Peitos e Ovos - Mieko Kawakami
Peitos e Ovos - Mieko Kawakami
Peitos e Ovos - Mieko Kawakami
preparação
Mariana Gonçalves
Fábio Fujita
revisão
Júlia Ribeiro
Juliana Brandt
Theo Araújo
capa
Elisa von Randow
imagem de capa
Ana Matsusaki
geração de e-book
Victor Huguet | Intrínseca
e-isbn
978-65-5560-832-8
1ª edição
@intrinseca
editoraintrinseca
@intrinseca
@editoraintrinseca
intrinsecaeditora
Sumário
[Avançar para o início do texto]
Capa
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Parte 1
1. Você é pobre?
2. Para ser mais bela
3. De quem são os peitos?
4. Pessoas que vêm ao restaurante chinês
5. Longo bate-papo das irmãs à noite
6. O lugar mais seguro do mundo
7. Todas as coisas que você ama e aprecia
Parte 2
8. Onde está sua ambição?
9. Segurando as pequenas flores
10. Escolha a correta entre as seguintes opções
11. Estou tão feliz porque hoje encontrei meus amigos imaginários
12. Natal divertido
13. Ordem complexa
14. Tenha coragem
15. Nascer, não nascer
16. Porta de verão
17. Do que esquecer…
Bibliografia
Sobre a autora
Parte I:
Verão de 2008
1
Você é pobre?
***
***
***
Midoriko
***
Makiko, que estava chegando de Osaka, era minha irmã mais velha.
Ela tinha nove anos a mais que eu, então estava com trinta e nove.
Tinha uma filha chamada Midoriko, que iria completar doze anos em
breve. Ela teve a filha aos vinte e sete anos e a criava sozinha.
Depois que completei dezoito anos, morei por alguns anos com
Makiko e Midoriko, que era recém-nascida, num apartamento em
Osaka. Makiko tinha se separado do marido antes de a filha nascer e,
como eu ia muito à casa dela, por motivos financeiros e por ela
precisar de ajuda chegamos à conclusão de que, para não ter que ir e
voltar constantemente, o melhor e mais fácil seria nós três morarmos
juntas. Midoriko nunca conheceu o pai, e eu não soube de ela tê-lo
encontrado depois. Acho que cresceu sem saber nada sobre ele.
Até hoje eu não sabia direito o motivo pelo qual minha irmã tinha
se separado do marido. Lembrava que na época conversei bastante
com ela sobre o divórcio e seu ex-marido, e lembrava de ter pensado
que era um absurdo, mas não conseguia recordar concretamente o que
achei um absurdo. Meu ex-cunhado nasceu e cresceu em Tóquio,
conheceu minha irmã quando morava em Osaka por causa do trabalho
e, se eu não estava enganada, ela engravidou da minha sobrinha um
pouco depois de eles se conhecerem. Lembrava vagamente que ele
usava o dialeto de Tóquio, considerado a língua-padrão, que eu nunca
tinha ouvido alguém falar de verdade em Osaka, e ele chamava minha
irmã de “você” de uma maneira curiosa.
Quando Makiko e eu éramos crianças, morávamos com os nossos
pais no terceiro andar de um pequeno prédio. O apartamento era
pequeno, com dois cômodos contíguos, um de seis e outro de quatro
tatames. No primeiro andar funcionava um bar izakaya. Morávamos
numa cidade portuária, de modo que bastava caminhar por alguns
minutos para vermos o mar. Eu observava as ondas escuras feito
chumbo baterem e rebentarem no cais cinzento, provocando um
grande estrondo, e me esquecia do tempo. De qualquer lugar dava
para sentir a umidade do mar e os sinais da maré, e, quando chegava a
noite, as ruas ficavam abarrotadas de homens bêbados e barulhentos.
Muitas vezes vi gente agachada na beira da estrada ou à sombra dos
prédios. Gritarias e pancadarias eram as coisas mais banais, e uma vez
alguém jogou uma bicicleta bem na minha frente. Os vira-latas davam
à luz muitos filhotes e, quando estes cresciam, davam à luz mais vira-
latas. Moramos nessa cidade só por alguns anos, porque meu pai
desapareceu quando comecei a frequentar a escola primária e nós três,
minha irmã, minha mãe e eu, fomos morar com minha avó em um
conjunto habitacional.
Morei com meu pai só por sete anos, e, mesmo que eu fosse
criança, percebia que ele era baixinho. Tinha a estatura de um menino
em idade escolar.
Ele não trabalhava e vivia deitado o tempo todo, fosse de manhã,
fosse à noite. Minha vó Komi — como chamávamos nossa avó materna
—, que o odiava porque só fazia a filha sofrer, chamava-o de
“toupeira” pelas costas. Vestindo uma camiseta amarelada sem manga
e calça, ele ficava à toa no colchão futon estendido nos fundos do
quarto, que nunca era guardado, e assistia à TV de manhã até à noite.
Na sua cabeceira ficava uma lata vazia, usada como cinzeiro, e uma
pilha de revistas, e o quarto vivia cheio de fumaça de cigarro. Meu pai
era tão preguiçoso que, quando queria olhar para nós, se estivéssemos
atrás dele, usava um espelho para não precisar se virar. Quando estava
de bom humor, fazia brincadeiras, mas geralmente falava pouco; não
me lembro de ter brincado nem saído para passear com ele. Quando
ficava mal-humorado, gritava de repente, mesmo se estivesse
dormindo, vendo TV ou fazendo nada, e, às vezes, quando bebia,
batia na minha mãe tomado pela fúria. Nessas horas, ele aproveitava e
batia em Makiko e em mim, arranjando alguma desculpa, e todas nós
tínhamos muito medo desse homem baixinho.
Certo dia, quando voltei da escola, ele não estava em casa.
O apartamento continuava igual: apertado e escuro, com uma pilha
de roupa amontoada no chão. Mas só pelo fato do meu pai não estar
ali, tudo pareceu diferente. Respirei fundo e fui para o meio do
quarto. Comecei a soltar a voz. Primeiro falei baixinho, como se
testasse a garganta, e em seguida soltei palavras incompreensíveis que
vieram do fundo da minha barriga, com toda a força. Não havia
ninguém por perto. Ninguém para me dar bronca. Depois mexi meu
corpo aleatoriamente. Quanto mais movia os braços e as pernas, livre,
sem pensar em nada, mais leve meu corpo ficava, e tive a sensação de
que uma força brotava de algum lugar do meu íntimo. A camada de pó
acumulado sobre a TV, a louça suja empilhada na pia da cozinha, a
porta do guarda-louça com adesivos colados, a madeira de um pilar
talhada com marcas indicando nosso crescimento. Todas essas coisas
que me eram familiares pareceram resplandecer, como se tivessem sido
polvilhadas de pó mágico.
Logo em seguida fiquei deprimida. Sabia que esse momento duraria
apenas um instante, sabia muito bem que minha vida voltaria a ser
como antes. Meu pai só tinha saído para resolver algum assunto, o que
era raro, mas logo voltaria. Tirei a mochila, me sentei no canto do
quarto, onde sempre ficava, e suspirei.
Mas meu pai não voltou. Não voltou no dia seguinte nem no outro.
Depois de um tempo, homens começaram a vir à sua procura, e minha
mãe os enxotou todas as vezes. Certo dia, fingimos que não tinha
ninguém em casa, e na manhã seguinte encontramos guimbas de
cigarro espalhadas na frente da porta. Isso se repetiu algumas vezes.
Quando já fazia cerca de um mês do sumiço do meu pai, minha mãe
puxou o futon dele, que continuava estendido no quarto, e o enfiou
dentro da banheira que não usávamos desde que o sistema de ignição
quebrara. No banheiro apertado que cheirava a mofo, o colchão do
meu pai, impregnado de suor, gordura e cheiro de cigarro, pareceu
assustadoramente amarelado. Depois de observá-lo por um tempo,
minha mãe deu uma voadora nele com toda a força. E, passado
aproximadamente um mês desse dia, mamãe acordou Makiko e eu
tarde da noite, nos sacudindo e dizendo “Levanta! Levanta!”, e
mesmo no escuro sabíamos que ela estava com uma expressão de
desespero no rosto. Fomos colocadas em um táxi e fugimos de casa.
Não sabia o significado ou a razão de termos que fugir no meio da
noite, nem para onde estávamos indo. Algum tempo depois, tentei
perguntar à minha mãe o que tinha acontecido, de forma discreta,
mas, como o assunto do meu pai se transformou em uma espécie de
tabu, não consegui extrair nenhuma informação dela. Sem saber o que
estava acontecendo, naquela noite tive a impressão de que corremos
de táxi na escuridão a noite inteira, mas enfim chegamos à casa da
minha amada vó Komi, que ficava do outro lado da cidade, a uma
distância de menos de uma hora de trem.
Passei mal no táxi e vomitei no nécessaire que minha mãe esvaziara
e me dera para isso, mas não saiu quase nada do meu estômago.
Limpei com a mão a saliva que escorreu junto com a bile e, enquanto
minha mãe acariciava minhas costas, fiquei pensando o tempo todo na
minha mochila. Os livros que tinha separado para as aulas de terça-
feira. Cadernos. Adesivos. O bloco de desenho que havia colocado
debaixo dos outros cadernos, onde guardara o desenho de um castelo
concluído na noite anterior, depois de trabalhar vários dias nele. A
gaita que tinha posto no compartimento lateral da mochila. A
lancheira com o almoço pendurada na lateral. Meus lápis favoritos,
marcador, bolinhas perfumadas, borracha, tudo dentro do estojo ainda
novo. Meu gorro brilhante. Eu adorava minha mochila. Na hora de
dormir, colocava-a na cabeceira, e, quando a carregava nas costas,
segurava firmemente a alça, e sempre a tratei com cuidado. Ela era
como um quarto só meu, que eu podia levar nas costas.
Mas eu a tinha abandonado, junto com o moletom branco de que
gostava, as bonecas, os livros e minha tigela. Deixando tudo isso para
trás, estávamos correndo no meio da escuridão. Provavelmente nunca
mais vou voltar para aquele quarto, pensei. Nunca mais vou carregar
aquela mochila nas costas, nunca mais vou abrir o caderno e praticar
caligrafia na mesa de kotatsu, com aquecedor embutido, com o estojo
colocado bem na quina. Nunca mais vou apontar o lápis como apontava,
nunca mais vou ler um livro encostada naquela parede áspera. Nunca
mais. E ao imaginar isso, tive uma sensação muito estranha. Uma parte
da minha mente parecia estar levemente anestesiada, nebulosa, e não
consegui reunir força para mexer as mãos ou os pés. Eu me perguntei
se era eu mesma que estava ali. Porque até pouco tempo atrás eu
achava que na manhã seguinte acordaria como em todas as outras
manhãs, iria para a escola e o meu dia seria como todos os outros até
então. Quando tinha fechado os olhos algumas horas antes, jamais
imaginaria que em pouco tempo deixaria tudo para trás e estaria
dentro de um táxi cruzando a noite junto com minha mãe e Makiko,
para nunca mais voltar.
Ao observar a escuridão passando lá fora pela janela, tive a
impressão de que o eu de algumas horas atrás continuava dormindo
no futon. Quando esse eu acordar de manhã e perceber que não estou
lá, o que fará? Ao pensar nisso, fui tomada de súbito por uma
sensação de desolação e pressionei o ombro com força no braço de
Makiko. Gradualmente fui sendo assolada pelo sono. Pela fresta das
minhas pálpebras que caíam, vi números que brilhavam em tom verde.
À medida que nos afastávamos do nosso apartamento, esses números
se multiplicaram em silêncio.
A vida a quatro — nós três junto da vó Komi — que começou
naquele dia, quando fugimos no meio da noite do nosso apartamento,
não durou muito tempo. Quando eu tinha quinze anos, a vó Komi
morreu. Dois anos antes, quando estava com treze, minha mãe havia
morrido.
Makiko e eu ficamos completamente órfãs de repente e, ao
encontrar oitenta mil ienes no fundo do altar budista da vó Komi,
consideramos aquele dinheiro o nosso talismã. A partir daí começamos
a trabalhar desesperadamente para sobreviver. Não me lembro de
quase nada desde o início do ensino fundamental II, quando minha
mãe foi diagnosticada com câncer de mama, até a época do ensino
médio, quando a vó Komi morreu de câncer de pulmão, como se
estivesse indo ao encontro da nossa mãe. Eu estava ocupada demais
trabalhando.
Uma das poucas lembranças que tinha era da fábrica onde ia
trabalhar em todas as férias de primavera, verão e inverno quando
estava no ensino fundamental II, mentindo sobre minha idade. Do
cabo do soldador elétrico pendendo do teto, do ruído das faíscas, das
caixas de papelão empilhadas até o alto. E, é claro, do snack bar que
frequentava desde o ensino fundamental I. Um pequeno
estabelecimento que pertencia a uma amiga da minha mãe. Minha mãe
tinha alguns serviços temporários de dia e, à noite, trabalhava nesse
snack bar. Makiko começou a trabalhar lá lavando louça quando
estava no ensino médio e, depois de um tempo, também passei a
ajudar na cozinha, até que comecei a preparar drinques e petiscos
enquanto via minha mãe atender os fregueses bêbados. Além do
emprego no bar, minha irmã arranjou outro num restaurante de
yakiniku, ou seja, de carne fatiada e assada na grelha, e, com o salário
de cerca de seiscentos ienes por hora, conseguiu fazer a fortuna de
cento e vinte mil ienes em um único mês, seu recorde, trabalhando
arduamente (ela virou uma espécie de lenda desse lugar). Foi efetivada
alguns anos depois de concluir o ensino médio e trabalhou até o
restaurante falir. Depois ela engravidou, teve a Midoriko,
experimentou várias atividades temporárias e hoje, com trinta e nove
anos, trabalhava cinco dias por semana num outro snack bar. Ou seja,
Makiko estava seguindo praticamente o mesmo caminho da nossa
mãe: mãe solo que trabalhou desesperadamente até adoecer e morrer.
***
***
***
○ Parece que a maioria das meninas da minha turma já teve a primeira
menstruação, e na aula de educação sobre saúde de hoje foi explicado
como ela funciona. Explicaram por que sangramos, o que acontece
dentro do nosso corpo, como usar o absorvente e mostraram o
desenho de um grande útero que disseram que temos dentro do
corpo. Quando me encontro depois com outras meninas no banheiro,
só as que já menstruaram se reúnem e cochicham entre si, como se as
outras não entendessem do que elas estão falando. Elas carregam um
saquinho de pano onde guardam o absorvente, e, quando pergunto
“O que é isso?”, uma delas responde: “É segredo.” Elas sussurram
entre si coisas que só as que já tiveram a primeira menstruação
entendem, mas falam tão alto que as outras conseguem ouvir. Deve ter
outras meninas que ainda não menstruaram, mas entre minhas amigas
próximas parece que só eu ainda não passei por isso.
Me pergunto como é ficar menstruada. Dizem que a barriga dói
muito, e o pior de tudo é que isso vai continuar por décadas. Como
assim? Vou me acostumar com isso? Sei que a Jun-chan ficou
menstruada porque ela me contou, mas, pensando bem, como as
meninas que já tiveram a primeira menstruação sabem que eu ainda
não tive? Mesmo as que tiveram não ficam espalhando para todas que
tiveram, e nem todas vão para o banheiro carregando o saquinho de
pano à mostra. Como todas percebem quem já menstruou e quem
ainda não menstruou?
Então resolvi procurar o significado de primeira menstruação,
menarca, shochō em japonês ( 初 潮 ). O primeiro ideograma, 初 ,
representa o “começo”, “início”, e isso eu compreendo. Mas o que
significa o segundo ideograma, 潮? Eu pesquisei e descobri que tem
vários significados. Por exemplo, pode significar “maré”, que é o
movimento da água do mar que ora fica alta, ora fica baixa,
dependendo da força gravitacional da Lua e do Sol. Significa também
“momento oportuno”. Outro significado é aikyō (愛嬌), mas o que é
aikyō? Pesquisei e descobri que é chamar a atenção dos fregueses no
comércio, ser agradável. Por que essa palavra está colocada como se
tivesse alguma relação com a menarca, que é a primeira menstruação,
quando as meninas começam a sangrar entre as pernas? Que raiva.
Midoriko
***
***
Makiko era hostess, mas, em síntese, havia vários tipos de hostess. Não
era muito educado dizer isso, mas havia do mais alto nível até o mais
baixo, e, só de ouvir o endereço entre os inúmeros bairros de bares de
Osaka, era possível saber o tipo de freguesia, de hostess, de bar, entre
outras informações gerais.
O snack bar onde minha irmã trabalhava ficava num lugar chamado
Shobashi, em Osaka. Era o bairro onde mamãe, Makiko e eu
trabalhávamos desde que tínhamos fugido do nosso antigo
apartamento e ido morar com a vó Komi. Um bairro muito longe de
ser de alto nível, com uma concentração de construções que decaíam
gradualmente, cujas cores desbotavam cada vez mais e ficavam
marrons com o tempo.
Bar de bebida barata; barraca de macarrão soba — massa de trigo-
sarraceno — sem lugar para sentar; barraca de prato feito sem lugar
para sentar; salão de chá. Motel operando em uma casa em ruínas,
mais para cabana de amor do que para hotel de amor. Restaurante de
yakiniku num prédio comprido que parecia um trem; restaurante de
motsuyaki, um tipo de espetinho de miúdos, envolvido por uma densa
e absurda fumaça; farmácia com uma placa com os dizeres “Remédio
para hemorroidas e sensibilidade excessiva ao frio”. Entre os prédios
dos estabelecimentos não havia nenhum vão. Ao lado do restaurante
de enguia tinha um telephone club;* ao lado de uma imobiliária, tinha
um bordel e uma casa de jogos de pachinko com anúncio luminoso
brilhante e bandeiras tremulando ao vento. Havia também uma loja de
carimbo hanko cujo dono nunca estava no local; e um fliperama
esquisito e sinistro sob todos os ângulos, sempre escuro a qualquer
hora do dia; também havia outros estabelecimentos dispostos de
forma quase amontoada.
Além das pessoas que frequentavam esses locais e dos transeuntes,
via-se também gente caída e imóvel na frente do telefone público, uma
mulher que visivelmente tinha mais de sessenta anos atraindo
fregueses com a oferta de uma dança por dois mil ienes, e também,
lógico, indigentes e bêbados… Ou seja, todo tipo de pessoa. À
primeira vista, um bairro amistoso e animado, mas, honestamente, era
um lugar sem nenhuma classe, e Makiko trabalhava das sete da noite à
meia-noite no snack bar que ficava no terceiro andar de um prédio
com vários estabelecimentos e onde ecoava o som do karaokê da tarde
até à noite.
Esse snack bar, com alguns bancos no balcão e alguns assentos no
box — um sofá cercado por uma divisória —, lotava com apenas
quinze fregueses, e, quando uma hostess conseguia uma venda de dez
mil ienes em uma noite, já era considerado um grande feito. Existia
um acordo tácito sobre as hostess fazerem vários pedidos para
impulsionar as vendas. Acompanhar os fregueses e consumir bebida
barata não era uma boa estratégia, então elas eram incentivadas a
pedir, na conta dos clientes, chá Oolong, que não embriagava por mais
que tomassem. Uma latinha custava trezentos ienes. É lógico que elas
mesmas preparavam o chá com água quente, esperavam esfriar,
reutilizavam a mesma latinha e a serviam como se tivessem acabado de
levantar o anel da lata. Quando o estômago se enchia de líquido,
pediam comida. Diziam: “Estou com fome, posso pedir comida?” — e
faziam o pedido na conta do freguês: salsicha, omelete, sardinha a óleo
e frango frito, pratos que pareciam mais acompanhamentos de uma
marmita ou bentō do que aperitivos. Depois era a vez de cantar no
karaokê. Uma música custava cem ienes, e, já que de música em
música chegava-se a mais de mil ienes, tanto as hostess mais velhas
quanto as mais novas, tanto as que gostavam de cantar quanto as mais
desafinadas cantavam todas as músicas que conheciam. No entanto,
mesmo assim, mesmo se esforçando com o corpo entumecido de tanto
consumir sal, ingerir líquido e ficando sem voz, geralmente os
fregueses deixavam o local sem gastar nem cinco mil ienes.
A mama, dona do snack bar onde Makiko trabalhava, era uma
senhora gorda e baixinha, com um ar alegre e com cerca de cinquenta
e cinco anos. Eu me encontrei com ela apenas em uma ocasião.
Quando minha irmã a viu pela primeira vez, na entrevista, não sabia se
o cabelo dela era tingido ou descolorido; não era loiro, mas sim
amarelado, e estava preso em um coque alto. Com o cigarro Hope
entre os dedos curtos e carnudos, ela perguntou:
— Você conhece a Chanel?
— Sim, é a marca de roupas, não é? — respondeu Makiko.
— É — disse a mama, soltando a fumaça pelo nariz. — São bonitas,
não acha?
Na parede para a qual ela apontou com o queixo havia duas
echarpes da Chanel em molduras de plástico, como se fossem
pôsteres. Estavam iluminadas por um holofote amarelado.
— Eu adoro Chanel — disse a mama, os olhos semicerrados.
— É por isso que este bar se chama Chanel? — perguntou Makiko
enquanto olhava as echarpes na parede.
— É. Chanel é o sonho de toda mulher. É elegante. Muito caro,
com certeza. Olhe esses brincos — disse a mama, inclinando o queixo
rechonchudo e mostrando a orelha a Makiko.
Mesmo sob a luz do bar, dava para notar que o brinco redondo e
dourado fosco fora usado por vários anos. Nele estava talhado em
alto-relevo o símbolo da Chanel, que Makiko conhecia.
Toalha do banheiro, descanso cartonado para copo, adesivos
colados na porta de vidro da cabine telefônica no interior do bar,
cartão de visita, tapete, caneca: havia produtos com o logo da Chanel
em todo o canto do estabelecimento, mas, segundo a mama, eram
imitações chamadas de supercópias que ela juntara com afinco e
diligência, despendendo muito tempo e procurando nas barracas de
Tsuruhashi e Minami. Até minha irmã, que não sabia nada de Chanel,
percebia à primeira vista que eram produtos falsificados, mas a mama
aumentava a coleção aos poucos, com um amor extraordinário. A
presilha e os brincos que ela usava todos os dias, impreterivelmente,
eram as poucas peças genuínas que tinha da marca, compradas
quando ela estava abrindo o snack bar, para atrair sorte — compra
essa que fizera com uma grande determinação. Pelo visto a mama
estava mais fascinada pelo som da palavra “Chanel” e pelo formato
impactante da logo da marca do que pelos produtos em si. Certa vez,
quando uma das hostess novas perguntou “De que país é a Coco
Chanel?”, Makiko ouviu a mama responder: “É dos Estados Unidos.”
Pelo jeito ela achava que todo branco era norte-americano.
— E a mama, está bem? — perguntei.
— Sim, está bem. Mas o snack bar passou por uns problemas.
***
***
Midoriko
***
* Telephone club ou terekura, sua forma abreviada, era um serviço de encontros que se tornou
popular no Japão na década de 1990. O homem pagava uma taxa, entrava numa cabine e
aguardava a ligação de uma mulher, e os dois podiam marcar um encontro fora do recinto. [N.
da T.]
2
Para ser mais bela
***
Midoriko
3
De quem são os peitos?
Quando me dei conta, já tinha se passado quase uma hora. Após ter
falado exaustivamente e com toda a empolgação sobre tudo que sabia
a respeito da cirurgia nos seios, Makiko reuniu os panfletos espalhados
sobre o chabudai, a mesa de chá mais baixa, alinhou-os e guardou-os
no envelope na sua boston bag, dando um longo suspiro.
O relógio marcava quatro da tarde, e, ao olhar pela janela, os raios
solares pareciam impregnar-se na superfície do vidro.
Para além da janela, tudo irradiava um tom esbranquiçado. No
carro vermelho parado no estacionamento ao lado do apartamento, o
para-brisas brilhava com frescor, feito uma piscina. As luzes se moviam
como se transbordassem. A palavra “resplandecer” deve se referir a
esse tipo de cena. Eu meditei sobre esse termo e observei esse fulgor
por um tempo. Enquanto isso, lá do fim da rua, vinha a pequena
Midoriko, cabisbaixa. Como tive a impressão de que ela deu uma
olhadela em minha direção, acenei ostensivamente. Midoriko parou só
por um instante e levantou um pouco a mão como se sinalizasse que
tinha me visto. Em seguida, voltou a caminhar, cabisbaixa, e seu corpo
ficou cada vez maior.
O objetivo de Makiko em Tóquio era ir a uma consulta na clínica
marcada para o dia seguinte, e não tínhamos nenhum outro plano.
Como Makiko sairia de casa antes da hora do almoço, eu teria que
tomar conta de Midoriko pelo resto do dia. Muito tempo atrás, uma
senhora viera me oferecer a assinatura de um jornal e deixara, muito
boazinha, um ingresso de um parque de diversões com passaporte
livre para todos os brinquedos, que eu guardara na gaveta. Não sabia
se uma menina do sexto ano do ensino fundamental ia gostar de ir a
um parque de diversões com alguém da família. Pelo que Makiko
dizia, eu sabia que Midoriko gostava de ler, no entanto não sabia nem
se ela, que não emitia qualquer som, concordaria em sair a sós comigo.
Lembrei que a senhora tinha me dito, sorrindo: “Nós não somos
vendedoras. Somos chamadas de propagadoras do jornal.” Como
existem poucas vendedoras nessa área, mulheres conseguem
assinaturas relativamente mais fácil. Ainda sorrindo, ela me falou que,
se já fazia bicos, ela acreditava que eu conseguiria aumentar minha
renda vendendo assinatura de jornais.
De qualquer forma, poderia decidir isso depois. Amanhã pensaria
no que iríamos fazer, pois antes tinha que pensar no que faríamos hoje,
uma vez que já tínhamos perdido metade do dia e esse era o problema
mais urgente. Estava pensando em jantar no restaurante chinês perto
de casa, mas faltavam cerca de três horas até a hora da janta. Um
período considerável. Makiko estava deitada com a cabeça sobre a
almofada bean bag e com uma das pernas sobre a boston bag,
assistindo à TV, e Midoriko, que tinha chegado em casa havia pouco
tempo, escrevia algo no seu caderno, sentada no canto do quarto.
Segundo Makiko, desde que parou de falar Midoriko carregava dois
cadernos que mantinha sempre perto de si: o menor, que usava para se
comunicar no dia a dia, e o outro, mais grosso, em que parecia
escrever uma espécie de diário.
A situação não chegava a ser desconfortável, mas havia uma falta de
naturalidade no ar, um clima que não me deixava relaxar, e, sem saber
o que fazer, passei um pano no chabudai, verifiquei a forma de gelo,
que obviamente ainda não tinha gelo porque eu tinha acabado de
encher com água depois de servi-lo junto com mugicha, e catei fiapos
do carpete. Makiko assistia à TV deitada no chão e ria, parecia se
sentir em casa. Midoriko parecia estar concentrada em sua escrita, e
dava para perceber que estava relativamente relaxada. Talvez não
houvesse necessidade de arranjar algo para fazer até a hora do jantar.
Talvez não precisasse me preocupar. Cada uma fazendo o que bem
entendia, sem se preocupar com as outras, sem tentar fazer algo juntas
para passar o tempo — pensando bem, isso era algo normal. Não, não
era exatamente normal, mas era algo confortável. Então eu também
poderia continuar o romance que estava lendo. Assim, sentei-me na
cadeira e abri o livro, mas não consegui relaxar com a presença de
outras pessoas no quarto. Lia uma linha, passava para a próxima,
virava a página e percorria as palavras com os olhos, mas logo percebi
que minha mente não estava acompanhando o enredo. Desisti de ler e
devolvi o livro à estante.
— Ei, Maki-chan, não quer ir à casa de banho? Faz tempo que não
vamos, né? — perguntei.
— Tem alguma aqui perto?
— Tem, sim! — respondi. — Podemos nos refrescar e jantar
depois.
Nesse momento, Midoriko, que estava compenetrada e com o
pescoço curvado escrevendo algo, levantou a cabeça de súbito, olhou
em nossa direção, pegou rapidamente o caderninho e escreveu, sem
nenhuma hesitação: “Não vou.” Makiko, que olhava a filha de soslaio,
não lhe respondeu. Disse para mim:
— Boa ideia. Vamos!
Coloquei os itens necessários para o banho numa bacia, cobrindo-
os com duas toalhas de banho, e a guardei numa grande bolsa de
plástico para levá-la a tiracolo.
— Tem certeza de que não vai mesmo, Midoriko? — perguntei por
educação, sabendo que ela não iria. — Vai ficar nos esperando?
Ela contraiu os lábios firmemente, com um olhar frio, e balançou a
cabeça só uma vez, de forma afirmativa, em um movimento expansivo.
***
***
Midoriko
4
Pessoas que vêm ao restaurante chinês
***
○ Outro dia, quando tive uma briga feia com minha mãe por causa de
dinheiro, disse a ela sem pensar: “Por que você me teve, então?” Me
lembro disso sempre. Depois achei que foi uma coisa horrível de se
dizer, mas acabei falando no calor do momento. Minha mãe ficou
brava, mas não disse nada, e foi bastante constrangedor.
Pensei em ficar um tempo sem falar com ela, pois, se falar, vou
acabar brigando e dizendo coisas horríveis. Minha mãe vive
trabalhando e está sempre cansada, e metade da culpa por ela estar
assim é minha. Não, é tudo culpa minha. Quando penso nisso, fico
desesperada. Quero virar adulta logo, quero trabalhar bastante para
poder dar dinheiro para ela. Já que não posso fazer isso agora, quero
ser boazinha com ela. Mas não consigo. Às vezes só choro.
Depois de concluir o ensino fundamental I, terei mais três anos de
ensino fundamental II. Quando terminar o ensino fundamental II,
talvez possa trabalhar em algum lugar. Mas mesmo começando a
trabalhar, acho difícil levar uma vida tranquila e conseguir manter isso
por muito tempo. Tenho que ter alguma habilidade. Minha mãe não
tem nenhuma habilidade. Habilidade. Na biblioteca há muitos livros
para crianças, para nos fazer pensar sobre a profissão que queremos
seguir por toda a vida, e vou pesquisar. Ultimamente tenho recusado
quando minha mãe me chama para tomar banho na casa de banhos.
Antes da última briga por causa de dinheiro, tivemos outra briga, e
falei uma coisa da qual me arrependi depois. A briga era por causa do
trabalho dela. Ela estava indo ao trabalho com um vestido, aquele
roxo extremamente extravagante com babado dourado. Ela estava
indo de bicicleta, e um menino viu e contou para todo mundo,
fazendo troça. Tudo começou por isso. Deveria ter falado para ele
naquela hora: “O que você está falando, seu idiota? Quer apanhar?”
Queria ter falado isso, mas disfarcei e ri na frente dos outros. Ri de
maneira afetada. Depois discuti com minha mãe, e no final ela estava
brava, quase chorando. “Não tem jeito, a gente tem que comer”, disse
ela em voz alta, e eu rebati: “É tudo culpa sua por ter me dado à luz.”
Mas depois percebi uma coisa: não foi culpa dela que ela tenha
nascido.
Então decidi uma coisa: nunca vou ter filhos. Mesmo quando me
tornar adulta, nunca mesmo. Pensei várias vezes em pedir desculpas a
minha mãe. Mas chegou a hora, e ela saiu para trabalhar.
Midoriko
5
Longo bate-papo das irmãs à noite
***
○ No intervalo da escola, as meninas começaram a falar das profissões
que queriam seguir no futuro. Ninguém parecia ter se decidido ainda,
e eu também não. Todas falaram: “Yuri, Yuri, você é tão bonitinha,
poderia ser uma artista.” E ela disse: “Eu?”
No caminho de volta, perguntei para Jun-chan como ela pretendia
ganhar dinheiro no futuro, e ela respondeu: “Vou tomar conta do
templo budista da minha família.” A família de Jun tem um templo, e
vejo sempre o avô e o pai dela andarem de moto com suas túnicas
esvoaçantes de monge. Outro dia perguntei qual era o trabalho de um
monge, e ela disse: “Ler sutras budistas nos funerais e nas missas.”
Nunca participei de funerais nem de missas. “Como você vai ser
monge?”, perguntei, e ela respondeu que, depois de concluir o ensino
médio, vai participar de uma espécie de acampamento para realizar o
treinamento e que vai ficar confinada por um tempo. “Mulher pode
ser monge?”, perguntei, e ela respondeu que sim.
Segundo Jun, o templo é da religião budista, e existe uma complexa
ramificação do budismo, que começou com Gautama alcançando a
iluminação. Os discípulos dele seguiram seus ensinamentos e
mantiveram a prática, e as pessoas continuam seguindo suas lições até
hoje. A iluminação, segundo meu entendimento a partir da explicação
de Jun, é sentir um lampejo depois de praticar o que foi aprendido, e
alcançar o estado em que desaparece até a ideia de que tudo é um e
um é tudo; é chegar à conclusão de que tudo sou eu, e que o eu não
existe. Tem também o conceito de alcançar o nirvana e o estado de
Buda. Não sei qual a diferença entre alcançar o nirvana e obter a
iluminação, mas, pelo que entendi, o objetivo do budismo é alcançar o
nirvana. Os monges leem os sutras nos funerais para que os falecidos
alcancem o nirvana e para que se tornem Buda.
Fiquei surpresa depois que Jun me explicou que as mulheres não
podem alcançar o nirvana mesmo depois de mortas. E o motivo disso,
em poucas palavras, é porque elas são impuras. Os homens ilustres de
antigamente escreveram muitos textos explicando como as mulheres
são impuras e por que elas não podem alcançar o nirvana. E
concluíram que, para elas alcançarem, precisam renascer como
homens. Tomei um grande susto e perguntei: “Como vou me
transformar em um homem?” Jun também disse que não sabia. Eu
perguntei a ela: “Jun, você acredita numa idiotice dessas? Como
pode?” Quando disse isso, o clima entre a gente ficou um pouco
estranho.
Midoriko
***
***
○ Não estou falando muito com minha mãe. Ou melhor, não estou
falando nada com ela.
Jun também está um pouco fria. Talvez ela tenha achado que eu a
estava evitando, mas não foi isso. Só achei que estava estranho. Mas
não tinha clima para eu dar explicações. Ultimamente, mamãe
pesquisa sobre mamoplastia de aumento todos os dias. Finjo que não
estou vendo, mas é uma cirurgia para colocar uma substância nos seios
e aumentar seu tamanho. É inacreditável. Afinal, para que fazer isso?
Não consigo nem imaginar. É nojento, não dá para acreditar.
Que nojo que nojo que nojo que nojo que nojo que nojo que nojo.
Vi na TV, vi fotos, vi no computador da escola e continua sendo
uma cirurgia. Faz um corte. Faz um corte grande. E injeta uma
substância nesse corte. Deve doer. Minha mãe não sabe de nada. Nada
mesmo. Que boba, ela é muito boba. Outro dia ouvi mamãe falar ao
telefone em ser usada como portfólio, assim ela poderia fazer a
cirurgia de graça para a clínica poder usar o rosto dela nas revistas e na
internet. Isso também é uma grande bobagem. Minha mãe é boba,
boba, boba, boba, boba, boba… Por quê?
Meus olhos doem desde terça-feira. Não consigo mantê-los abertos.
Midoriko
***
***
***
Midoriko
***
***
○ Vou escrever sobre peitos. O que antes era achatado está crescendo,
inchando, e as duas coisas estão aumentando independentemente da
minha vontade. Por quê? Para quê? De onde elas vêm? Por que não
posso continuar do jeito que era antes? Algumas meninas mostram
umas às outras, até saltam para ver de quem balança mais; vangloriam-
se, felizes, do tamanho umas às outras, e os meninos também ficam
tirando sarro. Por que elas se comportam desse jeito? Por que ficam
tão felizes assim? Eu que sou a estranha? Não gosto disso, não quero
que meu peito cresça; é repugnante, tenho até vontade de morrer só
de pensar nisso. Mas mamãe fica falando ao telefone que quer fazer
cirurgia para aumentar os peitos. Quando ela estava conversando com
alguém da clínica, me aproximei sorrateiramente porque queria ouvir
toda a conversa. “Depois que tive minha filha…”, repetindo as
palavras de sempre, e ela continua: “Dei de mamar”, é sempre assim.
Todo dia ela está ao telefone. Que boba. Ela quer ter o mesmo corpo
de antes de dar à luz? Então não precisava ter dado à luz. A vida da
minha mãe teria sido melhor se eu não tivesse nascido. Se ninguém
nascesse, não teria nenhum problema, não existiria alegria, tristeza,
não existiria nada, desde o começo. Tudo isso não existiria. Não é
culpa das pessoas que elas tenham óvulos ou espermatozoides, mas
acho que poderiam parar de fazer essas duas coisas se unirem.
Midoriko
***
***
○ Tem um remédio que minha mãe toma antes de dormir. Fui ver o
que era quando ela não estava e era xarope para tosse. Vi ontem à
noite e, quando fui ver hoje, tinha diminuído mais da metade em um
dia. Ela tomou tudo isso? Nem está com tosse, então por que toma
xarope? Ela está emagrecendo cada vez mais. Outro dia disse que
levou um tombo de bicicleta na volta do trabalho à noite, ou melhor,
porque era de noite. Queria perguntar se não tinha se machucado, mas
como não estou falando com ela, não posso perguntar. Que tristeza.
“Por que você toma xarope para tosse, mãe?”, quero perguntar. “Você
está com dor?”, quero perguntar também. Vi na TV que em algum
lugar dos Estados Unidos, o pai dá de presente para a filha que
completa quinze anos uma cirurgia para aumentar os peitos. Para que
fazer isso? Não entendo. E vi também que nos Estados Unidos as
pessoas que aumentam os peitos têm três vezes mais chance de
cometer suicídio em relação às pessoas que não aumentam. Eu me
pergunto se minha mãe sabe disso. Se não sabe, é um problema. Se
souber, talvez mude de ideia. Preciso ter uma conversa séria com ela.
Tenho que perguntar para ela por que ela quer fazer isso. Não, não
posso perguntar isso, não posso falar sobre peitos com minha mãe.
Mas quero fazer as coisas direito. Tudo direito.
Midoriko
***
***
Como ela estava um pouco na contraluz, não consegui ver bem seu
rosto, mas logo percebi que estava visivelmente embriagada. Ela não
disse nenhuma palavra, não estava cambaleante nem cheirava a álcool,
mas por alguma razão percebi na hora que ela havia tomado uma
quantidade considerável de bebida alcóolica.
Como se confirmasse minha suspeita, ela disse, com uma voz
arrastada:
— Gente, cheguei.
Tentou tirar os sapatos, sem perceber que já tinha tirado. No breve
esforço de tirar os calçados que não usava mais, ela friccionava o
tornozelo com o outro pé, marcando passos de forma complexa.
— Maki, você já tirou os sapatos — intervim. Então ela deu uma
desculpa, afirmando que estava coçando o pé, e caminhou lentamente
em direção ao quarto.
— Estávamos preocupadas. Por que não me atendeu? —
questionei, e quando fiz isso, ela ergueu bem as sobrancelhas e me
encarou. Formaram-se várias rugas horizontais grossas na testa dela e
o branco dos olhos dela parecia estar levemente avermelhado.
— No celular? Estava sem bateria.
— Podia ter comprado uma nova na loja de conveniência.
— Aquilo é caro! Não sou idiota para comprar — respondeu ela, e
depois jogou a bolsa no tapete, caminhou até a bean bag fazendo ecoar
seus passos e se debruçou de braços abertos sobre a almofada,
permanecendo imóvel por um tempo.
“Onde você estava?”, engoli com custo essa pergunta e tossi alto. O
som da tosse ecoou mais alto do que eu esperava, até pareceu uma
tossida inquiridora, assim pensei, e tossi mais uma vez para mostrar
que as tosses não tinham nenhum significado especial. Mas essa
segunda saiu travada, parecendo um soluço. Tossi mais uma vez para
tentar disfarçar, mas dessa vez saiu com catarro, e continuei tossindo
convulsivamente por um tempo. Quando consegui me acalmar,
Makiko virou apenas o rosto e me olhou. As sobrancelhas já estavam
apagadas, o delineamento do contorno dos olhos estava borrado na
pálpebra inferior e as olheiras côncavas e escuras pareciam ainda mais
fundas e densas. Nas maçãs do rosto estavam espalhadas fibras do
rímel. A base da maquiagem e a oleosidade da pele haviam se
misturado, a base tinha se soltado e formava manchas mosqueadas.
— Hã... Não é melhor você lavar o rosto? — perguntei quase sem
querer.
— Quem se importa com meu rosto? — retrucou Makiko.
Midoriko, que ainda estava com o dicionário eletrônico na mão,
acompanhava nosso diálogo do canto do quarto. Nessa hora, uma
ideia passou pela minha cabeça: será que Makiko se encontrou com o
pai de Midoriko, ou seja, com o ex-marido dela? Ela dissera ontem à
noite que iria encontrar com uma pessoa conhecida que morava por
aqui, mas nenhuma vez tinha comentado sobre essa pessoa comigo. Se
ela tivesse mesmo algum conhecido aqui, teria mencionado pelo
menos uma vez, o que seria natural. Mas até agora ela nunca falara
desse amigo ou dessa amiga, ou seja, na realidade ela provavelmente
não deveria ter nenhum amigo em Tóquio.
Então com quem ela teria bebido até tarde da noite? Conhecendo
Makiko, sentia que ela não seria capaz de beber sozinha a ponto de
ficar tão embriagada assim. Tanto eu quanto ela só conseguíamos
beber cerveja, nenhuma outra bebida, e ela não era tão fraca para o
álcool como eu, mas, para início de conversa, ela nem gostava de
beber tanto assim. Além do mais, ela sabia que sua irmã mais nova —
eu, no caso —, com quem estava se reencontrando depois de muito
tempo, e sua filha estavam esperando no apartamento, e tinha saído
dizendo que voltaria aproximadamente às sete da noite.
Sendo assim, eu podia concluir que provavelmente acontecera
algum imprevisto, ela se encontrara com alguém que não planejara e,
pela reviravolta dos eventos, tinha ficado embriagada desse jeito, de
forma também inesperada. Então, quem seria esse alguém com quem
ela não planejara se encontrar? Makiko era bastante tímida, apesar de
trabalhar como hostess e atender os clientes no dia a dia. Ela seria
capaz de manter um rápido bate-papo com alguém com quem se
encontrava pela primeira vez, mas jamais sairia para beber com essa
pessoa. Ou seja, seguindo uma linha de raciocínio natural e simples, a
única pessoa com quem Makiko poderia ter saído para beber em
Tóquio seria seu ex-marido.
Mas eu não estava a fim de interrogar Makiko. “Como você foi
capaz de beber tanto assim? E aí, com quem você bebeu?”, não tinha
nem a intenção de falar desse jeito, em tom de brincadeira. Ela era
livre para beber com quem e onde quisesse, e eu não tinha nada a ver
com isso. Sim, esse era um ponto, mas resolvi agir assim não em
respeito à opção dela, mas por outra razão.
Se ela tivesse se encontrado com uma amiga, uma velha conhecida
sua, eu poderia perguntar sobre o que elas tinham conversado, o que
tinham comido, o que essa amiga fazia, poderia perguntar várias
coisas, sem nenhum problema. Mas não queria saber nada a respeito
do ex-marido dela, não tinha a menor vontade de saber o que eles
tinham conversado, o que cada um tinha dito, com que intenção, o
interesse que tinham no passado ou no presente, se tinham algum
arrependimento pelo passado ou pelo presente, algum
ressentimento… Não queria saber de nada disso. Não sei por quê.
Não tinha nenhum sentimento especial em relação ao meu ex-
cunhado, não tinha nenhuma opinião sobre ele. Mal conseguia me
lembrar do rosto dele. Não lembrava praticamente nada dele. Mesmo
que Makiko guardasse alguma mágoa que eu, como sua irmã mais
nova, devesse ouvir, eu não queria saber nada relacionado ao ex-
marido dela. Não queria nenhum tipo de envolvimento com esse
homem. Por isso, fiquei calada.
— Bem, vai tomar banho — disse a ela. — Ah, compramos
pequenos fogos de artifício na loja de conveniência, um pouco antes
de você chegar. Amanhã vocês já vão embora, né? Então pensamos em
queimar os fogos de artifício juntas hoje à noite.
Sem responder, ela permaneceu com o rosto enterrado na
almofada, deitada de bruços enquanto eu falava, movendo a cabeça
apenas o suficiente para mostrar que estava ouvindo.
As duas pernas dela estavam estendidas em linha reta como se
fossem hashis, deixando à vista a planta de seus pés. O rasgo da meia-
calça que começava a se desfiar na base do polegar chegava até o
tornozelo. Os calcanhares sob a meia-calça estavam ásperos e
rachados, lembrando um bolinho de arroz, kagamimochi, velho, e as
panturrilhas onde não havia nenhuma carne flácida lembravam a
barriga dura de um peixe seco.
Midoriko, que nos observava do canto do quarto, deixou o
dicionário eletrônico sobre a mesa e foi para a cozinha. Sem acender a
luz, ela ficou de pé na frente da pia, no escuro, imóvel, nos fitando em
silêncio. Não sei por qual razão eu também fui à cozinha, ao lado dela,
e observei o quarto.
Era o mesmo quarto de sempre. Havia uma estante de livros na
parede, uma mesinha no canto direito ao fundo e uma janela bem à
frente. As cortinas de cor creme — cujo desbotamento não era
perceptível — não haviam sido trocadas desde que tinha me mudado
para Tóquio. Makiko permanecia imóvel sob as cortinas, com o corpo
curvado e deitada na almofada. Várias coisas se moviam dentro da tela
da TV.
Depois de um tempo, Makiko colocou as mãos no tapete e,
mexendo-se devagar, apoiou-se com os joelhos no chão, ficando de
quatro, como se fosse fazer flexão de braço. Como se fizesse uma
rotina de fisioterapia, ela inclinou a cabeça para a direita e para a
esquerda algumas vezes. Em seguida, soltou um suspiro, que parecia
mais um gemido, e se levantou bem devagar. Nossos olhares se
cruzaram. Era possível ver agora seu rosto de modo bem mais nítido
do que antes e, estreitando os olhos e fitando em nossa direção, ela
avançou alguns passos pisando com toda a superfície da planta dos
pés, até chegar à fronteira entre o quarto e a cozinha. Recostando-se
no pilar, ela coçou a testa e começou a falar com Midoriko.
Diria até que, dependendo do ponto de vista, a voz de Makiko
tinha um tom provocativo, ou seja, ela falava como alguém
embriagado, o que me deixou um pouco assustada. Nenhuma vez —
nem quando eu morava com ela, nem quando bebíamos cerveja juntas
e não morávamos mais sob o mesmo teto — tinha visto minha irmã
embolar as palavras embriagada dessa maneira.
Será que ultimamente ela ficava bêbada desse jeito, com frequência,
em Osaka?, pensei, preocupada.
Ela sempre tratava a filha desse jeito? Imaginei-a completamente
bêbada, resmungando, deitada, e Midoriko, imóvel, ao lado da mãe.
Mas como sabia que não adiantava me preocupar com isso agora e
questionar minha irmã naquele estado, fiquei calada.
No chão havia o balde que tinha deixado preparado para colocar
água para apagar os fogos de artifício portáteis depois de serem
queimados. Era um balde sem nada de especial, azul, de plástico.
Aliás, por que tenho um balde em casa?, pensei de súbito. Com certeza,
eu deveria ter comprado na loja de cem ienes ou algo do tipo, mas
nunca o tinha usado e parecia novo. Observei por um tempo esse
balde à minha frente, que começou a parecer esquisito, com formato
totalmente diferente. O que é isso? A natureza própria de balde estava
sendo decomposta, abandonando a existência chamada balde e, aos
poucos, fiquei sem saber o que era esse algo que restara. Várias vezes
já tinha acontecido de ver uma letra e ter a sensação de que nunca a
tinha visto antes, mas era a primeira vez que tinha essa sensação em
relação a um objeto. Vi os pequenos fogos de artifício no canto, e eles
ainda continuavam sendo fogos de artifício. Fiquei um pouco aliviada.
Fogos de artifício. Eram mesmo os fogos de artifício que eu conhecia.
Enquanto pensava nessas coisas, fui verificando cada objeto
irrelevante que havia na cozinha, quando ouvi a voz de Makiko. Ao
levantar o rosto, a vi se aproximar de Midoriko, dirigindo-lhe palavras
em tom ríspido:
— Se você não quer falar comigo, faça o que quiser. Para mim tanto
faz! Você, com essa cara de quem acha que nasceu sozinha e vive
sozinha, sem a ajuda de ninguém. — Makiko disse essas palavras que
ultimamente a gente nem ouvia mais nas novelas melodramáticas da
TV, e continuou: — Por mim, está tudo bem assim. Não tem
problema. Está tudo bem. Sim, está tudo bem.
Não parecia que estava tudo bem. Midoriko desviou o olhar do
rosto da mãe e encarou o interior da pia vazia. Deve ser um saco ouvir
isso da mãe, pensei, suspirando intimamente.
Chegando mais perto da menina, que insistia em não olhar para a
mãe, Makiko aproximou seu rosto do da filha.
— Você — disse Makiko. — Você nunca me escuta, apenas me
despreza. Pode me desprezar à vontade.
Midoriko torceu o corpo na tentativa de se livrar da mãe, mas
Makiko continuou:
— Se você não quer falar, se não consegue falar, usa aquele seu
caderninho ou qualquer outra coisa, se tem algo a dizer, escreve
naquilo. Você não é boa em escrever? Se comunica desse jeito a vida
inteira, até eu morrer, até você morrer. — O tom de Makiko foi se
tornando cada vez mais ríspido, enquanto Midoriko encolhia-se,
pressionando a bochecha no ombro. — Até quando você vai continuar
com isso? Eu...
Makiko segurou o cotovelo de Midoriko, e esta, por sua vez,
sacudiu o braço com força na tentativa de se desvencilhar. Com o
impulso, a mão de Midoriko atingiu o rosto de Makiko, produzindo
um grande estalo, seus dedos espetando o olho dela.
— Ai! — Makiko soltou um grito estridente e cobriu o rosto com
as mãos. Lágrimas jorraram do seu olho, ela não conseguia abrir as
pálpebras e, mesmo pressionando-as várias vezes com a ponta dos
dedos e tentado piscar, o olho não abria. Lágrimas escorriam como um
rio, brilhando, viscosas, na sombra projetada em sua bochecha.
Midoriko, que estava com os braços esticados na vertical, com as
mãos firmemente cerradas e com a boca fechada exprimindo
sofrimento, observava a mãe que continuava a derramar lágrimas do
olho que estava sendo pressionado com os dedos.
Até Makiko estava sem palavras, pensei. É lógico que para mim, que
observava a briga das duas, também faltavam palavras. Faltam
palavras, faltam palavras, faltam palavras, só repetia isso mentalmente,
e não tinha nada que poderia dizer. Não havia nada que podia ser dito.
A cozinha estava escura. Tinha um leve odor de lixo orgânico.
Pensando nessas coisas pouco importantes, observei fixamente o rosto
de Midoriko. Talvez por estar mordendo firmemente a boca com os
dentes molares, uma sutil linha muscular tinha surgido na sua
bochecha, e ela encarava um ponto que eu não sabia qual era com uma
fisionomia tensa. Makiko continuava cabisbaixa com as mãos no olho,
soltando gemidos de dor. Enquanto eu observava as duas, não sei o
que pensei, mas sem querer estendi meu braço e apertei o interruptor
da parede, acendendo a luz da cozinha.
Ouvimos um click e, quando a lâmpada fluorescente acendeu por
completo depois de piscar algumas vezes, surgiu nitidamente na
claridade a figura de nós três na cozinha, de pé, bem próximas.
A cozinha que eu não só estava acostumada a ver, mas era
praticamente uma extensão do meu corpo, estava esbranquiçada e
parecia ainda mais velha. Sob a luz monótona e branca da lâmpada
fluorescente que iluminava todos os cantos, Makiko estreitou os olhos
muito vermelhos. Midoriko pressionava os punhos cerrados com força
contra a coxa e fixava o olhar na altura do pescoço da mãe. Ela
inspirou profundamente, produzindo um ruído e, no instante seguinte,
emitiu um som voltado para Makiko:
— Mãe — disse ela.
Mãe, ela soltou de sua boca, literalmente, uma massa com esse som
e esse significado. Me virei ao ouvi-la.
— Mãe — disse Midoriko em tom alto e claro mais uma vez,
chamando a mãe que estava bem ao seu lado.
Makiko também olhou assustada para a filha. As mãos cerradas de
Midoriko tremiam levemente, e eu conseguia sentir que, à menor força
aplicada de fora, elas estourariam e desmoronariam, de tão tensas que
estavam.
— Mãe — disse Midoriko, como se espremesse a voz. — Fala a
verdade.
Ela só conseguiu dizer aquilo com muito custo, fazendo os ombros
balançarem um pouco, para cima e para baixo. Seus lábios
entreabertos tremiam ligeiramente. Deu para ouvir quando ela engoliu
a saliva, como se tentasse impedir que algo saísse. Ela não sabia como
liberar a tensão que inflava e intumescia dentro de seu corpo. Então
disse mais uma vez, com uma voz que praticamente se esvaía:
— Fala a verdade.
Assim que essas palavras alcançaram Makiko, esta soltou um
grande suspiro e começou a rir alto.
— Espera aí. Ha-ha-ha. Do que você está falando? Falar a verdade?
— Makiko riu voltada para a filha e balançou a cabeça de forma
exagerada. — Ouviu isso, Natsuko? Que surpresa! Falar a verdade? O
que ela quer dizer com isso? Pode me explicar, Natsu?
Makiko continuou rindo como se arrancasse o som à força do
fundo da garganta.
Não, Makiko, você não pode tentar disfarçar a sua insegurança e o
apelo da sua filha desse jeito, não é momento de você cair na gargalhada.
Não é a coisa certa a fazer, pensei, mas não coloquei em palavras.
Midoriko estava cabisbaixa e calada ouvindo a gargalhada da mãe.
Como o movimento vertical de seus ombros aumentava cada vez mais,
achei que ela fosse começar a chorar. Mas, em vez disso, levantando o
rosto de repente, ela abriu rápido, como um raio, o pacote de ovos que
eu tinha deixado no balcão da pia para jogar fora. Ela pegou um ovo
com a mão direita e a levantou alto.
Vai atirar, pensei. Naquele momento, lágrimas jorraram dos olhos
dela, como as lágrimas desenhadas num quadro de uma história em
quadrinhos, e ela quebrou na própria cabeça o ovo que segurava.
Ecoou um som familiar, craque, ao mesmo tempo que a gema
jorrou, e Midoriko bateu várias vezes na própria cabeça com a palma
da mão, como se a esfregasse, fazendo o ovo espumar nos cabelos.
Fragmentos de casca quebrada se espalharam por vários lugares, a
gema que entrara na orelha escorreu, e Midoriko passava a palma da
mão na testa, como se esfregasse, derramando lágrimas pelo rosto. E
pegou outro ovo.
— Por quê? — questionou ela como se soltasse o ar. — Por que
você vai fazer a cirurgia?
E quebrou o ovo na cabeça, como da primeira vez, e a clara e a
gema escorreram por sua testa misturando-se. Sem limpar e sem se
importar com elas, pegou outro ovo, e continuou:
— Você me pariu e ficou assim. Não tem jeito. Por que me pariu e
sofreu tanta dor? — gritou ela para a mãe e quebrou o ovo, batendo-o
na cabeça com mais força. — Estou preocupada com você, mãe, mas
não sei o que está acontecendo. Não podia falar. Gosto muito de você,
mas não quero ser que nem você. Quer dizer, não é tão simples assim.
— Midoriko prendeu a respiração. — Também quero ganhar
dinheiro, quero poder ajudar você, mãe, para que você tenha uma vida
decente, mas, mesmo assim, eu tenho medo. Tem um monte de coisa
que não entendo. Meus olhos doem e ardem! Por que tenho que
crescer? É muita dor, muita dor. Eu não deveria ter nascido, não é? Se
ninguém tivesse nascido, nada disso existiria, nada disso aconteceria!
Gritando e chorando, Midoriko pegou dois ovos, cada um com
uma mão e os quebrou simultaneamente na cabeça. Os fragmentos de
casca se espalharam por todos os lados, a clara pegajosa ficou suspensa
na gola de sua camiseta e pedaços amarelos grudaram nos ombros e no
peito dela. Ainda de pé, Midoriko chorou alto; era o choro humano
mais alto que já tinha ouvido na minha vida.
Bem ao lado da filha que, com as costas curvadas, chorava de
soluçar, Makiko a observava sem se mexer.
— Midoriko! — gritando de repente, como se tivesse voltado a si,
segurou os ombros da filha lambuzados de ovo.
Midoriko se debateu, balançando violentamente os ombros,
Makiko então a soltou e ficou imóvel, com os braços levantados no ar.
Sem conseguir tocar na filha que chorava bem à sua frente, encharcada
de clara e gema que endureciam, nem se aproximar dela, Makiko a
encarava com a respiração um pouco ofegante. De repente, pegou um
ovo do pacote e tentou quebrá-lo batendo contra a própria cabeça.
Mas como ele não se quebrou, talvez por causa do ângulo, e caiu no
chão, ela tentou pegá-lo às pressas. Agachando-se e ficando de quatro,
ela bateu sua testa contra o ovo que já estava parado no chão,
quebrando-o, mas continuou pressionando a testa contra ele. Ao se
levantar com o rosto lambuzado de gema e casca e se aproximar da
filha, ela pegou outro ovo e o quebrou na testa.
Chorando, Midoriko observava a cena com os olhos arregalados.
Então ela também pegou outro ovo, batendo-o com força contra a
têmpora e quebrando-o. A gema e a clara escorreram, a casca também
caiu, e Makiko, por sua vez, pegou um ovo em cada uma das mãos e os
bateu contra a cabeça em sequência, um de cada lado, num ritmo de
“um, dois”.
Virando-se para mim com o rosto encharcado de ovo, Makiko
perguntou:
— Tem mais?
— Tem na geladeira — respondi.
Makiko abriu a porta da geladeira, pegou os ovos e foi quebrando-
os um a um na cabeça. A cabeça das duas foi ficando cada vez mais
esbranquiçada, e ecoou um ruído seco de uma casca de ovo sendo
quebrada com a planta dos pés. No chão, as gemas e as claras
transparentes e entumecidas formavam uma poça.
— O que você quer dizer com falar a verdade, Midoriko? —
perguntou Makiko com a voz rouca, passado um tempo depois que
todos os ovos tinham sido quebrados. — Midoriko, o que você quer
dizer quando diz “verdade”? Qual verdade você quer saber?
Makiko falava gentilmente com a filha, que chorava com o corpo
encolhido. Mas Midoriko só balançava a cabeça e não conseguia emitir
palavras. Os ovos escorriam de forma viscosa e começavam a
solidificar no cabelo, na pele e na roupa das duas.
Sem conseguir conter o choro, Midoriko disse com muito custo, em
voz baixa: “A verdade.”
Makiko balançou a cabeça.
— Midoriko, minha filha. Você acha que existe a verdade. Todos
acham que a verdade existe. Acham que em tudo existe verdade. Mas,
filha, às vezes não existe nenhuma verdade. Às vezes a verdade
simplesmente não existe — disse ela em voz baixa para a filha, que
continuava a chorar fazendo tremer o seu corpo.
Makiko disse mais alguma coisa, mas não consegui ouvir.
Midoriko levantou o seu rosto e disse, balançando a cabeça:
— Não é isso, não é isso… Muitas coisas, muitas coisas, muitas
coisas — repetindo isso três vezes, ela se debruçou no chão da
cozinha, como se desmoronasse, e continuou chorando alto.
Makiko tentava limpar o ovo da cabeça da filha com a mão e os
dedos e colocava o cabelo embaraçado dela atrás da orelha várias
vezes. Makiko ficou acariciando as costas da filha sem dizer nada por
um bom tempo.
***
○ Mamãe disse que vai ter uma pequena folga depois do feriado do
Obon, e por isso podemos visitar Natsu nas férias de verão, em agosto.
Estou meio feliz porque nunca fui a Tóquio. Não, mentira, estou
muito feliz, é a primeira vez que vou andar de shinkansen, trem-bala.
Faz muito tempo que não vejo Natsu. Vou rever Natsu!
Midoriko
***
Midoriko
***
***
***
***
***
***
— Ah — disse suavemente.
Ao notar que minha voz soou mais grave e rouca do que eu
imaginava, me senti mais triste.
Depois de fechar o caderno e guardá-lo na gaveta, abri o navegador
no computador. Entrando em alguns blogs relacionados a tratamentos
de infertilidade marcados como favoritos, li os últimos posts em
sequência. Nos últimos meses, ler esses artigos tinha se tornado uma
espécie de hábito, não sei por qual motivo. Alguns termos técnicos
ainda eram confusos para mim, mas, com o tempo, passei a
compreender o todo pelo contexto.
Os detalhes dos exames principais e as dores que os acompanham.
Conversa com a sogra e a refeição que dividiu com o marido, com
quem se encontrou na volta da clínica. Irritação por ter que dar
conselhos sobre o casamento da cunhada justamente no dia em que foi
à clínica. Em um dos blogs havia uma foto do céu no final do artigo, e
no outro, uma ilustração graciosa. Dor de ver uma mãe com seu bebê
caminhando na rua. Comentário insensível de alguém. Recomendação
de um restaurante tailandês agradável, quase sem nenhuma criança ou
bebê mesmo no horário do almoço. Lembrei-me então do Facebook
de Naruse, fazia uns dez dias que não visitava. Fiquei um pouco na
dúvida, mas decidi não olhar o perfil.
Ainda estava claro do lado de fora da janela e, ao consultar o
relógio, vi que não eram nem sete horas.
Deixando o computador no modo repouso, fui à cozinha, preparei
arroz com nattō e o comi bem devagar. Como não tinha vontade de
fazer mais nada, pensei em passar o tempo até a hora de dormir
fazendo cada uma das atividades de forma delongada, gastando
bastante tempo. Mas quanto mais enrolava em cada mastigação,
quanto maior o capricho dedicado em cada ato, mais o tempo parecia
se estender, passando cada vez mais devagar. Claro, por mais devagar
que comesse, o arroz com nattō acabava em alguns minutos. Depois de
lavar tigela e hashi, fiquei sem nada para fazer. Sem outra opção,
deitei-me na bean bag e fiquei imóvel, em silêncio.
Às vezes ficar completamente parada desse jeito me fazia pensar na
minha infância. Sabia que o tempo e o espaço eram diferentes, mas
não mudava o fato de que era eu quem observava ambas as coisas. Nos
últimos dias, eu pensava muito em mamãe e em vó Komi. Quando
mamãe estava com minha idade, tinha duas filhas, uma de catorze e
outra de cinco. Eu, com cinco anos, jamais imaginara que viveria só
mais oito anos com ela. Acho que ela também jamais deve ter
imaginado que deixaria este mundo tão cedo.
Se mamãe tivesse me dado à luz dez anos antes, eu poderia ter
passado mais dez anos ao lado dela? Mas para isso ela teria que ter
Makiko com catorze anos. Isso não seria possível. Ri sozinha e lembrei
em seguida dos acontecimentos de hoje. Galette. Sim, tinha comido
galette no almoço. Era marrom, vinha com creme por cima, e quanto
ao sabor... Não me lembrava mais. Ou talvez ele não tivesse sabor
mesmo. Ouvi a voz de Yūko: “Que felicidade! Com filho pequeno a
gente não pode comer um prato como esse. Com filho pequeno, a
gente acaba comendo só pratos com macarrão e arroz.” Ah, é?, pensei.
Não tenho filhos, mas, independentemente de ter filhos ou não, não
quero comer esse tipo de comida.
“Elas são tão idiotas. São muito idiotas, não têm salvação”, me
vieram à mente as palavras de Konno. De repente pensei em ligar para
ela. Lembrando-me dela se afastando depois de passar pela catraca, vi
a figura de uma menininha à sua direita. Sim, ela também tinha uma
filha. Em seguida, lembrei-me que eu também tinha rins. Sim, pelo
menos eu tenho um rim, apesar de não poder participar da discussão
sobre a situação hipotética de doar um rim.
Soltei um leve suspiro e pensei em Ryōko Sengawa. “E como vai seu
romance?” Não está avançando. Nem sei se vou conseguir terminar — e
se eu tivesse dito desse jeito, de forma mais explícita? Afinal, o que ela
quis dizer com “como vai”? Me sentia tão péssima quando ninguém
me cobrava nada, e no momento me sentia exatamente assim. Como
eu era arbitrária! Ficava admirada comigo mesma — como poderia ser
tão exigente desse jeito? Mas o modo peculiar com que Sengawa
pressionava as pessoas... Ela dizia ter total compreensão sobre a
criação literária, mas sempre agia de modo a encurralar as pessoas —
com suspiros e pausas — e, ao me lembrar de cada um desses gestos,
acabei franzindo ainda mais as sobrancelhas, movida pela irritação. Me
sentia cansada. Mas, ao concluir isso, uma voz ecoou dentro da minha
cabeça: “Onde está sua ambição?”, disse aquele homem editor. “Mas o
que é ambição? O que eu tenho a ver com a ambição de que você
fala?” Por que não retruquei isso na hora? As palavras e sentimentos
davam voltas na minha cabeça, sem parar, como se competissem entre
si. Estou cansada. Vão todos para outro lugar. Sumam da minha frente.
Uma voz na minha cabeça respondeu: “Não se preocupe, nunca teve
ninguém aqui. Não se preocupe, você está sozinha.” Estou cansada.
“Mas você não fez nada”, retrucou a voz. Por fim, não consegui pegar
no sono e fiquei deitada em silêncio no futon, de olhos abertos, até de
madrugada.
9
Segurando as pequenas flores
“É lógico que no começo senti medo. Pensei que poderia ser levada
para algum lugar de repente, sofrer algum abuso, esse tipo de coisa
passou pela minha cabeça.”
A moça com efeito de mosaico no rosto dava esse depoimento,
respondendo às perguntas da entrevista. Seu cabelo, meio
acastanhado, ia até os ombros, e ela usava uma blusa xadrez com um
cardigã branco e fino por cima. Encadeava cada palavra com cuidado,
como se montasse uma colagem.
“No começo, não levei muito a sério. Não acreditava que poderia
engravidar de verdade desse jeito. Além do mais… Receber o sêmen, o
esperma de um estranho… Nem consigo acreditar que fui capaz de
fazer isso. Mas…” Ela ficou um tempo em silêncio e balançou
levemente a cabeça, como se confirmasse algo.
“Mas… para mim não havia outra alternativa. Nem tempo. Eu
queria ter meu filho, não importava como…”
A imagem foi cortada, e, na tela, apareceu um homem sendo
entrevistado, o doador de sêmen. Seu rosto também estava com efeito
de mosaico. Tinha cabelo curto, usava uma camisa de xadrez pequeno
e uma calça cáqui, e, enquanto falava, mexia nas unhas sem parar. Pelo
modo como se expressava e pela forma do seu corpo, não parecia
muito velho. Teria entre vinte e cinco e trinta e cinco anos,
aproximadamente?
“O motivo? Acho que só queria ajudar os outros. Há aqui uma
pessoa… uma mulher precisando de ajuda. Se eu posso ser útil, então
quero ajudá-la. Assim pensei… Quê? Ah, sim. Se eu considero esse
bebê como meu filho? Bem, sim, é óbvio. Como não sou casado, não
conheço a criança nem moro com ela, não consigo imaginar direito,
mas acho que é inegável o fato de que, com meu sêmen, ou melhor,
com o ato que fiz como voluntário, proporcionei alegria, felicidade a
uma mulher.”
Pausando o vídeo, alonguei o corpo sem me levantar da cadeira.
Já haviam se passado dez dias desde que assistira pela primeira vez
à reportagem especial na TV e, desde que ela fora disponibilizada na
internet no dia seguinte, tinha reassistido diversas vezes.
A reportagem especial dizia mais ou menos o seguinte:
No Japão, o tratamento para infertilidade usando o sêmen de
terceiros começou a ser realizado há mais de sessenta anos. Por meio
desse método, já haviam nascido mais de dez mil crianças. Somente os
casais oficialmente casados que já tentaram outros métodos de
tratamento para infertilidade podiam se submeter a esse tratamento
nos hospitais, desde que comprovassem que a causa era a infertilidade
do homem, como azoospermia. As mulheres solteiras sem parceiro não
podiam utilizar esse método, mesmo que desejassem ter um filho; os
casais homoafetivos também não. Até ali eu já sabia.
Mas, nos últimos anos, haviam surgido sites nos quais homens se
ofereciam para doar o próprio sêmen de forma individual, sem
intermediários. Faziam isso de forma voluntária, e vinha aumentando
o número de pessoas que procuravam por esses serviços, como
mulheres solteiras e casais homoafetivos. Os doadores não recebiam
nenhum tipo de compensação ou gratificação, no máximo aceitavam
que os receptores pagassem as despesas de transporte e a conta do
salão de chá onde marcavam encontros. Depois que a transação era
concluída, os doadores não assumiam nenhum tipo de
responsabilidade nem mantinham qualquer tipo de relacionamento.
Certo dia, uma mulher com pouco mais de trinta e cinco anos que
queria engravidar e ter um filho sozinha entrou em contato com um
deles. Ela optou pelo uso de uma seringa simples vendida nas lojas da
Tokyu Hands e inseriu, no próprio útero, o sêmen que recebera do
doador no salão de chá. Na segunda tentativa, conseguiu engravidar e
deu à luz como mãe solo. A reportagem era constituída
principalmente de entrevistas dessas duas pessoas, da mulher e do
doador, e no final um especialista aparecia para explicar sobre os
riscos de contaminação em casos de inseminação caseira; apontava
também problemas e desafios relacionados à ética.
Também dei uma olhada nos sites de doação de sêmen.
Assim como haviam dito no programa, apareceram cerca de
quarenta sites como resultado de busca, e muitos deles eram
nitidamente suspeitos, incluindo sites fake ou sites pessoais criados
apenas por impulso. Acessei minha conta do Twitter que tinha criado
na época do grande terremoto, em 2011, e que praticamente não
usava, e fiz uma busca com as palavras “doação de sêmen”.
Apareceram várias contas, mas quase todas eram paródias que
direcionavam para sites de pornografia, como “semen.com”, ou “we
love semen”, ou “brigada do amor por sêmen”.
O que me pegou de surpresa foi o fato de haver um banco de
sêmen que se apresentava como uma organização sem fins lucrativos e
de interesse público. Era um site bem organizado, dando a impressão
de terem sido investidos tempo e dinheiro. Informava que, na hora da
doação do sêmen, eram fornecidos até materiais de referência sobre as
características do doador, que iam desde tipo sanguíneo, resultados
dos testes de diversas doenças transmissíveis, relatório do teste
genético comprovando que ele não possuía nenhuma anomalia
genética, diploma universitário e outros. Se as informações eram
verdadeiras, eles tinham uma vasta experiência.
Comprei alguns livros relacionados ao assunto. No entanto, ainda
não havia nenhum livro escrito por mulheres que engravidaram e
tiveram filhos através desse método. Eram livros de depoimentos e
entrevistas de pessoas que haviam nascido por meio da doação de
sêmen feita em instituições médicas reconhecidas, história das
tecnologias de reprodução assistida, tecnologias de ponta e discussões
envolvendo o tema.
Experiência contada pela moça na reportagem da TV e diversas
informações escritas nos livros.
Qual delas teria relação comigo, de fato?
Alguma delas teria relação com a minha realidade?
Na noite em que assisti à reportagem, estava tão empolgada que
não consegui pegar no sono. Achava que tinha conseguido chegar bem
perto, não de uma resposta, de uma chance, mas de algo parecido,
relacionado ao que vinha pensando vagamente por mais de um ano, ou
às minhas preocupações. Mas, ao recuperar a calma depois de um
tempo, tive que admitir que minha empolgação diminuía cada vez
mais.
Encontrar-me com um homem estranho, completamente
desconhecido, em um salão de chá e receber seu sêmen retirado em
um banheiro ou outro lugar… Ou receber, pelo serviço de entrega
domiciliar refrigerado, o sêmen retirado no próprio dia por alguém de
quem só sabia os resultados dos exames médicos e a universidade na
qual se formara, e injetar sozinha, no útero, com a ajuda de uma
seringa comprada em uma das lojas da Tokyu Hands ou outro lugar,
engravidar e dar à luz… Não achei que fosse capaz de fazer isso. Será
que a moça que apareceu na TV fez tudo isso mesmo? Se o que ela
dissera era mesmo verdade, então sua força de vontade era
anormalmente grande, não? Essa foi minha impressão sincera. Sob
qualquer ponto de vista, inserir o sêmen de um homem desconhecido
no próprio corpo parecia algo impensável para mim.
Mas… para mim, isso é praticamente uma ficção, embora, no
Ocidente, existissem mesmo mulheres que davam à luz utilizando os
serviços dos bancos de sêmen. No Japão havia também inúmeras
crianças que tinham nascido por meio dessa tecnologia, o que
significava que suas mães foram bem-sucedidas nisso. Considerar
impensável esse método não seria uma espécie de preconceito?
Ainda assim, para ser sincera, não conseguia deixar de sentir certa
resistência. O doador do sêmen também seria um problema? Porque o
sêmen recebido em hospitais reconhecidos e o sêmen recebido de um
homem que mantém um site pessoal… Deveriam ser a mesma coisa, já
que tanto um quanto o outro são de desconhecidos. Mas era inevitável
sentir que existia uma diferença entre eles. Por que será? O que seria
diferente? A maioria do sêmen fornecido nos hospitais universitários
era de estudantes de medicina e, pelo menos até o fornecimento,
passava por várias checagens nessas instituições especializadas. Os
detalhes jamais seriam revelados, mas, de forma indireta, havia pessoas
que sabiam de quem era o esperma, ou seja, ele tinha passado por
alguma certificação.
E os doadores voluntários dos sites? Para mim, pareciam bem mais
impensáveis. Será que o problema era o salão de chá, onde era feita a
transação? Ou seriam as unidades da Tokyu Hands, onde a seringa era
comprada, um estabelecimento casual demais? Ou será que era a
inquietação que vinha da ligação das duas coisas, a inseminação
caseira do tipo “faça você mesmo” e a criação da vida, que deveria
estar o mais longe possível desse ato caseiro? Ou será que tinha a ver
com o status, como o nível de escolaridade? Isso nunca tivera relação
comigo, e nunca me importei com o status de outras pessoas ou algo
parecido, mas, se tratando de genes, será que sofríamos interferências
e fazíamos julgamentos baseados em rótulos?
De qualquer forma, o problema era o fato de o doador ser um
desconhecido, de não saber nada a seu respeito, de verdade. Então, o
que era conhecer de verdade o parceiro? Todos os casais que tinham
filhos, todos os casais que faziam sexo que poderia resultar em
gravidez realmente conheciam um ao outro? Não, isso era impossível.
Ao fazer essas conjecturas, fiquei sem saber o que ou quem eu tentava
entender. E de repente tudo pareceu uma grande bobagem. Isso não
era nada realístico. Era impossível. Receber o sêmen de um homem
desconhecido e ter um filho? Óbvio que era impossível. Para começar,
nem sabia como seria minha vida desse momento em diante, óbvio que
não poderia ser mãe, ter um filho. Parir não era o fim, o objetivo.
Tinha uma irmã quase idosa que era hostess em Osaka, que não tinha
direito nem mesmo à aposentadoria, cuja filha ainda iria lhe dar
despesas. Eu já estava na fase em que precisava pensar na minha
própria velhice e na velhice das pessoas ao meu redor. Eu, nessas
condições, ter um filho? Impossível, de qualquer perspectiva.
Impossível em todos os sentidos. Enquanto matutava, a empolgação e
o desânimo me assolaram várias vezes, de forma intercalada.
Mesmo assim, as palavras ditas pela moça no final do programa
permaneceram na minha mente por muito tempo. Mantendo os
punhos firmemente cerrados sobre o colo, e em seguida levando a mão
ao peito, ela disse, ponderando cada palavra:
“… Foi bom ter tentado. De verdade. Tive meu filho e estou muito
feliz por isso. Foi bom ter tentado, sem ter medo. Pude ter meu filho.
Não há felicidade maior do que essa na minha vida.”
Sua voz era preenchida por aquilo que costumava transluzir das
pessoas que se sentiam felizes do fundo do coração — não sei como
denominar isso —, o que nos fazia estreitar os olhos sem querer, de tão
ofuscante que era. Fechei os olhos e ruminei várias vezes os gestos e as
palavras dela. O fungar baixinho do nariz e a voz levemente
embargada. Ela provavelmente estava com os olhos cheios de lágrimas
sob o efeito de mosaico. “Foi bom ter tentado. De verdade. Tive meu
filho…” Nesse momento, poderia jurar que vi o rosto da minha mãe
aparecer por um instante sobre o rosto com efeito de mosaico. Minha
mãe, ainda jovem, sorrindo com seu volumoso cabelo esvoaçante —
que era capaz de esconder um pequeno gato preto dentro —, e
dizendo não sei para quem, com um sorriso radiante: “Estou muito
feliz por isso. Foi bom ter tentado, sem ter medo. Não há felicidade
maior do que essa na minha vida.” No momento seguinte, era eu quem
falava com a mão no peito: “Foi bom ter tido coragem naquele
momento, tive meu filho, e estou muito feliz por isso”, assim dizia o
outro eu, como se não estivesse me vendo — a mim, que imaginava
essa cena sozinha, no quarto —, embalando, deleitada, um bebê macio
e pequenino.
***
Assim como acontecia em todos os verões, o calor foi embora quando
menos esperávamos, e um leve cheiro residual de outono se
incorporava ao vento que soprava. O céu se elevava tão alto que
parecia abanar a mão para nós, e as nuvens ficavam cada vez mais
estendidas e finas, tardando a desaparecer. Era a época do ano em que
as blusas de manga comprida eram insuficientes, e tínhamos que usar
meias até dentro de casa.
Dia após dia eu continuava a escrever o livro que não avançava.
Além de longo, era denso, e eu tinha dificuldade de explicar do que
se tratava. Em suma, a história acompanhava o cotidiano de vários
personagens, tendo como cenário um bairro fictício de Osaka onde
viviam trabalhadores braçais contratados com salário diário. Uma das
personagens era a filha adolescente de um membro da Yakuza,
organização mafiosa que, nesse bairro cada vez mais decadente, era
formada por uma maioria de homens já no início da velhice. E a outra
personagem era uma menina da mesma idade, criada dentro de uma
instituição religiosa — classificada como nova religião — administrada
só por mulheres, que funcionava na vizinhança. Depois da
promulgação da Lei Anticrime Organizado, a pressão contra os grupos
Yakuza ficou cada vez mais acirrada; a filha do membro da Yakuza
sofria discriminação desde pequena, quando estava no jardim de
infância e no ensino fundamental. A menina que cresceu dentro da
instituição religiosa, por sua vez, não fora registrada no momento do
seu nascimento por princípios religiosos e não possuía nacionalidade
japonesa. As duas se tornaram amigas, abandonaram o bairro em
ruínas e, chegando em Tóquio, envolveram-se em um crime. Esse era o
enredo geral do meu livro.
Ultimamente, a descrição sobre a organização da Yakuza vinha
tomando bastante meu tempo. Havia muitas coisas para pesquisar: o
funcionamento da taxa cobrada aos membros, meios de se arrecadar
fundos, aquisição de armas, detalhes das guerras de vingança que
aconteceram de fato, os princípios da Yakuza que sustentam a
organização, a hierarquia, a nomenclatura de cada posição e sua renda
anual. Gastava muito tempo assistindo a vídeos ou lendo materiais.
Toda vez que queria verificar um detalhe, interrompia o que estava
escrevendo e não conseguia pegar o ritmo direito. Por outro lado, não
via o tempo passar quando lia as entrevistas dos chefes das
organizações criminosas ou assistia às imagens dos conflitos, de tão
compenetrada que eu ficava. Queria poder reproduzir esse clima à
minha maneira no meu livro, mas não era nada fácil.
Estava trabalhando na cena do corte do dedo. Aparentemente esse
costume já não era muito comum atualmente, mas antes era praticado
pelo membro que cometia algum deslize, em sinal de arrependimento;
pelo chefe que assumia o erro cometido por seu subordinado; ou pelos
membros que tentavam se reconciliar com as forças adversárias. Mas
meu livro se passava em uma época em que essa prática ainda era
frequente. Em geral, resfriavam o dedo mindinho com gelo até a
pessoa perder a sensibilidade, posicionavam-no sobre a tábua e o
cortavam em um golpe com uma espada japonesa. Na passagem em
questão, um membro da Yakuza, que morria de medo da dor,
procurou um hospital para pedir anestesia geral para cortar o dedo.
Naturalmente havia muitas coisas que eu não sabia. Por exemplo, para
onde ia o dedo cortado, e se havia limite no número de dedos que uma
mesma pessoa poderia perder. Como pesquisava os mínimos detalhes,
o livro não progredia, e meu plano de iniciar no dia seguinte a parte da
organização religiosa — sobre os produtos químicos que o líder
religioso desenvolvia no instituto de pesquisa — estava atrasado.
Soltando um suspiro, voltei a ler o livro Yakuza e eutanásia, que
comprara recentemente e do qual lera só uma pequena parte.
Concentrei-me na leitura por cerca de duas horas encostada na
bean bag e, quando peguei o celular, vi uma chamada perdida de
Ryōko Sengawa. Havia recebido alguns e-mails dela nos últimos dias,
mas não lhe respondi. De quando era sua última mensagem? Talvez de
uma semana atrás, ou antes? Fiquei na dúvida se escreveria um e-mail
ou ligaria, então resolvi ligar.
— Alô, Natsuko? — disse Sengawa ao atender à ligação depois de
três toques, com a voz alegre e meio brincalhona. — Que bom que
ligou. Como tem passado ultimamente?
— Bem, estou escrevendo. Ou melhor, devagar, mas estou
tentando, de forma constante.
— Ah, entendi.
— Desculpe não ter respondido antes. Estava distraída.
— Tudo bem.
Sengawa queria falar dos materiais que eu lhe havia requisitado. Eu
estava à procura de informações sobre os crimes ocorridos em
pequenas vilas ou cidades do interior praticados por pessoas que se
diziam religiosas e sobre os respectivos julgamentos. Ela conseguira
alguns materiais interessantes e disse que me entregaria em um
momento oportuno, então começamos a falar sobre o livro que eu
estava lendo.
— Foi publicado um tempo atrás. Parece que é difícil continuar
sendo membro da Yakuza, precisa ter fôlego. Eles estão perdendo o
acesso ao mundo artístico, ao mundo dos investimentos e a outras
fontes de renda também.
— Ah, é?
— Mesmo abandonando o mundo da Yakuza, é impossível ser
reintegrado à sociedade, o corpo vai se debilitando cada vez mais, e no
final a preocupação passa a ser em como morrer. Me sensibilizei lendo
o livro.
— É mesmo? Bem, espero que essa leitura possa ser aproveitada de
alguma forma no seu livro.
Em seguida, mudamos de assunto e, entre um tópico e outro,
chegamos à questão da pós-festa ou pós-pós-festa de uma cerimônia
de entrega de um prêmio literário. Sengawa disse que ficara
consideravelmente bêbada e levara uma bofetada no rosto de uma
escritora de certa idade.
— Quer dizer que levou um tapa? — perguntei, atarantada. — No
rosto? Uma escritora que você edita?
— É — respondeu Sengawa, demonstrando certo constrangimento
na voz. — Eu também estava muito bêbada. Nós discutimos, e parece
que acabei ofendendo ela.
— Mesmo assim! — repliquei. — Que espetáculo dantesco! Nessa
idade, ou melhor, uma adulta agredir outra com quem tem relação de
trabalho… Não dá para acreditar.
— Não foi nada de mais. — Sengawa minimizou, como se o
problema fosse de outra pessoa. — Trabalhamos muito tempo juntas.
Desde que entrei na editora… acho que já faz mais de vinte anos, ela
me ajudou muito. Na minha opinião, nós nos entendemos bem, e
naquela noite ambas estávamos completamente bêbadas. Acontece.
— O que as pessoas ao redor fizeram na hora?
— Bem, não lembro… Acho que pediram para nos acalmarmos.
Nunca tinha lido uma obra dessa escritora, mas sabia que era
famosa, e qualquer pessoa que gostasse de leitura com certeza já tinha
ouvido seu nome. Não sabia como ela era e não a conhecia
pessoalmente, mas, pela foto que me lembrava de ter visto em alguma
revista, era inimaginável que fosse capaz de se comportar assim, e
fiquei um pouco chocada. Ela tinha baixa estatura, ares femininos, e
era conhecida por um estilo que ficava no meio-termo entre literatura
infantil e literatura de fantasia. Também era autora de livros infantis
que tinham sido best-sellers.
— Num caso desses, como agir no encontro seguinte?
— Normal — disse Sengawa, pigarreando. — Como se nada tivesse
acontecido. Como agimos normalmente.
— Sem nenhum pedido de desculpa?
— É. Meio que nos entendemos, mesmo sem expressar em
palavras. Estávamos falando da obra, que é o território mais
importante para os escritores.
Tentei perguntar mais, porém Sengawa riu e então mudou de
assunto.
— E você, Natsuko, como tem andado?
— Eu… — comecei, mas não encontrei palavras que poderiam ser
ditas.
Afinal, meus dias eram uma repetição das mesmas coisas, e não
tinha nada para contar, fora o conteúdo dos materiais que estava
lendo. Pensei de súbito em falar daquilo que não saía da minha mente,
da ideia que ia e vinha, mas que estava sempre lá, dominando minha
consciência de forma intermitente nos últimos meses. Ou seja, da ideia
de engravidar com o sêmen de alguém. Mas desisti. Era um assunto
pessoal demais, imprudente, e não sabia direito por onde começar
nem como explicar.
Ao observar o interior do quarto enquanto ouvia Sengawa falar e
lhe respondia com monossílabos, vi as lombadas dos livros sobre
doação de sêmen e tecnologias de reprodução assistida, empilhados ao
lado dos materiais sobre Yakuza e instituições religiosas. Terminara de
ler recentemente um livro com entrevistas de pessoas que tinham
nascido com a ajuda da doação de sêmen.
Havia dois pontos em comum entre todos os entrevistados: eles não
sabiam quem eram seus pais biológicos e cresceram sem ouvir a
verdade dos pais. O tratamento por doação de sêmen era e continuava
sendo feito em segredo, sem os parentes ou os amigos saberem, e
naturalmente a própria criança quase nunca descobria a verdade. Ou
seja, significava que as quase dez mil pessoas que nasceram por esse
método, as partes interessadas, viviam sem conhecer sua verdadeira
origem.
Mas algumas delas descobriam a verdade por acaso. Descobriam
que o homem que acreditavam ser seu pai era um completo estranho,
e que foram enganadas a vida inteira. Davam-se conta de que não
faziam ideia de onde viera a outra metade de si mesmas. Por meio das
entrevistas e mesas-redondas nas quais elas contavam suas
experiências, e pelo que escrevia o autor e organizador do livro, pude
perceber o quanto isso era traumático, assim como quão profundo era
o sentimento de perda e dor que elas sentiam.
O último entrevistado dizia que ainda hoje estava à procura do pai.
Ele foi informado pelo hospital universitário que realizara o
tratamento de sua mãe de que não havia nenhum registro da época
disponível para consulta. O médico responsável já falecera, e as poucas
pistas que conseguiu indicavam que o doador seria um dos estudantes
de medicina que possuíam algum vínculo com o hospital universitário
durante os anos que antecederam a época do tratamento. No final, ele
citava algumas características físicas suas que eram diferentes das de
sua mãe, com quem tinha vínculo genético, ou seja, que podiam ter
sido herdadas do pai, e terminava a entrevista fazendo uma súplica:
“Minha mãe tem baixa estatura, mas eu sou alto, tenho 1,80m.
Minha mãe tem olhos grandes e pálpebras duplas, mas eu tenho
pálpebras únicas. Desde criança sou bom em corrida de longa
distância. Procuro um homem que teve vínculo com a faculdade de
medicina da Universidade ***, de alta estatura, pálpebras únicas, bom
corredor de longa distância, com idade atual entre cinquenta e sete e
sessenta e cinco anos. Será que alguém conhece uma pessoa assim?”
Essas palavras tocaram meu coração.
Imagine ter que procurar alguém extremamente importante e
imprescindível — seja pai ou outra pessoa —, dispondo apenas
daquelas informações. Eram características nada marcantes,
praticamente a mesma coisa que não ter nenhuma informação, mas era
o que ele tinha. Ao pensar nisso, senti um aperto no coração. Alta
estatura, pálpebras únicas, bom corredor de longa distância. Será que
alguém conhece uma pessoa assim? Para quem, para onde ele estaria
dirigindo essa súplica? Visualizei a figura de um homem parado,
imóvel, diante de um deserto vazio. Por um tempo não consegui tirar
os olhos daquelas palavras.
— … por isso não quer ir, para coletar informações?
Ao ouvir a voz de Ryōko Sengawa, na qual não estava prestando
muita atenção, distraída, peguei o celular com a outra mão.
— Ah, sim, coletar informações.
— Talvez só ouvir o que eles têm a dizer seja interessante. Podemos
ir e voltar de Sendai no mesmo dia, mas vamos aproveitar e passar
uma noite lá.
— Isso é possível?
— Claro, é para coletar informações — respondeu Sengawa. —
Além disso, Natsuko, você só me pediu os materiais uma única vez, e
depois não te ajudei em mais nada. Não podemos pagar a estadia de
um mês numa pousada de luxo com termas para você trabalhar na sua
obra, isso é difícil, mas passar uma noite em Sendai é possível, sim.
Para você escrever a parte da instituição religiosa. Eles, os xamãs, são
um pouco desconfiados, mas em geral gostam de falar. Deve variar de
pessoa para pessoa, óbvio. Independentemente do resultado, estamos
no outono, uma época agradável. Acho que você pode experimentar
comidas gostosas, recarregar as energias e dar um gás na reta final, até
o fim do ano. O que acha, Natsuko?
— Reta final? Ah, sim, claro. Mas acho que não preciso viajar só
para coletar informações. Posso me virar com os livros — disfarcei.
— É típico de você não querer sair de casa, mas é bom espairecer
de vez em quando. — Percebi que Sengawa soltou um grande suspiro.
— Ah, queria te dizer mais uma coisa. No começo do mês que vem vai
ter um recital, você quer ir?
— Recital?
— Os escritores recitam seus textos — disse Sengawa, tendo um
acesso de tosse. — Ah, desculpe. Eles leem poemas ou trechos de
romances. Acho que começou há uns dez anos, essa coisa de recital;
reading, em inglês. Tem acontecido em vários lugares. Geralmente é
junto com o lançamento de uma obra; convidam os leitores, fazem
uma sessão de autógrafos, e às vezes há uma pequena confraternização
também. Servem bebidas.
— Ah, é?
— O recital do mês que vem até que é grande, acho que o local
comporta cerca de cem pessoas. São três escritores. Sou a editora de
um deles. Você vai gostar. Vamos, Natsuko. Quero te apresentar uma
pessoa.
— Mas não quero levar um tapa na cara — disse, rindo.
— Eu levo o tapa no seu lugar — disse Sengawa no dialeto de
Osaka e riu.
***
***
Quando o táxi encostou junto ao meio-fio da estrada 246, perto de
Sangenjaya, desci depois de agradecer às duas. A porta automática se
fechou com um estrondo, e o veículo partiu, acelerando. Ao consultar
o horário depois de pegar o celular da bolsa, vi que já passava da meia-
noite.
Notei um nome de remetente desconhecido na caixa de e-mails
recebidos. Rie Konno. Rie Konno? Ah, sim, Konno. Nunca recebia
mensagens das minhas ex-colegas da época do trabalho na livraria, a
não ser relacionadas aos nossos encontros e, pensando bem, era a
primeira vez que recebia uma mensagem pessoal de Konno.
“Quanto tempo! Tudo bem? Da última vez que nos encontramos,
ainda era verão! Foi de repente, mas decidimos nos mudar no início
do ano que vem”, assim começava a mensagem. Ela dizia que
aconteceram várias coisas, e sua família decidira se mudar para a
província de Wakayama, onde morava a família do seu marido. “Antes
de me mudar, gostaria de me encontrar com você”, completava. “Se
tiver tempo, gostaria de vê-la ainda este ano. Posso ir a Sangenjaya,
sem problemas. Poderia me retornar quando tiver tempo? Talvez
pareça estranho, mas queria pedir mais um favor: não contei para as
outras meninas que estou me mudando para Wakayama. Poderia
manter em segredo, por favor?”
Por que ela mandou mensagem só para mim? Por que não contou
para as outras? Por que estava contando só para mim? Relendo a
mensagem, várias dúvidas me ocorreram, mas tive preguiça de
continuar pensando nessas coisas. Nosso último encontro fora no
verão. Não me lembrava do que havíamos conversado, mas tinha ido a
Jinbōchō depois do encontro… Ah, sim, tínhamos comido galette no
almoço, lembrava-me vagamente disso. Ryōko Sengawa usava uma
blusa larga de algodão cru e estava sentada em um velho sofá
vermelho-escuro. Do que falamos mesmo? Para começar, falamos de
algo concreto?, ao pensar nisso, lembrei-me de repente do livro que
estava escrevendo, e, no mesmo instante, meu coração ficou anuviado
e pesado. Coloquei o celular no fundo da bolsa e caminhei até meu
apartamento contando os passos.
Destrancando a porta, entrei no apartamento, e lá dentro, com suas
sombras sobrepostas, fazia um frio quase invernal. O tapete sob meus
pés parecia úmido. Cheiro de inverno, pensei. Mas não o tinha sentido
lá fora, enquanto caminhava. Então significava que esse cheiro vinha
de dentro do meu apartamento? Será que a temperatura, a intensidade
da luz do sol diurno, os componentes da noite se transformavam
gradualmente, e, quando algumas condições se combinavam, o cheiro
de inverno que penetrava nos livros, nas roupas, nas cortinas e em
outras coisas fluía de uma vez? Como uma lembrança que aflora de
repente?
O mês de novembro foi passando, como se caixas brancas de
mesmo peso fossem ordenadas de forma simples, em linha reta.
Acordava às oito e meia da manhã, comia pão de fôrma e me sentava
na frente do computador. Comia espaguete com molho pronto no
almoço, voltava ao trabalho, fazia um leve alongamento à tarde e
comia arroz com nattō e conservas no jantar. Depois do banho, lia um
pouco os blogs de pessoas que faziam tratamento para infertilidade.
Todas pareciam viver um círculo de avanços e retrocessos. Às vezes
conferia os novos blogs que apareciam no ranking de mais lidos. Todos
continuavam tentando, lutando contra o conflito interno — “acho que
não vai dar certo, mas não posso desistir”. Mas, no meu caso, nem
sequer estava na linha de partida. Nessas horas me lembrava de
repente do Facebook de Naruse e o visitava.
Na semana seguinte à do recital, recebi um e-mail de Rika Yusa.
“Dá muito trabalho escrever e-mails, é mais fácil falar, será que posso
te ligar quando tiver oportunidade?”, assim ela escrevera. “Se não
estiver a fim de conversar, não precisa atender à ligação”, acrescentara.
Ao passar para ela o número do meu celular por e-mail, ela me ligou
em dez minutos.
— Que bom falar com você por aqui — disse Rika Yusa. — A
propósito, li seu livro.
— O meu? — indaguei surpresa.
— Você só escreveu um livro, certo? Gostei muito. É considerado
um livro de contos, mas é um romance, não é?
— Obrigada, é muito gentil da sua parte.
— Ei, deixe de formalidades. Temos a mesma idade.
— Sério? — perguntei. Ela voltava a me surpreender. — Achava
que você era um pouco mais velha do que eu.
— Nascemos no mesmo ano, apesar de eu ter entrado um ano antes
na escola.
— Eu também comprei uns três livros seus, Yusa-san.
— Ah, é? — disse ela, sem demonstrar muito interesse. E
continuou, depois de pensar um pouco: — Ei, prefiro que você me
chame só de Yusa, em vez de Yusa-san. Como posso chamar você?
Falei para me chamar como quisesse, ao que ela soltou uma espécie
de gemido baixinho.
— Então posso te chamar de Natsuko? Assim até parece que somos
do clube de vôlei do colégio, em que todas se chamam pelo
sobrenome.
— De fato. Apesar de eu nunca ter participado de um.
— Voltando ao assunto do seu livro. Gostei mesmo. Ele me
remeteu ao romance Fuefuki-gawa, de Shichirō Fukazawa. Você deve
gostar desse livro, não?
— Não, nunca li — respondi.
— Sério? — perguntou Yusa. — Narra a história dos moradores de
uma vila que morrem a cada geração. E se passa num intervalo
assustadoramente longo, mas o livro em si não é muito longo.
Em seguida, começamos a falar de dialetos. Por eu já falar o de
Osaka, Yusa me perguntou se eu não pretendia escrever um livro
inteiro nesse dialeto. Respondi com sinceridade que nunca tinha
pensado a respeito, então ela começou a explicar o que pensava do
dialeto de Kansai, em particular o de Osaka.
— Aquela experiência foi incrível — disse ela. — Quando fui a
Osaka, vi, ou melhor, ouvi a conversa de um grupo de três mulheres
que falavam sem parar, bem empolgadas. Se aquele diálogo fosse
transformado em texto, teria várias perspectivas, diálogos, tempos
narrativos diversificados, tudo isso mesclado em uma única fala, e as
três faziam suas palavras se chocarem umas às outras, de forma
ininterrupta. Falavam bem rápido, riam sem parar, mas a conversa
fluía. Era uma cena bem diferente das que vemos na TV. Os diálogos
que aparecem na TV são ajustados, não é? A interação no dialeto de
Osaka, autêntica, não tem como objetivo a comunicação. Aquilo é
uma competição, e as pessoas que falam fazem até o papel de plateia.
Como posso dizer? Isso é uma arte.
— Uma arte? — repeti o que Yusa dissera.
— É. Tenho a impressão de que o dialeto de Kansai representa a
evolução da linguagem em uma arte de palavras… Não, não é bem
isso. A palavra “evolução” não é adequada nesse caso. A linguagem é
sempre uma arte, mas, para alcançar seu ápice, a linguagem em si,
como entonação, gramática, ritmo, essas coisas, foi sofrendo
deformações ao longo do tempo. Como resultado, o conteúdo dito
também foi sendo deformado cada vez mais.
Como nunca tinha pensado muito sobre o dialeto de Osaka, fiquei
ouvindo a explicação de Yusa, pensando que, se ela dizia, devia ter
razão.
— De qualquer forma, fiquei espantada. Tenho muitos amigos que
falam diversos dialetos, e achava que, diferentemente de uma língua
estrangeira, dialetos não passavam de dialetos. Mas, na realidade, eu
estava enganada. Não vale. O que é aquilo? Vocês, nativos, não
percebem o que está acontecendo?
Respondi que não percebemos.
— Pensei também o seguinte: essa interação de vocês, que achei
incrível, será que pode ser reproduzida em livros, em textos escritos?
Acho que não, são coisas completamente diferentes — disse Yusa. —
Há nativos do dialeto de Osaka que escrevem no seu dialeto, certo? Li
alguns livros deles, porque tinha interesse em saber como era. Mas não
dá certo. Não fica legal. Lendo vários textos, entendi que, sendo
nativo ou não, quase não há relação nesse caso. A configuração da
língua falada e o corpo do texto, ou seja, o estilo, são coisas diferentes.
Isso é óbvio, mas o estilo é algo criado. E, nesse caso, o importante é
ter bom ouvido.
— Bom ouvido? — repeti.
— É — prosseguiu Yusa, animada. — O que é preciso ter é
habilidade para ouvir aquilo, que pode ser chamado de ritmo, ou
biorritmo, ou seja, aquele som emitido pela massa que sustenta aquela
interação, e transformá-lo em algo completamente diferente. Quer
dizer que, para isso, é preciso ter bom ouvido. Por exemplo, Tanizaki.
— Tanizaki? — indaguei.
— É. Junichirō Tanizaki — disse Yusa como se lesse com cuidado
as palavras escritas bem à sua frente. — Ou seja, Shunkin. Não As
irmãs Makioka nem Há quem prefira urtigas. É Retrato de Shunkin.
Obviamente, Tanizaki não era nativo do dialeto de Kansai nem nada.
— Mas aquele livro foi escrito no dialeto de Osaka, ou melhor, no
dialeto de Kansai? Não eram só os diálogos que estavam no dialeto?
— perguntei.
Tinha lido Retrato de Shunkin quando tinha vinte e poucos anos, e
só me lembrava vagamente do seu conteúdo, tinha esquecido os
detalhes. Mas, como conseguia me lembrar nitidamente da cena em
que Shunkin bate, com palheta de shamisen, em Sasuke (que, por mais
que treinasse shamisen, não progredia), a ponto de sentir aflorar nas
minhas mãos, nos meus braços e na minha mente a percepção de ser
eu mesma batendo nele, de verdade, achei que talvez isso tivesse
relação com a massa mencionada por Yusa.
— Sim — disse Yusa, rindo. — Estou dizendo que a questão não é
se você consegue reproduzir ou não o dialeto de Osaka ou de Kansai
do jeito como é falado de fato. Mesmo que todo o livro seja escrito no
dialeto-padrão de Tóquio, ou em outro idioma, é possível que a
natureza incrível a que estou me referindo seja reproduzida de
verdade. Talvez seja isso que quero dizer quando falo de deformação.
— Ah, é?
— É, é isso — respondeu ela, bem-humorada, em um dialeto
precário de Osaka.
***
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***
O salão estava lotado, e tive uma impressão bem diferente da que tive
no encontro do mês anterior. O local não era muito grande, parecia ter
capacidade para cerca de duzentas pessoas. Os assentos estavam
dispostos em forma de leque ao redor do palco, e mais da metade
deles estava ocupada. Sentei-me no canto da última fileira e aguardei o
início do evento.
A primeira palestra foi sobre o tema “Situação atual e desafios da
inseminação artificial entre os não cônjuges no Japão”, ministrada por
um especialista. Usando uma apresentação de PowerPoint, ele
explicou o projeto de lei sobre tecnologias de reprodução assistida
elaborado pelo Partido Liberal Democrata três anos atrás, e os
resultados dos diversos conselhos deliberativos realizados. Apontou o
quanto as discussões e leis sobre ética reprodutiva estavam atrasadas
no Japão, vistas de diversos ângulos, e falou da necessidade de uma
rápida reforma.
A segunda palestra também foi ministrada por um especialista. Ele
falou dos problemas de reconhecimento dos filhos não só nascidos por
IAD, mas também dos nascidos através de sêmen congelado de pais já
falecidos, coletado quando ainda eram vivos, e como o governo vinha
encarando o nascimento das crianças por meio de doação de óvulo ou
barriga de aluguel, citando casos de julgamentos ocorridos, explicando
pormenores e resultados. A conclusão foi de que o bem-estar da
criança que iria nascer deveria ser priorizado acima de tudo, que as
pessoas não deveriam ser usadas como meio de procriação, que a
comercialização da vida deveria ser banida e a dignidade humana,
protegida.
Depois dessas duas palestras houve um intervalo de dez minutos, e
alguns participantes se levantaram, movendo-se de um lado para
outro. Nos bastidores, algumas pessoas que pareciam fazer parte da
organização ajustavam os fios dos microfones ou moviam a mesa e a
cadeira do palco, mas não vi ninguém parecido com Aizawa em lugar
nenhum. Ele também não estava na recepção, que ficava próxima à
entrada do salão. Ele dissera que sempre ficava nos bastidores, mas
talvez participasse das relações públicas ou coisa parecida, atualizando
o site institucional ou o Facebook, e por isso não estivesse ali. Peguei a
garrafa PET de chá da minha sacola e bebi bem devagar, como se
admirasse o líquido umedecer lentamente a garganta.
Já na primeira palestra, eu tinha começado a sentir dores pulsantes
nas têmporas, e no início da segunda tornou-se difícil permanecer
imóvel, com a cabeça parada e voltada para a frente, prestando
atenção na fala do palestrante. Ultimamente meu sono estava leve, e eu
acordava várias vezes à noite. Enquanto observava distraidamente ao
meu redor, as pessoas começaram a voltar aos seus assentos. A
iluminação do salão mudou um pouco, e começou a terceira atividade
do dia. Era um debate com três participantes: um pesquisador, a parte
interessada — ou seja, uma pessoa nascida por IAD — e um
profissional de saúde. Era o assunto que mais deveria me interessar,
mas, ao seguir ouvindo a fala do pesquisador, que era uma espécie de
discurso inaugural, interminável mesmo depois de quinze minutos,
minha dor de cabeça aumentou ainda mais. Sabia que os três falariam
de assuntos importantes, mas tive que me levantar porque já não
suportava ficar sentada.
Saindo do salão, fui ao banheiro, onde lavei as mãos com esmero e
olhei meu rosto no espelho. Estava horrível. Meu cabelo — de que eu
não cuidava direito — estava embaraçado, sem brilho, e as
sobrancelhas, que eu pensava haver pintado com cuidado, não
estavam simétricas. Tinha passado base no rosto, mas parecia não ter
surtido nenhum efeito, pois as manchas e imperfeições eram bem
visíveis. Como tinha comprado esse cosmético havia alguns anos,
talvez já estivesse vencido. Vendo meu rosto pálido, com a pele sem
elasticidade e abatida, pensei que lembrava algo. Sim, lembrava uma
beringela frita e marinada, nibitashi. Não a parte escura da casca, mas
a parte interna, mole, de tom verde-claro: meu rosto tinha exatamente
essa cor. De uma mulher exausta e ressequida como essa à minha frente,
jamais vai nascer uma nova vida, pensei. Sentia um vazio só de pensar
nessa possibilidade. Apoiando as mãos na pia, alonguei o pescoço
demoradamente. Ouvi um estalar seco. Ao sair do banheiro depois de
lavar as mãos mais uma vez com cuidado, vi, no final do corredor
deserto, no banco que ficava no saguão, próximo à mesa de recepção,
um homem sentado. Era Jun Aizawa.
Precisava passar na frente do banco para pegar a escada rolante, e
caminhei segurando firmemente a alça da minha sacola. Estava em
dúvida se devia ou não lhe dirigir a palavra, mas então nossos olhares
se cruzaram. Por reflexo acenei com a cabeça, e depois de um tempo
ele fez o mesmo. Achava que não havia outra opção além de passar
reto, sem dizer nada, mas Aizawa puxou papo:
— Então você veio! Já vai embora? — perguntou ele, com um tom
bem mais suave do que da outra vez que nos encontramos. Ele
segurava um copo de papel com café. Usava um suéter preto parecido
com o da outra vez, calça de algodão marrom-escura e tênis preto.
— Queria ficar até o final, mas…
— Eu sei, é muito longo.
— Você não vai entrar, Aizawa?
Talvez porque não estivesse esperando ser chamado pelo nome por
alguém com quem cruzara apenas uma vez, fez-se um momento de
silêncio. Mas ele respondeu que estava cuidando do camarim dos
palestrantes.
— Ah, meu nome é Natsume — apresentei-me. — Não tenho
cartão de visita.
Peguei o exemplar do meu livro na bolsa.
— Este é o meu romance.
Parecendo um pouco surpreso, Aizawa ergueu as sobrancelhas e
me encarou.
— Você é escritora?
— Só publiquei um livro, na verdade — expliquei, estendendo o
exemplar para ele. — Pode ficar, se quiser.
Ele pegou o livro e observou a capa, impressionado. Em seguida,
olhou o título na lombada, leu com atenção o texto da contracapa e da
cinta que envolvia o livro, e ergueu o rosto.
— Que legal, nem consigo imaginar como é escrever um livro —
disse ele, estendendo-o de volta para mim.
Insisti que ele ficasse com o exemplar.
— Tem certeza?
— Sim. — Assenti algumas vezes.
Com o copo de café e o livro nas mãos, ele se deslocou para a
direita como se abrisse espaço para eu me sentar. Acomodei-me ao
lado dele e abaixei a cabeça em sinal de agradecimento, depois
observei por um tempo o livro na mão de Aizawa, assim como ele o
fazia. Eu estava nervosa. Virei-me para o lado e admirei Aizawa, que
folheava o exemplar com os cotovelos apoiados no colo, inclinado
para a frente. O cabelo repartido ao meio corria para trás, de maneira
jeitosa, assim como da outra vez. De perto, seus fios pareciam mais
suaves, finos e lisos. Me lembrei do meu cabelo bagunçado e sem
brilho refletido no espelho do banheiro.
— Hoje você está de bom humor?
— Quê? — Aizawa levantou o rosto, surpreso.
Eu estava nervosa pensando que precisava dizer algo e, ao tentar
falar que ele estava um pouco diferente em comparação com a ocasião
anterior, acabei fazendo um comentário não muito adequado.
Percebendo isso, corei. Queria me explicar, mas, com medo de piorar
ainda mais as coisas, fiquei calada. Aizawa também ficou em silêncio.
Depois de um tempo, uma senhora, aparentemente na faixa dos
sessenta, usando um gorro com protetor de orelha na cabeça, veio
subindo pela escada rolante, como se fosse uma bagagem sendo
carregada pela esteira. Chegando ao nosso andar, passou devagar na
nossa frente.
— Talvez você não se lembre — retomei. — Puxei papo quando
pegamos o elevador juntos, naquele outro evento. Estou pensando em
fazer IAD.
Aizawa não respondeu e, depois de um tempo, meneou a cabeça de
leve apenas uma vez. Mesmo não demonstrando aborrecimento
evidente, senti que ele estava confuso, estranhando o fato de eu estar
contando algo tão íntimo a um desconhecido como ele, e também
sentindo um desconforto ao ouvir minha história pessoal. Achei que
era natural ele se sentir assim. Pensei que eu também ficaria confusa
como ele, e respirei fundo.
— Talvez não seja nada agradável ouvir esse tipo de confissão —
continuei, falando no dialeto de Osaka.
— Pelo contrário — respondeu ele. — Apesar de me encarregar
principalmente de trabalhos administrativos, tenho várias
oportunidades como esta, de ouvir pessoas, já que faço parte da
associação. Você é de Kansai, Natsume?
— Sim, sou de Osaka.
— Não percebi logo de cara. Você muda o modo de falar
dependendo do lugar?
— Não faço de forma muito consciente, mas, numa situação mais
respeitosa, quando tento falar mais sério, acho que a entonação fica
mais próxima do dialeto de Tóquio, considerado padrão.
— Entendi. — Aizawa balançou a cabeça. — No meu caso
também, acho que acontece mais ou menos o mesmo.
— No seu caso?
— Do humor, que você mencionou. No evento de hoje, o número
de participantes é alto, e na confraternização que teremos depois vou
ter que falar com elas por um tempo, então acho que estou nervoso.
— Quando você fica nervoso, seu humor melhora?
— Procuro ser mais agradável, pelo menos na aparência — disse
Aizawa, rindo. — Da outra vez… Foi no Natal, não foi? Naquele dia,
em Jiyūgaoka, eu realmente estava distraído.
— Não era exatamente distraído — respondi. — Parecia estar
pensando em outra coisa. Fiquei com essa impressão.
— Você nasceu em 1978? Então temos a mesma idade — constatou
ele ao ler a informação na orelha do livro. — Mas… É incrível. Um
livro é formado só de letras, o que é óbvio, e você escreve tudo isso
sozinha. É a primeira vez que encontro uma romancista de verdade.
— Queria ser uma romancista um pouco mais decente — disse,
dando de ombros.
Houve um momento de silêncio, achei que precisava dizer alguma
coisa e já ia perguntando:
— O que você faz normalmen… — comecei, querendo saber sua
profissão. Mas me passou pela cabeça, de repente, que talvez fosse
desrespeitoso perguntar seu trabalho (não teria problema se ele
tomasse a iniciativa de me contar), e me calei novamente.
Eu tinha lhe oferecido meu livro porque achava que não era justo
só eu saber da vida dele, das coisas pessoais dele, por meio de suas
entrevistas e apresentações, mas naturalmente esse desconforto era
problema meu, e ele não tinha nada a ver com isso. Percebendo,
porém, o que eu começara a perguntar, ele disse que era clínico geral.
— Você é médico?
— Sou — respondeu Aizawa. — Mas não tenho um trabalho fixo.
— Médico sem trabalho fixo — repeti. — Significa que é um
médico que não trabalha?
— Bem, de certo modo, sim. Mas preciso trabalhar um pouco, para
sobreviver — comentou ele, e riu. — Antes, trabalhava num hospital.
Mas aconteceram várias coisas, e agora trabalho em diversos lugares.
— Em vários hospitais?
— É. Sou cadastrado, vou quando sou chamado. Sou como uma
mão de obra médica que presta serviços temporários. Faço exames
médicos nas escolas, no início do período letivo; dou aulas em
cursinhos também, cursinhos preparatórios para o exame nacional de
médicos.
— Achei que todo médico trabalhava em hospitais ou clínicas —
comentei.
— Bem, quando trabalho, geralmente é em um hospital ou em uma
clínica. — Riu de novo. — Só não tenho um emprego fixo. Existem
muitos médicos que, mesmo na faixa dos sessenta ou setenta anos,
sobrevivem só fazendo exames médicos, indo de escola em escola.
Nesse sentido, é um alívio para mim.
— Então o salário é por hora? — perguntei, expressando a dúvida
que me veio imediatamente à mente, mas em seguida me arrependi de
tamanha indiscrição. — Desculpe, além de perguntar do trabalho, já
estou querendo saber até do salário…
— Não tem problema — respondeu Aizawa alegremente. — Pode
ser preconceito meu, mas, para as pessoas de Osaka, é normal falar de
dinheiro, não é?
— Bem, não sei — disse um pouco aflita. — Mas talvez as pessoas
de lá se interessem pelos preços em geral. Costumam perguntar:
“Quanto isso custou?”
— Ah, certo. Já que você entrou nessa questão, então devo dizer
que meu salário é em torno de vinte mil ienes. Em casos de urgência,
quando não encontram ninguém mesmo, chega a trinta mil.
— Por dia?
— Não, por hora.
— O quê?! — gritei sem querer, tamanha a surpresa, e quase me
levantando do banco. — Seu salário por hora é de vinte mil ienes?
Então, trabalhando cinco horas, são cem mil ienes?
— É que eu não trabalho todos os dias, às vezes não é o dia inteiro,
só meio período, então é bem inconstante, e não tenho nenhum tipo
de garantia.
— Ah… A licença de médico é poderosa, não?
Ficamos em silêncio novamente. Eu tinha dito o que não devia,
feito perguntas inoportunas, sabia disso, mas quem falou o valor
concreto foi ele, não fui eu, e essas justificativas giravam na minha
mente. Aizawa tomou um gole do café que provavelmente já estava
frio, e eu tomei o chá da garrafa PET.
— Eu… — falei, tomando coragem para dizer de forma franca o
que andara pensando no último mês. — Ouvi sua apresentação no
outro encontro, li o livro da sua entrevista e pensei em muitas coisas.
Na verdade, eu já tinha que ter entendido, mas surgiram algumas
dúvidas que queria tirar com você, Aizawa.
— Em relação à parte interessada, você quer dizer? — perguntou
ele.
— É. — Assenti. — Sinto muito pelo incômodo, já que não tem
relação direta com você. Mas tem relação com o que vou fazer daqui
para a frente… Na verdade, já não tenho tanto tempo assim.
— Você já leu os livros e artigos que tratam desse assunto?
— Li, mas não muitos, na verdade.
— Acho que já falei sobre isso — ponderou ele. — Mas um dos
objetivos das nossas atividades é fazer com que as pessoas se
interessem por IAD e pelas partes interessadas, ou seja, nós que
nascemos por IAD, independentemente de quem seja. Por isso, se
tiver alguma dúvida, pode entrar em contato.
— Obrigada — respondi, e abaixei a cabeça.
— Eu que agradeço… pelo livro. — E olhou o livro que segurava
na mão. — Natsuko Natsume. É um bom pseudônimo.
— É meu nome de verdade — afirmei.
— Sério?
— Sério.
A porta do salão se abriu, e muitas pessoas entraram no saguão,
ruidosas. A figura de uma mulher me chamou a atenção. Essa moça,
que usava um vestido preto até a altura do joelho e tinha o cabelo
preso para trás, olhou ao redor como se procurasse alguém e, ao ver
Aizawa, andou na nossa direção. Era baixa, as linhas do corpo eram
bem finas, e as clavículas, salientes, dando a impressão de que podiam
ser pegas com a mão. Em seu rosto branco, sardas formavam uma
elipse suave que ia do nariz até as bochechas, e o formato e o tom
esfumaçado delas lembravam uma nebulosa que eu vira em algum
livro ilustrado. Ela me pareceu familiar. Nós nos cumprimentamos
com um leve aceno.
— Essa é Natsume. Outro dia… Ah, foi no ano passado, ela estava
no encontro de Jiyūgaoka.
— Foi você quem falou por último? — perguntou ela, me
encarando.
— Ah, sim, você estava encarregada do microfone. Então já se
encontraram — disse Aizawa, assentindo. — Essa é Zen, que também
é parte interessada, nascida por IAD, e somos companheiros,
membros da mesma associação.
— Prazer. — Levantei-me e a cumprimentei.
— Igualmente — disse ela, entregando-me seu cartão de visita:
Yuriko Zen.
— Natsume é romancista — contou Aizawa, mostrando-lhe o livro
que tinha em mãos.
— Ah, é? — respondeu Yuriko Zen, observando a capa por um
tempo, estreitando os olhos, e sorriu só com os lábios.
— É o único que publiquei. — Balancei a cabeça de leve, como se
me justificasse. — Eu queria perguntar umas coisas a Aizawa, por isso
fui àquele encontro.
— Para coletar materiais? — Yuriko Zen inclinou levemente o
rosto e me fitou.
— Não, estou pensando em fazer o tratamento por IAD, e tenho
algumas dúvidas.
Yuriko Zen piscou devagar, observando atentamente meu rosto por
um tempo. Em seguida, fez que sim de leve com a cabeça apenas uma
vez e sorriu, estreitando os olhos. Em sua fisionomia havia certo
autoritarismo, e me senti como uma criança à espera de uma ordem da
professora. Mas ela não disse nada.
— Acho que está na hora de você voltar. Os palestrantes já devem
ter entrado. — Depois de se dirigir a Aizawa, Yuriko Zen me
cumprimentou com um aceno de cabeça e começou a se afastar.
Consultando o relógio de pulso, Aizawa se levantou e abaixou a
cabeça para mim, informando que precisava voltar ao camarim.
— Posso te escrever? — indaguei. — Peguei o seu e-mail no cartão
de visita que você me deu no mês passado. Tudo bem se eu mandar
umas perguntas por lá?
— Sim, claro — respondeu ele, e se foi. Os dois logo
desapareceram no meio da multidão.
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Já era final de março. Desde nosso último encontro, Aizawa e eu
passamos a trocar mensagens frequentes e, no sábado anterior,
tínhamos jantado no bar izakaya e tomado cerveja. Ele me convidou
para comer peixe, e o bar que sugeriu era o mesmo que eu fora com
Konno no Natal. Eu lhe falei que já tinha estado ali uma vez, e ele
respondeu que também o frequentava com Yuriko Zen.
Aizawa e eu conversamos sobre nossas rotinas. Ele estava bastante
curioso sobre meu trabalho, então contei que vinha escrevendo um
livro havia quase dois anos, mas que tinha sempre a sensação de que
estava tudo errado, desde o estilo, a composição e a empolgação que
sentira no início, tudo. Disse que o trabalho não progredia nem um
pouco, e que eu já achava que era melhor começar um novo livro do
zero.
— Tanto tempo debruçada sobre a mesma coisa… — disse ele,
mostrando-se impressionado. — Não deve ser fácil.
— Mas o trabalho dos médicos não é assim também? — perguntei.
— Deve haver pacientes que ficam internados por vários anos.
— Sim, de fato — admitiu ele. — Muitos médicos dizem se sentir
recompensados pela relação duradoura com o paciente, mas esse tipo
de relação não é para mim.
— Imagino que, tendo que se deslocar o tempo todo por trabalhar
sob contrato, você não se encarregue do mesmo paciente por tanto
tempo.
— Muitos anos atrás, quando fui designado médico principal de
um paciente, fiquei bastante nervoso. O médico tem que pensar no
plano de tratamento, e senti uma grande responsabilidade que nunca
tinha experimentado antes. Por outro lado, a alegria que senti quando
ele se recuperou foi enorme.
— Você se lembra do seu primeiro paciente?
— Lembro. Ele tinha doença de Parkinson e morava em um asilo.
Era acamado e teve que ser internado por causa de pneumonia
aspirativa. Mas ele foi bastante perseverante e resistiu bem. É, resistiu
muito bem. Talvez não seja adequado dizer que tenho boas
lembranças, mas lembro a satisfação que senti em ser médico.
— E o que Zen faz?
— Ela faz trabalhos administrativos numa empresa de seguros.
Também não é funcionária efetiva, então ambos somos freelancers.
Ele acrescentou que, independentemente de como venha a ser o
relacionamento dos dois no futuro, eles decidiram não ter filhos;
namoravam com essa premissa.
— Eu a conheci através de um artigo de jornal.
— Sobre IAD?
— É. Ela concedeu uma entrevista de forma anônima… Na
verdade, ela fala sobre a próprio experiência nos encontros da
associação e nos seminários mostrando o rosto, então não significa que
guarde anonimato… De qualquer forma, nessa época eu nunca tinha
ouvido falar de IAD, nem sabia que existia doação de sêmen, era a
época em que estava totalmente perdido. Li o artigo no jornal, tomei
coragem e entrei em contato. Depois, nos encontramos pessoalmente,
e ela me falou da associação. Ela me ajudou numa fase muito difícil da
minha vida — disse Aizawa. Ele não entrou em detalhes, mas, pelo
visto, terminara com a namorada de então nessa mesma época.
Já que ele tocara nesse assunto, também lhe contei que já tivera um
relacionamento longo, com um menino que namorara desde a época
do colégio. Hesitei um pouco na hora de falar dos detalhes, mas
expliquei por que terminamos. Que sentia uma grande tristeza, ficava
com vontade de morrer quando fazia sexo. Que, por mais que me
esforçasse, não conseguia de jeito nenhum. Que, mesmo depois de
terminar o relacionamento, não tive nenhuma vontade de fazer essas
coisas. Mas que achava, de vez em quando, que talvez eu tivesse algum
problema por ser assim. Aizawa ouviu em silêncio enquanto eu falava.
Em seguida lhe contei sobre meu desejo de ter um filho. Pensando de
forma realista, eu não tinha um parceiro, não conseguia fazer sexo, e
havia ainda a questão financeira, ou seja, eu não preenchia nenhum
dos requisitos para cogitar ser mãe. Nos últimos dois anos, porém,
passara a querer muito ter um filho, era só o que eu pensava. Eu lhe
contei tudo isso.
— Quando você diz que quer ter um filho — Aizawa formulou —
significa que quer criar um filho? Ou que quer dar à luz? Ou que quer
engravidar?
— Também me fiz essas perguntas, na medida do possível —
respondi. — Talvez seja o desejo de “querer descobrir”, que engloba
tudo isso.
— Querer descobrir. — Aizawa repetiu minhas palavras com
cuidado.
Por um tempo pensei no que eu dissera, mas não consegui explicar
direito minha própria afirmação. Não sabia por que queria descobrir.
Ou o que significava para mim ter “meu próprio filho” ou “minha
própria filha”. O que, quem, que tipo de existência eu tinha em
mente. Não consegui explicar nada disso. Com dificuldade, eu me
esforçava para concatenar as palavras, tentando explicar que, para
mim, era muito importante descobrir esse alguém que eu não fazia
ideia de quem era. Contei também que, no fim do mês anterior, eu
havia me cadastrado em um banco de sêmen do exterior chamado
Willkommen, mas que, talvez por não ter inserido os dados direito,
não tinha recebido nenhuma resposta, apesar de ter tentado várias
vezes. Começava a achar que talvez fosse melhor congelar meus
óvulos, levando em consideração a minha idade. A verdade é que eu
estava completamente perdida, sem saber o que fazer dali em diante,
mesmo pensando em várias possibilidades. Aizawa me ouvia em
silêncio, assentindo e respondendo com monossílabos de vez em
quando, pressionando a área da boca com a toalha umedecida,
enquanto eu discorria sobre meus sentimentos e minha situação, que
não tinham muito nexo.
— A primeira vez que presenciei a morte de um paciente — disse
ele — foi quando eu ainda fazia residência no departamento de
hematologia. Era uma jovem de vinte anos com leucemia. Era alegre e
suportava muitas coisas. O nome dela era Noriko. Nós a chamávamos
de Nori-chan ou Noribō. Ela adorava a mãe e, quando se sentia bem,
me contava várias coisas. Ela fazia parte do clube de dramaturgia
desde o fundamental II, e quando estava no ensino médio, sua equipe
foi vice-campeã num campeonato nacional, e ela dizia que queria ser
dramaturga no futuro. “Tenho inúmeras ideias na cabeça e, pelas
minhas contas, vou precisar de trinta anos para pôr tudo isso no
papel”, ela me contou feliz, sorrindo. Era engraçada e inteligente.
Fazia tratamento, chegou a receber transplante de medula óssea, mas
teve uma grave rejeição e precisou usar ventilador mecânico. Para
inserir o tubo na garganta, é preciso aplicar um sedativo para o
paciente dormir e, nessa hora, eu disse: “Nori-chan, você vai dormir
um pouco agora, mas vamos nos ver em breve”, e ela respondeu “Está
bem”. Foi a última vez que falei com ela.
— Ela não acordou…
— Não. Depois de um tempo, encontrei a mãe dela. No hospital.
Ela estava tentando ser forte, porque já esperava o pior, mas
perguntou bem triste: “O que será que faço com os óvulos dela?”
— Óvulos?
— É. Tanto no caso dos rapazes quanto das moças, quando
precisam se submeter ao tratamento de radioterapia ou quimioterapia,
às vezes os óvulos ou os espermatozoides são congelados e
armazenados, pensando no futuro, caso eles desejem ter filhos depois
de se curar. No caso de Nori, ela teve seus óvulos congelados. Mas ela
morreu, e só restaram os óvulos. A mãe era uma pessoa bastante
atenciosa e, apesar de estar sofrendo mais do que ninguém naquele
momento, agradeceu aos médicos e enfermeiros um por um, por terem
cuidado da filha. Mas quando ficou a sós comigo… ela chorou,
dizendo: “Será que eu não posso ter Noriko mais uma vez, usando o
óvulo dela?”
Fiquei sem palavras.
— Ela disse: “Sei que ela morreu” — continuou Aizawa. — “Ela
sofreu muito diante dos meus olhos, vomitou tanto, e eu, apesar de ser
sua mãe, não pude fazer nada, não pude sofrer no lugar dela. Acho
que para ela foi melhor assim, pois conseguiu se livrar daquela dor.
Afinal, ela sofreu tanto… Mas não consigo acreditar que não vou mais
vê-la”, completou. “O que eu faço para encontrar Noriko mais uma
vez?”, perguntou, e continuou chorando por um bom tempo. “Será
que não posso parir Noriko de novo, usando o óvulo dela? Não posso
voltar a encontrá-la?”, questionou. Eu não consegui dizer nada… Não
consegui fazer nada.
Aizawa soltou um leve suspiro.
— Não sei por quê… Ouvindo o que você disse, Natsume, me
lembrei de Nori-chan.
***
***
***
***
***
***
Fazendo um leve aceno com a cabeça, Yuriko Zen passou por mim e
caminhou em direção à estação. Me virei e olhei para ela, que estava
de costas. E a segui. Nem eu sabia por que fiz isso, seguindo pelo
caminho que tinha acabado de vir, atrás dela. Deve ter sido por
impulso. Segurei a alça da bolsa e apressei o passo.
Yuriko Zen usava um vestido preto de manga curta e calçava
sapatos pretos sem salto. Carregava uma bolsa preta no ombro
esquerdo, e tanto seu pescoço fino quanto seus braços, que se
estendiam das mangas, pareciam curiosamente pálidos. Seu cabelo
preto estava preso em um rabo de cavalo, assim como quando eu a
vira no saguão no dia do simpósio, e caminhava reto sem quase mover
a cabeça.
Enquanto a seguia, tentei imaginar a razão de Yuriko Zen estar ali.
Mas logo me lembrei das palavras de Aizawa, que comentara que ela
morava a uns dez minutos a pé da estação de Sangenjaya. Ela
atravessou a avenida Setagaya no semáforo, passou diante do karaokê
onde eu estava minutos atrás, atravessou a rodovia 246 no semáforo e
entrou em uma rua estreita. Virando-se algumas vezes, chegou a uma
rua comercial. Na frente de uma loja de conveniência, um grupo de
jovens bêbados gritava, e à direita, talvez por funcionar uma casa de
shows ao vivo, um grupo de pessoas vestindo roupas de roqueiro
tirava fotos com seus celulares, ao redor de um carrinho de carga com
guitarras e outros equipamentos. Yuriko Zen, no entanto, sequer
notando a presença deles, passou no meio do grupo sem ao menos
tentar desviar. Continuei seguindo-a, mantendo uma distância de cerca
de dez metros, procurando não perder sua cabeça de vista.
Chegando a uma trifurcação mais larga no fim da rua comercial, o
número de pessoas diminuiu de repente. Havia uma grande farmácia,
e um atendente que se preparava para fechar o estabelecimento
empurrava para dentro a prateleira móvel com pacotes de papel
higiênico e lenço de papel empilhados, além de protetores solares
pendurados. Yuriko Zen continuou caminhando no mesmo ritmo.
Vendo-a por trás, ela parecia refletir profundamente sobre algo, ou
nada, e continuou caminhando reto, sem olhar para os lados.
A iluminação da rua foi diminuindo, e entramos em um bairro
residencial. Quando chegamos a uma descida suave, Yuriko Zen parou
de andar, como se alguma coisa lhe ocorresse. E virou-se para trás,
devagar. Também parei. Como estava escuro, não pude ver direito sua
expressão, mas, pelo seu jeito de inclinar de leve a parte superior do
corpo, só agora ela parecia ter percebido que eu a seguia. Ela me
observava a uma distância de pouco mais de dez metros. Eu também a
observava. Achei que ela fosse voltar até onde eu estava e me
perguntar por que eu a seguia. Mas, sem dizer nada, virou-se para a
frente e retomou a caminhada no mesmo ritmo de antes. E voltei a
segui-la.
Um pouco adiante havia um parque à esquerda. E, na frente dele
havia um prédio não muito grande, de tijolo, em cujo quadro de
avisos, com a tinta branca descascando e enferrujado aqui e ali,
estavam afixados alguns folhetos. Parecia uma pequena biblioteca de
bairro. O parque era consideravelmente amplo, e as grandes árvores
projetavam sombras por toda a parte. Quando senti na pele o leve
sopro do vento morno, parecia que os galhos, as folhas e as sombras se
moviam lentamente, como se fossem seres animados. Sob a vaga
iluminação, balanços desocupados oscilavam. No meio do parque
havia um montículo, que parecia uma pequena colina, com uma
grande árvore no topo. Essa árvore escura da qual desconhecia a
espécie estendia seus galhos e folhas mais do que as outras, parecendo
uma arte de papel cortado, colada no céu noturno nublado. Chegando
ao fim da rua, Yuriko Zen se virou e entrou no parque.
Apesar de estarmos a apenas alguns minutos da rua comercial
agitada por onde havíamos passado, tudo ali era silencioso. Embora
fosse noite, não era tão tarde, e poderia estar mais agitado, com vários
sons e ruídos. Mas os troncos das árvores, a terra, as pedras e inúmeras
folhas que havia nesse local pareciam ter sugado todos esses sons por
completo e, em seguida, parado de respirar. Curiosamente, não se
ouvia nenhum barulho. Yuriko Zen seguiu em linha reta no parque e,
quando chegou ao último banco, sentou-se devagar. Eu a observava de
um lugar um pouco afastado.
— Por que você está me seguindo? — perguntou Yuriko Zen.
Engoli em seco e sacudi a cabeça algumas vezes. Mas não era um
gesto feito em resposta, com algum significado — minha cabeça
parecia balançar porque o pescoço não aguentava mantê-la firme no
lugar. A parte direita do rosto de Yuriko Zen estava iluminada pela luz
fraca do poste, e a outra parte estava na sombra azulada projetada pela
luz. Suas pálpebras e seus lábios finos estavam sem cor, e eu não
conseguia ver as sardas em suas bochechas. O nariz levemente
empinado projetava um sombreado escuro no meio do seu rosto. O
suor pegajoso continuava a escorrer tanto das minhas costas quanto
das axilas e do quadril. Senti dores nas têmporas, como se elas
rangessem, e meus lábios estavam ressecados.
— Quer falar de Aizawa? — indagou Yuriko Zen.
Neguei, balançando a cabeça por reflexo. Mas não sabia o que
dizer em seguida. Não conseguia explicar nem para mim mesma por
que eu a havia seguido até ali.
— Achei que quisesse falar dele — insistiu Yuriko Zen, com uma
expressão que não revelava seus sentimentos. — Você e Aizawa são
próximos, não são?
Balancei a cabeça de forma ambígua.
— Aizawa fala muito de você — murmurou ela.
— Nem eu sei por que segui você — falei. — Mas creio que não
seja para falar de Aizawa.
— Se nem você sabe, como pode afirmar isso?
— Porque enquanto segui você, não pensei nele.
Yuriko Zen observou meu rosto por um tempo, em silêncio, e
franziu de leve a testa.
— Está passando mal?
— Hoje — comecei — fui encontrar um homem que dizia fazer
doação. De sêmen.
Yuriko Zen me encarou em silêncio. Soltando um suspiro em
seguida, balançou um pouco a cabeça para os lados.
— Não se machucou?
Fiz que não, sem falar nada.
Yuriko Zen continuou fitando meu rosto, sem dizer nada, e depois
de um tempo voltou o olhar para a altura do joelho. Em seguida,
olhou para a extremidade do banco, movendo o rosto lentamente,
como se me convidasse a sentar. Ainda segurando a alça da bolsa,
acomodei-me na extremidade oposta do banco.
— Aizawa fala de mim para você? — perguntou Yuriko Zen depois
de um momento de silêncio.
— Disse que você o ajudou quando ele passou por uma fase difícil.
Yuriko Zen sorriu, soltando um pequeno suspiro.
— Ele deu detalhes? Dessa fase difícil?
Balancei a cabeça.
— Eu não acho que o ajudei, mas ele vive dizendo isso. Afinal, essa
é a única razão de ele continuar comigo — disse ela. — Ele falou da
ex-namorada?
Balancei a cabeça.
— Uma vez Aizawa tentou se suicidar — revelou ela, cruzando os
dedos sobre o colo e observando fixamente as pontas deles. — Foi
pouco antes de nos conhecermos. Não sei se ele realmente queria
morrer ou se fez aquilo por impulso, mas tomou um monte de
remédios, de vários tipos, e quase morreu. Como ele é médico, deve
ter dado um jeito de arranjar, mas como tinha conseguido os remédios
de forma irregular, foi uma confusão. Teve que deixar o hospital. Não
chegou a perder a licença de médico, mas parece que passou por uma
fase difícil depois disso. Acho que a fragilidade dele vem de muito
tempo.
— Ele contou que tinha uma namorada — respondi. Minha voz
estava estranhamente rouca, e dei uma tossida.
Yuriko Zen balançou a cabeça de leve.
— O relacionamento deles ia bem, tinham decidido até a data do
casamento, mas certo dia, de repente, ele descobriu que não sabia
quem era seu pai biológico. E ele contou isso para a namorada. Deve
ter achado que não podia esconder. E ela quis terminar tudo. “Pensei
muito, mas acho que não devo me casar com você…”, a namorada
disse a ele. “Pensei muito mesmo, mas cheguei à conclusão de que não
posso ter um filho sem saber quem é o avô dele.” Óbvio, os pais dela
também se intrometeram, disseram que a filha não podia ter filhos
com um homem nessas condições, que não queriam um neto de
linhagem desconhecida. Como Aizawa confiava muito nela, deve ter
sofrido um bocado. Eles começaram a namorar quando ele ainda era
estudante de medicina, e ficaram juntos por vários anos.
Assenti em silêncio.
— Depois de uns dois anos, ele leu um artigo sobre mim e passou a
frequentar a nossa associação — completou Yuriko Zen. — No
começo parecia muito angustiado. Falava pouco de si, mas ouvia com
atenção o que os outros membros diziam. Talvez ele achasse que tinha
encontrado o lugar dele.
Yuriko Zen piscou algumas vezes, devagar, como se demarcasse o
espaço à sua frente de modo que só ela entendesse. O branco de seus
olhos reluzia de tempos em tempos. Ela levantou o rosto e me fitou.
— Eu falei que só tinha uma razão para Aizawa continuar comigo,
mas na verdade tem mais uma: pena.
— Pena? — indaguei.
— É. Aizawa tem pena de mim. Não só porque não sei quem é meu
pai biológico, mas também pelo que passei. Ele tem pena de mim.
Acho que você também leu meu depoimento.
Não respondi.
— Mas eu não disse nada para Aizawa — revelou Yuriko Zen,
erguendo um pouco o queixo. — Só disse que fui estuprada pelo
homem que eu achava que era meu pai. Não disse mais nada além do
que está escrito no artigo ou no livro de entrevistas. Só de ouvir isso,
Aizawa ficou bastante chocado, e, vendo-o assim, não pude contar
mais nada. Não contei que não foi só uma ou duas vezes que fui
estuprada, não contei que depois de se acostumar, meu pai começou a
chamar outros homens para fazer a mesma coisa comigo, não contei
que eu era ameaçada. Não contei que não foi só em casa, mas que eu
era levada de carro para o deque na margem do rio, sem ninguém por
perto, e vários outros homens saíam de outros carros e vinham até
mim. Não contei como era a forma das nuvens que eu via naquela
hora, não contei que via crianças mais ou menos da minha idade
brincando ao longe, que pareciam bem pequenininhas de onde eu
estava.
Observei Yuriko Zen em silêncio.
— Por que você quer ter um filho? — perguntou ela depois de um
tempo.
O vento úmido soprou entre nós duas. O ar morno acariciou meus
braços, e o cabelo caiu na minha bochecha. Yuriko Zen me olhou,
estreitando os olhos.
— Preciso de um motivo? — indaguei como se reunisse a voz do
fundo da minha garganta.
— Talvez não — respondeu Yuriko Zen, rindo levemente. —
Desejo não precisa de motivo. Por mais que seja um ato que
machuque os outros, desejo não precisa de motivo, não é mesmo?
Talvez não precise de motivo nem para matar, nem para parir.
— Eu sei que é bem antinatural, esse método que eu estou
cogitando.
— Método? — indagou ela, sorrindo. — Na verdade, isso não é
muito importante.
— Como assim?
— O método como se nasce, a linhagem, os genes, o fato de não se
saber quem é o pai… Nada disso, na verdade, tem grande
importância.
— Por que não? Há muitas pessoas sofrendo por causa disso ainda
hoje — falei depois de hesitar um pouco. — Você, Aizawa…
— Não acho adequado precisar preparar uma criança para fazer
terapia ou receber cuidados no futuro — respondeu ela. — Mas, na
verdade, isso vale para todo mundo. Afinal, nascer é isso. Talvez não
se deem conta, mas todos vivem um processo permanente de fazer
terapia e receber cuidados a vida inteira. Não perguntei para você
sobre o método. Perguntei por que você quer ter um filho. Tendo que
passar pela experiência horrível como a de hoje.
Não respondi.
— Deve ser — completou Yuriko Zen em voz baixa — por você
acreditar que o nascimento de uma pessoa é algo maravilhoso.
— Como assim?
— Você tem dúvidas quanto ao método, mas nem pensa direito no
que está tentando realmente fazer.
Continuei em silêncio, observando meu joelho.
— E se você tiver um filho e a criança se arrepender do fundo do
coração por ter nascido, o que você vai fazer?
Yuriko Zen observava fixamente a ponta dos dedos das mãos que
mantinha cruzadas sobre o colo.
— Quando digo isso, todos ficam com pena de mim. “Pobrezinha,
não sabe quem é o pai, sofreu coisas horríveis, deve estar sendo muito
difícil seguir em frente.” Todos me olham como se olhassem a criatura
mais infeliz do mundo, sentindo uma grande compaixão. E dizem:
“Você não tem culpa de nada, mas ainda há tempo, você pode
recomeçar a vida quantas vezes quiser.” Chegam a me abraçar, com
lágrimas nos olhos. São pessoas bondosas, cheias de boas intenções —
disse ela. — Mas não me considero especialmente infeliz, nem uma
coitada. O que aconteceu na minha vida não é nada, de verdade,
comparado com o fato de ter eu nascido.
Observei o rosto dela. Tentando assimilar o que ela dissera,
procurei repassar suas palavras várias vezes, mentalmente.
— Você não deve estar entendendo aonde quero chegar —
continuou ela, suspirando de leve pelo nariz. — Mas é algo bem
simples. Por que todo mundo consegue fazer isso? Por que todos
conseguem ter filhos? É isso. Só isso. Por que todos conseguem
continuar cometendo um ato tão violento assim, com um sorriso no
rosto? Como conseguem trazer para um mundo tão absurdo uma
existência que nunca desejou nascer, só porque eles querem? É isso
que eu não entendo. Só isso.
Yuriko Zen alisou com calma seu braço esquerdo com a palma da
mão direita. Os braços que saíam da manga do vestido preto eram
pálidos e, com a variação da intensidade da luz que incidia neles,
algumas partes pareciam azuladas.
— Uma vez que nascem, não podem fazer de conta que nunca
nasceram — disse ela, sorrindo. — Você deve achar que estou sendo
muito radical e idealista, não é? Mas não estou. Falo de algo bastante
realista. Falo de uma dor real, concreta, que existe de fato, aqui e
agora.
“Mas parece que ninguém pensa dessa maneira. Parece que nem
em sonho imaginam estar envolvidos em algo tão violento assim.
Todos adoram uma festa-surpresa, não é mesmo? Um dia, quando
você abre a porta, está rodeado de inúmeras pessoas que dizem
“surpresa!”. Pessoas que você nunca viu, que nunca encontrou,
aplaudem com um largo sorriso, dizendo “parabéns!”. Numa festa,
você pode abrir a porta dos fundos e sair, mas, uma vez que você
nasce, não tem nenhuma porta que te leve para o pré-nascimento. Mas
essas pessoas não têm nenhuma má intenção. Acham que todo mundo
gosta de festas-surpresa. Acham que a vida é maravilhosa, que viver é
uma felicidade, que o mundo é belo… São pessoas que conseguem
acreditar que, apesar de haver sofrimento neste mundo em que vivem,
de modo geral ele é um lugar maravilhoso.”
— Concordo — respondi baixinho — que dar à luz é um ato
unilateral e violento.
— Mas mesmo as pessoas que pensam desse jeito dizem em seguida
que o ser humano é assim mesmo. É uma maneira de justificar esse
comportamento. Mas o que significa ser assim mesmo? O que elas
querem dizer? — Yuriko Zen sorriu debilmente. E me perguntou
baixinho mais uma vez, como se falasse para si mesma: — Por que
você quer tanto ter um filho?
— Não sei — respondi por reflexo. Nesse momento, lembrei-me
do rosto de Onda rindo, e pressionei a pálpebra com a ponta do dedo.
— Não sei. Mas talvez você tenha razão. Acho que nem eu mesma sei
mais o que quero fazer de verdade, o porquê disso. Apenas sinto
uma… — balancei a cabeça sem força — vontade de encontrar meu
filho.
— Todo mundo diz a mesma coisa — respondeu ela. — Não só
aqueles que optam por IAD, mas todos os pais dizem exatamente a
mesma coisa. Que bebês são uma gracinha. Que desejam criar um
filho. Que querem encontrar o próprio filho. No caso das mulheres,
dizem que almejam usar toda a potencialidade do corpo feminino.
Que querem perpetuar os genes da pessoa amada. Há quem justifique
também se sentir sozinho, querer alguém para cuidar dele na velhice.
No fundo é tudo a mesma coisa.
“As pessoas que têm filhos, sem exceção, só pensam nelas mesmas,
é sério. Não pensam na criança que vai nascer. Não existe nenhum pai
ou mãe na face da Terra que teve filhos pensando no bem da própria
criança que vai nascer. Não acha isso incrível? E a maioria dos pais
deseja que pelo menos seu filho se veja livre de sofrimento, que
consiga viver longe de qualquer tipo de infelicidade, não é mesmo?
Mas só existe uma maneira de evitar qualquer tipo de sofrimento ao
filho: não permitindo que ele exista, impedindo seu nascimento.”
— Mas… — falei depois de refletir. — Mas… tem coisas que você
só descobre depois que nasce.
— Em quem você está pensando quando diz isso? — indagou ela.
— Para quem é essa aposta, “você só descobre depois que nasce”?
— Aposta? — perguntei, murmurando.
— Para mim, parece que todos fazem uma aposta — reforçou
Yuriko Zen. — Como se apostassem na possibilidade de que o filho
que põem no mundo será tão abençoado quanto a eles mesmos, ou
mais, que vai ser feliz, vai se sentir grato por ter nascido. Na vida há
alegrias e sofrimentos, as pessoas dizem, mas elas acreditam que, no
fundo, os acontecimentos felizes são maiores do que os infelizes. Por
isso são capazes de apostar. Mesmo que todos morram um dia, a vida
tem seu sentido, o sofrimento também tem sua razão de ser, nisso tudo
há uma alegria insubstituível, assim pensam, e acreditam piamente,
sem nenhuma sombra de dúvida, que, assim como eles, o filho
também vai pensar assim. Nunca chegam a considerar que podem
perder a aposta. No fundo, acham que pelo menos eles estão seguros.
Acreditam simplesmente naquilo que querem acreditar. Pensando
neles mesmos. E o mais cruel é que, para fazerem essa aposta, eles não
estão apostando nada deles mesmos.
Yuriko Zen levou a palma da mão esquerda à bochecha, como se a
envolvesse, e ficou imóvel por um momento. A noite estava
preenchida por uma cor que poderia se dizer que era preta, cinza ou
azul-escuro, e a leve brisa estava impregnada de cheiro de chuva. No
outro lado da rua, uma bicicleta passou. Não consegui ver o perfil do
ciclista. Seu farol amarelo-claro se moveu, trêmulo, da direita para a
esquerda, e desapareceu.
— Há crianças — retomou Yuriko Zen — que sentem dor desde o
nascimento e que morrem em pouco tempo. Elas não conseguem nem
ver como é o mundo em que estão, não adquirem nem as palavras para
compreender a si mesmas, são simplesmente trazidas para este mundo
vivendo, para existir como um pedaço de carne que só sente dor, e
morrem… Aizawa falou para você como é a ala pediátrica do hospital?
Balancei a cabeça.
Yuriko Zen soltou um leve suspiro e continuou:
— Os pais querem ouvir da criança “que bom que eu nasci”, como
uma forma de reforçar a crença deles. Ou seja, para não perderem a
aposta egocêntrica que fazem, tanto os pais quanto os médicos
permitem que seja dada à luz uma vida que nem pediu para nascer. Às
vezes cortam e costuram o corpinho do bebê, às vezes enfiam um tubo
nele, ligando a uma máquina, fazendo-o perder muito sangue. E
muitas crianças morrem sofrendo dores agonizantes. Nessas horas,
todo mundo fica com pena dos pais. “Coitados, não deve haver
tristeza maior para eles do que perder um filho.” Os pais choram e, na
tentativa de superarem a tristeza, dizem, apesar de tudo: “Foi bom ter
tido meu filho, só sinto gratidão.” Dizem isso com sinceridade. O que
querem dizer com sentir gratidão? Para quem, e por que, essa
existência, que era a própria dor, foi gerada? Para os pais sentirem
gratidão? Para os médicos ouvirem: “Doutor, a sua técnica foi
incrível”? Com que direito eles acham que podem fazer isso? Como
conseguem trazer ao mundo uma existência que talvez seja apenas a
própria dor, que talvez morra sendo apenas a própria dor, que talvez
não deseje viver nem por mais um segundo sequer, que talvez viva
pensando na morte todos os dias? Por que não sabiam? Não lhes
ocorreu que isso poderia acontecer? Por que nem passou pela cabeça
deles que poderiam perder a aposta? Por que essa estupidez? Afinal,
de quem é essa aposta? Eles estão apostando o quê?
Continuei calada.
— Alguém me contou a seguinte história — prosseguiu ela depois
de uma pausa. — Você está de pé, sozinha, na entrada de uma floresta
antes do amanhecer. Está um completo breu, e nem você sabe direito
por que está nesse lugar. Mesmo assim decide seguir e entrar na
floresta. Depois de um tempo, você avista uma casinha. Abre a porta
com cuidado. Dentro, vê dez crianças dormindo.
Assenti com a cabeça.
— As dez crianças estão dormindo profundamente. Elas não
sentem alegria nem felicidade, e tampouco tristeza ou sofrimento. Não
existe nada disso. Afinal, estão todas dormindo. E você pode escolher
se vai acordar todas elas, as dez, ou se vai deixá-las dormindo.
“Se você acordar todas elas, nove entre as dez crianças vão ficar
felizes por você ter feito isso. Ficarão gratas do fundo do coração. Mas
uma delas, não. Você sabe que essa única criança passará por um
sofrimento pior do que morrer desde o momento em que abrir os
olhos até sua morte. Sabe que ela viverá no meio desse sofrimento até
o fim. Você não sabe qual, mas uma entre as dez crianças com certeza
vai passar por isso.”
Yuriko Zen sobrepôs uma das mãos sobre a outra em seu colo e
piscou lentamente.
— Ter filhos é o mesmo que acordar as crianças sabendo disso.
Quem tem filhos tem a coragem de fazer isso — concluiu ela. — Pois,
para vocês, tanto faz.
— Tanto faz?
— É. Porque você não é uma das crianças dessa casinha. Por isso
consegue acordar. Quem quer que seja a criança que vai viver o
sofrimento do nascimento até a morte, não é você. Não é você que vai
se arrepender de ter nascido.
Permaneci em silêncio e pisquei.
— Para acreditarem no que querem, no amor, no sentido da vida,
as pessoas conseguem fazer de conta que a dor alheia, o sofrimento
alheio, não existe.
A voz de Yuriko Zen ficara quase inaudível.
— O que vocês estão tentando fazer?
O ar ao meu redor se tornou um pouco mais pesado, e o suor
colado no meu corpo pareceu ficar mais pegajoso. Senti um leve
cheiro de suco gástrico. Como não tinha comido nada sólido desde a
manhã, a acidez gástrica talvez tivesse aumentado. Mas só sentia um
leve rugido na altura do estômago, não tinha fome. Tocando meu
nariz, senti a oleosidade grudar na ponta do dedo. A polpa do dedo
indicador chegava a deslizar.
— Ninguém… — disse Yuriko Zen, baixinho. — Nenhuma criança
deve ser acordada.
Tinha começado a chover. Mas era uma chuva fina como uma
névoa, e eu precisava olhar sob a iluminação para vê-la.
Permanecemos imóveis por um longo tempo em cada uma das
extremidades do banco. Yuriko Zen parecia divagar, ou simplesmente
observar o nada no chão esbranquiçado. Ouvi o trovejar baixinho
vindo de algum lugar distante.
***
***
* “Não seria legal se fôssemos mais velhos?/ Não precisaríamos esperar tanto/ Não seria legal
se pudéssemos morar juntos/ Em um tipo de mundo só nosso?/ Você sabe que vai ser bem
melhor/ Quando pudermos dizer boa-noite e ficar juntos/ Não seria legal se pudéssemos
acordar/ Pela manhã, quando o dia é novo?/ E depois de passarmos o dia juntos/ Ficar
abraçados a noite inteira.” [N. da T.]
16
Porta de verão
***
***
***
***
***
Chegando à estação da cidade portuária e descendo na plataforma,
senti cheiro de mar, e inspirei o ar profundamente. Nunca mais tinha
colocado os pés nessa cidade. Haviam se passado mais de trinta anos
desde aquela noite em que fugíramos de táxi, tarde da noite, minha
mãe, Makiko e eu.
O interior da estação estava completamente diferente, mas, ao
passar pela catraca, havia duas passagens, uma para a direita e outra
para a esquerda, o que continuava igual. Um número considerável de
pessoas saiu e entrou do vagão, e as que saíram desceram a escadaria
alegremente, comentando sobre o calor. Quando morávamos ali, não
havia nada além do porto. Só no verão, quando vinha o navio à vela
uma vez por ano, a cidade se animava. Pouco mais de dez anos depois
de termos ido embora, um grande aquário foi construído, e foi
bastante noticiado. Mas quando eu era criança, não havia nada. Só a
infindável fileira de armazéns gigantescos e cinzentos, ondas violentas
que quebravam no cais e umidade do mar. “Tudo isso vai desaparecer,
e no futuro vão construir um negócio enorme”, lembrava de meu pai
dizer com o rosto vermelho depois de beber cerveja. “Futuro,
quando?”, perguntei baixinho, e ele respondeu, rindo feliz: “Daqui a
dez ou vinte anos.”
Parada de pé no patamar da escadaria da estação, olhei para o
porto e vi o enorme telhado do prédio que parecia um aquário
brilhando intensamente com os raios de verão, e também uma grande
roda-gigante ao lado.
Mesmo quando já morava no apartamento de vó Komi, eu
lembrava, de vez em quando, dessa cidade e do apartamento onde
morara até os meus sete anos, de onde tivemos que fugir de repente.
Nessas horas, no entanto, sempre me via tomada por um sentimento
que parecia tristeza e dor. Tinha a impressão de que as várias coisas da
cidade e do apartamento — os vira-latas da ruas, as garrafas de cerveja
quebradas, os chicletes cuspidos na calçada, os futon desbotados, as
tigelas sujas empilhadas, as gritarias ao longe — me fitavam em
silêncio, de algum lugar. Às vezes era eu mesma quem me fitava. Tinha
a sensação de que eu, que colocara a mochila escolar na cabeceira com
os materiais de terça-feira, continuava deitada ainda hoje no futon
daquele quarto, aguardando algo em silêncio. Sem saber o que
acontecera, sem ninguém perceber, estava abandonada, sozinha, e não
conseguia me mover. Tinha essa sensação de vez em quando.
A maior avenida da cidade, na qual chegava a prender a respiração
para atravessar de tão nervosa que ficava, estava cheia de táxis, e
muitas pessoas caminhavam por ela em direção ao aquário. Na esquina
da calçada do outro lado havia a placa de um restaurante de udon. O
nome não mudara, e antigamente os proprietários eram os pais de um
colega de classe. Dei uma espiada lá dentro e, por ser horário de
almoço, estava lotado. Com a exceção desse restaurante de udon, a rua
tinha mudado completamente, e só havia lojas de suvenires para
turistas. Mas não lembrava mais o tipo de comércio ou de prédios que
havia ali. Caminhando mais um pouco, avistei uma loja de
conveniência. Comprei dois onigiri e uma garrafa de água gelada, e
segui reto pela rua, enxugando o suor.
Olhei o relógio: uma da tarde. Ao levantar o rosto, o sol brilhava
alto no céu e, estreitando os olhos, vi um halo claro nas cores do arco-
íris à sua volta. Gotas de suor se formavam entre a linha do cabelo da
testa e as têmporas, e tive a impressão de ouvir o som dos intensos
raios solares chamuscarem meu cabelo e minha pele.
Ao caminhar reto, cheguei a uma esquina familiar. Vi uma pequena
placa escrita cosmos. Me aproximei dela, atraída. Minha mãe chegara a
fazer um trabalho temporário nesse restaurante durante o dia. Vó
Komi tinha me levado ali algumas vezes, no horário de trabalho da
minha mãe, e almoçáramos juntas. Quando nos via, minha mãe abria
um sorriso encorajador, e meu coração se enchia de emoção ao vê-la
de avental vermelho, trabalhando de forma dinâmica atrás do balcão,
respondendo alegremente quando era chamada, secando os pratos ou
os levando às mesas. “Sua mãe está entusiasmada”, dizia vó Komi para
mim, rindo, e eu concordava meneando a cabeça várias vezes.
Tentei me imaginar abrindo a porta do Cosmos e dizendo: “Muito
tempo atrás, minha mãe trabalhou aqui. Faz muito tempo mesmo,
mais de trinta anos. Vendo minha mãe trabalhar animadamente, fui
tomada pela emoção, prestes a chorar, apesar de ter um prato
apetitoso à minha frente — hambúrguer — que não consegui comer
direito. Disfarcei e me esforcei para comer, estava uma delícia, e
permaneci aqui, com minha avó, vendo minha mãe trabalhar.” Me
imaginei falando isso para o atendente da loja. Mas, claro, não tive
coragem. Tomei a água da garrafa PET e, depois de observar por um
tempo a porta do restaurante, caminhei até um banco à sombra de
uma das árvores da rua e comi o onigiri demoradamente.
Mesmo depois de terminar de comer, continuei a observar, sentada
no banco, as pessoas que iam e vinham pela avenida que levava ao
aquário. Transpirando, fiquei observando onde se misturavam as
partes da cidade que tinham mudado completamente e as partes
preservadas, enquanto pensava na minha mãe, no que ela sentira
quando viera para esta cidade tantos anos atrás, quando viu a cidade
pela primeira vez. O que ela pensou ao sentir o cheiro do mar? Será
que ficara animada, com sonhos ou expectativas sobre a nova vida,
sobre a família? E me dei conta de que nunca perguntei à minha mãe
sobre como ela era antes de ser mãe.
O que será que aconteceu com o apartamento onde morei com
minha mãe, meu pai e Makiko? Se o prédio ainda existia, para chegar
lá teria que virar à direita na esquina do restaurante de udon, e era
uma das ruas paralelas à avenida, caminhando algumas quadras a
oeste. Na época em que morávamos lá, havia um restaurante de
yakiniku ao lado do nosso prédio e, à frente, um restaurante de
okonomiyaki, que uma mulher idosa tocava sozinha, com um pequeno
tanque que parecia embutido, onde muitos peixes vermelhos,
relativamente grandes, nadavam entre as algas de cor verde-escura,
como se as costurassem. Na diagonal oposta, havia uma quitanda à
moda antiga, com um cesto de bambu com dinheiro suspenso do teto
por um elástico, onde minha mãe sempre comprava fiado. Apesar
disso, pelo que lembrava, os donos nunca faziam cara feia e sempre
brincavam comigo de forma atenciosa quando eu ia lá. Virando à
direita na quitanda, havia uma barbearia, cujo dono sempre se
vangloriava de que um de seus funcionários virara dublê de filmes de
ação, aparecendo algumas vezes na TV, e sempre contava a mesma
história de forma engraçada. Eu costumava esperar minha mãe chegar
sentada no corredor ao lado do bar izakaya, no piso térreo do nosso
prédio.
Pensei em ir até lá, mas reconsiderei, suspirando intimamente. Não
era para isso que tinha vindo a Osaka. Esfregando com os dedos o
suor que escorria pela minha pele, observando o movimento das
pessoas, fiquei olhando para elas, imóvel. Parede externa do prédio de
azulejo marrom lustroso. Lembrava que havia vários tons de marrom e
que cada azulejo retangular era inflado em tom caramelo. Seguindo
pelo corredor ao lado da entrada do bar izakaya, havia uma escadaria.
O corredor estava sempre escuro e, na parede, havia caixas de correio
em um tom prateado-fosco. Como estaria o prédio hoje? Naquela
época, eu ainda era criança e praticamente não possuía nada que fosse
meu, mas tivera que deixar todos os meus pertences e nunca mais
voltara ao local, que ficava a poucos minutos a pé do banco onde eu
estava sentada nesse momento. Eu não conseguia acreditar nisso. Será
que devia ir até lá? Será que o prédio ainda existia? Como estaria
aquela área? Mesmo que o prédio estivesse no mesmo lugar, o que eu
faria? Vendo-o depois de tanto tempo, no que devia pensar? Aliás, por
que matutava tanto sobre isso? Dar uma passada no lugar em que vivi
em outros tempos não era nada especial. Por que me sentia assim?
Mas eu tinha medo. Não sabia do que, mas, ao pensar em ver o
apartamento onde havíamos morado, ver aquela paisagem, por alguma
razão me sentia paralisada.
Fui novamente à loja de conveniência comprar outra garrafa de
água e a tomei bem devagar, aos poucos. Voltando a me sentar no
banco, observei vagamente a cena à minha frente. Consultei o relógio:
duas e meia da tarde. Talvez fosse melhor voltar a Shōbashi e ligar
para Makiko. Tinha que avisar Midoriko que eu já estava em Osaka.
Talvez fosse melhor fazer isso. Mas não consegui me levantar do
banco. Não consegui deixar aquele lugar.
Duas meninas, provavelmente irmãs, com roupas combinando e
mochilas azul-celeste que balançavam nas costas, corriam atrás da mãe
que andava na frente. A primeira a ultrapassou, a outra também
correu e se agarrou à cintura da mãe, e as três seguiram caminhando,
rindo, grudadas umas às outras. Observei as três até perdê-las de vista
e enxuguei o suor do rosto como se o massageasse com a palma da
mão. Levantando-me e balançando a mochila para os lados para
acomodá-la nas costas, virei à direita na esquina do restaurante de
udon e caminhei na direção do prédio onde morávamos.
Na primeira rua paralela à avenida não havia ninguém a caminho
do aquário, e estava tudo silencioso. Os raios solares do rigoroso verão
incidiam sobre todas as coisas e queimavam as ruas e os prédios
praticamente desertos. A rua era familiar. Observei atentamente cada
estabelecimento comercial, cada casa dos dois lados, à minha direita e
à minha esquerda. Havia fachadas que pareciam reformadas, mas eu
não conhecia a maioria dos prédios. À direita havia um pequeno
terreno coberto de ervas daninhas, onde antes, salvo engano,
funcionava uma lavanderia self-service. Passei muitos dias de chuva
sentada em seus bancos internos, sentindo o cheiro de roupa secando
e observando, sem me cansar, grandes gotas que caíam na rua
cinzenta.
Havia uma casa no local onde antes era a quitanda. A casa era
pequena, com a parede externa de tom cinza-azulado, homogênea
como uma casa de origami, impossível de saber se era velha ou não. À
esquerda tinha uma porta de aço. Não havia cortinas na janela de
vidro fosco, e não sabia se tinha gente morando ali. O salão de chá à
direita dava a impressão de não ter mudado, mas parecia que sua porta
de correr estava fechada havia muito tempo. Caminhei devagar. Não
cruzei com ninguém nem ouvi nenhum som. Parecia que a luz e o
calor do sol tinham absorvido os ruídos e as pessoas que deveriam
estar ali, sem nenhuma exceção. À direita havia um estacionamento
automático sem nenhum carro estacionado. Nesse local havia… Eu
não sabia o que funcionava nesse lugar, mas havia uma casa com a
porta sempre aberta por onde pessoas entravam e saíam
incessantemente e a presença de um grande cão de raça híbrida. Era
uma cadela chamada Sen, tranquila, que ficava sempre deitada na
entrada da casa, no piso em que as pessoas tiravam os calçados. Eu
gostava de Sen e sempre me aproximava dela para tocá-la. Já tinha
visto Sen dar à luz uma ninhada de vários filhotinhos molhados
envolvidos por uma membrana branca, que pareciam vísceras
fascinantes. Ela lambia com cuidado os filhotinhos recém-nascidos de
olhos fechados que, chorando baixinho e movendo só o focinho com
toda a força, se agarravam às suas tetas. Eu me lembrava do cheiro da
cama dos cachorros, do formato de suas línguas caídas. Da área de
seus olhos úmida e escura. Parei de andar e, ao levantar o rosto…
avistei o prédio onde morávamos.
Olhando para cima, observei o prédio por um tempo.
Pisquei devagar algumas vezes e fitei o prédio em silêncio. Os
azulejos caramelo continuavam iguais e, no piso térreo, no beiral
verde-desbotado que não me era familiar, talvez porque o
estabelecimento tivesse trocado várias vezes, transpareciam letras
indecifráveis que estavam apagadas com tinta. A porta de correr,
enferrujada aqui e ali e coberta de mofo esbranquiçado quase que por
inteiro, estava fechada. Era um prédio muito pequeno. Tão estreito
que não seria possível estacionar nem duas bicicletas em fileira. À
direita, havia uma entrada que parecia uma fenda. Era a entrada do
corredor que levava à escadaria para os pisos de cima. Fechei a boca.
Suspeitava que o prédio seria pequeno, mas não achei que fosse tão
minúsculo. A entrada parecia não ter nem um metro de largura. Era
tão estreita que só dava para passar virando de lado. A junção de
concreto que tapava o desnível entre a calçada e a entrada do prédio,
onde eu sempre me sentava, continuava cinzenta. Lembrava-me muito
bem do dia em que chegara um homem com macacão de operário e
pusera concreto nesse pequeno sulco. “Você não pode mexer até secar
e endurecer por completo”, ele me avisou, mas, ao ficar sozinha,
vendo o concreto endurecer gradualmente, prendi a respiração e, em
segredo, pressionei meu dedo com cuidado. Aproximando-me e
agachando nesse lugar, vi minha marca. Havia uma pequena
depressão, prestes a sumir. Sempre esperava minha mãe nesse lugar,
encostada no pilar de azulejo caramelo e, de vez em quando, tocava
nessa depressão com o dedo.
Suspirei de leve e dei um passo para dentro.
O corredor estava gelado e escuro, e senti um leve cheiro de mofo.
Parecia que ninguém morava no prédio. Era silencioso, como se
simplesmente aguardasse, por muito tempo, o momento de ser
demolido. As caixas de correio enferrujadas apareciam no meio da
sombra, e vi a escadaria ao fundo. Era uma escadaria muito pequena.
A cada passo que dava, sentia algo como plumas se levantando, e subi
a escadaria suspirando. Eu tinha subido essa escadaria, que só
comportava um adulto por vez, nas costas de vó Komi. Também
costumava brincar ali com Makiko. Ou pulava nas costas da minha
mãe, rindo. Em uma ocasião em que saímos todos juntos, o que era
muito raro, vi as costas estreitas do meu pai, que descia com as mãos
no bolso.
No terceiro piso, havia uma porta forrada com papel de estampa de
madeira. Era uma porta minúscula. Conhecia muito bem essa porta.
Observei em silêncio o desenho de madeira, bastante familiar, peguei
na maçaneta e a girei devagar. Estava trancada. Girei mais uma vez.
Estava mesmo trancada.
Enxugando o suor que escorria da testa e esfregando os olhos,
continuei girando a maçaneta para os dois lados. Mas a porta não
abria. Tentei bater. Ecoou apenas o som seco, e a porta rangeu. Bati
com mais força. Continuei batendo como se alguém me apressasse,
como alguém sendo perseguido. Se essa porta abrisse, talvez eu
pudesse me encontrar mais uma vez. Eu, com a mochila nas costas,
subiria a escadaria, a porta abriria por dentro, e minha mãe, de avental
vermelho, diria “Olá”. Se essa porta abrisse agora, talvez eu pudesse
ver aquele moletom branco, aquela boneca, aquela mochila. Talvez eu
pudesse reviver aqueles momentos em que rimos e dormimos, a
mesinha com aquecedor elétrico embutido à qual sentamos todos ao
redor, as nossas alturas cravadas no pilar, o copo vermelho de plástico
no armário da cozinha… Talvez agora eu pudesse abrir aquela janela
que ficava sempre fechada, e ver mais uma vez… encontrar mais uma
vez… Não, sabia que isso não ia acontecer, mas, mesmo assim,
continuei batendo à porta. Continuei batendo à pequena porta do
apartamento, do prédio onde tínhamos morado. E meu pai? Será que
ele lembrava?, pensei enquanto batia. Meu pai, que desaparecera um
dia, de repente, será que ele lembrava? Será que acontecia de ele pensar
em nós às vezes, na época em que tinha morado conosco?
Sentada na escadaria, soltei o ar dos pulmões. O piso tinha fissuras,
muitas partes estavam escuras, e nos cantos havia algo parecido com
lama grudada. O interior do prédio estava gelado, e no pequeno
patamar da escadaria muitas coisas se empilhavam. Caixas de papelão
que haviam absorvido bastante água e se desfaziam, um balde
desbotado e um esfregão sujo, pano de chão duro, saco plástico preto
com algo dentro. Havia pó acumulado em tudo, e os raios solares que
penetravam da pequena janela do patamar da escada iluminavam esse
canto.
Nesse momento, de repente, soou uma música. Sem entender por
um instante o que se passava, levantei-me em um sobressalto e, sem
querer, pressionei minha garganta. Era o celular. Meu celular tocando.
Nesse momento lembrei que não tinha mandado notícias a Midoriko.
Tirando a mochila das costas, abri o zíper e peguei o aparelho. Era
uma ligação de… Aizawa.
— Alô… É Aizawa.
— Oi. — Minha voz estava estranhamente rouca, e engoli em seco.
— Natsume? — Aizawa chamou meu nome num tom bastante
tenso.
— Que susto — falei de maneira franca. — Não esperava sua
ligação.
— Desculpe ter te assustado. Mas eu também estou. Não tinha
certeza se você atenderia.
— Estava tocando…
— Natsume?
— Sim?
— Sua voz… Você está resfriada?
— Não — disse, expirando profundamente o ar. — Foi só o susto.
— Desculpe.
— Tudo bem, já estou mais calma.
— Pode falar um pouco agora?
— Posso, sim — respondi, mas meu coração ainda palpitava; para
que Aizawa não percebesse, respirei fundo algumas vezes. Ouvi um
leve suspiro do outro lado da linha.
— Depois que você me disse que não vai mais me ver… — Aizawa
suspirou outra vez e deu uma tossida. — Tenho pensado muito a
respeito… sobre não te ver mais, nem poder conversar com você…
Bem, você disse que não vai mais me ver, então não passa de um
argumento egocêntrico meu, mas sou teimoso…
Balbuciei para mostrar que ouvia.
— Gostaria de te ver pessoalmente e conversar — disse Aizawa. —
Por isso estou te ligando.
Ficamos em silêncio por um tempo. Era tudo muito estranho: estar
sentada na escadaria daquele prédio depois de trinta anos, ouvir a voz
de Aizawa nesse local, minha voz ressoar baixinho nos andares de
baixo escuros e saudosos. Parecia que eu estava flutuando, como se
estivesse em um sonho alheio. Pisquei várias vezes, pressionando o
celular contra a orelha.
— Hoje — disse — é seu aniversário, não é, Aizawa?
— Você lembrava?
— Claro que sim.
— Talvez por coincidir com o da sua sobrinha.
— Não só por isso — respondi, meio risonha.
— Natsume?
— Oi?
— Tem passado bem?
— Eu?
— É.
— Nos últimos dois meses — expliquei — minha vida não mudou
nada, mas tenho a impressão de que muitas coisas aconteceram.
Seguiu-se outro silêncio.
— Sabe, estou no apartamento onde morei antigamente — contei
em tom alegre.
— Apartamento onde morou antigamente?
— Sim. Quando nos encontramos na primavera, eu te contei, não
foi? De onde fugimos, de repente, numa noite. Estou nesse lugar.
— Ah, sim, da cidade portuária.
— Exato. — Eu ri. — Vim ver, e era inacreditavelmente pequeno,
tomei um susto. Agora estou neste apartamento, ou melhor, no prédio,
na escadaria, sentada. É tudo muito pequeno. Lá se vão trinta anos, e
agora não há ninguém morando aqui. Bem, isso é óbvio.
— Está sentada sozinha na escadaria?
— Sim. A escadaria também é bem estreita. Tudo está mais velho,
deteriorado, embora nada tenha mudado. Como não mora mais
ninguém, está em ruínas.
— Natsume?
— Oi?
— Nesses dois meses, pensei sem parar no que eu podia fazer para
você concordar em me ver — lançou Aizawa. — Da última vez, você
disse que estaria em Osaka no dia 31 e…
Eu assenti.
— Pensei: se eu for a Osaka, e se ela atender à minha ligação, talvez
concorde em me ver por dez ou vinte minutos — continuou. —
Afinal, a única coisa que eu sabia era que você provavelmente estaria
em Osaka hoje.
— Por acaso você está em Osaka, Aizawa? — perguntei.
— Você poderia me conceder trinta minutos? — pediu ele.
Ao desligar, o silêncio de antes voltou. Ainda sentada na escadaria,
segurava firmemente a parte inferior da alça da mochila. Depois me
levantei devagar e observei fixamente a porta que outrora pertenceu
ao nosso apartamento. Observei o desenho de madeira desbotado e o
número 301 da placa descolorida de tom marrom. Pressionei a parede
áspera com a palma da mão e olhei a porta mais uma vez. E inspirei
profundamente.
Desci a escadaria degrau por degrau e saí no corredor. Observei a
porta da frente, de pé, com a coluna ereta. Levantando o rosto, olhei
bem à frente. Na pequena porta retangular, com menos de um metro
de largura, a luz externa do verão transbordava. Permaneci de olhos
abertos até eles ficarem marejados, fitando a luz sem piscar.
17
Do que esquecer…
***
***
***
***
Decidi ter um filho com Aizawa no final de 2017, e combinamos
algumas coisas. Mas combinar não é a palavra certa, pois ambos não
esperávamos muito um do outro; cada um manifestou sua opinião. Eu
falei que, a princípio, queria ter o filho sozinha e criá-lo sozinha, só
isso. Combinamos que em cada fase da vida da criança iríamos discutir
e decidir quantas vezes e como ela veria o pai e, mesmo se
decidíssemos que o contato do pai com ela não seria frequente,
daríamos um jeito para que eles se encontrassem, se ela assim o
desejasse. Disse a Aizawa que arcaria com todas as despesas do parto e
da criação da criança, e que levaria uma vida condizente com minha
renda. Aizawa refletiu muito sobre a questão financeira e me deu
algumas sugestões, mas concordou em respeitar minha decisão.
No final de fevereiro de 2018 fomos a uma clínica especializada em
infertilidade, fazendo de conta que tínhamos uma união estável. Não
tivemos que provar nossa relação: bastou cada um mostrar seu registro
civil para comprovar que nenhum de nós tinha impedimento
matrimonial.
Eu disse que havíamos tentamos o método da tabelinha por cerca
de seis meses, sem sucesso. O médico definiu a data do exame com
base no meu ciclo menstrual, fez ultrassonografia e confirmou que eu
tinha ovulação. Aizawa também fez os exames, e seus espermatozoides
não tinham nenhum problema. Esses resultados nos deixaram
aliviados, mas fiquei nervosa, achando que, se os espermatozoides dele
não tinham problema e se eu ovulava normalmente, o médico poderia
recomendar que continuássemos tentando pelo método convencional
por mais algum tempo. Mas, contrariando minha preocupação, ele
disse que, em vista da minha idade avançada e do fato de só termos
uma chance por mês, além de já termos tentado por meio ano,
poderíamos avançar para a etapa seguinte, a de inseminação artificial.
Oito meses depois, na quinta tentativa, consegui engravidar.
***
Depois de me despedir de Yusa, comprei comida congelada no
supermercado que ficava no subsolo do Carrot Tower e voltei para
casa. Se corresse conforme o previsto, o parto seria em duas semanas;
minha barriga estava tão inchada que achava que seria impossível
crescer mais. Mas, segundo Yusa, minha barriga ficaria ainda maior na
última semana. Alisei a protuberância que saltava logo abaixo do
estômago e, protegendo-me com a sombrinha, caminhei devagar até
meu apartamento, procurando, na medida do possível, ir pela sombra.
Cheguei ao meu apartamento e, assim que peguei o chá de cevada
da geladeira depois de ligar o ar-condicionado, o celular tocou. Era
Midoriko. Ultimamente tanto Makiko quanto Midoriko me ligavam
com frequência para perguntar se estava tudo bem, se eu precisava de
alguma coisa, se havia algum problema. Minha irmã sempre começava
dizendo que, como já fazia mais de vinte anos de sua gravidez, já não
se lembrava dos detalhes. O que não a impedia de opinar sobre tudo.
E, no final, sempre encerrava de forma categórica: a dor do parto é
indescritível, mas dizem que varia de pessoa para pessoa, e só
experimentando para saber, então é melhor não se preocupar muito.
Midoriko, que tinha começado a fazer pós-graduação em abril, ficou
de vir me ajudar durante as férias, depois que a mãe tivesse voltado
para Osaka. Ela parecia um pouco nervosa em ter que passar mais de
duas semanas em Tóquio, uma metrópole com a qual não estava
familiarizada, ao lado de um recém-nascido. Mas, pela voz, parecia
ansiosa.
— E aí, tudo bem, Natsu? — perguntou Midoriko, alegre.
— Estou bem. Nada de diferente desde ontem.
— A barriga não está doendo?
— Não — disse, e ri. — Está mexendo muito. Acho que é a cabeça,
fica batendo no colo do útero, por dentro. Nessas horas dói tanto que
acho que minha respiração vai parar. Fora isso, não dói muito. Mas à
noite tenho cãibras nas pernas.
— Ah, é? — respondeu ela, em um tom grave. — Na panturrilha?
Com esse barrigão, como você massageia a perna?
— Não consigo. Tenho que esperar a cãibra passar.
— Sério? — disse Midoriko em tom mais grave ainda. — E
incontinência urinária?
— Acho que essa fase já passou — respondi. — Tanto a albumina
quanto o ácido úrico estão normais, no exame de ontem o médico
disse que estou com um pouco de inchaço, e só. Acho que está
perfeitamente normal. Disse que não havia mais nada a acrescentar.
— Que ótima notícia — disse Midoriko rindo, feliz, e eu também
ri. — E como é a sensação de carregar um bebê na barriga?
— É uma sensação curiosa — falei com sinceridade. — Como não
tive enjoos, a sensação real de carregar um bebê na barriga só veio
quando ela começou a crescer. No começo, parecia que eu só estava
gorda. Claro, o corpo fica cada vez mais pesado, passa por várias
transformações.
— Hum.
— É o meu corpo, mas…
— Hum.
— Fica cada vez mais lento, frouxo, como se estivesse dentro de um
traje grande de algum personagem. Antes sentia um desconforto, era
penoso, mas agora nem sinto mais isso, já me adaptei muito bem.
— Ah, é? — disse Midoriko, impressionada.
— Às vezes olho minha barriga durante o banho e, nessas horas,
pergunto a mim mesma: a criança vai mesmo sair daqui? Serei capaz
de expeli-la?
— Hum.
— Mas hoje em dia já não consigo pensar em mais nada além disso.
Não consigo manter nenhuma ideia fixa. Sabe os fios delgados de
macarrão sōmen que se espalham na água quente? Minhas ideias são
como sōmen.
— Hum.
— Sempre achei curioso — retomei. — Por exemplo, a pessoa com
oitenta e cinco ou noventa anos já tem consciência de que daqui a
cinco ou dez anos não vai mais estar viva, não é? Sabe que, num futuro
não muito distante, vai morrer de verdade. Eu pensava, curiosa, como
é sentir isso, como é para alguém estar na idade de saber que, dali a
um ano, nessa mesma época, talvez já não esteja mais vivo. Como se
sentem essas pessoas para quem a morte não é algo que vai acontecer
em um futuro distante… Para quem a morte é algo bem próximo.
— Não deve ser fácil.
— Será que sentem medo? Será que ficam agitadas? Parece que
vivem tranquilamente, mas como se sentem, no fundo? Pensava nessas
coisas.
— Hum.
— Mas, pensando bem, posso morrer no parto. Claro, hoje é
diferente de antigamente, no fundo acho que não terei problemas. Mas
pode haver uma hemorragia… ninguém sabe o que vai acontecer.
Bem, é o estado mais próximo da morte em que já estive.
— Hum.
— Mas, por incrível que pareça, não sinto nada. Mesmo quando
tento pensar em como vai ser, quando tento pensar na morte, no que
pode haver depois da morte, nada me ocorre. É como se eu estivesse
envolvida por um edredom fofinho com enchimento de algodão.
Midoriko soltou uma espécie de gemido.
— É inacreditável, não consigo pensar em nada. Então cheguei a
imaginar que, talvez, quando há a possibilidade real de morrer, uma
substância que deixa a gente assim, tonta, seja secretada na cabeça.
Quem sabe os velhinhos e velhinhas de oitenta e cinco ou noventa
anos vivam todo dia assim, como eu, agora, pensei. E esses
pensamentos também evaporam como se fossem envolvidos em algo
volátil.
— Natsu, você não vai morrer — interveio Midoriko. — Mas acho
que entendo o que quer dizer.
— É curioso, não acha? — falei, rindo. — Não tenho mais medo de
nada.
***
A última semana de julho chegou ao fim e o mês de agosto começou.
Passei a despertar várias vezes no meio da noite. Quando acordava,
pelas manhãs, sentia como se houvesse uma névoa embaçada dentro
da minha cabeça e passava o dia deitada, cochilando. Os raios de sol
do verão iluminavam a cortina clara e formavam um soalheiro no
tapete. Estendia os braços encostada na almofada e abria e fechava as
mãos várias vezes no meio do calor. Mesmo com o ar-condicionado
ligado, a temperatura parecia subir, e sentia o suor nas axilas e nas
costas. Toda vez que piscava, o verão parecia inflar dentro dos meus
olhos.
Então senti algo como uma contração que era diferente daquela
que, vez ou outra, me acometia, e pressionei involuntariamente a parte
inferior da barriga com as mãos. Essa contração se foi, como que
efêmera, mas logo em seguida tive a sensação de que algo inflava bem
no fundo. Depois de se repetir algumas vezes, a sensação se
transformou em uma forte dor. Faltava uma semana para a data
prevista. Achei que era muito cedo, mas, pelo número de semanas,
estava dentro da margem. Ao me dar conta disso, o suor começou a
jorrar de uma vez, meu coração palpitava. Até então, tinha ouvido o
médico, Yusa e também Makiko — apesar de minha irmã afirmar
haver se esquecido praticamente de todos os detalhes — falarem do
parto, e tinha feito estudos cuidadosos sobre gravidez e parto lendo
manuais técnicos e informações da internet. Mas estava
completamente perdida, sem saber reconhecer os verdadeiros sinais de
início de trabalho de parto.
Como a dor amenizou em seguida, fui à cozinha levantando-me
devagar e, enchendo o copo, tomei chá de cevada de uma vez só.
Depois da contração, sentia muita sede, como se o interior das minhas
bochechas colasse dentro da boca. Intervalo, pensei. Lembrei que
havia lido em algum lugar que, ao sentir uma dor diferente da normal,
devia calcular antes de tudo seu intervalo. Para poder me levantar
rapidamente, resolvi me sentar na cadeira e não na almofada bean bag,
e olhei o relógio. Os ponteiros indicavam três horas da tarde em
ponto. Senti outra dor. Pelas contas, as dores vinham a cada vinte
minutos. Eu estava aflita, pois sabia que tinha que pensar no que fazer
em seguida, mas, por alguma razão, tudo pareceu irreal, como se os
vãos do cérebro, o fundo dos olhos, a área sob a testa, tudo estivesse
preenchido por algodão.
Em meio às várias dores que vinham, enviei mensagem no Line
para Makiko e Midoriko dizendo: “Acho que as contrações
começaram. Falo com vocês mais tarde.” Também escrevi a Yusa no
Line. Depois de verificar minha sacola e a bolsa de viagem que deixara
preparadas para a internação, com a minha carteira e a caderneta de
maternidade, liguei para o hospital. A enfermeira que atendeu ao
telefone em voz alegre disse, ao ouvir minha explicação, que talvez eu
pudesse aguardar mais um pouco, mas não teria problema se fosse
naquele momento ao hospital. Expliquei que, por estar sozinha, eu
não conseguiria me locomover caso as dores aumentassem, então iria
naquele momento mesmo, e desliguei.
Quando cheguei ao hospital, o intervalo das contrações tinha
diminuído ainda mais e as dores tinham se intensificado. Entreguei
meus pertences e fui conduzida à sala de parto, onde confirmaram
uma dilatação de cinco centímetros do colo do útero e uma leve
ruptura da bolsa. As enfermeiras trabalhavam de forma eficiente e,
para medirem a intensidade e o intervalo corretos das contrações,
colocaram cintos com sensores na minha barriga, alta como uma
montanha, e um medidor de pulsações no meu dedo médio.
— Natsume, você já vai entrar em trabalho de parto, tudo bem? —
perguntou com o mesmo sorriso de sempre a enfermeira de idade
avançada que me tratara gentilmente desde o começo.
Sem conseguir falar por causa da dor, assenti várias vezes com a
cabeça, enquanto ela abria um largo sorriso e segurava meus ombros
com força.
Em algumas horas o intervalo das contrações diminuiu para quinze
minutos, depois para dez, enquanto a dor aumentava gradualmente, a
ponto de tudo escurecer diante dos meus olhos. Em alguns períodos
de poucos minutos eu parecia recobrar a consciência, como se a névoa
se dissipasse e a minha visão voltasse, e nessas horas eu arregalava os
olhos e respirava fundo, como se tentasse juntar algo. Meus joelhos
tremiam de medo quando sentia o sinal de que a próxima onda ia
começar dentro da minha barriga.
As ondas só aumentavam e, em meio à sua crescente densidade, eu
já não diferenciava mais os lados de cima e de baixo. Pensava em abrir
os olhos para verificar a direção da luz, do sol, e o quão fundo eu
estava mergulhada, mas, quanto mais me debatia, mais parecia que a
dor se intensificava. Ouvi uma voz feminina falar algo em algum lugar
e, ao abrir os olhos no instante em que as ondas haviam recuado, para
tentar ver o relógio, os ponteiros indicavam que faltava pouco para as
dez da noite. Era uma sensação curiosa: desespero de saber que já se
passara tudo isso e desespero de saber que ainda faltava muito, as duas
coisas justapostas. Ao mesmo tempo, um riso parecia surgir do fundo
da barriga. Era uma sensação que nunca tinha experimentado antes.
Pegava o copo para beber água quando conseguia mover os braços e
as pernas, minha voz saía, e os incentivos alegres das enfermeiras ora
se distanciavam, ora se aproximavam.
Depois das duas horas da madrugada, as dores se tornaram
incessantes e gritei várias vezes. Pensei que se aquele era o limite da
dor que podia surgir dentro de uma pessoa, ela estava prestes ser
ultrapassada. Quando essa dor extrapolar meu limite, eu devo morrer.
Não, não sei. Talvez ela já tivesse extrapolado. Já não sabia mais onde
doía, se era o meu corpo ou se era o mundo. Nessa hora, ecoou uma
voz como se rompesse a membrana da dor, e vi o rosto da enfermeira
surgir de repente. Arregalei os olhos como se atingida por algo e pus
toda a força que tinha na barriga, na parte que eu já não sabia mais
onde era, o que era, que só podia ser chamada de centro do mundo.
Soltei gritos que eram palavras incompreensíveis no meu peito e
investi toda a força que consegui reunir. Nesse instante… tudo ficou
branco diante dos meus olhos, como se minha consciência tivesse
deixado o corpo carnal com leveza, e senti como se meu corpo tivesse
se transformado em um líquido morno que vertia para o mundo.
Uma luz completamente alva preenchia minha mente, meu corpo, e
vi… algo se expandir lentamente. Era a nebulosa que respirava em
silêncio a uma distância de dezenas de milhares de anos, centenas de
milhões de anos. Todo e qualquer tipo de cor remoinhava no meio da
escuridão, e a fumaça e as estrelas piscavam. Abri os olhos e vi a
névoa, a gradação de cores… respirando silenciosamente em meio às
lágrimas que intumesciam e assomavam. Fitei essa luz sem piscar.
Estendi a mão para tentar tocá-la. Estendi o braço para tentar senti-la.
Nessa hora, ouvi um choro e abri os olhos como se fosse atingida por
algo. Vi meu peito subir e descer intensamente, e percebi que eu
estava deitada de costas, respirando, enquanto a enfermeira enxugava
meu suor. Meu coração trabalhava a todo vapor para transportar
oxigênio para todo o corpo. Piscando, ouvi um choro de bebê.
— São quatro e cinquenta da tarde — disse uma voz.
O choro do bebê ecoava, estrondoso.
Depois de um tempo, trouxeram o bebê ao meu peito. Seu corpo
inacreditavelmente pequeno aconchegou-se em mim. Seus ombros,
braços, dedos, bochechas, tudo estava enrugado e vermelho de
sangue. Ele continuava chorando alto.
— Três quilos e duzentos gramas. Uma menininha muito saudável
— anunciou uma voz.
Lágrimas continuavam a escorrer dos meus olhos, mas não sabia
que tipo de lágrimas eram. Algo que não sabia nomear, que não
chegava nem aos pés de todas as emoções que eu conhecia juntas,
assomou do fundo do peito, o que me fez derramar mais lágrimas. Vi o
rosto do bebê. Encolhi bem o queixo para observá-lo por completo.
Eu via esse bebê pela primeira vez. Era a primeira vez que
encontrava essa criatura, que não existia em nenhum lugar, nem na
lembrança, nem na imaginação, e não era parecida com ninguém. O
bebê chorava alto, mobilizando todo o corpo e fazendo ecoar seu som.
“Onde você estava? Você veio até mim?” Falando isso mentalmente,
observei o bebê que continuava chorando no meu peito.
Principais referências bibliográficas
© Yuto Kudo