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Mudança estrutural nas ciências...

237

Mudança estrutural nas ciências humanas


humanas*::
diagnóstico e sugestões

Structural change in human sciences:


diagnosis and suggestions

WOLFGANG WELSCH**
–––––––––––––––––––––––––––– — ––––––––––––––––––––––––––––

RESUMO – A mudança de paradigma das Geisteswissenschaften diz respeito a sua


forma interna, a sua posição em relação às outras ciências, bem como a novas tarefas em
um mundo transformado. A definição interna das Geisteswissenschaften não é elaborada
com base em um critério invariável – como Geist; sua coesão se estabelece através de
semelhanças de família. Externamente, sua separação inequívoca das ciências naturais
tornou-se obsoleta e suas fronteiras em relação às ciências sociais e da cultura são, de
todo modo, fluidas.
A inserção institucional das Geisteswissenschaften deveria tornar-se claramente
transdisciplinar – sob pena de não restar senão antiqüismo e limitação. As
Geisteswissenschaften fariam bem em se confrontar com as diversas formas da pluralidade
moderna, o que epistemologicamente significa desenvolver um relativismo esclarecido.
Elas deveriam, ainda, libertar-se da velha ficção de culturas homogêneas e voltar-se
para a transculturalidade presente e futura.
Descritores – Ciências humanas; transdisciplinariedade; relativismo esclarecido.
ABSTRACT – The paradigm change in the Geisteswissenschaften tells about its internal
form, its position in relation to the other sciences, as well as new tasks in a changed
world. The internal definition of the Geisteswissenschaften is not created based on an
invariable criterium-like Geist; its coesion is established by family similarities. Externally,
its unequivocal separation from the natural sciences became obsolete, and its frontiers
with the social sciences and culture is, somehow, fluid.
The institutional insertion of the Geisteswissenschaften should become clearly
transdisciplinar, under the penalty of remaining only archaism and limitation. The

* A expressão ciências humanas traduz o termo alemão Geisteswissenschaften, que significa,


literalmente, ciências do espírito, correspondendo àquilo que se designa em português como
ciências humanas. Optamos por manter no texto o termo original para deixar clara sua inserção
na tradição alemã (NT).
**Professor de Filosofia na Friedrich-Schiller-Universität Jena, Jena, Alemanha. http://
www.uni-jena.de/welsch/ E-mail: [email protected]
Artigo recebido em: janeiro/2007. Aprovado em: março/2007.

Educação
Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 2 (62), p. 237-258, maio/ago. 2007
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Geisteswissenschaften should face the different forms of modern plurality, what means,
epistemologically, to develop a clear relativism. They still should free themselves from
the old fiction of homogenic cultures and turn to the current and future transcultural
aspects.
Key words – Human sciences; transdisciplinarity; enlightened relativism.

––––––––––––––––––––– — –––––––––––––––––––––

Quem hoje leciona Filosofia, oferece alimentos aos outros


não pelo fato de estes lhes agradarem,
mas para mudar-lhes o gosto.
(LUDWIG WITTGENSTEIN, Vermischte Bemerkungen, 1931)

I. A SITUAÇÃO
1 Geisteswissenschaften: Ciências – “do espírito”?
Hoje ninguém sabe dizer com segurança se ainda existem
“Geisteswissenschaften”. Isso, porém, é menos grave do que pode
parecer. Em primeiro lugar, porque tais ciências continuam exis-
tindo, mesmo que não sejam mais denominadas “Geisteswissenschaften”.
“Geisteswissenschaften” é, primordialmente, uma expressão classificatória
e não uma expressão definitória. Em segundo lugar, a renúncia ao termo
não seria grave, uma vez que a exigência que estava ligada a essa
denominação – isto é, de que essas ciências deveriam tratar do “espírito”,
ou pelo menos representá-lo – tornou-se, há muito tempo, duvidosa. Tais
dúvidas levariam, por exemplo, a uma alegação em favor da “expulsão do
espírito das Geisteswissenschaften”.1 Porém, mesmo essa alegação não
exige, naturalmente, – já que seria ilusório – uma eliminação, mas propõe
criticamente uma mudança de paradigma dessas ciências. Para onde isso
poderia se encaminhar hoje? Para onde isso se encaminhou – clan-
destinamente – há muito tempo?
Aquilo que se denomina na Alemanha “Geisteswissenschaften” tinha,
na França, desde o início, um outro nome: “Sciences humaines”. Mas
também essa denominação era uma hipoteca. Foucault exortou a sua
demolição, propondo libertar as ciências humanas do homem e substituí-
las pelas “contraciências”, a Psicanálise, a Etnologia e a Lingüística, que
se caracterizam justamente por não recorrer ao homem como princípio e
fim.2

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2 Geisteswissenschaften versus ciências naturais


No ambiente lingüístico anglo-saxão, a expressão padrão para
Geisteswissenschaften é “Humanities”. Isso, naturalmente, não é a
expressão de uma primazia do Humanismo ou da Antropologia, mas
uma simples tentativa de representar a profunda oposição entre
Geisteswissenschaften e ciências naturais. As últimas são, no âmbito anglo-
saxônico, as “Sciences”. Em torno do final do século XIX, havia se tornado
comum na Europa separar esses tipos de ciências e compreender sua
diferença em termos de ciências compreensivas em oposição às ciências
explicativas – e, mais tarde, como ciências “brandas” em oposição
às “duras” e pseudociências em oposição às de verdade.3 Desde então,
passou a ser visto como um anacronismo a não-separação entre
Geisteswissenschaften e ciências naturais.
Stanford é uma das poucas universidades de renome em que uma tal
separação nunca teve lugar. Lá ainda existe uma “School of Humanities
and Sciences”. O que significa isso? Eles não acordaram a tempo de
acompanhar o desenvolvimento, perderam a era das “duas culturas”?4 No
início dos anos 90, cogitou-se recuperar a diferença. Mas a discussão levou
a um resultado surpreendente. Percebeu-se que o que há duas décadas
parecia irremediavelmente antiquado, hoje poderia ser de vanguarda.5 Por
quê?
Desde os anos 60, a teoria da ciência passou a se deparar cada vez
mais com a circunstância, de início estranha, de que o desenvolvimento
das ciências naturais não ocorre de fato como os cientistas gostam
de imaginar – a saber, de forma racional, linear e nos moldes de
um desenvolvimento sobre uma base unificada –, mas que tem surpre-
endentes semelhanças com os processos de desenvolvimento nas
Geisteswissenschaften. A obra Die Struktur wissenschaftlicher
Revolutionen, de Thomas S. Kuhn, foi revolucionária para essa
compreensão.6 Kuhn demonstrou que a história das ciências naturais, assim
como a história das Geisteswissenschaften e a das artes, é caracterizada
por uma sucessão de períodos revolucionários, nos quais é alterada a base,
e de períodos cumulativos, nos quais se prossegue o trabalho sobre a base
alcançada. E Kuhn confessa que, para essa nova visão do desenvolvimento
das ciências naturais, inspirou-se na “escritura da história da literatura, da
música, das artes plásticas, da política e de muitas outras atividades
humanas” – em resumo, a partir de um olhar sobre as humanities. Nessas
esferas, a “periodização por rupturas revolucionárias de estilo, gosto e

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estrutura institucional” pertence há muito aos “instrumentos-padrão”.7


Ele não fez nada além de transferir esta perspectiva mais típica das
Geisteswissenschaften para o campo das ciências naturais.8 Desse modo,
Kuhn coloca em dúvida a divisão convencional entre Geisteswissenschaften
e ciências naturais. O modelo de Stanford é, portanto, talvez retardado
ideologicamente, mas avançado em termos de realidade.
Ora, se a própria fronteira entre Geisteswissenschaften e ciências
naturais não é nítida, então é ainda menos provável que as
Geisteswissenschaften em si possuam uma definição nítida, unívoca.

3 Ausência de uma definição unívoca das


Geisteswissenschaften – semelhanças de família
E de fato: Eu afirmo que nem o campo nem o método das
Geisteswissenschaften é unívoco.9
Primeiramente, o campo das Geisteswissenschaften não é claramente
delimitável. Sem dúvida, a Natureza faz parte dos objetos também das
“Geisteswissenschaften” – por exemplo, da Teoria literária, da Filosofia ou
da História da cultura. Pois a Natureza se revela como um tema da
Literatura; além disso, ela imprime sua marca nas mentalidades – Hegel
fez uma referência geral ao “fundamento geográfico da História universal”
e exemplificou-o associando a singularidade do espírito grego com a
fisionomia geográfica do país.10 A História cultural, por fim, não nos
mostra apenas a influência de diferentes concepções em termos de História
das idéias sobre nossa imagem da Natureza (como a visão cristã da
natureza, que permitiu fazer da Terra sua súdita, ou a concepção romântica
da natureza, que possuía uma função-chave para a nossa percepção das
montanhas), mas demonstra também que conseqüências reais essas
concepções têm sobre a natureza hoje existente – pense-se nos efeitos
turísticos, em parte destrutivos, do moderno interesse pela natureza.
Poder-se-ia, naturalmente, objetar que tais referências findam no mais
tardar na fronteira da Natureza explorada pelas ciências naturais. É assim
que as Geisteswissenschaften, então, nada mais têm a ver com essa
Natureza? Não, isso não é verdade. Não apenas teorias das ciências
naturais, como a Teoria quântica ou a Teoria da relatividade, tiveram
consideráveis efeitos sobre os nossos padrões de compreensão como um
todo; hoje, um especialista em Ética deve ter conhecimentos sobre a
estrutura e possibilidades de manipulação do DNA, filósofos especialistas
em Cognitive Science trabalham em parceria com especialistas em
Neurobiologia e mesmo o estudioso de Estética deve considerar as

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mudanças tecnológicas da realidade se quiser julgar a situação estética da


sociedade ou as referências da arte atual à Natureza. Enfim: Também o
estudioso das Geisteswissenschaften, em muitos casos, não tem como
avançar sem conhecimentos em ciências naturais, sem adentrar no seu
processo de conhecimento. As coisas não podem ser simplesmente ser
divididas em grupos de ciências. Este é o ponto crucial.11,12
Um simples olhar sobre os métodos utilizados nas Geisteswissenschaften
ensina que também não existe uma clara possibilidade de delimitação
metodológica das Geisteswissenschaften.13 A pesquisa histórica exige
outros procedimentos do que a verificação sistemática, métodos herme-
nêuticos opõem-se aos desconstrutivistas e mesmo no interior de um único
modelo metodológico existem divergências consideráveis. O que a Her-
menêutica de Gadamer e a de Rorty têm de fato em comum além do mesmo
nome?
Em contrapartida ao pluralismo metodológico, houve, certamente,
diversas tentativas de estabelecer um método unificado para as
Geisteswissenschaften – lembre-se aqui do Positivismo, da Hermenêutica,
da Teoria Crítica, do Estruturalismo ou da Teoria dos Sistemas –, mas o
resultado paradoxal de tais esforços de unificação é que eles mesmos
ocorrem de maneira plural, recriando e potencializando ironicamente a
situação à qual pretendem dar um fim.
Enfim, os contornos das “disciplinas” particulares no campo das
Geisteswissenschaften são bem mais abertos do que sua delimitação
institucional sugere. Não existem definições claras das disciplinas, mas
quiçá definições pragmaticamente razoáveis na medida em que elas
consideram a falta de nitidez nos contornos como produtiva e não como
problemática. A diversidade de métodos – atravessando as áreas e
disciplinas – reforça essa visão. Não existe uma definição unívoca de Teoria
literária, Psicologia ou Filosofia. Elas não formam cada uma delas uma
disciplina, mas um leque de disciplinas.14 Talvez, a tarefa específica das
Geisteswissenschaften seja não negar e não coibir essa pluralidade, mas
compreendê-la e tê-la em conta.
As Geisteswissenschaften não são – em resumo – nem internamente
subdivididas com precisão, nem têm uma delimitação clara em relação ao
exterior. Sua interdependência se deve não à referência a um elemento
aparentemente unificador – como “espírito” –, mas a diversas sobre-
posições e parentesco entre as disciplinas. Elas são articuladas de uma
maneira definida por Wittgenstein através do conceito de “semelhanças de
família”.15

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Inspirados em uma passagem de Wittgenstein, poderíamos inclusive


dizer o seguinte: Ao invés de alegar a existência de alguma coisa que seja
comum a tudo aquilo que denominamos “Geisteswissenschaften”, eu digo
que não existe nada em comum entre essas manifestações para que
possamos usar para todas a mesma palavra, – mas que elas têm, em diversos
aspectos, um parentesco umas com as outras. E, graças a esse parentesco,
ou a esses parentescos, as denominamos todas “Geisteswissenschaften”.16
(Eu apenas substituí “língua” por “Geisteswissenschaften na citação.)
Partindo desse diagnóstico, eu gostaria, a seguir, de examinar duas
questões mais de perto. Primeiramente, quero mostrar que seria benéfico
para as Geisteswissenschaften não mais ancorar nem compreender o seu
design no sentido de áreas ou disciplinas separadas, mas no sentido de uma
transdiciplinaridade (II). Posteriormente, quero defender a tese segundo
a qual a tarefa cultural das Geisteswissenschaften hoje consiste em
reconhecer e tornar compreensíveis estruturas da pluralidade – no plano do
sujeito, assim como no plano do objeto, em relação à própria ciência, assim
como com vistas a formas de vida (III).

II. DAS DISCIPLINAS À INTERDISCIPLINARIDADE


1 A moderna perspectiva da separação
A perspectiva ainda dominante de áreas e disciplinas claramente
delimitadas corresponde à perspectiva das separações, estabelecida pela
Modernidade. Anteriormente, na Antiguidade e na Idade Média, sempre
se havia visto transições, articulações e interdependências, dava-se
importância aos vínculos, os quais – ainda que não fáceis de descobrir –
criavam um conceito entrelaçado de mundo altamente efetivo.17
Esses vínculos foram conscientemente cortados em pedaços por
Descartes, com sua doutrina das duas substâncias – res cogitans e res
extensa. A seus olhos, isso era um pressuposto fundamental para o início
de uma ciência precisa. Desde então, uma perspectiva das separações
define a Modernidade. Similarmente – e de modo muito efetivo – Kant
estabeleceu uma tríade de diferentes legislações, as quais separam as áreas
do Estudo da natureza, da Moral e da Estética claramente umas das
outras.18 Essa foi a base para o modelo padrão daquilo que se denominou
de Max Weber até Habermas como “diferenciação” e se registrou como
um decisivo ganho de racionalidade na teoria da Modernidade. O campo
do saber deve ser claramente organizado e suas partes devem ser claramente

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diferentes. Interdependências também serão tematizadas, mas apenas em


um segundo momento, pois elas são consideradas como secundárias.

2 A visão moderna em entrelaçamentos


Pesquisas mais recentes em Teoria da racionalidade demonstraram,
entretanto, que essa separação, na verdade, é um engano. Entrelaçamentos
perpassam a departamentalização tanto no detalhe como no todo.19
As Philosophische Untersuchungen de Wittgenstein, publicadas
postumamente em 1953, significaram a ruptura. Wittgenstein expôs um
design da racionalidade que, de um lado, atestava suficiente precisão às
racionalidades em particular – que ele denomina “jogos de linguagem” –,
de outro lado, chamava a atenção para imprecisões constitutivas das
mesmas. Ele expressou, na fórmula, que ser “impreciso” não significa de
modo algum que seja “inaproveitável”.20 E não é apenas assim que as
margens dos campos da racionalidade não sejam nítidas, mas também que
existem conexões entre os campos. Alguns elementos podem ser
encontrados em campos bem diferentes – freqüentemente com significado
divergente. “A linguagem é um labirinto de caminhos. Você entra por um
lado e consegue se orientar; você chega por outro lado ao mesmo lugar e
perde a orientação.21
Wittgenstein sabia o quanto essa perspectiva era escandalosa – no
contexto de uma cultura dominada pela visão moderna de separação.22
Tanto na linha de Wittgenstein, como também independentemente dessa,
diversos teóricos desenvolveram nos últimos dez anos uma imagem da
racionalidade que contempla a ótica dupla de delimitações no primeiro
plano e entrelaçamentos subjacentes. Isso foi feito, por exemplo, por
Goodman e Davidson no campo da Filosofia pós-analítica e por Derrida e
Deleuze no âmbito do Pós-estruturalismo. Desde então, tornou-se cada vez
mais claro que entre as diversas racionalidades não podem ser demarcadas
fronteiras herméticas – conforme se esperava na Modernidade, com o
estabelecimento e a operacionalização da diferenciação –, e sim que essas
apresentam entrelaçamentos até o seu âmago. Assim, a racionalidade
cognitiva é fundamentalmente perpassada por pressupostos estéticos, à
racionalidade estética são inerentes opções morais e racionalidade moral
não é concebível sem momentos estéticos e nem realizável sem pro-
cedimentos cogntivos. Ao continuar seguindo a perspectiva convencional
de separação, desfigura-se a estrutura da racionalidade, ao invés de se
explicitá-la e praticá-la adequadamente. Seria importante abandonar o
dogma da separação, terminar com o pensamento dissecante.

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3 Das disciplinas à transdisciplinaridade


A congruência da perspectiva ainda dominante das disciplinas com a
antiga perspectiva de separação em questões da racionalidade é evidente.
As disciplinas devem corresponder aos tipos de racionalidade. Esses são
concebidos de modo tão monádico e territorial como aquelas. Inver-
samente, a nova compreensão do entrelaçamento das racionalidades exige
uma mudança correspondente da concepção das disciplinas científicas.
Também elas não são, na verdade, fechadas, mas definidas por entre-
laçamentos e perpassadas por transições.23 Isso implica em conseqüências
de largo alcance para a organização da ciência. A segmentação disciplinar
em especialidades se torna quebradiça. Doravante há que se organizar as
especialidades não mais em termos de disciplinas, mas transdiscipli-
narmente.
Tal exigência não chega a ser cumprida através do conceito de
interdisciplinaridade. Esse conceito se baseia ainda na concepção de
disciplinas como domínios independentes – apenas que esses devem ainda
ter algo a dizer um ao outro. O princípio de separação não é colocado em
dúvida pela interdisciplinaridade, apenas há uma tentativa de se atenuar
algumas de suas conseqüências. A insuficiência da separação é percebida
nas subjacências e o desejo de libertar-se do mal-estar correspondente se
manifesta através de eventos interdisciplinares. Mas interdisciplinaridade
permanece como algo artificial, secundário; ela faz a gentileza de aparecer,
mas isso é sempre tarde demais, ela vem se somar às disciplinas. Toda a
forma de organização da interdisciplinaridade mostra isso: Representantes
de diferentes especialidades se encontram por um determinado período,
por boa vontade, no sentido de um ideal humanístico de educação, em
função de interesses muito diferentes, etc. – eles trocam idéias e depois
voltam para seus nichos separados em disciplinas como se nada tivesse
acontecido. – E nada aconteceu, realmente.
A característica de entrelaçamento das racionalidades exige a
transição para uma perspectiva sob a forma da transdisciplinaridade.
Apenas a transdisciplinaridade permite explorar legitimamente uma disci-
plina. Somente assim pode-se então realizar as esperanças legítimas da
interdisciplinaridade. Esse é o estado do conhecimento hoje.24
Instituições de pesquisa e universidades não deveriam mais classificar
o campo do conhecimento conforme áreas de hegemonia territorial,
domínios, disciplinas, especialidades, e sim elevar a transdisciplinaridade
à categoria de princípio estrutural. Desde o início dever-se-ia fazer valer a

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constituição transdisciplinar de fato dos conteúdos disciplinares. Apenas


assim se faria a transição da racionalidade de ontem para a racionalidade
de hoje, ou da simples racionalidade para a razoabilidade. Enquanto não se
assumir a referida mudança tudo pode ficar como está – e continuar a
decrescer, como acontece. Pode parecer compreensível que se relute em
corrigir o princípio disciplinar de organização da pesquisa, assim como do
ensino universitário conforme a visão transdisciplinar. Mas essa não seria
apenas a tarefa, como também a chance das Geisteswissenschaften.
Também haveria a possibilidade de se pensar como que em duas vias:
primeiro um estudo básico organizado em disciplinas e depois uma
complementação transdisciplinar. Para isso, seria necessário iniciar uma
abertura correspondente já no estudo básico e de jeito algum bloqueá-la.
Isso não pode ser alcançado com um “Studium Generale”. As disciplinas
particulares deveriam, isso sim, ancorar a transdisciplinaridade desde o
início em seu próprio programa.25

III. PLURALIDADE – UM ENFOQUE DE TAREFAS DO PRESENTE


Se acabei de apontar para uma perspectiva de mudança institu-
cional, agora tentarei denominar um problema específico atual das
Geisteswissenschaften. Ele é caracterizado pela pluralidade. Eu gostaria
de esclarecer três questões: 1. O que quer dizer pluralidade? 2. Em que
medida essa se constitui como uma temática específica e corrente das
Geisteswissenschaften? 3. Por que a pluralidade extracientífica, cultural,
também é um tema para as Geisteswissenschaften, que especialmente hoje
– em uma situação de transculturalidade – lhe impõe tarefas especiais?

1 “Pluralidade”
“Pluralidade” designa, conforme sua definição, uma situação de
diferenças radicais. “Radical” significa que se tratam de diferenças
fundamentais, ou seja, não de diferenças sobre uma base comum, mas de
diferenças que afetam a base, que vão até as raízes. Com isso não se afirma
que as configurações que são caraterizadas por essa pluralidade seriam
heterogêneas em cada um de seus elementos – pelo contrário, existem
também pontos em comum entre elas –, mas que no seu núcleo elas são
heterogêneas. Elas têm diferentes pressupostos básicos.
Tal pluralidade – diferentemente do pluralismo morno, que se refere
apenas a uma diversidade sobre uma base única – se esboça hoje nos di-
ferentes níveis: tanto no interior como no exterior das ciências. Analisarei,

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primeiramente, a pluralidade imanente das Geisteswissenschaften,26 para


me dedicar posteriormente às questões referentes à pluralidade exterior,
especificamente cultural.

2 Pluralidade nas Geisteswissenschaften


a. Pluralidade de métodos
A pluralidade de métodos é uma constatação evidente nas
Geisteswissenschaften. Já fiz referência às oposições entre Positivismo e
Teoria crítica, Hermenêutica e Descontrutivismo ou Estruturalismo e Teoria
dos sistemas. Com ênfase nas especialidades, temos outras diferenças de
métodos respectivos. Hoje em dia, poucos negariam a legitimidade e o
caráter produtivo de tal pluralidade de métodos. Entretanto, existe uma
diferença entre simplesmente assumi-los pragmaticamente e realmente
compreendê-los em sua inevitabilidade. Essa deve ser a contribuição da
perspectiva a seguir.

b. Pluralidade de paradigmas
Mais fundamental do que a pluralidade de métodos é a pluralidade de
paradigmas.27 O que isso quer dizer? A grosso modo, pode-se caracterizar
o desenvolvimento da racionalidade moderna através de dois passos:
Primeiro: houve, recentemente, o surgimento – no sentido da “dife-
renciação” – de uma gama de formas singulares de racionalidade, as quais
procedem a uma definição autônoma de seu tipo de objeto e de seu âmbito
de validade e definem um conjunto específico de métodos a serem
seguidos, bem como critérios e objetivos a serem alcançados. Geralmente
se tem em vista três tipos de racionalidade com relação a essa diferencia-
ção: racionalidade cognitiva, racionalidade prático-moral e racionalidade
estética.
Segundo: ocorreu, então, o surgimento de diferentes paradigmas no
interior dos tipos de racionalidade assim diferenciados. Esses paradigmas
representam potencialmente – analogamente ao que faziam os tipos de
racionalidade – mais uma vez, conforme suas respectivas definições, todas
as dimensões da racionalidade. Eles definem de modo autônomo seus
objetos, suas áreas, seus métodos, seus critérios e seus objetivos. Em
conseqüência disso, confrontamo-nos, em cada uma das três áreas da
racionalidade distintas, com uma variedade de versões em conflito, cada
uma almejando dar conta da área da melhor forma. Isso implica, em

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primeiro lugar, um considerável aumento da pluralidade. Em segundo


lugar, está associada com isso uma mudança radical na relação das versões
da racionalidade: Os vários paradigmas não se encontram mais – como os
tipos de racionalidade diferenciados – pacificamente um ao lado do outro,
mas se lançam sobre o mesmo terreno e entram em disputa a respeito de
seu entendimento correto. Em razão disso, a pluralidade no nível de
pluralidade de paradigmas se torna uma questão realmente decisiva e
problemática. Isso chega inclusive ao ponto de os paradigmas colocarem
em questão a divisão triádica da racionalidade. Eles não apenas definem
suas respectivas dimensões da racionalidade (objetos, métodos, critérios,
objetivos) de modo diferente, mas essas definições levam conse-
qüentemente a diferentes opções em relação ao número e à delimitação dos
campos. Enquanto alguns paradigmas aceitam a tríade da racionalidade,
outros a colocam em dúvida. E enquanto alguns paradigmas se limitam a
um campo pré-definido, outros paradigmas sugerem outras delimitações
completamente diferentes. Puristas lógicos concebem o cognitivo de modo
estrito, contextualistas, pelo contrário, de modo vasto e discípulos de
Popper fazem questão de uma separação precisa entre ciência e arte,
enquanto discípulos de Kuhn e de Feyerabend consideram como espe-
cialmente produtivos os pontos em comum entre a ciência e as artes também
no aspecto da cognição.
Não apenas a configuração interna, mas também a delimitação
exterior das áreas, toda a organização do campo da racionalidade é, assim,
distintamente definida por diferentes paradigmas em virtude da plura-
lização dos paradigmas. Em outras palavras: Não existe, de agora em
diante, mais nenhuma pergunta que não seria respondida de forma diferente
por diferentes paradigmas – os quais são, em parte, radicalmente diferentes.
Encontramo-nos, de agora em diante, em qualquer lugar, à mercê das
conseqüências da pluralização dos paradigmas.28

c. Incumbência das Geisteswissenschaften:


Prática da pluralidade e relativismo esclarecido
As exposições teóricas sobre a racionalidade deveriam ter demons-
trado por que a situação das Geisteswissenschaften hoje é fundamental-
mente caracterizada pela pluralidade e por que as Geisteswissenschaften
devem levar em consideração essa pluralidade interna se não quiserem
recair nos critérios de racionalidade que surgiram dentro delas mesmas.
A tarefa das Geisteswissenschaften em relação a essa pluralidade
pode ser descrita de duas formas: Em primeiro lugar, elas não devem se

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esquivar dessa pluralização, não devem desrespeitá-la. Em segundo lugar,


elas devem fazer com que a pluralização seja compreensível e transparente,
introduzindo-nos e instruindo-nos nela.
aa. Consciência da pluralidade
Para alguns teóricos das Geisteswissenschaften, há muitas décadas, a
pluralidade vêm se impondo como um tema e uma matéria de estudo. Hans
Blumenberg designou o fato “de que nós vivemos em mais de um mundo”
como “a fórmula para descobertas responsáveis pelo alvoroço na Filo-
sofia de nosso século”.29 Ainda se poderia acrescentar: o alvoroço nas
Geisteswissenschaften como um todo. O pensamento moderno se enca-
minhou cada vez mais no sentido da percepção dessa pluralidade. Isso é
expresso por Nelson Goodman da seguinte forma: “O movimento se dá a
partir de uma única verdade e de um mundo já encontrado pronto em
direção ao processo de fabricação de uma multiplicidade de versões ou
mundos corretos e até mesmo conflitantes.”30
É certo que isso não corresponde aos anseios de todos – e alguns
colocam os anseios à frente da razão. Então, temos o ressurgimento de
programas anacrônicos, que nos prometem a libertação em relação à
pluralidade moderna – mas podendo apregoar isso apenas por ignorância e
pretensão. Tais promessas hiperbólicas de unidade deveriam ser submetidas
a controle por cabeças – ao invés de serem entregues ao entusiasmo de
alguns corações. E esse controle sempre revelará a pluralidade como a
constituição de fato da racionalidade. As Geisteswissenschaften fariam bem
em reconhecer essa estrutura, aperfeiçoá-la e operar com ela.
bb. Relativismo
Um passo adiante seria fazer uma análise transparente dessa estrutura
de pluralidade – com todas as suas conseqüências. Isso leva a um
relativismo esclarecido. Por quê?
Pluralidade significa diferença sem uma base última em comum. E
exatamente isso quer dizer “relativismo”. Pois se não há um fundamento
ou uma instância superior comum, então diferentes formações discursivas
com suas oposições são o fato mais elementar com que nos deparamos.
Naturalmente, “relativismo” continuará sendo visto como uma
palavra que suscita atração e repugnância. Entretanto, não existem motivos
para isso, uma vez que se tenha em vista a estrutura racional do relativismo.
Assim, devemos compreender mais profundamente em que consiste o
relativismo e em que ele não consiste. Então, pode-se demonstrar em que

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medida “relativismo” é um conceito sensato, contra o qual nada há e em


relação ao qual fórmulas de Cassandra não são indicadas.
O arcabouço lógico é o seguinte: A diferentes versões de mundo (no
sentido de Goodman) distinguem-se sobretudo por premissas distintas,
assim como por meios distintos com cujo auxílio elas organizam a
experiência. A validade das constatações feitas no interior de uma versão
de mundo é, então, relativa às premissas dessa versão: no contexto das
premissas escolhidas, as afirmações fazem sentido; no contexto de outras
premissas, não. Na ciência deve-se, portanto, sempre enunciar as condições
em função das quais uma afirmação adquire sua validade. Isso vale também
quando premissas de diferente origem são combinadas em um novo
paradigma. Somente um discurso que opere em termos da estrutura dupla
de sentenças e pressupostos das sentenças tem hoje o nível de cienti-
ficidade.
Essa relatividade significa então (conforme se diz freqüentemente e
talvez seja o seu temor) que tudo seja possível, tudo igual, tudo aleatório –
“anything goes”? Não, absolutamente.
Pois no interior de uma versão de mundo, independentemente de sua
complexidade, parece não se poder sustentar nada que seja aleatório. Aí
são, na maioria dos casos, escolhas entre verdadeiro e falso muito mais
possíveis. O que causa desconforto é outra coisa: que uma sentença, que é
sensata e correta em uma versão de mundo “A”, possa ser sem sentido ou
errada em uma versão “B”. Isso vale inclusive no interior das ciências
duras. Afirmações sobre massa que eram obrigatórias na Física newtoniana
são insustentáveis no âmbito da Teoria da relatividade. E fora da ciência é,
por exemplo, correta a afirmação de que o preto seja a cor do luto – mas
isso em nossa cultura; já no mundo árabe isso seria incorreto e, em um
sistema das cores ligado à arte, o preto é altamente significativo, mas a
afirmação acima seria um disparate, uma vez que uma qualificação como
“luto” não faz parte desse sistema.
Entretanto, esses exemplos mostram ao mesmo tempo o seguinte:
Quando se relativiza as afirmações para o seu sistema de referências
correspondente, então existe absoluta verdade e clareza. Apenas se não se
procede de modo relativizante, ocorrem confusões e surge a aparência
de algo aleatório ou indiferente. Em outras palavras: Não os relativistas,
mas os absolutistas – que renegam o contexto – fabricam o erro da
aleatoriedade. – É (como tantas vezes) o contrário do que se pensa. E o
correto seria revisar as idéias – nesse caso, basta pensar com rigor.

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Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 2 (62), p. 237-258, maio/ago. 2007
250 Wolfgang Welsch

Mas se, primeiramente, vale essa relacionalidade e se, em segundo


lugar, a pluralidade dos sistemas de referência – dos paradigmas – é
intransponível, uma vez que não existe um paradigma basal ou um
metaparadigma que possa realmente fundar ou abarcar todos os
paradigmas,31 então resulta em conseqüência, como último nível de
entendimento, aquilo que em um bom sentido, sentido racional, se pode
denominar “relativismo”. Os diversos sistemas de referência só podem ser
reunidos entre si em um debate crítico, mas não reduzidos, organizados,
etc. em nome de uma instância basal ou de uma meta-instância. Um debate
entre os paradigmas permanece necessário, mas – na medida em que os
paradigmas apresentam realmente diferenças fundamentais – levam talvez
a correções isoladas e a modificações, mas não à redução da diversidade
para um singular. Portanto, resta o relativismo esclarecido como último
nível de entendimento.
E um tal relativismo tem seu próprio rigor. Ele não tem nada em
comum com uma “lengalenga de tudo pode ser”, isso justamente porque os
paradigmas em particular também são submetidos a um controle de sua
consistência e produtividade, sendo que o que é reprovado por esse controle
é eliminado, não sendo mais, então, um aspirante no interior da pluralidade
(poderia talvez voltar a ser em um contexto modificado e sob uma nova
forma). Assim, tampouco é emitida por um tal relativismo uma licença de
aleatoriedade – não é absolutamente assim que se possa afirmar toda e
qualquer coisa, mas apenas aquilo que faz sentido no contexto das rígidas
condições de racionalidade dos paradigmas particulares.32
As Geisteswissenschaften deveriam trabalhar numa elaboração clara
desse relativismo, que se origina conseqüentemente da constituição
racional delas. Elas deveriam apresentá-lo em sua forma legítima – não
caracterizado pela indiferença – e basal – não pretensamente superficial.33
Isso as conduziria ao seu manuseio correto e nos forneceria um intrumental
de orientação e prática contemporânea. Nisso consiste, hoje, a sua in-
cumbência, sua tarefa urgente.

3 Pluralidade e transculturalidade
Encontramos uma pluralidade radical não apenas no interior, mas
também fora das ciências: em questões da cultura no sentido mais amplo.
As Geisteswissenschaften se deparam também com essa pluralidade extra-
científica – especialmente quando se compreendem como “ciências da
cultura”, conforme se tornou comum já há alguns anos. A pluralidade de

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Mudança estrutural nas ciências... 251

culturas dá forma ao contexto exterior e, ao mesmo tempo, aponta para


uma tarefa das Geisteswissenschaften.
Está fora de dúvida o fato de que, modernamente, temos em vista
uma multiplicidade de culturas distintas e de que temos de levar em conta
as suas diferenças. Especialmente no âmbito do pensamento europeu – ou
seja, aquele etnocentrismo que se impôs como tarefa a superação das
limitações do etnocentrismo e o reconhecimento da diversidade das culturas
– temos esse compromisso. Além disso, hoje encontramos pluralidade não
apenas entre as culturas, mas no interior das culturas em particular –
antigamente, tidas como homogêneas.
Eu quero agora me dedicar a uma questão mais breve e a outra
mais longa. Por que a pluralidade das culturas é relevante para
as Geisteswissenschaften? Qual seria a contribuição específica das
Geisteswissenschaften para o presente?

a. Geisteswissenschaften e pluralidade cultural


Desde Herder, a multiplicidade de culturas se constitui em um dos
temas tradicionais das Geisteswissenschaften. Uma outra contribuição para
isso foi a do Historicismo do século XIX, especificamente associado às
Geisteswissenschaften. A afinidade das Geisteswissenschaften com a
pluralidade cultural extrapola a circunstância de que diferentes culturas são
objeto de determinadas ciências (Estudos Japoneses, Estudos Orientais,
Egiptologia, etc.) As Geisteswissenschaften se sentem também compro-
metidas com a consideração das diferenças culturais quando os seus temas,
à primeira vista, não parecem estar submetidos ao relativivismo cultural
(Filosofia, Pedagogia, Psicologia, etc.).
Modernamente, isso é reforçado por razões teóricas da racionalidade.
Nós aprendemos a entender as culturas como padrões específicos de
racionalidade. Novamente, a obra de Wittgenstein pode servir como
orientação. Wittgenstein analisou a estrutura da racionalidade de modo a
atribuí-la, via de regra, ao terreno de uma cultura. Estruturas da racio-
nalidade são sempre associadas com práticas culturalmente compar-
tilhadas34 e, inversamente, culturas (não importa quão amplas ou estreitas
sejam suas fronteiras) podem ser concebidas como formas de racionalidade.
Nesse sentido, culturas são um caso corrente daquilo que moderna-
mente se divisa sob o rótulo de “formas de racionalidade” ou “para-
digmas de racionalidade”. Nessa medida, sua análise é parte inegável das
Geisteswissenschaften.

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b. As Geisteswissenschaften em face da nova transculturalidade


Hoje, entretanto, em relação à maioria das culturas pode-se diag-
nosticar uma mudança radical de estrutura. As culturas migram de sua
forma tradicional unificada para uma forma nova, caracterizada pela
multiplicidade. Enquanto o conceito tradicional de cultura desde Herder
admitia que culturas seriam internamente homogêneas e externa-
mente distintas de maneira clara umas das outras, as sociedades mo-
dernas são em si tão altamente diferenciadas, que não se pode falar de
uma unidade das formas de vida em seu interior, nem da separação entre
as culturas.35 As culturas são muito mais internamente pluralizadas e
externamente interconectadas em alto grau. Suas formas de vida não
terminam mais nas fronteiras das culturas nacionais, mas as ultrapassam,
encontram-se sob a mesma forma em outras culturas. Além disso, muitos
problemas e estados da consciência se encontram hoje da mesma forma
nas culturas outrora consideradas como fundamentalmente diferentes
(lembre-se aqui das discussões sobre direitos humanos, da consciência
feminina ou dos problemas ecológicos). O conceito tradicional de cultura,
que operava com a imagem de culturas como esferas, ilhas ou mônadas,36
tornou-se descritivamente falso em razão dessa complexidade interna e
interconexão externa das culturas atuais. A forma atual das culturas se
encontra para além dessa constituição – por isso, eu a designo como
“transcultural”.37,38
As Geisteswissenschaften são, em diversos aspectos, relacionadas a
essa transição para a transculturalidade. Em primeiro lugar, elas são parte
ativa dessa transição. A transculturalidade tem validade hoje não apenas
na macroesfera da sociedade, mas crescentemente na microesfera dos
indivíduos. Nós estamos nos tornando, em nossas próprias formações, cada
vez mais transculturais. E nisso as Geisteswissenschaften são parte ativa –
pelo menos para aqueles que com elas trabalham ou que são atingidos por
elas. As Geisteswissenschaften abrem ou ampliam o conhecimento de
diferentes tradições e opções culturais e podem, assim – intencionalmente
ou não – levar ao entendimento de que algumas dessas opções seriam para
o próprio indivíduo mais produtivas e aceitáveis do que aquelas com as
quais ele foi criado. Nesse sentido, as Geisteswissenschaften funcionam
potencialmente como fatores de transculturalização. Não apenas escritores
atuais dizem não terem sido forjados por uma única pátria, mas por
diferentes países de referência e pelas literaturas alemã, francesa, italiana,
russa, sul-americana e norte-americana. Também quem hoje trabalha com

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as Geisteswissenschaften vai adquirindo no seu fazer uma formação


transcultural.39 Mais transcultural ainda será a formação cultural das
gerações vindouras. – Assim, a limitação a uma perspectiva ”européia”
continua sendo muito restrita e inadequada às novas condições. Hoje – sob
o signo da transculturalidade – todas culturas podem potencialmente
contribuir para a formação de indivíduos “austríacos” ou “europeus”.
Em segundo lugar, é parte da função autocrítica e comunicativa das
Geisteswissenschaften que elas, ao invés do envelhecido e obsoleto
conceito de cultura homogeneizante (mas outrora nutrido pelas próprias
Geisteswissenschaften e em parte ainda estimado por essas), que elas
ajudem a dar clareza e reconhecimento a um conceito novo mais adequado.
Talvez aqui seja útil uma observação fundamental sobre a função de
conceitos de cultura. Conceitos de cultura são – como todos os conceitos
do auto-entendimento (por exemplo, identidade, pessoa, ser humano, etc.)
– não apenas conceitos descritivos, mas conceitos operacionais. Eles
ajudam a forjar seu objeto. Se nos disserem como o antigo conceito de
cultura fez com que cultura tivesse que ser um evento de homogeneidade,
então nós praticaremos as coerções e exclusões necessárias. Nós
procuramos cumprir a tarefa colocada – e teremos sucesso. Se, pelo
contrário, nos disserem que cultura agora também inclui algo desconhecido
e tem que fazer justiça a componentes transculturais, então nos lançaremos
a essa tarefa e os respectivos trabalhos de integração à estrutura real farão
parte de nossa cultura. Nesse sentido, a “realidade” da cultura é sempre
também uma conseqüência de nossos conceitos de cultura. Conceitos de
cultura não são apenas instrumentos descritivos, mas fatores de influência.
Por isso, é importante ter consciência da responsabilidade que assumimos
com a propagação dos respectivos conceitos.
As Geisteswissenschaften deveriam se voltar para as novas condições
da transculturalidade. Elas são chamadas a desenvolver conceitualizações
que, primeiramente, sejam descritivamente adequadas a essa situação e,
em segundo lugar, que sejam pragmaticamente um avanço e norma-
tivamente responsáveis nessa situação. Hoje se faz necessário um
entendimento de cultura não separatista e excludente, mas múltiplo e
inclusivo – ou seja, o trabalho em uma cultura cuja realização pragmática
não consista em exclusão, mas em capacidade de conexão e de transição.40
Trata-se de combinar não apenas os efetivos de diferenciação da própria
cultura, mas de, adicionalmente, combinar entre si componentes trans-
culturais. Se as Geisteswissenschaften incentivassem uma compreensão
correspondente das culturas no sentido de entrelaçamentos e miscigenações

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– ao invés de separação e limpeza meticulosa –, elas também consegui-


riam – não importa quão indiretamente – contribuir para melhores
condições de vida.

***
As análises e sugestões aqui apresentadas são fragmentárias. Quando
a análise é razoavelmente acertada, isso não pode ser diferente. – De modo
geral, as sugestões pretendem motivar no sentido de uma prática mo-
dificada nas Geisteswissenschaften. Supõe-se que, em meio aos problemas
do mundo de hoje, apenas se corresponderem aos novos padrões inter-
nos da ciência, as Geisteswissenschaften conseguirão cumprir sua tarefa
extracientífica, sua tarefa social.

1 v. Friedrich A. Kittler (Hrsg.), Austreibung des Geistes aus den Geisteswissenschaften.


Programme des Poststrukturalismus, Paderborn: Schöningh 1980.
2 v. Michel Foucault, Die Ordnung der Dinge. Eine Archäologie der Human-
wissenschaften, Frankfurt a.M.: Suhrkamp 1971, especialmente cap. 10. (O projeto alemão de
“expulsão do espírito” é inspirado no projeto de Foucault de uma expulsão do homem.)
Aprofundei criticamente o exame do conceito de Foucault em “Präzision und Suggestion.
Bemerkungen zu Stil und Wirkung eines Autors”, in: Spiele der Wahrheit – Michel Foucaults
Denken, hrsg. von François Ewald und Bernhard Waldenfels, Frankfurt a.M.: Suhrkamp 1991,
S. 136-149.
3 Comparar com detalhes da história do conceito. Alwin Diemer, Art. “Geisteswissenschaften”,
in: Historisches Wörterbuch der Philosophie, hrsg. von Joachim Ritter, Bd. 3, Basel/Stuttgart:
Schwabe 1974, S. 211-215.
4 v. Charles Percy Snow, The Two Cultures (The Rede Lecture, Cambridge, 1959).
5 Especialmente Hans Ulrich Gumbrecht deixou isso claro. Agradeço-lhe pela indicação da
discussão da época.
6 v. Thomas S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, Chicago: University of
Chicago Press 1962; dt. Die Struktur wissenschaftlicher Revolutionen, Frankfurt a.M.:
Suhrkamp 1967.
7 Thomas S. Kuhn, Die Struktur wissenschaftlicher Revolutionen, zweite revidierte und um
das Postskriptum von 1969 ergänzte Auflage, Frankfurt a.M.: Suhrkamp 1976, 220.
8 v. ibid.
9 Conforme a compreensão tradicional, entretanto, justamente isso deve ser constitutivo da
ciência – ciências sem tal univocidade não seriam ciências.
10 Na Grécia, o fato de o continente ser escarpado e as ilhas espalhadas obrigaram a produzir
unidade, que como “vínculo natural” era impossível, “por um outro meio, na forma da lei e do
costume do espírito” ders. Werke in 20 Bänden, Frankfurt a.M. 1986, Bd. 12, S. 277 f.).
11 Em face dos entrelaçamentos de fato, a antiga distinção entre objeto material e objeto formal
também permanece desinteressante. O estudioso das Geisteswissenschaften não precisará fazer
trabalho de laboratório, mas no campo da interpretação e da construção teórica, ele é um
importante parceiro para o cientista natural. Os físicos, por exemplo, em sua busca por teorias
unificadas dos processos naturais, já perceberam há muito o grande significado de imagens
estéticas e consultam especialistas em Estética para não empregar apenas figurações de um

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lugar-comum estético, mas poder usar imagens de uma estética mais complexa como modelos
de busca.
12 Especialmente nas ciências “duras”, nas ciências naturais, pode-se registrar no século XX
um interesse crescente pelo significado de momentos estéticos no processo de conhecimento e
da construção teórica. Para cientistas como Bohr, Einstein ou Heisenberg, isso nunca chegou a
ser novidade. Dirac afirmou que, em equações, a beleza seria mais importante do que a
concordância com as experiências e Poincaré esclarecera que a competência estética e não a
competência lógica se constitui na capacidade essencial de um bom matemático (v. sob o título
Truth and Beauty. Aesthetics and Motivations in Science versammelten Arbeiten von
Subrahmanyan Chandrasekhar [Chicago: Chicago University Press, 1987]). Em uma época mais
recente, teve um efeito revolucionário o relato de Watson de que a decodificação da estrutura do
DNA só lhe foi possível porque ele partiu da idéia de que a solução teria de ser de extrema
elegância – somente sob essa premissa estética ele conseguiu encontrar em um período
compatível o caminho acertado entre um grande número de caminhos abertos. (v. James D.
Watson, Die Doppel-Helix. Ein persönlicher Bericht über die Entdeckung der DNS-Struktur,
Reinbek bei Hamburg: Rowohlt 1969). A Estética parece não oferecer apenas intuições, mas
também estabelecer critérios.
13 Parece-me exagerado dizer que operar completamente sem método seja típico das
Geisteswissenschaften. Também nas Geisteswissenschaften se usam métodos – mas distintos e
alternantes, sendo que metodologia aí não é absolutamente tudo.
14 v. Richard Rorty, Consequences of Pragmatism, Minneapolis: University of Minnesota
Press, 1982, S. 226.
15 v. Ludwig Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, in: ders., Werkausgabe, Frankfurt
a.M.: Suhrkamp, 1984, Bd. 1, 225-580, especialmente 278 [67]. Com isso Wittgenstein refuta a
antiga concepção “essencialista”, conforme a qual unidade só pode ser devida sempre ao caráter
universal de um elemento idêntico. Muito mais, as semelhanças de família são plenamente
suficientes para a coerência e produtividade de um conceito. Wittgenstein explicou isso em
analogia com o exemplo de um fio. “[…] a robustez do fio não está no fato de que uma fibra
percorre toda a sua extensão, mas de que muitas fibras são trançadas umas com as outras.”
(ibid.)
16 Ibid., S. 277 [65]. Semelhantemente: “[…] se as observares, não verás algo que seria comum
a todas, mas verás uma longa série de semelhanças e parentescos.” Ibid., S. 277 [66]) “Nós
vemos uma rede complexa de semelhanças que se sobrepõem e entrecruzam. Grandes e pequenas
semelhanças.” Ibid., S. 278 [66].
17 Não por acaso Ovídio, o poeta das Metamorfoses, é um dos autores mais lidos.
18 A tríade corresponde ao caráter tríplice das críticas kantianas.
19 Eu apresentei isso de forma mais detalhada em Vernunft. Die zeitgenössische
Vernunftkritik und das Konzept der transversalen Vernunft, Frankfurt a.M.: Suhrkamp,
1995, stw 1996.
20 “Mas entendamos apenas o que significa ‘inexato’! Pois não significa ‘inaproveitável’”.
(Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, a.a.O., S. 290 [88]).
21 Ibid., S. 346 [203].
22 Ele tinha consciência de sua posição especial e refletiu sobre ela. Por exemplo, quando disse:
“O filósofo não é cidadão de uma comunidade de idéias. Isso é o que faz dele um filosófo.”
(Ludwig Wittgenstein, Zettel, in: ders., Werkausgabe, a.a.O., Bd. 8, S. 380 [455]).
23 De resto, hoje nos encontramos realmente cada vez mais confrontados com problemas que
resultam de entrelaçamentos. Mesmo que os problemas surjam regionalmente, seus efeitos
ultrapassam as fronteiras, tornando-se globais. Nossas formas de pensamento antigas,
separatistas, porém, são incapazes de reagir a isso. Para elas, tais transposições de fronteiras são
apenas “efeitos colaterais indesejados” – que se aceita com um dar de ombros e os quais se
encara com desamparo. Tais efeitos da interconexão só aparecem como “efeitos colaterais”

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enquanto se pensa de modo absolutamente separatista. Os elos causais da realidade, entretanto,


não respeitam esses desejos classificatórios pobres de espírito. Assim, também com vistas à
realidade, somos levados a recuar das antigas perspectivas de separação límpida e de análise
unilinear e a passar para formas de pensamento que desde o início dêem conta dos
entrelaçamentos e que consigam levar em consideração as conseqüências desses.
24 Isso foi ressaltado muitas vezes por Jürgen Mittelstraß: ”O que a ciência […] precisa é de
cientistas que trabalhem nas fronteiras entre as disciplinas, isto é, de cientistas que amem as
fronteiras de suas disciplinas acima das gastas trilhas das disciplinas, que pensem e pesquisem
transdisciplinarmente.” (Jürgen Mittelstraß, Leonardo-Welt. Über Wissenschaft, Forschung
und Verantwortung, Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1992, S. 89) Interdisciplinaridade […] é, na
verdade, transdisciplinaridade. Também se poderia dizer: Interdisciplinaridade não é última
palavra da ciência, essa é, muito mais, a transdiciplinaridade” (Jürgen Mittelstraß, Der Flug
der Eule, Frankfurt am Main 1989, S. 77). No programa de 1982 para o “Collège International
de Philosophie”, para cuja formulação contribuiu Jacques Derrida, “pesquisas inter-científicas
diagonais ou transversais” foram declaradas a tarefa principal da instituição (Jacques Derrida,
“Coups d’envoi [pour le Collège International de philosophie]”, in: ders., Du droit à la
philosophie, Paris: Galilée 1990, S. 577-618, hier S. 611 f).
25 Não se trata de uma simples eliminação das disciplinas. Naturalmente continuam existindo
questões específicas das disciplinas. Mas, se se for sincero, sua resposta satisfatória exigirá, na
maioria dos casos, a consideração de aspectos transdisciplinares. Resgatar esses aspectos,
porém, quase que sistematicamente estorva a prática presente. Em referência ao tema, verifica-
se constantemente que se precisa de um intercâmbio e um respaldo transdisciplinar, mas
barreiras institucionais (talvez também receio) impedem as pessoas de levá-la em conta. Do
contrário, de caso a caso, cursos e seminários poderiam ser organizados desde o início em
cooperação com diversas disciplinas. O círculo das disciplinas participantes deverá ser a cada
vez diferente em função da especificidade temática. – As Geisteswissenschaften poderiam
adotar uma instituição há muito tempo corrente nos departamentos de ciências naturais – os
grupos de pesquisa temporários.
26 Ocupei-me pela primeira vez dessa questão em “Differenz und Pluralität: Eine aktuelle
Aufgabenstellung der Geisteswissenschaften”, in: Was sind und zu welchem Ende brauchen
wir Geisteswissenschaften? Geisteswissenschaften zwischen Krise und neuem
Selbstbewußtsein, hrsg. von Karl Ermert u. (Sabine Gürtler [Loccumer Protokolle 18],
Rehburg: Evangel. Akademie Loccum, 1989, S. 83-139).
27 Mais detalhadamente apresentei a questão na segunda parte de Vernunft. Die
zeitgenössische Vernunftkritik und das Konzept der transversalen Vernunft.
28 Essa constatação deve sua radicalidade ao fato de os paradigmas apresentarem as versões
verdadeiramente radicais – as versões realmente existentes – no campo da racionalidade. Não
se pode voltar mais para aquém deles. Convencionalmente – no contexto da diferenciação –
atribuiu-se um tal papel fundamental aos tipos de racionalidade e se pensou que eles pré-
definissem regras obrigatórias para os paradigmas. Na verdade ocorre o contrário. Os
paradigmas não desenvolvem um programa pré-definido pelos tipos de racionalidade, mas
tratam todas pré-definições como disponíveis. Eles podem determinar singularmente todas as
dimensões de sua versão de racionalidade – das regras de constituição específicas de seus
objetos, passando pelas regras de encadeamento de suas afirmações até critérios de validação
ou completude. Nesse sentido, eles são as versões elementares da racionalidade. Os assim
chamados tipos de racionalidade, ao contrário, são agrupamentos maiores secundários, que se
constituíram através da sobreposição de paradigmas vizinhos e preservam sua coesão pela
semelhança de família.
29 Hans Blumenberg, Wirklichkeiten, in denen wir leben. Aufsätze und eine Rede, Stuttgart:
Reclam 1981, S. 3.
30 Nelson Goodman, Weisen der Welterzeugung, Frankfurt a.M., 1984, S. 10.

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31 v. Wittgenstein: “Nada do que se faça pode ser definitivamente defendido. Apenas em relação
a alguma outra coisa definida.” (WITTGENSTEIN, Vermischte Bemerkungen, in: ders.,
Werkausgabe, a.a.O., Bd. 8, S. 445-573,aqui S. 472) E: Isso apenas seria diferente se existisse
“uma metafilosofia”. “Mas tal não existe. Tudo aquilo que temos a dizer poderia ser apresentado
de modo a parecer uma idéia condutora.” (WITTGENSTEIN, Philosophische Grammatik, in:
ders., Werkausgabe, a.a.O., Bd. 4, S. 5-485, S. 116 [Teil I, 72].
32 Assim, por exemplo, Goodman apontou para o fato de que o relativismo é caracterizado por
“rígidas restrições”, “estando igualmente distante do absolutismo inflexível e do laissez faire
sem restrições.” (GOODMAN, Weisen der Welterzeugung, a.a.O., S. 117 bzw. ders., Vom
Denken und anderen Dingen, Frankfurt a.M.: Suhrkamp 1987, S. 66).
33 Nessa medida, meu discurso se distingue da pluralidade e minha definição da tarefa das
Geisteswissenschaften se distingue fundamentalmente daquela possivelmente de aparência
semelhante de Odo Marquard. Este fala de um pluralismo que representa um colorido
superficial, o qual não atinge a base e ele atribui às Geisteswissenschaften afeitas ao pluralismo
a tarefa de compensar danos de modernização através de diversas narrativas. Odo Marquard,
“Über die Unvermeidlichkeit der Geisteswissenschaften”, in: Anspruch und Herausforderung
der Geisteswissenschaften. Jahresversammlung 1985, Bonn: Dokumentationsabteilung der
Westdeutschen Rektorenkonferenz 1985, S. 47-67). Em oposição a isso, no teorema da
pluralidade e no relativismo que defendo, os conflitos não são coloridos diferentes sobre uma
base inquestionavelmente válida, mas derivam de interpretações divergentes da base.
34 Justamente para isso aponta o conceito de Wittgenstein de “jogos de linguagem” e seu
discurso sobre “formas de vida”. “A palavra ‘Sprachspiel’ (linguagem+jogo) deve ressaltar aqui
que falar uma língua é parte de uma atividade, ou de uma forma de vida.” (WITTGENSTEIN,
Philosophische Untersuchungen, a.a.O., S. 250 [23])
35 É questionável se essas suposições tradicionais já foram historicamente acertadas. A esse
respeito, uma citação de Zuckmayer: “[…] imagine a sua linha genealógica – desde o
nascimento de Cristo. Lá havia um capitão, um tipo moreno, pele da cor de uma azeitona
madura, que ensinou latim para uma moça aloirada. Depois entrou um mercador de especiarias
judeu na família, homem sério, converteu-se em cristão já antes do casamento e estabeleceu a
tradição católica da casa. – E, então, vêm um médico grego, ou um legionário celta, um servo
de Graubünden, um cavaleiro sueco, um soldado de Napoleão, um cossaco desertor, um Flözer
da Floresta Negra, um aprendiz de moleiro itinerante vindo da Alsácia, um marinheiro holandês,
um magyar, um pandur, um militar de Viena, um artista francês, um músico da Boêmia – todos
viveram no vale do Reno, lá brigaram, se embebedaram, cantaram e tiveram filhos – e – e o
Goethe, ele veio do mesmo caldeirão e também o Beethoven, e o Gutenberg, e o Matthias
Grünewald, e – sei lá, olhe na enciclopédia! Os melhores, meu caro. Os melhores do mundo! E
por quê? Porque os povos lá se miscigenaram. Miscigenação – como as águas de fontes e riachos
e rios que se unem para formarem uma torrente grande, viva. (ZUCKMAYER, Des Teufels
General, in: ders., Werkausgabe in zehn Bänden, Bd. 8, Frankfurt a.M. 1978, S. 93-231, aqui
S. 149)
36 Herder usou de forma esclarecedora a imagem da esfera: “Cada nação”, disse ele, “tem seu
centro de felicidade em si, assim como cada esfera tem seu centro de gravidade!” (HERDER,
Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit [1774], Frankfurt a.M.:
Suhrkamp 1967, 44 f.) Os problemas de um tal conceito podem ser diretamente deduzidos da
continuação. “Tudo o que ainda é idêntico a minha natureza, o que pode ser assimilado nela, eu
invejo, ambiciono, faço meu, para além disso a natureza benévola me armou com
insensibilidade, frieza e cegueira, ela ainda pode se transformar em desprezo e repugnância
[…] vê como o egípcio odeia o pastor, o andarilho! Como ele despreza o frívolo grego! Assim,
duas nações cujas inclinações e círculos de felicidade se chocam – isso se chama preconceito!
Vulgaridade! Nacionalismo limitado!” Contra esse protesto iluminista, Herder esclarece: “O
preconceito é bom […] pois deixa feliz. Ele impele os povos para os seus centros, os fixa em seu
tronco, mais florescentes em sua maneira, mais voluptuosos e, portanto, mais felizes em suas

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inclinações e desígnios.” (ibid., 45 f.). Herder diz adiante: “A nação mais ignorante, mais cheia
de preconceitos é, nessa visão, freqüentemente a primeira: a era de andanças ansiadas rumo ao
desconhecido e viagens esperançosas para o estrangeiro já é moléstia, flatulência, excesso
insalubre, punição de morte!” (ibid., 46) – Veja-se: Herder defende a duplicidade de acentuação
do próprio e exclusão do desconhecido. Hoje, porém, quando a recorrência à identidade cultural
e étnica produz quase no mundo inteiro separatismos e guerras, os perigos de um regresso ao
antigo conceito de cultura estão à vista de todos.
37 Apresentei uma primeira versão desse conceito em 1991 sob o título de “Transculturalidade
– formas de vida após a dissolução das culturas” (impresso em: Information Philosophie, Heft
2, 1992, S. 5-20). Versões estendidas foram publicadas sob o mesmo título em: Dialog der
Kulturen. Die multikulturelle Gesellschaft und die Medien, hrsg. von Kurt Luger und Rudi
Renger, Wien: Österreichischer Kunst- und Kulturverlag 1994, S. 147-169); sob o título
“Transculturalità. Forme di vita dopo la dissoluzione delle culture” in: Paradigmi. Rivista di
Critica Filosofica, Sondernummer “Dialogo interculturale ed eurocentrismo” X/30, 1992,
S. 665-689; bem como com o título “Transkulturalität – die veränderte Verfassung heutiger
Kulturen” in: Sichtweisen. Die Vielheit in der Einheit, Weimar: Stiftung Weimarer Klassik, 1994,
S. 83-122; versão inglesa: “Transculturality – The Form of Cultures Today”, in: Le Shuttle:
Tunnelrealitäten Paris-London-Berlin, Berlin: Künstlerhaus Bethanien, 1996. S. 15-30.
38 O conceito de transculturalidade arrisca – em relação às culturas e seus entrelaçamentos –
um passo análogo ao do conceito de transdisciplinaridade em relação às ciências e aos
entrelaçamentos das racionalidades.
39 Por exemplo, tornou-se óbvio para os filósofos dominar como ferramentas não apenas a
filosofia alemã e a grega, mas também igualmente a francesa e a anglo-saxônica e, ao desen-
volver qualquer idéia, alinhá-la com essas tradições. Para espíritos abertos, também a filosofia
japonesa, a africana e a indiana fazem parte do programa – e isso em relação à arquitetura do
programa, não apenas com respeito a uma desejável diversidade de dados do pensamento.
40 Psicanaliticamente é sabido que o ódio em relação ao desconhecido é, no fundo, um ódio a si
mesmo projetado no outro. Rejeita-se no desconhecido algo que se têm em si mesmo, mas não
se gosta de reconhecer, algo que internamente se reprime e externamente se combate.
Inversamente, o reconhecimento de que se tem internamente uma parcela desconhecida é o
pressuposto para a aceitação do desconhecido no exterior. Aqui se divisa como a educação
transcultural poderia contribuir para um tratamento diferente e mais adequado do socialmente
desconhecido. Justamente quando nós não rejeitarmos nossa transculturalidade interior, mas a
aceitarmos, é que nos tornaremos capazes de reconhecer e lidar no coletivo com a
transculturalidade externa. A expressão ciências humanas traduz o termo alemão
Geisteswissenschaften, que significa, literalmente, ciências do espírito, correspondendo àquilo
que se designa em português como ciências humanas. Optamos por manter no texto o termo
original para deixar clara sua inserção na tradição alemã (NT).

Texto publicado originalmente em: Die Geisteswissenschaften im Spannungsfeld


zwischen Moderne und Postmoderne, ed. por Helmut Reinalter e Roland Benedikter
(Wien: Passagen, 1998), 85-106.
Tradução: Luciana Waquil e Ralf Krämer.
Revisão da tradução: Nadja Hermann.

Educação
Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 2 (62), p. 237-258, maio/ago. 2007

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