de Arena: Se o no to jovem autor ainda l estivesse,
continuaria virginalmente indito. Sim, no teria uma vrgula encenada. At que, um dia, apanhou
um original seu e foi represent-lo num boteco. E o pblico de paus-dgua, gigols,
contrabandistas e senhoras indignas foi muito mais generoso e solidrio do que o Teatro de Arena.
Ali comeou a glria exagerou deliciosamente Nelson Rodrigues, pois o Ponto de Encontro na
fervilhante e sofisticada Galeria Metrpole estava longe de ser o cenrio por ele descrito.
Plnio, entretanto, nunca se queixou. Mesmo quando repetiu essa histria dois anos antes de
morrer:
As pessoas de partido se ajudam. Se voc no de partido... Eu, pra estrear Dois perdidos
no Teatro de Arena, que era ligado esquerda, tive que pagar 70% da bilheteria, seno no
estreava em teatro. Essas coisas aconteciam. Claro, se eu fosse de partido... Ou se eu fosse de
igreja, me aparecia pelo menos uma hstia. O que vinha de ajuda era espontneo, de pessoas que
diziam vai l, mete bronca...
Plnio meteu bronca e aceitou as condies. Pior, era final de ano, a estreia no Teatro de Arena
seria no dia seguinte ao Natal, 26 de dezembro, uma segunda-feira. Quando nos liberaram o
espao, conta Walderez, topamos com um piano de cauda no meio da arena e fomos informados
de que a despesa com a remoo seria por nossa conta. Custava uma nota. Resultado, o piano de
cauda ficou l mesmo, encostado na parede do fundo, e passou a fazer parte do cenrio. Um piano
de cauda num quarto de penso vagabunda. O pblico nem reparou. E se reparou, no deu
importncia.
Em dissertao de mestrado na Universidade Federal Fluminense, em 2006, que deu origem a
um livro precioso, Navalha na tela Plnio Marcos e o cinema brasileiro, Rafael de Luna
Freire joga um pouco de gua fria na fervura. Ele argumenta, com razo, que a experincia do
dra-maturgo com o CPC e com o prprio Arena, alm do convvio com seus integrantes, colaborou
para que Plnio Marcos absorvesse caractersticas de um teatro engajado, ainda que misturadas
aos traos mais autorais de seu teatro. Em outras palavras, o episdio dos 70% no diminui a
importncia do teatrinho da Teodoro Baima e seu entorno, poltico e humano, na formao teatral
de Plnio Marcos.
Quando, porm, na expectativa de ser aceito, o autor tentou corresponder a essa influncia, com
textos de motivao ideolgica e at panfletria, percebeu depressa que no estava a a fora do
seu melhor teatro. Escreveu, ento, Dois perdidos na contramo de um perodo em que, diziam
Roberto Freire e Alberto DAversa, o teatro sofria de certa anemia, repetindo frmulas e
discursos. Da a surpresa e o espanto que provocou.
Nessa ocasio, o Ncleo 2 do Teatro de Arena encenava a pea de Chico de Assis, Farsa de
cangaceiro com truco e padre, sob a direo de Afonso Gentil. No elenco de ilustres
desconhecidos, a crtica de Dcio de Almeida Prado reconheceu Antonio Fagundes como um ator
promissor e limitou-se a citar os demais atores. Entre eles, Carlos Costa, um negro bom de bola,
bom de samba e ator apenas esforado, que saiu da Vila Maria para um curso de teatro com Emlio
Fontana e, dali, para um teste no Arena. Foi l que conheceu Plnio Marcos. Carlos Costa, Carlo
da Vila ou simplesmente Carlo, tinha sido um dos poucos a ver Dois perdidos no Ponto de
Encontro. Ficaram amigos. Para a vida inteira. De futebol, de samba, de teatro, de estrada. De
vida, almoos em famlia, bares, botecos e puteiros do interior. Feito a corda e a caamba. Sua
lembrana:
Um dia o Plnio falou se eu no queria vender a pea para escolas. Topei e comecei a vender,
vendia feito gua, prometendo que depois haveria debate com o autor. Era espetculo de manh, de
tarde e de noite, com um papo do Plnio com os estudantes. Vendia tambm para cidades do
interior. Vendia muito. Ele chiava, dizia que eu estava querendo matar ele de tanto trabalhar.
DO CENTRO DA CIDADE ZONA SUL A de Carlos Kroeber no foi a nica negativa que
Fauzi Arap e Nelson Xavier ouviram. Procuraram todos os teatros do Rio de Janeiro e em todos
tiveram recusa. Podiam pelo menos pedir 70% da bilheteria, como aconteceu em So Paulo. Mas
nem isso. O que fazer? Antonio Bivar, que ainda no se lanara autor de teatro e era aluno de
Barbara Heliodora, tentava se incorporar dupla, fazendo qualquer coisa para ajudar. Foi dele a
ideia de estrear Dois perdidos numa noite suja no Teatro Nacional de Comdia, TNC (depois
Teatro Glauce Rocha), que pertencia ao Servio Nacional do Teatro, ento presidido por Barbara
Heliodora. A localizao, no centro da cidade, no era das melhores, mas no havia escolha.
Combinado: se conseguisse o TNC, Bivar estaria empregado como divulgador. Ele conseguiu.
Barbara Heliodora no se lembra de pessoalmente ter assinado a cesso do teatro, embora
considere Dois perdidos o grande momento da obra de Plnio Marcos, ao lado de Navalha na
carne. Na poca ela escreveu, defendendo a pea e o autor dos censores de planto:
Outra vtima da sanha da moralidade das aparncias Plnio Marcos, cujo Dois perdidos
numa noite suja uma das obras mais pungentes e poticas que tm aparecido na dramaturgia
nacional. Obra de perfeita economia dramtica na qual no existe uma s palavra que no
contribua para a composio geral da imagem, e que a ela no se integre, constituindo um todo de
tal modo unificado, de tal modo voltado para a criao de uma viso dramtica do homem nas
condies mais extremas da existncia, que espanta que ocorra a quem quer que seja destacar
desse maravilhoso complexo esta ou aquela palavra para ser avaliada fora de seu contexto.
A estreia de Dois perdidos numa noite suja no Teatro Nacional de Comdia foi um
acontecimento. Martim Gonalves, em O Globo, escreveu que Plnio Marcos senhor de um dos
dilogos mais vivos e mais cruis do teatro nacional, apostando que ele chegar a ser um preo
duro para o nosso Nelson Rodrigues. O sucesso de crtica e de pblico levou a temporada do
centro da cidade para a Zona Sul, no Teatro Opinio, onde ficou meses a fio.
Os atores, que tinham decidido reduzir os dias de pea porque estavam cansados de trabalhar de
tera a domingo, passando a uma temporada de quinta a domingo, agora como produtores de um
sucesso, tiveram de mudar os planos. Fauzi ainda tentou resistir. Em vo: Brigamos bastante,
principalmente porque havamos comeado com aquela coisa de trabalhar menos, e o Nelson me
obrigava a fazer o espetculo desde tera. Acabou virando meu patro. Mas nos tornamos grandes
amigos.
Meses depois eles estavam juntos novamente, em Navalha na carne.
SEGUNDO ATO
1967 - 1985
Da navalha
luz de um
abajur lils
Subitamente, em 1967, Plnio Marcos saiu do anonimato. Na pegada de Dois perdidos, todos
queriam uma pea dele. Casado com Walderez de Barros e com os filhos Lo e Kiko pra sustentar
Aninha s chegou em 1973 , ele no se fez de rogado. Papel e caneta na mo, escrevia assim
e em letra de forma, aprontou de uma tacada trs novos textos e mexeu em um antigo ao qual deu o
ttulo Quando as mquinas param. Dar ttulo s peas era outra qualidade dele, como as novas
confirmavam: Navalha na carne, Homens de papel e Dia vir que mudou para Jesus homem. Das
trs, Navalha provocou o maior susto, com uma narrativa curta (em cena, no mximo cinquenta
minutos) e grossa (os palavres jorravam com assustadora poesia). Quem comeou a ir ao teatro
em 1967 no tinha do que se queixar: viu nascer de novo o teatro brasileiro com Plnio Marcos,
escreveu Flvio Rangel. As peas no rompiam s a linguagem e as convenes teatrais.
Assanhavam o furor predatrio da Censura. A batalha para liberar Navalha sintetizou as aes
objetivas da gente do teatro, que se uniu em defesa da liberdade de expresso, quando o pas
chafurdava no autoritarismo da aliana civil-militar no poder. No primeiro momento, a represso
cedeu. Por pouco tempo. Logo vieram as prises, a violncia fsica contra o teatro e a censura
implacvel. Plnio Marcos se tornou alvo preferencial da ditadura. Bastava o seu nome como autor
para um texto ser proibido. O abajur lils, que sem sutileza denunciava a tortura e o autoritarismo,
provocou a mais longa batalha judicial e pblica de um escritor contra a Censura. Foram dez anos,
em que Plnio mudou de emprego mais que de camisa, na imprensa, na televiso, no palco com
sambistas ou em palestras - shows para estudantes. Defendeu-se, principalmente na literatura,
editando os prprios livros que vendia de mo em mo. Resistiu at que, aos primeiros sinais de
uma luz no fim do tnel com a liberao de Barrela e O abajur lils, juntou-se a um grupo de
artistas, a maioria desempregada, para criar O Bando. Durou pouco. Enquanto os militares
preparavam sua sada de cena e o pas se animava com a volta da democracia, Plnio Marcos
estava de novo sozinho, diante de uma histria pessoal que precisava continuar a ser escrita. Como
sempre, a qualquer custo. Agora, tambm, ao custo de um enfarte.
LINHA DO TEMPO
1967 - 19 de junho, Navalha na carne proibida.
- 3 de julho, Cacilda Becker promove ensaio da pea e inicia movimento pela sua liberao.
- 10 de julho, no Rio, polcia probe ensaio de Navalha na carne, que transferido para a casa de Tnia Carrero.
- 17 de agosto, a pea liberada para maiores de 21 anos.
- Em setembro, estreia em So Paulo Dia vir (Jesus homem).
- 11 de setembro, Navalha estreia em So Paulo e, em outubro, no Rio.
- 12 de outubro, estreia Homens de papel e, no dia 14, Quando as mquinas param.
1968 - 11 de fevereiro, greve de teatros de So Paulo e Rio contra a Censura.
- 13 de maro, Censura impede estreia de Barrela.
- 5 de junho, estreia a Ia Feira Paulista de Opinio.
- 21 de junho, artistas devolvem trofus Saci ao jornal O Estado de S. Paulo. 19 de julho, Comando de Caa aos
Comunistas agride elenco de Roda-viva. Plnio comea a escrever crnicas no jornal ltima Hora.
- 4 de novembro, estreia na TV Tupi a novela Beto Rockfeller.
- 13 de dezembro, entra em vigor o AI-5, Ato Institucional n 5.
1969 - 26 de maio, Plnio vai com Dois perdidos em Santos e preso.
- 14 de junho, morre Cacilda Becker.
- 21 de junho, morre o crtico e diretor Alberto DAversa.
- 14 de agosto, Dois perdidos proibida.
- 12 de outubro, represso invade congresso da UNE Unio Nacional dos Estudantes em Ibina e prende oitocentos.
- 26 de outubro, CCC e policiais invadem a Faculdade de Filosofia da USP, na rua Maria Antnia.
- 8 de dezembro, estreia na TV Tupi a novela Joo Juca Jnior.
1970 - 6 de maro, no Rio, pr-estreia do filme Navalha na carne.
- Plnio escreve duas novas peas, O abajur lils e Balbina de lans.
1971 - 8 de janeiro, estreia Balbina de lans em So Paulo.
- 22 de maro, estreia o filme Dois perdidos numa noite suja.
- Plnio participa da novela Bandeira 2 na TV Globo.
1972 - TV Globo exibe Histrias de subrbio, de Plnio Marcos.
- Em fevereiro, a Banda Bandalha abre carnaval paulistano.
- Nova montagem de Quando as mquinas param, com Tony Ramos e Walderez de Barros.
- 8 de dezembro, Nen Bandalho proibido no Festival de Cinema de Braslia.
1973 - TV Tupi lana A volta de Beto Rockfeller.
- Estreia no TBC Humor grosso e maldito das quebradas do mundaru.
- Filmagem de A Rainha Diaba, baseado em conto de Plnio.
- 12 de maio, nasce a filha Ana Carmelita.
1974 - Plnio conhece Samuel Wainer, criador do jornal ltima Hora.
1975 - 15 de maio, Censura impede estreia de O abajur lils.
- 25 de outubro, Vladimir Herzog assassinado no 2 Exrcito.
- 12 de novembro, Ballet Stagium dana Navalha na carne com o ttulo Quebradas do mundaru.
1976 - Abril, reestreia Humor grosso e maldito das quebradas do mundaru.
1977 - 27 de maio, estreia Noel Rosa, o poeta da Vila e seus amores.
1978 - Jornal Movimento publica o esquete Ai que saudades da sava.
1979 - 1 de janeiro, revogado o AI-5.
- Em fevereiro, estreia Feira livre no Rio.
- Em maio, estreia Sob o signo da discoteca em So Paulo.
- 31 de maio, Plnio depe em Simpsio sobre a Censura, na Cmara dos Deputados.
- 28 de junho, estreia Orao para um p de chinelo no TBC.
- Em dezembro, nasce O Bando em sesses clandestinas de Barrela.
1980 - Em julho, estreia O abajur lils em So Paulo, direo de Fauzi Arap.
1982 - O Bando se dissolve; Plnio cria grupo de estudos esotricos.
1984 - Termina o casamento com Walderez de Barros.
1985 - Em outubro, Plnio sofre enfarte e socorrido no Hospital das Clnicas.
CENA VI
APANHAVA-SE PLNIO MARCOS COMO, OUTRORA, A FEBRE AMARELA, A PESTE BUBNICA, A BEXIGA E
A ESCARLATINA.
A GRIA A NICA LINGUAGEM QUE ELE CONHECE E DOMINA, A NICA CAPAZ DE EXPRIMIR O SEU
PENSAMENTO COM VIGOR E NATURALIDADE.
UMA PEA ESCRITA EM TRS NOITES No incio de 1967, embalado pela repercusso de
Dois perdidos, Plnio concluiu em trs noites uma nova pea, Navalha na carne. Retomou
Enquanto os navios atracam, que, retrabalhada, recebeu novo ttulo, Quando as mquinas param.
Escreveu Homens de papel e, por encomenda do diretor Odavlas Petti para as alunas do Colgio
Des Oiseaux, Dia vir, rebatizada depois como Jesus homem. A que mais chama a ateno
Navalha na carne, entregue ao Grupo Unio recm-formado por Joo Jos Pompeo, Ruthneia de
Moraes, Edgard Gurgel Aranha, Paulo Villaa, Tereza de Almeida e Jairo Arco e Flexa, e ao qual
se integraram Walderez de Barros, Odavlas Petti e o cengrafo Clvis Bueno. O grupo procurava
um texto para estrear e, por sugesto de Fauzi Arap, bateu na porta de Plnio, que pediu alguns
dias. Quando Ruthneia, Pompeo e Villaa voltaram, ele puxou um calhamao.
Tenho uma pea com papel para vocs trs.
E leu Navalha na carne. Terminada a leitura, estavam os trs chapa-dos. Quem vai querer ver
uma pea com uma prostituta, um cafeto e uma boneca? reagiu Pompeo, ator excepcional cujo
pessimismo rendeu histrias hilrias ao folclore teatral. Ruthneia, sua mulher, que se lanou em
Quarto de empregada, de Roberto Freire, percebeu na hora o grande papel que tinha nas mos.
Para no contrari-la, preocupado com o sustento da casa, Pompeo encontrou uma sada sensata.
Enquanto a mulher se arriscava numa pea que ningum iria ver, ele continuaria ator contratado do
Teatro Popular do Sesi, com salrio e benefcios garantidos. Com Joo Jos Pompeo fora,
Ruthneia de Moraes seria a Neusa Sueli, Paulo Villaa, o Vado, e Edgard Gurgel Aranha, o
Veludo. Na direo, Jairo Arco e Flexa.
Havia um problema. A pea era curta demais. Daria uma hora de espetculo, se tanto. O pblico
se sentiria logrado e pediria o dinheiro de volta, pois o padro das temporadas teatrais exigia
peas de dois atos no mnimo como Dois perdidos numa noite suja e duas horas de durao.
Para resolver o problema, o Grupo Unio decidiu que Navalha na carne formaria um programa
duplo com a pea americana O incrvel caso do Sr. Georg, de Joe Anthony West, interpretada por
Tereza de Almeida e Odavlas Petti. E assim seguiram os ensaios das duas peas, com cenrios de
Clvis Bueno.
NO DIGA PUTA, DIGA VACA, GALINHA Tnia estava decidida em sua escolha,
disposta a assumir a causa da liberao da pea desde que o autor lhe garantisse o direito de
interpretar Neusa Sueli. Criou-se um impasse, pois Ruthneia de Moraes j fazia a personagem no
espetculo do Grupo Unio. Tnia concordou em no apresentar a pea em So Paulo, ficando
com os direitos de lev-la no Rio e no resto do pas. Acordo fechado, ela saiu a campo,
enfrentando resistncia na prpria casa, uma famlia de professores e militares, que j torcera o
nariz quando dissera que queria fazer cinema. Agora, fazer uma prostituta numa pea cheia de
palavres, era demais. Tnia relembra:
Quando eu fiz Neusa Sueli engordei oito quilos, botei enchimento no peito, um traseiro enorme,
deixei o cabelo sem pintar. As minhas rugas, que o Ivo Pitangui j tinha tirado, eu pus todas de
volta. Minha figura era uma tristeza, lamentvel. Meu irmo falou assim: Eu no vou ver, uma
vergonha. Eu era casada desde 1964 com o Csar Thedim, que ajudou a Sarah Ferez a fazer o
cenrio. Csar me aconselhava: No diga palavro, no vai ficar bem; diga vaca, galinha, piranha
em lugar de puta; eu duvido que Barbara Heliodora v gostar de ouvir voc falando essas coisas.
Realmente, a Barbara disse: Olha, fica muito pesado na sua boca, troca. Mas eu fui com a cara e
a coragem e isso que foi um espanto.
Tnia tinha conscincia da necessidade de estabelecer uma nova imagem como atriz, diferente
daquela que tantos outros tinham: Uma pessoa muito bela quando sobe no palco, tudo o que se
espera dela a perfeio. Uma feinha faz bem uma cena e todos dizem: Como talentosa, me deu
um momento de beleza. Essa, como j bela, dizem que no tem tcnica. E no h tcnica que
supere a beleza. At hoje tenho insegurana por isso. Jamais a tcnica corresponde ao grau de
beleza que a gente j transmitiu. Tanto que, quando eu me despi de todo charme, fiz mais sucesso.
E fez mesmo, em Navalha na carne. Inventou que logo na abertura da pea ela apareceria como
Neusa Sueli lavando sua calcinha na pia. De imediato dava um recado plateia sobre a
personagem que estava interpretando. Que no se esperasse dela, dali pra frente, nada menos que
aquela imagem pattica, triste, sofrida. Impressionada com o trabalho deles em Dois perdidos
numa noite suja, Tnia convidou a dupla Fauzi Arap e Nelson Xavier, entregando a este a direo.
No, quem deve dirigir o Fauzi, esse que bom diretor, disse Nelson, na lembrana de
Tnia. Na de Fauzi que aos 29 anos se despediu como ator em Dois perdidos (um brilhante
ator, sabem todos que o viram em cena) e estreou como diretor profissional em Navalha na carne
, o seu nome foi imposto pelo prprio Plnio, verso que Walderez de Barros confirma. Tnia e
Fauzi tiveram ento uma conversa reservada.
Plnio sugeriu meu nome, mas no fao nenhuma questo de dirigir a pea.
timo, porque eu tambm no quero voc.
Csar Thedim chegou, pegou essa conversa que no saa do chove e no molha, perdeu a
pacincia.
Chega de frescura e marquem logo o incio dos ensaios.
E os ensaios comearam, com a escolha de Emiliano Queiroz para o papel de Veludo. Da para
a frente, no comeo at meio empurrado pelo Plnio, acabei virando diretor sem nunca ter tido essa
ambio, diz Fauzi. Eu tinha minhas veleidades artsticas, mas no sabia bem se queria continuar
no teatro ou voltar para a engenharia, estudar psicanlise, psicologia, ou sei l o qu. Como eu e
Tnia brigamos no primeiro dia, depois no precisamos mais brigar. Tudo deu certo no trabalho.
Na estreia ela me disse que nunca mais eu dirigiria uma pea com tantos detalhes.
Fauzi escolheu a cengrafa Sarah Ferez, que fez um cenrio impressionante, depois de
pesquisar na zona de prostituio do Rio, e convidou o bailarino e coregrafo Klauss Viana, que
fez assim seu primeiro trabalho de preparao fsica de atores e, segundo Fauzi, colaborou para
que a sugesto de violncia fosse muito forte. Por ironia, Veludo, Vado e Neusa Sueli nasceram
no salo de uma igreja na praa Serzedelo Corra, em Copacabana, cedido para os ensaios.
Tempos de-pois, Fauzi se lembraria de que trabalhar com Tnia foi realmente fantstico. Por
muitas razes: Ela se revelou nos ensaios de uma juventude, de uma disponibilidade, de um
comportamento no estelar, de um companheirismo encantador. Hoje, com mais experincia, sou
capaz de acrescentar que a atriz Tnia um gnio de produtora de teatro. Uma produtora fora de
srie, que sabe vender o espetculo, que sabe escolher o elenco o Emiliano Queiroz foi escolha
dela. Foi uma dessas produes em que realmente tudo d certo, incluindo o relacionamento das
pessoas, que foi timo.
Entretanto, no foi to fcil assim impedir que a beleza de Tnia tornasse nada crvel a
decadncia fsica da sua personagem. Quando Vado pegava Neusa Sueli pelos cabelos e lhe
esfregava um espelho na cara, apunhalando -a com um voc uma galinha velha, todo mundo te
acha um bagao, era impossvel acreditar. A uma mulher como a atriz jamais faltariam fregueses.
Por mais que Fauzi pedisse para ela se enfear, no adiantava. At que Tnia convidou algumas
amigas para assistir a um ensaio. Entre elas, a atriz Djenane Machado e a crtica Barbara
Heliodora, que no fim, depois dos elogios merecidos e de praxe, foi ao ponto:
Tnia, s tem um problema. O texto diz que a personagem uma mulher acabada, decadente,
mas voc em cena est deslumbrante! Mas eu estou sem maquiagem nenhuma!
Barbara se controlou para no rir da desculpa esfarrapada. Preferiu explicar que no usar
maquiagem, no caso dela, era insuficiente. Precisava, sim, colocar umas olheiras, fazer uma
maquiagem vagabunda que envelhecesse e derrubasse a figura de Neusa Sueli, como Plnio
Marcos a escreveu. Foi ento que Tnia se convenceu e Fauzi Arap ficou agradecido a Barbara
Heliodora, j famosa por no ter papas na lngua.
EU TINHA UMA CORAGEM PESSOAL QUE A MAIORIA NO TINHA E NO DAVA ESPAO PRA NINGUM ME
INVADIR.
UMA FEIRA EM DESOBEDINCIA CIVIL Entre uma pedrada e outra, Plnio foi convidado
por Augusto Boal a integrar o grupo de autores que fariam um balano do momento poltico do
Brasil, em peas curtas, que seriam encenadas sob o ttulo geral de 1 Feira Paulista de Opinio.
Estreou em 5 de junho na Sala Gil Vicente do Teatro Ruth Escobar. Produzi-da pelo Teatro de
Arena, respondendo ao tema O que pensa voc do Brasil de hoje?, a Feira reunia seis peas
curtas: Verde que te quero verde, de Plnio Marcos; O senhor doutor, de Brulio Pedroso; A
receita, de Jorge Andrade; Animlia, de Gianfrancesco Guarnieri; O lder, de Lauro Csar Muniz;
e A lua muito pequena e a caminhada perigosa, de Augusto Boal, que tambm dirigiu o
espetculo. Seis msicas originais foram compostas para cada uma das cenas por Edu Lobo,
Caetano Veloso, Srgio Ricardo, Gilberto Gil, Carlos Castilho e Ari Toledo.
Se, artisticamente, o espetculo deixava a desejar, porque apenas Guarnieri comps uma pea
em um ato perfeitamente realizada, era impossvel, contudo, ficar indiferente vitalidade da
Feira, em que o sketch de Plnio Marcos provocava ininterruptas gargalhadas, segundo
testemunho de Sbato Magaldi. Yan Michalski escreveu no Jornal do Brasil que a cena de Plnio,
uma piada mais que uma cena, resumia-se a uma pequena charge, uma espcie de desenho em
quadrinhos transportado para o palco, mas o seu grosso e primitivo humor de uma devastadora
violncia.
A provocao comeava no ttulo da cena. Longe de remeter ao poeta andaluz Federico Garca
Lorca, o Verde que te quero verde referia-se mesmo ao verde oliva do uniforme dos militares
brasileiros. No elenco, Rolando Boldrin, Paco Sanches e Renato Consorte, que, aos peidos, fazia
do seu personagem um orangotango na chefia da Censura, com gestos, grunhidos e caminhar de um
smio. Se a inteno era debochar dos agentes da represso, chamados pela esquerda de gorilas,
Plnio no economizou na dose. Brincou at com ele mesmo. No esquete, o censor-chefe, de tanto
cortar palavres da pea desse moleque (adivinhe quem), se surpreende com a boca cheia de
palavres.
Voc v como temos razo de proibir peas com palavro. At eu, que sou um homem de
formao religiosa, me deixo influenciar, s vezes.
Ora, o senhor no faz mais do que citar um autor.
verdade. A merda que eu nunca cito Shakespeare.
(Trs dcadas depois, Plnio retomou o estilo esquete-piada quando a Folha de S. Paulo
convidou vrios autores a escrever cenas sobre a disputa eleitoral que elegeu Fernando Henrique
Cardoso presidente da Repblica. No que isso vai dar, de Plnio, era um escracho sobre todos os
candidatos e foi apresentada em outubro de 1994 no auditrio do jornal, interpretada por Lo
Lama, Oswaldo Mendes, Bruno Giordano e o prprio Plnio. Trs emissrios violentos e com ar
de mafiosos vo cobrar o Mago vidente, que havia previsto a vitria do Mestre Pron, a barbuda
figura de olhos esbugalhados, e quem venceu foi o pavo do bico comprido, deixando para trs
tambm o sapo barbudo e o dinossauro dos pampas. O Mago, autorreferncia do autor, se
defende:
Me diz uma coisa. O que fede mais, o excremento de um bode montanhs ou o excremento de
uma girafa angolana?
Sei l o que fede mais.
Pois . Vocs no entendem nem de merda e querem entender de poltica?)
Com a 1a Feira Paulista de Opinio, o Teatro resolveu medir foras com a Censura, que no se
fez de rogada. Cortou todos os textos com voracidade. O espetculo estreou sob protesto, aps
assembleia da classe teatral que decidiu realizar um acampamento de atores que permaneceria no
teatro protegendo o elenco, ao qual se reuniam tambm Aracy Balabanian, Miriam Muniz e
Antonio Fagundes. Para driblar os agentes da represso, que estariam na porta do Ruth Escobar, o
pblico foi instrudo na surdina a se dirigir ao Teatro Maria Della Costa, onde a Feira seria
apresentada sem cortes. Na noite seguinte, Cacilda Becker, presidente da Comisso Estadual de
Teatro, dirigiu-se ao pblico: A representao na ntegra da la Feira Paulista de Opinio um
ato de rebeldia e de desobedincia civil. Trata-se de um protesto definitivo dos homens livres de
teatro contra a Censura, que fez 71 cortes nas seis peas.
NA TV, DEPUTADA CONTRA A NOITE SUJA No meio de toda essa agitao, estava Plnio
em casa no final da noite de folga do teatro, segunda-feira, assistindo ao programa O quarto
poder, na TV Tupi. Walderez j tinha colocado os filhos Leonardo e Kiko pra dormir. De repente,
surge na telinha em preto e branco a deputada Conceio da Costa Neves, que tinha sido atriz com
o nome de Regina Maura. Ela era identificada pela esquerda como marchadeira assim
chamadas as mulheres que, em apoio ao golpe de 1964, saram s ruas de So Paulo nas Marchas
da Famlia com Deus pela Liberdade, contra o perigo comunista. Mas dessa vez o discurso da
deputada era contra o teatro. Contra Roda-viva, a que ela assistira, e contra os palavres que
sujavam os palcos e as noites da cidade. So Paulo no quer uma noite suja, quer uma noite limpa!
ela esbravejou. Plnio se enfureceu, pegou um txi e se mandou para o estdio da televiso.
Chegou arrepiando, conforme seu relato revista Caros Amigos.
Escuta aqui, vagabunda, por que tu no vai assistir antes de falar? Quem voc? Sou o
autor da pea que voc est descascando. E os caras: Sai daqui, Plnio, no sei o que..., aqueles
velhos l da Tupi, o caralho. A foi uma discusso. Sai. Eles tinham capanga. Vieram uns
capangas, o pessoal da televiso veio de porrete pra me defender. Foi aquele tumulto.
O Dirio da Noite noticiou que vrias agresses pessoais tiveram incio e s no descambou
porque o produtor Walter Sampaio e o apresentador Almir Guimares sugeriram que as partes se
encontrassem em debate sobre o tema no prximo programa. Vrios policiais e investigadores
estaro no estdio de televiso e nada menos de dez radiopatrulhas policiaro o local, informou o
jornal. Jogo combinado, Conceio escalou os deputados Aurlio Campos e Jos Carvalhaes no
seu time e props que Jos Celso Martinez Correa, diretor de Roda-viva, e Ruth Escobar
formassem o de Plnio. Ele reagiu na hora:
Voc no vai escalar o meu time!
Ento eu levei o Fernando Torres, um homem ntegro e muito inteligente, e Augusto Boal, que
era habilssimo no debate. O Z Celso quando nervoso fica apavorado e a Ruth era um prato cheio
para ser atacado.
Jos Celso nem por isso se calou. Escreveu para alertar contra o perigo do obscurantismo e do
gangsterismo praticado contra a cultura. Com a volta do clima das bruxas, vai se criar uma gerao
violentamente ressentida. O dio e a represso nesse momento esto sendo alimentados. [...] No
momento em que as velhas geraes aceitam essa mulher como lder, estaro cavando e travando a
luta contra a juventude deste pas. A juventude culta, informada, sensata, no vai admitir isso. O
mundo dessa mulher morreu.
Na segunda-feira seguinte, o estdio da Tupi no Sumar e a rua em frente foram tomados pela
classe teatral e pelas radiopatrulhas. O programa O quarto poder alcanou picos elevados de
audincia (noventa por cento, nos clculos de Plnio), que se repetiram na reprise, domingo, no
horrio de Pinga fogo. No satisfeito, Aurlio Campos levou o ataque ao teatro tribuna da
Assembleia Legislativa. At ento a imprensa, a comear por um editorial do Jornal do Brasil
sobre a greve de fevereiro, tinha defendido os artistas. A exceo foi O Estado de S. Paulo, que
deu eco ao deputado e publicou, na edio de 11 de junho, tera-feira, um editorial depois
considerado infeliz e dbio pela prpria direo do jornal. O texto comeava por considerar
oportuno o discurso de Aurlio Campos sobre os excessos que se tm verificado em
representaes teatrais no terreno do desrespeito aos mais comezinhos preceitos morais.
Defensor do regime militar, apesar de ter entrado na poltica nos anos de 1950 pelo Partido
Socialista Brasileiro, o deputado era um pioneiro do rdio e da televiso. Fez a fama com o
programa O cu o limite, em 1955, que popularizou o bordo absolutamente certo, ttulo de
chanchada com Anselmo Duarte e Eliana. Depois se destacou como locutor esportivo e
apresentador do programa Pinga fogo, do qual se afastou ao ser eleito deputado em 1967.
EDITORIAL DO ESTADO PEDE CENSURA Sem suspeitar que a censura logo o atingiria,
o Estado de S. Paulo se excedeu, como teriam admiti-do seus diretores, no editorial em defesa do
deputado -radialista: O mundo teatral, tanto os atores e atrizes como os autores, vem mo-vendo
uma campanha sistemtica contra a censura, e, como esta nem sempre exercida por autoridades
altura de to graves e, s vezes, to delicadas questes, a tendncia de muitos cerrar fileiras
entre os que (a) combatem. O que na censura geralmente se v uma ameaa liberdade, o que
assume a feio particularmente antiptica quando a liberdade ameaada a artstica. Carradas de
razo, entretanto, teve o parlamentar acima referido ao assinalar, a propsito de pea teatral a cuja
representao assistira, que a censura, longe de se mostrar rigorosa no escoim-la de seus
exageros mais escandalosos, o que revelou foi uma complacncia que no pode deixar de ser
severamente criticada.
No dia seguinte, a classe teatral reunida no Teatro Ruth Escobar considerou o editorial
totalmente favorvel Censura ditatorial, conforme registrou o prprio jornal, ao noticiar que
catorze artistas de So Paulo e quatro do Rio j resolveram devolver os prmios Saci ao Estado
de S. Paulo na prxima quinta-feira, s 4 da tarde. Essa deciso foi tomada na assembleia de
anteontem e aclamada pelo plenrio. At l, os lderes do movimento de protesto esperam receber
novas adeses.
Quando se discutia como reagir ao editorial, foi Walmor Chagas quem sugeriu a devoluo do
prmio. Conta o ator Srgio Mamberti, que estava ao lado do lder estudantil Jos Dirceu, que
Walmor disse que s nos restava atingir o jornal na sua vaidade, devolvendo o Saci do qual o
dr. Jlio Mesquita tanto se orgulhava. Dcio de Almeida Prado, em entrevista a Nelson de S e
Alcino Leite Neto em 1991, na Folha de S. Paulo, confirmou Walmor como autor da proposta.
Mas no s ele: O Walmor Chagas e o Brulio Pedroso. O Brulio tinha sido demitido do jornal,
e eu acho que isso contribuiu um pouco. o lado chato da coisa. (O jornalista Brulio Pedroso
tinha sido lanado como dramaturgo por Walmor e Cacilda, que fizeram a primeira leitura da sua
pea O fardo, em 1966. Naquele mesmo 1968 ele fez sua primeira e bem-sucedida incurso na
TV como autor da novela Beto Rockfeller.)
Em 1953, o jornal tinha estendido o Prmio Saci aos melhores do ano no teatro e no cinema, em
vrias categorias, com a entrega de um trofu, a figura da personagem do imaginrio popular
esculpida por Brecheret. Como o editorial atingiu diretamente o teatro, foi no teatro que se deu a
reao que levou extino do prmio, considerado ento um dos mais importantes, ao lado do
Prmio Governador do Estado. Na assembleia que props a devoluo dos trofus misturavam-se
militantes polticos, estudantes e sindicalistas classe teatral, que, segundo testemunhas, era
minoria, coisa de 20%.
A participao de Plnio Marcos no episdio foi decisiva. Jos Dirceu, em nome da UNE,
ameaou: Quem no quiser devolver o prmio ser boicotado pelos estudantes de So Paulo. O
diretor Flvio Rangel reagiu chantagem e pediu que se colocasse imediatamente em votao uma
proposta de Jos Celso Martinez Correa, de aguardar uma semana para que o jornal se retratasse.
Nesse momento, lembra Srgio Mamberti, Flvio, muito amigo da famlia Mesquita, dona do
jornal, disse que o dr. Jlio tinha ficado muito triste com tudo aquilo. Z Dirceu contra-atacou,
provocando: Voc anda tomando muito usque com os Mesquita. Flvio reagiu, lembrando ter
sido preso e torturado, e no admitia as insinuaes do estudante. Juca de Oliveira tomou a defesa
do diretor. No meio do bate-boca, Plnio pediu a suspenso da assembleia por dez minutos. A,
houve um conchavo geral, conformou-se Flvio.
Reiniciada a assembleia, Cacilda Becker disse que, como presidente da Comisso Estadual de
Teatro, aconselhava a negociao, mas concluiu, para delrio geral: Como atriz, sou pela
devoluo. Cacilda reconheceu que, quando Walmor deu a ideia de devolver o Saci, ela a achou
inadmissvel. Mas durante o dia tentaram me cooptar, foram mais ou menos essas as palavras da
atriz que ficaram na memria de Srgio Mamberti. Ela teria dito algo como: Os poderosos
telefonaram para a minha casa, pedindo que eu advogasse em seu favor. Agora, mesmo no
entendendo direito o que est acontecendo e vendo o nmero de pessoas que aderiram a esse
protesto, entre ficar com os poderosos e os da minha classe, fico com os meus.
Foi emocionante, diz Srgio Mamberti. Deve ter sido mesmo, pois Jos Celso retirou a proposta
de adiar a deciso e aprovou-se a devoluo do Saci. Vrios artistas continuaram a reunio na
casa de Ruth Escobar, onde se divertiram jogando boliche com os trofus, uma coisa escrachada
e ao mesmo tempo muito divertida e debochada, lembraria sem mgoa Dcio de Almeida Prado.
Na Assembleia Legislativa, Aurlio Campos voltou tribuna no dia 20 de junho para defender
requerimento apelando para as autoridades no sentido de sanear o teatro brasileiro. Reclamou
que, desgraada-mente, na luta contra a obscenidade e a pornografia includas nas peas teatrais
com objetivos puramente comerciais, pontos de vista so propositadamente distorcidos pelos
esquerdinhas festivos. Ao referir-se a artigo de Dcio de Almeida Prado publicado naquele dia,
em que o crtico com serenidade e elegncia procurava reduzir as tenses, o deputado apostou
numa diviso da classe teatral nem tudo est perdido. Tirou a discusso do mbito restrito
para projet-la no quadro poltico nacional, e subiu o tom. No se trata, j agora, de higienizar os
obscenos textos comerciais perpetrados por alguns pseudoautores do teatro brasileiro. O que se
reclama a defesa do prprio regime democrtico, convulsionado pela agitao gratuita dos
esquerdinhas festivos, insistiu na adjetivao que apequenava o protesto dos artistas e
intelectuais.
DEVOLUO DO SACI EM TARDE CHUVOSA Nem todos devolveram o seu trofu, mas
no dia seguinte, s cinco horas da tarde chuvosa de sexta-feira, 21 de junho, a classe teatral se
concentrou no Teatro de Arena, de onde sairia em passeata de 200 metros at a esquina das ruas
Major Quedinho e Martins Fontes, local da sede de O Estado de S. Paulo. Cacilda Becker teria
relutado em sair frente da caminhada. Deixou-se convencer por Plnio Marcos.
Olha aqui, Plnio, vou confiar em voc. No vai ter baguna, n? S passeata.
, s passeata, pode ficar tranquila.
Em frente ao jornal, o plano previa que um diretor viesse at os manifestantes que, ento, em
ordem e pacificamente, devolveriam um a um os trofus. O detalhe, diria Garrincha, que ningum
se lembrou de combinar com o adversrio. Primeira a falar, Fernanda Montenegro leu uma
declarao em defesa da liberdade de expresso, sem agredir diretamente o jornal. Ela conta, na
biografia de Cacilda Becker escrita por Lus Andr do Prado, que na manh daquele dia refizeram
o discurso original que lhe entregaram para ler, um texto poltico e ideologicamente engajado,
segundo ela. Fui muito cedo casa de Cacilda e, na cozinha do apartamento dela, eu disse:
Cacilda, nosso problema aqui no poltico-ideolgico, mas de defesa da liberdade de
expresso. Foi esse o discurso que Fernanda leu, ficando para a atriz e cantora Marlia Medalha
o discurso mais duro e direto sobre as razes daquele ato.
O tempo foi passando e nada de aparecer algum do jornal. H relatos de que, indignada com a
indiferena da direo de redao, a atriz Liana Duval urinou no seu Saci antes de deposit-lo na
porta de entrada. Foi a senha para que todos amontoassem os trofus de Brecheret. Plnio Marcos
esqueceu a promessa feita a Cacilda e mandou uma pedrada na porta de vidro do Estado. At
aquele momento, segundo suas prprias palavras, tinha se controlado, assistindo a tudo do outro
lado da rua ao lado do mdico e dramaturgo Roberto Freire e do fsico e crtico de arte Mrio
Schemberg:
Foi quando o Bigode e o Mrio disseram: Precisamos fazer alguma coisa. O secretrio de
redao no desce, esto humilhando a Cacilda Becker. Deixaram ela na chuva no maior
desprezo. A eu peguei um tijolo, subi num caminho estacionado na porta do prdio e gritei:
Jornal filho da puta, enfia o Saci no cu. E mandei um tijolao no vidro. Um chofer da Folha veio
e me segurou. Eu disse: Sai, viado, t pensando o qu?. Mas o cara no largava. Dei-lhe um
chute na moringa, desci e sa correndo. Da saiu todo mundo correndo. Eu entrei na rua Maria
Antnia, que era nosso ponto de encontro. O Roberto Freire descobriu depois que aqueles carros
da Folha de S. Paulo estavam sendo dirigidos por gente do Dops. A Folha tinha emprestado os
carros e eles fingiam que tinham ido cobrir.
Na redao, todos seguiram a rotina. Ningum sequer se aproximou das janelas para olhar a
confuso l embaixo. O jornal ignorou a passeata, mas no ficou indiferente ao simbolismo do ato.
Se os artistas no querem o prmio, no h por que mant-lo. Como foi s a gente de teatro que
devolveu o trofu, ele poderia continuar sendo entregue s demais categorias. No, a direo de O
Estado de S. Paulo decidiu extinguir definitivamente o Saci. Deciso mais grave foi a de Dcio de
Almeida Prado, de deixar a crtica teatral, lamentada por todos. De nada valeu o argumento de que
o protesto foi contra o jornal, no contra o crtico. Dcio continuaria amigo pessoal dos artistas,
mas concluiu que ficava insustentvel fazer crtica em um jornal que tinha sido atacado pelo
teatro. Maior que o prmio, foi essa a perda mais sentida.
ARTISTAS ESPANCADOS EM RODA-VIVA O Teatro Ruth Escobar, na rua dos Ingleses, era
ponto de referncia da resistncia teatral e, por isso, atraiu a fria dos que viam nele um foco
subversivo a ser enfrentado. Alm de palco de assembleias, ali estavam dois espetculos
incmodos: a Feira Paulista de Opinio e Roda-viva. Se politicamente parecia inofensivo com a
bela msica de Chico Buarque, o espetculo de Jos Celso era imoral e obsceno, segundo o
deputado Aurlio Campos. Ao pedir ao mais rigorosa da Censura, ele advertiu as famlias
pau-listas que no deixem as suas filhas ver Roda-viva. Nem famlias nem censores, no primeiro
momento, atenderam ao apelo, mas os militantes do Comando de Caa aos Comunistas, o CCC, se
armaram, e no s de coragem.
Invadido e depredado o Teatro Galpo, deu na manchete da Folha de S. Paulo na sexta-
feira,19 de julho.
O Galpo era a sala de cima do Teatro Ruth Escobar, onde estava em cartaz Roda-viva. A Feira
era apresentada na Sala Gil Vicente, uma arapuca, pois seu acesso no subsolo, por estreitas
escadas, no sugeria nem recomendava uma invaso. Mesmo assim, semanas antes a sala foi
invadida por policiais e interditada pela Polcia Federal. Na quinta-feira tarde o elenco da Feira
recebeu, por telefone, ameaas de quebra-quebra. noite, os terroristas mudaram a mira para o
Galpo. Ao final de Roda-viva, quando o pblico se levantou para sair, eles entraram.
Vinte elementos bem vestidos, alguns deles com terno e gravata, invadiram o teatro, foram
espancando quem encontravam, noticiou a Folha de S. Paulo na sexta-feira. Depredaram
poltronas, quebraram refletores, instrumentos musicais, e subiram aos camarins onde as atrizes
estavam mudando de roupa. Espancaram-nas, tirando-lhes a roupa, e praticaram atos brutais de
sevcia, conforme afirmaram atores, testemunhas oculares da violncia.
O Jornal da Tarde registrou que nos camarins os atores comeavam a mudar a roupa, quando
ouviram os primeiros gritos e o grande barulho que vinha da plateia. Ningum sabia o que estava
acontecendo. Os policiais de trs viaturas que estavam na frente do teatro no conseguiram entrar,
foram impedidos por mais de cem pessoas que queriam sair daquela confuso. L dentro, gritos
e barulho de quebra-quebra, correria. Marlia Pra, a atriz principal da pea, e Margot Baird,
dentro dos camarins internos, foram agredidas, os homens arrancaram suas roupas. Walkria
Mamberti, outra atriz da pea, tambm foi despida e espancada, apesar de avisar, aos gritos, que
estava grvida.
A classe teatral, mobilizada, reagiu imediatamente.
A cultura e a inteligncia brasileira foram massacradas em seu templo Plnio Marcos
resumiu assim o sentimento de todos. O Teatro Oficina, onde se apresentava Navalha na carne,
recebeu carta annima com ameaas. s dez horas da manh seguinte, sexta-feira, uma comisso
formada por Plnio, Ruth Escobar, Assunta Perez, Sbato Magaldi, Alberto DAversa e Edgard
Gurgel Aranha foi recebida pelo secretrio da Segurana Pblica, que prometeu enviar
policiamento aos teatros. Cacilda Becker tomou a frente da resistncia com uma frase com
vocao histrica, estampada pelos jornais no domingo:
Qualquer teatro o meu teatro.
O DIRETOR ADEMAR GUERRA FOI UMA DAS PESSOAS QUE PERCEBERAM O DRAMA DE VOC NO
PODER TRABALHAR NA SUA CIDADE.
PERTO DOS PALAVRES QUE SE OUVEM DE EXECUTIVOS NA PONTE AREA, PLNIO ERA MADRE TERESA
DE CALCUT.
Quando um dos nomes mais influentes da histria da televiso brasileira, Cassiano Gabus
Mendes, assistiu a Dois perdidos numa noite suja no incio de 1967, ficou perplexo. Como ele,
diretor da TV Tupi, no sabia que a emissora tinha nos seus quadros o funcionrio Plnio Marcos?
No camarim, entre abraos e elogios, perguntou ao autor o que poderia fazer por ele.
Me manda embora da televiso pra eu receber a indenizao respondeu Plnio.
No era piada: A gente saa em jornal todo dia, fazia um sucesso enorme, mas dinheiro mesmo
no entrava, contou Plnio. Cassiano atendeu ao pedido e foi assim que ele deixou o emprego na
TV Tupi, depois de trs anos. Pagando 70% da bilheteria de Dois perdidos ao Teatro de Arena, o
que sobrava para ele e Ademir Rocha, parceiro de cena, era muito pouco, insuficiente para um
rateio que pagasse as contas da pequena equipe envolvida. A situao de Plnio s melhorou
quando o espetculo trocou o Teatro de Arena pelo Teatro de rua e comeou a viajar pelo interior,
e quando Fauzi Arap e Nelson Xavier fizeram a pea no Rio de Janeiro.
Na agitao de 1968 estando j superado o aperto de grana e seu nome j tendo sado da lista
dos ilustres desconhecidos , Plnio recebeu telefonema de Cassiano Gabus Mendes.
Ele me chamou para ver um jogo no Morumbi, entre So Paulo e Amrica de Rio Preto.
Disse: Vamos l, a gente v o jogo e conversa. Ele queria que eu escrevesse uma novela na linha
de Dois perdidos.
Plnio escreveu ento a sinopse de Dentro da noite, uma novela policial que foi imediatamente
proibida.
Em Beto Rockfeller eu no tinha ainda muita ideia de quem era Plnio e da importncia dele,
diz Irene Ravache, que estava chegando do Rio com um filho pequeno, Hiran, para criar. Suas
amigas mais chegadas eram Dbora Duarte e Ana Rosa. Tmida, ela se recolhia ao seu canto. Irene
vinha de uma novela na TV Excelsior, uma televiso bem comportada, e ao entrar na Tupi
encontrou outro ambiente nas primeiras gravaes de Beto. Ela conta:
Para mim o Plnio Marcos era s um rapaz bonitinho, que falava de um jeito engraado,
diferente. Mas tudo na novela era diferente, comeando pelo prprio Tat, o Luiz Gustavo. Se ele
no se enquadrava no padro dos gals da Tupi, o Plnio muito menos. Eu achava que ele tinha um
jeito moderno de interpretar, com muita improvisao, e o Lima Duarte tambm no era um diretor
convencional. O Plnio chegava e ficava no canto dele e s chamava a ateno quando comeava a
interpretar, fazendo uma dobradinha imbatvel com o Tat. Com o tempo, todos os atores
comearam a se adequar ao jeito dos dois, a improvisar, o que dava um frescor novela. Depois,
na padaria da esquina da Tupi, eu ficava ouvindo o Plnio falar com aquela indignao e todos os
palavres a que tinha direito. Hoje, perto dos palavres que se ouvem de executivos engravatados
na ponte area, Plnio era madre Teresa de Calcut.
Sem o melodrama de inspirao mexicana das novelas da poca, com muito humor e um gal
que era o anti-heri, Beto Rockfeller caiu rapidamente no gosto do pblico, que tambm se
renovou. O sucesso foi tanto, que no meio da novela o autor Brulio Pedroso pediu gua e a
histria continuou sendo escrita por uma equipe de autores encabeada por Eloy Arajo. Tudo
soava novo. A linguagem prxima do cotidiano incorporou grias e expresses familiares ao
pblico em dilogos geis, que recorriam a notcias de jornal para aproximar ainda mais a trama e
os personagens da realidade. Como nem tudo podia ser perfeito, Beto Rockfeller inaugurou o
merchandising nas novelas, que, porm, se resumia ao Engov que o personagem tomava para se
curar das ressacas. Para o bem e para o mal, a novela foi um divisor de guas. E o seu sucesso no
se devia apenas a essas inovaes, na anlise de Plnio:
Tinha um time de primeirssima qualidade, mas a questo principal da novela era poltica. A
histria do Beto Rockfeller do cara que quer sair da classe mdia pra ser da classe alta, mas no
deixam. Ele pode at comer umas mulheres l, mas ser da classe alta no pode. Esse era o n
dramtico da novela, esse cara que quer se enfiar e progredir, mas no consegue. Provavelmente,
se na poca se dissesse isso, a novela no passaria pela Censura. E era tudo muito improviso.
Quando o Brulio foi fazer A volta de Beto Rockfeller, em 19 73, e o filme, ele tirou essa coisa
poltica e no deu certo, porque ficou a gracinha pela gracinha.
A novela, que estreou em novembro de 1968, ficou um ano em cartaz e deu a Plnio Marcos,
alm de popularidade, o Trofu Imprensa de ator revelao. Serviu ainda para blind-lo do risco
de desaparecer, como os rgos de represso da ditadura costumavam fazer com os que se
opunham ao regime. (No incio de 1969, Heleni Guariba, jovem e promissora diretora de teatro e
militante poltica, foi presa e nunca mais se teve notcia dela. O caso inspirou Lauro Csar Muniz,
que escreveu a pea Sinal de vida.) Mas Beto Rockfeller no livrou Plnio de frequentar as
prises.
*
Plnio Marcos soube desse episdio depois da morte de Ademar Guerra, em fevereiro de 1992.
Como Plnio, Ademar se manteve longe dos partidos e das organizaes polticas. Roberto Freire,
amigo comum de ambos, por certo explicaria melhor essa independncia, que lhe permitia gestos
de coragem pessoal como o dilogo com o coronel, que de to surreal e absurdo o livrou de
comparecer ao DOI-Codi e ento a histria contada aqui seria outra. A Cultura continuou a
produzir teleteatros e Plnio foi procurado, em 1987, por um jovem diretor, cujo nome ele no
guardou Roberto no sei do qu, disse , que queria adaptar uma de suas peas. O episdio,
lembrado por Plnio:
Eu perguntei se ele sabia se Plnio Marcos estava vivo. Porque, se eu estava vivo, eu mesmo
poderia adaptar. Ele falou que precisava entender de televiso e eu dei Homens de papel para ser
adaptada. Com isso ele ia ganhar mais do que eu. Depois ele me trouxe a adaptao. Eu no tinha
tempo de ler uma pea que j conhecia e dei para o Marquinhos Santista (Marco Antonio
Rodrigues), que um amigo e bom diretor. Ele leu e disse que estava tima a adaptao.
Devolvemos a pea para o garoto e falamos: pode fazer. Ele foi TV Cultura e proibiram.
Como autor de argumentos para o cinema, Plnio Marcos se deu muito melhor que como ator.
intrigante observar que, no mesmo momento em que ele surgia no teatro, no cinema paulista outro
artista, logo includo no topo da lista dos marginais, chamava a ateno: Ozualdo Candeias. Ex-
caminhoneiro, ele foi na contramo do discurso elaborado e intelectual do Cinema Novo e, com
muitas ideias na cabea, uma cmara na mo e recursos quase indigentes, lanou em 1967 A
margem. Como nas peas de Plnio, os protagonistas de Candeias eram a gente annima e sem
rosto que at ento no encontravam lugar nas telas. Longe do neorrealismo italiano e tambm das
mais consequentes tentativas de colocar o homem comum brasileiro na tela, sintetizadas no
magnfico Rio 40 graus de Nelson Pereira dos Santos e no laboratrio poltico de Cinco vezes
favela, produzido pela UNE, Ozualdo Candeias surpreendia. No pelo resultado quase artesanal
de seus filmes, mas pela narrativa que se aproximava daqueles personagens marginalizados sem
comiserao. Como nas peas de Plnio, seus personagens estavam distantes do iderio utpico
que a esquerda admitia. Poucos deram ateno analogia que, j em dezembro de 1967, em
matria no Correio Braziliense, o jornalista Reynaldo Ferreira fez entre Candeias e Plnio,
focalizando ambos a vida de prostitutas, bandidos e marginais, a gente colocada margem da
civilizao, num grande centro industrial como So Paulo.
A MARIA BETHNIA, COM SUA CORAGEM, MANDOU ACENDER A LUZ DA PLATEIA E ANUNCIOU QUE
ESTAVAM ME PRENDENDO.
EU FIZ POR MERECER! SE EU DAVA PEDRADA, O QUE IA ESPERAR? QUE ELES ME MANDASSEM FLORES?
BATEU, LEVOU.
J um homem de teatro com reconhecimento nacional, e popular pela novela Beto Rockfeller,
Plnio Marcos se reencontra com o pblico da sua cidade. O palco no mais o acanhado Clube
de Artes, onde fez os primeiros trabalhos como ator e diretor, nem o picadeiro de um circo, mas o
histrico e ainda imponente Teatro Coliseu, indiferente decadncia que se avizinhava. A
apresentao de Dois perdidos numa noite suja foi marcada para a noite de segunda-feira, 5 de
maio de 1969. Em Santos, Plnio se tornara figurinha fcil e carimbada nos palcos, picadeiros,
cabars do cais, esquinas e mesas do Bar Regina dez anos antes. Agora, era um nome nacional.
A volta, entretanto, no seria tranquila. Nos dias anteriores apresentao houve presso para
impedi-la. O jornalista Joo Russo, ento um estudante que fazia teatro amador e ajudou Carlos
Costa, o Carlo, empresrio e amigo de Plnio, na organizao do evento, lembra que a presso se
baseava no boato de que a renda seria destinada UNE Unio Nacional dos Estudantes. Extinta
pela ditadura militar, a entidade tentava resistir na clandestinidade, depois do congresso em
Ibina, que em outubro de 1968 resultou na priso das suas principais lideranas. Ao contrrio do
que se suspeitava, porm, no saiu dinheiro da bilheteria de Dois perdidos para ajudar a UNE. O
dinheiro saiu para pagar o espetculo. O que sobrou teria ficado mesmo com o Partido Comunista,
que promoveu a apresentao.
A memria de Carlo diverge pouco e em detalhes. A Javier Con-treras, no livro Plnio
Marcos, a crnica dos que no tm voz, ele disse que a iniciativa partiu de um grupo de pessoas
vtimas da ditadura, que tinham familiares desaparecidos ou presos pela represso. A bilheteria
foi para ajudar essas famlias e no ficamos com nada. Ao jornal Cidade de Santos, Plnio
declarou, na poca, que na segunda-feira, dia da apresentao, ele ligou para a Polcia Federal em
So Paulo:
Entrei em contato com o general Slvio Correa de Andrade e fiquei sabendo que o problema
no era de texto, mas sim do destino que seria dado ao dinheiro arrecadado. Contestei firmemente
e esclareci que o dinheiro seria destinado ao Centro Acadmico Frei Gaspar, e no determinada
entidade extinta pelo governo.
Na verdade, a presso era mesmo sobre a pea de Plnio. A autoridade em Santos que respondia
pelo servio de censura era o capito Jos Siciliano, conhecido das pessoas de teatro da cidade,
que a ele recorriam para obter o alvar de seus espetculos. Ele teria resistido aos que que-riam
proibir a apresentao de Dois perdidos na cidade. O seu argumento era simples: a pea e o
espetculo estavam liberados para todo o pas.
Aqui vale lembrar que, ao contrrio de quando Barrela foi proibida em 1959, no havia mais a
censura local, estadual. Agora os censores eram agentes do quadro do Departamento de Diverses
Pblicas da Polcia Federal e havia duas censuras no teatro: ao texto e ao espetculo. Primeiro, os
censores avaliavam o texto, impondo cortes de palavras, de dilogos ou de pginas inteiras,
quando no proibiam a pea toda. (s vezes convocavam o autor para se explicar. E ficavam
furiosos ao ser informados de que ele no compareceria. Os agentes no gostaram de saber que
Sfocles, autor de dipo Rei, alm de grego, tinha morrido havia mais de dois mil anos.) Se o
texto fosse liberado, o espetculo no poderia ser visto pelo pblico antes do crivo de dois ou
mais censores. Era o temido ensaio geral para a Censura, que determinava a liberao ou no do
espetculo, eventualmente com cortes de cenas ou a proibio pura e simples da temporada. (As
proibies na vspera da estreia de O bero do heri, de Dias Gomes, em 1965, e depois de O
abajur lils, de Plnio, e Calabar, de Chico Buarque, so exemplares dessa truculncia que
impunha desemprego aos atores e prejuzo aos produtores.)
Dois perdidos numa noite suja passou por essas barreiras e estava liberado desde 1966. O
texto e o espetculo. Para resolver o impasse e permitir a apresentao em Santos, o capito
Siciliano assumiu a tarefa de assistir ao espetculo na primeira fila, com o texto na mo. Se os
atores fugissem do escrito e liberado, ele entraria em ao.
SOLTA ELE!, GRITA A PROFESSORA Tudo contornado e arranjado para a grande noite.
O Teatro Coliseu apinhado, gente agarrada nos lustres e saindo pelo ladro. Mais de setecentas
pessoas, que Plnio multiplicaria por trs ao se referir ao episdio. O espetculo correu sem
problemas. No final, aquele au.
Plnio, a respeito disso:
Em lgrimas e na linguagem que a gente sempre falou no cais do porto e nas praias, agradeci
o meu pessoal. Fui dizer obrigado e ir em cana.
Ele agradeceu ao general Slvio Correa de Andrade, delegado regional do Departamento de
Polcia Federal: E no final, com palavras obscenas e gestos ofensivos, amaldioou os alcaguetas,
que segundo ele teriam espalhado um boato de que a renda da pea seria revertida em benefcio da
extinta Unio Nacional dos Estudantes, como saiu no jornal Cidade de Santos. Segundo Joo
Russo, Plnio reservou um agradecimento ao capito Siciliano, a quem apontou na primeira fila da
plateia, como uma das pessoas que tornaram possvel o espetculo. Os eventuais aplausos que
recebeu no mudaram a deciso do capito, que subiu ao palco, aproximou-se de Plnio, cercado
por estudantes que o beijavam e abraavam, e falou no seu ouvido:
Beije logo as moas que eu vou ter que te levar preso.
Motivo alegado: atentado violento ao pudor, pelos palavres e gestos ofensivos que no
constavam do texto de Dois perdidos numa noite suja. Motivo no declarado: o agradecimento
colocava o capito em uma apertada saia justa com os que exigiam a proibio do espetculo. Ao
perceber o que acontecia, o pblico reagiu. Testemunhas fantasiam at a presena de uma senhora
que dizia ter sido professora do Plnio e saiu aos gritos: Solta ele, solta ele!.
Era surpreendente que o terror das professoras agora estivesse sendo defendido por uma delas.
Seja como for, os apelos da generosa senhora no surtiram efeito e l foi o Plnio preso, no Aero
Willis azul do capito Siciliano. Tambm foram levados o ator Ademir Rocha, Carlo e
integrantes da equipe tcnica do espetculo. J era quase meia-noite, a tempo de o jornal Tribuna
de Santos incluir a notcia na edio de tera-feira: Agentes da Polcia Federal detiveram ontem
noite o teatrlogo Plnio Marcos, no Teatro Coliseu, logo aps haver sido apresentada ali sua
pea Dois Perdidos Numa Noite Suja. A deteno se verificou depois do espetculo, quando
Plnio se dirigiu ao pblico, para os agradecimentos, e o fez em tom considerado desrespeitoso s
autoridades. O teatrlogo foi a seguir conduzido sede da PF, na rua Braz Cubas, onde prestou
depoimento. Sua situao, porm, somente dever ser resolvida hoje.
No foi.
O advogado Carlos Augusto Corte Real lembra ter sido chamado s pressas para o Teatro
Coliseu. Plnio j estava na delegacia, onde assumiu toda a responsabilidade e, com isso, todos
os outros foram dispensados. Em So Paulo, o advogado criminalista Iber Bandeira de Mello foi
acionado. Walderez de Barros, avisada da priso e sem saber por onde comear, procurou Alberto
DAversa de manh para mobilizar a classe teatral. lida, mulher de DAversa, atendeu a porta,
Walderez entrou e l estava o crtico e diretor de teatro passando enceradeira na sala: Eu tomada
pelo pnico, debulhando-me em lgrimas e o DAversa passando enceradeira na sala. Foi uma
daquelas situaes dramticas que se voc coloca numa pea vo dizer que absurda. Ns ramos
muito ligados ao DAversa. Ele vivia l em casa e ns na casa dele. Era um grande amigo.
Para enfrentar a represso, caso algum fosse preso e para evitar que ele sumisse, uma das
estratgias era fazer barulho, avisar a imprensa e o maior nmero possvel de pessoas. Foi o que
se fez. DAversa sugeriu que se procurassem pessoas representativas, como o diretor Antonio
Abujamra e a atriz Maria Della Costa, que no ano anterior havia produzido Homens de papel.
A atriz Irene Ravache testemunha do quanto a pea e o autor incomodavam. Quando Plnio
levou Dois perdidos a Santo Andr, ela foi assistir com os seus pais, que tinham se mudado havia
pouco para a cidade. Depois do espetculo levaram o elenco e a equipe para jantar em sua casa.
No dia seguinte a polcia bateu na porta. Queria saber por que os meus pais tinham recebido
subversivos na noite passada. Minha me ficou apavorada, sem saber o que estava acontecendo.
Meu pai, que era mais informado e sabia muito bem quem era Plnio Marcos, respondeu que no
eram subversivos e sim artistas, amigos da sua filha.
LUTA ARMADA CHEGA AO TEATRO NO BRS No perodo em que a luta armada contra
a ditadura militar acirrava os conflitos com o aparelho de represso do Estado, Plnio Marcos
bateu nas portas da Oban por conta de um episdio inslito. Foi para se garantir. A Oban
Operao Bandeirante foi criada, com financiamento compulsrio de empresrios, para ajudar
as foras de represso do Estado no combate subverso. Acusados de terroristas, entre tantas
coisas mais, Plnio, Walderez de Barros e Tony Ramos se apresentaram como vtimas do
terrorismo.
Aconteceu o seguinte. Em 1971, o casal resolveu remontar Quando as mquinas param, com
Tony e Walderez, que faziam sucesso na telenovela Simplesmente Maria, no pequeno palco do
Sindicato dos Txteis, no Brs. Detalhe: o sindicato era comandado por comunistas do Partido
que no concordavam com a luta armada, que j registrava pesadas baixas. Pois bem.
Na matin de um domingo, o espetculo correu normal at o fim. Ao sair de cena, depois dos
agradecimentos, Walderez e Tony toparam na coxia com alguns encapuzados, de roupas escuras,
lembra o ator. Voltem para o palco!, ordenaram. Eles voltaram, com armas apontadas para a
cabea. Na plateia, homens com metralhadoras. O que apontava a arma para Walderez tinha um
manifesto na mo, que queria ler. A atriz reagiu:
No! Aqui no palco vocs no vo falar! Este espao meu. Se algum tem que fazer
discurso aqui, sou eu.
melhor voc ficar quieta.
Walderez obedeceu ao ver que Plnio e a administradora Beth Roc-co, que fechavam o border
no escritrio, no primeiro andar, j tinham sido rendidos e trazidos para baixo. Grvida, Lidiane,
mulher de Tony Ramos, descansava numa sala e s ficou sabendo do ocorrido depois, nem teve
tempo de se assustar. Foi tudo muito rpido, no conseguamos entender o que acontecia, diz
Tony. Eram todos muito jovens, lembra Walderez: O que apontava o revlver na minha cabea leu
o manifesto. Estava nervoso, tremia tanto, que eu morri de medo de, at sem querer, ele me dar um
tiro. Lido e distribudo o manifesto contra a ditadura, os jovens pregaram cartazes e saram.
Levaram o carro de uma espectadora e deixaram um problema para os artistas. Avisar ou no do
episdio a polcia?
Discutimos a situao e conclumos que no havia outra coisa a fazer seno comunicar o
ocorrido s autoridades. At para nos preservar-mos de futuras complicaes, j que uma das
obsesses da represso era provar, de alguma maneira, a ligao do Plnio com a guerrilha, coisa
que realmente nunca houve. Sem falar que tambm no podamos criar mais problemas para a
diretoria do sindicato, que, quela altura, estava quase toda na priso, lembra Walderez.
O pblico, com os atores, ficou esperando a polcia. Chegaram os agentes da Oban. Chegaram
rindo, tirando sarro, gozando o Plnio. Pegaram o testemunho das pessoas e convocaram Plnio e
Walderez para prestar depoimento ao temido delegado Srgio Paranhos Fleury, de triste memria
desde os tempos do Esquadro da Morte, em que fez fama caando e matando bandidos ps de
chinelo e foi promovido caa de subversivos.
Dias depois, l estava o casal diante de Fleury. Feitas algumas perguntas gerais, o delegado
mostrou fotos de militantes da luta armada que pudessem ser reconhecidos como autores da ao
no Sindicato dos Txteis. Walderez alegou que estava to nervosa que nem viu o rosto dos
guerrilheiros. Plnio deu desculpa parecida. Na verdade, estavam praticamente todos l nas fotos,
o que nos convenceu de que a Oban sabia exatamente quem eram os caras que estiveram no
teatro, recorda Walderez. Foi uma experincia terrvel. Mas naquele momento, para mim, o que
veio com muita clareza foi a necessidade de o artista de-fender seu espao, o palco, no permitir
que as coisas se misturassem, se confundissem. Era uma situao absurda, louca. Aqueles jovens
ali, todos muito jovens, ocupando o teatro, lutando por uma causa que tambm era nossa, embora
reprovssemos os mtodos de luta deles, e a gente tendo que defender o nosso espao contra eles.
Foi uma experincia que me marcou muito, incluindo a farsa que fomos obrigados a representar
diante do Fleury.
NO SOU BUNDA MOLE, FIZ POR MERECER Ser preso ou intimado a com-parecer
nos rgos de represso para depor foi uma constante nesse perodo da vida de Plnio. No era
exatamente brincadeira, como ele diria quando a poeira baixou. Mas ele jamais se deixou
envenenar pela amargura. Tinha conscincia de que tudo fazia parte, como repetia como um
mantra, da lei das causas e efeitos. De alguma maneira, sempre se armou de uma natural
espiritualidade para enfrentar os problemas. Espiritualidade que Iber Bandeira de Mello
identifica como uma procura incessante de ser leal a si mesmo e de viver de acordo com o que
dizia e pregava, o desapego a coisas e bens materiais. Quando, nos anos 1990, Boris Casoy
todo mundo diz que ele era de direita, mas um cara profundamente honesto e leal, observou
Plnio o convidou para uma entrevista em seu programa na TV Record, perguntou se ele tinha
sido muito perseguido. Plnio no se fez de coitado nem de vtima:
Se sentir perseguido coisa de bunda mole; eu fiz por merecer!
No depoimento no Festival de Teatro de Curitiba, em 1997, ele explicou:
Eu sacaneava a milicada a toda hora e eu conheo bem a lei das causas e efeitos. Se eu dava
uma pedrada na cabea do Sodr, o que ia esperar? Que eles me mandassem flores? Porra! Bateu,
levou. O Ibrahim Sued escreveu na coluna que ele tinha que tinha sido eu quem acertou a pedrada
na cabea do Sodr. E eu de sacanagem disse: No tive essa sorte, atirei pedra pra caraco, mas
no acertei. E eles ficavam um pouco revoltados com essas coisas, ficavam mesmo, e o que que
eu queria?
Iber Bandeira de Mello perdeu a conta das vezes em que foi chamado para tirar Plnio Marcos
da cadeia. Sem falar das outras tantas que Plnio o chamava para livrar algum amigo ou conhecido
ele se preocupava mais com os outros do que com ele. No entanto, que Iber se recorde,
Plnio nunca ficou preso por muito tempo. Tirando o caso do Pierr e do Maneta, em que talvez ele
tenha se excedido no deboche e na provocao, em geral os policiais comuns e sem altas patentes
gostavam do Plnio, segundo Iber.
Ele era muito conhecido no meio policial e no meio da bandidagem, que o amava. Acontecia
de eu chegar priso e encontr-lo em uma roda, batendo papo com os policiais. Como era uma
pessoa muito afetiva e coerente, que falava tudo o que pensava com muita propriedade e humor,
todos o ouviam. At os policiais.
Ser bom papo e contador de histrias servia para livr-lo de enrascadas ou, no mnimo, para
aliviar certas situaes, Plnio admitia. Somavam-se a esse talento o linguajar e o tom de voz s
dele, que davam charme s narrativas que, contadas por outro, no teriam a menor graa. Plnio
seduzia pela palavra.
Ele era um homem da palavra, escrita ou oral, que se comunicava como ningum, define
Iber.
Seduo qual ningum escapava. Fosse bandido ou polcia.
CENA X
MAIS VALE UM PLNIO MARCOS NA MO QUE DOIS SHAKESPEARES VOANDO.
CACILDA BECKER TINHA UMA FORA QUE A DEIXAVA COM DOIS METROS DE ALTURA.
EU ME ORGULHO DE REPRESENTAR UMA CLASSE QUE SAI PELAS RUAS EM PASSEATA PARA LUTAR
CONTRA A OPRESSO.
Na tera-feira, 25 de fevereiro de 1969, o tempo esquentou no Teatro da Aliana Francesa, no
centro de So Paulo. Com muitos decibis acima do razovel, Plnio Marcos investiu contra
Cacilda Becker, sua madrinha, amiga e protetora. Artistas e produtores foram convocados pela
atriz, que prestou contas de sua gesto frente da Comisso Estadual de Teatro, da Secretaria de
Estado da Cultura, no governo Roberto de Abreu Sodr. Ela havia assumido em 4 de maro de
1968 para um mandato tampo, substituindo Dcio de Almeida Prado, que se afastou pressionado
pelas rivalidades existentes entre as companhias, com bases polticas e estticas ou pessoais.
Ocorre que essas rivalidades no podiam descarregar-se entre si, na anlise cirrgica de Dcio,
para no destruir o mito da unio da classe teatral, que na verdade s se efetivava em ocasies
especiais. Por isso, concluiu, o alvo das rivalidades internas se desviava para projetar-se em
cheio sobre a Comisso, na pessoa do seu presidente. S lhe restava afastar-se e indicar Cacilda
Becker para o cargo.
Dcio, certamente, no tinha iluso de que a simples presena de uma atriz, com tamanha
autoridade artstica, dilusse em um passe de mgica as rivalidades e interesses em conflito entre a
gente de teatro. Por um tempo, e graas contribuio da Censura e da represso, os artistas se
uniram, mas as diferenas no foram superadas. Ao indicar a atriz, Dcio tinha outra razo, de
ordem pessoal. Desentendendo-se temporariamente com Walmor Chagas, [ela] encontrava-se
numa situao delicada, sem companhia, sem elenco, sem saber o que fazer de sua vida.
A presidncia da Comisso Estadual de Teatro, de fato, fortaleceu em Cacilda a conscincia no
s da sua representatividade como atriz, mas do seu papel como ente poltico, em um momento
especialmente conturbado. Na sexta-feira, 29 de maro de 1968, semanas depois da sua posse na
CET, Cacilda telefonou para Ruth Escobar, a portuguesa, como ela se referia carinhosamente
atriz e empresria: Mataram uma criana, temos que fazer alguma coisa.
A criana era o estudante Edson Lus, de 18 anos, morto na noite anterior pelo tiro de um
soldado, no restaurante universitrio do Calabouo, no Rio de Janeiro. Conta Ruth que foi de
Cacilda a iniciativa de juntar a classe teatral ao protesto, que se organizou no mesmo dia em
encontro com Lus Travassos e Jos Dirceu, dirigentes da UNE. Programou-se, ento, para a tarde
de sbado, a concentrao no largo do Paissandu, centro da cidade, de onde sairia a passeata at a
praa da S, passando pelo Teatro Municipal e cruzando o viaduto do Ch. Na primeira fila da
caminhada, de braos dados, um time de atrizes: Cacilda Becker, Eva Wilma, Odete Lara,
Elisabeth Hartmann, Norma Bengell, Tnia Carrero e Ruth Escobar, entre tantas.
Os organizadores acharam importante que os artistas puxassem a passeata e Plnio Marcos ia
nossa frente, comandando a manifestao e gritando o bordo Mataram um estudante, poderia ser
seu filho, lembra Elisabeth Hartmann. Quando chegamos ao viaduto do Ch, veio a cavalaria da
Polcia Militar ao nosso encontro. Ns samos numa correria e at hoje no sei que trajeto fiz para
chegar em casa.
No meio do viaduto, olhando o vale do Anhangaba embaixo, Cacilda se deu conta do tamanho
do risco e da imprudncia. A nica possibilidade de fuga seria saltar do viaduto. S esquecemos
os paraquedas, reagiu com humor antes de se isentar de culpa e responsabilizar Ruth Escobar: A
estratgia da portuguesa.
PEAS VALEM MAIS QUE VINTE CANHES Nem o corpo frgil nem a voz aguda e
nasalada enfraqueciam Cacilda, que tanto fez que conseguiu tirar Plnio Marcos da priso no 2
Exrcito, no incio de fevereiro de 1969, semanas antes da tumultuada assembleia no Teatro
Aliana Francesa. Plnio disse:
Eu estava preso, ela foi l, me chamaram e ela me tirou. Eu era acusado de ser assaltante de
banco, mas no tinha feito nada. Queriam era me prender de qualquer jeito, porque eu enchia o
saco. Ela disse para o general Ciro Correia: General, um homem que escreve as peas que ele
escreve vale mais do que vinte canhes seus, no precisa assaltar bancos.
Tanto Plnio enchia o saco que, depois de libertado por ela, escolheu Cacilda como alvo de suas
aporrinhaes. Ele contestou os nmeros apresentados pela atriz, dizendo que mais uma vez a
Comisso de Teatro privilegiava as grandes companhias, deixando ao desabrigo os grupos
menores. Em Cacilda Becker, fria santa, ele lembrou o episdio a Lus Andr do Prado:
Eu era sempre contra, porque a distribuio da verba era feita para as companhias
tradicionais, como a do Sandro [Polnio] e da Maria Della Costa. Era foda! A eu virava a mesa e
perguntava: Pra que dar dinheiro para eles e para peas que so vitoriosas?. Porque a mim
ningum dava verba nunca. Eu descia como um trator e a Cacilda era sensvel, sabia que eu estava
falando a verdade. Xinguei pra caramba e fui embora, porque era sempre voto vencido.
O discurso feroz de Plnio dividiu a assembleia. Cacilda ficou imobilizada diante da confuso
que se seguiu. Havia quem insinuasse que ela favoreceu Ruth Escobar, amiga com quem viajara a
Nova York e dona de teatro. Cacilda no se defendeu. Apenas chorou. Quando os gritos se
cansaram, das raras vozes em sua defesa a mais contundente foi do crtico Sbato Magaldi. Ele
lembrou o episdio ao bigrafo de Cacilda:
A o Plnio Marcos contestou a orientao dela na Comisso. Ele tinha as razes dele, mas a
Cacilda no podia fazer tudo o que desejasse. Havia limitaes, presses, era um inferno! Foi uma
administrao excelente para que pudesse ser contestada daquela maneira, sem possibilidade de
resposta. Uma coisa emocional, sem p nem cabea. Mas Cacilda era frgil e muito amiga do
Plnio, gostava dele; e comeou a chorar. Como jornalista, pedi a palavra e tomei a defesa dela.
Expliquei o que achava e o Plnio, indignado, saiu da sala.
Depois, Dcio de Almeida Prado ainda props aos demais membros da CET que enviassem
uma carta atriz, que seria mais um agrado, porque ela tinha trabalhado bastante. Como alguns
se recusaram a assin-la, a carta foi esquecida.
Em relao s verbas distribudas, Plnio no se manifestava em causa prpria ele evitava
personalizar as suas crticas , mas no eram justas. Ao assumir a presidncia da CET, Cacilda
se preocupou em documentar as aes da Comisso. A primeira providncia foi publicar um
Anurio do Teatro Paulista referente ao perodo anterior, 1967, que, alm de avaliaes crticas
de Anatol Rosenfeld, Augusto Boal e Tatiana Belinky, reunia documentao fotogrfica e fichas
tcnicas de espetculos, com respectivos nmeros de espectadores. O minucioso relatrio da
movimentao financeira, que acompanhava o Anurio, contestava em parte as crticas de Plnio
Marcos, cujas peas Navalha na carne, Homens de papel e Quando as mquinas param foram
contempladas com verbas da CET at mesmo a montagem amadora e escolar de Dia vir, que
Odavlas Petti fez com alunas do Colgio Des Oiseaux. Portanto, no era verdade que a mim
ningum dava verba nunca.
*
Com razovel bagagem de trabalhos em teatro e cinema, o italiano Alberto DAversa
desembarcou em So Paulo a convite de Alfredo Mesquita, para dar aula na Escola de Arte
Dramtica, em 1957. Era contemporneo, na academia de Silvio dAmico, em Roma, de uma
fornada ilustre de atores e diretores: Vittorio Gassman, Adolfo Celi, Luciano Salce, Nino
Manfredi e Marcello Mastroianni. Terminada a Segunda Guerra, a situao do teatro na Itlia era
de terra arrasada, como o pas. Depois de dirigir uma bem-sucedida montagem de A pera dos
trs vintns, de Bertolt Brecht, com Gassman, DAversa aceitou um convite de trabalho do ator e
produtor de cinema argentino Armando B, mais tarde famoso por dirigir os filmes de Isabel Sarli,
estrela de erotismo ingnuo perto de padres posteriores. DAversa chegou em 1950 a Buenos
Aires, com mulher e dois filhos, que logo o deixaram e pegaram o caminho de volta Itlia. Ao
mudar-se para So Paulo no incio de 1957, casado com a atriz argentina lida Gay (Gayoso)
Palmer, dividia as aulas na escola de Alfredo Mesquita com a direo artstica do TBC, onde
dirigiu vrios atores em incio de carreira, como Fernanda Montenegro, Natlia Thimberg, talo
Rossi, Srgio Britto, Francisco Cuoco, Raul Cortez e Leonardo Vilar. Depois de alguns filmes
curtos e documentrios, dirigiu Seara vermelha, baseado no romance de Jorge Amado, entre 1963
e 1964, e a se viu diante de um Brasil que s conhecia por notcias e livros. Numa cidadezinha no
interior do Cear, percebeu que, de cada trs crianas que estava vendo, uma morreria antes dos
trs anos e outra nos prximos cinco anos. O choque de realidade radicalizou o seu pensamento
poltico e social, a ponto de se perguntar: No estaremos brincando demais com o teatro?.
Assim, quando conheceu os primeiros textos de Plnio Marcos, seria natural que sua afeio pelo
jovem dramaturgo aumentasse.
Alberto DAversa morreu em 21 de junho de 1969, pouco antes da meia-noite e uma semana
depois da morte de Cacilda Becker. At o fim ele esteve presente s assembleias e movimentos da
gente do teatro. Aos leitores da sua coluna no jornal, ele j havia se desculpado por expor com
tanta insistncia o que pensava, dizendo que o momento nos probe ficar na janela: o nosso lugar
, e ser sempre, na rua ou no lugar onde se tomam as decises. Ao falar no seu sepultamento,
Juca de Oliveira admitiu que quase tudo que eu sei e que sou, aprendi um pouco com Alberto
DAversa... no h um s ator de teatro no Brasil cuja formao no contenha o seu ensinamento,
direto ou na consulta de seus trabalhos, no ouvir falar na lenda do gnio gordo e italiano. E
concluiu, resumindo um sentimento que era de todos: Discutiu e orientou a dramaturgia nascente,
aplainou as arestas da nossa incultura com a verdadeira humildade da sabedoria. Ensinou a ler, a
escrever, a representar, a dirigir. Qualquer assunto o conduzia a uma conferncia. Conhec-lo foi,
sem favor, uma escola. Agora estamos mais burros.
OPERAO ESPRITA PARA CURAR DAVERSA Porm, e sempre tem um porm, Plnio
Marcos fez da morte do mestre o episdio derradeiro de uma coletnea de histrias divertidas.
De novo, no interessa se verdadeiras. Vale a verso contada exausto por ele. Foi esta:
Logo depois da morte da Cacilda, o DAversa teve um enfarte. Todo mundo o amava, ele era
um mestre nosso. Todos passavam na casa dele pra saber da sua sade. Na poca ele queria comer
uma japonesinha que tinha conhecido, dizia: Porra, eu preferia morrer, mas vocs no me
deixaram. Agora, quando eu estou pra pr a mo na japonesinha, vem a Ruthneia e diz no,
DAversa, voc teve um enfarte! Ia beber um conhaquinho e a mo da Rosamaria Murtinho
aparecia e me batia: no, DAversa, voc teve um enfarte! Porra, assim eu no quero viver,
caralho!. A, resolveram fazer uma operao esprita nele. Ele concordou, deitou na cama s onze
horas da noite todo vestido de branco, e a Rosamaria, a Ruthneia, o Mauro Mendona e outros
espritas foram para um centro em Pinheiros. Na hora marcada para a operao, o DAversa
comeou a se agitar na cama: Estou sarando, estou sarando! Esto me cortando, esto me
operando.... E a mulher dele, a sogra dele, os filhos dele: Graas a Deus, graas a Deus, ele
sarou!.
Ele se levantou da cama, tirou a roupa branca e saiu pra rua. Da estava havendo um debate no
Teatro Ruth Escobar, uma reunio do Lyons, ele chegou aos berros: Tudo filho da puta!
Reacionrios! Os terroristas vo pegar um por um de vocs.
A Ruth tentou acalmar. E o DAversa: isso mesmo, e voc fica tomando dinheiro desses
bundas!.
Conseguiram tirar o DAversa dali. Ento ele ficou sabendo que estava acontecendo a maior
peixada da parquia na casa do J Soares, que era ali perto: Ento eu vou pra l.
Mas ele sumiu no meio do caminho. Ningum sabia onde o DAversa tinha ido parar. No meio
da madrugada ele apareceu na casa do J Soares. Porra, DAversa, voc chegou atrasado! Mas
ainda tem muita comida l na cozinha.
Claro, em casa de gordo o que no falta comida. E ele foi pra cozinha e pulou em cima da
peixada toda, com aquela volpia. A foi pra fora e caiu: puft! Estava tendo outro enfarte.
Aqui se interrompe a narrativa de Plnio, para o relato sem nenhuma fantasia de outro
dramaturgo, Lauro Csar Muniz, amigo de DAversa, que no estava no jantar, mas foi chamado s
pressas pelo ator Altair Lima: Lauro, estamos na casa do J Soares e o DAversa se trancou no
banheiro da empregada e no h quem o faa sair. Como voc amigo, vem pra c. Lauro foi. O
J morava numa vila na Brigadeiro Lus Antnio. Quando cheguei, do quintal j dava pra ouvir o
DAversa trancado no banheirinho. Gritei: Sai da. No, estou todo vomitado, ele respondeu.
Depois de insistir, consegui que sasse. Altair Lima trouxe uma cadeira para o quintal e, com muito
esforo, porque o DAversa era enorme, conseguimos coloc-lo sentado. Ruth Escobar j tinha
liga-do para o pronto-socorro cardiolgico da Brigadeiro. O mdico chegou e disse que ele no
podia ficar sentado, era preciso deit-lo. Levamos para dentro e o deitamos num tapete. Fiquei
segurando a cabea dele. Lauro, eu vou vomitar! Eu falei: Vomita!. No vou vomitar no tapete,
ele muito bonito. Vomita, vomita! Altair pegou uma revista Manchete e disse: Vomita!. E
abriu a revista numa reportagem de pgina dupla sobre o filme do Glauber Rocha, O drago da
maldade contra o santo guerreiro. O DAversa olhou e disse: Esse filme uma merda!. Deu
uma estrebuchada, virou o olho e apagou. O mdico pulou em cima dele, dando socos no peito at
ressuscit-lo. Em seguida ele foi levado para a clnica, onde morreu.
A partir desse ponto, Plnio Marcos entra como personagem e narrador na histria:
Da, as pessoas comearam a me procurar: O DAversa est que-rendo falar com voc, ele
est morrendo, ele seu amigo. Eu fui pra l e o mdico disse que ele estava me esperando,
queria falar comigo. A eu entrei na sala. Vai devagar, disse o mdico. Eu coloquei a orelha na
boca do mestre e ele, ofegante, disse assim:
Comi a japonesa!
Sa, e nesse meio tempo ele morreu. E todos queriam saber: quais foram as ltimas palavras do
mestre? Para os mais ntimos eu falei, mas no acreditaram:
P, voc no escutou direito. Ele no ia falar isso na hora da morte!
Mas era s o que ele podia falar, uma pessoa que amava a vida s podia falar isso. Claro, para
as fi lhas dele eu no falei isso. O que papai falou? No escutei. Porra, voc no escuta, justo
numa hora dessas? Ele deve ter falado uma coisa importante. E eu pensava: mais importante que
isso no existia:
Comi a japonesa.
Essa histria, como todas as outras que Plnio Marcos contava sobre o amigo, DAversa no
ouviu para confirmar. Se ouvisse, certamente soltaria uma sonora gargalhada. E Cacilda se
conformaria com mais uma molecagem do afilhado e protegido que a desafiou diante da classe
teatral.
CENA XI
O CORTE NUMA PEA IMPLICA QUASE EM UMA PARCERIA. E EU NUNCA DEI PARCERIA PRA NENHUM
CENSOR.
ACABO DE RASGAR O ABAJUR LILS. AOS 36 ANOS DE IDADE SOU UM CARA QUE MORREU PARA A
DRAMATURGIA NACIONAL.
A SAGA DE O ABAJUR LILS Prova de que, a partir de 1969 e do AI-5, a ditadura despiu-
se de vestgios de tolerncia com a cultura e, na sociedade, o poder de resistncia e de
desobedincia civil se enfraqueceu: as manifestaes pela liberao de O abajur lils em 1970
no tiveram a contundncia e os resultados da luta por Navalha na carne trs anos antes. Dessa
vez Plnio Marcos estava sozinho, com o apoio de alguns solitrios e solidrios parceiros. Seria
preciso vencer um perodo de medo at que a sociedade comeasse a romper o silncio no final de
1975, aps o assassinato do jornalista Vladimir Herzog nos pores da ditadura. Mas, antes desse
crime, Plnio voltou a questionar e a incomodar o governo do quarto general-presidente, Ernesto
Geisel.
A saga de O abajur lils seria retomada em maro de 1975, com novo protocolo na Censura e o
pedido de liberao. O censor ou, para usar um eufemismo da poca, o tcnico de censura Jos
Antnio Costa, encarregado do parecer final, sugeriu que o texto fosse liberado com
impropriedade mxima, o que significava para maiores de 21 anos, como ocorreu com
Navalha. Imps uma condio se o autor reduzir alguns palavres e recomendou que o
texto fosse reescrito sem o linguajar pornogrfico, mesmo admitindo que, dentro do contexto,
no se pode querer que os personagens falem outra linguagem. Traduzindo: o tcnico posou de
mocinho sem deixar o papel de vilo. Plnio achou graa. Cortar uma palavra aqui, outra ali, tudo
bem. Agora, dar parceria a censor, jamais. Ele se lembrou da batalha por Navalha na carne,
quando o chefe de gabinete do ento ministro da Justia, embaixador Hlio Scarabotolo, que
negociava a liberao da pea, o chamou para dizer:
Olha, ns temos que dar uns cortezinhos a na pea.
No, no aceito cortes. Depois dessa luta toda, se vocs quiserem, liberem; seno, deixa
proibida e eu continuo a luta.
O embaixador disse que Plnio estava sendo marrudo, intransigente. Pensou um pouco e refez a
proposta:
Ento, o seguinte. Eu contei vinte vezes a palavra porra. A gente corta dez e deixa dez.
Negcio fechado. Nas circunstncias, cortar palavras dava pra engolir. Cortar cenas mutila a
obra e o pensamento do autor. Uma teoria de Plnio:
Se voc cortar um texto de Shakespeare com determinada viso, voc capaz de transformar
o Shakespeare num nazista. Ento, no se pode permitir. diferente voc deixar que um grande
diretor faa cortes artsticos que ele ache necessrios no texto. Veja bem, o corte feito numa pea
implica quase em uma parceria. E eu nunca dei parceria pra nenhum censor.
No incio de 1975, o general Emlio Garrastazu Mdici, sucessor de Costa e Silva, passou a
presidncia da Repblica ao general Ernesto Geisel, que acenou ao pas com uma distenso
poltica lenta e gradual. A ditadura, que sob Mdici tivera sua fase do Brasil, ame-o ou deixe-o
e do milagre brasileiro operado pelo economista Antonio Delfim Netto, entraria em um novo
perodo, sem abrir mo de seus instrumentos de fora, baseados no AI-5 e na Lei de Segurana
Nacional, na qual eram enquadrados todos os inimigos do governo. As eleies do ano anterior
deram expressiva vitria ao MDB Movimento Democrtico Brasileiro, partido da oposio
consentida, sobre a Aliana Renovadora Nacional, a Arena, e os fiis servidores do governo
militar. L fora a crise do petrleo indicava alteraes profundas na economia mundial, fazendo
esboroar o milagre brasileiro. Aqui dentro os eleitores deram nas urnas o recado direto da
insatisfao da sociedade civil que, enfim, comeou a sentir na pele as consequncias da falta de
liberdade. Portanto, as novas diretrizes do governo Geisel eram uma adequao do Estado
totalitrio s sinalizaes que recebia.
Na estreia de O abajur lils em 1980, o juiz Jarbas Nobre l estava como convidado. No final,
Walderez de Barros contou o episdio e lhe fez um agradecimento pblico. Apesar dos aplausos,
ele permaneceu sentado e no se identificou. Ao seu lado, o mdico Julio Abramczyk estranhou.
Na sada cobrou do amigo:
Por que voc no se levantou e agradeceu a homenagem? Como juiz, eu no fiz mais que a
minha obrigao.
DE DENNCIA A LEMBRANA AMARGA Eu tinha lido O abajur lils dez anos antes e
achara uma obra-prima, diz Fauzi. Quando peguei a pea para dirigir em 1980, a impresso de
genialidade tinha passado e no tive a coragem de dar uma mexida no texto. Ainda assim, dirigi o
melhor que pude. Procurei trabalhar a ambiguidade, tirando a alegoria poltica. Com pouco tempo,
os ensaios foram muito corridos. Se ao dirigir Navalha na carne tudo deu certo, O abajur foi uma
coisa sofrida.
Fauzi Arap tentou aliviar, o mais que pude, as cenas de violncia para sair da metfora
poltica. Um dos momentos mais fortes da pea, quando Osvaldo, capanga de Giro, prende o bico
do seio da prostituta com um alicate e o torce, remetia tortura de presos polticos e, sem essa
referncia, era uma violncia desproporcional naquele ambiente de prostitutas. Pensando assim,
o diretor procurou estilizar a violncia. Em vo. Fauzi lembra que em um ensaio aberto para
convidados no Teatro Aliana Francesa estavam alguns ex-presos polticos e, nessa cena, uma
mulher reagiu dolorosamente, aos gritos:
Plnio, eu quero esquecer essas coisas!
O que em 1970 era denncia vigorosa, em julho de 1980 teria se transformado apenas em
lembrana amarga. No foi bem assim. O abajur lils continuava sendo um contundente veredicto
contra o poder ilegtimo, sugeria o ttulo da crtica de Sbato Magaldi em O Estado de S. Paulo.
No mesmo jornal, outro crtico, Clvis Garcia, via na pea as relaes entre explorador e
explorado, que ajudam a revelar a condio humana, que se corrompe sempre que assume o
poder sem restries, ao mesmo tempo que expe as vrias reaes ao arbtrio. Para Sbato, de
todas as peas que analisaram a situao brasileira ps-1964, [esta] se distingue certamente como
a mais incisiva, dura e violenta. Plnio Marcos fundiu nela, mais do que em outras obras-primas,
Navalha na carne e Dois perdidos numa noite suja, talento e ira. A estrutura do Poder ilegtimo
est desmontada, para revelar, com meridiana clareza, seu rctus sinistro. Ao observar que a
produo de Antonio Fagundes e Clarisse Abujamra recebeu os maiores cuidados, Sbato
Magaldi reservou referncia superlativa ao perfeito acabamento profissional do espetculo:
Ritmo, energia, verdade interior valorizam permanentemente a encenao, uma das mais felizes
assinadas por Fauzi Arap.
Elogios iguais repetiu Alberto Guzik, na revista Isto , ao definir a pea como momento de
plena maturidade de Plnio Marcos, da qual emana um canto de piedade e amor pelos
deserdados, marginalizados, espezinhados. E o espetculo dirigido por Fauzi Arap e muito bem
produzido pelo dinmico Antonio Fagundes gil, fluente e adequadamente opressivo. Na Folha
de S. Paulo, Cludio Pucci classificou o espetculo de Fauzi como um latejante desespero de
bichos acuados, ao som de boleros e chorinhos. Para ele a pea no , apenas, a alegoria da
situao poltica brasileira do fim dos anos 60 sob a escalada da represso, mas uma reflexo
sobre o ser humano, seus limites, paixes, fracassos, esperanas. Sobrevivente de trs perodos
distintos da luta contra o obscurantismo e contra trs generais-presidentes, ao chegar ao palco, O
abajur lils escreveu o captulo final de uma histria de resistncia. Talvez a mais longa e
atribulada cumprida por uma pea brasileira. Como sintetizou Ilka Marinho Zanotto, presidente da
Associao Paulista de Crticos de Arte poca da segunda proibio, em 1975, as
circunstncias fizeram de O abajur lils mais do que uma simples pea, uma bandeira.
CENA XII
PRESERVAR A ARTE POPULAR GARANTIR TRABALHO AOS NOSSOS ARTISTAS CONTRA A IMPORTAO
CULTURAL.
PARA QUEM ACREDITA QUE O SAMBISTA POSSA SER SUBSTITUDO POR LANTEJOULAS E PANOS
BRILHANTES, O CARNAVAL FOI UM SUCESSO.
A ESTREIA DOS PAGODEIROS FOI AMEAADA. O PBLICO CANTOU JUNTO E CANTOU MELHOR. EM
COMPENSAO, BEBEMOS MAIS DO QUE ELE.
Com a proibio de O abajur lils, em 1970, Plnio no puxou o carro, nem tirou o time de
campo. Retomou um texto iniciado em 1968 aps sugesto de Alfredo Mesquita, que lhe pediu que
escrevesse um trecho de Hamlet em gria para ser utilizado como exerccio dos alunos da Escola
de Arte Dramtica. Plnio no concluiu a encomenda do dr. Alfredo, mas, ao se debruar sobre
Shakespeare, parou em Romeu e Julieta. Misturou com as histrias da Barra do Catimb e das
Quebradas do Mundaru, publicadas no jornal ltima Hora, e assim nasceu Balbina de Ians, um
mergulho na religiosidade popular. Ele no inventou nada. Pegou o velho tema de amor e o
colocou no universo do candombl, para decifrar os misteriosos e escabrosos caminhos do homem
neste mundo do bom Deus. Se Shakespeare se valia do romance do desafortunado casal para
desnudar a intolerncia das disputas familiares, Plnio questionou a f manipulada que leva no
libertao do indivduo e sim sua submisso. Julieta virou Balbina e Romeu, Joo. O seu amor,
contrariado pelas convenincias materiais do candombl, leva o casal a romper com a me de
santo, com a religio, com Deus e com tudo, segundo Plnio disse a Veja em setembro de 1968,
acrescentando:
A linguagem a minha de sempre, rpida e rasteira.
Proibidas O abajur lils e Orao para um p de chinelo, ele concluiu a terceira parte de
Balbina de Ians e a enviou Censura. Essa no dava para proibir. Como observou Jefferson Del
Rios em crtica na Folha, sem usar uma nica vez um palavro contundente, motivo de tantas
discusses a respeito de suas peas, [Plnio] criou uma estria brasileira e popular e a transportou
para o palco em um espetculo belo e vigoroso embora com defeitos.
O autor ps a mo no prprio bolso para pagar a produo e as-sumiu a direo do espetculo.
Convidou Juca de Oliveira para formar com Walderez de Barros o par central da histria. Juca no
pde aceitar, ele convocou Roberto Rocco. Deu a Wanda Kosmos o papel da temvel me de santo
e reuniu um elenco numeroso, com especial destaque para seus amigos do samba. O espetculo era
o que na poca, e depois, se poderia chamar de uma superproduo, tantos os recursos e as
pessoas envolvidas.
Regina Helena de Paiva Ramos, crtica de A Gazeta, amiga do folclorista Rossini Tavares de
Lima, renomado estudioso da cultura popular, foi das primeiras a saudar a nova pea de Plnio
Marcos, que o autor empunhava como uma bandeira: Chega de cultura importada. Ela, que
participara da campanha pela liberao de Navalha na carne, agora apostava em Balbina de
Ians. Para ajudar a divulg-la e promover a estreia, entrevistou o professor Rossini, que destacou
a importncia de um autor como Plnio se voltar para temas da nossa cultura popular. Quando a
entrevista saiu, Plnio ligou para a reprter e agradeceu. Regina Helena, entretanto, ficou
preocupada ao entrevist-lo.
Voc fez pesquisas?
No estou interessado em pesquisa folclrica, estou interessado na preservao da arte
popular brasileira.
FESTA PARA RECEBER BALBINA DE IANS A estreia de Balbina de Ians na quinta-
feira, 8 de janeiro de 1971, meia-noite, foi uma festa. H muitos anos no se via uma estreia
assim, escreveu Roberto Freire. A rua Albuquerque Lins, onde fica o Teatro So Pedro, estava
cheia de gente, guardas proibiam at a entrada de carros no quarteiro. Na porta do teatro, num
palanque, instrumentistas; e na rua, desfilando, uma escola de samba. O povo danava e cantava,
enquanto artistas famosos de teatro, cinema, televiso e msica popular se acotovelavam na
bilheteria para conseguir ingressos. Dentro, teatro j lotado, grande expectativa. Artistas,
intelectuais e povo estavam ali para assistir ao espetculo, mas, sobretudo, para prestigiar o
melhor autor brasileiro contemporneo e a pessoa humana indita e querida (apesar da
agressividade, do primitivismo, da coragem dura e quente), o amigo Plnio Marcos.
Porm, nem a declarada amizade impediu Roberto Freire de reconhecer que os artistas l
presentes devem estar decepcionados e o que restou do espetculo, apesar da apoteose final,
deve ter decepcionado muita gente que se ocupa de estreia tradicional ou de vanguarda em teatro,
bem como os folcloristas ou especializados em religies de origem africana. Freire parecia intuir
o que viria pela frente. Pediu a toda essa gente, em nome do pblico comum que estava no teatro,
que esquea um pouco sua erudio e sensibilidade, estruturadas na tradio e no estrangeiro.
Pediu que se visse, em Balbina, a mais linda exploso de criatividade e comunicao de gente
pura e simples, ocorrida fora dos carnavais, fora das favelas, fora dos clubes de bairro, fora das
ruas em dias de festa.
possvel que Sbato Magaldi no tenha lido os apelos de Roberto Freire, mas seguiu a mesma
linha de anlise. Na semana seguinte estreia, a sua crtica nO Estado de S. Paulo comeava
pedindo ateno ao que acontecia nos palcos da cidade para avaliar Balbina de Ians: Atingimos
um nvel internacional em espetculos como O arquiteto e o imperador da Assria. Participamos
da vanguarda europeia e norte-americana com as experincias do Oficina. Cemitrio de
automveis reproduziu o lanamento parisiense. O balco modelo para a prxima montagem da
Broadway. Em meio a esse ambiente de elite, sofisticado e alheio a razes nacionais, Plnio
Marcos tenta impor a sua voz brasileira, modulada numa linguagem autenticamente popular.
Balbina representa uma posio radical, que vale como um manifesto. Sbato faz restries
estrutura do texto e direo do espetculo, assinada pelo autor, recomenda maior apuro
artstico, mas termina considerando Balbina uma promessa importante de Plnio Marcos na
tentativa de realizar um teatro popular brasileiro.
A crtica deu a rplica e nunca mais falou com Plnio Marcos. Eu gostava dele, escrevi vrias
matrias em sua defesa e contra a Censura, mas depois disso nem nos cumprimentamos mais. Ele
me virava o rosto quando a gente se encontrava, conforma-se Regina. Polmica parte, o pblico
que Monsueto prometeu mandar para ver o espetculo no apareceu. Se apareceu, no foi em
nmero suficiente para garantir a temporada de Balbina de Ians, que trocou o palco do Teatro
So Pedro pela quadra da escola de samba da Casa Verde. Ali no faltaram pblico e entusiasmo.
Mas os ingressos, muito baratos, no pagavam a produo, que terminou em prejuzo para Plnio.
Prejuzo do qual ele no se refez com a montagem da pea, ainda em 1971, no Rio de Janeiro, com
um casal que fazia enorme sucesso nas novelas da TV Globo: Yon Magalhes e Carlos Alberto,
que tambm dirigiu o espetculo.
No Jornal do Brasil, Macksen Luiz tirou o chapu para a iniciativa: Com o prestgio que a
televiso lhes deu, Carlos Alberto e Yon Magalhes at ento no tinham se preocupado com a
melhoria de seu repertrio teatral. O teatro nada mais era que o prolongamento (menos restrito) do
que faziam nas novelas. Investir prestgio, fama, dinheiro em um texto como Balbina de Ians ,
pelo menos, uma prova de honestidade de propsitos. Ainda mais quando se sabe que Balbina
teve uma acolhida (crtica e pblico) fria em So Paulo. Insistir num sucesso duvidoso para quem
s vive para frmulas infalveis de xito uma ousadia e um desrespeito aos padres do bom
comrcio. Mas, agora, a dupla no quer somente vender seu nome. Quer tambm vender uma ideia:
a do teatro de razes populares. E ningum melhor que Plnio Marcos para dar-lhe realidade.
Macksen Luiz pegou leve em sua crtica ao espetculo e a Plnio: Ao contrrio de seus textos
anteriores, Balbina de Ians esquemtico, tem poucos dilogos e menos acabamento. Mantm,
no entanto, a mesma sinceridade nas mensagens. Sem se deter nas restries, o crtico ressaltou
que, com habilidade pouco comum, Plnio Marcos diz tudo que deseja sem qualquer
complicao, desmontando o processo de alienao de certa prtica mstica. Ingnuo, at
simplrio, o fato que Balbina de Ians emociona a plateia ao final. Cultura popular autntica,
com um dilogo habilidosssimo (reproduzindo a gria dos frequentadores de terreiros), Balbina
pode no ser o melhor de Plnio, mas , certamente, o mais sincero.
GORDINHA SEXY A RAINHA DA BANDA Mandava a tradio que banda tivesse rainha.
Como a de Ipanema era a estonteante e debochada Leila Diniz, por decreto e sem ressalvas Plnio
elegeu a no menos estonteante e debochada Etty Fraser. A atriz estranhou ser a Rainha da Banda
Bandalha e quis tirar o seu avantajado corpo fora. Puro charme. Enquanto relutava em aceitar a
honraria, Etty j definia a roupa para o desfile, com direito a exibir suas pernas em transparentes
meias de renda, como as que usou na pea O rei da vela, no Teatro Oficina. Em crnica na ltima
Hora, Plnio explicou o que no pedia explicao:
Etty Fraser boa amiga de todas as pessoas. No s dos meios artsticos como do povo em
geral. Ela passa o ano todinho perdendo horas preciosas com qus-qus-qus e au-au com gente
que ela nunca viu, mas que a breca na rua pra chorar as pitangas. E na casa dela o telefone no
para nunca. So colegas que pedem socorro de uma boa palavra, de uma dica, de uma grana. E tem
mais, meu lorde. Etty Fraser, a gordinha sexy, Rainha da Banda Bandalha, est sempre alegre,
bonita e bem amada. No castiga a natureza com regimes absurdos. E por isso mesmo a gorda
mais satisfeita do planeta.
Deu-se ento que, sob o reinado da gordinha sexy, a Banda Bandalha saiu no dia 16 de fevereiro
do Bar Redondo, em frente ao Teatro de Arena, desceu a Consolao, entrou na contramo na So
Lus at a praa da Repblica, dobrou a Ipiranga de volta ao ponto de partida. No dia seguinte, a
imprensa leia-se Plnio Marcos calculou em quatro mil o nmero de pessoas envolvidas
pela banda. Mais modesto, o jornalista Alessandro Porro se lembrava, muitos anos depois, de um
squito de algo como trezentos folies e da represso. Quando chegamos praa da Repblica,
fomos obrigados a voltar para as nossas casas, por imposio de um senhor de terno preto que
nunca descobrimos se era o responsvel por uma casa funerria ou um delegado do Dops, como
ele dizia ser.
Quatro mil ou apenas trezentos, nada mal para uma cidade com a fama que Vinicius lhe pregou.
Plnio Marcos nem se deu ao trabalho de reportar o acontecido aos desafetos cariocas,
representados por Srgio Cabral e Carlos Imperial, que testemunharam o desmentido ao tmulo do
samba. No se tem notcia de incidente grave nos dois anos seguintes em que a Bandalha saiu. A
no ser episdios de ordem pessoal, como o reportado por Alessandro Porro, que teria sido
chamado pelo dono da Editora Abril, onde trabalhava em alto cargo. Acho que os nossos
diretores deveriam evitar se exibir em manifestaes carnavalescas. Especialmente ao lado de
pessoas complicadas, disse o patro, apontando uma foto no jornal em que Porro e Plnio
apareciam eufricos e festivos.
Considerando que essa avaliao, smula do pensamento de Plnio Marcos sobre o carnaval, se
referia aos primeiros sinais do que aconteceria a partir da dcada seguinte, ela no deixava de ser
proftica. Entre esses sinais, ele lamentava que vrias escolas de samba deixaram de desfilar no
seu prprio bairro em homenagem comunidade a que pertencem para desfilar em cidades do
interior por altos cachs, fazendo no mesmo dia, algumas delas, at trs desfiles. Como o futebol,
que o povo subtrara das elites, o carnaval estava se condenando a virar s um negcio. Para quem
defender e preservar as expresses culturais espontneas era urgente, Plnio no tinha por que se
alegrar com os novos tempos. Mas no recolheu armas. Enquanto viveu, chiou.
Em 1998, ele me pediu credencial para o Sambdromo, recorda Carlo, que continuou
trabalhando na Anhembi Turismo indiferente aposentadoria. Plnio lhe disse ento:
Quero ficar no meio da escola, conversando com os sambistas.
Mesmo sabendo que Plnio no aguentaria, Carlo arrumou a credencial e foi com ele para a
pista do Sambdromo. Por poucos minutos. Minha perna di, Plnio queixou-se e saiu. Era a sua
despedida definitiva do carnaval. Uma semana antes, ao lado do ator Paulo Goulart e do sambista
Germano Mathias, recebera a homenagem, ltima, da Banda Redonda, sucessora da Bandalha, que
acabou em 1973. Acabou porque ia sair no Sbado de Aleluia e a Prefeitura no pagou os
msicos, fala Carlo. Da o Plnio ficou puto: Eu no vou fazer mais banda nenhuma. Avisei o
povo e fui ao Plnio: Vamos fazer uma banda e voc vai ser o presidente. E ele aceitou.
Presidente de araque, claro, porque no se metia mais nas decises e s ajudava por fora. Coube
ao ator Lus Carlos Parreira sugerir o nome Redonda, aceito por ser bvia referncia ao bar, e
usar seus predicados de artista plstico para criar o estandarte com uma pomba da paz dourada no
centro sobre o fundo azul, franjas douradas e letras em branco.
PAGODEIROS COM HUMOR GROSSO E MALDITO Carlo, que vivia no meio dos
pagodeiros desde que se entendeu como gente, estreitou a ligao de Plnio Marcos com o pessoal
do samba, ligao que fincou razes profissionais a partir do espetculo Balbina de Ians. Em
1970, aconteceu o primeiro show de Plnio e os Pagodeiros da Pauliceia, que estreou em Belo
Horizonte a convite do Diretrio Central dos Estudantes, ento nas mos do Partido Comunista, o
velho Partido. A renda do show reverteu, inteirinha, para a defesa de presos e perseguidos
polticos. Tratava-se de uma operao triangular: ao socorrer os companheiros que nem estudantes
eram, o DCE usava dinheiro do caixa da entidade, que era reposto com a bilheteria de alguns
eventos. No caso do show dos pagodeiros, Plnio assinou o recibo, mas no viu a cor do dinheiro,
que ficou para o DCE. Ele brincava:
Foi o cach mais alto que assinei na vida.
Dos Pagodeiros da Pauliceia fazia parte a fina fl or de compositores e sambistas da cidade:
Geraldo Filme [de Souza], que trabalhou com Solano Trindade, baluarte na defesa da arte popular
a quem o fsico Mrio Schemberg deu a maior fora para projetar Embu das Artes; Zeca da Casa
Verde [Jos Francisco da Silva]; Toniquinho Batuqueiro [Antonio Messias de Campos], que saiu
de Piracicaba para se defender como engraxate na praa da Repblica; [Geraldo] Talism, autor
de lindos sambas (meu mundo no uma esfera, tem uma forma de cruz); Slvio Modesto, Paulo
Carrera e o carioca [Marco Aurlio] Jangada, jornalista esportivo que trocou a Unidos de Lucas
por So Paulo, ao ser contratado pela Editora Abril.
A Fausto Fuser, crtico de teatro, Plnio explicou:
Os estudantes descobriram esse show, no sei bem por qu. Talvez porque, na simples
apresentao de uma realidade, os estudantes, vidos de respostas, tenham encontrado afirmaes
justas.
No show, Plnio Marcos atuava como mestre de cerimnias, contando pedaos da vida de cada
um e da sua prpria vida, segundo Carlo, histrias que serviam de ligao dos sambas. Depois
de algumas andanas, o grupo pousou para uma temporada no Teatro de Arena, em 1 de agosto de
1972. So poucos os sambistas de So Paulo conhecidos nacionalmente e eis uma injustia que se
comete com eles, escreveu o crtico Walter (Pica-Pau) Silva na Folha. Para muitos, tirando
Adoniran Barbosa, no h sambistas em So Paulo. Puro engano.
O encontro foi to bom que eles resolveram dar uma caprichada no espetculo. Chamaram o
diretor Emlio Fontana, que, modesto, admite ter apenas ajudado a definir o roteiro, evitando tirar
a espontaneidade do grupo. O singelo ttulo Plnio Marcos e os Pagodeiros foi trocado pelo
explicativo Humor grosso e maldito das quebradas do mundaru. A estreia aconteceu em agosto
de 1973 no Teatro de Arte, no poro do TBC.
Ao terceiro sinal, Plnio caminha at o centro do palco, encarando a plateia para logo dizer:
Aparece tanta gronga boiando nas guas barrentas em que navego contra a mar, que meu
patu de f e de valia j anda at entortado. Nas quebradas do mundaru, l onde o vento encosta o
lixo e as pragas botam os ovos, nos atalhos esquisitos, estreitos e escamosos do roado do bom
Deus, vive o povo lesado da sociedade, que, apesar de tudo, generoso, apaixonado, alegre,
esperanoso e crente numa existncia melhor na paz de Oxal.
O texto de abertura no era s poesia. Referia-se ao episdio que inspirou o espetculo, depois
de inspirar um dos mais belos sambas de Geraldo Filme, Silncio no Bexiga. Mais que
homenagem, era um lamento por Pato Ngua, personagem querido da Vai-Vai.
O maior artista popular brasileiro, o maior apitador de samba que j houve em So Paulo, o
melhor chefe da torcida organizada do Corinthians na apresentao superlativa e amorosa de
Plnio, que no meio do espetculo contava a histria:
Ele amanheceu, uma manh, boiando numa lagoa, comido de peixe e de bala. A notcia
chegou no bairro do Bexiga na hora da Ave Maria e o povo das quebradas do mundaru chorou a
morte do grande sambista. Geraldo, legtimo poeta do povo, chorou por todos ns nessa joia que
Silncio no Bexiga.
O sucesso de Humor grosso e maldito das quebradas do mundaru com os estudantes rendeu,
em setembro de 1974, convite da Secretaria de Turismo da Prefeitura para uma srie de 24
palestras-shows intitulada Plnio Marcos conta a histria do samba em So Paulo. Fazia parte do
Projeto Universitrio, que procurava despertar o interesse por uma carreira profissional, o
Turismo, e enfatizar a hospitalidade que se deveria dispensar aos visitantes. Uma das estratgias
era aproximar os jovens paulistanos da histria e da cultura de sua cidade. Humor grosso tambm
foi o trunfo de Plnio quando as coisas engrossaram nos anos seguintes. Em abril de 1976, ele
reuniu os pagodeiros disponveis Geraldo, Zeca, Talism, Slvio Modesto e Toniquinho e
comeou nova temporada do espetculo na Igrejinha, casa de msica popular brasileira no Bexiga,
na confl uncia das ruas Santo Antnio e Treze de Maio. Sem trabalho na imprensa e com as peas
proibidas, Plnio inventava o que fazer. No dia seguinte, o crtico Walter Silva quis saber como
tinha sido a estreia.
Foi ameaada disse Plnio. O pblico cantou junto com a gente e cantou melhor. A
dona da casa, a Suade, disse: J que o pblico gosta de cantar, no preciso de vocs. Mas, em
compensao, ns bebe-mos mais que o pblico.
Mas voc cantor? insistiu Walter.
No. A bem da verdade, eu no sou nada. Mas depois que estou com dois usques na cuca, eu
penso que sou tudo. Tenho comigo compositores e cantores da pesada que garantem o sucesso e
permitem que no meio disso tudo eu arrie minha cascata.
CENA XIII
SE O MEU TEATRO SEMPRE SE DEVEU AOS GRANDES ATORES, O MEU BAL TAMBM TEVE A SORTE DE
SER FEITO PELO STAGIUM.
CHAMEI O OSMAR PARA OUVIR A LEITURA DA MINHA PEA SOBRE NOEL ROSA. A WALDEREZ, DE
VERGONHA DO TEXTO, NO QUIS ESCUTAR.
VALORES COMO DIGNIDADE, AMOR E F NO CONTAM. O QUE CONTA O PODER AQUISITIVO DE CADA
UM.
A solidariedade da gente do teatro, que ele conheceu no episdio pela liberao de Navalha na
carne, Plnio a experimentaria outras vezes. Solidariedade espontnea, sem aviso e de diferentes
formas. De pessoas com as quais sequer convivia e nem frequentavam os mesmos pedaos.
Quando as peas de Plnio estavam todas proibidas, o diretor Ademar Guerra, enquanto o escalava
como So Francisco de Assis em teleteatro proibido na TV Cultura, transformou Navalha na
carne em roteiro de dana. Se o texto, condenado pela Censura, no podia ser falado, nada
impedia que fosse danado. Os bailarinos e diretores do Ballet Stagium, Mrika Gidali e Dcio
Otero, para no cutucar os censores com vara curta decidiram junto com Ademar Guerra mudar o
ttulo para Quebradas do mundaru. Pioneiro em vrios setores da dana no Brasil, o Stagium fez
da pea de Plnio violento e comovente espetculo. Dana ou teatro? Dana e teatro. Uma
linguagem que a companhia j havia experimentado em outros bals, quando o mundo ainda no
reverenciava Pina Bauch como precursora do que se rotulou dana-teatro quatro anos antes,
sob a direo do mesmo Ademar Guerra, Mrika Gidali danou A infanticida Marie Farrar, bal
criado sobre o poema de Bertolt Brecht, narrado pela atriz Araci Balabanian.
Se o Ademar falou com o Plnio antes, eu no sei, mas ns s entramos em contato com ele
para avis-lo da estreia, diz Mrika, que interpretou Neusa Sueli e, sem palavras, conseguiu
tirar a mesma fora da personagem que as atrizes tiraram, segundo Plnio. Ele disse mais:
Quando a Mrika me disse, eu fiquei encantado, porque a estreia daquele bal vinha numa
hora em que eu estava completamente apagado, no estava trabalhando em absolutamente nada.
Eles me comoveram com um espetculo to bonito, que, apesar da ausncia da palavra, passava
tudo da Navalha na carne. Eu j acompanhava o trabalho deles. Posso dizer que descobri o bal
por meio do Stagium, que conseguiu impor um bal msculo, que me encantou. Se o meu teatro
sempre se deveu aos grandes atores, o meu bal, se eu posso dizer assim, tambm teve essa sorte
de ser feito pelo Stagium.
BALLET STAGIUM DANA NAVALHA Ao lado de Mrika Gidali, Dcio Otero interpretou
Vado e Milton Carneiro, Veludo. Na estreia, em 12 de novembro de 1975, o Teatro Municipal de
So Paulo tinha gente se agarrando nos lustres e saindo pelo ladro, no registro do prprio Plnio
Marcos, que no assistiu a nenhum ensaio, nem acompanhou o rigor de Ademar Guerra. Rigor que
comeou no trabalho com os atores eu no entendia por que ele deixava o Dcio e o Milton me
baterem tanto, sem falar nada, sem intervir, queixou-se Mrika e atingiu o maestro e
compositor erudito Aylton Escobar, que comps a trilha original.
A primeira verso mostrada por Aylton era lindssima, segundo Ademar, que cobriu o
compositor de elogios antes de dizer que aquela msica no servia nem pea de Plnio nem ao
seu espetculo. Ele no queria bailarinos danando sobre uma partitura musical bem estruturada,
harmoniosa e definida, como ensinava a tradio do bal, mas sim sobre sons que remetessem
realidade do submundo urbano das trs personagens. Aylton Escobar se controlou para no mandar
tudo para o espao, deixou de lado a formao erudita, pegou um gravador e foi para as ruas
ouvir a cidade. No surpreende que ele tenha sido premiado por esse trabalho.
No final de Quebradas do mundaru, Plnio reservou elogios especiais a Mrika Gidali, que
comparou a Cacilda Becker so mulheres vocacionadas para o palco, que nunca perdem o
lan.
Diretor de espetculos memorveis nos anos 1960, como Oh, que delcia de guerra,
Marat/Sade e Hair, Ademar Guerra fazia uma anlise na contramo do que todos, at Plnio,
diziam, que Navalha na carne uma pea para grande atriz: Pensam que Neusa Sueli a
principal [na estrutura da pea], mas o condutor, a base e a prpria razo de ser da pea o
Vado. Depois da estreia, Ademar explicou em carta o seu silncio nos ensaios, quando Dcio,
marido de Mrika, se excedia nas cenas de violncia.
Dcio batendo em voc, Mrika, era o desafio final, a comporta que faltava romper para voc
se tornar uma intrprete mesmo. Isso que foi difcil, no as sacanagens em cena. O truque estava
na violncia partida de algum que no te respeitasse fisicamente. Da eu nunca ter te dado razo
quando o Dcio te mandava a mo nos ensaios. Da eu nunca ter dito para ele o que eu sempre digo
para os meus atores no teatro, que tolice bater de verdade se a mesma iluso se consegue
tecnicamente. Da at eu mesmo incentivar discretamente as surras que voc levou. Precisava
enfrentar isso. Se perdesse, [seria] uma amadora de talento. Se enfrentasse e ganhasse, uma
intrprete real. Voc venceu.
Ademar justificava assim ter forado o Ballet Stagium a enfrentar a pea de Plnio Marcos.
Navalha na carne definiria, para o bem e para o mal, a qualidade interpretativa de cada ator-
bailarino. Exatamente como o autor disse sempre, que escrevia para os atores. No caso, tambm
para os bailarinos. Mas se no Brasil Quebradas do mundaru foi uma unanimidade nos aplausos
da crtica e do pblico, no ano seguinte, na Cidade do Mxico, dividiu a plateia. De repente, em
cena, comeamos a ouvir alguns apupos, encobertos por reaes a favor, lembra Mrika. No
final, aplausos e vaias se misturaram at que sobrou uma grande ovao. Sabamos do risco, pois
aquele era um festival de dana bem comportado. Plnio Marcos teria adorado ver aquilo.
Plnio tambm no veria outras eventuais adaptaes de suas peas para bal. Dcadas depois
do Stagium, a ltima de que se tem notcia a verso de Deux perdus dans une nuite sale
coreografado em maio de 2007, na Frana, por Jean Franois Michaud, que se props fazer uma
releitura fsica da obra.
ENREDO DE ESCOLA DE SAMBA ENTRA EM CENA No foi exatamente uma pea o que
Plnio entregou a Osmar. O prprio autor reconheceu tratar-se mais de um roteiro, que ficava
meio esquema de teatro de revista, meio enredo de escola de samba. O primeiro a torcer o nariz
ao texto foi o cengrafo e figurinista Flvio Imprio, que, ao entender a tese de Plnio de que o
grande espetculo musical brasileiro a escola de samba, deu um tratamento visual encenao
que arrebatou pblico e crtica. Ao assistir encenao de O Poeta da Vila, Sbato Magaldi
tambm reconheceu que a pea no correspondeu expectativa. Em sua crtica ele observa que
o texto contenta-se, frequentemente, com flashes e esboos, quando as exigncias dramticas
impunham um desenvolvimento da histria. Sente-se a falta de maior nmero de informaes e at
a polmica entre Noel e Wilson Batista, que ocupa tempo aprecivel do espetculo, permanece
solta, sem justificativa plausvel. Sbato termina com uma pergunta: Plnio se d melhor com a
prpria vivncia, no se sentindo vontade com um compositor mesmo to popular?. Pergunta
que voltaria quando Plnio buscou a biografia de Madame Blavatsky e a do cantor Francisco
Alves, o rei da voz, que tentou transformar em musical na pea inacabada Chico Viola.
No caso de Noel Rosa, ele certamente demorou a se dedicar ao trabalho e, quando no deu mais
para adiar, escreveu o texto em algumas horas.
Sentei-me s dezenove horas de um domingo e meia-noite j estava carteando a marra nos
botequins. No tinha escrito uma pea, mas um roteiro para um musical.
At ento ele vivia fugindo de Osmar, cada dia mais impaciente. Plnio passava, vez ou outra,
em frente ao nmero 1313 da avenida Pau-lista, via o andar das obras, conversava com os
operrios. Ah, isso aqui ainda demora uns dois anos, ouviu de um operrio e seguiu devagar o
seu caminho. O que ele no sabia que o teatro seria inaugurado antes do final das obras da sede
da Fiesp. Para driblar a cobrana, escreveu um rascunho da pea.
Chamei o Osmar, a Nize [Silva] e o [Benjamin] Cattan para ouvirem a leitura. A Walderez,
de vergonha do texto, no quis escutar. Os trs chegaram alegres e ficaram mudos, pasmados, sem
saber o que dizer diante de tal lixo. Eu, depois que eles foram embora preocupados, ri muito da
cara de susto do Osmar.
O roteiro final, entretanto, permitiu a Osmar Rodrigues Cruz realizar um espetculo arrebatador,
que estreou em 27 de maio de 1977, noite de emoo para Plnio, que declarou:
Desde 1971 no vejo um texto meu de verdade no palco. Desde 1971 no vejo minha Dereca
[Walderez de Barros] no palco defendendo texto meu. Essa estreia uma festa. Basta a noite de
estreia para me ver compensado por ter escolhido essa dura e maravilhosa profisso.
Com um elenco de 26 atores encabeado por Ewerton de Cas-tro, Nize Silva, Analy Alvarez,
a cantora Ana Maria Brando e Walderez de Barros e mais cinco msicos do Regional de
Evandro, O Poeta da Vila cumpriu uma das longas temporadas do Teatro Popular do Sesi e saiu
em 1979 para dar lugar a A falecida, de Nelson Rodrigues. Em sua
crtica na revista Isto , a escritora Ceclia Prada reservou elogios a Plnio por alinhavar
os episdios da vida do poeta e suas composies, fugindo completamente do didatismo e,
especialmente, ao elenco, ao diretor e a Flvio Imprio, por fazer do espetculo uma
reconstituio do ambiente da bomia carioca dos anos 30 e, em sentido amplo, um retrato do
Brasil. Na Folha, Jefferson Del Rios observou que ao final do espetculo, quando o teatro
inteiro aplaude emocionalmente, torna-se evidente que Noel viajou no tempo e na memria para
breve reapario. Ilka Marinho Zanotto, em O Estado de S. Paulo, valeu-se da altssima carga
de apelo popular do espetculo para contestar os que prejulgam o gosto das plateias e inundam
nossos palcos com as pornochanchadas teatrais para obter um xito duvidoso de bilheteria.
FEIRA LIVRE CONTRA CULTURA IMPORTADA O Poeta da Vila e seus amores ainda
estava em cartaz quando Plnio Marcos concluiu o que pretendia fosse uma opereta. E a escreveu
em versos, em 1976, enquanto adiava a entrega da encomenda feita por Osmar Rodrigues Cruz.
Tanto ele no considerava o roteiro sobre Noel Rosa um texto acabado, que dizia que h oito
anos no estreio uma pea minha, desde Balbina de Ians. Era incio de 1979 e o Teatro Opinio,
do Rio, anunciava a estreia em 1 de maro de Feira livre, sob a direo de Emiliano Queiroz,
com msica original de Ctia de Frana e coreografia de Graziela Figueroa, com Louise Cardoso,
Maria Helena Velasco e Maria Letcia frente do elenco.
Havia naquele momento promessas de mudana, no pas e na Censura. No por obra e graa da
abertura poltica prometida pelo general Ernesto Geisel e encampada pelo seu sucessor Joo
Batista Figueiredo, que assumira a presidncia da Repblica. Os focos de resistncia ditadura e
de presso da sociedade civil se alastravam em movimentos organizados. Exigia-se a volta do
Estado de Direito e o fim das leis de exceo, clamava-se pela anistia poltica e a libertao de
presos e a repatriao dos brasileiros exilados pelos governos militares. Em 1 de janeiro de
1979, revogou-se o AI-5, encerrando-se assim o terror jurdico e a represso poltica
institucionais. Como vingana contra o arbtrio, mais que para festejar a propalada abertura, Plnio
Marcos anunciou que inundaria os palcos com as suas peas.
Estou me preparando neste momento para empestear o teatro de peas: vou colocar dez em
cena, antigas e novas ameaou em entrevista a Miriam Alencar, do Jornal do Brasil, em 17 de
fevereiro. E continuou:
O pas est envolvido h quinze anos numa onda de obscurantismo proveniente da censura,
das prises, dos exlios. O Brasil um pas esmagado pela cultura importada. Visa justamente
esmagar a manifestao espontnea do nosso povo, descaracterizando o nosso homem comum,
amesquinhando o nosso mercado de trabalho, impedindo que o profissional do ramo discuta os
aspectos culturais do seu meio. Isso seria uma questo de segurana nacional, se ns tivssemos
um governo que se preocupasse com o povo. Como no temos, maravilhoso quando aparece um
grupo de teatro como esse que vai montar Feira livre e se prope rever todas essas influncias que
ns estamos sofrendo.
Trs peas suas continuavam proibidas Navalha na carne, O abajur lils e Barrela. Embora
no proibidas oficialmente, Orao para um p de chinelo e Homens de papel no conseguiam
alvar para encenao. Dois perdidos numa noite suja voltara cena com Juca de Oliveira e
Oswaldo Loureiro, excursionando pelo pas. Cogitava-se nova montagem de O Poeta da Vila no
Rio de Janeiro. Duas peas novas, Feira livre no Rio e Sob o signo da discoteca em So Paulo,
tinham estreias marcadas para os meses seguintes. Ele ainda trabalhava na adaptao para teatro
de Quer, uma reportagem maldita, prmio de melhor romance de 1976, concedido pela
Associao Paulista de Crticos Teatrais. Plnio estava cheio de gs no incio de 1979. Mas sem
iluses.
O teatro, com o fim da censura, conseguia a sonhada regulamentao da profisso de artistas e
tcnicos. No adianta regulamentao sem mercado, berrava Plnio, sem influir no resultado
daquele jogo. Um jogo que, se garantia direitos, impunha limitaes ao exerccio da profisso de
ator. Ele mesmo, Plnio, sem diploma de escola de teatro, teria de se virar mais que me de porco-
espinho na hora do parto para trabalhar se a lei existisse no incio da sua carreira. Para ele, a
regulamentao seguia critrios dos patres. Os artistas continuavam fora de um mercado
dominado pelo que ele dizia ser um lixo cultural suprfluo que tanto mal faz ao povo brasileiro.
Artista americano morto trabalha mais que brasileiro vivo nas telas do cinema e da televiso,
insistia, arriscando uma anlise econmica:
Na importao da cultura de consumo gastamos mais que na importao de petrleo. uma
fonte de escoamento de divisas dos cofres do Tesouro nacional, faz aumentar a dvida externa e
vem possibilitar a esses traidores da ptria justificar a venda da floresta amaznica. A nossa luta
impedir a invaso do pas atravs dos veculos de comunicao, em vez de ficar brigando por
regulamentaes tacanhas, subvenes ridculas e favores do governo.
A NOSSA LENTA PERDA DE IDENTIDADE O fato que, sob o signo da discoteca e outros
signos menos danantes, o pas havia mudado e uma nova gerao dava as caras, diferente daquela
da turbulenta dcada de 1960. Os velhos e no resolvidos problemas sociais e polticos
permaneciam os mesmos, agravados at, mas no mobilizavam mais os que chegavam sem a
indignao da gerao anterior. Mesmo a mobilizao operria, que, naquele momento,
emparedava a ditadura e a represso com as histricas greves do ABC paulista, vinha com uma
carga reivindicatria diferente, pontual, classista.
Plnio Marcos sabia o que queria dizer ao colocar um trabalhador na sua pea. As lideranas
emergentes, das quais o torneiro mecnico Luiz Incio Lula da Silva se tornou a sntese mais bem-
acabada, traziam um discurso de ruptura com o passado. Na bacia de gua usada, jogava-se fora
tanto o perverso peleguismo em que dirigentes sindicais se locupletaram quanto as lutas histricas
dos que se moviam por utopias. O pragmatismo das reivindicaes, que desembocaria no
sindicalismo de resultados, herdeiro direto das gestes assistencialistas e paternalistas dos
velhos pelegos antes to combatidos e condenados, no abria espao para reflexes ideolgicas.
Artistas e intelectuais se aproximaram do movimento sindical como linha auxiliar, como apoio
estratgico, alia-dos que ajudavam a legitimar a luta operria junto aos demais setores da
sociedade. A compreenso de que o direito de greve, do interesse dos
trabalhadores, estava no mesmo captulo do direito livre expresso do pensamento fugia do
centro da pauta sindical. A desculpa, to repetida, de que os operrios no queriam ser tutelados
pelos artistas e intelectuais era exatamente isso. Uma desculpa. Para no macular a pureza naf dos
novos lderes, o exerccio do pensamento, abstrato como da natureza das ideias, acanhou-se. No
estranha, portanto, que o Z das Tintas, de Sob o signo da discoteca, tivesse os mesmos pobres
objetivos do jovem loiro da classe mdia com quem se confrontava.
Definida pela crtica como pea de tese, o espetculo fez curta temporada no Teatro Igreja e
em breve turn por algumas cidades do interior. Mas a tese de Plnio no comoveu nem gerou
debates. Segundo ele, o Blacksoul que desbancava o samba nos morros cariocas, como a onda das
discotecas entre os jovens de classe mdia, fazia parte de uma estratgia de colonizao cultural.
Isso soava discurso ranoso, num momento em que at o carnaval abandonava suas razes para se
transformar em espetculo de luxo para a televiso. Plnio exemplificava:
Para voc ter uma ideia, a Beija-flor de Nilpolis foi trs anos seguidos campe do carnaval
carioca sem ter a melhor bateria, o melhor puxador de samba ou o melhor mestre-sala e porta-
bandeira. Eles ganhavam com harmonia do desfile, fantasia e alegoria, pelos padres do Joosinho
Trinta, que um artista do Teatro Municipal, um artista erudito. O sambista ento se sentiu
marginalizado, no era mais necessrio na escola, ele se afastou. As multinacionais, percebendo
que esse negro precisava de uma forma de afirmao, ofereceram o Black-soul, que passou a ser
para o negro suburbano a mesma coisa que o i-i-i para o boyzinho branco, uma forma de
afirmao. Isso levou o negro a se dividir e a competir com o branco pobre. Voc chega hoje a
uma favela do Rio e encontra um negro que diz: negro pobre sofre mais que branco pobre, ns
temos que lutar contra o branco. Esse cara que consome a moda americana vai defender a
importao de cultura. A msica Black tem que entrar. Se voc disser que a msica Black no tem
que entrar, ele vai te chamar de repressor e dizer que voc no quer que o negro se desenvolva.
assim que eles ocupam o pas.
Se preconceito havia, no havia ainda a questo racial colocada nos termos em que, nas dcadas
seguintes, seria discutida na sociedade brasileira, luz de uma histria de discriminao que no
exatamente a nossa e de uma polmica poltica compensatria. Plnio antecipava um entendimento
sobre o tema, denunciando a j irrefrevel colonizao cultural, conceito estigmatizado pelo uso
corrente no vocabulrio da esquerda, mas que, entendido em sua extenso, ajuda a compreender o
processo de perda da nossa identidade.
Um povo que no ama e no preserva suas formas de expresso mais autnticas jamais ser um
povo livre. O conceito contido no aforismo, que Plnio repetia exausto, parecia condenado ao
esquecimento.
CENA XIV
ESTOU AQUI APENAS PARA DEFENDER O FEIJO COM TRANQUEIRA E PARA DEFENDER PONTOS DE
VISTA.
O SAMUEL WAINER ME DIZIA: VOC TEM QUE ME TAPEAR, PORQUE A SUA PENA LIVRE, MAS O PAPEL
TEM DONO.
EU FUI ESCREVER LITERATURA PORQUE A CENSURA NO ESTAVA LIBERANDO NENHUMA PEA MINHA.
No Congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC), em 1977, na
Universidade de So Paulo, o jovem estudante de cincias sociais viu aquela figura solitria
encostada na parede e no resistiu curiosidade que o assaltou. Tambm tmido, aproximou-se
para tirar a dvida.
Voc o Plnio Marcos?
O tempo todo.
Depois de um brevssimo silncio, os dois riram. Nada mais foi dito. Precisava? O rapaz se
afastou e Plnio continuou no seu canto quieto e sozinho. Nem se deu conta de que o estudante se
chamava Otavio. Mais que isso, filho do seu Frias, dono da Folha de S. Paulo, jornal para o
qual ele tinha acabado de voltar a colaborar depois de ser demitido da revista Veja pelo seu
Civita. Nunca mais Otavio Frias Filho esteve assim to perto de Plnio Marcos, autor que s
conhecia da leitura de Dois perdidos numa noite suja e Navalha na carne. Quando essas peas
estrearam dez anos antes, ele no tinha idade para ir ao teatro. E agora, chegando aos vinte, no
podia assisti-las porque estavam proibidas.
Eu tinha enorme admirao, sobretudo pelo poder do seu dilogo. Voltei a encontr-lo, mesmo
no jornal, mas nunca conversamos. Me impressionava a sua figura meio pattica, vendendo seus
livrinhos. Plnio me lembrava Iessinin, poeta rival de Maiakovski, que no se cuidava e vestia-se
como campons, embora no o fosse.
(Siergui Iessinin, o poeta lembrado por Otavio, enforcou-se num quarto de hotel aos trinta
anos; Maiakovski lhe dedicou um poemaNesta vida morrer no difcil. O difcil a vida e seu
ofcio.)
A resposta curta e grossa, e divertida, com que se apresentou, deu a Otavio a sntese de um
personagem que foi Plnio Marcos o tempo todo, no teatro ou nas histrias, crnicas e reportagens
que publicou na imprensa. Plnio foi sado da Veja em janeiro de 1976 e em 6 de fevereiro de
1977 assinava a sua volta imprensa, agora na Folha de S. Paulo. Voltava sem mgoas e sem
rancores. Com um nico e claro objetivo: Estou aqui apenas com as mesmas finalidades de
sempre, defender o feijo com tranqueira e defender pontos de vista.
Voltava, segundo ele mesmo, depois de ser afastado do jornalismo por motivo de fora maior,
alis, de fora muito maior. Voltava a convite de Tarso de Castro, editor do caderno Ilustrada.
E aqui estou. Plnio Kid em carne e osso. Mandando ver. Os peles-vermelhas podem trocar
bala com os caras-plidas, que nem me afobo. Conheo o enredo e s vou morrer no fim da fita.
DEMISSO DA FOLHA NA POLCIA FEDERAL O fim da fita estava mais perto do que ele
imaginava. Ernesto Geisel, terceiro general-presidente do perodo militar, enfrentava resistncias
ao seu projeto de promover no pas uma abertura poltica lenta e gradual. J sentira o tamanho dos
problemas nos episdios do assassinato, no 2 Exrcito em So Paulo, do jornalista Vladimir
Herzog e do operrio Manoel Fiel Filho. Em 1977, sob o pretexto de impor sua determinao,
Geisel fechou o Congresso por um curto perodo, o suficiente para editar o pacote de abril, com
mudanas no Poder Judicirio. Na imprensa, o reflexo visvel apareceu no expediente, em que
surgia no lugar de diretor-proprietrio a figura do diretor-responsvel, ou seja, do jornalista que
responderia por qualquer deslize passvel de ser enquadrado na Lei de Imprensa e da no menos
temida Lei de Segurana Nacional. Na Folha de S. Paulo, as consequncias viriam com a
substituio de Cludio Abramo na direo de redao por Boris Casoy.
Na noite de 11 de agosto, Plnio Marcos fora intimado a compare-cer na sede da Polcia
Federal, na rua Piau, que ele j conhecia de outros carnavais. O motivo, uma crnica publicada
em maio na Folha com o ttulo Quando o sol raiar eu irei a Cruzeiro. Ela falava de um incidente
com o autor e ator ao se apresentar tempos atrs na cidade de Cruzeiro, no Vale do Paraba. Para
impedi-lo, as autoridades locais exigiram que ele tivesse um alvar que s poderia ser retirado na
vizinha cidade de Lorena. Como j era noite, seria impossvel obter o documento, que era exigido
por absoluta intolerncia da represso municipal. O absurdo da exigncia inspirou a crnica de
Plnio. O absurdo continuou na intimao tardia da Polcia Federal, para ele explicar o
inexplicvel. Foram vrias idas e vindas, que terminaram quando ele foi informado, pelos
policiais, que Cludio Abramo no era mais diretor do jornal e ele, Plnio Marcos, estava
demitido da Folha.
O cerco Folha se fechou com a publicao de uma crnica de Loureno Diafria em agosto
Heri. Morto. Ns. No Dia do Soldado, em vez de reverenciar o Duque de Caxias, patrono do
Exrcito, Diafria preferiu homenagear outro heri, um soldado annimo que arriscou a vida
atirando-se num lago de ariranhas para salvar uma criana. Aquilo, para os militares, soava como
provocao. Provocao que aumentou quando o jornal, reagindo priso do cronista, saiu com o
espao da coluna em branco, denunciando a violncia aos leitores.
Bela tarde, Plnio Marcos estava de volta Polcia Federal alm do inqurito por causa da
crnica, era acusado agora de pregar a subverso em palestras que fazia no interior com o tema
Necessidades culturais do povo brasileiro. De repente o interrogatrio foi interrompido por uma
comisso do Sindicato dos Jornalistas. O delegado recebeu Audlio Dantas bravo presidente
do sindicato, que falou com Plnio e, segundo ele, no me disse nada e autorizou a visita a
Diafria, brilhante colunista e bom amigo, observou Plnio. Ele se juntou ao grupo para dar
fora ao amigo. Terminada a visita, todos saram. Menos Plnio, que continuou sendo interrogado.
Ningum sequer se interessou em saber o que ele fazia na Polcia Federal. At o delegado que o
interrogava se admirou, segundo o relato de Plnio em crnica publicada depois no Dirio da
Noite.
Eu expliquei com sinceridade:
Sabe como , eles so do Sindicato dos Jornalistas e eu no sou jornalista. O Ministrio do
Trabalho no me reconhece como jornalista. E o sindicato cuida dos sindicalizados.
O homem fez uma cara de pasmo e me perguntou:
E voc o que , ento?
Mais uma vez fui honesto na resposta:
Um marginalizado, como a grande maioria dos brasileiros.
O delegado, com expresso de tristeza, ficou pensativo. Saiu da sala, cochichou com outros
policiais e quando voltou estava muito srio e anunciou com voz grave:
, voc vai cair mesmo na Lei de Segurana Nacional.
Demitido da Folha, Plnio voltou grande imprensa em 11 de dezembro de 1978, no Dirio da
Noite. Na primeira crnica, em que registra o episdio citado, ele tambm respondia aos que
atribuam o convite do jornal abertura poltica que se insinuava no pas:
No houve abertura nenhuma. Na verdade, no se abriu nem uma fresta.
Dito e feito. Meses depois ele j estava fora do Dirio da Noite. Plnio voltou ainda uma vez
Folha, e por seis meses em 1980, a convite de Boris Casoy, como colaborador da seo de
esportes, editada por Jos Trajano e Jos Roberto Malia o Z Maria, que ele conhecera nos
primeiros tempos de redao na ltima Hora, em 1968.
Z Maria, por mais que um cartola possa ser bom, ele nunca bom.
Malia guardou bem essa definio sobre os dirigentes de futebol, alvo das crticas de Plnio j
na sua estreia como cronista no ltima Hora, e conta: Trs vezes por semana ele vinha redao.
Entrava tranquilo, chinelo, cala branca, sem pressa pra nada, com aquele ar de santista indo pra
praia. Trazia a coluna pronta e ficava conversando a tarde toda, sempre com histrias novas que
paravam a redao, atrapalhando o fechamento do jornal. Eu tinha que interromper: Vai tomar
caf, Plnio. A ele descia, mas logo estava de volta. No falava s de esportes, mas de tudo, era
muito bem-informado.
PROIBIDO ANTES MESMO DE SER LIDO Desde sempre estava claro que a presso sobre
Plnio no se limitaria ao seu teatro. Em agosto de 1968, ano em que ele iniciou sua colaborao
semanal no jornal ltima Hora, a Folha noticiava que a situao era a seguinte: Trabalho dele
que chega a Braslia proibido antes mesmo de ser lido. Os censores dizem: Plnio Marcos?
Proibido. A proibio tinha um objetivo mais cruel e restrito: impedi-lo de trabalhar. Fosse onde
fosse.
O jornalista Alessandro Porro testemunhou a presso para silenciar Plnio j naquela poca.
Depois do AI5, Porro e Milton Coelho da Graa assumiram a direo da revista Realidade no
lugar de Paulo Patarra, o que provocou uma revoada na redao, inconformada com a troca. Saiu
at o escritor e mdico Roberto Freire, que tinha feito a primeira e grande reportagem na revista
sobre Plnio Marcos, em setembro de 1968. Ele e tantos outros, como Srgio de Souza, Woile
Guimares e Mylton Severiano da Silva, saram. (Srgio e Mylton criaram no incio dos anos 199
O a revista Caros Amigos.) Plnio, como colaborador, ficou na Realidade e outros, como
Raimundo Pereira, que estava na Veja, chega-riam depois. (Raimundo, em plena ditadura, criou
publicaes alternativas como os jornais Opinio e Movimento.)
Em texto de 1997, em O Globo, Alessandro Porro conta que certa manh de 1969 Victor Civita
o chamou para dizer que um cretino fardado, cheio de estrelinhas pediu que o nome de Plnio
Marcos no aparecesse mais em nenhuma publicao da editora, pois pernicioso para a moral
brasileira. Seu Civita perguntou a Porro, sem meias palavras: Ele perigoso?. Depois de
informado sobre o personagem e a importncia de t-lo como colaborador da casa, Civita no o
demitiu. Ele podia escrever, mas sem assinar as matrias. Plnio virou o pernicioso, para
pouqussimas pessoas, inclusive o dono da editora e minha secretria. O pernicioso mandou o
texto sobre futebol? Chegou a matria do pernicioso sobre a vida dos palhaos de circo no
interior? O pernicioso escreveu a reportagem sobre as cantinas do Brs? Eram esses os temas
muito pouco malditos que o futuro autor de O abajur lils fazia questo de propor, com um sorriso
de desafio iluminando seu rosto.
Enfim, ele era Plnio Marcos o tempo todo. Por isso, no fim da vida, ao olhar para trs, no
lamentou, s constatou o que lhe custou tambm ser jornalista:
Fui despedido da UH, da Veja, da Placar, da Repblica, da Isto , da Folha, fui despedido
de tudo quanto era lugar.
A PENA LIVRE, MAS O PAPEL TEM DONO A colaborao de Plnio na imprensa diria
passou a ser contnua em julho de 1969, no jornal ltima Hora, em seguida sua priso em Santos.
Criado no Rio de Janeiro por Samuel Wainer em 1952, aps a eleio do presidente Getlio
Vargas, e identificado como um jornal vibrante, uma arma do povo, ele foi um dos primeiros
alvos do regime militar implantado no pas em 31 de maro de 1964. Antes de exilar-se na
Europa, Samuel vendeu a sucursal paulista de ltima Hora ao grupo Folha da Manh, de Octavio
Frias de Oliveira.
No fim do primeiro semestre de 1969, o jornal tinha sado de uma crise interna e o novo diretor
Alcides Torres, notvel artista grfico que vinha da Cidade de Santos, tambm do grupo Folha,
assumiu uma redao com um quadro reduzido de profissionais. O crtico de teatro Joo
Apolinrio, editor do caderno de Variedades, o convenceu a manter Plnio Marcos como
colaborador. Torres concordou e o chamou para conversar. Para driblar a censura que chegava
imprensa, desde a promulgao do AI-5 em dezembro de 1968, Plnio escreveria histrias
semanais de personagens populares e annimos, que conhecia to bem. Histrias das quebradas
do mundaru, que o aproximaram definitivamente da produo literria, alternativa de
sobrevivncia para um dramaturgo expulso dos palcos. Ele contou:
Comecei com contos. Era para ser uma coisa assim: j que voc escreve peas, pode tambm
escrever a vida como ela . Mas uma coisa escrever na ltima Hora do Rio de Janeiro, outra
escrever na ltima Hora caindo pelas tabelas, como andava na poca.
De fato, ltima Hora estava longe do jornal influente de outros tempos e em cujas pginas
Plnio descobriu Nelson Rodrigues e A vida como ela . Foi Nelson um dos primeiros a quem
ele falou do convite de Joo Apolinrio. Vai por mim, ouviu do amigo, comece com uma coluna
semanal, escrever coluna diria de entortar patu. E assim ele fez, contando a vida pela tica de
seus personagens marginalizados e esquecidos, aproximando-se ainda mais da cultura popular.
Entre idas e vindas, Plnio ficou ligado redao da ltima Hora at 1975. Nos breves intervalos
colaborou no Dirio da Noite em 1970 e, em 1972, no Guaru News, jornal de Guarulhos, na
Grande So Paulo, em que assinou por alguns meses a coluna Nas Quebradas do Mundaru.
Quando Samuel Wainer, de volta do exlio em 1973, a convite de Octavio Frias de Oliveira,
assumiu como contratado a direo do jornal que fundara, Plnio Marcos ganhou novos espaos na
ltima Hora. Vai escrever pancada mesmo, escreve pra valer que a hora essa. Plnio ouviu o
estmulo quixotesco de Samuel, acompanhado de uma ressalva que ele jamais esqueceu:
O Samuel me dizia: voc tem que me tapear, porque a sua pena livre, mas o papel tem
dono. Ento a gente tinha que se virar pra driblar a censura.
A convivncia na redao e nas mesas do Gigetto deu a Plnio a certeza de que Samuel Wainer
era um homem muito magoado, embora no parecesse. A certeza veio em um episdio
corriqueiro, quando, contou Plnio, um bando daquelas perigosas criaturas com gravador e
uniforme de colgio entrou na redao para entrevistar Samuel. Entre-vista que resultaria em uma
aula da histria poltica recente do Brasil com um personagem que a viveu.
O episdio, na viso de Plnio Marcos:
Samuel, eu sei l se estava carente naquele dia, chamou parte da redao pra ouvir ele falar
para as menininhas, todas encantadoras. E ele foi falando, falou de Getlio Vargas, contou uma
poro de passagens. Fim de tarde, o sol j se pondo, aquela coisa melanclica, aquele homem
falando, aquelas menininhas tristes. Tenho certeza..., antes de ele completar a frase o gravador
fez tec, acabou a ltima fita. Ele continuou: Tenho certeza que, quando vocs vieram me
entrevistar, no sabiam que eu era nada disso que eu contei aqui. A a menininha mais bonita e
mais inteligente de todas virou e falou assim: Para ser franca, sr. Samuel, a nica coisa que a
gente sabia do senhor que tinha sido marido da Danuza Leo. A samos da redao e eu tive
que ficar bebendo com ele at as quatro da manh. O cara faz a histria e a fica como marido da
Danuza Leo!
COM TOM JOBIM, TREMENDO NA BASE Compreendido que a pena livre, mas o papel
tem dono, Plnio no se limitaria a escrever artigos. Sairia s ruas como reprter. Ganhou uma
pgina aos domingos para registrar os Encontros de Plnio Marcos, o que o levou a rever amigos
como Adoniran Barbosa e a tremer nas bases diante de Tom Jobim. O compositor voltava a So
Paulo com Elis Regina a tiracolo para duas nicas apresentaes no Teatro Bandeirantes, na
Brigadeiro Lus Antnio, dias 25 e 26 de outubro de 1974. Eles tinham gravado um disco
antolgico, Elis & Tom, e agora se encontravam no palco, em espetculo produzido por Roberto de
Oliveira, recm-casado com Pinky Wainer, filha de Samuel e Danuza.
Na quinta-feira, vspera da estreia do show, Plnio foi escalado para entrevistar Tom Jobim. Na
edio daquele dia, a ltima Hora publicava uma declarao de Elis segundo a qual o maestro
a Greta Garbo da msica brasileira, aquela figura difcil que todos conhecem por tradio oral e
que, na verdade, diz s querer Brahma morna e calo largo. Plnio relaxou. Era tudo o que ele
em seus chinelos precisava saber para no se preocupar com a tarefa que Samuel lhe atribuiu. A
entrevista seria tarde, no teatro, antes do ensaio.
Por no acreditar em pontualidade de artista carioca, escreveu Plnio, sa da redao pro
apontamento exatamente s catorze horas, certo de que ia ter de esperar pelo Tom, mesmo
chegando atrasado.
Quebrei a cara. Ao chegar ao teatro, o Tom j estava ao piano. Fiquei admirado em voz alta:
Pombas! O cara profissional mesmo. Essa pontualidade ele deve ter aprendido nos EUA.
Atrasado, sem moral para se apresentar, Plnio ficou de lado, s ou-vindo Antonio Carlos Jobim
que brincava ao piano em uma audio quase exclusiva, enquanto o fotgrafo Joo Kuntz adiantava
o seu trabalho.
O Tom sorriu sem jeito e eu tambm sorri. Que se pode fazer? A, ele deu a partida: Ento,
Plnio Marcos, diz a. Pode ser besteira de minha parte, sei l. Mas o Tom Jobim um dos
monstros sagrados da msica popular brasileira. E diante de monstros sagrados eu tremo nas
bases. Fiquei sem ter o que dizer.
O que saiu publicado foi menos uma entrevista e mais o registro de impresses de uma conversa
sobre temas gerais, disco, show, condies de trabalho sempre difceis no Brasil. No meio dessa
conversa jogada fora, o reprter apareceu em uma pergunta mais direta. Nem foi uma pergunta.
Plnio sugeriu que rolava um papo de que Tom Jobim no gostava de trabalhar. O que para ele,
Plnio, seria at uma qualidade a mais no currculo do maestro. No bem assim, corrigiu Tom.
No gosto muito de fazer show. Sabe, eu sempre fui mais compositor. Nunca fui muito artista de
show. Por isso mesmo, tenho que ensaiar. Foi a indireta certeira para Plnio perceber que ele
estava empacando o ensaio.
Estava falado. Sa do palco e fui sentar na plateia, com o Roberto de Oliveira.
Era o mnimo que se podia esperar do reprter atrasado diante do monstro sagrado. No
domingo, o jornal tinha a matria encomendada por Samuel Wainer, embora no exatamente uma
entrevista com revelaes ou grandes tiradas. Como diria o Plnio, quem quiser que conte outra. A
histria dele com Tom ficou no pitoresco do encontro. O que, afinal, no era pouco.
A passagem de Samuel como empregado na ltima Hora durou pouco. Cheio de projetos, e
apostando no senso de oportunidade que o levou a se aproximar de Getlio Vargas, a quem
combatera no Estado Novo (at 1945) e cuja defesa assumiu ao criar o jornal em 1951, ele fundou
em 1975 o Aqui So Paulo, um vespertino. Ou seja, um jornal que ia s bancas no comeo da tarde
com notcias da madrugada e da manh. Tentara fazer isso na sua volta ltima Hora e no dera
certo. Tambm no daria em Aqui So Paulo. Com a sada de Samuel, encerrou-se tambm o ciclo
de Plnio Marcos na ltima Hora.
Foi no Gigetto que Samuel Wainer convenceu o empresrio Amrico Marques da Costa a
investir na produo da proibida O abajur lils. Foi no Gigetto que se estreitou a amizade de
Plnio e Mino Carta. Diretor de redao da revista Veja, quando Mino soube que o amigo sara da
ltima Hora, em 15 de outubro de 1975, entregou a Plnio Marcos, teatrlogo e ator, perseguido
pelo regime, uma rubrica semanal de esportes que de tudo falaria menos dos prprios, como o
jornalista relata no romance O castelo de mbar. Antes, ele j se deslocava at s margens do
Tiet e ficava horas conversando na redao. Pacfico, cordial, gentil, educado. Mino se excede
nos adjetivos ao falar do Plnio com quem conviveu. Mesmo em poltica ele era muito
equilibrado nas anlises, defendia suas ideias sem babar na gravata. O perodo de colaborao
com a revista, no entanto, seria tudo menos tranquilo. A Censura ensaiava retirar-se da redao de
Veja, o que no significava muito. Poderia voltar a qualquer hora. Como voltou, antes mesmo de
sair, com munio diferente. Palavras de Plnio:
Eles logo de cara se irritaram porque eu escrevi uma crnica dizendo que o Santos Futebol
Clube ficou 25 anos com aquele Athi Jorge Cury de presidente e teve at o seu milagre, Pel. Mas
tudo indicava que, quando acabasse o milagre, o Santos ia falir. Como faliu, e no precisa me
chamar de profeta. Eles acharam que era igual histria do Brasil, que eu estava falando da
ditadura militar e do milagre econmico. Ento fui detido e depois demitido.
Quando Plnio foi colaborar em Veja, a Editora Abril, segundo Mino Carta em seu romance,
pleiteava na Caixa Econmica Federal um em-prstimo de cinquenta milhes de dlares. Tudo
dentro das regras. Mas tanto dinheiro, e para a dona de uma revista que no se comportava ao
gosto de Braslia, no sairia de mo beijada. Custaria a independncia que Mino imprimia
publicao. Como ele no arredasse p, a soluo interna foi envi-lo a Roma, por uns tempos.
Isso acalmaria o ministro Armando Falco, a quem irritava tambm a presena no time da revista
do autor de O abajur lils, pea que pessoalmente ele se negou a liberar. O afastamento de Mino
se precipitou aps a morte do jornalista Vladimir Herzog nos pores do DOI-Codi, em outubro.
Afastamento que, para no parecer capitulao, se escudou em protocolo, a vigorar at 1 de abril
de 1976, pelo qual a Abril se comprometia, entre outros pontos, a manter a linha editorial da
revista e a no demitir, por razes poltico-ideolgicas, nenhum empregado ou colaborador,
enquanto durassem as frias de Mino Carta, que em dezembro embarcou para Roma. No final de
janeiro ele estava de volta a So Paulo. Nem desfez as malas e foi chamado por Victor Civita.
Voc precisa demitir Plnio Marcos, j!
Como?
Demitir Plnio Marcos.
Por qu?
A Censura est para sair de Veja, a demisso de Plnio Marcos o que falta para encerrar o
assunto.
Seu Victor, assinamos o protocolo.
Que est dizendo?
At 1 de abril as coisas ficam como esto, depois faa o que bem entender, mas despea a
mim antes de Plnio Marcos.
No, voc demite.
Demita o senhor, at logo e passar bem.
A conversa registrada em O castelo de mbar no terminou a. Seguiram-se dias de negociaes
internas e em Braslia. Quando soube da histria, Plnio recusou-se a voltar a colaborar, relata
Mino. Se ele tivesse continuado, eu ficaria s por pirraa at a data prevista no protocolo. A
recusa de Plnio no foi ato heroico. No poderia criar mais constrangimentos ao amigo. Antes que
a editora o demitisse, Plnio se retirou. Mino, em 1979, lanou seu prprio dirio, o Jornal da
Repblica, que meses depois saiu de circulao. Nem deu tempo de convidar Plnio a colaborar.
Demitido da Veja e da Folha, s lhe restava escrever na chamada imprensa alternativa, em
jornais como Movimento e Opinio. Era um jeito de resistir, sem ganhar um centavo. Em
dezembro de 1978, publicou no Movimento a pea Ai que saudades da sava. Nem era uma pea.
Estava mais para o desabafo de Verde que te quero verde que escreveu para a Feira Paulista de
Opinio em 1968. Brincando com antigo aforismo ou o Brasil acaba com a sava ou a sava
acaba com o Brasil , o esquete envolvia Patrioto, empresrio brasileiro, e seu cliente Mister,
um estrangeiro interessado em comprar a Amaznia. Na abertura o autor se apresentava: Eu sou
um ex-autor de teatro. Porm (e sempre tem um porm), hoje aqui (por ter certeza que no poderei
colocar no palco) apresento minha ltima pea teatral. A ltima que escreveu at aquela data,
entenda-se, pois ele no se entregava.
Na Folha, Plnio Marcos publicaria dois outros esquetes. O primeiro, No que isso vai dar, na
eleio para a Presidncia da Repblica em 1994. O segundo, em 11 de junho de 1995 no caderno
Mais, com o ttulo Nhenhenhm, ou ndio no quer apito, que o editor Mario Vitor Santos definia
como mais uma chance para Plnio Marcos girar sua velha metralhadora contra igreja, governos
passados, mineradores, escritores e intelectuais em geral, polticos e generais americanos. O
nhenhenhm do ttulo era uma referncia direta ao presidente Fernando Henrique Cardoso que
pusera o termo em voga e o enredo envolvia um ministro da Justia, que se une a um general e a
um intelectual, numa manobra para obrigar os indgenas a restringir a extenso de suas reservas.
Ao tratar de um tema cuja atualidade se conserva ainda, o autor no deixava fora da mira os dois
ndios da histria, um verdadeiro, ndio-ndio, e outro oportunista. Como dissera ao jovem
estudante de cincias sociais, ele era Plnio Marcos. O tempo todo.
O REFGIO NOS LIVROS PARA SOBREVIVER De repente ele se viu novamente sem
espao na imprensa, menos ainda no palco. Vez ou outra surgia convite para palestras em escolas,
trabalho eventual e raro, sem nenhuma garantia. Dos ofcios que a vida lhe ensinou, os de contador
de histrias e camel eram os que caam bem. O escritor ruim, mas o camel bom passou a
ser o lema da sua modstia. Ocorre que escrever para teatro contm o vrus do efmero. O destino
de uma pea o palco. Da a fatalidade que acompanha a obra do dramaturgo numa sociedade
repressora. Plnio sempre se definiu como reprter de um tempo mau. Mais que qualquer outro, at
o jornalstico, o texto teatral se destina s circunstncias do seu tempo. O dramaturgo no escreve
para a posteridade. Foi assim com Sfocles, Shakespeare, Molire. E tambm com milhares de
annimos e esquecidos fora do seu momento, cujas obras cumpriram a tarefa circunstancial que
lhes cabia e depois desapareceram. Um verso, cano ou romance podem sobreviver ao
obscurantismo que os probe de chegar prontamente a ouvintes e leitores. Uma pea de teatro, nem
sempre. Retir-la do seu momento comprometer o seu impacto e vitalidade. No surpreendeu que
depois, abertas as gavetas da censura, as peas ali aprisionadas se revelassem frgeis. Tolo, ou
ignorante, quem imaginou o contrrio.
Calado no palco e na imprensa, o reprter Plnio Marcos encontrou na literatura e no livro a
porta entreaberta ao testemunho de um tempo mau. Duas peas j haviam sado em livro. Em 1971,
a Editora Obelisco publicou Quando as mquinas param em edio comemorativa da
montagem no Sindicato dos Txteis. Antes, a primeira e emblemtica edio de Navalha na carne
saiu por iniciativa do escritor Pedro Bandeira. Em junho de 1967, Navalha apresentava-se
clandestinamente enquanto corria a batalha pela sua liberao. Amigo de Plnio desde as noites no
Bar Regina, Bandeira no se conformava com a proibio do texto e do espetculo. Sem as
facilidades tcnicas do cinema e do vdeo, e trabalhando na pequena Editora Senzala, de repente
lhe veio a ideia: A censura era feroz contra os jornais, contra o cinema, e principalmente contra o
teatro, mas os livros ficavam mais ou menos fora da sanha controladora dos novos donos do poder.
Ento, que tal fotografar a pea inteira, usando as artes grficas, o tamanho do corpo e a forma dos
tipos das letras para dar a nfase necessria ao embate cruel dos protagonistas? Alm de tudo, a
pea era muito curta e numa edio normal resultaria em um livro fi no demais, que no poderia
transmitir ao pblico o impacto daquela novidade genial.
Pedro Bandeira chamou Yoshida, respeitado fotgrafo de publicidade, e o artista grfico
uruguaio Walter Hne para realizar o projeto. Ruthneia de Moraes, Paulo Villaa e Edgard Gurgel
Aranha representaram cena por cena o espetculo para o registro fotogrfico. Saiu um livro
inovador e surpreendente para os padres da poca. A dificuldade maior continuava no texto. As
grficas procuradas por Bandeira se recusaram a imprimir a obra, pois havia moas entre seus
funcionrios e aqueles palavres haveriam de escandalizar as mooilas. Com muito custo o dono
de uma grfica aceitou o servio, realizado de madrugada, depois do expediente e por homens,
antes que as funcionrias voltassem ao trabalho. Enquanto Pedro Bandeira editava Navalha na
carne, a pea enfim foi liberada para maiores de 21 anos. O que no impediu que os cinco mil
exemplares do livro uma tiragem enorme para a poca , mesmo com uma distribuio
precria, se esgotassem em duas semanas. Depois da morte de Plnio Marcos, o livro foi
relanado pela Azougue Editorial, em 2005, acrescido de vrios textos crticos sobre a pea.
DAS RUAS E TEATROS AO SALO DE PARIS A publicao de Histrias das quebradas
do mundaru em 1973, pela Editora Nrdica, reunia os contos produzidos por Plnio Marcos para
a imprensa. Foi em 1975, premido pela falta de perspectivas de trabalho, que Plnio alternou
teatro e literatura ao escrever Uma reportagem maldita (Quer 5). O romance exemplar da
impossibilidade do autor de ocupar seu espao natural, o palco. A verso teatral da saga dolorosa
de Quer seria encenada em 1993, rendendo a Plnio o trofu de melhor autor de teatro, que se
somou ao de melhor romance, concedido em 19 76 pela seo de Literatura da Associao
Paulista de Crticos de Arte (APCA). Fato raro, seno indito: duas premiaes, em literatura e
em teatro, da mesma obra. O que, afinal, Plnio deveu em parte sina de autor proibido:
Eu fui escrever literatura porque a censura no estava liberando nenhuma pea minha. Quer
ia ser mais uma pea de teatro. S escrevi em forma de romance porque achei que no passaria
pela Censura. Quem decidiu que era romance foi o dono da editora Smbolo, que falou assim:
Novela no vende. O pblico confunde com novela de televiso, ento vamos chamar de
romance. E todo mundo comeou a chamar de romance. Barra do Catimb, outro romance, foi
proibido como novela de televiso. Foi a mesma coisa. Para mim era folhetim, escrito todos os
dias no jornal. O editor falou: Folhetim ningum sabe o que , ento vai ser romance.
Quebradas do mundaru consequncia das historietas que escrevi na ltima Hora.
Assim, enveredar pela literatura no foi deciso planejada. Foi necessidade de sobrevivncia.
Para todos os efeitos, Plnio se apresentava como contador de histrias, no um escritor. Havia
nisso sincera modstia. Ele s se reconheceu escritor um ano antes de morrer, quando participou
em maro de 1998 do 18 Salo do Livro de Paris. Naquele ano o evento foi dedicado ao Brasil,
que compareceu com 10 mil ttulos e cerca de setenta escritores, segundo relatrio do Ministrio
da Cultura. Deu at para mandar Plnio Marcos e Deux perdus dans une nuite sale, traduzida por
ngela Leite Lopes, numa edio da Funarte. De repente, ele se viu cercado de escritores de
ofcio como Lygia Fagundes Telles, Jorge Amado, Antonio Torres, Zuenir Ventura, Chico Buarque,
Dias Gomes e por que no? Paulo Coelho, que no foi includo na delegao oficial e com
quem Plnio se deu muito bem, segundo sua companheira Vera Artaxo.
At ento, e sem a ambio de ser um escritor, os livros s lhe serviram para pagar as contas.
Eram lanados discretamente, sem noites de autgrafos. A nica e ltima noite com a pompa da
circunstncia aconteceu em setembro do ano da sua morte, em 1999. O truque dos espelhos foi
lanado no Gigetto em noite de autgrafos, na qual Plnio dispensou a piada que repetia,
prometendo morrer logo para valorizar o autgrafo. Contentou-se com o carinho da festa.
TODOS FALAM CONTRA A CENSURA, MAS TODOS EXERCEM A CENSURA A TODO MOMENTO.
EM TODA A MINHA VIDA EU CORRI OS RISCOS DE DENUNCIAR A REPRESSO E PAGUEI UM PREO POR
ISSO.
O teatro nunca lutou contra a censura. O teatro lutou para a liberao de algumas peas.
Esse duro diagnstico de Plnio Marcos ficou perdido no meio do seu longo depoimento, em 31
de maio de 1979, no Simpsio sobre a Censura realizado na Cmara Federal, em Braslia. A
reviso de uma histria, da qual ele foi um dos protagonistas, no embutia mgoa nem
ressentimento pessoal, mas a necessidade de reconhecer que no se deviam discutir medidas que
atenuassem a ao da Censura e sim o fim da prerrogativa do Estado de tutelar as escolhas da
sociedade. O diagnstico, porm, foi ouvido. Na dcada seguinte, Plnio se juntou campanha
Pela Defesa da Cultura, desencadeada em julho de 1987 em So Paulo pelo Sindicato dos Artistas
e Tcnicos, presidido pela atriz Lgia de Paula. A campanha bateu no Congresso Nacional,
interferiu nas discusses da Assembleia Constituinte e acabou com a Censura. Pelo menos a
Censura oficial como ela se colocou ao longo da histria do pas. Entretanto, no mesmo simpsio
de 1979, Plnio denunciava os novos modelos de ao do Estado para, seno proibir, constranger e
controlar o teatro:
Em So Paulo, comea-se a perceber que o governo pode at abandonar a censura policial,
porque eles esto fazendo outro tipo de censura. Os teatros, as casas de espetculo, esto ficando
nas mos do governo. Ento ns temos: ou os teatros so do governo federal, municipal ou
estadual, ou esto ficando nas mos de sociedades culturais estrangeiras, como a Aliana
Francesa, ou teatros patronais, como o Sesi e o Sesc. Os teatros do interior so quase sempre dos
municpios. E ento s entram peas que eles querem e a gente acaba sofrendo duas ou trs
censuras.
Quem olhar o cenrio teatral nos anos seguintes morte de Plnio Marcos ser tentado a
considerar profticas as suas palavras. Se profecia houve, foi gerada pelos dados da realidade, j
ento preocupantes, e no por um delrio persecutrio. Ao observar que a censura da Polcia
Federal no a pior, pois, segundo ele, consequncia de uma sociedade repressiva, hipcrita,
onde todos falam contra a censura, mas onde todos exercem a censura a todo o momento,
reprimindo o prximo, Plnio investe contra a subveno corruptora do governo ao teatro:
Essas so as duas censuras: a policial, que nos impede de discutir at s ltimas
consequncias o problema do homem, e a subveno governamental, que constrangedora, e as
companhias todas precisam dessa subveno. [...] O governo [no] est acabando com a censura.
Ele est encontrando outras frmulas para nos censurar. No gosto disso, no... Vamos ficar
fazendo o gnero bem-comportado, para a censura no ficar dura? No. prefervel que fiquemos
malcomportados e a censura, dura. Um dia a corda racha, porque, na verdade, a tendncia do
homem a dignidade. Um dia, quando tudo parece perdido, a dignidade se manifesta e recupera os
seus espaos.
Coerente, para continuar trabalhando, Plnio recorreu a um novo modelo de produo teatral,
que se lanava com a Cooperativa Paulista de Teatro, recm-criada por um grupo de jovens atores.
Entretanto, avesso a atrelar-se a qualquer instituio, valeu-se apenas do modelo cooperativo para
juntar sua volta um grupo de profissionais, ao qual chamou de O Bando. Um nome que continha o
esprito espontneo e anrquico do agrupamento. Tudo comeou com a montagem clandestina,
dirigida pelo autor, para comemorar os vinte anos da estreia e proibio de Barrela, em 1959.
Na falta de local de ensaio, a Folha de S. Paulo onde eu trabalhava cedeu uma sala vazia no
prdio em frente redao, na alameda Baro de Limeira. O cenrio, de fcil transporte e
montagem, foi criado pelo arquiteto e cartunista Pedro Capurro. O locutor Osmar Santos
concordou em gravar, de graa, a narrao do jogo do Corinthians que acompanhava a ao da
pea. A ideia era fazer um espetculo com poucos recursos para ser levado em qualquer espao. E
ns fomos ensaiando Quando as mquinas param, sem contato com o Bando. Um dia Plnio
marcou uma reunio no Taib, para agendar a estreia. Vai ser dia tal, s nove horas da manh, na
quadra da escola tal. Alzira, Milani e eu nos olhamos. Breve silncio. O que foi?, Plnio
perguntou. Eu disse que o espetculo seria apresentado em qualquer lugar.
Tudo bem, eu disse, ns fazemos em qualquer lugar, numa quadra ou no meio da rua. No s
nove da manh. Se for s nove da manh, tem que ser numa sala, onde se possa ter um mnimo de
blecaute. Voc escreveu uma pea com muitos quadros, sugerindo vrias passagens de tempo. E o
elemento que a gente criou para ligar as cenas a luz de um rdio que fica transmitindo futebol.
No d pra apresentar com o sol das nove da manh, o espetculo vai para as cucuias e a sua pea
tambm. Se o Milani e a Alzira toparem fazer assim mesmo, eu no me oponho, mas no
concordo.
Milani e Alzira fecharam comigo. Milani estava na pior, precisando da grana daquela estreia (a
sua situao s se estabilizaria um ano depois, quando foi contratado para dirigir e atuar no
programa do Chico Ansio, na TV Globo).
Ento no vai dar pra estrear? insistiu o Plnio.
No respondemos em coro.
Ento, t certo, a gente no faz o espetculo. Obrigado por vocs terem ensaiado dois meses
de graa.
Plnio deu uma daquelas suas risadinhas de moleque e samos to-dos para tomar caf e seguir a
vida, sem bronca. Plnio disse:
Agora voc, que trabalha l nas Folhas, empresta a grana pro Milani que vai ficar sem o
cach da estreia.
Por isso, no, mas no vamos fazer As mquinas s nove da manh numa quadra.
E nunca mais se falou nisso.
BOICOTE AO TEATRO LEVA AO CANSAO O Bando terminou numa briga minha com o
Plnio Marcos, numa quarta-feira, com 150 pessoas na plateia do Taib para assistir a Jesus
homem, conta Marco Antonio Rodrigues. Para efeito externo, Plnio omitiu o bate-boca que foi a
gota dgua de um lento processo de esvaziamento do grupo. Em entre-vistas ele alegou que as
condies de trabalho no Taib tinham ficado insuportveis:
O teatro deixou de cumprir sua parte no contrato. No davam o eletricista, no dedetizavam o
teatro, no punham papel higinico nos banheiros, e o pblico de repente tinha a impresso de que
estava sendo mal atendido porque estava pagando pouco, o que no era verdade. Mas porque o
pblico pagava pouco e a gente pagava muito.
Alm disso, ele argumentou, a administrao do teatro pressionava para dobrar o valor do
aluguel, na esperana de ter o Bando fora do Taib:
A administradora disse que o teatro jamais seria alugado outra vez para mim, porque eles
no queriam que o Taib ficasse conhecido como o teatro do Plnio Marcos.
O contrato com o teatro se estenderia at setembro, mas antes disso j ficara evidente que o
grupo, depois do bate-boca de Plnio e Marco, que saiu com Carol, estava encerrando sua histria.
Nem o Trofu Mambembe de 1980, prmio especial concedido pela Fundao Nacional das Artes
(Funarte), serviu de estmulo. Parou a divulgao nas ruas, com a distribuio de filipetas que
serviam de bnus para desconto no valor do ingresso. O grupo foi cansando, admitiu Plnio, que
viu boicote da imprensa ao Bando:
No digo boicote, mas a imprensa deixou de sair na rua, deixou de frequentar os lugares, de
ver o que estava acontecendo. E de repente no noticiava o que a gente fazia. Para se ter uma
ideia, eu fui proibido de dar entrevista na TV Bandeirantes, no Canal livre. Eu tinha minha
entrevista marcada com o Fernando Barbosa Lima, diretor do programa, tinha at cach
combinado, e de uma semana para outra foi cancelada. Ningum noticiou isso. Alis, eu j tive
vrias entrevistas marcadas em rdios e desmarcadas na vspera.
Essa desateno da imprensa teria pesado no nimo dos integrantes e contribudo para a
dissoluo do grupo, na sua avaliao:
O Bando ainda no estava com as pessoas formadas ideologicamente. Elas tinham a sensao
de fazer um trabalho que, por no estar tendo repercusso na imprensa, no existia. Os atores ento
comearam a receber apelos econmicos para trabalhar em outros setores, para fazer novela, fazer
comercial, e a comearam a se afastar do Bando. Acho muito difcil [solues via sindicato],
porque, se voc no consegue organizar pequenos grupos para conviver profissionalmente, como
que vai se organizar numa coletividade cada vez mais carente de mercado de trabalho? Uma
categoria profissional no um partido poltico. Dentro dela h todo tipo de ideologia. A maioria
quer apenas sobreviver da profisso, tanto faz fazer uma coisa como outra. Ento o que se precisa
neste momento ter coragem. Voc precisa de sindicatos que entendam que a sua tarefa no a
mesma do pequeno grupo. O sindicato deveria lutar pelo mercado de trabalho e isso significa
correr riscos.
O principal risco seria denunciar que o Brasil um pas ocupado pela produo cultural
vinda principalmente dos Estados Unidos, mas no s. Plnio repetia ento os seus nmeros:
So 172 filmes estrangeiros por semana na televiso brasileira, 9.600 filmes estrangeiros
nos cinemas brasileiros, 80% de msica estrangeira tocando diuturnamente nas nossas rdios.
Claro que isso que est tirando o nosso emprego.
Os argumentos que ele esgrimia solitariamente no encontraram ressonncia. Os nmeros se
perderam no processo irreversvel e violento de importao ou ocupao cultural, como ele
preferia. De todas as batalhas em que se envolveu, esta, definitivamente, Plnio Marcos perdeu.
Seus nmeros e argumentos, porm, talvez sejam lembrados sempre que se precisar passar a limpo
a histria e a ideologia da cultura brasileira e identificar quando e onde perdemos a nossa cara.
ESTOU MORTO. ENTO, QUEM EST VIVO? Nos anos seguintes ao Bando, Plnio se
sustentou com venda de livros e palestras. Eram tempos da abertura poltica, inaugurada com o
fim do AI-5 e da censura imprensa. Peas, filmes e livros proibidos saram das gavetas. Agora
Plnio conheceria novos algozes que, no tendo corrido riscos em defesa da liberdade de
expresso, se cobriam em mantos de vestais. J disseram que voc s sabia escrever debaixo da
censura, a veio a abertura, e cad o Plnio? Cludio Pucci, reprter da Folha e ator nos velhos
tempos do Teatro de Arena, levantou a bola para o amigo chutar. O que voc acha disso? No
acho nada. O que eu posso achar? Eu no gosto muito de falar de mim. Eu queria at renunciar
minha histria pessoal, se fosse possvel. Eu valho pelo que estou fazendo agora, pelo que vou
fazer. Se meus textos no tiverem valor nenhum, e eu acho at que no tm, mas se serviram como
bandeira num momento de represso e em toda a minha vida eu corri os riscos de denunciar a
represso e paguei um preo por isso , eu j teria cumprido um papel importante. Agora, h
pessoas que querem me magoar pessoalmente, e isso no vo conseguir porque eu at acho graa.
T bem. Eu ia acabar, e acabei. Veio o fim da censura e eu acabei. Mas as atrizes esto ganhando
prmios fazendo minhas peas, o Bando ganhou prmio montando minhas peas, eu ganhei prmio
Molire, ganhei prmio da APCA, e estou morto? Quem que est vivo?
No aperto, Plnio sempre tinha uma carta na manga, alm das palestras e dos livros. Exercitava
o talento de contador de histrias em espetculos-solos que, mudando o ttulo, mantinham o mesmo
formato e contedo. Era o que ele chamava de show-palestra (mas na verdade a antipalestra e o
anti-show, dizia). Em agosto de 1983, reservou um final de semana no teatro do Centro Cultural
So Paulo para, sem disfarces, apresentar Plnio Marcos, o palhao repete o seu discurso. O
ttulo novo no escondia o mesmo produto que havia muitos anos ele vendia em escolas, sindicatos
e igrejas. Desde que O Bando terminou, em dois anos ele teria levado o seu show-palestra a
trezentas cidades de todo o pas, um nmero exagerado que exibia sem comprovao. Noves fora,
o dado real que ele perambulou bastante. E o pblico poderia conferir o seu discurso em trs
nicas apresentaes no Centro Cultural So Paulo.
Embora o ttulo sugerisse repetio, havia um dado novo no discurso do palhao. O tom
poltico, provocador, subversivo continuava presente. Porm, o vs da religiosidade insinuava-se
com uma clareza at ento no notada. Na primeira parte do show-palestra, ele analisava a vida no
sistema capitalista, em que a fraternidade eliminada pela competio e a busca obsessiva do
lucro, dizendo: Nessa sociedade, s o campeo tem alma e merece respeito.
Na segunda parte, abria-se o dilogo com o pblico. Confrontadas com o discurso anterior e a
perspectiva nada promissora para o indivduo numa sociedade competitiva, as pessoas lhe pediam
sadas. Surgia, ento, um pensamento que remetia as pessoas busca do prprio caminho:
Digo que no sou guru nem guia, sou apenas um inquietador. Conheo vrios caminhos, o do
monge, do guerreiro, do faquir, do iogue, do rei. Mas todos comeam no mesmo lugar, a renncia.
E a as pessoas se estouram, porque querem uma frmula mgica: desfrutar de todo o conforto e
encontrar a paz espiritual. No h conciliao possvel nesse nvel.
A religiosidade que estava subjacente em sua obra, segundo o depoimento insuspeito do cardeal
dom Hlder Cmara, agora vinha para o primeiro plano. Manifestava-se at na avaliao que fazia
dos resulta-dos da sua pregao:
Se, num grupo de mil, um sai subvertido, estou mais do que gratificado. Se o encontro no
mudar ningum, mesmo assim sinto que cumpri a misria que me coube por destino.
Plnio voltaria a colocar em cartaz seus shows-palestras outras vezes. Em janeiro de 1984, o
palhao repetiu o seu discurso no Teatro de Arena Eugnio Kusnet. Em janeiro de 1988, com o
ttulo de Plnio Marcos mesmo, ocupou o Teatro de Arte do TB C, avisando a plateia que este
papo podia estar acontecendo no Gigetto, mas eu no tenho grana para convidar todo mundo. E
em novembro de 1992 chamou o filho Lo Lama para dirigir 40 anos de luta o mago Plnio
Marcos, seu humor, suas histrias e seu tar, na Sala Rubens Sverner do Teatro Cultura Artstica.
DE REPENTE, A DESCOBERTA DO OCULTO Nessa poca, o casamento com Walderez de
Barros se mantinha por um fio. Os filhos, que seguravam a relao, j no eram crianas e
compreenderiam a separao dos pais. Aninha, a caula, quase adolescente. Leonardo, o
primognito, definindo-se entre a msica e o teatro, em que logo se firmaria como Lo Lama.
Ricardo, o Kiko, cumprindo o servio militar, inclinava-se para a vida universitria. Aos poucos,
Plnio Marcos se voltava para uma rea de estudos e de interesse que o acompanhariam at o fim,
as questes esotricas e a religiosidade. Perto dos cinquenta anos, ele se reaproximava de um
universo que conheceu e vivenciou na relao familiar, quando criana, e nos circos da juventude
com seus magnetizadores, mgicos, ilusionistas e hipnotizadores. Eu s vezes cruzava com o
Plnio na Livraria Pensamento, na praa Joo Mendes, e ele fazia que no me via, lembra Fauzi
Arap, estudioso de astrologia e assuntos afins. A livraria, bom lembrar, era conhecida pelo rico
acervo de literatura esotrica. Plnio tambm j se aproximara do escritor Lus Pellegrini, autor de
um livro sobre Helena Petrovna Blavatsky e editor da revista Planeta, do qual ele se tornou leitor
assduo. Certamente ele estava pouco se lixando para quem pudesse se surpreender com o seu
interesse por tais temas. Mas havia um bom motivo para se esquivar de Fauzi Arap.
Em 1977, durante a temporada de Um ponto de luz, pea escrita e dirigida por Fauzi, Plnio foi
convidado a coordenar um debate aps uma das sesses. De pronto, criticou duramente o
espiritualismo presente no texto e partiu para o ataque pesado. Ele comeou a agredir a pea e a
mim. Fiquei chocado porque eu o via como meu cmplice, meu irmo. Parecia que ele queria
macular o sucesso do espetculo. Eu estava com a macaca e reagi. Foi uma troca de agresses at
que a Walderez, presente ao debate, ps um fim discusso. Bom, empatou! Chega, chega!.
Depois disso a gente perdeu o contato.
Para Fauzi Arap, a motivao de Plnio era o fato de Walderez no ter sido convidada para
fazer a pea. Eu queria a Walderez, mas o produtor Ben Mendes j tinha escolhido outra atriz. O
Plnio devia achar que eu que no quis a Walderez, por quem ele tinha uma admirao sem
limite. Na minha pea anterior, Pano de boca, eu o convidei para fazer um dos papis e ele
respondeu agressivo: A atriz l em casa a Walderez, no eu. A gente fez as pazes quando eu a
convidei para fazer Mocinhos bandidos em 1979. E no ano seguinte dirigi O abajur lils.
No incio de 1984 a separao se confirmou definitiva com a sada de Plnio do apartamento da
rua Picarolo. Com algumas mudas de roupa ele foi para uma quitinete alugada na rua Teodoro
Baima, em frente ao Teatro de Arena. Se nunca se preocupou em ter coisas nem com a roupa que
vestia, ele agora radicalizou. A camisa nova que ganhou no fim de ano ou no aniversrio vestiria
certamente o porteiro do prdio. Para dormir, um colchonete velho estava de bom tamanho.
Mveis? Alguns caixotes serviam de estante para livros e de mesa para escrever. Que no lhe
oferecessem presentes nem quisessem arrumar a quitinete. O pouco lhe bastava. Vcios, o da
bebida e o do cigarro j tinha largado e nem sentia falta. Gluto, nunca deixou de ser. Foi este
talvez o seu maior pecado. O da gula, que ele sempre confessou. Mesmo quando a diabete lhe
imps rigor nos hbitos alimentares, a tentao era maior que a sua fora de vontade. E ele caa
em tentao, sempre que os vigilantes amigos e familiares no estivessem por perto.
TIRANDO A DOR DO ENFARTE COM DO-IN Plnio morava na Teodoro Baima quando se
reaproximou de Marco Antonio Rodrigues. Eles ficaram sem se falar uns trs anos, um pouco
mais. O bate-boca entre eles, que decretou o fim do Bando, tinha sido feio, alm da conta. Para
encerrar o mal-estar algum teria de estender a mo. A oportunidade surgiu em outubro de 1985,
quando Srgio Mamberti organizou um ciclo de leituras de peas proibidas durante a ditadura e
convidou Plnio Marcos para fazer Dois perdidos numa noite suja. Plnio topou. Com uma
condio, que Marquinho Santista fizesse o Tonho, pois, dizia, depois de Fauzi Arap, ele era o ator
que melhor interpretou o personagem. Sem saber que eles estavam brigados e no se falavam,
Mamberti telefonou para Marco Antonio que aceitou correndo. Eles se encontraram como se nada
tivesse acontecido e amigos seguiram at o fim Marco foi o produtor executivo de Madame
Blavatsky e dirigiu O assassinato do ano do caralho grande. Amizade refeita, eles comearam a
ensaiar todas as tardes no apartamento do Plnio, um moquifo, na definio de Marco, endossada
por todos que o conheceram.
Diabtico, Plnio consumiu a madrugada de segunda-feira, 21 de outubro, no Gigetto
conversando eu sempre fui meio peralta. No domingo chegou tarde da noite ao restaurante,
conforme contaria:
Eu tinha ficado sem dormir de sexta para sbado e de sbado para domingo. Fui a Santos,
que era aniversrio da minha me e a velha Hermnia no brinca em servio, faz aquelas enormes
comidas, no sei o que e tal, o melhor feijo do Brasil. Comi demais e pensei: Agora eu chego
em casa e puf!. Mas o sono no vinha e eu fui ao teatro ver Madame Blavatsky. Sa, fui para o
Gigetto e s cinco horas da manh eu ainda estava ligado. A, quando fui sair, senti uma enorme
dor no peito, nas costas e achei que era friagem. Meti uma ginstica, tomei um banho e fiz um do-in
em mim, para tirar a dor. Tirei a dor e dormi. Na segunda-feira acordei s duas da tarde. A dor
persistia, eu tirava com do-in.
s quatro e meia da tarde, Marco Antonio chegou ao apartamento para ensaiar Dois perdidos.
Plnio se queixou de dores.
Marquinho, eu no estou legal, essa dor no passa. Deve ser mau
jeito.
Vamos ver o que isso. Voc no tem os seus amigos l no Hospital das Clnicas, com quem
voc joga futebol? Ento, vamos l pra eles darem uma olhada nisso.
Marrudo como s ele, Plnio dessa vez no se fez de difcil nem recusou a ajuda. Ele devia estar
muito mal. E estava.
Voc vai comigo?
Vamos no meu carro.
E l foram os dois para as Clnicas, na velha Variant (ou j seria uma tambm velha Braslia?)
de pequeno-burgus, como Plnio tinha jogado na cara do amigo. Marco ficou esperando enquanto
Plnio era atendido. De repente, a porta se abre e ele passa, deitado numa maca, direto para a sala
de cirurgia. A dor no brao no era mau jeito. Ele teve um enfarte, avisou o mdico. Culpa da
diabete. Plnio, que no bebia fazia muitos anos, tambm j era ex-fumante, sabia Marco
Antonio. Ele parou de fumar, ou Continental ou Hollywood sem filtro, na poca do Bando,
quando, ao subir lentamente as imensas escadas do Taib, reclamou da falta de flego.
Descobri que sou diabtico e parei de fumar avisou aos companheiros incrdulos. Mas
era pra valer, como todas as decises de Plnio. Seja para encerrar as atividades do Bando. Seja
para abandonar um vcio que trazia desde a adolescncia e das noitadas com Pagu nas mesas do
Bar Regina.
Em outubro de 1985, Plnio ficou de segunda a sexta-feira na UTI do Incor Hospital do
Corao. Do primeiro enfarte do miocrdio ele se safou, mas desde ento as preocupaes com a
sade aumentaram. A dieta alimentar e a insulina entraram na sua rotina. Dez anos depois, em 9 de
junho de 1995, o corao o levou de volta ao Incor e cinco pontes de safena foram implantadas
pelo cirurgio Fbio Jatene, filho do ento ministro da Sade, Adib Jatene.
TERCEIRO ATO
1985 - 1999
Das cartas
de tar
dana final
O fim do casamento de 21 anos com Walderez de Barros foi acompanhado de uma progressiva
transformao na vida e nas opes de luta do combatente Plnio Marcos, de coragem pessoal
admirvel, reaes explosivas e estilo contundente de propor e defender ideias. Se a dcada de
1960 foi de difcil afirmao profissional, como um homem de teatro que aliava o talento autoral
ao desabrido enfrentamento de obstculos, a de 1970 foi de turbulncia. Da confortvel situao
financeira inicial, que o sucesso lhe garantiu, veio uma penosa resistncia represso poltica que
lhe tirou o sossego e o trabalho. Natural que ao guerreiro se desse uma trgua. No lhe deram nem
ele a pediu. O Brasil dos anos 1980 tinha outras prioridades, assim como o teatro. O reprter de
um tempo mau, como ele se definia, no encontrava quem o quisesse ouvir. O prprio reprter
voltou-se para uma busca interior. Os personagens a que suas peas deram voz continuavam nas
ruas, mas no palco foram substitudos pela figura controversa de Madame Blavatsky e pelo embate
existencial do palhao Bobo Plin e o seu duplo. Sem a ncora da rotina familiar, com todas as suas
contradies e conflitos, Plnio refugiou-se na religiosidade, no tar, no esoterismo. Na busca do
autoconhecimento, descuidou-se. A diabete levou ao enfarte, massagens e do-in no curavam todas
as dores. Cabelo e barba cresceram em desalinho, e uma inesperada barriga surgiu para compor a
figura incmoda. Solidrio, lutou as lutas comuns para as quais foi convocado, de camiseta regata,
chinelo e gorro na cabea. Falou de aids nos presdios e de liberdade no Congresso Nacional. Os
anos 1990 o encontraram assim. Vera Artaxo o reencontrou assim. Pacientemente, ela imps sua
presena na vida de Plnio, que se entregou aos seus cuidados. Aos poucos, deixou de ser apenas
uma personagem folclrica que vendia livro nas ruas e em porta de teatro. Uma nova gerao
chegou aos palcos e o viu como referncia e dele se aproximou. Suas peas voltaram a ser
encenadas. Voltaram tambm a autoestima e a vontade de escrever. Falou de menino de rua
assassinado, de mulheres sem orgasmo, de anes de caralho grande e homens em crise de
virilidade. Foi a Paris duas vezes. Gostou tanto, que quis voltar. Mas no havia mais tempo.
Quando morreu, o Bobo Plin estava mais parecido com o perturbador e generoso Plnio Marcos.
LINHA DO TEMPO
1985 - Tancredo Neves morre antes de assumir a presidncia da Repblica e substitudo pelo vice Jos Sarney.
- Em setembro estreia Madame Blavatsky, direo de Jorge Takla, no Teatro Aliana Francesa.
- Em outubro, Plnio sofre enfarte.
1986 - Odavlas Petti dirige Balada de um palhao, com Walderez de Barros e Antonio Petrin, no Teatro Zero Hora.
1987 - 17 de agosto, Plnio integra o Movimento pela Defesa da Cultura em So Paulo, que vai a Braslia pedir na Constituinte
o fim da censura.
1988 - Escreve e interpreta o texto Ei, amizade em vdeo exibido nos presdios sobre a preveno da aids.
1989 - 16 de janeiro, estreia A mancha roxa, direo de Lo Lama, no Teatro do Bexiga. Em fevereiro Plnio entrevistado no
programa Roda-viva, na TV Cultura.
- Nova montagem de Navalha na carne estreia com Analy Alvarez na Sala Paschoal Carlos Magno do Teatro Srgio
Cardoso.
- Dezembro, estreia no TBC a pea infantil O coelho e a ona, dirigida pela atriz Elisabeth Hartmann.
- Morre dona Hermnia.
1990 - 25 de janeiro, Plnio veste fraque no casamento da filha Ana, na Igreja So Jos, nos Jardins.
1991 - Em janeiro, abre o curso O uso mgico da palavra, no Instituto Emlio Fontana.
- Em junho, Cac Carvalho estreia na Itlia 25 homens, monlogo baseado em contos de Plnio, que em seguida
apresentado em So Paulo e Rio de Janeiro.
1992 - O ator Marco Ricca produz nova montagem de Dois perdidos numa noite suja, com direo de Emlio De Biasi, no
Teatro do Bexiga.
- 3 de dezembro, estreia Quer, uma reportagem maldita, com direo de Eduardo Tolentino, no Teatro Aliana
Francesa.
- Em dezembro, Plnio apresenta 40 anos de luta, show-palestra com participao de Lo Lama, no Teatro Cultura
Artstica..
1993 - 31 de dezembro, Plnio passa o primeiro rveillon com a famlia de Vera Artaxo, em Praia Grande.
1994 - Em novembro, Diogo Vilela e Louise Cardoso estreiam Navalha na carne no Rio. Estreia o filme Barrela, escola de
crimes, rodado em 1989.
1995 - 12 de janeiro, Navalha estreia em So Paulo.
- Em maro, com a perna necrosada, Plnio cai na porta do Teatro Cultura Artstica e levado para as Clnicas.
1997 - 17 de novembro, estreia do filme A navalha na carne, com Vera Fischer.
- 8 de novembro, estreia em Santos O assassinato do ano do caralho grande, direo de Marco Antonio Rodrigues;
na semana seguinte a pea estreia em So Paulo.
1998 - 19 de maro, Plnio participa da Feira do Livro em Paris, onde lanada a edio de Deux perdus dans une nuite
sale.
- Em junho volta a Paris a convite do Thtre Grard Philipe.
- 10 de setembro, no Municipal de Santos, recebe homenagem da Federao de Teatro Amador.
- Plnio vende Funarte Fundao Nacional das Artes o direito de publicao de suas peas por dez anos.
- 8 de dezembro, recebe o ttulo de Cidado Emrito de Santos.
1999 - 20 de julho, Dois perdidos tema de debate no Festival de Teatro de Avignon, na Frana, mas Plnio no pde
comparecer.
- 22 de julho, estreia Navalha na carne com direo de Eduardo Tolentino.
- 10 de agosto, Plnio internado no Hospital Santa Isabel, em So Paulo, com isquemia cerebral.
- Dirigida por Srgio Ferrara, Barrela estreia em setembro no Teatro de Arena.
- 27 de setembro, no Gigetto, noite de autgrafos de O truque dos espelhos. J
- Sbado, 23 de outubro, Plnio internado no Incor, em So Paulo.
- Fim da tarde de sexta-feira, 19 de novembro, Plnio Marcos de Barros morre, aos 64 anos.
CENA XVI
J NO ANSIAVA MAIS PELAS GLRIAS FRGEIS DO SUCESSO TRANSITRIO. SABIA QUE NO PODIA
MAIS VOLTAR.
DISPENSA-ME DOS RTULOS, POR FAVOR, E EU TE EXPLICO QUE A BUSCA DA RELIGIOSIDADE NADA TEM
A VER COM SEITAS.
O MEU CRISTO O CRISTO DAS PROSTITUTAS, MINORIAS, MARGINALIZADOS, NEGROS, DOS QUE TM
FOME.
Plnio Marcos e Walderez de Barros ainda estavam casados quando, no final dos anos 1970, ele
chegou em casa e a viu cercada de livros. Deu uma geral nos ttulos e se afastou com ar de
desdm: Agora voc est interessada nesses assuntos?. Entre incrdulo e zombeteiro, no deu
importncia ao ver Dereca estudando astrologia e, depois, o sufismo, cuja origem remonta ao Isl
do sculo VIII, um misto de filosofia de autoconhecimento e misticismo. Os mestres sufis
produziram rica obra literria, de contos e poemas, que a atriz reuniu em 1997 em espetculo-solo
dirigido por Jorge Takla. Antes de chegar ao sufismo, ela passou por variado leque de leituras, do
estudo do tar s ideias de Madame Blavatsky e de Gurdjieff.
Como quem no queria nada, Plnio leu alguns livros de Walderez. Ele tinha a capacidade rara
de ler algumas pginas ou ouvir algum falar de um livro ou autor e, imediatamente, discorrer
sobre eles com acuidade e pertinncia de especialista. s vezes lhe contava de um livro que
estava lendo ou estudando e no dia seguinte eu o surpreendia falando do assunto para outras
pessoas melhor do que eu. No demorou, Walderez desistiu de Gurdjieff. Por constatar que ele se
apropriava de outros mestres, preferiu beber direto na fonte sufi . Ao que tudo indica, no incio
Plnio se contentou com Gurdjieff e com o tar.
Sem contar as influncias familiares, do pai esprita e da av benzedeira, ele fez sua
aproximao do mundo esotrico ao escrever e produzir em 1970 Balbina de Ians. Visitava
terreiros de candombl, ouvia pais de santo e fazia trabalhos e despachos. Eu era criana e
lembro que ele trazia pra casa um monte de coisas do candombl, diz Lo Lama. O fracasso de
Balbina consumiu muitas economias de Plnio e Walderez. Um dia ele levou um pai de santo para
benzer e limpar o Teatro So Pedro, onde a pea cumpria temporada, e ouviu um diagnstico
duro: Como voc quer que os santos te ajudem se voc quebra as imagens deles em cena?.
Dez anos depois, a atitude e os cuidados de Plnio Marcos eram outros. Agora, o seu olhar para
o oculto resultou em uma virada de vida e na pea Madame Blavatsky, sobre a russo-ucraniana
Helena Petrovna (1831-1891), uma das fundadoras da Sociedade Teosfica. Em 1982, aps a
extino do Bando, ele reuniu um grupo de estudos esotricos na casa de Beth Rocco. Antes de
Blavatsky, ou ao mesmo tempo, a vida do monge Grigori Rasputin o fascinava e sobre ele queria
escrever uma pea. No era pra menos. A vida do monge tem ingredientes teatrais de sobra. Nele,
diria Leon Trotsky, a monarquia russa, condenada e agonizante, encontrou um Cristo feito sua
imagem e semelhana. Assassinado em 1916, ele era o mais notvel dos estranhos personagens
que cercavam os Romanov, frente de um elenco de charlates recheado de msticos
aproveitadores, artistas adivinhos, hipnotizadores, ilusionistas, com forte influncia na famlia
imperial.
Rasputin, entretanto, no ocupava as suas atenes, mas sim George Ivanovitch Gurdjieff, que
ao morrer em 1949, perto dos oitenta anos, deixou um livro, Encontros com homens notveis, que
Plnio devorou e adotou. Ele no estava sozinho na admirao pelo livro e seu autor: Meetings
with Remarkable Men virou filme roteirizado e dirigido por Peter Brook, diretor que se tornou um
cone do teatro desde a segunda metade do sculo XX. No grupo de estudos, Blavatsky e Gurdjieff
pontificavam. Sobretudo o segundo, que para incrdulos como Emlio Fontana era um misto de
sbio e embrulho. Ou um gozador, que fazia uns tapetes no quintal de sua casa e vendia como se
fossem antiguidades persas e dizia que otrio serve pra isso mesmo, para ser enganado, como
lembra Vera Artaxo que, grvida de Tiago, se reaproximou de Plnio nesses encontros. Era um
grupo informal de estudos e durou seis, no mximo oito meses, com muita gente, e gente a mais
variada. Um dia o Plnio resolveu dissolv-lo ao perceber que estava virando guru. Tudo s
acontecia em funo dele, as pessoas lhe perguntavam tudo e se ele no estivesse presente no
havia reunio nem estudo. E no era o que ele queria.
, Ideal,
que ests no meu cu interior,
verdade viva
que faz minha alma
imortal,
para que tua tendncia
evolutiva
seja realizada,
para que teu nome
se afirme pelo trabalho,
para que tua revelao
seja manifestada a cada
espetculo,
a cada espetculo concede-me
a ideia criadora,
que assim como ela est
entendida no meu corao
seja entendida no meu corpo.
, Ideal,
preserva-me dos reflexos
da matria,
que eu compreenda
que o sofrimento benfeitor
est na origem da minha
encarnao.
Livra-me do desespero
e que teu nome seja
santificado
pela minha coragem
na prova.
BOBO PLIN SE VESTE DE FRAQUE Em 1988, Plnio dizia viver de ler tar h cinco anos.
Vestia-se de qualquer jeito. Cala folgada, depois um macaco pra disfarar a barriga, chinelo de
dedo, camiseta, barba grisalha crescida, cabelo em desalinho. Nos anos 1960 seria um hippie. Ou
um mendigo, morador de rua. Adolescentes das dcadas seguintes talvez o identificassem como
precursor da moda grunge.
Adolescente, Ana Carmelita, sua Ana Festa, cujas amigas no podiam dormir em sua casa
porque ela era filha de artistas, morria de vergonha da aparncia desleixada do pai. Dona
Hermnia tambm no se conformava e temia que o filho no tivesse roupas e cobertores para as
noites de frio. Tudo o que ela mandava e era demais, porm, ele distribua. Se algum da famlia
mostrasse preocupao, encerrava o assunto com um lacnico estou bem. Ele no dava espao
para a gente interferir, diz o filho Ricardo, o Kiko. Mas o que Aninha falava era lei. E no era
pra menos. Nas brigas eu tomava o partido dele, reconhece Ana, que era a nica pessoa que
podia abrir a porta e entrar quando o pai se trancava no escritrio para estudar ou escrever. Ento
ele a saudava com um bordo:
Para tudo quando a menina chega.
Tambm foi ela a nica dos trs filhos que pediu para ser batizada na Igreja Catlica, tendo Etty
Fraser como madrinha. A gente nunca teve religio em casa, mas religiosidade, sim, Kiko chama
a ateno para a diferena que desde cedo aprendeu.
Se a aparncia fsica de Plnio mudava cada vez mais, e agressiva-
mente, nas roupas e no corpo abandonado, alguns hbitos familiares se mantinham. Como o
almoo de domingo, que depois da separao passou para segunda-feira, e a reunio na noite de
Natal. Esse empenho em manter a tribo unida ele nunca abandonou, reconhece Kiko. O mesmo
empenho que Walderez e Plnio tiveram ao terminar o casamento. Os dois chamaram os filhos na
hora do almoo e minha me comunicou: seu pai est saindo de casa. Tudo com muita calma e
jeito, lembra Aninha. Os trs estavam acostumados s brigas e separaes dos pais, que logo se
reconciliavam. Dessa vez, perceberam que era pra valer quando Plnio pegou a mala e saiu. Foi
tudo to natural que, minutos depois, a filha foi ao quarto da me pedir licena para brincar na
frente do prdio com as amigas.
P, Aninha, eu estou aqui chorando e voc me pede pra ir brincar?
Pois , no havia o que fazer. O casal conseguiu que a filha e Kiko, que estava no quartel
prestando o servio militar, assimilassem sem traumas a separao. Separao que, segundo Lo,
foi ele quem provocou. Chegando aos vinte anos e vendo que o casamento dos pais estava minado
havia muito tempo, ele diz que os chamou para uma conversa e pegou pesado com Plnio.
Entretanto, ficou claro que o fim do casamento no seria o fim da tribo, embora com o tempo os
almoos semanais e os encontros de Natal se esvaziassem. O esprito de tribo se fortaleceria com
a chegada dos netos. Guilherme, o primeiro a nascer em 1988, filho de Lo e Marta Tramonti, mal
comeou a jogar futebol na escola e j contava com o av na torcida. Na chegada de Bruno, filho
de Kiko e Flvia, Plnio estava bem doente, mas fez questo de ir a Taubat visit-lo ainda na
maternidade. Nascia um neto, ele ia atrs, confirma Kiko. Foi assim tambm com Rafaela (de
Ana e Paulinho), com Catherine (do Lo e da Cristina) e com Veridiana, de Kiko e Adriana. S
no conheceu Gabriela, de Kiko e Cludia, que estava grvida quando ele morreu.
O respeito tribo se confirmou quando Aninha, aos dezessete anos, resolveu casar. Na Pscoa
de 1989, Plnio havia conseguido uma verba para fazer apresentaes especiais de Jesus homem
no teatro do antigo Colgio Caetano de Campos, na praa da Repblica. Reuniu um elenco de
amigos, como nio Gonalves, Graa Berman e Umberto Magnani, e at arrumou uma fala
especial para Aninha, que integrou o coro. Foi a primeira e nica vez que ela foi vista no palco
falando um texto do pai. Em um dos ensaios, Paulo Franco, na sua timidez adolescente, se
aproximou do futuro sogro.
Seu Plnio...
Calma a, Paulinho, eu no sou seu, no. Me chama de Plnio que t de bom tamanho.
Plnio... Eu quero pedir a mo da Aninha...
Porra, voc j est usando o corpo todo e agora vem pedir a mo? Para com isso.
Estava dado o sinal verde ao casamento, marcado para 25 de janeiro do ano seguinte. Havia
alguns detalhes. A cerimnia seguiria o mais tradicional rito catlico e a Igreja de So Jos, nos
Jardins, era uma escolha burguesa demais para os padres de Plnio. Claro, Aninha exigia subir ao
altar levada pelo pai. Com que roupa? De fraque. Ficou louca, Aninha? Plnio se recusava a tirar o
chinelo, o macaco surrado e o bon. Ele ficou to sem reao, que deixou a fi lha falando sozinha
e saiu. Passou um tempo, pouco tempo, e o telefone tocou. Era ele.
Aninha, eu vou ter que usar sapato tambm?
Vai.
Assim se fez. O traje completo foi alugado. E no dia e hora marcados l estava Plnio Marcos,
com uma elegncia de fazer inveja. Aos filhos, especialmente a Ana Festa, ele no recusaria nada.
Nem vestir-se de burgus por um dia.
IMAGENS DA INFNCIA DE ANA FESTA Na igreja, pai e noiva tiveram um longo momento
de espera. Que no foi em vo. Conversaram muito. Na cabea de Aninha foi passando o filme de
sua relao com o pai, que a fazia dormir inventando histrias. Histrias de bichos nas quais ela
era sempre personagem, usando fatos do cotidiano. Lembranas das noites em que Plnio,
Walderez e os filhos se deitavam na varanda do apartamento na Aclimao para olhar as estrelas e
ele propunha exerccios de imaginao: E se a gente fosse uma famlia de ursos, como cada um de
ns se comportaria? Depois, cantava msicas de sua infncia para ela adormecer:
Queriam matar o meu ganso,
Queriam matar o meu ganso,
Queriam matar o meu ganso
Com um fuzil de merda.
Assim ela aprendeu seu primeiro palavro. No stio em Ribeiro Pires, onde Aninha passava
frias com os irmos e primos, sob os cuidados da av Hermnia, Plnio afugentava os seus medos
de criana com trs cachorros valentes que criou na sua imaginao para proteg-la: Trinca Ferro,
Cospe Fogo e Rompe Mato. E quando a levava pela mo escolinha no bairro da Aclimao,
antes que ela se assustasse com os latidos de ces ao v-los passar na calada, Bobo Plin era
assim que ele assinava cartas e bilhetes filha usava um truque eficaz.
Late, cachorro que gosta da Aninha, late forte pra menininha linda passar.
E Ana Festa passava feliz da vida, sem medo, contente com os latidos ferozes que a saudavam.
Histrias e episdios do passado vieram lembrana enquanto pai e fi lha conversavam,
esperando a hora de caminhar at o altar. Ele me fazia sair junto pra comprar presente no
aniversrio da minha me, mesmo depois de separados. E no aniversrio dele eu sempre lhe dava
mgicas. Ele gostava de fazer mgicas pra gente, mas, se algum descobrisse o truque, ele ficava
puto. Imagens das noites de Natal, em que ele s vezes se vestia de Papai Noel, das noites de 31
de dezembro na casa do tio Carlinhos, irmo de Walderez, em que Plnio reunia toda a famlia em
crculo e fazia uma vibrao para o ano novo. Imagens interrompidas pela marcha nupcial. Ele
tomou as mos da filha:
Olha, voc est se casando e quero que seja muito feliz enquanto tiver que durar. Se um dia o
casamento acabar, no se aborrea nem fi que triste. A gente continua te amando.
E l foi Plnio Marcos, de fraque e sapato de verniz, conduzir Aninha ao altar. Depois se
esbaldou na festa, e quase se esqueceu do sapato lhe apertando os ps e do desconforto da roupa
ajustada ao corpo, em corte perfeito para a barriga imponente. No dia seguinte ele voltaria ao
velho macaco e chinelo de dedo. E antes que 1990 terminasse, mais uma alegria para Bobo Plin,
o nascimento da neta Rafaela. Tudo bem, o casamento durou uns trs anos, se tanto. Bobo Plin
estava pronto a acolher o novo companheiro de Ana Festa, o Peninha, Gilberto Gernimo Oller,
que conheceu em 1996.
Peninha, voc um artista.
Tanto entusiasmo se devia ao talento de Peninha na cozinha. Plnio tornou-se presena semanal
no Restaurante Pitanga, que o casal tocava na Vila Madalena. Comida light, como a diabete e os
mdicos recomendavam. Porm, sbado, o dia de Vera Artaxo levar Plnio ao Pitanga, era dia de
feijoada. Light. Seja l o que isso queira dizer em se tratando de feijoada. Impossvel exigir que
Plnio optasse pelas saladas. Comia de se regalar. Seu tempo estava se cumprindo. Faria sentido
priv-lo desse prazer que ele apurou com as delcias preparadas por dona Hermnia?
EU NUNCA ADMITIRIA FAZER OS CONCHAVOS QUE A ESQUERDA FAZ. EU ESTOU MAIS ESQUERDA DO
QUE A ESQUERDA.
O NICO CONSOLO QUE RESTA A QUEM PERDEU A F O VCIO. E O VCIO O GRANDE ESTUPRADOR
DOS ESPRITOS.
A presena da religiosidade no discurso e na justificativa do seu modo de vida no arrefeceu a
natureza poltica, estrito senso, das aes de Plnio Marcos. Natureza que se manifestava na
adeso a lutas coletivas e nas escolhas pessoais. Plnio tinha um lado mstico pronunciado, que
eu detectava no seu comportamento e na busca de transcendncia, diz Mino Carta, que se define
como um anarquista, como Plnio. A espiritualidade dele a que se encontra nos desvalidos, mais
que em um banqueiro. Se no passado no se filiou ao Partido Comunista, no Brasil da Nova
Repblica manteve-se distante de outra onda vermelha, do PT Partido dos Trabalhadores. Nem
a amizade de Mrio Covas foi suficiente para ele se aproximar, depois, dos dissidentes do
histrico MDB, reunidos em nova sigla, o PSDB.
Tem trs coisas que eu gostaria que soubessem: no sou corintiano, no sou petista, no sou
brigo garantiu a Marta Ges no Estado, em novembro de 1992. Das trs, a terceira a menos
convincente. De uma boa briga Plnio jamais fugiu e, em alguns casos, at provocava. Todos que o
conheceram tm uma histria de briga pra contar.
A atriz Maria Eugnia De Domenico lembra a noite no Gigetto em que ele se estranhou com
Antonio Petrin, que fazia Balada de um palhao com Walderez de Barros no Teatro Zero Hora. As
agresses verbais chegaram a tal ponto, que eles se chamaram para o pau, na rua. Saram aos
tropees nas cadeiras e mesas com a corriola atrs. O ator Luiz Serra, que dividia a mesa com
eles, sentiu que o clima poderia descambar e os convenceu a sair do restaurante. No sei como eu
segurei os dois no brao. Fiquei no meio e impedi que eles se agredissem fisicamente. Plnio foi
embora e voltei com o Petrin para continuar o jantar. Maria Eugnia surpreendeu-se, noites
depois, ao ver Plnio e Petrin juntos como se nada tivesse acontecido.
O passo seguinte festa no Teatro Maria Della Costa seria levar o Movimento para Braslia.
Programou-se ento a presena no Congresso Nacional de uma caravana de artistas, nos dias 17 e
18 de agosto, com o objetivo de apresentar aos constituintes as reivindicaes acordadas.
ramos um grupo de uns trinta, lembra Lauro Csar Muniz. Plnio e eu ficamos no mesmo
quarto de hotel. Na primeira noite, eu estava ao telefone quando, de repente, vejo o Plnio
preparando uma seringa. Entrei em pnico e no consegui falar nada. S pensei: ser que ele agora
est se drogando? Ser que entrou nessa de pico? No possvel, ele nunca foi disso. Fiquei
olhando todo aquele ritual, sem entender. Ele ergueu a camiseta e deu uma espetada firme na
barriga. Foi a que fiquei sabendo que ele tinha diabete. Meu sentimento foi absurdo. Soltei uma
gargalhada. Sei que eu devia me preocupar com a diabete dele, mas confesso que senti certo alvio
em ver que era insulina e no droga que ele estava se aplicando.
Na manh seguinte foram todos para o Congresso. Na entrada, barraram o Plnio. Seus trajes,
macaco, chinelo de dedo e camiseta, eram inadequados. Ningum disse isso. O motivo alegado
foi que ele estava sem gravata. Por isso, no. Pediu uma emprestada e amarrou no pescoo. O mal-
estar foi contornado por deputados que intervieram falando com a segurana e Plnio entrou. Fez o
seu papel. As reivindicaes do Movimento foram atendidas na Constituio de 1988 e desde
ento a Censura, como historicamente existia, virou coisa do passado. Pelo menos em tese, diria
Plnio, j preocupado com outras e mais sutis formas de censura. Lauro Csar, por sua vez,
alegrava-se tambm por saber que o velho amigo no se rendera s drogas.
Nunca vendi drogas, sempre fui contra vcios Plnio insistia em entrevistas. E era
verdade. Quando soube que sua Ana Festa estava fumando, conversou com ela. No atacou de pai
moralista, nem fez discurso contra a maconha. Ele cobrava que eu me cuidasse, citava atrizes
lindas que punham em risco a sua beleza consumindo drogas. O tempo desfez as preocupaes
com a filha. Mas no com os jovens a quem se dirigiu na pea O signo da discoteca, em 1979,
dizendo:
Procuro chamar a ateno para a falta de perspectivas do jovem do Brasil de hoje. Impedido
de participar da prpria histria, de influir no prprio destino, o jovem fica sem perspectivas, isto
, sem esperana no futuro. Isso grave. triste. A esperana a presena de Deus nos homens.
Sem essa chama, o homem acaba perdendo a f, desacoroando das ideologias, achando intil o
sacrifcio feito no sentido de um mundo melhor. A, fica exposto totalmente influncia dos astros
do consumo, que brilham no cu azul da propaganda. Astros que convidam ao escapismo [e]
acabam conduzindo vencedores (se que existem nesse sistema) e vencidos ao nico consolo que
resta a quem perdeu a f: o vcio. E o vcio o grande estuprador dos espritos.
INTIL CANTO, INTIL PRANTO Em cuidadoso ensaio, no qual remete ao vdeo escrito e
interpretado por Plnio, Sbato Magaldi reporta que o mergulho foroso na situao mexeu com a
sensibilidade do artista. A angstia tomou conta dele, durante as duas semanas do impasse criado
pelo teor que deveria ter a mensagem. Sabe-se que prisioneiros mataram colegas, ao suspeitar que
eram portadores da molstia. Um, na promiscuidade do ambiente, chegou a infectar dezenove. Por
outro lado, registra-se a solidariedade de presas, que no permitiram o afastamento de um casal de
lsbicas doentes. Este ltimo episdio resultou na pea A mancha roxa. Em nenhum momento,
porm, o autor se refere doena pelo nome, o que favorece o salto do especfico para o
universal. Confinadas, as personagens desfilam suas histrias e angstias de modo discursivo, s
vezes, o que prejudica a ao dramtica sem comprometer a denncia de um sistema carcerrio
perverso.
Essa denncia j se ouvia em Barrela e nos trs contos que compem o livro Intil canto, intil
pranto pelos anjos cados, de 1977, cuja poesia do ttulo escancara a viso generosa, e crua, do
autor sobre a vida atrs das grades, onde presos se amontoam nas celas infectas de distritos
policiais. Um desses contos inspirou 25 homens, adaptao e direo de Franois Kahn, com Cac
Carvalho, espetculo apresentado em curtas temporadas em So Paulo e Rio de Janeiro. Produzido
pelo Centro de Experimentao e Pesquisa Teatral de Pontedera, Itlia, onde estreou em julho de
1991 no Teatro Volterra, 25 homens foi sugerido pelo ator Cac Carvalho e tinha estrutura de
monlogo, apesar da presena de um carcereiro, aqui interpretado por Henrique Stroeter. Mais
que um violento panfleto contra a condio carcerria, escreveu Franois Kahn, o texto ressoa
como um lamento, repetido no tempo e no espao por todos os homens presos e humilhados at a
morte.
Quando Plnio concluiu A mancha roxa, Lo Lama preparava a sua estreia como dramaturgo
com Dores de amores. A pea caiu nas mos de Malu Mader e Taumaturgo Ferreira, que
comearam a ensaiar sob a direo de Roberto Lage. Com um casal de sucesso nas novelas da TV
Globo, o espetculo seria, como foi, um tiro certo. Publicamente, o fato de seu filho surgir como
autor de teatro era festejado por Plnio. Mas ter um dramaturgo na famlia, que no ele, causou
surpresa. Meses antes, Paulo Autran se encontrou com Plnio e disse que tinha lido uma pea muito
interessante de um jovem autor, tratando do conflito de pai e filho. Chamava-se Inferno.
Quem o autor?
Lo Lama, conhece?
Claro que eu conheo, meu filho, porra!
Paulo, que no sabia do parentesco, ficou surpreso. Mais surpreso ainda com a reao de
Plnio, que o levou a desistir de fazer a pea para no se envolver numa relao familiar
complicada, como a que o texto retratava. Essa pelo menos foi a explicao que Lo ouviu de
Paulo Autran, de quem se tornara amigo. Foi muito surpreendente para o Plnio eu ser
dramaturgo. Ningum esperava, nem eu. Foi uma coisa que no era pra ser. E ele no estava
preparado para lidar com isso, com a ideia do Lo dramaturgo, pois o que eu queria mesmo era
ser msico. Ento ele me boicotava por cime, mas ao mesmo tempo me incentivava muito a
escrever.
Dessa vez, porm, no havia o que Plnio pudesse fazer. Enquanto Dores de amores era
ensaiada, Lo se movimentou para encenar A mancha roxa, como diretor e produtor, usando o
dinheiro que recebera como adiantamento pela sua pea. De acordo com os seus clculos, cerca de
setenta atrizes leram o texto de Plnio e se recusaram a fazer, por consider-lo violento demais.
Reuniu, enfim, jovens atrizes que compraram a barra do espetculo: Camila Bolaffi , Cludia
Campos, Dione Leal, Beth Daniel, Leila Pantel, Graa de Andrade e Elaine Gonalves. Lo alugou
o Teatro do Bexiga para uma temporada alternativa de segunda a quarta-feira e marcou a estreia de
A mancha roxa no dia 16 de janeiro de 1989, mesmo dia da estreia de Dores de amores em sesso
para convidados no Teatro Bibi Ferreira. Lo ficou no Bexiga. Plnio foi para a porta de Dores de
amores vender livros. L tinha mais gente, justificou-se.
PSTER DE O ATOR POR UM CLARINETE Sabendo dos apertos por que passava Plnio e
pensando em ajud-lo, certa madrugada de julho de 1988 Quartim de Moraes se apresentou a ele
no Gigetto e o convidou a visit-lo na Nossa Caixa. No convidou duas vezes. Dias depois, o
Plnio apareceu em meu gabinete e entrou no assunto de sola, como era de seu feitio, recorda
Quartim.
o seguinte, se voc est mesmo a fim de me ajudar, a me-lhor maneira descolar uma
grana. Afinal, isto aqui um banco, no ? Tenho trs propostas e voc pode escolher qualquer
uma, ou todas, que eu no vou ficar triste. Primeira, vocs imprimem de graa a na sua grfica
alguns desses meus livrinhos que eu vendo por a. Segunda, vocs patrocinam um show meu, uma
pea, qualquer coisa. Patrocnio completo. Terceira, a nica coisa que eu possuo, o nico bem que
eu tenho, so os meus textos; ento, eu penhoro um texto meu aqui por uma grana que a gente
combina. Pode ter certeza de que vai ter a maior repercusso na imprensa.
Virou as costas e saiu, no sem antes deixar uma coleo de seus livrinhos sobre a mesa. Entre
perplexo e fascinado com a figura, Quartim deu tratos bola. Colocar a obra de Plnio no prego
estava fora de cogitao. A Caixa Estadual nunca teve carteira de penhor, ao contrrio da Federal.
Patrocinar uma pea esbarrava no edital. Ao folhear Canes e reflexes de um palhao, um dos
livrinhos que o autor deixou na mesa, Quartim leu um pequeno texto, O ator. Exatas setenta linhas
de uma vigorosa e ao mesmo tempo singela e comovedora declarao de amor ao ator, que termina
assim: Amo os atores e por eles amo o teatro e sei que por eles que o teatro eterno e que
jamais ser superado por qualquer arte que tenha que se valer da tcnica mecnica. Estava ali o
que procurvamos. Num estalo, toda a ideia surgiu pronta, clara.
Quartim providenciou uma prova de um cartaz com o texto, a foto e a assinatura de Plnio
Marcos e o chamou para nova reunio. A secretria o levou a uma sala onde, sobre a mesa,
estrategicamente desenrolado, estava o cartaz. Quartim deu uns minutos e entrou. Abri
silenciosamente a porta, atrs dele, e por algum tempo observei-o. Curvado sobre a mesa, tendo
nas mos o pster desenrolado, ele estava visivelmente surpreso. E, tenho certeza, emocionado.
Plnio cuidou de disfarar a emoo:
O governo j me fez de tudo, principalmente me censurar e mandar prender. Mas a primeira
vez que ele me presta uma homenagem.
Seguiu-se um silncio que pareceu interminvel.
Plnio, quanto que voc quer pelo texto?
Sei l, diz a: quanto voc quer pagar?
Melhor voc dar seu preo e eu avaliar se posso ou no pagar.
o seguinte. Meu filho Kiko est aprendendo clarinete, ele bom paca. Mas o professor
falou que o clarinete que ele est usando no est com nada, precisa outro melhor. Quero dar um
clarinete pro Kiko.
E quanto custa?
Acho que uns trezentos paus.
Fecharam por trezentos. Quartim fez os clculos e viu que, com os descontos, Plnio receberia
bem menos. Deu um jeito e a Caixa pagou trezentos lquidos, o preo do clarinete do Kiko. O
pster foi um xito. Para fechar com estilo a temporada de 1988 do Arte em Cena, decidiu-se
homenagear o Teatro, personalizado em algum unanimemente reconhecido como uma grande
personalidade. Plnio foi o escolhido.
Na noite de 26 de setembro, no Teatro Srgio Cardoso, Irene Ravache fez uma leitura
emocionada de O ator. Em seguida o autor foi chamado ao palco. Surge a figura, no seu mais
esmerado figurino pour pater le bourgeois, no relato de Quartim: Cala preta de sarja, presa
por elstico abaixo do protuberante ventre e displicentemente enroladinha na altura dos tornozelos
sem meia; camiseta remotamente tambm preta, num dgrad de tons pardos, com aplicao de um
buraco de uns trs centmetros de dimetro na altura do ombro direito; elegante chapeuzinho
tambm preto afinal, tratava-se de um evento de gala! ; bolsa de pano porta-livrinho a tiracolo
e, detalhe final, confortvel sandlia de dedo.
Nildo Masini, presidente da Caixa, entrega a Plnio Marcos um carto de prata, o mesmo que
outros pioneiros do projeto Arte em Cena, como Emlio Fontana, receberam. Conforme o
combinado, em seguida algum passa um basto de madeira para Plnio dar as trs batidas
inventadas por Molire para anunciar o incio do espetculo no caso, At onde a vista alcana,
patrocinado pela Caixa. Contrariando o previsto, Plnio pega o basto e o entrega a Nildo Masini,
gesto acompanhado de uma pilhria que leva a plateia gargalhada:
Presidente, pega a o pau do Molire.
CENA XVIII
CRITICO O AMESQUINHAMENTO DO MERCADO DE TRABALHO, A CENSURA, MAS COLEGA MEU, NO.
AQUI, GAIVOTA! DIVIDIR, NO!
QUERIAM AMPUTAR MINHAS PERNAS. PORRA, EU S CONSEGUI GAGUEJAR, VAI FICAR MELHOR PRA EU
VENDER LIVROS.
QUANDO CHEGA NA VIDA AMOROSA, EU PARO DE FALAR. NO INTERESSA SABER QUEM EU COMI.
A gerao que chegou ao teatro no incio dos anos 1990 no tinha sofrido os apertos da
ditadura, mas tentava entender o seu pas e traduzi-lo em cena. A gerao dos 1970 se formou em
um palco que trocou a militncia da dcada anterior por uma busca formal e psicolgica inspirada
em influncias externas, trazidas por encenadores como Victor Garca e ampliadas pelos festivais
internacionais de teatro, promovidos pela atriz e empresria Ruth Escobar. Em So Paulo, o teatro
que deglutiu o sopro renovador dos italianos do TBC desenvolveu uma linguagem e uma esttica
prprias, com fortes traos de identidade nacional, revelando talvez a mais variada e rica gerao
de autores e diretores, depois chamados de encenadores. Sem xenofobia, e receptiva ao que se
produzia l fora, seja na Europa ou nos Estados Unidos, essa gerao afirmou-se com
personalidade e conscincia do compromisso do teatro com o seu tempo e o seu lugar. Poltica,
sim, mas no necessariamente atrelada camisa de fora de partidos e dogmas ideolgicos, ela foi
tolhida em pleno processo de afirmao na virada da dcada de 1970.
Diretores como Jos Renato, Flvio Rangel, Amir Haddad, Jos Celso Martinez Correa,
Antunes Filho, Augusto Boal, Fauzi Arap, Ademar Guerra e Antonio Abujamra, para citar os mais
visveis e influentes, passaram a duras penas pela primeira fase da ditadura militar e da censura,
mas passaram. Resistiram ao arbtrio. Resistiriam, porm, grandiosidade de espetculos como
Cemitrio de automveis e O balco, de Victor Garca? Resistiriam ao formalismo esttico e
experimental de produes que levavam ao delrio as plateias dos festivais internacionais
realizados por Ruth Escobar? Ademar Guerra entendia que comeou a a crise da sua gerao.
Antes de amadurecer e consolidar as prprias escolhas de linguagem, encenadores como os
citados foram desafiados a responder a influncias que, sutilmente, comearam a fazer a cabea do
pblico. Cada um se safou como pde ou desistiu.
No caso dos dramaturgos, pesou mais forte a mo da Censura. Como Plnio Marcos, a gerao
que o antecedeu Gianfrancesco Guarnieri, Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho, Lauro Csar
Muniz, Chico de Assis, entre outros e a que nasceu sob seu estmulo Jos Vicente, Consuelo
de Castro, Leilah Assuno, Antonio Bivar, Mrio Prata e Isabel Cmara penaram para se
manter ativas. Assim, constatava Plnio, a investigao de questes ligadas sociedade e ao
homem brasileiro foi severamente inibida, seno impedida. Ao se controlar e cercear a voz do
autor enfraqueceu-se o fluxo, e o embate, de ideias no palco. Da que a dcada de 1980 ecoa e
tenta fazer verdadeira a premissa apocalptica da morte da palavra no teatro. Curiosamente, a
gerao que desperta nos anos 1990 descr dessa morte anunciada e vai atrs de uma dramaturgia
da qual s ouviu falar. Dois autores, em especial, chamam a sua ateno, Nelson Rodrigues e
Plnio Marcos, cujas peas comeam a ser lidas e analisadas em universidades e entram no
repertrio dos novos atores e diretores que se formavam.
dessa poca a pilhria que Plnio gostava de contar. Convidado a participar de seminrio de
estudos na USP sobre a sua obra e a de Nelson, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes, j mortos,
ele imps uma condio:
Se os outros forem, podem contar comigo.
AQUI, GAIVOTA! DIVIDIR, NO. O carioca Eduardo Arajo Tolentino, que se transferiu
do Rio para So Paulo com o seu Grupo Tapa, em 1986, teve seu primeiro contato com a obra de
Plnio Marcos ao assistir, ainda adolescente, ao filme A navalha na carne, com Emiliano Queiroz,
Jece Valado e Glauce Rocha. Um impacto muito grande, que o tocou mais que as eventuais
montagens das peas de Plnio a que assistiu. Tambm era pouco mais que um adolescente quando
conheceu o autor na noite de 14 de abril de 1975, no Ciclo de Debates do Teatro Casa Grande, no
Rio. Daquele encontro, do qual participaram tambm Fernando Torres, Yan Michalski e Paulo
Pontes, mais que a anlise poltica do momento teatral, ficou para Eduardo a imagem de Plnio
como um homem solidrio e leal aos seus companheiros de palco. No debate, um espectador
entrou dividindo:
Como voc quer que o teatro evite a crise, se no Brasil aparecerem como grandes atores
Tarcsio Meira, Glria Menezes, Regina Duarte?
Plnio no aceitou a provocao. Nem precisou lembrar que os nomes citados, como tantos
outros de sucesso popular em telenovelas, comearam no teatro, com o qual nunca perderam o
vnculo. E encerrou o assunto, recusando-se a esse tipo de crtica:
Quem faz a pergunta no vai conseguir nos dividir, e no vou criticar aqui colega nenhum.
Aqui critico o amesquinhamento do mercado de trabalho, a censura, mas colega meu, no. Posso
criticar de modo geral, a gente pode divergir politicamente. Mas da a entrar no julgamento
pessoal, de forma alguma. Aqui, gaivota! Dividir, no!
Depois daquela noite, Eduardo Tolentino s reencontrou Plnio nas suas vindas a So Paulo, a
cada seis meses, para ver os principais espetculos da temporada. E o reencontrou em porta de
teatro, vendendo livros, ou no Gigetto. No se aproximava, porm. Isso s aconteceu quando j
morava na cidade e o Grupo Tapa apresentava Solness, o construtor, de Ibsen, no Teatro Aliana
Francesa. Como Paulo Autran estava no elenco e sempre havia um pblico bom, ele ia l vender
os seus livros e enquanto o espetculo rolava ficvamos eu, minha me Lola e o Fbio Villaboim
ouvindo o Plnio. Era divertidssimo. s vezes repetia as histrias, que ele mudava e pareciam
novas. Divertia-se contando histrias do teatro, da poca da ditadura, das prises, e dava a elas
um glamour que nem deviam ter. Plnio era uma das ltimas ligaes com uma fase muito bacana
do brasileiro. E ele fazia parte disso, de um teatro mais romntico, de um Brasil que acabou.
Eduardo, que ainda tinha a imagem de Plnio em Beto Rockfeller, um rapazinho bonito, e no
debate do Teatro Casa Grande, no demorou a perceber o personagem que se escondia no macaco
surrado e no chinelo. Para ele, havia um personagem real e outro construdo. Plnio era mais
inteligente que culto, mas havia certo marketing em se dizer analfabeto e vestir-se daquele jeito,
concluiu. Por isso Eduardo no se surpreendeu ao v-lo de fraque, gravata de seda e sapato de
verniz no casamento da filha Aninha, cujo figurino ficou aos cuidados de Lola Tolentino,
figurinista do Tapa. Walderez estava preocupadssima com a possibilidade de ele dar vexame.
Foi o mximo ver o Plnio orgulhosssimo, entrando na igreja decorada com toda a pompa, digna
do casamento da filha de um grande industrial, com todas as flores e ave-marias possveis. Aquela
cena revelava muito do Plnio, cuja agressividade, creio, era medo de no ser aceito. Certamente,
numa festa de entrega de prmio ele no usaria aquele figurino, mas frente a uma circunstncia
afetiva ele no se recusou.
REJEIO A UMA REPORTAGEM MALDITA Os planos de Eduardo Tolentino na direo
do Grupo Tapa previam encenar Plnio Marcos, cuja obra principal estava esquecida havia uma
dcada. A ltima montagem de Navalha na carne, em 1988, tinha sido iniciativa de um grupo de
velhos amigos o diretor Emlio Fontana e os atores Analy Alvarez, Luiz Serra e Roberto
Rocco. O espetculo cumpriu modesta temporada na Sala Paschoal Carlos Magno do Teatro
Srgio Cardoso e foi assistido por polticos cassados, de Jos Serra a Jos Genoino, que estavam
fora do pas quando Plnio surgiu em 1966. A oportunidade de Eduardo dirigir uma pea do autor
apareceu de maneira fortuita quando, em turn do grupo, Walderez de Barros lhe deu para ler a
adaptao teatral do romance Quer, uma reportagem maldita. A pea j havia interessado ao
diretor Jorge Takla, logo depois de Madame Blavatsky. Fui ao apartamento do Plnio na rua
Teodoro Baima s sete da manh, tirei ele da cama para que me desse a pea pra ler. Depois, no
me lembro o que aconteceu, eu no consegui montar, justifica-se Takla com elegncia, sem
esclarecer os motivos da desistncia.
No caso de Eduardo Tolentino, a vontade de fazer a pea, aliada s condies favorveis de um
grupo estvel, foi imediata: Eu me encantei, o texto me tocou muito. Foi quando ele no teve
mais dvidas de quanto Plnio colocava a famlia, ou tribo, na frente de tudo. Eu tinha pensado na
Walderez para o papel da cafetina, mas ele me ligou dizendo que escreveu a pea para a Walderez
fazer o papel da me de Quer, uma menina porra louca que se mata com dezoito anos. Dois dias
depois ele me liga e diz que a msica tinha que ser do Lo.
Por no se achar o indicado para aquele trabalho, Lo Lama tambm pensou em recusar quando
o pai lhe disse que faria as msicas de Quer. Mas, como Eduardo, ele sabia que no adiantava
questionar as exigncias de Plnio. Seria comprar um desgaste intil. A exigncia tinha muito a
ver com a ideia do circo: a famlia tem que trabalhar junto. No pode ou deve, tem. Por isso
minha me tinha de fazer as peas dele. Foi assim com Blavatsky, Balada de um palhao e
Quer. Nem sempre foi assim, acrescenta Lo: As peas nunca eram escritas para a Walderez.
Quando ningum queria, sobrava pra ela. Ele s se convenceu de que ela era uma grande atriz
quando Fauzi Arap disse isso ao convid-la para fazer Mocinhos bandidos. Seja como for, Plnio
imps as suas escolhas em Quer e os ensaios correram normalmente. Ele nunca mais apareceu at
a estreia nem deu palpite na direo.
No entanto, se no incio da dcada de 1990 a gerao de Eduardo Tolentino tinha certo fascnio
pela obra de Plnio, o mesmo no acontecia com parte do pblico contemporneo do autor.
Quando o diretor contou a uma amiga mais velha, frequentadora de teatro, que o Tapa ia fazer
Quer, a reao no poderia ter sido pior: No quero ver. J gostei de Plnio Marcos, no gosto
mais. Eduardo percebeu que no se tratava de reao isolada: Havia uma rejeio muito grande
ao Plnio numa determinada faixa de pblico. O mesmo pblico, certamente, que o conheceu,
aplaudiu e admirou em tempos passados.
ENCONTRO DEFINITIVO COM VERA ARTAXO Em estado de abandono, que ele mesmo
se imps, tambm viveu Plnio Marcos do fim do casamento com Walderez ao reencontro
definitivo com Vera Artaxo, que seria a sua companheira at o fim da vida. Aquele seu se deixar
levar incomodava tanto a me dona Hermnia quanto os filhos. Seria escolha consciente viver num
apartamento desconfortvel e descuidar-se das roupas e da aparncia fsica? Para Lo Lama, o pai
era incapaz de fazer uma reciclagem psicolgica e de reconhecer que precisava se tratar. A
sade, debilitada pelo enfarte e pela diabete, aumentava a preocupao com um homem que
parecia no se dar conta de que o tempo passou e deixou marcas. As oportunidades de voltar ao
combate se perderam, como a participao no telejornalismo da Rede Manchete em meados da
dcada de 198 O. O tar e o discurso da religiosidade confundiamse com o sentimento de estar
sendo ignorado pela mdia, que no dava o necessrio destaque e divulgao s suas peas
encenadas. Por isso, fez da imprensa uma vil, alvo de seus ataques, como antes fora a Censura.
Marca de sua personalidade, a agressividade saa do discurso para confundir-se com a aparncia
desleixada. At fazia piada disso ao dizer que, quando aparecia na televiso, a cmara mostrava
mais os seus ps no chinelo que o seu rosto.
A reaproximao de Vera Artaxo fez, aos poucos, o Bobo Plin reconciliar-se com Plnio
Marcos, que abandonou a conquista desenfreada de parceiras. Se nunca usou drogas e abandonou o
lcool e o cigarro, a atividade sexual foi sempre uma espcie de compulso. Feito adolescente
obrigado a afirmar a todo instante a virilidade, trao de uma gerao cuja libido se exercitou em
bordis, nas periferias das cidades ou em beira de cais. Sabiam todos que conviveram com ele das
suas cantadas e conquistas, mas jamais ouviram dele um comentrio indiscreto ou grosseiro para
contar vantagem. No era assunto que ele levasse para as conversas. Quando, em 1992, Quartim de
Moraes, que colhia depoimentos para uma biografia de Plnio, insinuou entrar nesse tema, ele
encerrou ali a conversa.
Quando chega na vida amorosa, eu paro de falar. No interessa saber quem eu comi. Isso no
relevante na minha obra desabafou para Marcelo Rubens Paiva, em entrevista publicada pela
Folha em fevereiro de 1998. Ele parecia no querer olhar para o passado, convencido de que Vera
Artaxo seria sua ltima companheira. Eles se conheceram no jornal ltima Hora em 1974. Numa
final de campeonato, Samuel Wainer entregou recm-formada jornalista um assunto com o qual
ela no tinha nada a ver. O texto saiu cheio de clichs que viam no futebol o pio do povo. Plnio
esculhambou a viso de Vera, tpica de uma esquerda juvenil. Ficaram amigos desde ento. Ela
comenta: Estabeleceu-se um relacionamento entre ns que teve diferentes facetas ao longo dos
anos. Em vrios momentos ns nos afastamos. Quase sempre por breve tempo, porque ele tinha
uma natureza muito ciumenta e era penoso conviver com isso. Ou por meses, porque ele s
reclamava da vida, no estava bem em lugar nenhum e ficava me ligando o tempo todo, como se eu
fosse a salvao, mas eu sempre acreditei que cada um responsvel por sua prpria vida, no
possvel delegar isso a algum.
Numa das vezes em que saiu de casa e o casamento parecia terminado, Plnio foi procur-la,
dizendo que tinha resolvido a vida, estava morando sozinho. No esperava ouvir o que ouviu.
Substituir uma relao por outra, uma famlia por outra, no resolver a vida. No quero casar,
no tenho essa vontade. E estou namorando outra pessoa. Como Plnio reagiu? Vera lembra muito
bem. Ele ficou chocado, mas continuou me ligando. Dois meses depois ela soube que estava
grvida, mas aquele relacionamento no tinha peso suficiente para se manter em funo disso e
Vera assumiu solitariamente a gravidez. Falei para o Plnio parar de me cantar: Sou uma mulher
grvida. Ento ele passou a me tratar como se eu fosse Nossa Senhora, como se eu fosse a Virgem
Maria.
Era 1982. Grvida, Vera frequentou o grupo de estudos que Plnio reunia na casa de Beth
Rocco, duas ou trs vezes por semana. Numa dessas reunies ele fez uma mega autocrtica
publicamente, admitindo que sempre quis ser meu dono e agora, diante de mim grvida de outro,
ele tinha que vencer toda a sua formao para enfrentar a nova realidade, e isso estava sendo um
grande exerccio de vida. Eles se viram durante toda a gravidez. Tiago nasceu em 26 de
dezembro. Plnio atacou de numerlogo e concluiu que tinha de ser Tiago sem ag. E assim ficou.
Plnio alugou o apartamento da rua Teodoro Baima, do qual Vera foi fiadora, em 1984.
Empregada na Editora Abril, na rea de moda, ela havia voltado para a casa dos pais, Milton e
Maria, que oferecia uma estrutura slida para o Tiago, em contraponto ao meu trabalho que era
louco, minha loucura razovel e loucura nada razovel do Plnio. Havia comeado outro
relacionamento deles. Na verdade, comeamos outro relacionamento muitas vezes. Mas esse era
muito mais tranquilo e nada parecido com os de outros tempos, quando tudo era muito pesa-do e
carregado de cenas de cime.
Olha, Plnio, eu tenho que ir a uma festa.
Ento vai, porque sem voc nenhuma festa acontece.
Tudo ao contrrio do que era antes. O Tiago cresceu e comeou a exigir que pelo menos uma
vez por semana ns o levssemos para jantar no Gigetto. Ficamos uns anos assim. Coube ao Tiago
aproximar o Plnio dos meus pais. Vocs tm que conhecer, ele o mximo, mora no meio de um
monte de caixotes, ele dizia. Tendo de deixar o apartamento da Teodoro Baima, Plnio se mudou
para uma quitinete no 24 andar do Bloco F do Edifcio Copan, onde passou a ter um telefone,
cedido pelo pianista Lus Loy e sua mulher, Mara, companhias constantes no Gigetto. Telefone que
facilitava o agendamento de clientes de tar e de prticas como moxibusto, hipnose, energizao
e magnetizao. Criana, Tiago se encantava com a tbua de lmpadas coloridas que Plnio usava
nas sesses teraputicas alternativas. Quando ficava muito tarde, e para no acordar os avs,
Tiago dormia no Copan. Geralmente na tera-feira, dia escolhido para o jantar no Gigetto. De
manh bem cedo, tomava caf no Hotel Hilton com Plnio e Vera, que o levava ao Colgio Rio
Branco, na avenida Higienpolis, e seguia para o trabalho.
*
Depois de um ano na quitinete nmero 224 no 24 andar, Plnio foi despejado em 1994. Na
imobiliria do Copan, Vera encontrou um apartamento venda no 2 andar do Bloco B. O
apartamento de 27 metros quadrados custava um Fusquinha, estava detonado, imundo. Com doze
anos, Tiago ajudou como pde na reforma. O Bloco B era conhecido como Pavilho 9, referncia
a uma das alas mais violentas do presdio do Carandiru. A regio central j no tinha a
efervescncia do passado, mas os perigos da vida no centro da cidade no assustavam Plnio.
Certa noite, quando no morava mais ali, depois de uma sesso de O assassinato do ano do
caralho grande, no Teatro Fernando Azevedo, na praa da Repblica, ele caminhava com Tiago
ao ser abordado por um pivete, que anunciou um assalto. Plnio encarou o garoto:
Sai pra l, moleque! Vai querer me matar pra qu? Pra dar a bunda na Febem? Sai, pega o
seu caminho.
O pivete, surpreso e assustado, virou as costas e se mandou.
A relao de Vera e Plnio se estabilizou. Antes, passou por turbulncias. A primeira separao
foi de alguns meses, em 1992. Eu estava trabalhando demais e ele reclamava a minha presena, a
falta de ateno, conta Vera. O trabalho estava muito pesado, tive um estresse e fui para um spa
no Rio Grande do Sul e fiquei l uma semana. Fiz uma dieta alimentar, perdi peso e ganhei muita
sade, num processo de olhar pra mim mesma. No avio de volta de Porto Alegre, pensei: Est na
hora de eu ligar para o Plnio, estamos seis meses sem nos falar. Cheguei em casa, o telefone
tocando, era ele. Voc no acha que est na hora de a gente fazer as pazes? Acho. Est bem, estou
te esperando, vem pra c. Eu fui e no teve discusso sobre o relacionamento, o que tinha
acontecido nesse tempo, nada disso. Comeou tudo de novo.
Na ltima separao, Plnio j morava no apartamento um pouco maior, de um dormitrio, que
Vera tinha na rua Imaculada Conceio, em Santa Ceclia. Ele se mudou do Copan para l em
1995. Em um de seus ataques de cime, ele arrumou a mala e voltou para o Pavilho 9. Por uma
semana eles s se comunicavam por bilhetes que Tiago levava e trazia. At que ele se cansou e, ao
entregar o bilhete da me, colocou um recado seu em cima: Vocs tm de parar de brigar, porque
eu no quero ficar longe de voc. Plnio leu o recado do Tiago, pegou as coisas e voltou para a
Imaculada. Ao chegar do trabalho e encontr-lo em casa, Vera perguntou se ele tinha lido o seu
ltimo bilhete.
No, eu li o bilhete do Tiago e vi que no precisava ler o seu.
No final daquele ano de 1995, o rveillon foi passado tambm em Praia Grande. Vera, com
problema de tendinite, tinha sido demitida da Editora Abril. Preocupado com as dificuldades,
Plnio resolveu fazer alguma coisa que rendesse dinheiro. Tiago escreveu numa placa Plnio
Marcos Tar 1996 e saiu com ele, empurrando um carrinho. Escolhiam um ponto e os clientes
iam chegando. Em geral, mulheres, lembra Tiago. Plnio abria o tar ali mesmo na praia. Alguns
clientes preferiam maior privacidade e marcavam a leitura em suas casas. Tiago anotava os
endereos e, depois do expediente na praia, saam os dois para atender clientela.
Foi quando Plnio deixou as Clnicas, e ficou evidente que ele no poderia continuar morando
sozinho numa quitinete, que Vera investiu na reforma do apartamento da Imaculada Conceio, em
Santa Ceclia. Antes da mudana, porm, o corao o levou de volta ao Incor. Em maio, submeteu-
se a cirurgia para desobstruir uma artria e, no dia 9 de junho de 1995, operado pelo dr. Fbio
Jatene, recebeu trs pontes de safena e uma mamria. Saiu do hospital direto para a casa dos pais
da Vera, onde ficou algumas semanas em recuperao. No ms seguinte j estava a postos para
assistir estreia de uma comdia de Lo Lama,
Bang-bang Quando os revlveres no matam, protagonizada por Walderez de Barros, no
auditrio da Igreja de So Judas. Retomou as noites no Gigetto, mas agora chegava e saa mais
cedo e seu cardpio se resumia a um frango cozido na gua. O fil na chapa, sem temperos, foi
liberado depois. Era comovente o carinho do Tiago, cortando a carne para o Plnio, recordou
Francarlos Reis. Mas havia tristeza no olhar do Bobo Plin, j sem foras para disfarar o
incmodo de uma dependncia que a vida inteira havia recusado. Fazer o qu?
*
O que Plnio no disse foi que, para a compra do imvel na rua Maranho, em Higienpolis,
Vera juntou seu acordo de desligamento da Editora Abril, sacou seu fundo de garantia, zerou suas
poupanas e vendeu os apartamentos da Imaculada e do Pavilho 9 no Copan. Precisvamos de
um lugar amplo para os trs, pois trabalharamos em casa, precisvamos de escritrios, e Tiago
tambm, com seu equipamento de DJ, conta Vera. Na poca, com a tarefa de cuidar da agenda de
Plnio, racionando os convites para eventos, palestras e leituras de tar, de modo a no exp-lo a
compromissos desgastantes, ela conciliaria a organizao da sua obra.
Para comemorar quarenta anos de teatro, Plnio Marcos negociou com a Funarte a cesso dos
direitos de publicao da sua obra por dez anos, no valor de cem mil reais. Recebeu s 75 mil
o prprio governo garfou um quarto para o Imposto de Renda. Distribuiu o dinheiro entre a famlia
e doou parte substancial a um amigo em difi culdade, cujo nome Vera no revela: Era segredo do
Plnio. O contrato, assinado no final de 1997, previa trs volumes editados por Vera Artaxo,
agrupando dezenove textos teatrais por temas Cadeia, Prostituio, Circo, Religiosidade etc.
Esses volumes reuniriam, alm das obras conhecidas, Ei, amizade! e o monlogo O homem do
caminho, ento indito, e outros inconclusos, como Chico Viola. Dez anos depois da morte de
Plnio, o contrato caducou e a Funarte mantm silncio sobre a publicao.
Durante a temporada de O assassinato do ano, Plnio Marcos viu nas telas a verso de Neville
DAlmeida para Navalha na carne, que teve um lanamento agressivo com cem cpias exibidas
simultaneamente em todo o pas. A estreia em So Paulo, na segunda-feira, 17 de novembro de
1997, foi uma noite de homenagem ao dramaturgo, a quem Neville atribuiu um nico defeito,
escrever em portugus, seno seria conhecido no mundo inteiro.
Plnio chegou mais cedo, deu entrevistas, conversou com Vera Fischer, que lhe apresentou a
filha Rafaela linda como a me, comentou, e ouviu que o ator Guilherme Fontes queria
transformar Navalha em minissrie de televiso, projeto que evaporou to rpido quanto surgiu.
Estava feliz e no disfarava. Sentou-se nas primeiras filas para ver o filme. No final, mais
aplausos. Para Plnio e Vera Fischer, principalmente. Quanto s liberdades tomadas pelo diretor,
como a cena final da crucificao de Neusa Sueli, que tanta polmica causou, o autor nada disse.
Preferiu render-se ao trabalho de Vera Fischer, por sua interpretao de uma personagem que, ele
disse, exige um trabalho de profunda religiosidade: trata-se de um mergulho nas trevas para,
depois, conseguir a abertura para uma nova luz. Elogios tambm a Carlos Lofler no papel de
Veludo, com a surpresa de descobrir que o ator era sobrinho de Oscarito, comediante das
chanchadas da Atlntida que Plnio admirava. No escondeu, porm, seu desconforto com o
sotaque do ator cubano Jorge Perugorria como o cafeto Vado.
Sobre o trabalho de Vera Fischer, o crtico Nelson de S sintetizava os muitos comentrios da
noite de estreia. Qualquer restrio fora do talento da atriz, ele escreveu, no importa quando
ela arrisca dissolver a maquiagem para revelar o rosto prximo dos cinquenta, quando desgrenha
o cabelo dourado, quando mergulha numa cena em que se esfrega com homens ensebados que
lambem seus seios. Ou quando chora, solitria, outra vez e finalmente solitria, diante da comida
amanhecida. Ela tem o que Plnio Marcos disse ser a exigncia maior de Neusa Sueli:
religiosidade. No sei de Tnia Carrero que criou o personagem em 1968 e que tem tantas
coincidncias com Vera Fischer , mas Vera Fischer, como poucos atores, entende de Deus e
religiosidade.
Nesta ltima observao, Plnio assinaria embaixo.
CENA XIX
TUDO O QUE ACONTECEU COMIGO ERA PRPRIO DA VOCAO. NO FUI UM EXCELENTE PALHAO,
MAS TINHA UMA PAIXO QUE OS OUTROS NO TINHAM.
PLNIO MARCOS CAUSAVA EM TODOS NS, DIRETORES, UMA MISTURA DE MAGIA E DESASSOSSEGO.
Na segunda vez em que estivemos juntos em Curitiba, na sexta-feira, 14 de maro de 1997,
Plnio deu um depoimento pblico no Festival de Teatro e leu para uma plateia s de mulheres O
bote da loba, pea recm-concluda que considerava, com certo exagero promocional, a mais
madura de todas. A pea conta a histria de uma mulher simples que, culpando-se por nunca ter
sentido o prazer do orgasmo, socorre-se nos conselhos de uma cigana, em um antro ftido. Naquela
semana em Curitiba, Plnio resistiu novamente s confeitarias da cidade e no reclamou de
percorrer com Vera Artaxo as lojas da rua das Flores. No achou o chinelo que queria, mas me
convenceu a comprar uma mochila em promoo. No fica bem voc levar as roupas em sacos
plsticos de supermercado, exagerou, como um moleque empurrando a mercadoria para o
fregus. No depoimento, recheado de histrias e piadas de um repertrio que se repetia, ele estava
desarmado e sereno, brincando com o cameraman da TV Educativa para que o fotografasse de um
ngulo favorvel, e emocionou-se algumas vezes, engolindo as lgrimas diante de um pblico
muito jovem que foi ouvi-lo no Memorial da Cidade:
Com o tempo eu fui ganhando um grande respeito de homem vocacionado. Eu sinto que tudo
o que aconteceu comigo era prprio da vocao. No fui um excelente palhao, mas tinha uma
paixo que a maioria das outras pessoas no tinha. Essa paixo que eu tinha e tenho pelas minhas
coisas chama-se vocao.
O bote da loba, que tocava no homossexualismo feminino, fazia parte da sua produo recente,
na qual se inclua a comdia A dana final, em que ele se detm numa temtica que o Plnio de
outras pocas rotularia de burguesa. Duas peas que ele morreu sem ver no palco. Delas, A dana
final tem uma dramaturgia mais bem-acabada, que revela o autor no pleno domnio do seu ofcio.
O pblico que se cansara do Plnio de Quer agora o veria debruar-se sobre o conflito de um
casal s vsperas de festejar as bodas de prata. Tudo porque o marido, aflito com a sua impotncia
sexual, no tem o que comemorar e a mulher se nega, vingativa, a suspender a festa. No cenrio de
condomnio de classe mdia, em que os moradores se encontram na sauna e na piscina e trocam
confidncias e intrigas, A dana final um retrato sem retoque do casamento e das convenes
sociais, com traos de um humor amargo. Escrita em 1993, antes de Plnio se mudar para
Higienpolis, no pode ser confundida, portanto, com a viso do autor do seu novo hbitat. A pea
nasceu das histrias que Vera Artaxo lhe contava, ou-vidas na piscina do condomnio de classe
mdia em que seus pais moravam na Zona Norte. Em Higienpolis havia uma classe mdia mais
intelectualizada, uma burguesia bem diferente daquela de Santana, observa Vera, que identifica no
texto de Plnio dilogos e cenas que ela lhe contava.
A dana final circulou entre Thereza Rachel, Francarlos Reis, Juca de Oliveira e John Herbert,
que se interessaram, mas no levaram adiante o projeto. Cheguei a comprar os direitos e o Plnio
insistia para que eu fizesse, mas eu no tinha ainda a idade do personagem, explicou Francarlos.
A pea estreou em abril de 2002 dirigida por Kiko Jaess, com Nuno Leal Maia e Aldine Mller,
no Teatro Itlia. Em A dana final, observa o diretor Eduardo Tolentino, que coloca a pea entre
as mais representativas do autor, pela primeira vez Plnio Marcos fala da classe mdia e de um
universo familiar mais perto dele. Embora eu no conhea detalhes da sua vida pessoal, sinto que
a questo familiar no foi resolvida e nessa pea ele de alguma maneira est apaziguado. No
mais a famlia disfuncional, nem o drama social, presentes nas outras peas como em Dois
perdidos numa noite suja, em que clara a relao Caim e Abel dos personagens. Ento, A dana
final me parece um breve eplogo da sua vida e o ps-escrito da sua obra.
PALAVRO FORA DE LUGAR NA CMARA Quando terminou 1998, Plnio fazia planos
com Vera Artaxo. Entre esses, o de comear o ano 2000 nas areias de Copacabana. 1998 tinha sido
um ano bom. Santos o cercou de homenagens a tempo. No dia 1 de setembro ele finalmente pisou
o palco do Municipal, numa comemorao antecipada de seus quarenta anos de teatro, organizada
pela Federao Santista de Teatro Amador, presidida por Toninho Dantas. Plnio levou de So
Paulo uma comitiva de amigos e depois da solenidade, no jantar com a presena do prefeito Beto
Mansur, sugeria o cardpio que ele no podia comer. Oswaldinho, voc que agora um jornalista
e um ator desempregado, aproveita pra pedir camaro que o prefeito t pagando.
Em 8 de dezembro a Cmara Municipal de Santos lhe concedeu o ttulo de Cidado Emrito.
Tarde de tera-feira, Vera e a filha Ana ao lado, bolsa de couro cruzada no peito, Plnio entrou na
Sala Princesa Isabel, o plenrio da Cmara, ao som da bateria da Escola de Samba Padre Paulo.
Mais emoo quando ele recebeu o trofu Leo do Jabaquara e a bandeira do clube. Vera Artaxo
leu um texto de Plnio sobre A vocao. Para terminar, no faltou discurso. Sado os que no
suportam nem n de gravata, nem sapato apertado, comeou a vereadora Cassandra Marroni
Nunes, do PT, responsvel pela homenagem. Continuou, sem sobressaltos: uma alegria poder
saudar um grande smbolo da criativa expresso popular brasileira, num momento de
emburrecimento institucional, de pasteurizao globalizada do gosto imposto, de comercializao
das almas e corpos. Para terminar (como diria Plnio, sempre tem um porm, para o bem ou para
o mal), a vereadora se entusiasmou e decidiu improvisar a frase final: Puta que o pariu! Que bom
homenagear voc, Plnio Marcos!.
Aplausos e um visvel constrangimento. Nem o homenageado entendeu aquele palavro atirado
ao acaso. Dois dias depois, antes de lembrar a questo do decoro parlamentar, A Tribuna
noticiava a cerimnia: Ao contrrio do que muitos esperavam, o escritor e dramaturgo Plnio
Marcos conseguiu fazer seu discurso sem falar qualquer palavro ao receber o ttulo de Cidado
Emrito de Santos. [...] Aplaudido de p, Plnio confessou estar emocionado. Com seu jeito
simples e sua inseparvel bolsa a tiracolo, disse que Santos a sua cidade e no precisava do
ttulo para mant-la no corao. O palavro da vereadora bateu na Comisso de tica e Decoro e
por pouco ela no foi cassada. Plnio a defendeu, disse no se sentir ofendido e o processo foi
extinto.
QUEM TEM MEDO DE PLNIO E NELSON No incio de 1999, dois jovens diretores da
gerao dos anos 1990, Marco Antonio Braz e Srgio Ferrara, discpulos de Antunes Filho, se
associaram em um projeto de ocupao do Teatro de Arena Eugnio Kusnet, o velho teatrinho da
Teodoro Baima, que se salvou de fechar as portas ao ser adquirido pela Funarte. Batizado Quem
tem medo de Plnio Marcos e Nelson Rodrigues?, o projeto consistia no estudo e encenao de
peas dos dois dramaturgos chamados de malditos, seja l o que isso signifique. Nelson ficou aos
cuidados do carioca Braz, que convidou o paulista Ferrara para se debruar sobre Plnio.
Levei um susto, porque eu no conhecia a sua obra, s tinha lido Dois perdidos e Navalha na
carne. Eu sabia quem era o Plnio, tinha respeito e medo daquela figura mtica que eu encontrava
nas portas dos teatros, s vezes agressivo com as pessoas, conta Ferrara, que, no primeiro
momento, pensou em no topar o convite. Criou coragem e recorreu intermediao de Vera que
marcou um primeiro contato. O nome Plnio Marcos causava em todos ns, diretores, uma mistura
de magia e desassossego. Admirvamos o seu talento e ficvamos receosos de sua personalidade.
Encontro marcado, Srgio Ferrara no se atrasou. Encontrei-o no apartamento da rua
Maranho, todo de branco. Para minha surpresa e alegria, era um homem extremamente acessvel e
apaixonado pelo teatro. Colocou-se imediatamente disposio para ajudar no desenvolvimento
do projeto. O que mais me chamou a ateno naquele homem que nos revelou com mincias o
universo dos excludos foi o humor. Nunca perdia a graa; era como a ginga de uma escola de
samba, sempre no ritmo. O dele, claro.
Os nomes de Plnio Marcos e Nelson Rodrigues, parece, estaro para sempre associados
quando se falar do teatro brasileiro. Embora alguns sustentem, como Eduardo Tolentino, que sem
Eles no usam black-tie de Gianfrancesco Guarnieri no existiria Plnio Marcos, com a obra
de Nelson que se associa frequentemente a do autor de Barrela. Em Black-tie a primeira vez
que se coloca no palco outra classe social. Ainda que os operrios de Guarnieri sejam um povo
postio, com questes tpicas de classe mdia, a sua pea abriu as portas para que se aceitasse
outra gente no palco, diz Tolentino, sem ignorar autores como Joracy Camargo, cujas peas
propunham uma viso idealizada da pobreza (Deus lhe pague) e da classe mdia.
Carlos Heitor Cony arriscou-se na Folha, em 22 de novembro de 1999, a estabelecer paralelos
entre Nelson e Plnio, ao atribuir-lhes a mesma viso contundente da realidade. No caso do
primeiro, uma viso panormica; no outro, uma viso em close. Ao contrrio do romance e do
conto, dos quais primo em primeiro grau, o teatro brasileiro, na expresso desses dois autores,
de um pessimismo lancinante. Na chamada prosa de fico, ainda h espao para o otimismo, a
mensagem positiva, a reflexo existencial, a anlise que procura ser desapaixonada de nossa
condio humana, nela se incluindo a curiosa espcie da condio brasileira, escreveu. Segundo
Cony, ambos viram a comdia humana em forma de tragdia, Nelson atingindo o universal, Plnio
se detendo no local. O primeiro s voltas com a classe mdia, servial histrica das classes
superiores da sociedade. O segundo na ral, nos subrbios da marginalidade. Na linguagem, o
pudor de Nelson que evitava o palavro. Em Plnio, a escancarada violncia verbal do nosso
tempo. Nelson sofria e fazia seus personagens sofrerem porque aspirava dignidade e, em alguns
casos, santidade. Seu universo no conhecia a fome. Plnio desprezava a dignidade e se lixava
para a santidade. A fome e a misria, fsica ou moral, substituam os valores burgueses da obra de
Nelson.
As observaes de Cony, um escritor que se declara pouco afinado com a linguagem do teatro,
refletem mais as diferenas que as semelhanas dos dois dramaturgos. Por paradoxal, talvez sejam
mesmo as diferenas que aproximam as suas obras, considerando terem sido poucas as afinidades
pessoais deles, apesar de declarado respeito mtuo e admirao. Para Nelson, Plnio era o seu
sucessor no teatro brasileiro. Plnio tirava o elogio de letra, quando o lembravam disso:
O Nelson era muito brincalho. Quando eu estourei, a imprensa carioca queria fazer uma
onda Plnio Marcos contra Nelson Rodrigues. Eu no deixei, porque o Nelson uma santa criatura
e isto no brinquedo, no. S pde haver Plnio Marcos porque teve Nelson Rodrigues na frente.
Algumas pessoas dizem que o Oswald de Andrade o pai do teatro moderno, mas no , no. o
Nelson Rodrigues. Oswald de Andrade deve muito mais ao talento do Jos Celso [que encenou O
rei da vela no Teatro Oficina em 1967]. O Nelson Rodrigues saiu na frente e abriu o caminho para
todos ns autores. Ele falava que sou seu sucessor, porque gostava muito de mim. O Nelson era
cismado com os outros autores, achava que no gostavam dele. Ele dizia que a gente tinha que
enfiar na cabea que no tem esse negcio de melhor ou de pior.
CUIDA DE VOC, QUE EU TE AMO MUITO, MAS MEU AMOR NO PODE TE GUARDAR.
Nos dias que Plnio passou no hospital, Tiago Artaxo foi sua companhia constante. Entre a
escola, em que sabia estar com o ano perdido, e cuidar do amigo, Tiago no teve dvidas. S saa
do quarto, aproveitando a visita de algum da famlia, para tomar um banho ou devorar
apressadamente um lanche. Certa manh, Plnio insistiu que ele fosse comprar jornais lia pelo
menos cinco, diariamente, velho hbito. Chamei a enfermeira e pedi para ela ficar no quarto
enquanto eu corria at a banca na rua Dona Veridiana. Por favor, no saia por nada, no descuide.
Insisti, mas no adiantou. Quando voltei e abri a porta do quarto, havia sangue por tudo quanto era
canto e o Plnio no estava na cama. Ele aproveitou que a enfermeira saiu e tentou se arrastar at o
banheiro. Puxou a sonda e a agulha no seu brao jorrava sangue. Eu o encontrei sentado no vaso
sanitrio. Ele se incomodava por depender das pessoas e sempre que via uma chance tentava se
virar sozinho, para provar que era capaz de se cuidar. Foi assim at o ltimo dia.
ERA A MINHA VEZ DE CUIDAR DELE Desde a internao no Hospital Santa Isabel,
ficou claro que Tiago sozinho no daria conta de cuidar de Plnio. Vera Artaxo passava o dia na
redao e s chegava tarde da noite. Tiago, aos dezessete anos, abandonou a escola e passou a
dividir as tarefas com Piero, o Pipo. Ana e Daniela, sobrinha de Plnio, se revezavam no apoio em
casa e nas seguidas idas e vindas ao hospital. Pipo, que cuidava de levar Plnio diariamente de
txi clnica de fisioterapia, em criana o chamava de pai. Ele no seu pai, corrigia, s por
corrigir, a me Cristina Clia Souza, que foi trabalhar no apartamento da rua Picarolo em 1979 e
se tornou parte da famlia Barros, ajudando Wal-derez na casa de onde nunca mais saiu. Ali Pipo
viveu os seis primeiros anos, at se mudar para Aruj o Plnio cuidava de mim, queria me
educar. Trocou de cidade, mas o Natal continuou passando em So Paulo s vezes o Plnio se
fantasiava de Papai Noel, lembrana que o acompanha. Aos dezesseis anos, a sua rotina se
resumia escola de manh e s tardes e noites na companhia de Plnio. Ele cuidou de mim, agora
era a minha vez de cuidar dele, diz Pipo, que, por no gostar de ser Piero meus amigos nunca
falavam certo o meu nome , achou melhor se chamar Lus Felipe. Disso Plnio no soube. Nem
que ele se tornaria chefe de cozinha, ofcio que aprendeu no restaurante Pitanga.
A relao de Plnio e Tiago era de dois meninos, embora Tiago parecesse o mais velho. Deixar
os dois juntos, sem ningum por perto, era briga na certa, porque Tiago mantinha vigilncia
cerrada sobre a medicao e a dieta alimentar a ser seguida. Com Pipo, a relao era menos
agressiva, at porque Plnio conseguia dribl-lo. Juntos, eles caminhavam pela vizinhana, para
um dedo de prosa na tica na rua Aracaju e nas lojas da praa Vilaboim e, na volta, um ch na
padaria. Vez ou outra, eles pegavam um txi at a Secretaria de Estado da Cultura, na praa Jlio
Prestes, onde Plnio se acomodava na sala do santista Antonio Carlos de Moraes Sartini.
Ao assumir o Departamento de Formao Cultural, no incio de 1996, Sartini encontrou vrias
pendncias, uma delas com Plnio, que tinha um dinheiro a receber por servios prestados.
Demorou uns dias at ele ligar para o autor. Fiquei apreensivo, pois apenas conhecia sua obra e a
fama de briguento e boca suja. Claro, no primeiro telefonema ouvi milhes de palavres. Pedi pra
ele vir Secretaria e aguardei com receio, at certo medo, o encontro. Para minha surpresa,
conheci um Plnio afvel, bom de prosa, cheio de histrias. Resolvemos as pendncias com
facilidade e criou-se um vnculo de amizade, carinho e respeito entre ns.
Na sua funo, Sartini tornou possvel o curso de formao, ministrado por Marco Antonio
Rodrigues, que resultou na montagem de O assassinato do ano do caralho grande. Em outra
ocasio Plnio telefonou dizendo que gostaria de fazer um trabalho fora da capital. Sartini acertou
a sua ida a Ilha Comprida, no litoral sul, onde ele passaria trs dias dando cursos e palestras. Ele
se encantou, ficou uma semana e criou uma relao tamanha com o local que, aps a sua morte, o
Centro Cultural da pequena cidade passou a se chamar Plnio Marcos, uma das primeiras
homenagens pstumas que recebeu. s vezes ele me ligava e avisava que iria passar na
Secretaria para me visitar. Foram tardes adorveis, ele ficava horas comigo na sala conversando,
contando histrias, trocando idias, lembra Sartini.
Alm das paradas na Secretaria da Cultura, Plnio gostava de ir ao Edifcio Copan rever
amigos. Saa sem dinheiro no bolso. Ele j no tinha noo de valores. Vera percebeu isso quando
o caixa da padaria da esquina das ruas Aracaju e Maranho a procurou para devolver cinquenta
reais, com os quais ele pagou uma gua e deixou o troco de gorjeta. Para controlar o dinheiro de
Plnio que entrava, abriu-se uma conta conjunta com Tiago. No entanto, era impensvel deixar um
talo de cheques em suas mos, pois logo no comeo ele assinava sob valores absurdos ao pagar
pequenas despesas. Por isso, quando saam, era Pipo quem ficava com o dinheiro. No Copan,
Plnio pedia grana aos amigos dizendo, e no era mentira, que no tinha nenhum no bolso. Quando
a Vera chegava noite, perguntava o que a gente tinha feito durante o dia. Uma vez contei que ele
pegou dinheiro das pessoas no Copan e o Plnio ficou aborrecido comigo, disse que eu estava
controlando a vida dele.
Por agravar-se o estado de sade de Plnio, Pipo se condoa em silncio. No final, descobri
um Plnio chorando, triste, que eu no conhecia. Eu via que ele se sentia mal, porque at para as
necessidades dependia da gente. E se a Vera ficava at de madrugada no trabalho, ele no dormia
enquanto ela no chegasse.
VAI OPERAR PRA QU? MORRE LOGO. Na quarta-feira, 13 de outubro, Plnio teve
outra convulso. Vera ligou para o Incor e ouviu que no poderiam atend-lo, por falta de vaga.
Desesperada, ela recorreu a Maria Luiza Librandi, a Lulu, militante de partido e amiga pessoal de
Mrio Covas. Vai com o Plnio para o Incor e diz aos homens de branco que o governador deu
ordem para intern-lo no quarto privativo dele, no sexto andar. Vera chegou ao hospital e repetiu
a senha, que foi imediatamente acatada. S mais tarde Lulu conseguiu contato com Covas e contou
o que havia feito.
Por favor, o senhor poderia ligar para o Incor e confirmar a ordem?
No vou ligar, no. Ele j est internado, no est? Domingo de manh vou visitar o Plnio.
E foi. Santistas, eles estreitaram a amizade depois que Mrio Covas, cassado pelo AI-5 em
1969, recuperou os seus direitos polticos em 1979. O tema das conversas entre eles, porm, no
era a poltica e sim o futebol e, claro, o Santos Futebol Clube, time para o qual Plnio torcia na
falta do Jabaquara, que vivia caindo pelas tabelas e no disputava nenhum torneio. Tinham outro
vcio comum, depois que ambos pararam de fumar: comer. Governador, Covas dava as suas
escapadas do Palcio dos Bandeirantes para comer pastel em feira livre. Hbito s interrompido
pelos problemas de sade decorrentes do cncer.
Nos primeiros meses de 1999, Mrio Covas pediu a Lulu Li brandi que organizasse o seu
encontro com alguns artistas, comeando por Plnio, na ala residencial do Palcio. Marca para
domingo noite, que quando a solido aqui maior, recomendou. Lulu fez os convites,
enquanto dona Lila, a primeira-dama, providenciou o cardpio para o lanche. Cardpio light,
como convinha a um anfitrio com problemas digestivos. Sem mais nem por qu, Plnio passou a
ligar para Lulu, insistindo em saber o menu, sobre o qual ela nada sabia. Olha o que eu aguento,
desabafou dona Lila. Lulu desconfia que Plnio bisbilhotava a pedido de Covas, descontente
tambm com a dieta a que era submetido. Na noite marcada, resmungando, os dois tiveram de se
contentar com saladas e torta de frango. Covas tinha paixo pelo Plnio, diz Lulu. Na despedida,
Plnio lhe deu um chaveirinho com o distintivo do Jabaquara, igual ao que ele havia negado a
Chico Buarque um ano antes em Paris.
Na visita do governador ao Incor, na manh de domingo, Mrcia, irm de Plnio, estava de
planto no quarto. Covas falou da sua sade, do cncer na bexiga, extirpado no ano anterior. Ele
vinha se submetendo a quimioterapia e temia ter de enfrentar nova cirurgia. Na poca ele era o
nome forte do seu partido para a sucesso de Fernando Henrique na presidncia da Repblica.
E ento, Covas, voc vai sair pra presidente ou no vai?
No vou, no, tenho de cuidar da sade. Talvez eu enfrente outra operao.
Vai operar pra qu, se no quer ser candidato? Morre logo, caralho.
Ele falava srio, embora Covas tivesse achado graa. Se um homem no tem por que lutar, viver
pra qu? Plnio pegou o telefone e ligou para o celular de Lulu Librandi, que caminhava no Parque
Ibirapuera.
Mulher poderosa, tem um cara aqui querendo falar com voc.
E passou o telefone a Mrio Covas que, mais tarde, repetiria rindo o dilogo com Plnio em
roda de amigos. Na semana seguinte, Plnio saiu do Incor, mas voltou dias depois. No mais para o
quarto do governador.
A SOBRINHA QUE VEIO DE ARARAS Daniela Barros Parisi j era moa feita quando se
revezava no planto ao lado do tio Plnio em casa e nas primeiras internaes no Incor. Ele era
carinhoso, ajudava a gente, mas nunca se metia na vida de ningum, ela lembra. No se metia
mesmo, a no ser que fosse para ajudar. Em 1975, Mrcia passava uns dias na casa de parentes do
marido Vic em Araras, no interior do Estado, quando soube que um beb de oito meses tinha sido
abandonado na porta do hospital da cidade. Pesando dois quilos e meio, todos davam como certa a
morte da criana. Aquilo mexeu com Mrcia, que foi ao berrio do hospital e, sem que ningum
lhe indicasse, parou diante do beb. Decidiu, naquele momento, adot-lo. Foi ao juiz da cidade,
que se espantou antes de dar a sua aprovao: Nunca vi algum querer adotar uma criana que
est para morrer. Ao autorizar Mrcia a levar o beb para So Paulo, e temendo que ele morresse
na viagem, o hospital exigiu que ela assinasse um termo de responsabilidade.
Quando chegou em casa com a criana, a famlia no se conformou. Tirando os filhos, ainda
pequenos, todos diziam que ela tinha enlouquecido. Vic Parisi deu um ultimato, ameaando sair de
casa. Ou a criana ou eu. A criana, respondeu Mrcia. O marido saiu, mas no dia seguinte
estava de volta. Com a condio de que ela cuidasse sozinha da menina. E ela cuidou, com
dificuldade, porque precisou abandonar o salo de beleza em que trabalhava como cabeleireira
para peregrinar pelos hospitais pblicos. Sem dinheiro, teve ajuda de um farmacutico, que lhe
forneceu os remdios. Dona Hermnia veio de Santos para convencer a fi lha a devolver o beb.
Se a senhora est incomodada, no precisa se hospedar aqui, pode ir embora. Chorosa, a me
foi para o apartamento de Plnio, ainda no bairro da Aclimao. Contou que tinha sido colocada
pra fora de casa pela prpria filha, fez todo aquele drama de coraes maternos.
No dia seguinte, Plnio bateu porta de Mrcia. Ela no abriu.
Olha aqui, se veio fazer sermo para eu devolver a criana, pode dar meia volta e ir embora.
No, calma. Abre a porta. Eu vim te ajudar.
Mrcia abriu, Plnio entrou e colocou um monte de dinheiro na mo da irm.
Se precisar de mais alguma coisa, me procure.
Despediu-se e saiu. Mrcia ficou parada, entre espantada e feliz com a ajuda de que tanto
precisava. Era muito dinheiro, no sei dizer quanto, mas pagou minhas contas e me deixou
tranquila por um bom tempo. Nem sei se ele tinha dinheiro ou se pegou emprestado com algum,
mas foi a nica pessoa que no questionou a minha deciso. A criana sobreviveu, logo foi
adotada por toda a famlia, e 24 anos depois fazia companhia ao tio Plnio nos seus ltimos dias.
No hospital, os dois sozinhos, ele pegou a mo de Daniela, a quem chamava de Dani, e profetizou:
Voc vai ter seis daninhos.
Seis demais, tio.
Est bem, trs ento.
Daniela teve um filho, que nasceu bem depois da morte do tio Plnio e agora faz companhia
av Mrcia.
No incio de dezembro, as cinzas de Plnio Marcos foram levadas para Santos. Uma pequena
multido de annimos e de atores com nariz de palhao seguiu o carro de bombeiros, desde a
entrada da cidade. Vera com a urna nas mos.
o palhao?
.
Na praia, gente do teatro e do samba batucou e aplaudiu quando um punhado das cinzas de
Plnio Marcos foi atirado ao mar. De novo, estava anoitecendo.
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Outras fontes
O autor usou como referncia preciosa o stio oficial na internet, www.pliniomarcos.com.br, organizado por Walderez de Barros, com
rico acervo de crticas publicadas na imprensa e textos diversos sobre a obra de Plnio Marcos. Entre outros stios consultados, o da
cidade de Santos, www.vivasantos.com.br, dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, e
http://veja.abril.com.br/acervodigital, o arquivo digital da revista Veja.
Colees consultadas
Anurio do teatro, editado pela APCA Associao Paulista de Crticos de Arte, So Paulo.
Cadernos de Teatro, editados pelo Teatro O Tablado, Rio de Janeiro.
Palco+Platia, revista do teatro brasileiro, So Paulo.
Revista de Teatro, editada pela SBAT Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, Rio de Janeiro.
Folhetim, suplemento semanal do jornal Folha de S. Paulo.
Agradecimento
Walderez de Barros Lo Lama
Ricardo (Kiko)
Aninha
Vera Artaxo
Tiago
A Carlos Kauffman e Edmir Lima, do Banco de Dados da Folha, pela ateno e pacincia em abrir os arquivos dos jornais Folha de
S. Paulo e ltima Hora, e a Carlos Pinto e Wellington Lima, por disponibilizarem acesso ao arquivo da Hemeroteca da Secretaria de
Cultura de Santos.
[1]GUINSBURG, J.; FARIA, Joo Roberto; LIMA, Maringela Alves de (Orgs.). Dicionrio do teatro brasileiro.* temas, formas
e conceitos J. Guinsburg, Joo Roberto Faria, Maringela Alves de Lims (orgs.), So Paulo: Perspectiva/Sesc, 2006.
[2]MARCOS, Plnio. Melhor teatro. Seleo e prefcio de Ilka Marinho Zanotto. So Paulo: Global, 2003.
ndice
Ficha Tcnica
Para Walderez, Lo, Kiko, Aninha, Vera e Tiago
PREFCIO
Latncia e tica
PRLOGO
Ele fez por merecer
PRIMEIRO ATO
Da Vila Sapo noite suja
LINHA DO TEMPO
CENA I
CENA II
CENA III
CENA IV
CENA V
SEGUNDO ATO
Da navalha luz de um abajur lils
LINHA DO TEMPO
CENA VI
CENA VII
CENA VIII
CENA IX
CENA X
CENA XI
CENA XII
CENA XIII
CENA XIV
CENA XV
TERCEIRO ATO
Das cartas de tar dana final
LINHA DO TEMPO
CENA XVI
CENA XVII
CENA XVIII
CENA XIX
CENA XX
BIBLIOGRAFIA