Djamila Ribeiro

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Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros


Feminismos Plurais.

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Minha mãe não foi


trouxa por
acreditar que
cuidar da casa era
digno
A gente acha que isso é coisa de mulher ultrapassada,
quando deveria ser algo valorizado por qualquer
pessoa



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o

3.jun.2021 às 14h00

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No processo final da escrita do meu quarto livro, que rememora


acontecimentos da minha infância e adolescência e celebra o
feminino da minha família, coloquei-me a pensar sobre muitas
situações que afligem a vidas das mulheres, sobretudo mulheres
negras; sobre as mentiras que nos contam.
Minha mãe cresceu acreditando que ela não era boa o suficiente,
por mais que ela cozinhasse como ninguém. “Isso não conta, é
obrigação de mulher.” Ela também cuidava muito bem da casa e
tirava qualquer tipo de mancha das roupas ou paredes.
“Também não conta, é obrigação de mulher.”
Ela conseguiu manter quatro filhos sempre alinhados e
chegando à escola no horário, educados, mas igualmente sem
ter o reconhecimento. As funções impostas para as
mulheres não são vistas pela perspectiva da genialidade,
embora quem critique, na maioria das vezes, não conheça a
sabedoria da limpeza.

Linoca Souza
Quando empregada doméstica, antes de casar com meu pai, os
patrões julgavam que ela dominava a arte do cuidado porque
era próprio de mulheres como ela, tanto que, anos mais tarde,
quando eu era adolescente, perguntavam a ela se eu já poderia
trabalhar também, por mais que não tivesse os dons de minha
mãe.
No meu caso, vinha o espanto: “Como ela não sabe, achei que
todas vocês soubessem...”. Claro que sei cuidar das minhas
coisas. Minha mãe me criou para isso, mas nem de longe tenho
as habilidades dela.
E admiro. Em um país no qual o trabalho doméstico é
desvalorizado, herança da escravidão, não há reconhecimento
digno. Minha mãe foi uma mulher bem-sucedida, criou quatro
filhos, aguentou muitas coisas do meu pai, me ensinou a ser
honesta, andar de cabeça erguida. Mas nós somos ensinadas a
acreditar que nossas mães foram fracassadas, não eram
inteligentes, quando souberam multiplicar comida e fazer o
dinheiro chegar até o fim do mês.
“Jamais serei como minha mãe”, eu dizia na adolescência,
baseada na crença de que me afastar o máximo possível do que
ela foi seria sinônimo de sucesso. As opressões estruturais não
permitem realidades sócio-materiais dignas para muitas
mulheres negras, mas eles insistem em contar a mentira de que
“é só se esforçar que consegue” quando mulheres da origem da
minha mãe foram as que mais se esforçaram para, mesmo na
escassez, fazer a soma do dia a dia. De surpreender a
matemática e fazer dois mais dois virar seis.
Com o passar do tempo, passei a olhar para minha mãe com
generosidade e admiração. Ela que fazia pão caseiro, iogurte,
arroz com cascas de legumes, reaproveitava a água do arroz,
colocava baldes no quintal quando chovia para aproveitar a
água da chuva, já sabia mais de sustentabilidade do que eu
conseguia perceber. O modo como tirava o vinco das calças, de
uma genialidade sem igual. A mulher que não teve
oportunidade de estudar, mas lutou para que seus filhos
tivessem.
15

Trabalhadoras domésticas veem a renda encolher na pandemia


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Terezinha Francisca Tavares, 52, Rosimeire Ferreira da Silva, 49, e Maria


Geani de Souza Carvalho, 45, são diaristas e perderam boa parte de suas
rendas na pandemia Zanone Fraissat/Folhapress/

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Daí a gente estuda e acha que cuidar da casa é coisa de mulher


ultrapassada, quando deveria ser algo valorizado por qualquer
pessoa independentemente de sexo e raça. Que cuidar de uma
casa requer habilidades e talentos admiráveis, também é uma
intelectualidade. Porém, no país do escravismo, isso não é visto
como profissão digna. O quarto da empregada é uma extensão
da senzala.
À época da PEC das Domésticas, observamos reações
estupefatas pelo fato de se equiparar direitos a essas
trabalhadoras —“um absurdo a faxineira ganhar mais do que
eu”.
No mundo do “ruim com ele, pior sem ele”, acreditamos que a
relação heterossexual deve ser a expressão hierárquica do amor.
Crescemos acreditando que nossa vida precisa corresponder às
expectativas masculinas. Eu me recordo de muitas vezes ouvir
de homens coisas como “isso, sim, é mulher, não o que eu tenho
em casa” ou “você, sim, é especial, e não as outras” como se
minha vida sempre tivesse que ser pautada em oposição a
outras mulheres, uma tática para que enxerguemos nas outras
potenciais competidoras.
Assim que entendi o que essas coisas significavam, respondia
com “a mulher que está em casa é que não merece tipos como
você; deve estar limpando, passando e cozinhando pra você
ficar aí de palhaçada na rua”. Porque me doía quando eu ouvia
algumas amigas dizerem: “Eu não sou a trouxa que limpa e
cozinha, eu só tenho a parte da diversão”, diminuindo outras
mulheres.
Na verdade, as duas eram somente instrumentos para a
manutenção de uma lógica que não as privilegia. Minha mãe
não foi trouxa por acreditar que cuidar da casa era digno. Triste
é a sociedade que não valoriza o cuidado, mesmo dependendo
dele para funcionar.

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