Eleicoes em Sao Paulo Do Seculo XIX Uma
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Eleicoes em Sao Paulo Do Seculo XIX Uma
Possui bacharelado, licenciatura e mestrado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo (USP). É doutorando em História Social pela mesma universidade. E-mail: [email protected].
REVISTA ÁGORA, v. 31, n. 1, e-2020310109, 2020, ISSN: 1980-0096
ELEIÇÕES EM SÃO PAULO DO SÉCULO XIX: UMA PLETORA DE LEIS, VOTANTES E VOTOS EM DISPUTA
reforçam o longevo estereótipo dos homens livres pobres que, não tendo lugar definido
naquela sociedade e ineficientes em sua atuação política (PRADO JÚNIOR, 2012, p. 65),
incapazes de “apreender a organização e a dinâmica da política em nível institucional”
(FRANCO, 1997, p. 94), viviam sob a “imensa cadeia do ‘cabresto’ e do comando”
(FAORO, p. 430) e jamais acorriam aos pleitos em defesa de aspirações ou interesses
próprios. Nesse sentido, Richard Graham, embora trate do problema e aponte números
que atestam uma expressiva participação popular no processo eleitoral do Oitocentos
brasileiro, reduz o alcance de sua análise ao fenômeno do clientelismo, que, por sua vez,
era ao que se reduzia a própria função do Estado em sua interpretação. Nessa lógica, as
eleições não existiam para que o povo pudesse de fato escolher seus representantes, visto
que estes eram criaturas do governo central e assim deveriam ser; elas serviam para firmar
e reafirmar posições, para legitimar a estrutura social existente, uma ordem hierárquica
visivelmente estratificada. Eleições eram demonstrações de força e prestígio para os
potentados locais e para os líderes nacionais que desejavam formar seguidores; não
existiam para serem competitivas e livres, mesmo que, para manter a legitimidade do
regime, mecanismos legislativos fossem criados para dar “ao menos a impressão de que
as eleições eram justas” (GRAHAM, 1997, p. 107).
Novos estudos têm surgido nos últimos anos para contestar a ideia de que os
pleitos oitocentistas se reduziam a jogos de cena previsíveis, cujos atores principais (os
votantes e eleitores) apenas representavam interesses alheios e cujos resultados estavam
definidos de antemão. Nesse campo onde há muito a ser desbravado, uma clareira
interpretativa foi aberta por Miriam Dolhnikoff (2008), baseando-se nos trabalhos de
cientistas políticos como Bernard Manin (1997), ao sustentar a hipótese de que se faz
necessário considerar as características próprias do regime representativo brasileiro no
século XIX, isto é, levando-se em conta os elementos que definiam um governo de caráter
representativo no entendimento dos homens que o estavam construindo.
Mas se a elite política imperial estava de fato empenhada, como aponta a autora,
em eliminar fraudes e normatizar as eleições, tendo em vista a profusão de leis debatidas
e promulgadas com aqueles expressos fins, é preciso também perguntar de que forma e
até que ponto essas leis estavam sendo postas em prática, sob pena de não passarem de
“formalidades legais” nulificadas pelo peso de práticas eleitorais fraudulentas. Havia
interesse por parte das autoridades locais, que organizavam e dominavam os postos-chave
nas juntas e mesas eleitorais, em colocar essas normas em funcionamento? As práticas
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eleitorais sofreram alterações após a vinda desses regulamentos? Que influência exerciam
sobre os resultados dos pleitos?
Não são indagações fáceis de serem respondidas; e não é propósito deste artigo
fornecer as respostas. São questões, entretanto, que se tornam imperativas diante das
evidências encontradas na documentação; e para as quais é mister apresentar aqui alguns
encaminhamentos possíveis, partindo de algumas pesquisas já realizadas e outras em
andamento. Não é suficiente, para um estudo de como efetivamente se desenrolava o
processo eleitoral no Brasil do Oitocentos, considerar apenas as determinações legais
aprovadas pelos legisladores e sancionadas pelo imperador para regular as eleições. Se
estas eram amiúde distorcidas por variadas espécies de fraudes, as leis deveriam ser
sistematicamente burladas ou até desprezadas pelos agentes locais responsáveis por sua
execução. Assim sendo, faz-se relevante vasculhar a correspondência desses agentes que
estavam mais diretamente envolvidos em eleições, como os juízes de paz, os demais
componentes das juntas de qualificação e mesas eleitorais, as autoridades policiais e
judiciárias; e, mais distantes dos pleitos, mas nem por isso menos importantes, os
presidentes de província. Se estes não eram incumbidos de funções diretas no aparato
legal que operacionalizava os pleitos em cada circunscrição eleitoral, pois que eram
delegados imediatos do ministério governante em cada província do Império, sua
atividade principal, como expressavam consensualmente os analistas políticos da época,
de distintas tonalidades partidárias, era “montar, dirigir, aperfeiçoar a máquina eleitoral,
eis a sua missão verdadeira, o seu cuidado diurno e noturno” (BASTOS, 1975, p. 93).
Na província de São Paulo, o estudo da atuação dos presidentes provinciais que
ocuparam o cargo durante as épocas de eleições, e que o fizeram durante a vigência de
regulamentos distintos em termos de concepção e organização do processo eleitoral (as
instruções de 4 de maio de 1842 e a lei de 19 de agosto de 1846), permitiu descortinar
parte da complexa teia de relações que ligavam os delegados dos ministérios aos seus
subordinados em cada localidade, às autoridades eletivas e aos chefes políticos locais.
Assim, relevou-se insatisfatória e simplista a explicação de que a vitória dos presidentes
nos pleitos se dava, habitual e necessariamente, pela via do arbítrio e da imposição. Além
da complexidade de suas funções, atribuições e dos papéis que desempenhava, muitas
eram as formas pelas quais um presidente poderia tomar parte nas eleições – e não eram
as mais usuais aquelas que incluíam o uso da força ou da violência. Apesar de serem
medidas reprovadas pelas oposições políticas (ou pelo partido fora do poder), a larga
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difusão de sua influência e a distribuição dos empregos da província entre nomes de sua
confiança eram expedientes, estes sim, largamente utilizados pelos presidentes para
preencher suas vistas eleitorais; recursos que podiam ser justificados como lícitos e
legítimos, nas concepções dos atores da época. Por fim, é mister apontar que a vitória do
governo não tem significado único ou unívoco; que os presidentes nem sempre faziam
vencer todos os candidatos que desejavam e que, ainda assim, muitos dos políticos
governistas que triunfaram nas eleições, antes de serem “imposições ministeriais”, eram
nomes definidos pelo partido provincial que outorgava seu apoio ao partido dominante
no centro do Império. O apoio do presidente era importante para o triunfo daqueles nomes
nas urnas, mas, apenas por si e por sua vontade, não decidia ou fazia deputados
(MUNARI, 2019).
Compreendê-lo apenas como “máquina eleitoral” implica perder de vista a
complexidade dos papéis desempenhados pelo presidente, máxima autoridade provincial
que era amplamente solicitada pelas demais autoridades e pelos cidadãos comuns para
solucionar dúvidas, aprovar ou rejeitar resoluções e tomar providências contra inúmeras
fraudes ou irregularidades que chegavam ao seu conhecimento por meio de ofícios,
representações e abaixo-assinados. Todas essas questões legais não eram secundárias nem
constituíam meras formalidades sob as quais se escondiam as “verdadeiras” intenções do
delegado governamental. A correspondência presidencial com o ministério do Império e
com autoridades de diversas localidades de São Paulo é pululada de ofícios versando
sobre matéria eleitoral. Na década de 1840, e particularmente a partir de 1846, com a
promulgação de uma lei mais complexa e sofisticada em termos de regulação dos pleitos
– e que seria, em grandes traços, a lei básica do Império até 1881 –, uma prática que se
vinha firmando desde as primeiras eleições para o parlamento adquiriu caráter
institucional, uma vez que se estabeleceu uma ordenação para o seu funcionamento.
Eram tantas as dúvidas relativas à execução da lei regulamentar de 19 de agosto
de 1846 que, em ofício de novembro de 1848, o ministério ordenava que a presidência
fizesse acompanhar as representações enviadas ao governo imperial, no que concerne às
questões relacionadas a eleições tanto gerais quanto municipais, “de todos os
esclarecimentos e documentos que lhes disserem respeito, quer tenha ou não V. Exa.
resolvido sobre elas”( Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), Ofício do
ministro do Império ao presidente da província de São Paulo, 10/11/1848 – CO5246). Em
janeiro de 1849, o governo do Império reiterava uma censura contra uma prática que se
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1
APESP, Ofício do ministro do Império ao presidente da província de São Paulo, 26/01/1849 – CO5246.
2
Decreto N. 632, de 27 de Agosto de 1849. “Regula o modo por que devem ser dirigidos das Províncias às Secretarias d’Estado tanto
os requerimentos de partes, como a correspondência Oficial de quaisquer Autoridades ou Repartições, e facilita a comunicação das
decisões, bem como a expedição dos despachos, e a remessa dos Diplomas, que, em virtude deles deverem expedir-se”. Disponível
em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/doimperio/colecao4.html>. Acesso em: fevereiro, 2020.
3
APESP, Ofício do ministro do Império ao presidente da província de São Paulo, 28/04/1860 – CO7709; ofício do ministro do Império
ao presidente da província de São Paulo, 15/04/1882 – CO5251.
4
- De que constitui exemplo uma resolução do governo imperial, sobre consulta do Conselho de Estado, para dúvida apresentada pelo
presidente da província do Rio de Janeiro acerca de uma disposição da lei de 19 de setembro de 1855, tendo em vista “evitar que seja
iludido o fim” daquela lei na parte em que proibiu que certos empregados públicos fossem eleitos pelos colégios eleitorais dos distritos
em que exercessem autoridade ou jurisdição. O parecer aponta que a providência competia ao Poder Legislativo, “mas que no entanto
o Governo Imperial não fica inibido de lançar mão daquelas medidas, que no caso couberem, para fazer respeitar o espírito da Lei,
sendo uma delas, tratando-se de empregados amovíveis, a de dar-lhes demissão em tempo oportuno”. Ofício do ministro do Império,
remetendo parecer de sua respectiva Seção do Conselho de Estado, ao presidente da província de São Paulo, 29/12/1859 – CO7708.
APESP.
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O papel do Executivo não era somente executar as leis, dado que inúmeras
circunstâncias o obrigavam a resolver problemas práticos e examinar situações não
previstas nos textos legais, para as quais não havia uma única solução possível. A partir
da prática eleitoral que se desenrolava em sua província, a ação presidencial acabava por
criar uma efetiva jurisprudência sobre a matéria, “como conjunto de decisões, amiúde
reiteradas, visando à resolução de problemas nas eleições” (MUNARI, 2019, p. 286). Mas
essa jurisprudência só podia ganhar uniformidade em toda a superfície do Império sob o
beneplácito do governo imperial, que passou a produzir, com intensidade crescente a
partir de 1846, um grande número de decisões e decretos tratando de assuntos eleitorais.
Já na década de 1870, eram tantas e tão variadas as disposições legais sobre o tema que
já se fazia premente a conveniência de, tanto quanto possível, “uniformizar-se a
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interpretação”, o que não implicava sua rejeição pura e simples. Se a aplicação das
formalidades legais era perseguida com rigor pelo governo do Império, ela também
passou a ser encarada como importante (e útil) pelos partidos locais, que podiam alegar
uma dúvida ou o descumprimento de uma norma para, por exemplo, interromper
temporariamente os trabalhos da eleição. Disso dá exemplo um ofício reservado do
ministério do Império ao presidente de São Paulo em junho de 1849:
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controle, por parte das forças políticas em disputa, sobre a “burocracia eleitoral” ou a
“máquina administrativo-eleitoral”, do alistamento ao domínio das mesas e à contagem
dos votos nas juntas apuradoras. Para o autor, essa interpretação torna possível um
entendimento sobre a prática da fraude que vai além do tema da perversão da “verdade
eleitoral”, da violência e da violação da lei. A corrupção eleitoral é entendida como
expressão de um jogo político que se dava em torno do controle daquelas diferentes etapas
estabelecidas pela legislação, isto é, trata-se do próprio “mecanismo eleitoral” (RICCI;
ZULINI, 2016, p. 212-213). Em suma, compreende-se fraude “as a dispute between
parties for monopoly over the electoral bureaucracy for the purpose of influencing the
election result” (RICCI, 2019).5
Esse conceito não só se afigura válido para examinar o problema da fraude no
Brasil Império, como também encontra respaldo na farta documentação existente para a
província de São Paulo a respeito das acirradas disputas que marcavam, cotidianamente,
os períodos pré-eleitorais. Essas disputas circundavam o propalado desejo de controle
sobre o aparato administrativo-eleitoral, que estava fortemente vinculado, por sua vez, às
eleições municipais, amiúde disputadíssimas pelas notabilidades locais. Isso se devia,
sobretudo, à centralidade conferida à figura do juiz de paz pela legislação eleitoral do
Império, principalmente pela lei de 19 de agosto de 1846, que outorgou a presidência das
juntas de qualificação e das mesas eleitorais de paróquia ao “Juiz de Paz mais votado do
distrito da Matriz, esteja ou não em exercício, esteja embora suspenso por ato do
Governo ou por pronúncia em crime de responsabilidade”.6 Exemplo significativo da
discussão aqui encetada é um ofício reservado que enviou ao governo provincial, em
1852, o delegado de polícia Joaquim Pinto Porto, da vila de Bragança, no qual apresentava
o cenário da localidade nas proximidades dos pleitos para vereadores e juízes de paz:
5
“In concrete terms, the control of the public agents who administered the elections in accordance with
the electoral law – and who also included occupants of administrative posts like clerks and notaries, as
well as the figure of the police officer, post officers, judges – was the guarantee of success in elections”
(RICCI, 2019).
6
Art. 2º da Lei No 387, de 19 de Agosto de 1846 (SOUZA, 1979, p. 208).
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presumir que os seus agentes desta Vila recorram aos maiores excessos
para obterem o vencimento dessa eleição, ou perturbarem os trabalhos da
Mesa, quando percam a esperança de vencê-la, e é tal o empenho que desde
já vão mostrando nessa desordenada luta, que, faltando ainda um mês para
essa eleição, já percorrem todos os Bairros deste Distrito, vociferando
contra o atual Governo, e todas as leis por ele promulgadas, concitando os
Guardas Nacionais votantes à desobediência e insubordinação, e
propalando por toda a parte, que assim como o Governo emprega a força
para vencer as eleições, o mesmo deverá fazer a oposição para obter esse
vencimento; e para dar-se mais peso a essa ameaça, boatos aterradores se
têm espalhado pelos habitantes desta Vila, e Freguesia do Socorro,
assegurando-se que a oposição já tem expedido alguns agentes para as
partes de Minas com o intuito de reunir força armada para o dia da eleição;
bem vejo que isto pode não ser exato, mas assim como nestas ocasiões
muito se inventa, ou se exagera, também não se deve rejeitar nenhuma
dessas hipóteses; e pareceu-me que devia levar tudo ao conhecimento de
V. Exa. para providenciar como for conveniente (APESP, Ofício do
delegado de polícia da vila de Bragança, Joaquim Pinto Porto, ao vice-
presidente da província de São Paulo, 05/08/1852 – CO5212).
7
Gabinete (11 de maio) cuja presidência fora confiada a Joaquim José Rodrigues Torres, o Visconde de
Itaboraí (JAVARI, 1962, p. 111), ninguém menos que um dos membros da “trindade saquarema”
(MATTOS, 2004, p. 120).
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recorrer, visto que, em caso de recear perder a eleição, competia-lhe fazer o possível para
“perturbar os trabalhos da mesa”, o que levaria a uma possível e vantajosa interrupção do
seu funcionamento. Por fim, se a oposição ameaçava praticar os “maiores excessos” para
obter o vencimento do pleito, não se deve considerar a ameaça como evidência de práticas
fraudulentas comuns à época, pois que se faz mais lógico compreendê-la como o que ela
fundamentalmente era: ameaça enquanto instrumento de pressão e demonstração de força
por parte de determinada parcialidade política. O “intuito de reunir força armada para o
dia da eleição” é um exemplo bastante comum na documentação, já que era uma ameaça
frequente dos agentes da oposição, não raro largamente divulgada pela imprensa, no
tempo em que se aproximavam as eleições. Constituindo mais uma expressão da disputa
político-partidária no campo do lugarejo, podia ser um expediente de real e possível
concretização, mas improvável, dado que nessas ocasiões, como afirmou o delegado de
polícia, propositadamente “muito se inventa, ou se exagera”.
Mas há ainda outro aspecto que chama atenção no ofício do delegado e que merece
uma análise mais detida. O empenho do partido de oposição para vencer o pleito não se
resumia a uma tentativa de tomar parte nos trabalhos da mesa, como também não podia
lograr êxito à base de ameaças. Ainda que, em teoria, a certeza daquele domínio do
aparelho burocrático pudesse lhe assegurar o controle sobre os resultados dos pleitos
primários, seria por demais arriscado prescindir dos votantes, isto é, da obtenção do maior
número possível de votos para a sua parcialidade. É precisamente este o sentido e a
finalidade de “percorrer todos os bairros do distrito”; e, inclusive, “concitar os guardas
nacionais votantes à desobediência e insubordinação”, o que poderia significar,
simplesmente, subtraí-los às influências consideradas legítimas de seus superiores, com
os quais deveriam votar em respeito à ordem hierárquica a que pertenciam.
De modo geral, a historiografia concedeu pouca importância à missão de que se
encarregavam os partidos locais e seus agentes para “conquistar” os votantes, haja vista
a ênfase conferida à ideia de que estes eram meramente arregimentados pelos fazendeiros
e potentados, aos quais eram criaturas dóceis e submissas, como verdadeiras “massas de
manobra”. Nessa perspectiva, não havia interesse nem sentido em convencer os cidadãos
com direito a voto, cujas lealdades já estariam pré-fixadas, a votar com tal ou qual
parcialidade. Alguns historiadores têm contestado essa interpretação ao estudarem certas
formas e estratégias de mobilização e convencimento dos votantes em distintos contextos.
Suzana Cavani Rosas, estudando os encontros de rua (similares aos comícios eleitorais)
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ocorridos no bairro popular de São José, no Recife, aponta que “os populares não se
distanciavam dos meetings, pois boa parte deles, na condição de votantes, era cortejada
pelas elites em diversas ocasiões da disputa político-partidária, particularmente nas
grandes cidades, onde o voto de cabresto tinha certos limites” (ROSAS, 2010, p. 165). A
autora mostra que muita gente modesta participava desses meetings, como canoeiros,
pedreiros, jornaleiros, alfaiates, carpinas, sapateiros, pescadores; pessoas todas que
integravam o corpo dos votantes qualificados localmente. Numa convocatória para uma
dessas reuniões eleitorais, do ano de 1866, o jornal O Tribuno explicitava que, além de
tratarem da luta pela nacionalização do comércio a retalho, os oradores também
procurariam
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verdadeiras hostes preparadas para um combate, dado que cada um deles pertencia a uma
das duas forças em disputa. Em imagens que se repetiam por todo o território e durante
quase todo o século, com pequenas variações, esses grupos também intervinham na
eleição “exibindo sua presença física grupal e seu potencial de violência” em lutas que
tinham muito de ritual (SABATO, 2011, p. 34-36). Como argumenta Marcela Ternavasio,
se o “oficialismo eleitoral” tecia as suas próprias redes clientelísticas, é também certo que
os grupos de oposição procuravam fazer o mesmo; e, em ambos os casos, o que se
depreende é que a participação do “povo” – em sua diversidade de sujeitos – nas eleições
se dava por intermédio dessas redes que expressavam uma forma de voto grupal:
8
- Segundo instruções baixadas pelo governo imperial em setembro de 1856, para coarctar o abuso de serem lançadas nas urnas
eleitorais cédulas em número superior ao dos votantes que comparecessem, ficou determinado que estes, à medida que fossem
chamados, iriam “introduzindo na urna as suas cédulas, as quais deverão ser fechadas de todos os lados”. Instruções de 27 de
setembro de 1856 enviadas por aviso do ministério do Império ao presidente da província de São Paulo – CO7708. APESP.
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cédulas (ou listas) com os seus votos, entretanto, não eram impressas ou distribuídas pelas
autoridades públicas. Não era proibido que os votantes recebessem listas de alguns
indivíduos, isto é, dos chefes e agentes partidários, inclusive no próprio dia e local da
eleição. Foi o que manifestamente declarou o presidente da província de São Paulo a
Francisco Antônio Cortez, juiz de paz e presidente da mesa paroquial de Vila Bela,
quando este perguntou qual era o meio de obstar que certas pessoas dessem listas aos
votantes, ou as substituíssem por outras, “mesmo no recinto do Colégio Eleitoral”:
Conquanto este fato pareça imodesto, contudo não é ilícito senão quando
for revestido das circunstâncias especificadas no Art. 101 do Código
Penal9, pois que só neste caso pode ser vedado; e portanto deve o mesmo
Sr. Juiz de Paz limitar-se ao desempenho das atribuições, que lhe confere
o § 1º Art. 47 da Lei No 387 de 19 de Agosto de 1846, tendo muito em vista
que a Lei só quer que não haja dolo, isto é, que o votante não seja levado a
aceitar uma lista com a mira em alguma recompensa, ou forçado a recebê-
la com temor de algum mal, repelindo finalmente a dita Lei a compra, e
venda de votos (APESP, Ofício do presidente da província de São Paulo
ao juiz de paz Francisco Antônio Cortez, 16/09/1847 – E00271).
Se a lei proibia a coação e a compra e venda de votos, não impedia que cédulas
fossem livremente oferecidas aos votantes, por quaisquer indivíduos, até no interior da
igreja matriz onde as votações eram realizadas. É certo que essa prática tornava menos
efetivo o sigilo do voto e facilitava a organização e o controle dos votantes por parte dos
agentes partidários, que faziam e distribuíam as listas com os nomes dos seus candidatos
para eleitores. Desse modo, não era ilícito que os partidos trabalhassem por suas listas até
no recinto eleitoral, desde que sua ação não caracterizasse dolo; assim como não era
vedado que os votantes se apresentassem para votar, livre e espontaneamente, como
membros de um grupo – ao qual se encontravam ligados por vínculos de naturezas
diversas –, cuja existência se definia no espectro político pelo pertencimento a um dos
partidos estabelecidos localmente. Não havia interdição legal sobre o exercício do “voto
grupal”, pois este, como prática corrente e socialmente aceita, podia existir
9
- Configurava-se crime “contra o livre gozo e exercício dos Direitos Políticos dos Cidadãos”, segundo tal artigo, “solicitar, usando
de promessas de recompensa, ou de ameaças de algum mal, para que as Eleições para Senadores, Deputados, Eleitores, Membros
dos Conselhos Gerais, ou das Câmaras Municipais, Juízes de Paz, e quaisquer outros empregados eletivos, recaiam, ou deixem de
recair em determinadas pessoas, ou para esse fim comprar ou vender votos”. Lei de 16 de Dezembro de 1830 – Código Criminal do
Império do Brasil. Coleção das Leis do Império do Brasil. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/legislacao/doimperio.
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eleitorais não se devia à brutalidade e ignorância dos cidadãos votantes, mas ao próprio
nível de competição e virulência das disputas políticas que eles esposavam.
Neste ponto é relevante dizer que, se muitos votantes estavam obrigados à
obediência de seus superiores hierárquicos em decorrência de vínculos que não tinham
diretamente a ver com as disputas eleitorais, como os guardas nacionais deviam obedecer
a seus comandantes, ou como os inspetores de quarteirão deviam responder aos
subdelegados e delegados dentro dos territórios em que estes exercessem sua jurisdição;
outros votantes, como esses “convidados”, entravam na liça em virtude de negociações
ou acordos estabelecidos por ocasião do próprio combate eleitoral. Nesse campo, onde se
definiam os laços verticais entre as lideranças políticas e sua clientela, havia
possibilidades de trocas e intercâmbios complexos entre os diferentes agentes que
integravam as forças eleitorais em cada localidade. Havia, é certo, no interior dessas
organizações, uma hierarquia que respeitava ou reproduzia a ordem social, sobretudo se
se observa que os vínculos entre os fazendeiros abastados e seus clientes estendiam-se à
arena das eleições, os primeiros como “comandantes” e os segundos como
“comandados”. Contudo, ainda nesse último caso, é preciso considerar que as relações
entre potentados e homens livres pobres, mesmo que marcadas por diferentes níveis de
desigualdade, não se reduziam à imposição de uns poucos sobre uma massa submissa de
votantes; também aqui se pode notar certo grau de interdependência (FRANCO, 1997, p.
90-91), com ganhos para ambas as partes, cujos espaços no interior das redes
clientelísticas não eram estanques e imutáveis, desde que sujeitos a definições e rearranjos
na esfera do jogo político.
Em suma, é preciso ter em mente que, para muitos dos votantes pobres que na
província “viviam em trânsito” (DIAS, 1998, p. 62-63)10, não significava mero ato de
sujeição integrar as bases do processo eleitoral e votar na conformidade do que os seus
líderes lhes sugerissem. Participar das lides políticas, ao lado de determinada parcialidade
que disputasse os pleitos, conferia a esses homens um protagonismo de que amiúde não
gozavam no cotidiano, repleto de incertezas quanto à sua própria sobrevivência em face
da violência estatal, representada sob a ameaça constante do recrutamento militar, das
perseguições policiais e da instabilidade de suas condições de vida e seus meios de
10
Refere-se aqui, conforme Maria Odila Dias, “à massa da população que vivia à margem da economia de exportação ou nas fímbrias
da monocultura comercial, onde sobrevivia e resistia de uma forma certamente mais fluida e mais provisória do que a sugerida pelo
conceito do favor e da clientela pessoal”.
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Por fim, se na província de São Paulo as eleições eram bastante disputadas desde
a sua base, pode-se dizer que os cidadãos votantes eram não só disputados, como também
eram agentes ativos dessas disputas, que se davam no cenário tumultuado das ruas, das
assembleias paroquiais e, igualmente, nas arenas institucionais da época; que podiam
explodir em conflitos virulentos, à margem da legalidade, como podiam se expressar no
interior do ordenamento jurídico estabelecido por força das diferentes leis eleitorais
vigentes no período. Tendo em mira a complexidade da construção de um regime
representativo no Brasil oitocentista, a perspectiva aqui focalizada busca,
fundamentalmente, considerá-la como um processo (jamais acabado) que envolvia uma
miríade de atores, cujos anseios e atributos não podem ser negligenciados pelos estudos
que abordam o Império em suas distintas configurações provinciais e locais.
r ef er ên c ias
Fontes
SOUZA, Francisco Belisário Soares de. O sistema eleitoral no Império. Com apêndice
contendo a legislação eleitoral no período 1821-1889. Brasília: Senado Federal, 1979.
Obras Gerais
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2009.
DIAS, Maria Odila L. da Silva. Sociabilidades sem História: Votantes Pobres no Império,
1824-1881. In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). Historiografia brasileira em
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ELEIÇÕES EM SÃO PAULO DO SÉCULO XIX: UMA PLETORA DE LEIS, VOTANTES E VOTOS EM DISPUTA
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