Segredos de Paris: Luanne Rice

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Luanne Rice

SEGREDOS DE PARIS

Tradução
Carla Morais Pires
1

O que estou prestes a contar-vos é a coisa mais espantosa,


mais surpreendente, mais triunfante, mais enigmática, mais
inaudita, mais invulgar, mais inacreditável, mais imprevista,
a mais importante, mais minúscula, mais rara, mais comum,
a mais falada, a mais secreta até aos dias de hoje, a mais
invejável, na verdade, algo de que apenas um exemplo pode
ser encontrado em épocas passadas e, de mais a mais, esse
exemplo é falso; uma coisa em que ninguém acredita em
Paris (como poderá alguém acreditar nela em Lyon?).

– DE MADAME DE SÉVIGNÉ PARA COULANGES,


DEZEMBRO DE 1672

LYDIE MCBRIDE OCUPAVA uma mesa de café nos Jardin du


Palais Royal e pensava como era bom ser uma americana em
Paris no final do século XX. O sol aquecia-lhe os braços. As
pessoas vagueavam pelas ruas quentes e a poeira prateada mis-
turava-se com o cheiro a café forte. Era um dos primeiros dias
quentes de primavera. Depois algo aconteceu – as chávenas
deslizaram ruidosamente no tabuleiro do empregado, ou a brisa
mudou, e Lydie lembrou-se do seu país. Sentiu uma grande
saudade: da família, do quarteirão onde vivia em Nova Iorque,
da pista das corridas, dos estrangeiros que falavam inglês.
– Passa-me o açúcar? – pediu alguém num tom de voz
baixo.
LUANNE RICE

Lydie sobressaltou-se. Acabara de desejar tão ardentemente


ouvir a língua inglesa que se interrogou, por instantes, se não
teria imaginado o som na aragem de maio. Mas logo se recompôs.
– Claro – respondeu, passando o açucareiro de porcelana
à mulher sentada na mesa do lado. Olhou para ela, uma mulher
alta da sua idade, com o cabelo escuro enrolado num puxo, a
mexer dois cubos de açúcar no café. O batom encarnado ficava-
-lhe lindamente, os olhos escondiam-se atrás de uns enormes
óculos de sol. Lydie, que nunca usava muita maquilhagem e
tinha um tipo de cabelo fino, arruivado, que parecia estar
sempre despenteado, ficou com a impressão de haver ali muito
dinheiro.
– Estou a precisar de energia – justificou-se a mulher. –
Acabei de fazer uma prova na Chanel, uma experiência que me
deixa sempre exausta.
Lydie sorriu com o modo com que a mulher fez soar a tor-
tura o facto de fazer compras na Chanel, prevendo, de certa
forma, que ela vivia em Paris.
– O que a traz a Paris? – perguntou a mulher.
Lydie hesitou, tentando formular a versão curta de uma
resposta complicada.
– Bem, motivos de trabalho. Michael, o meu marido, é
arquiteto. Está a trabalhar no Louvre, faz parte de um programa
de intercâmbio. E eu sou designer.
– Designer? De cabelos?
Lydie riu-se.
– Não, trabalho com fotógrafos. Fazemos peças para revistas
e catálogos. Preparo os planos. O editor diz-me o que pretende
relativamente à disposição da fotografia e é minha tarefa organizar
os adereços.
– Acho que o meu marido trabalha com designers – atalhou
a mulher. – Ele está no ramo da joalharia.
– Sim – disse Lydie, anuindo com a cabeça. – Também
trabalho muito com joalheiros. Ele é francês?

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– É, mas conhecemo-nos na América… – A voz da mulher


deixou de se ouvir, como se achasse que a conversa já ia longa
ou estivesse a tornar-se demasiado íntima. – Vou contar-lhe
uma coisa – continuou. – Conheci o meu marido num dia, no
fim de semana seguinte levou-me a Guadeloupe, depois ins-
crevi-me na escola de línguas Berlitz e ele pediu-me em casa-
mento. Deve pensar que sou maluca, mas aconteceu tudo em
menos de cinco semanas. Os franceses compreendem, mas os
americanos não têm essa capacidade.
Lydie inclinou-se para a frente e captou o momento de
forma tão precisa como uma fotografia: o modo como o sol
incidia no cabelo da mulher, o esplendor das prímulas numa
floreira atrás da sua cabeça, o palácio de Richelieu a projetar
uma sombra no jardim.
– Não creio que isso seja uma maluquice – respondeu Lydie.
– Acredito no amor à primeira vista.
– Bem… – respondeu a mulher, olhando para o relógio,
pequeno, de ouro, com carateres chineses em vez de números.
Depois olhou para o céu. – Tenho de ir. Está a fazer-se tarde.
Lydie viu as horas. Planeara ir à Biblioteca Nacional pro-
curar pormenores de casamentos do século XVII para um artigo
para a Vogue. Depois, tal como a outra mulher, ergueu o olhar.
Não lhe apetecia ir. O palácio, contra o céu azul, parecia sombrio
e antigo, como se sempre ali tivesse estado. Queria empatar,
prolongar a conversa agradável, casual, como uma outra ame-
ricana. – Para onde vai? – perguntou após uns instantes.
– Oh, para casa – respondeu a mulher. – Disse à minha
empregada que podia ir à Internet.
– A empregada?
– Sim, estou a ensiná-la a usar o computador. Didier com-
prou-o quando os computadores pessoais chegaram em força
a Paris, mas está para ali parado.
Lydie olhou para a mulher com mais atenção. Com as suas
joias, roupas e um porte ligeiramente majestoso dava a impressão

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de ser alguém que pretendia distanciar-se de uma empregada


doméstica.
– Anda a treiná-la para tratar da sua correspondência? –
perguntou Lydie.
A mulher riu-se, mas o sorriso pareceu distante.
– Kelly quer melhorar a sua vida. É filipina, de uma província
fora de Manila, e está em Paris ilegalmente. É pouco mais nova
que eu. Frequentou a universidade. Partilha uma casa com um
número incrível de irmãos e irmãs. O seu objetivo é ir para os
Estados Unidos.
– E quer ajudá-la? – perguntou Lydie, sentando-se na beira
da cadeira.
– Bem, é praticamente impossível.
– Os meus pais emigraram da Irlanda para os Estados Uni-
dos – contou Lydie.
– É particularmente difícil para os filipinos – respondeu a
mulher, voltando a olhar para o relógio. Reuniu os sacos das
compras e levantou-se. – Bem, foi interessante a nossa conversa,
não?
– Talvez… – começou Lydie.
– Devíamos trocar os números de telefone – interrompeu
a mulher, sorrindo abertamente.
E, enquanto Lydie escrevia o nome e o número num bocado
de papel de carta, a mulher de cabelo escuro entregou-lhe um
cartão de visita em papel velino, gravado simplesmente com
um endereço na Place des Voges e o nome «Patrice d’Origny».

Descendo a rua des Petits Champs, Lydie não se apressou para


chegar à biblioteca. Embora tivesse horas de pesquisa pela frente
para uma coleção de fotografias que contava já com uma semana
de atraso apetecia-lhe fazer gazeta. As jantes BBS de um BMW
750 vermelho, estacionado próximo do passeio, despertaram a
sua atenção. «Belas jantes», pensou. Na sua infância, passara

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muitos sábados na oficina do pai, no Bronx – um local cavernoso


a tresandar com o cheiro a tubo de escape e a tinta, com a
chama dos maçaricos de soldar, os chiados da maquinaria e do
metal a desfazerem-se –, sem ver muitas jantes BBS. O pai era
o patrão, mas, de qualquer modo, usava fato-macaco azul. Cos-
tumava deixá-la no escritório, separado da oficina por uma
janela de vidro, aparecendo aproximadamente de quinze em
quinze minutos para a visitar.
– O que aconteceu àquele carro? – perguntara Lydie certo
dia, vendo outro automóvel espatifado a entrar, rebocado, na
oficina.
– Foi um acidente, querida. O condutor embateu contra
uma árvore na alameda Pelham. Devia estar bêbado porque
sabia conduzir.
– Como sabes? – indagou Lydie, quando o que ela queria
mesmo saber era o que acontecera ao condutor.
– Estás a ver estas jantes? – perguntou o pai, apontando
para o carro, aproximando a sua cabeça tanto de Lydie que ela
sentia o cheirete a escape que parecia sempre colar-se-lhe ao
cabelo e às roupas. – São BBS. Um homem não compra jantes
daquelas se não souber conduzir.
Para o pai de Lydie, «saber conduzir» incluía mais do que
mera competência. Era um grande elogio e significava que o
condutor estava alerta atrás do volante, unificado com o seu
carro e a estrada, consciente da diferença entre mecanismos
excelentes e comuns. Afastando-se do BMW vermelho com as
suas jantes de alta performance, sem produção em série, descendo
a estreita rua de Paris, Lydie sentiu vontade de conduzir com
velocidade. Na América, entrava em corridas de carros por des-
porto, mas em França nunca sentira essa vontade. Resistira a
mudar-se para Paris. Dissera a Michael que era por não querer
deixar a família constituída agora apenas por ela e pela mãe.
Mas Michael não concordara e argumentara que o que ela não
queria deixar era a tragédia da família.

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LUANNE RICE

Oito meses antes de Michael aceitar o lugar no Louvre, o


pai de Lydie matara a amante e suicidara-se a seguir. Margaret
Downes. Lydie sobressaltava-se sempre que se lembrava desse
nome. Quarenta anos depois daquilo que toda a gente julgava
ser um bom casamento, Cornelius Benedict Fallon apaixonara-
-se por outra mulher. Lydie não soubera e Julia garantia, ainda
hoje, que não dera por nada. Lydie sabia que devia ter havido
indícios e sentia-se muitas vezes furiosa com a mãe por não os
ter percebido. E também porque até ao momento em que os
agentes da polícia de Nova Iorque lhe bateram à porta, Lydie
acreditara no mito da mãe de que eram uma família feliz.
Lydie era filha única. Fora concebida relativamente tarde
e sabia que era querida. Os pais educaram-na para ser uma
pessoa confiante e viver sem medos. A história preferida do pai
era contar como Lydie, com oito anos, ao assistir aos Jogos
Olímpicos na televisão, se levantara subitamente e fizera um
perfeito salto mortal para trás do sofá. A segunda vez que tentou
a proeza, partiu a clavícula. Durante o liceu, dedicou-se a andar
de caiaque em águas revoltas, a ensinar crianças de um bairro
que poucas colegas do seu colégio de freiras visitavam sequer,
e a viajar de boleia para Montauk aos sábados. Um dia, o pai
deixou-a dar uma volta num Sprite para experimentar. A intensa
concentração que era exigida pela velocidade arrebatou-a e,
desde esse momento, passou a encarar a aceleração como a
forma legítima de conduzir um carro.
Ao cortar pela Galerie Vivienne, lembrando aquele Bugeye
Sprite e o seu velho eu destemido, Lydie sentiu os olhos rasos
de lágrimas. A emoção era tão forte que parou diante de uma
loja de vinhos, fingindo olhar para a montra enquanto chorava.
Recordou-se do carro que Michael lhe dera no Natal, mesmo
antes do tiroteio. Andavam a fazer compras juntos e Lydie per-
dera-se de amores por uma carrinha Volvo 740 que estava em
exposição. Michael sorria só de pensar na mulher a acelerar
numa carrinha, o carro preferido das mulheres que viviam em

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SEGREDOS DE PARIS

Litchfield Hills para transportar miúdos e compras por Lime


Rock. Em segredo, comprou-lho. Lydie fechou os olhos, recor-
dando essa manhã, no dia de Natal: no apartamento onde mora-
vam, na West Tenth Street, abrira uma pequena caixa contendo
um par de luvas castanhas em cabedal, próprias para condução,
um mapa do Connecticut com «Lime Rock» assinalado num
círculo a vermelho, e as chaves. Não o conduzira desde que o
pai morrera. Continuava em Sharon, no Connecticut, numa
garagem atrás da sua casa.
Michael contara-lhe sobre o emprego no Louvre como se
estivesse a dar-lhe um presente ainda maior que o carro: uma
aventura, um ano em Paris. Mas Lydie recusara vir. Queria ficar
em Nova Iorque; não conseguia imaginar-se a deixar a mãe.
Não conseguia imaginar-se a deixar a cidade. Mas, apesar de
lhe faltar vontade, não podia dizer não a Michael, entusiasma-
díssimo com a mudança. E eis que chegara o dia de empacotar
as coisas e despachá-las num contentor que atravessaria o Atlân-
tico a bordo de um cargueiro polaco.
Julia sentara-se na cama de Lydie e de Michael a vê-los
fazer as malas. Lydie sabia que, embora a mãe se sentisse terri-
velmente triste por a ver partir, não pensaria sequer em expressá-
-lo. Achava que se o fizesse estragaria a felicidade de Michael.
Era uma mulher roliça, especialmente de peito, com cabelo
grisalho macio, encaracolado, e, até mesmo nessa altura, exibia
uma expressão perpetuamente feliz nos olhos azuis. Lydie mal
conseguia olhar para ela nesse dia enquanto remexia numa cómoda.
Dando com as luvas de conduzir, Lydie calçou-as, acomodando
a pele nova.
– Mal posso esperar para te ver conduzir em Le Mans –
disse Michael. – Fica apenas a duas horas de Paris.
– Mal posso esperar… – respondeu Lydie, duvidando se
conduziria sequer em França.
– Oh, vão divertir-se muito os dois – atalhou Julia, sorrindo
abertamente. – Com todos aqueles museus e restaurantes. Uma

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vez, a tua tia Carrie e eu passámos um fim de semana em Paris.


Foi fantástico!
– Fazer a viagem de avião da Irlanda para Paris é como
apanhar o autocarro para Washington – declarou Michael. Pelo
seu tom de voz, Lydie constatou que ele se sentia grato a Julia
pelo seu entusiasmo.
– Bem, fomos de barco, mas, sim… as distâncias lá são
muito diferentes. Qualquer viagem de Paris a outro ponto da
Europa é pequena. Vão passar uns tempos maravilhosos.
– Vai ser ótimo! – exclamou Michael, olhando para Julie.
Ela não disse nada, limitou-se a sorrir-lhe. Michael tentava
montar uma caixa de cartão. A imagem do calmeirão do marido
– um ás em qualquer campo de basquetebol, mas um desajeitado
no que tocava a qualquer coisa vagamente mecânica – a tentar
transformar uma folha de cartão canelado numa caixa que iria,
na verdade, conter os seus pertences, fez Lydie rir.
– Olha, deixa-me ajudar – sugeriu ela, dobrando as abas,
pondo fita-cola sem tirar sequer as luvas.
– Mas que mulher! – exclamou Michael, baixando-se para
a beijar.
– É única – concordou Julia. – Depois de ter ganho a sua
primeira corrida no autódromo de Watkin’s Glen, o pai disse
que ela podia fazer fosse o que fosse. Lembras-te daquele belo
jantar que tivemos juntos depois disso?
– Claro – respondeu Lydie, estremecendo com a recordação.
Tinham bebido champanhe e depois do jantar o pai comprara-
-lhe um charuto. Conseguia recordar-se perfeitamente dos
pais: os sorrisos orgulhosos, o sorriso de menina da mãe, a
forma ausente como o pai estendera a mão para tocar no ombro
de Julia. Lydie morria só de pensar que Margaret Downes
levara o carro à oficina para uma segunda pintura em seis
meses, que Neil estava já apaixonado por ela. A expressão feliz
no rosto do pai nessa noite, tão cheia de amor, fora afinal para
Margaret.

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SEGREDOS DE PARIS

Lydie montava uma outra caixa inclinada. Michael sen-


tou-se ao seu lado, tirando-lhe a fita-cola das mãos e segurou-
-as; sabia o que aquela recordação significava para ela. Julia não
disse nada, observando apenas. Começara a chorar mas deti-
vera-se. Lydie libertou as mãos das de Michael, cortou um
bocado de fita-cola, fechou uma junção. Cada fenda que selava,
cada caixa que montava, deixava-a mais perto de partir. E, de
certa forma, a ideia de deixar o local onde o pai morrera, e a
cena do crime, cobria-a de fatalidade. Sentia-se desorientada
com uma profusão de assuntos inacabados.
– Um ano em Paris – notou Julia. – Não consigo imaginar
qualquer outro casal que o pudesse apreciar mais do que vocês.
Mas não era isso que estava a acontecer, pensava Lydie
agora, entrando no imenso pátio da biblioteca. Com uma opor-
tunidade daquelas, julgara que seriam o par mais frívolo de
Paris. Mas a alegria de Michael transformara-se em paciência,
aguardando que Lydie recuperasse o espírito por que ele se
apaixonara. Até ao presente, isso não acontecera. Desde que
chegara a Paris, Lydie sentia erguer-se um fosso entre ela e
Michael e nada podia fazer quanto a isso.
Antes de uma corrida, Lydie tinha sempre uma visão. Num
instante, via a colisão, o capotamento, e observava-se a si própria,
paralítica, num hospital. E esse facto levava-a a aprimorar a
sua concentração, a ter um extremo cuidado e conduzir com
mais segurança. Agora, caminhando entorpecida pelas ruas de
Paris, era como se a colisão tivesse acontecido e ela nem sequer
a tivesse antecipado.

– Por que razão ninguém nos diz que é dia em Paris até à meia-
-noite? – perguntou Michael McBride, observando Lydie a
fazer o jantar. Estavam na cozinha do seu apartamento Belle
Époque, com vista para a Pont de l’Alma. Um frango a assar
crepitava no forno.

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– Não é nada meia-noite – retorquiu Lydie, rindo. – São


dez e um quarto e o Sol está a pôr-se.
– Lydie! – atalhou Michael, sentindo-se impaciente mas
prometendo manter-se calmo. – Acho que não estás a perceber
onde pretendo chegar. O que quero dizer é que o Sol já se pôs
há duas horas em Nova Iorque. É algo diferente, e acho que é
espetacular.
– Paris fica mais a norte que Nova Iorque – comentou Lydie.
– Nova Iorque está, na verdade, no mesmo paralelo que Roma.
Michael deixou a conversa por ali. Se abrisse novamente
a boca sabia que Lydie voltaria com uma outra refutação. Agora
passavam a vida a desentender-se. Às vezes chegavam a ter
grandes discussões. Como no dia anterior, quando Michael
pedira a Lydie que se encontrasse com ele no Chez Francis,
para jantar, e ela se queixara amargamente de sentir saudades
de quando iam buscar comida chinesa e a seguir Michael acu-
sara-a de tentar, deliberadamente, não desfrutar do ano deles
em Paris e de estar sempre a falar nos crepes chineses.
No entanto, olhando para ela agora, sentiu uma onda de
amor por Lydie. Ela movimentava-se pela cozinha com uma gra-
ciosidade inconsciente, uma ligeira expressão carrancuda no rosto
quando se concentrava a preparar as refeições. Ele encontrava
aquela mesma expressão sempre que ela acelerava na condução.
Parecia delicada, com a tez pálida e o cabelo fino avermelhado,
com laivos dourados, mas Michael via-a sempre como um tigre:
forte, sempre em movimento, preparada para qualquer coisa.
– Hoje conheci uma pessoa num café – comentou Lydie.
– Uma americana.
– Ai sim?
– Conversámos durante algum tempo e fiquei a pensar o
quanto tenho sentido a falta disso… Ter alguém com quem
falar.
– Que nome dás ao que estamos a fazer? – perguntou
Michael. – Um filme mudo?

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SEGREDOS DE PARIS

Lydie sorriu e pousou a colher de pau. Michael pegou-lhe


na mão e conduziu-a à sala de estar. Ainda se sobressaltava quando
se deparava com os móveis que durante sete anos haviam decorado
o apartamento deles em Nova Iorque e agora via-os ali, do outro
lado do Atlântico, em Paris. Lá estava a mesa de mogno baixa,
a paisagem marítima pintada pela mãe de Lydie, o sofá forrado
com um padrão a que Lydie chamava «Ponto Florentino», a pol-
trona horrível que o pai de Michael oferecera ao filho no seu tri-
gésimo quinto aniversário. Lydie, como especialista em decoração
de ambientes, tinha um gosto fantástico e custava muito a Michael
infligir-lhe uma monstruosidade daquelas. Mas ela dissera que
não valia a pena ferir os sentimentos do velhote.
– Chama-se Patrice d’Origny – contava Lydie. – Casou
com um francês e vive cá permanentemente.
– Porque não os convidas para jantar? – sugeriu Michael.
– Às tantas – respondeu Lydie. Embora a sua voz ainda
soasse a desalento, os olhos pareciam alegres como Michael já há
algum tempo não os via. Após oito anos de casamento, a imagem
dos sorridentes olhos cor de avelã, emoldurados por grossas pestanas
louras, ainda o deixava com um arrepio na espinha. Aquela excitação
entristecia-o porque era a única coisa importante entre eles que
ainda parecia verdadeira. Apetecia-lhe beijar a mulher, mas ela
mostrava-se sempre concentrada em alguma coisa.
– Porquê «às tantas»? – perguntou ele. – Porque não os
convidas simplesmente?
Lydie inclinou ligeiramente a cabeça, como se tentasse per-
ceber a sua própria hesitação. Mas esse momento passou rapi-
damente.
– Porque não? – respondeu.
Pelo tom de voz indiferente, Michael duvidou que um
jantar com os D’Origny viesse a acontecer. Amaldiçoou-se pelo
desapontamento que sentia por Lydie. Passara por tudo ao seu
lado: a tristeza, o luto, o esforço para compreender. Porém,
parecia não haver um fim. Talvez não se sentisse tão frustrado

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LUANNE RICE

se o contraste não fosse tão grande. A antiga Lydie contra a


nova Lydie. Gostava mais da antiga Lydie.
Imaginava-a agora num dia de outubro em Lime Rock, a
antiga Lydie a acelerar na pista. Usava o fato-macaco de piloto
e os óculos de sol e agarrava o volante com uma intensidade
aterradora. «Tens medo?», perguntava-lhe ela, desejando cer-
tamente que sim. Mas ele não tinha. Estava fascinado. Adorava
andar com ela de carro quando Lydie puxava pela carrinha Volvo
até aos duzentos e vinte quilómetros. Após doze quilómetros
na 112, Michael saiu da estrada e ali, atrás de um celeiro encar-
nado, Lydie despiu o fato-macaco, a rir porque não trazia nada
por baixo, querendo diverti-lo. Mas divertimento não era o que
ele se recordava de ter sentido. Lembrava-se de a ter puxado
contra si, de a ter beijado, de senti-la a tremer com a aragem
outonal e de fazer amor com ela no chão frio.
E as palavras «chão frio» fizeram Michael pensar em Neil
Fallon. Ele e Neil davam-se muito bem, mais como amigos do
que como sogro e genro. Mas Michael atribuía as culpas a Neil
pela transformação de Lydie. Neil vivera toda a vida como bom
marido e bom pai, um homem de negócios mediano que se
preocupava mais em jantar em casa todas as noites do que em
fazer fortuna. Tinha um encanto diabólico. Certa vez, fizera
uma aposta, perante testemunhas, em como conseguia vender
a Dennis Lavery, que estava bêbado, o seu próprio carro. E assim
aconteceu. Com a sua figura elegante e cabelo preto revolto,
Neil era tão bem-parecido que até Michael havia reparado.
Pertencia ao Lions Clube e ao Knight of Columbus, ia regu-
larmente à missa e podia ser visto a passar o cesto das esmolas
na missa das nove na igreja de St. Anthony. Na altura em que
começou a passar algum tempo com Margaret Downes tor-
nara-se um apoio tão grande que Julia e Lydie nunca questio-
naram a sua ausência ou a inquietação. Portanto, como podia
Michael culpar Lydie por desmoronar quando Neil, de língua
mordaz e olhar meigo, se tornara no próprio demónio?

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SEGREDOS DE PARIS

Michael sabia que era a única pessoa a quem Neil falara


acerca de Margaret Downes. Duas noites antes do tiroteio,
Michael deixou o seu carro na oficina de Neil e ficou por ali à
espera que ele lhe desse boleia para casa. Carros amolgados ou
desfeitos preenchiam as seis boxes de reparação. Maçaricos de
soldar vociferavam. Um cliente irado debruçava-se sobre o
balcão, a regatear o preço para substituir o guarda-lamas do seu
Ford LTD.
– Ainda não posso sair, mas vamos dar uma volta – propôs
Neil, franzindo o sobrolho, deixando o seu gerente dinamarquês
a acalmar o cliente.
Fizeram o test drive de uma pickup Ford, seguindo pela
Zerega Avenue até à Hutchinson River Parkway. Neil conduzia
descontraidamente, brincando com o volante e acelerando de
uma forma que lembrava a Michael Lydie. Dirigiram-se para
norte, em direção ao Connecticut.
– O que aconteceu? – perguntou Michael, passado algum
tempo. Nunca vira Neil manter silêncio por mais de um minuto
e isso preocupou-o.
– Estou apaixonado – respondeu Neil, olhando em frente.
– Por alguém… – Michael tentava disfarçar a sua surpresa.
– Por alguém que não é a Julia – clarificou Neil, acabando
o pensamento de Michael por ele.
– O que vai fazer? – perguntou Michael, sabendo perfei-
tamente que, como católico, Neil nunca poderia divorciar-se
de Julia, que Neil estava a falar de um pecado mortal, que a
situação era impossível.
– Absolutamente nada. Ela não deixa o marido – respondeu
Neil num tom de voz desolado. – Quero ver Margaret esta
noite, vou pedir a um dos funcionários que te leve a casa.
– Não há problema – disse Michael. – Eu apanho o metro.
– Quero que lhes digas que me deixaste a trabalhar na oficina.
– Quer que minta a Lydie e a Julia por si? – perguntou
Michael, deixando tão claro quanto possível que achava que

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LUANNE RICE

Neil descera muito baixo. Estaria Neil a sugerir que, se Margaret


deixasse o marido, ele deixaria Julia?
– Quero – respondeu Neil, parecendo distante, sem oferecer
a menor resistência. – Depois disparou um olhar sinistro a
Michael – Se algum dia fizeres o mesmo a Lydie, mato-te.
Era nisto que pensava Michael enquanto olhava para a
mulher no seu apartamento em Paris: o pai dela a dizer-lhe, a
si, que o matava se algum dia a traísse. Na altura pareceu estranho
a Michael que Neil o ameaçasse, ainda que não fosse sua intenção
matá-lo. Mas demonstrava que matar estava nos seus pensa-
mentos. Dois dias depois, disparou contra Margaret e contra
si próprio.
– Já sei – sugeriu Michael a Lydie. – Pega no telefone, liga
à tua nova amiga e convida-a para almoçar amanhã.
– Agora? – surpreendeu-se Lydie.
– Claro! Antes que se esqueçam uma da outra – ironizou
ele, pois duvidava que ela o fizesse de moto próprio.
Lydie foi à mala, encontrou o cartão de visita de Patrice,
marcou um número no telefone. Michael afastou-se até à janela.
Ouviu Lydie falar em francês, depois em inglês. Buzinas estron-
deavam na Avenue Montaigne. Os barcos que faziam passeios
turísticos atarefavam-se no rio Sena, mesmo por baixo da janela.
Os seus holofotes lançavam reflexos pelas paredes brancas, um
tremeluzir amarelo pálido, cor de pêssego e cinza-prateado.
– Ela convidou-me para ir a casa dela – disse Lydie, indo
ao encontro de Michael. – Amanhã. O apartamento fica na
Place des Vosges.
– Fantástico! – exclamou Michael, sentindo uma mistura
de sentimentos: alívio, como se esta nova amiga pudesse pro-
porcionar a Lydie algumas das coisas que Michael cada vez
mais se achava incapaz de lhe oferecer, e esperança. Esperança
que isso a pudesse fazer feliz. Imaginou-a a dirigir-se no dia
seguinte à Place des Vosges e reviu todos os parques maravilhosos
e monumentos por que passaria. O Grand Palais, os Campos

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