Eleicoes em Sao Paulo Do Seculo XIX Uma

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1, e-2020310109, 2020, ISSN: 1980-0096

el eiç õ es em são paul o do


r o d r ig o m ar z an o m u n ar i 
séc ul o x ix : uma pl et o r a de u n iver sid ad e d e são pau l o
l eis, vo t an t es e vo t o s em são pau l o são pau l o br asil
disput a

Este artigo procurará abordar, no contexto da província de São Paulo


da segunda metade do Oitocentos, alguns aspectos do problema das
eleições no Brasil Império, distanciando-se da perspectiva do
“falseamento institucional”. De um lado, as leis eleitorais e sucessivos
regulamentos do governo imperial eram mobilizados e disputados
pelos agentes partidários das localidades, que buscavam controlar os
postos-chave nas juntas e mesas que organizavam e realizavam os
r esumo pleitos. De outro, os votantes e seus votos, cujos significados eram
muito distintos dos atuais, eram ativamente disputados por aqueles
mesmos agentes, ao mesmo tempo que podiam ser participantes ativos
dessas disputas, desde que canalizassem seus anseios e buscassem
negociar sua participação no interior das redes que constituíam as
forças eleitorais em cada localidade.
Palavras-chave: Eleições; Votantes; Província de São Paulo.

This article will attempt to approach, in the context of the province of


São Paulo in the second half of the nineteenth century, some aspects of
the problem of elections in Brazil Empire, moving away from the
perspective of “institutional falsification”. On the one hand, the
electoral laws and successive regulations of the imperial government
were mobilized and disputed by local parties agents, who sought to
control key posts at the electoral tables that organized and held the
abst r ac t elections. On the other hand, voters and their votes, whose meanings
were very different from current ones, were actively disputed by those
same agents, at the same time that they could be active participants in
these disputes, provided that they channeled their wishes and sought to
negotiate their participation within the networks that constituted the
electoral forces in each locality.
Keywords: Elections; Voters; Province of São Paulo.


Possui bacharelado, licenciatura e mestrado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo (USP). É doutorando em História Social pela mesma universidade. E-mail: [email protected].
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Na maior parte da historiografia que abordou o Brasil do século XIX, apesar de


suas distintas abordagens, o caráter defeituoso e elitista do sistema eleitoral é visto como
grande obstáculo ao funcionamento pleno das instituições representativas que a
Constituição de 1824, impulsionada pelos ventos liberais que varriam o Velho e o Novo
Mundo ao principiar o século, logrou estabelecer. Dentre os diversos óbices, destacam-se
aqueles que povoaram, de modo predominante, a maioria dos trabalhos que se
debruçaram sobre a dinâmica política do Império. Três grandes fatores, intimamente
ligados entre si, preponderam na explicação do falseamento do regime representativo em
nossa terra: as restrições ao exercício do voto, direito que se veria numa trajetória de
continuado declínio ao longo do século, culminando na drástica redução do eleitorado
pela lei eleitoral de 1881, ou “Lei Saraiva”; a fraude e a violência que maculavam as
eleições, como uma espécie de “máquina de compressão” (FAORO, 2001, p. 421),
tornando-as expressões distorcidas da “opinião popular”, que não podia se exercitar a
contento; e a intervenção do Poder Moderador, ora vista como providencial, por ser o
único meio de substituição dos grupos dirigentes no poder (CARVALHO, 2010) – na
ausência de eleições legítimas –, ora encarada como “imperialismo” ou arbítrio de um
“poder pessoal” (HOLANDA, 2005), que fazendo ministérios também fazia, por
intermédio de variados expedientes ilícitos, representantes afinados com os homens
escolhidos pelo monarca.
Por trás desse estado de coisas, havia um esforço muitas vezes reiterado, mas
malogrado: diversas leis eleitorais foram promulgadas no decorrer do Império, sem
removerem os obstáculos referidos. Como resultado, o governo vencia eleições sempre
ou quase sempre: cada um dos elementos mencionados contribuía, a seu modo, para
chancelar a vitória dos candidatos governistas e reduzir as possíveis chances de seus
adversários.
O quadro resultante é de que o sistema representativo oitocentista se reduzia a
uma “farsa” bem ou mal orquestrada pelos potentados da época. Nessa perspectiva, perde-
se de vista a prática do voto enquanto dimensão relevante da vida de milhares de cidadãos
votantes que se espraiavam pelo país, em cada província, em suas respectivas freguesias;
homens, em sua maioria, de condições sociais modestas, que participavam de eleições
frequentes. Já alguns estudos apontaram que a quantidade de homens livres que tinham
direito a voto, ao longo do século XIX – e até a lei de 1881 –, era bastante significativa
para os padrões da época (CARVALHO, 2009, p. 31). Mas, em geral, esses autores

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reforçam o longevo estereótipo dos homens livres pobres que, não tendo lugar definido
naquela sociedade e ineficientes em sua atuação política (PRADO JÚNIOR, 2012, p. 65),
incapazes de “apreender a organização e a dinâmica da política em nível institucional”
(FRANCO, 1997, p. 94), viviam sob a “imensa cadeia do ‘cabresto’ e do comando”
(FAORO, p. 430) e jamais acorriam aos pleitos em defesa de aspirações ou interesses
próprios. Nesse sentido, Richard Graham, embora trate do problema e aponte números
que atestam uma expressiva participação popular no processo eleitoral do Oitocentos
brasileiro, reduz o alcance de sua análise ao fenômeno do clientelismo, que, por sua vez,
era ao que se reduzia a própria função do Estado em sua interpretação. Nessa lógica, as
eleições não existiam para que o povo pudesse de fato escolher seus representantes, visto
que estes eram criaturas do governo central e assim deveriam ser; elas serviam para firmar
e reafirmar posições, para legitimar a estrutura social existente, uma ordem hierárquica
visivelmente estratificada. Eleições eram demonstrações de força e prestígio para os
potentados locais e para os líderes nacionais que desejavam formar seguidores; não
existiam para serem competitivas e livres, mesmo que, para manter a legitimidade do
regime, mecanismos legislativos fossem criados para dar “ao menos a impressão de que
as eleições eram justas” (GRAHAM, 1997, p. 107).
Novos estudos têm surgido nos últimos anos para contestar a ideia de que os
pleitos oitocentistas se reduziam a jogos de cena previsíveis, cujos atores principais (os
votantes e eleitores) apenas representavam interesses alheios e cujos resultados estavam
definidos de antemão. Nesse campo onde há muito a ser desbravado, uma clareira
interpretativa foi aberta por Miriam Dolhnikoff (2008), baseando-se nos trabalhos de
cientistas políticos como Bernard Manin (1997), ao sustentar a hipótese de que se faz
necessário considerar as características próprias do regime representativo brasileiro no
século XIX, isto é, levando-se em conta os elementos que definiam um governo de caráter
representativo no entendimento dos homens que o estavam construindo.
Mas se a elite política imperial estava de fato empenhada, como aponta a autora,
em eliminar fraudes e normatizar as eleições, tendo em vista a profusão de leis debatidas
e promulgadas com aqueles expressos fins, é preciso também perguntar de que forma e
até que ponto essas leis estavam sendo postas em prática, sob pena de não passarem de
“formalidades legais” nulificadas pelo peso de práticas eleitorais fraudulentas. Havia
interesse por parte das autoridades locais, que organizavam e dominavam os postos-chave
nas juntas e mesas eleitorais, em colocar essas normas em funcionamento? As práticas

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eleitorais sofreram alterações após a vinda desses regulamentos? Que influência exerciam
sobre os resultados dos pleitos?
Não são indagações fáceis de serem respondidas; e não é propósito deste artigo
fornecer as respostas. São questões, entretanto, que se tornam imperativas diante das
evidências encontradas na documentação; e para as quais é mister apresentar aqui alguns
encaminhamentos possíveis, partindo de algumas pesquisas já realizadas e outras em
andamento. Não é suficiente, para um estudo de como efetivamente se desenrolava o
processo eleitoral no Brasil do Oitocentos, considerar apenas as determinações legais
aprovadas pelos legisladores e sancionadas pelo imperador para regular as eleições. Se
estas eram amiúde distorcidas por variadas espécies de fraudes, as leis deveriam ser
sistematicamente burladas ou até desprezadas pelos agentes locais responsáveis por sua
execução. Assim sendo, faz-se relevante vasculhar a correspondência desses agentes que
estavam mais diretamente envolvidos em eleições, como os juízes de paz, os demais
componentes das juntas de qualificação e mesas eleitorais, as autoridades policiais e
judiciárias; e, mais distantes dos pleitos, mas nem por isso menos importantes, os
presidentes de província. Se estes não eram incumbidos de funções diretas no aparato
legal que operacionalizava os pleitos em cada circunscrição eleitoral, pois que eram
delegados imediatos do ministério governante em cada província do Império, sua
atividade principal, como expressavam consensualmente os analistas políticos da época,
de distintas tonalidades partidárias, era “montar, dirigir, aperfeiçoar a máquina eleitoral,
eis a sua missão verdadeira, o seu cuidado diurno e noturno” (BASTOS, 1975, p. 93).
Na província de São Paulo, o estudo da atuação dos presidentes provinciais que
ocuparam o cargo durante as épocas de eleições, e que o fizeram durante a vigência de
regulamentos distintos em termos de concepção e organização do processo eleitoral (as
instruções de 4 de maio de 1842 e a lei de 19 de agosto de 1846), permitiu descortinar
parte da complexa teia de relações que ligavam os delegados dos ministérios aos seus
subordinados em cada localidade, às autoridades eletivas e aos chefes políticos locais.
Assim, relevou-se insatisfatória e simplista a explicação de que a vitória dos presidentes
nos pleitos se dava, habitual e necessariamente, pela via do arbítrio e da imposição. Além
da complexidade de suas funções, atribuições e dos papéis que desempenhava, muitas
eram as formas pelas quais um presidente poderia tomar parte nas eleições – e não eram
as mais usuais aquelas que incluíam o uso da força ou da violência. Apesar de serem
medidas reprovadas pelas oposições políticas (ou pelo partido fora do poder), a larga

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difusão de sua influência e a distribuição dos empregos da província entre nomes de sua
confiança eram expedientes, estes sim, largamente utilizados pelos presidentes para
preencher suas vistas eleitorais; recursos que podiam ser justificados como lícitos e
legítimos, nas concepções dos atores da época. Por fim, é mister apontar que a vitória do
governo não tem significado único ou unívoco; que os presidentes nem sempre faziam
vencer todos os candidatos que desejavam e que, ainda assim, muitos dos políticos
governistas que triunfaram nas eleições, antes de serem “imposições ministeriais”, eram
nomes definidos pelo partido provincial que outorgava seu apoio ao partido dominante
no centro do Império. O apoio do presidente era importante para o triunfo daqueles nomes
nas urnas, mas, apenas por si e por sua vontade, não decidia ou fazia deputados
(MUNARI, 2019).
Compreendê-lo apenas como “máquina eleitoral” implica perder de vista a
complexidade dos papéis desempenhados pelo presidente, máxima autoridade provincial
que era amplamente solicitada pelas demais autoridades e pelos cidadãos comuns para
solucionar dúvidas, aprovar ou rejeitar resoluções e tomar providências contra inúmeras
fraudes ou irregularidades que chegavam ao seu conhecimento por meio de ofícios,
representações e abaixo-assinados. Todas essas questões legais não eram secundárias nem
constituíam meras formalidades sob as quais se escondiam as “verdadeiras” intenções do
delegado governamental. A correspondência presidencial com o ministério do Império e
com autoridades de diversas localidades de São Paulo é pululada de ofícios versando
sobre matéria eleitoral. Na década de 1840, e particularmente a partir de 1846, com a
promulgação de uma lei mais complexa e sofisticada em termos de regulação dos pleitos
– e que seria, em grandes traços, a lei básica do Império até 1881 –, uma prática que se
vinha firmando desde as primeiras eleições para o parlamento adquiriu caráter
institucional, uma vez que se estabeleceu uma ordenação para o seu funcionamento.
Eram tantas as dúvidas relativas à execução da lei regulamentar de 19 de agosto
de 1846 que, em ofício de novembro de 1848, o ministério ordenava que a presidência
fizesse acompanhar as representações enviadas ao governo imperial, no que concerne às
questões relacionadas a eleições tanto gerais quanto municipais, “de todos os
esclarecimentos e documentos que lhes disserem respeito, quer tenha ou não V. Exa.
resolvido sobre elas”( Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), Ofício do
ministro do Império ao presidente da província de São Paulo, 10/11/1848 – CO5246). Em
janeiro de 1849, o governo do Império reiterava uma censura contra uma prática que se

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julgava “prejudicial à regularidade do serviço público”, e que consistia em que


autoridades, empregados públicos e “até mesmo meros funcionários” se dirigissem
diretamente ao ministério por meio de ofício, sobretudo em assunto de eleições, quando
o deveriam fazer por intermédio da presidência.1 A matéria foi regulamentada por decreto
do Executivo de 27 de agosto de 1849, pelo qual se estabelecia que ofícios de quaisquer
autoridades ou repartições, bem como requerimentos e representações que das províncias
se dirigissem a alguma das secretarias de Estado, deveriam ser sempre remetidos pelo
presidente da respectiva província.2 Essa determinação seria reforçada em pelo menos
duas circulares do governo imperial, de 1860 e de 18823, o que aponta para o fato de que
autoridades e empregados públicos não deixaram de se comunicar diretamente com o
governo central, mormente apresentando queixas e dúvidas sobre problemas eleitorais, à
espera de que suas demandas ou expectativas fossem atendidas no interior do arcabouço
institucional vigente.
Ao sanar dúvidas sobre as eleições, os presidentes de província e o governo do
Império como que estabeleciam uma “segunda legislação” na busca de interpretar o
“espírito da lei”, aquilo que o legislador teve em mira ao estabelecer determinada
disposição no texto legal. Se a fraude era vista como uma tentativa de “iludir” o fim a que
se propunha uma determinação legislativa4, obstando o livre funcionamento do processo
eleitoral, o combate à fraude, por parte das altas esferas decisórias, deveria se balizar pelo
estrito cumprimento de todas as fórmulas ou formalidades legais, ainda aquelas que
parecessem menos substanciais em face de certas questões melindrosas, como a que se
referia aos direitos dos cidadãos votantes e eleitores. Em atenção a esse princípio é que
se posicionou o governo imperial em resposta a um requerimento do cidadão Tito
Vespasiano de Borba, que representou contra o despacho do Tribunal da Relação da Corte
proferido sobre o recurso que ele interpusera de sua exclusão da lista de qualificação dos

1
APESP, Ofício do ministro do Império ao presidente da província de São Paulo, 26/01/1849 – CO5246.
2
Decreto N. 632, de 27 de Agosto de 1849. “Regula o modo por que devem ser dirigidos das Províncias às Secretarias d’Estado tanto
os requerimentos de partes, como a correspondência Oficial de quaisquer Autoridades ou Repartições, e facilita a comunicação das
decisões, bem como a expedição dos despachos, e a remessa dos Diplomas, que, em virtude deles deverem expedir-se”. Disponível
em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/doimperio/colecao4.html>. Acesso em: fevereiro, 2020.
3
APESP, Ofício do ministro do Império ao presidente da província de São Paulo, 28/04/1860 – CO7709; ofício do ministro do Império
ao presidente da província de São Paulo, 15/04/1882 – CO5251.
4
- De que constitui exemplo uma resolução do governo imperial, sobre consulta do Conselho de Estado, para dúvida apresentada pelo
presidente da província do Rio de Janeiro acerca de uma disposição da lei de 19 de setembro de 1855, tendo em vista “evitar que seja
iludido o fim” daquela lei na parte em que proibiu que certos empregados públicos fossem eleitos pelos colégios eleitorais dos distritos
em que exercessem autoridade ou jurisdição. O parecer aponta que a providência competia ao Poder Legislativo, “mas que no entanto
o Governo Imperial não fica inibido de lançar mão daquelas medidas, que no caso couberem, para fazer respeitar o espírito da Lei,
sendo uma delas, tratando-se de empregados amovíveis, a de dar-lhes demissão em tempo oportuno”. Ofício do ministro do Império,
remetendo parecer de sua respectiva Seção do Conselho de Estado, ao presidente da província de São Paulo, 29/12/1859 – CO7708.
APESP.

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votantes da paróquia de Santo Amaro. O problema se remetia ao fato de que o suplicante,


quando apresentou o seu recurso, deixou de o instruir com o termo de interposição exigido
pela lei, dando lugar a que aquele Tribunal não tomasse conhecimento dele:

Sendo ouvida sobre o requerimento do Suplicante a Seção dos Negócios


do Império do Conselho d’Estado; e conformando-se Sua Majestade o
Imperador por Sua imediata Resolução de 4 do corrente mês com o parecer
da mesma Seção exarado em consulta de 17 de Outubro último: Há por
bem Mandar declarar a V. Exa., que não pode ser deferida semelhante
pretensão, quer se considere como recurso que o Suplicante interpõe da
decisão proferida pelo Tribunal da Relação, por isso que não há lei, ou
disposição administrativa que conceda recurso das decisões das Relações
em matéria eleitoral, as quais são terminantes; quer se considere como
representação que provoque uma providência para o futuro; porquanto,
sendo regra de direito que as petições de recurso sejam logo instruídas com
o termo de sua interposição, e não sendo esta formalidade expressamente
dispensada pelo já citado Decreto, não há razão para que ela se não observe
nos recursos interpostos em processo eleitoral.
As fórmulas são necessárias em qualquer processo assim judiciário, como
administrativo; e se há processo em que se deve escrupulizar a sua
dispensa, é certamente o eleitoral, mais sujeito do que outro qualquer a
abusos e fraudes que cumpre reprimir (APESP, Ofício do ministro do
Império, remetendo parecer de sua respectiva Seção do Conselho de
Estado, ao presidente da província de São Paulo, 25/11/1857 – CO7708).

O papel do Executivo não era somente executar as leis, dado que inúmeras
circunstâncias o obrigavam a resolver problemas práticos e examinar situações não
previstas nos textos legais, para as quais não havia uma única solução possível. A partir
da prática eleitoral que se desenrolava em sua província, a ação presidencial acabava por
criar uma efetiva jurisprudência sobre a matéria, “como conjunto de decisões, amiúde
reiteradas, visando à resolução de problemas nas eleições” (MUNARI, 2019, p. 286). Mas
essa jurisprudência só podia ganhar uniformidade em toda a superfície do Império sob o
beneplácito do governo imperial, que passou a produzir, com intensidade crescente a
partir de 1846, um grande número de decisões e decretos tratando de assuntos eleitorais.
Já na década de 1870, eram tantas e tão variadas as disposições legais sobre o tema que
já se fazia premente a conveniência de, tanto quanto possível, “uniformizar-se a

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jurisprudência Eleitoral, evitando decisões contraditórias entre a Câmara dos


Deputados e o Governo, embora sobre assuntos de sua competência” (APESP, Ofício do
presidente da província de São Paulo, s/d. Inserido no livro de registro da correspondência
enviada pelo Ministério dos Negócios do Império em 1872 – CO7711). A respeito de uma
consulta do presidente de São Paulo, versando acerca da preferência do serviço eleitoral
aos trabalhos do alistamento militar, o governo imperial deliberou na conformidade da
“doutrina geralmente aceita e bebida na lei e nas tradições da jurisprudência eleitoral”,
como já o haviam declarado diversos avisos do mesmo governo em solução a questões
similares (APESP, Ofício do presidente da província de São Paulo ao ministro do Império,
07/06/1878 – CO7764. Ofício do ministro do Império ao presidente da província de São
Paulo, 24/07/1878 – CO7712).
O fato de se poder falar em uma jurisprudência eleitoral no Brasil do século XIX
significa que, incumbindo-se o Executivo de um continuado esforço em regulamentar a
legislação aprovada no parlamento, as leis eleitorais estavam se tornando objeto de
dúvidas e questões ao nível das localidades. Essa atividade regulamentar respondia a
demandas e estímulos que subiam das freguesias, onde se rivalizavam os partidos e seus
agentes em disputa eleitoral, ao centro das decisões políticas do Império. Além de
relatarem abusos ou fraudes eleitorais, muitos componentes das juntas de qualificação e
mesas eleitorais, eleitores, juízes de paz, vereadores, funcionários públicos e mesmo
cidadãos votantes remetiam-se ao governo provincial – e de modo considerado irregular,
como já apontado, diretamente ao governo imperial – a fim de obterem soluções para
diversas dúvidas que apareciam no imprevisível cenário das eleições, e que incluíam
incontáveis detalhes estabelecidos por força do arcabouço legal vigente – desde a
constituição das mesas de qualificação dos votantes, em cada freguesia, até a apuração
dos votos dos colégios eleitorais na Câmara da capital da província (MUNARI, 2019).
É relevante observar que muitas dessas dúvidas não diziam respeito apenas ao ato
da eleição propriamente dito, mas também às suas fases preparatórias, que compreendiam
a composição das juntas que qualificavam os cidadãos aptos a votar, bem como das mesas
que recebiam seus votos e os apuravam. Entendimentos diferentes ou contrastantes sobre
determinados aspectos das leis, quando aplicadas a situações específicas, sugerem que os
atores políticos locais aprenderam a manejar os pleitos favoravelmente a seus interesses
(que não eram redutíveis, como é óbvio, aos interesses eleitorais do governo ou do
presidente). Nesse sentido, era disputado o próprio “entendimento da lei”, sua “correta

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interpretação”, o que não implicava sua rejeição pura e simples. Se a aplicação das
formalidades legais era perseguida com rigor pelo governo do Império, ela também
passou a ser encarada como importante (e útil) pelos partidos locais, que podiam alegar
uma dúvida ou o descumprimento de uma norma para, por exemplo, interromper
temporariamente os trabalhos da eleição. Disso dá exemplo um ofício reservado do
ministério do Império ao presidente de São Paulo em junho de 1849:

No caso proposto, de se retirarem alguns dos Membros das Mesas


Paroquiais para o fim de obstar que elas trabalhem, deve a sua substituição
ser feita na forma determinada no Artigo 29 da Lei Regulamentar das
Eleições, aplicado às ditas Mesas pelo § 13 do Aviso de 13 de Fevereiro
próximo passado, nomeando o Presidente e o Membro ou Membros que
guardarem os seus lugares o número de cidadãos que for preciso para
preencher as faltas que se derem, contanto que tenham as qualidades de
eleitor; pois que, se bem aquele Artigo da Lei trate somente do
impedimento do Mesário, contudo, sendo o seu fim suprir as faltas dos
Membros que se ausentarem, nenhum outro arbítrio, além do indicado,
pode melhor caber na hipótese figurada, ou em outra qualquer, uma vez
porém que a falta não seja de todos os Membros, porque então se deverão
observar os Artigos 10 a 12 da mesma Lei, os quais, posto providenciem
unicamente para o caso em que não compareça nenhum dos Eleitores e
Suplentes convocados para a organização das Mesas, devem todavia, como
os mais apropriados, ter aplicação a esta espécie, que não está prevenida na
Lei, mas para a qual é de mister adotar-se alguma medida, a fim de que não
seja iludida a Lei por manejos que ela não previu, e que o Governo Imperial
não pode deixar de inutilizar pelos meios que estão na órbita de suas
atribuições (APESP, Ofício reservado do ministro do Império ao presidente
da província de São Paulo, 16/06/1849 – CO5212).

Se os resultados dos pleitos no Império, que frequentemente davam em “Câmaras


unânimes” ou com poucos assentos para os adversários do governo, fazem crer que as
eleições eram pouco disputadas ou competitivas, o mesmo não se pode dizer ao observar
o comum acirramento dos conflitos partidários nos municípios e paróquias de cada
província, os quais geralmente envolviam o controle de postos-chave no processo de
organização e realização dos escrutínios. Em seus estudos sobre as eleições na Primeira
República (1889-1930), Paolo Ricci tem enfatizado a importância de se considerar o

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controle, por parte das forças políticas em disputa, sobre a “burocracia eleitoral” ou a
“máquina administrativo-eleitoral”, do alistamento ao domínio das mesas e à contagem
dos votos nas juntas apuradoras. Para o autor, essa interpretação torna possível um
entendimento sobre a prática da fraude que vai além do tema da perversão da “verdade
eleitoral”, da violência e da violação da lei. A corrupção eleitoral é entendida como
expressão de um jogo político que se dava em torno do controle daquelas diferentes etapas
estabelecidas pela legislação, isto é, trata-se do próprio “mecanismo eleitoral” (RICCI;
ZULINI, 2016, p. 212-213). Em suma, compreende-se fraude “as a dispute between
parties for monopoly over the electoral bureaucracy for the purpose of influencing the
election result” (RICCI, 2019).5
Esse conceito não só se afigura válido para examinar o problema da fraude no
Brasil Império, como também encontra respaldo na farta documentação existente para a
província de São Paulo a respeito das acirradas disputas que marcavam, cotidianamente,
os períodos pré-eleitorais. Essas disputas circundavam o propalado desejo de controle
sobre o aparato administrativo-eleitoral, que estava fortemente vinculado, por sua vez, às
eleições municipais, amiúde disputadíssimas pelas notabilidades locais. Isso se devia,
sobretudo, à centralidade conferida à figura do juiz de paz pela legislação eleitoral do
Império, principalmente pela lei de 19 de agosto de 1846, que outorgou a presidência das
juntas de qualificação e das mesas eleitorais de paróquia ao “Juiz de Paz mais votado do
distrito da Matriz, esteja ou não em exercício, esteja embora suspenso por ato do
Governo ou por pronúncia em crime de responsabilidade”.6 Exemplo significativo da
discussão aqui encetada é um ofício reservado que enviou ao governo provincial, em
1852, o delegado de polícia Joaquim Pinto Porto, da vila de Bragança, no qual apresentava
o cenário da localidade nas proximidades dos pleitos para vereadores e juízes de paz:

Considerando a animosidade e incitamento, com que os partidos desde


1849 têm aqui disputado o vencimento das eleições, não posso deixar de
conceber mui graves receios pela segurança e tranquilidade pública, porque
sendo as eleições de Juízes de Paz e Câmaras da maior importância para as
localidades, e a última carta que a oposição tem a jogar, é muito de

5
“In concrete terms, the control of the public agents who administered the elections in accordance with
the electoral law – and who also included occupants of administrative posts like clerks and notaries, as
well as the figure of the police officer, post officers, judges – was the guarantee of success in elections”
(RICCI, 2019).
6
Art. 2º da Lei No 387, de 19 de Agosto de 1846 (SOUZA, 1979, p. 208).

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RODRIGO MARZANO MUNARI 10


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presumir que os seus agentes desta Vila recorram aos maiores excessos
para obterem o vencimento dessa eleição, ou perturbarem os trabalhos da
Mesa, quando percam a esperança de vencê-la, e é tal o empenho que desde
já vão mostrando nessa desordenada luta, que, faltando ainda um mês para
essa eleição, já percorrem todos os Bairros deste Distrito, vociferando
contra o atual Governo, e todas as leis por ele promulgadas, concitando os
Guardas Nacionais votantes à desobediência e insubordinação, e
propalando por toda a parte, que assim como o Governo emprega a força
para vencer as eleições, o mesmo deverá fazer a oposição para obter esse
vencimento; e para dar-se mais peso a essa ameaça, boatos aterradores se
têm espalhado pelos habitantes desta Vila, e Freguesia do Socorro,
assegurando-se que a oposição já tem expedido alguns agentes para as
partes de Minas com o intuito de reunir força armada para o dia da eleição;
bem vejo que isto pode não ser exato, mas assim como nestas ocasiões
muito se inventa, ou se exagera, também não se deve rejeitar nenhuma
dessas hipóteses; e pareceu-me que devia levar tudo ao conhecimento de
V. Exa. para providenciar como for conveniente (APESP, Ofício do
delegado de polícia da vila de Bragança, Joaquim Pinto Porto, ao vice-
presidente da província de São Paulo, 05/08/1852 – CO5212).

Desse ofício é possível extrair e desenvolver várias ideias importantes acerca do


assunto em tela. Em primeiro lugar, sobressai a relevância atribuída à disputa pelos cargos
de vereadores e juízes de paz, numa luta que não era simples dissensão entre chefões que
combatiam por seu prestígio e poderio em âmbito estritamente local. Neste âmbito havia
uma oposição partidária relativamente organizada, que vociferava não só contra seus
rivais imediatos, mas contra o Governo conservador, então dominante no centro político
do país7, “e todas as leis por ele promulgadas”. Não se pode afirmar que existisse aí uma
oposição programática, mas cumpre considerar que essa luta se achava conectada às
vicissitudes verificadas ao nível dos governos provincial e central.
Em segundo lugar, tratava-se de uma disputa cujos resultados não estavam
previamente definidos. Havia diferentes forças, estratagemas e expedientes em jogo. O
controle sobre o aparato organizacional dos pleitos, ainda que aqui não aparecesse
expressamente, constituía um desses recursos aos quais a oposição certamente devia

7
Gabinete (11 de maio) cuja presidência fora confiada a Joaquim José Rodrigues Torres, o Visconde de
Itaboraí (JAVARI, 1962, p. 111), ninguém menos que um dos membros da “trindade saquarema”
(MATTOS, 2004, p. 120).

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recorrer, visto que, em caso de recear perder a eleição, competia-lhe fazer o possível para
“perturbar os trabalhos da mesa”, o que levaria a uma possível e vantajosa interrupção do
seu funcionamento. Por fim, se a oposição ameaçava praticar os “maiores excessos” para
obter o vencimento do pleito, não se deve considerar a ameaça como evidência de práticas
fraudulentas comuns à época, pois que se faz mais lógico compreendê-la como o que ela
fundamentalmente era: ameaça enquanto instrumento de pressão e demonstração de força
por parte de determinada parcialidade política. O “intuito de reunir força armada para o
dia da eleição” é um exemplo bastante comum na documentação, já que era uma ameaça
frequente dos agentes da oposição, não raro largamente divulgada pela imprensa, no
tempo em que se aproximavam as eleições. Constituindo mais uma expressão da disputa
político-partidária no campo do lugarejo, podia ser um expediente de real e possível
concretização, mas improvável, dado que nessas ocasiões, como afirmou o delegado de
polícia, propositadamente “muito se inventa, ou se exagera”.
Mas há ainda outro aspecto que chama atenção no ofício do delegado e que merece
uma análise mais detida. O empenho do partido de oposição para vencer o pleito não se
resumia a uma tentativa de tomar parte nos trabalhos da mesa, como também não podia
lograr êxito à base de ameaças. Ainda que, em teoria, a certeza daquele domínio do
aparelho burocrático pudesse lhe assegurar o controle sobre os resultados dos pleitos
primários, seria por demais arriscado prescindir dos votantes, isto é, da obtenção do maior
número possível de votos para a sua parcialidade. É precisamente este o sentido e a
finalidade de “percorrer todos os bairros do distrito”; e, inclusive, “concitar os guardas
nacionais votantes à desobediência e insubordinação”, o que poderia significar,
simplesmente, subtraí-los às influências consideradas legítimas de seus superiores, com
os quais deveriam votar em respeito à ordem hierárquica a que pertenciam.
De modo geral, a historiografia concedeu pouca importância à missão de que se
encarregavam os partidos locais e seus agentes para “conquistar” os votantes, haja vista
a ênfase conferida à ideia de que estes eram meramente arregimentados pelos fazendeiros
e potentados, aos quais eram criaturas dóceis e submissas, como verdadeiras “massas de
manobra”. Nessa perspectiva, não havia interesse nem sentido em convencer os cidadãos
com direito a voto, cujas lealdades já estariam pré-fixadas, a votar com tal ou qual
parcialidade. Alguns historiadores têm contestado essa interpretação ao estudarem certas
formas e estratégias de mobilização e convencimento dos votantes em distintos contextos.
Suzana Cavani Rosas, estudando os encontros de rua (similares aos comícios eleitorais)

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ocorridos no bairro popular de São José, no Recife, aponta que “os populares não se
distanciavam dos meetings, pois boa parte deles, na condição de votantes, era cortejada
pelas elites em diversas ocasiões da disputa político-partidária, particularmente nas
grandes cidades, onde o voto de cabresto tinha certos limites” (ROSAS, 2010, p. 165). A
autora mostra que muita gente modesta participava desses meetings, como canoeiros,
pedreiros, jornaleiros, alfaiates, carpinas, sapateiros, pescadores; pessoas todas que
integravam o corpo dos votantes qualificados localmente. Numa convocatória para uma
dessas reuniões eleitorais, do ano de 1866, o jornal O Tribuno explicitava que, além de
tratarem da luta pela nacionalização do comércio a retalho, os oradores também
procurariam

[...] convencer o povo da necessidade de não abandonar à eleição, sendo


condição indispensável não receber chapa de caixão: devendo
conferenciarem nas freguesias para fazerem eleitores os artistas, e não os
fidalgos, e nem a algum agente da polícia (apud ROSAS, 2010, p. 166).

Mas não se pode concluir que apenas em contextos urbanos estratégias de


convencimento dos votantes fossem postas em prática. Tratando dessa questão para a
província do Espírito Santo, Kátia Sausen da Motta afirma que uma das práticas eleitorais
frequentes dos candidatos e seus aliados, bem como das autoridades locais, consistia “em
percorrer tanto a área mais central do lugarejo quanto o ambiente ruralizado em visitas
informais na tentativa de angariar a simpatia dos votantes” (MOTTA, 2019, p. 169). Essa
autora também argumenta que havia outras formas de se fazer campanha eleitoral, sendo
que o instrumento mais utilizado para isso era a própria imprensa partidária. Os votantes
podiam ser informados a respeito dos indivíduos interessados numa eleição através das
“chapas” ou “chapinhas” impressas na seção de “publicações a pedido” ou
“correspondências” dos jornais. Estratégias todas que revelam um alto grau de
mobilização dos candidatos e dos votantes (MOTTA, 2018), atestando que as assembleias
paroquiais eram cenários políticos tão disputados quanto decisivos para os resultados do
processo eleitoral em todos os níveis, do preenchimento dos postos de vereador e juiz de
paz até os de deputado e senador do Império.
Pouca atenção foi dada pela historiografia a outra questão fundamental para a
compreensão das práticas políticas no Brasil do Oitocentos: a natureza do votante e do
seu voto, o que implica considerar o modo pelo qual ambos eram mobilizados. O voto em

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sua acepção liberal moderna, como produto da livre expressão de um indivíduo


autônomo, parece não ser mais que uma abstração no século XIX. Em diversas regiões
da América Latina, como já alguns historiadores têm apontado, a noção de cidadania
política ainda não se tinha separado da noção de vecindad, típica do Antigo Regime
ibérico. O vecino, ao contrário do cidadão tal como hoje o concebemos, era sempre um
homem territorializado e enraizado, que se definia não por seu pertencimento a uma
comunidade abstrata – a nação –, mas como membro de uma comunidade concreta. Nesse
sentido, e não só na América como também em algumas partes da Europa oitocentista, o
voto se caracterizaria mais como um exercício coletivo e público, baseado numa
concepção tradicional do eleitor como parte de um corpo político, do que como uma
prática individual, firmada na ideia de homens livres e iguais perante a lei (RICCI, 2019).
Como asseverou François-Xavier Guerra ao enfatizar a dimensão coletiva do ato de votar,
é justamente nessa chave que se deve examinar a questão da liberdade do voto no universo
latino-americano pós-Constituição de Cádiz:

Un voto libre no es necesariamente un voto individualista, producto de una


voluntad aislada. Inmerso en una red de vínculos sociales muy densos, el
ciudadano se manifiesta libremente a través de su voto como lo que es: ante
todo, miembro de un grupo, sea cual fuere el carácter de éste (familiar,
social o territorial). El elector escoge con libertad a aquellos que mejor
representan a su grupo, normalmente a sus autoridades o a los que éstas
designan, como lo corroboran los resultados electorales de que disponemos
(GUERRA, 1999, p. 52).

A própria organização das “forças eleitorais” no século XIX é reveladora das


características coletivas ou comunitárias do voto. Hilda Sabato, tratando sobre a
experiência representativa nas origens da República Argentina, aponta que essas forças
eram “organizações de estrutura piramidal, com uma ampla base de militantes e
sucessivas camadas de dirigentes ou lideranças que culminavam nos referentes políticos
mais altos”. As lideranças intermediárias, geralmente inseridas no âmbito do Estado
(como juízes de paz, chefes militares e comandantes da Guarda Nacional, funcionários
públicos, autoridades policiais), deveriam mobilizar, articular e manter sob controle as
bases eleitorais, em conexão com as figuras políticas mais importantes da localidade,
conduzindo os trabalhos em dias de votação e distribuindo “as recompensas materiais e
simbólicas correspondentes”. Os cidadãos acorriam aos pleitos em grupos, como que em

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verdadeiras hostes preparadas para um combate, dado que cada um deles pertencia a uma
das duas forças em disputa. Em imagens que se repetiam por todo o território e durante
quase todo o século, com pequenas variações, esses grupos também intervinham na
eleição “exibindo sua presença física grupal e seu potencial de violência” em lutas que
tinham muito de ritual (SABATO, 2011, p. 34-36). Como argumenta Marcela Ternavasio,
se o “oficialismo eleitoral” tecia as suas próprias redes clientelísticas, é também certo que
os grupos de oposição procuravam fazer o mesmo; e, em ambos os casos, o que se
depreende é que a participação do “povo” – em sua diversidade de sujeitos – nas eleições
se dava por intermédio dessas redes que expressavam uma forma de voto grupal:

Los grupos opositores, siguiendo el mismo procedimiento con el que


intentaban cooptar a los sectores intermedios para trabajar por sus listas,
procuraban también convencer a los potenciales electores de “que no hay
que dejarse seducir, no hay que creer que debe seguirse al cura, al
comisario, al juez o al alcalde en la votación; vote cada uno con su
corazón…”. Votar con el corazón no significaba, naturalmente, pensar en
un voto autónomo, o lo que es lo mismo, aplicar la lógica de un hombre,
un voto. Implicaba insertarse en otras redes clientelares que no
respondieran al llamado oficialismo electoral (TERNAVASIO, 2015, p.
146).

Sob a forma de um governo monárquico representativo, o Brasil, com suas


especificidades históricas e com seu sistema de eleições indiretas, não constituía exceção
no quadro da época. Não se trata apenas de constatar que os cidadãos votavam em grupos,
aqui como alhures, em consequência de uma organização imposta ao eleitorado pelos
partidos e pelos chefes políticos das localidades. Havia também mecanismos
institucionais, estabelecidos por força da legislação eleitoral em vigor no Império, que
não possibilitavam a autonomização do votante em relação às lideranças políticas que
dirigiam as eleições em cada local. Fixemos apenas um exemplo importante.
De acordo com o art. 48 da lei eleitoral de 1846, os próprios votantes, conforme
fossem chamados a votar pela mesa paroquial, entregariam suas cédulas (que não
precisavam ser assinadas) para serem imediatamente recolhidas a uma urna.8 Essas

8
- Segundo instruções baixadas pelo governo imperial em setembro de 1856, para coarctar o abuso de serem lançadas nas urnas
eleitorais cédulas em número superior ao dos votantes que comparecessem, ficou determinado que estes, à medida que fossem
chamados, iriam “introduzindo na urna as suas cédulas, as quais deverão ser fechadas de todos os lados”. Instruções de 27 de
setembro de 1856 enviadas por aviso do ministério do Império ao presidente da província de São Paulo – CO7708. APESP.

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cédulas (ou listas) com os seus votos, entretanto, não eram impressas ou distribuídas pelas
autoridades públicas. Não era proibido que os votantes recebessem listas de alguns
indivíduos, isto é, dos chefes e agentes partidários, inclusive no próprio dia e local da
eleição. Foi o que manifestamente declarou o presidente da província de São Paulo a
Francisco Antônio Cortez, juiz de paz e presidente da mesa paroquial de Vila Bela,
quando este perguntou qual era o meio de obstar que certas pessoas dessem listas aos
votantes, ou as substituíssem por outras, “mesmo no recinto do Colégio Eleitoral”:

Conquanto este fato pareça imodesto, contudo não é ilícito senão quando
for revestido das circunstâncias especificadas no Art. 101 do Código
Penal9, pois que só neste caso pode ser vedado; e portanto deve o mesmo
Sr. Juiz de Paz limitar-se ao desempenho das atribuições, que lhe confere
o § 1º Art. 47 da Lei No 387 de 19 de Agosto de 1846, tendo muito em vista
que a Lei só quer que não haja dolo, isto é, que o votante não seja levado a
aceitar uma lista com a mira em alguma recompensa, ou forçado a recebê-
la com temor de algum mal, repelindo finalmente a dita Lei a compra, e
venda de votos (APESP, Ofício do presidente da província de São Paulo
ao juiz de paz Francisco Antônio Cortez, 16/09/1847 – E00271).

Se a lei proibia a coação e a compra e venda de votos, não impedia que cédulas
fossem livremente oferecidas aos votantes, por quaisquer indivíduos, até no interior da
igreja matriz onde as votações eram realizadas. É certo que essa prática tornava menos
efetivo o sigilo do voto e facilitava a organização e o controle dos votantes por parte dos
agentes partidários, que faziam e distribuíam as listas com os nomes dos seus candidatos
para eleitores. Desse modo, não era ilícito que os partidos trabalhassem por suas listas até
no recinto eleitoral, desde que sua ação não caracterizasse dolo; assim como não era
vedado que os votantes se apresentassem para votar, livre e espontaneamente, como
membros de um grupo – ao qual se encontravam ligados por vínculos de naturezas
diversas –, cuja existência se definia no espectro político pelo pertencimento a um dos
partidos estabelecidos localmente. Não havia interdição legal sobre o exercício do “voto
grupal”, pois este, como prática corrente e socialmente aceita, podia existir

9
- Configurava-se crime “contra o livre gozo e exercício dos Direitos Políticos dos Cidadãos”, segundo tal artigo, “solicitar, usando
de promessas de recompensa, ou de ameaças de algum mal, para que as Eleições para Senadores, Deputados, Eleitores, Membros
dos Conselhos Gerais, ou das Câmaras Municipais, Juízes de Paz, e quaisquer outros empregados eletivos, recaiam, ou deixem de
recair em determinadas pessoas, ou para esse fim comprar ou vender votos”. Lei de 16 de Dezembro de 1830 – Código Criminal do
Império do Brasil. Coleção das Leis do Império do Brasil. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/legislacao/doimperio.

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independentemente de fraude ou coação. É assim que se deve entender um ofício em que,


aprovando diversas ordens do presidente de São Paulo acerca das “consultas e
representações que lhe foram dirigidas sobre a execução das Leis de eleições”, o governo
imperial declarou expressamente não haver, em 1863,

[...] disposição alguma que proíba aos votantes pernoitarem em grupo em


uma só casa, e se apresentarem da mesma forma para votar, uma vez que
não haja nisso coação, porque havendo, deve a autoridade empregar os
meios legais para os libertar dela (APESP, Ofício do ministro do Império
ao presidente da província de São Paulo, 06/08/1863 – CO7709).

Deliberando envolver-se numa eleição, como era regra em reuniões ou “clubes”


onde se reuniam pessoas influentes da localidade, um partido precisava reunir o maior
número possível de votos quase sempre dispersos pelo amplo território de um município,
suas freguesias, e quiçá em outras bandas; e nem sempre suficientes, contudo, para
enfrentar um adversário que contasse com muitas relações e com cargos de autoridade,
especialmente na polícia ou na magistratura, que lhe fizessem valer maior grau de
influência sobre a população votante. Ao tratar, em 1850, da atuação de alguns chefes do
partido da oposição em Curitiba, os quais deliberaram trabalhar nos pleitos daquele ano,
o chefe de polícia de São Paulo destacava ser “muito natural” que, “não só em
Tindiquera, como também em outros lugares houvesse convites por parte dos que tinham
tomado aquela deliberação, para que os votantes desses lugares fossem votar com eles”.
A máxima autoridade policial da província também alegava que esses votantes, “pela
mor parte ignorantes”, poderiam entender que não eram só convidados para votar e
também “se dispusessem para brigar”, ainda que a tanto, supostamente, não se
estendessem os convites a eles feitos pelos chefes partidários (APESP, Ofício do chefe
de polícia, Joaquim Firmino Pereira Jorge, ao presidente da província de São Paulo,
24/12/1850 – CO5212).
A partir desse último documento é possível explorar a ideia da luta eleitoral como
um verdadeiro combate, ao qual estariam prontamente disponíveis os votantes
“convidados” para votar. A retórica da ignorância desses homens, que são
responsabilizados pelos eventuais excessos cometidos na eleição, na verdade ocultava o
real sentido desta relação: a fidelidade dos votantes àqueles com os quais haviam
compactuado por força da atividade eleitoral. O grau de agressividade desses conflitos

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eleitorais não se devia à brutalidade e ignorância dos cidadãos votantes, mas ao próprio
nível de competição e virulência das disputas políticas que eles esposavam.
Neste ponto é relevante dizer que, se muitos votantes estavam obrigados à
obediência de seus superiores hierárquicos em decorrência de vínculos que não tinham
diretamente a ver com as disputas eleitorais, como os guardas nacionais deviam obedecer
a seus comandantes, ou como os inspetores de quarteirão deviam responder aos
subdelegados e delegados dentro dos territórios em que estes exercessem sua jurisdição;
outros votantes, como esses “convidados”, entravam na liça em virtude de negociações
ou acordos estabelecidos por ocasião do próprio combate eleitoral. Nesse campo, onde se
definiam os laços verticais entre as lideranças políticas e sua clientela, havia
possibilidades de trocas e intercâmbios complexos entre os diferentes agentes que
integravam as forças eleitorais em cada localidade. Havia, é certo, no interior dessas
organizações, uma hierarquia que respeitava ou reproduzia a ordem social, sobretudo se
se observa que os vínculos entre os fazendeiros abastados e seus clientes estendiam-se à
arena das eleições, os primeiros como “comandantes” e os segundos como
“comandados”. Contudo, ainda nesse último caso, é preciso considerar que as relações
entre potentados e homens livres pobres, mesmo que marcadas por diferentes níveis de
desigualdade, não se reduziam à imposição de uns poucos sobre uma massa submissa de
votantes; também aqui se pode notar certo grau de interdependência (FRANCO, 1997, p.
90-91), com ganhos para ambas as partes, cujos espaços no interior das redes
clientelísticas não eram estanques e imutáveis, desde que sujeitos a definições e rearranjos
na esfera do jogo político.
Em suma, é preciso ter em mente que, para muitos dos votantes pobres que na
província “viviam em trânsito” (DIAS, 1998, p. 62-63)10, não significava mero ato de
sujeição integrar as bases do processo eleitoral e votar na conformidade do que os seus
líderes lhes sugerissem. Participar das lides políticas, ao lado de determinada parcialidade
que disputasse os pleitos, conferia a esses homens um protagonismo de que amiúde não
gozavam no cotidiano, repleto de incertezas quanto à sua própria sobrevivência em face
da violência estatal, representada sob a ameaça constante do recrutamento militar, das
perseguições policiais e da instabilidade de suas condições de vida e seus meios de

10
Refere-se aqui, conforme Maria Odila Dias, “à massa da população que vivia à margem da economia de exportação ou nas fímbrias
da monocultura comercial, onde sobrevivia e resistia de uma forma certamente mais fluida e mais provisória do que a sugerida pelo
conceito do favor e da clientela pessoal”.

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subsistência. Uma participação que também podia revesti-los de uma espécie de


identidade, pela qual se reconhecessem (e fossem reconhecidos) como membros de um
agrupamento político.
Os rótulos partidários, de forma geral, carreavam ônus e bônus para os votantes
pobres que os ostentavam ou fossem identificados como tais. Quando, em dezembro de
1861, um delegado de polícia de Mogi das Cruzes procurou rebater os argumentos de um
“avulso” intitulado “Ao Público”, que, entre outras acusações, inculpava-o por ter feito
dormir no xadrez uma “pobre família de um votante liberal”, sua resposta cingiu-se à
afirmação de que, não sendo motivado por razões políticas, seu ato apenas visara apartar
uma briga familiar, mandando prender o pai e o marido de uma moça que teria sido
espancada com seu filho no braço, em uma casa da rua do Chafariz:
Indagando eu do barulho, contou a moça que o Pai e o marido estavam a
espancando a ela e a sua criança, e que por isto gritara que lhe acudissem;
que eles eram do sítio, e que a casa era da mulher mais velha: mandei pois
recolher à prisão os dois homens, e a mulher velha, deixando a moça com
a criança. Eis a pobre família de um votante liberal que fiz dormir no
xadrez: e no dia seguinte quando mandei soltar esta pobre família de um
liberal votante, e passando-lhes uma repreensão, deram-me por razão que
um pai e um marido podem exemplar sua filha e sua mulher (APESP,
Ofício do delegado de polícia de Mogi das Cruzes ao chefe de polícia da
província de São Paulo, 28/12/1861 – CO5212).

Independentemente das verdadeiras razões que teriam levado o delegado a prender


uma família cujo chefe era um conhecido votante liberal, é certo que um votante pobre e
sem proteção estava sempre vulnerável à sanha perseguidora do partido oponente. Por
outro lado, várias evidências existem de que, em troca de sua participação ativa na pugna
eleitoral, muitos votantes eram protegidos por homens poderosos contra seus adversários
e até contra a intervenção das autoridades públicas, o que lhes valia escapar de sanções
legais e do recrutamento – corretivos habitualmente aplicados aos “vadios” e
“desordeiros” não amparados por algum chefe de prestígio. Alguns desses homens livres
pobres, obtendo lugares mais destacados no interior das redes que teciam as forças
eleitorais, engrossavam as fileiras dos chamados “capangas”; que não eram, entretanto,
simples criminosos pagos para acobertar fraudes, perseguir adversários e exercer pressão
sobre os votantes. Eram agentes eleitorais, que exerciam funções específicas e

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importantes – como a arregimentação, a condução e o controle dos votantes – para o bom


êxito de um partido nos pleitos. O 1º suplente do juiz municipal da vila de Castro, em
1850, dizia-se horrorizado ao testemunhar a proteção que alguns corifeus do partido da
oposição davam a certos “facinorosos, desertores e proletários”, isto é, aqueles agentes
partidários que, no discurso de seus opositores, reduziam-se à condição de meros
capangas. Justamente por conta dessa situação ambígua, viviam em melhores condições
que os demais votantes e usufruíam de proteção poderosa, sabedores de que seus trabalhos
eram indispensáveis para o sucesso eleitoral de seus chefes; mas, em geral, não gozavam
de boa reputação. É o caso do “degradado Bitancourt”, que, além de não ser digno de
exercer empregos públicos, no dizer do juiz municipal,

[...] possui uma casa na Freguesia de Guarapuava, animais e algumas


patacas, e sua profissão ali não é outra senão jogar centos de mil réis em
carreiras aos pés de cavalos parelheiros, e tudo quanto possui tem sido dado
pelo dito Sá, seu protetor, de quem é capanga e agente na época de Eleições
(APESP, Ofício reservado do 1º suplente do juiz municipal da vila de
Castro ao presidente da província de São Paulo, 03/10/1850 – CO5212).

Muitos homens livres da época, como o referido Bitancourt, e sobretudo aqueles


que, não sendo proprietários, buscavam garantir a própria sobrevivência lançando mão de
expedientes variados, sabiam bem que as corridas eleitorais abriam-lhes oportunidades
de negociação com os poderosos locais. A essa altura do século, uma experiência de quase
três décadas de eleições frequentes para diversos cargos eletivos já tinha lançado em
campo, em todo o país, milhares de cidadãos de condições modestas, que passavam,
simultaneamente, por um processo de aprendizado político e institucional. Não lhes
escapava que o voto tinha valor e podia ser negociado, trocado ou vendido para quem da
elite pagasse melhor preço. Mas as eleições não envolviam, como já tem se mostrado,
apenas dinheiro e troca de favores. Eram lugares de pertencimento, identidades, relações
vantajosas (e intercambiáveis) com pessoas influentes e até mesmo brechas e chances de
ascensão social que estavam em jogo. Recuperar e trazer à tona esses anseios é também
restituir dignidade à memória de tantos homens simples que, na qualidade de cidadãos
votantes, foram geralmente encarados como massas submissas e sem qualquer
expressividade política; porquanto a rudeza, a boçalidade e a violência são os traços
característicos que deles foram impressos na maioria dos poucos registros de sua
existência que chegaram às mãos dos historiadores.

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Por fim, se na província de São Paulo as eleições eram bastante disputadas desde
a sua base, pode-se dizer que os cidadãos votantes eram não só disputados, como também
eram agentes ativos dessas disputas, que se davam no cenário tumultuado das ruas, das
assembleias paroquiais e, igualmente, nas arenas institucionais da época; que podiam
explodir em conflitos virulentos, à margem da legalidade, como podiam se expressar no
interior do ordenamento jurídico estabelecido por força das diferentes leis eleitorais
vigentes no período. Tendo em mira a complexidade da construção de um regime
representativo no Brasil oitocentista, a perspectiva aqui focalizada busca,
fundamentalmente, considerá-la como um processo (jamais acabado) que envolvia uma
miríade de atores, cujos anseios e atributos não podem ser negligenciados pelos estudos
que abordam o Império em suas distintas configurações provinciais e locais.

r ef er ên c ias

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Recebido em: 16/03/2020 – Aprovado em: 21/04/2020

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