O Não Silenciamento Césio-137

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http://dx.doi.org/10.21577/1984-6835.20220065

O Não Silenciamento do Acidente com o Césio 137 –


a História Recontada pelo Olhar Freireano
Universidade Federal de Goiás, Centro
The Non-Silencing of the Accident with Cesium 137- the Story Retold by
a

de Ensino e Pesquisa Aplicada à


Educação, Departamento de Química, the Freireano Eye
CEP 74690-900, Goiânia-GO, Brasil.
b
Universidade Federal de Goiás, Instituto Luclécia Dias Nunes,a Nyuara Araújo da Silva Mesquitab,*
de Química, Laboratório de Educação
Química e Atividades Lúdicas, Goiânia-
GO, Brasil. Radioactivity was discovered in the 19th century by Becquerel, Marie and Pierre Curie, was seen with
enthusiasm by everyone and radioactive materials started to be used for the most diverse purposes. One
of the areas of great application of radioisotopes is medicine, both in diagnosis and in the treatment of
cancer. Cesium 137, is one of the radioisotopes that was used in radiotherapy equipment and later would
*E-mail: [email protected]
become the material cause of the radiological accident that occurred in Goiânia in 1987, when collectors
Recebido em: 21 de Setembro de 2021 of recycled materials found an abandoned radiotherapy device, and saw the opportunity to earn money
by selling the lead contained in the equipment. In this way, this article sought to (re)do a reading of this
Aceito em: 10 de Março de 2022 accident from the Freirean perspective, seeking to understand the social relations that emerged in the
context of the actions imbricated in the history of the accident and its consequences. We understand that
Publicado online: 14 de Abril de 2022 this accident could have been avoided if those involved had basic knowledge about symbols related to the
scientic context and specically to radioactivity, which highlights the importance of attending a school
and the development of an education capable of providing students with the appropriate of scientic
knowledge through scientic literacy.
Keywords: Cesium 137; accident radiological; Paulo Freire.

1. Introdução

O século XIX foi um marco na história das ciências, ocasionado pelas várias descobertas
cientícas, principalmente na Europa, e teorias importantes foram propostas tanto na área da
Física quanto da Química. Diversos estudos foram publicados, os quais contribuíram para um
melhor entendimento da constituição da matéria e seus fenômenos,1,2 um dos que despertou
muito interesse da comunidade cientíca foi a radiação, investigada, dentre outros, por Wilhelm
Conrad Röentgen. Em 1895, Röentgen estudando a condutividade dos gases descobriu a
existência de uma nova forma de radiação, denominada por ele de Raios-X.3 O anúncio da
existência dos Raios-X despertou o interesse de vários cientistas que passaram então, a estudar
tais raios, como Antonie Henri Becquerel, que descobriu em 1896, que um sal duplo sulfato
de uranila e potássio quando deixado sobre placas fotográcas, era capaz de impressioná-las,
cando essas placas escurecidas, mesmo na ausência de luz.1-3 Becquerel chegou à conclusão
de que era o próprio elemento Urânio o responsável pela radiação, a qual cou inicialmente
conhecida como raios de Becquerel.3-6
Outra promissora cientista, Marie Curie, também se interessou em estudar mais sobre a
radiação durante o seu doutoramento e, em 1897, iniciou suas pesquisas testando a mesma
substância que Becquerel, o sal de Urânio.3 Continuando seu trabalho, ela testou o mineral
uraninita e observou que ele possuía atividade maior que a do Urânio. Posteriormente, ela
analisou o elemento Tório e se surpreendeu ao vericar que ele possuía atividade maior que
a do Urânio e da uraninita. Na sequência ela testou o minério calcolita e vericou que ele
também emitia radiação.5 E essa radiação foi denominada de radioatividade, por Marie e seu
marido Pierre Curie.1-3,7
Marie, começou então, a pensar que deveria haver outros elementos contidos nesses minerais
que eram mais ativos que o Urânio e deu outro passo importante em sua pesquisa, ao isolar
desses minerais possíveis novos elementos químicos. O casal Curie descobriu em 1898, dois
elementos altamente ativos, posteriormente identicados e nomeados como Polônio (400 vezes
mais ativo que o Urânio) e Rádio que é 900 vezes mais ativo que o Urânio, ambos presentes no
minério uraninita.2,5,6 Um fato que merece destaque é que esses novos elementos apresentavam
uma propriedade que encantou o casal Curie, o fato de serem luminosos.5 Assim, a luminosidade

Rev. Virtual Quim., 2022, 14(6), 1107-1115 This is an open-access article distributed under the 1107
©2022 Sociedade Brasileira de Química terms of the Creative Commons Attribution License.
O Não Silenciamento do Acidente com o Césio 137

dos elementos radioativos fazia deles encantadores de energia perdida quando os núcleos se reorganizam.13 Por
pessoas desde o século XIX. Tal encanto veio a se repetir ser uma forma de energia, a emissão gama possui o maior
em 1987 em Goiânia, quase 200 anos depois, mas de uma poder de penetração dos três tipos de emissão, conseguindo
forma bastante perigosa. atravessar diversos materiais, como o corpo humano, sendo,
Por suas descobertas, Becquerel, Marie e Pierre Curie portanto, mais prejudicial para os seres vivos quando
ganharam o prêmio Nobel de Física em 1903.2 Apesar de comparada às emissões alfa e beta, pois segundo Okuno14
todos os estudos, o casal Curie tinha apenas hipóteses, mas “Os fótons de raios gama, diferentemente de partículas
eles não sabiam explicar por que alguns elementos emitiam carregadas, perdem toda ou quase toda energia numa única
radiação e qual a natureza dessas radiações, bem como não interação com átomos, ejetando elétron deles que, por sua
tinham noção dos riscos à saúde causados por tais elementos. vez, saem ionizando átomos até pararem” (p. 186). Diante
Essa compreensão só foi possível com o decorrer dos anos disso, para barrar a radiação gama é necessário usar placas
e com os avanços das pesquisas na área de radioatividade. de chumbo ou camadas grossas de concreto.1,14
Primeiramente foram identicados dois tipos de radiação Isto posto, após a descoberta de alguns elementos
denominadas em 1899, pelo cientista britânico Ernest radioativos, mesmo não tendo conhecimento dos efeitos
Rutherford, de alfa(α) e beta(β).1,4 das radiações, seguiu-se uma fase de entusiasmo tanto
As partículas alfa (α) são formadas por dois prótons dos cientistas quanto da sociedade de modo geral, com
e dois nêutrons, possuem carga positiva (+2) e são as possíveis maravilhas que a radiação podia fazer. Várias
representadas pelo símbolo 24α.1,8,9 Quando um núcleo emite aplicações surgiram, como em cosméticos, em ponteiros
partícula alfa há a diminuição de duas unidades no número de relógios, compressas e almofadas radioativas contendo
de prótons e de quatro unidades no número de massa, Rádio, tônicos e revigorantes, pasta de dente, cigarros,
formando assim um novo elemento químico.1 Devido a contraceptivos, alimentos, baralho, entre outros.15 Porém o
sua massa elevada, quando comparada a partícula beta, a que não se sabia era que essas radiações também poderiam
partícula alfa possui baixo alcance, podendo ser barrada por trazer graves consequências aos organismos vivos, pois
uma folha de alumínio no e, se irradiada sobre os seres uma das características apresentadas por todos os tipos de
humanos, é capaz de penetrar apenas a camada supercial radiação é a capacidade de interagir com o corpo dos seres
da pele. No entanto, se ingerida pode ser muito danosa, pois vivos.10 E quando essas radiações são ionizantes, como as
transfere facilmente a sua energia aos tecidos provocando partículas alfa e beta, elas retiram elétrons dos átomos,
a ionização das moléculas, principalmente dos tecidos que transformando moléculas (água, proteínas, DNA e RNA)
se reproduzem rapidamente, como os nódulos linfáticos, a em íons ou radicais livres, provocando alterações nos
medula óssea e os tecidos formadores do sangue.1,8,10,11,12 organismos dos seres vivos, prejudicando a função biológica
Já as partículas beta (β) são constituídas por elétrons, de cada uma dessas moléculas, levando as pessoas expostas
possuem carga negativa (-1) e são representadas pelo símbolo a certa quantidade de radiações a desenvolverem problemas
.1,7 Essas partículas são formadas a partir da transformação como radiodermite, radionecrose, cataratas, esterilidade
que ocorre no núcleo do átomo, onde um nêutron se masculina e feminina, câncer, entre outros.1,12-14,16,17 As
transforma em um próton e, dessa forma, ao emitir uma radiações também podem provocar a morte das células.
partícula beta, o núcleo do átomo aumenta em uma unidade É importante salientar que os malefícios produzidos
a quantidade de prótons e a massa permanece inalterada, uma pelas radiações dependem, dentre outros fatores, do local da
vez que a massa do nêutron e do próton são praticamente fonte, ou seja, se esta encontra-se externa ou interna ao corpo
iguais, o que leva à formação de um novo elemento químico humano. Comparando as radiações alfa, beta e gama, temos
que possui a mesma massa do seu precursor.1 que os raios gama são mais prejudiciais quando externos ao
As partículas beta, por terem menor massa, apresentam corpo. No entanto, quando a fonte de radiação está dentro
poder de penetração, cerca de 100 vezes maior que as do corpo, o que pode ocorrer por meio da ingestão de um
partículas alfa1 e, no caso de atingirem os seres humanos, radioisótopo, são as partículas alfa as potencialmente mais
podem penetrar até alguns centímetros a partir da pele e, se perigosas, causando de 10 a 20 vezes mais danos que os
ingeridas, provocam danos graves ao organismo, entretanto raios gama devido a sua alta capacidade de transferir energia
podem ser barradas por um material, tipo acrílico.8,11 aos tecidos.1,8
O terceiro tipo de radiação emitida pelos núcleos Ao longo dos anos, com o desenvolvimento das
instáveis foi descoberto pelo cientista Paul Villard, que a pesquisas na área, as propriedades dos elementos radioativos
denominou de radiação gama (g), mantendo a proposta de foram sendo conhecidas e se compreendeu que a alta energia
Rutherford de usar letras do alfabeto grego.8 Essa radiação emitida pelos radionuclídeos e a propriedade ionizante das
é constituída de ondas eletromagnéticas representada radiações são capazes de trazer benefícios à sociedade, mas
por , que se propagam com a mesma velocidade da luz não da forma errada como foram utilizados nos primeiros
3x108 m s-1, sua emissão não altera nem a massa atômica e anos após a sua descoberta, as quais poderiam provocar
nem o número atômico do núcleo.1,2,13 grandes danos aos seres humanos.1
A emissão gama geralmente acompanha outra emissão, Atualmente a sociedade se beneficia das radiações
como a alfa ou a beta, uma vez que representa parte da emitidas pelos radioisótopos, uma vez que são utilizadas

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Nunes e Mesquita

em várias áreas do conhecimento como, por exemplo, na radiológico de Goiânia e suas consequências tendo como
geração de energia através das usinas nucleares; datação balizador teórico o pensamento Freireano. Paulo Freire foi
de fósseis, utilizando o Carbono 14; agricultura, por meio escolhido como interlocutor teórico deste artigo porque,
de traçadores radioativos; preservação de alimentos por durante toda a sua vida, seja na trajetória acadêmica ou
meio da irradiação; indústria pela gamagraa; indústria prossional, inclusive à frente da Secretária de Educação
farmacêutica para esterilizar materiais como seringas e da cidade de São Paulo, ele sempre pensou a existência
luvas. Na medicina, as aplicações acontecem em aparelhos humana, o homem dentro de uma sociedade capitalista,
para o tratamento de câncer, para diagnóstico, medicamentos dividida em classes, em opressores e oprimidos, desumana
utilizados como contrastes para exames, entre outros.8,13,17-21 com os mais desfavorecidos, com a classe popular. Aos
Foi justamente um equipamento da área médica, um aparelho oprimidos é negado o direito a uma educação de qualidade e
de radioterapia, utilizado para o tratamento de câncer, o qual a oportunidades iguais à classe favorecida, a elite opressora.
continha uma fonte de Césio 137, o responsável pelo maior A educação que temos foi e ainda continua sendo pensada
acidente radiológico do mundo, ocorrido em Goiânia. pela elite e para a elite, como Freire sabiamente disserta
Sob o ponto de vista de proteção radiológica, de e critica em suas obras.23 Dessa forma, o pensamento de
acordo com a CNEN,21 acidente é “[...] qualquer evento Freire coaduna-se com os fatos que levaram à ocorrência
não intencional, incluindo erros de operação e falhas de do acidente radiológico e suas consequências.
equipamento, cujas consequências reais ou potenciais Salientamos ainda que o presente artigo se congura
são relevantes” (p. 6). Esses acidentes são divididos em como um texto de caráter teórico, fundamentado em outros
dois grupos: acidente radioativo ou nuclear e acidente textos e notícias publicados à época do acidente, sendo eles
radiológico. O primeiro tipo de acidente é aquele que discutidos com o referencial teórico vislumbrando construir
envolve equipamento no qual ocorre a reação nuclear, como uma argumentação que possa contribuir com o resgate do
os reatores das Usinas Nucleares, a exemplo do acidente contexto passado para se pensar o presente e o futuro.
que ocorreu em Chernobyl, na Ex-união Soviética em 1986.
Já acidente radiológico é aquele que envolve uma fonte 2. Os Acontecimentos que Levaram ao
radioativa, como o que ocorreu em Goiânia.22 Acidente com o Césio 137
Situada na região Centro-Oeste do Brasil, a cidade de
Goiânia, capital do estado de Goiás, em 1987, tornou-se
conhecida em todo o país e até no exterior e, por meses, Em 1972, a Santa Casa de Misericórdia de Goiânia,
foi centro das atenções e esteve nos holofotes da imprensa administrada pela Sociedade São Vicente de Paulo e o
nacional e internacional, pois nela havia acontecido o Instituto Goiano de Radioterapia (IGR) firmaram um
maior acidente radiológico do mundo com uma fonte de contrato no qual a Santa Casa emprestava ao IGR um prédio
Césio 137. Muito se falava sobre o acidente, mas pouco se que possuía ao lado de suas instalações à época, no centro
sabia sobre o ocorrido, através da imprensa tanto impressa da cidade, entre as Avenidas Tocantins e Paranaíba, para
quanto televisionada; as pessoas liam e ouviam sobre que fosse instalada uma clínica. Em troca do empréstimo do
Césio 137, radioatividade, radiação, entre outras palavras, e prédio, o IGR deveria realizar exames gratuitos aos pacientes
se perguntavam o que seria isso e qual era o seu perigo real. atendidos pela Santa Casa de Misericórdia, uma instituição
O acidente marcou de forma trágica a história do privada de caráter lantrópico, criada em 1936, para atender
estado de Goiás, a cidade de Goiânia e a sua população. pessoas de baixa renda. Por cerca de uma década, o acordo
No entanto, com o passar dos anos, esse acidente vem funcionou bem.24,25 No entanto, em 1984, sob a alegação
sendo silenciado. Atualmente, após mais de trinta anos do de descumprimento do contrato por parte do IGR, a Santa
ocorrido, algumas pessoas ainda não sabem o que foi o Casa de Misericórdia acionou o instituto judicialmente, mas
acidente com o Césio 137 e suas consequências, ou pouco antes do desenrolar das questões jurídicas, vendeu o prédio
ouviram falar sobre o ocorrido. Isso evidencia a necessidade para o Instituto de Previdência e Assistência do Estado de
de que tais eventos, mesmo que negativos, não sejam Goiás (IPASGO).25,26
esquecidos e silenciados historicamente, pois o resgate Tem início, então, uma batalha judicial entre o IGR, o
histórico pode propiciar reexões sobre os equívocos que IPASGO e a Santa Casa de Misericórdia, que se arrastaria
reverberaram nas situações ocorridas. No caso do acidente pelos próximos anos. Somente em 1985 o IGR muda para
radiológico de Goiânia, houve uma série de aspectos, outro endereço, desocupando o prédio cedido, mas deixa
como desconhecimento dos perigos da radioatividade, para trás mobiliários antigos e um aparelho de radioterapia
desobrigação dos setores e departamentos responsáveis modelo CESAPAN F-3000, o qual era utilizado no
pelo equipamento, dentre outros, que precisam ser trazidos tratamento radioterápico de pacientes com câncer, tendo
à luz no sentido de não apenas relembrar as situações, mas como fonte de radiação o Césio 137.24-27 Este aparelho
também de promover discussões que, de alguma forma, havia sido adquirido pelo IGR em 1971 com autorização da
evitem a repetição de fenômenos semelhantes. Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN).28
Considerando tais pressupostos, este artigo se propõe a Ainda em meio ao conflito judicial, o IPASGO,
apresentar os caminhos que levaram à ocorrência do acidente instituição que passou a ser proprietária do prédio, resolve,

Vol. 14, No. 6 1109


O Não Silenciamento do Acidente com o Césio 137

em maio de 1987, começar o processo de demolição da estudo não encontraram oportunidades para um
construção. Inicialmente foram retiradas as portas, as trabalho mais digno se sujeitando a viver no
janelas e o telhado do prédio, no entanto, uma decisão lixo, em locais insalubres, realizando atividade
liminar judicial impediu a conclusão da demolição.25 Esse precária, correndo risco de vida e de saúde, sendo
prédio em ruínas e aberto cou abandonado, mas dentro cidadãos excluídos socialmente (p. 60).31
dele foi deixado um aparelho de radioterapia que continha
uma cápsula com cloreto de Césio 137 cuja radiação na Com a peça na casa de um dos catadores, à sombra de
época, era de 1375 Curies (5,0875x1013 Bq).29 Essa radiação uma mangueira, eles começaram a desmontar a parte de
corresponde à atividade do radioisótopo, a qual pode ser chumbo e retiraram um recipiente de aço inoxidável que
medida tanto Curies, quanto Becquerel (Bq). A unidade possuía um pequeno orifício vedado em cujo interior, estava
Bq corresponde a uma desintegração nuclear por segundo, o sal de Césio 137, misturado com material aglutinante.3,32
Bq = 1 s-1; e a equivalência entre as unidades é 1 Curie igual Eles romperam a vedação da cápsula, uma janela de irídio
a 3,7 x 1010 Bq.1 de 1 mm de espessura, expondo a substância radioativa
Devido à presença do isótopo 137 do elemento e, a partir desse momento, pessoas e objetos começam a
químico Césio, o cloreto de Césio 137 é um sal radioativo, ser irradiados e contaminados pelo Césio 137, seja pela
azul brilhante, emissor beta e gama, com meia-vida de exposição ao material radioativo, seja pela água, solo, frutos
aproximadamente trinta anos e solúvel em água.1,8,13,27 É e hortaliças contaminadas.28,32 Pessoas essas, que tinham
importante destacar que o Césio 137, presente na fonte um total desconhecimento do que era aquela cápsula, que
do aparelho de radioterapia, emitia radiação beta e gama não tinham a menor noção do que estava acontecendo e do
espontaneamente e continuamente e, por isso, o aparelho risco de morte que estavam correndo. No mesmo dia em
continha uma blindagem feita de chumbo, que impedia a que desmontaram a peça, Wagner começou a apresentar os
saída da radiação da fonte quando ele não estava sendo primeiros sintomas de contaminação/irradiação: ele teve
utilizado, uma medida de segurança, e dessa forma o diarreia, vômito, tontura, nos dias seguintes apareceram
aparelho não oferecia risco às pessoas.30 queimaduras nas mãos e outros sintomas. Roberto também
começou a apresentar os mesmos sintomas do amigo.28
3. O Acidente e Suas Consequências: Alguns dias depois, os dois catadores venderam o
Um Resgate Histórico chumbo que fazia a blindagem da cápsula de Césio 137
para um ferro velho, de propriedade de Devair Alves
Ferreira, que cava na rua 26-A, no Setor Aeroporto, em
No dia 13 de setembro de 1987, dois catadores de Goiânia, e deixaram lá a cápsula contendo o cloreto de
materiais recicláveis, Roberto Santos Alves e Wagner Mota Césio 137.3 Posteriormente, parte do chumbo foi revendido
Pereira, adentraram as ruínas do prédio onde funcionara o a dois outros ferros velhos, localizados nas ruas 6 do
IGR e encontram o aparelho de radioterapia abandonado.3 Setor Norte Ferroviário e P-19 no Setor dos Funcionários
Desmontaram-no, retiraram a peça de chumbo e levaram respectivamente, no entanto a cápsula continuou com
para a casa de Roberto, na rua 57, no Centro de Goiânia, Devair.26,28
local simples em cujo terreno moravam seis famílias. Para Foi Devair quem descobriu, por um acaso, que aquela
transportar o metal pesado, utilizaram um carrinho de peça emitia uma luz azul brilhante, cando encantado com o
mão.25 Fizeram isso porque viram a possibilidade de ganhar tal fenômeno. Luz essa que era decorrente da excitação dos
dinheiro vendendo o chumbo presente em parte do aparelho. elétrons do 137CsCl pelas próprias desintegrações radioativas
A possibilidade de ganhar dinheiro desses personagens do Césio 137, por meio da emissão de partículas beta e raios
reais evidencia a relação de classes sociais, que é discutida gama.35 Devair passou então, a mostrar e também a distribuir
por Freire23 ao denominar como opressores a elite, os o pó para várias pessoas, principalmente seus familiares e
detentores do poder, e como oprimidos, a classe popular, amigos.3,34 Um dos presenteados com uma pequena porção
neste caso simbolizada pelos catadores, pessoas de baixa do pó brilhante misterioso foi o seu irmão Ivo Alves
renda exploradas por uma minoria no contexto da sociedade Ferreira, o qual levou o pó para casa e mostrou para a sua
capitalista. Importante destacar que os catadores de material família, bem como permitiu que sua lha de 6 anos, Leide
reciclável são vistos constantemente nas grandes cidades e das Neves Ferreira, brincasse com o material que era na
se constituem como trabalhadores na informalidade sem verdade, cloreto de Césio, uma vez que ele emitia uma luz
nenhum direito em termos salariais, de previdência ou de azul brilhante que encantava crianças e adultos. Essa criança
saúde. Invisíveis ao poder público, esse grupo de pessoas, ingeriu o pó, ao se alimentar com as mãos sujas do material,
na maioria das vezes vive abaixo da linha da pobreza. De se contaminando internamente com o Césio 137.26,28,34
acordo com Lima,31 O fascínio de Devair pela luz era tanto, que ele guardava
A segregação cultural e discriminação social a cápsula dentro da sua casa. Assim, com o passar dos dias,
por relação à situação econômica das diferentes as pessoas que tiveram contato com o material brilhante
classes sociais podem ser percebidas pela classe começaram a passar mal, como os dois funcionários do
dos catadores de lixo, estes que por falta de ferro-velho, Admilson Alves de Souza e Israel Batista dos

1110 Rev. Virtual Quim.


Nunes e Mesquita

Santos, bem como o próprio Devair, sua esposa Maria no dia 23 de outubro de 1987, mesmo dia em que faleceu
Gabriela Ferreira, entre outras. Outro fato que assustou e Leide das Neves Ferreira, sobrinha de Devair, que se tornou
chamou a atenção da Maria Gabriela foi que os animais o símbolo do acidente, por ser uma criança de apenas seis
domésticos da família, como o passarinho de estimação, anos, que foi contaminada inocentemente, ao brincar com
começaram a morrer.6,28,35 o Césio 137. Outras duas mortes foram dos funcionários do
Diante de tal situação, Maria Gabriela começa a ferro velho I, Israel Batista dos Santos (22 anos) e Admilson
desconfiar que a responsável por todos os fatos que Alves de Souza (18 anos) que ocorreram nos dias 27 e 28
estavam ocorrendo, era aquela peça que emitia uma luz de outubro de 1987, respectivamente.6,28
azul brilhante. Resolve então, levá-la de ônibus coletivo Todas as mortes ocorreram no Hospital Naval Marcílio
urbano, no dia 28 de setembro de 1987, até a Vigilância Dias (HNMD), no Rio de Janeiro, local para onde as vítimas
Sanitária, com a ajuda de Geraldo Guilherme da Silva, um mais graves foram levadas e lá permaneceram internadas,
funcionário do ferro velho, um percurso que durou cerca uma vez que esse hospital era, e ainda é, referência no
de 15 minutos.27 Chegando lá, colocaram a peça sobre a tratamento de vítimas de acidentes radioativos/radiológicos.
mesa de um dos funcionários e Maria Gabriela avisou “meu No total, esse hospital recebeu 14 pessoas vítimas do acidente
povo está morrendo”. Como não havia ninguém qualicado ocorrido em Goiânia, as quais receberam tratamento médico
para identicar aquela peça, ela foi deixada em uma cadeira especializado, passaram pelos processos de descontaminação
colocada na parte externa do prédio, para posterior análise.36 externa e interna, que envolveram entre outros procedimentos,
Somente no dia seguinte, foi solicitada a presença de banhos longos, sudorese excessiva, aplicação de pasta de
um físico, Walter Mendes, que identicou que se tratava dióxido de titânio e a ingestão do composto Azul da Prússia,
de uma fonte de material radioativo. Imediatamente o o tris-hexacianidoferro(II) de ferro (III), (Fe4[Fe(CN)6]3),
Secretário Estadual de Saúde da época, Antônio Faleiros, foi também conhecido como ferrocianeto férrico. 27,32
comunicado e as primeiras providências começaram a ser Outras vítimas foram mantidas em tratamento em
tomadas, como o acionamento com urgência da Comissão Goiânia, no hospital do Instituto Nacional de Assistência
Nacional de Energia Nuclear (CNEN). É importante Médica da Previdência Social (INAMPS), e algumas
destacar que se passaram cerca de 15 dias entre a retirada consideradas de menor gravidade foram internadas na
da fonte das ruínas do prédio, no centro da cidade de Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM),
Goiânia, até o entendimento de que se tratava de um acidente a qual foi transformada temporariamente, naquele período,
radiológico. Essa demora fez com que o acidente tivesse em hospital.25,28
maiores proporções, uma vez que o material radioativo, Enquanto os radioacidentados recebiam tratamento,
em forma de pó, já havia se espalhado e contaminado além uma força tarefa composta por funcionários da CNEN,
das pessoas, animais, objetos, casas, carros, entre outros. polícia militar, defesa civil e Consórcio Rodoviário
Logo uma das primeiras tarefas dos técnicos da CNEN foi Intermunicipal (CRISA) trabalhavam incansavelmente em
encontrar o Césio que havia se espalhado.28 Goiânia nas áreas contaminadas, seja isolando-as, fazendo
Ao todo foram identicados sete focos principais de descontaminação e demolição das casas, arrancando árvores,
contaminação na cidade de Goiânia, nos setores Central removendo a camada supercial do solo, fazendo guarda nos
(Rua 57, casa 68; Rua 63, casa 179), Aeroporto (Rua 17-A, focos de contaminação para evitar que as pessoas entrassem,
Quadra 70, Lote 26B; Rua 26-A, Quadra Z, Lote 30; ou mesmo trabalhando no transporte do lixo radioativo.
Rua 16-A, n 792), Norte-ferroviário (Rua 6, Quadra Q, É importante ressaltar que a maioria desses prossionais
Lote 18) e Setor dos Funcionários (Rua P-19, Quadra 92, não tinham treinamento para lidar com o tipo de acidente
Lote 4).28 Esses locais correspondem aos ferros velhos ocorrido. Tudo isso gerou cerca de 6.000 toneladas de lixo
denominados de I, II e III, por onde peças contaminadas do radioativo que foram colocados em 4.223 tambores de metal
aparelho de radioterapia foram comercializadas, o prédio 1.347 caixas metálicas, levadas para um depósito provisório
da Vigilância Sanitária e as residências de algumas vítimas e, posteriormente, acondicionadas no depósito denitivo
e seus familiares que, de alguma forma, tiveram contato localizado no município de Abadia de Goiás, distante cerca
com o Césio 137.36 de 24 km de Goiânia.28
Na época do acidente, a cidade de Goiânia possuía
uma população de aproximadamente 900 mil habitantes 4. Um Olhar Freireano Sobre o Acidente
e cerca de 112 mil pessoas foram monitoradas. Destas,
249 apresentaram alto grau de contaminação, sendo 120
com contaminação do vestuário e calçados, 129 com Ao mesmo tempo em que as vítimas eram tratadas e
contaminação interna e/ou externa. Do total, 20 pessoas alguns locais de Goiânia descontaminados, a população era
tiveram que receber tratamento médico, em nível hospitalar e informada pela mídia local e nacional sobre o Césio 137,
4 vieram a óbito: Maria Gabriela Ferreira, 38 anos, esposa de radioatividade e seus efeitos. A partir daí, palavras que
Devair, que cou vários dias com a peça dentro de sua casa e antes eram usadas por um grupo especíco de pessoas,
foi quem levou a peça até a vigilância sanitária, permitindo principalmente por técnicos e cientistas, passaram a
que o acidente fosse descoberto. Maria Gabriela faleceu ser vinculadas constantemente pela imprensa.36 Muito

Vol. 14, No. 6 1111


O Não Silenciamento do Acidente com o Césio 137

provavelmente, para a maioria das pessoas, era a primeira Entende-se que, caso o conhecimento cientíco básico
vez que ouviam tais palavras. fosse acessível às pessoas, no contexto escolar, acidentes
Segundo Borges29 “Todos queriam saber o signicado como o de Goiânia poderiam ser evitados, ou não teriam
de Césio 137, discutia-se o assunto nos bares, cafés e consequências tão drásticas. Era de se esperar que houvesse
universidades” (p. 57). Logo, ca evidente que a população, uma educação de qualidade, com viés problematizador
de modo geral, estava ávida por compreender o que de fato e libertador, que alfabetizasse cienticamente os alunos,
estava ocorrendo em Goiânia e qual era a periculosidade desde os primeiros anos da escolarização, e que ela pudesse
daquele tal Césio 137. Isso reete uma falta de conhecimento proporcionar às pessoas a construção de signicados, a partir
cientíco e uma falha na formação das pessoas, de modo dos conhecimentos escolares. O conhecimento, construído
geral, que muito provavelmente não estudaram, durante dessa forma permitiria aos sujeitos agir e transformar o
a sua educação básica, o tema Radioatividade. Podemos mundo em que vivem, uma vez que eles seriam alfabetizados
estabelecer um paralelo temporal com os dias atuais, em que cienticamente.
nos encontramos em situação de pandemia, e no qual termos Outro fato evidencia que a falta de conhecimento
como RNA, eciência de vacina, proteína spike, dentre cientíco não é um problema apenas local, mais, sim,
outros, são utilizados pela população, sem que se considere nacional, quiçá até internacional. Como o acidente cou
o conhecimento cientíco relacionado a tais termos. conhecido nacional e, também, internacionalmente, na
Podemos nos indagar se até as pessoas nas universidades época, os goianos passaram a ser discriminados, quando
não tinham conhecimento sobre radioatividade, imaginem- saíam do estado de Goiás, bem como os produtos produzidos
se aquelas que estavam diretamente relacionadas com o aqui. Dessa forma, os produtores encontravam diculdades
acidente. Essa falta de conhecimento cientíco também para comercializar seus produtos em outras regiões,
era a realidade dos catadores e das demais pessoas prejudicando, assim, a economia do estado.27 Isso ocorreu
envolvidas, uma vez que eles pertenciam à classe popular, porque as pessoas tinham medo de serem contaminadas pelo
que historicamente tem menos oportunidades de estudar. Césio, pois achavam que qualquer pessoa, ou produto que
E, mesmo quando frequentam a escola, encontram diversas fosse de Goiás estaria contaminado; tal fato ratica que o
barreiras que dificultam a aprendizagem, começando problema da falta de uma formação adequada na educação
por um currículo que não leva em consideração as básica ocorre no Brasil, como um todo.25,29
características da população de baixa renda e seu saber Outro ponto que merece destaque, por estar relacionado
de experiência feito.37 a essa leitura freireana do contexto histórico do acidente em
Diante do exposto, compreendemos que o acidente de Goiânia, é o compromisso do homem e do prossional com
Goiânia foi também social, evidenciando a falta de acesso a sociedade. No primeiro caso, o compromisso como homem
das camadas populares ao conhecimento, uma característica é o compromisso com o mundo, com a solidariedade, com
da separação de classes sociais em que as camadas mais a humanização, com aqueles que são deixados de lado na
pobres têm menos acesso à escola de qualidade e aos sociedade de classes, em busca de um mundo melhor e
conhecimentos veiculados por essa instituição. Essa falta mais igual, o que exige ação e reexão do homem diante da
de conhecimento das pessoas da classe popular é própria realidade. Já em relação ao compromisso prossional com
do processo educacional existente na sociedade brasileira, seu conhecimento técnico, especializado, este deveria se unir
a qual possuía, e ainda possui, uma educação de classe, ao compromisso do homem em busca da práxis. Para Freire,
pensada pela elite e para a elite, o que Paulo Freire chama de quanto mais capacitado e qualicado o homem se torna,
educação bancária, a qual vê o educando como um depósito mais responsabilidade possui diante dos outros homens.
a ser preenchido com conhecimento, que não tem nada a No entanto, o próprio Freire38 critica que o compromisso
contribuir no processo de ensino e aprendizagem, que não prossional pode se dicotomizar do compromisso como
é entendido como um sujeito, um ser inconcluso que deve homem, não se comprometendo verdadeiramente com
participar ativamente de seu processo de aprendizagem a realidade, o que pode levar a uma burocratização do
junto com o educador, e que é capaz de apreender para compromisso prossional e a uma “[...] inversão dolorosa
posteriormente aprender.37 de valores”, servindo “[...] mais aos meios que ao m do
Segundo Freire23 “Só existe saber na invenção, na homem” (p. 20).38
reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, Na leitura dos fatos históricos sobre o acidente
que os homens fazem no mundo, com o mundo e com radiológico de Goiânia, pode-se fazer uma análise
os outros” (p. 81). Dessa forma, ca clara a formação relacionada ao pensamento freireano, considerando-se
decitária que essas pessoas receberam, e a necessidade que não houve compromisso verdadeiro dos prossionais
de uma intervenção efetiva da escola, dos educadores e dos médicos, nesse caso, que eram proprietários do IGR, com
homens em conjunto, para que seja possível transformar a sociedade. Tal entendimento decorre do fato de que eles
essa sociedade opressora em que vivemos, proporcionando eram os detentores do conhecimento técnico e, mesmo
às pessoas da classe popular o acesso ao conhecimento assim, deixaram conscientemente um aparelho contendo
científico. Segundo Freire37 a educação deve ser “[...] uma fonte radioativa em um prédio abandonado, a qual,
denunciante da opressão e anunciante da liberdade” (p. 73). utilizada de forma inadequada, poderia ser letal – como foi.

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Nunes e Mesquita

Os médicos em questão só estavam comprometidos consigo de incidentes, os níveis 4 a 7 são chamados de acidentes
mesmos e com seus interesses, deixando a população à e em todos eles há uma ordem crescente de gravidade.
mercê de um perigo iminente. Assim, nível 1 é classicado como anomalia, o nível 2 é
Enfatiza-se novamente que, provavelmente, o acidente incidente, o nível 3 é incidente grave, o nível 4 é acidente
não teria ocorrido, se as pessoas que tiveram acesso ao com consequências locais, o nível 5 é acidente com
material possuíssem conhecimentos sobre os perigos consequências mais amplas, o nível 6 é acidente sério e o
que poderiam ser causados pela manipulação de material nível 7 é acidente grave.41 O acidente de Goiânia, por ter tido
radioativo e se tivesse havido o diálogo e o compromisso, consequências apenas locais, foi classicado como nível 5.
como homens e como profissionais, entre as pessoas O intuito da escala é comunicar a população e a comunidade
envolvidas na situação conflituosa do empréstimo do cientíca da ocorrência e das consequências de um acidente
prédio. Lembramos que o diálogo, para Freire, é amor, envolvendo radiação.41
fé, humildade, e pressupõe que os homens e mulheres se Já, no Brasil, era esperado que, pelo menos, algumas
enxerguem como iguais, sem relação de dominação, que áreas tivessem merecido atenção especial, como a
conem uns nos outros, que tenham o mesmo objetivo, o área da educação, principalmente no estado de Goiás.
de transformar o mundo para melhor.39 Considerando a relevância do acidente ocorrido, em termos
No entanto, nenhuma das duas coisas aconteceu, pois as de consequências e danos à sociedade, seria importante
pessoas da classe desfavorecida que acessaram o material que a formação dos professores da área de Ciências,
não tinham conhecimento suficiente para entender os como as licenciaturas em Química, abordassem a temática
perigos que pode causar a radioatividade, mesmo tendo o radioatividade, para que os futuros professores tivessem
símbolo impresso no material, e os envolvidos na disputa condições de, ao atuarem na educação básica e superior,
entre a Santa Casa e o IGR, pessoas esclarecidas, não abordassem com seus alunos conteúdos relacionados ao
tiveram compromisso social, pois, visando não ter despesas, tema, como o símbolo da radioatividade, os conteúdos
relegaram os devidos cuidados ao equipamento que causou específicos, as principais aplicações, os benefícios e
enormes danos às pessoas, ou seja, “[...] são pessoas do ter malefícios das radiações, o contexto histórico de sua
e não do ser” (p. 63).23 descoberta e os acidentes que já ocorreram no mundo,
Assim, analisando o contexto em que ocorreu o acidente, dando ênfase ao acidente de Goiânia, em diversos aspectos,
cam evidentes, desde o início da narrativa, as características dentre eles, os sociais e econômicos. É preciso ter sempre
de uma sociedade opressora, congurada pela ganância da em mente que “[...] o que fazemos na sala de classe não é
elite dominante, que busca sempre a maximização dos um momento isolado, separado do mundo real” (p. 23),40 faz
lucros, o desprezo e o descaso que possui pelos oprimidos, parte desse mundo e por isso deve ser considerado. Mundo
desde quando o IGR não cumpre com o acordo de fazer esse que é histórico e, por isso, precisamos mudar uma das
exames gratuitos aos pacientes da Santa Casa, que eram características que prevalece, nos dias atuais, a de que “ [...]
pessoas, na sua maioria, de baixa renda, até o abandono do todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente
material perigoso, em um local, sem os devidos cuidados. contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado
Para essa elite, somente eles são pessoas humanas e têm público da época em que vivem” (p. 13).42
direitos.23 São incapazes de enxergar o outro, de dialogar Para isso, espera-se que os professores, principalmente da
com o outro, não só com os oprimidos, mas também com educação básica, sejam capazes de alfabetizar cienticamente
seus pares, o que se pode notar com o surgimento dos seus alunos em relação à temática radioatividade, para que
conflitos entre as elites dominantes, como no caso da eles possam ter noções básicas de ciência e consigam agir
posse do prédio do IGR. Segundo Freire40 “[...] o diálogo de forma consciente diante de determinadas situações, como
deve ser entendido como algo que faz parte da própria no encontro de um aparelho de radioterapia abandonado. No
natureza histórica dos seres humanos” (p. 64). O diálogo é entanto, há evidências, de que isso não ocorre.
reexão e não só comunicação. Se tivesse havido diálogo Muitas pessoas que frequentaram a escola, após o
entre o proprietário do prédio, o IGR e a Santa Casa, muito acidente, mesmo estudando em Goiânia, pouco ou nada
provavelmente eles teriam resolvido o conito estabelecido aprenderam sobre o ocorrido, pois seus professores
entre eles, e o acidente poderia ter sido evitado. provavelmente não eram, e parte-se da hipótese de que
Mas como isso não ocorreu, os populares, vítimas ainda não são qualicados, em relação à discussão do tema
inocentes do acidente, sofreram, sofrem e sofrerão por radioatividade, pois não receberam formação especíca
anos as consequências desse triste acontecimento. Diante sobre o assunto, materiais radioativos e acidentes radioativos
do exposto, após um acidente dessas proporções era de se e radiológicos. Isso evidencia que os cursos de formação de
esperar que lições fossem aprendidas e mudanças realizadas. professores, especicamente, as licenciaturas em Química,
Em nível internacional, o acidente de Goiânia contribuiu não deram a devida importância ao acidente, e esta não é
para a criação em 1990, pela Agência Internacional de uma temática abordada como possibilidade de alfabetização
Energia Atômica, de uma escala de acidentes, a International científica, tanto nas licenciaturas quanto na educação
Nuclear and Radiological Event Scale (INES), que os básica, níveis em que atuam os professores formados nas
classica em níveis de 1 a 7. Os níveis 1 a 3 são chamados Instituições de Ensino Superior (IES).

Vol. 14, No. 6 1113


O Não Silenciamento do Acidente com o Césio 137

Tal situação pode ser identicada, a partir da pesquisa da população, a nítida divisão de classe social que existe,
de doutoramento que dá origem ao recorte presente neste a falta de humanidade, de respeito e de empatia da classe
artigo em que identicamos que, das 16 IES que ofertam o mais favorecida, em relações às demais classes e ao ser
curso de Licenciatura em Química, em Goiás, apenas uma humano. Dessa forma, entendemos que, ao retomarmos este
possui disciplina que aborda acidentes nucleares, sendo assunto por meio de outros olhares, para além da Química,
que o esperado seria que a maioria, senão todas as IES por meio de elementos sociais, explicitamos possibilidades
abordassem, pelo menos, o acidente ocorrido em Goiânia de discussões que ainda não foram realizadas, mas que
com uma fonte de Césio 137.43 Formar um professor numa são necessárias, para que os diversos setores da sociedade
perspectiva crítica, em que se busca uma formação pautada estejam atentos para que ações causadas por ganância e
pelo viés da alfabetização cientíca, como um caminho desconhecimento não reverberem em prejuízos humanos e
da futura ação docente, também numa perspectiva crítica, ambientais, como os ocorridos na cidade de Goiânia. Além
demanda considerar a especicidade local, a regionalidade disso, ressaltamos que eventos como estes não podem ser
e o contexto histórico no qual ele está inserido. Para Freire37 silenciados ou esquecidos, pois tanto cientica quanto
o “[...] ensino de conteúdos estará sempre associado a uma socialmente, o resgate histórico simboliza o alerta, para
leitura crítica da realidade”, não é possível assim, “[...] o que os erros e omissões não se repitam e não se perpetuem.
texto sem o contexto” (p. 29), pois somente considerando a
realidade do aluno é que será possível uma educação pautada Referências Bibliográcas
na problematização e reexão, propiciando a alfabetização
cientíca dos alunos.
Não podemos esquecer que o conhecimento é uma 1. Brown, T. L.; Lemay Jr, H. E.; Burten, B. E.; Murphy, C. J.;
construção humana e histórica e, em decorrência disso, Woodward, P. M.; Stoltzfus, M. W.; Química a Ciência Central,
possui características próprias dos locais no qual foi 13a. ed., Pearson Education do Brasil: São Paulo, 2016.
construído. Enm, para que uma escola de educação básica 2. Kotz, J. C.; Treichel, P. M.; Townsend, J. R.; Treichel, D. A.;
tenha uma prática pedagógica crítica e reexiva, é de suma Química Geral, 1, 9a. ed., Cengage Learning: São Paulo, 2016.
importância que o professor atuante nessa instituição 3. Okuno, E.; Radiação: efeitos, riscos e benefícios, Ocina de
também tenha tido essa formação durante a sua licenciatura. Textos: São Paulo, 2018.
4. Cordeiro, M. D.; Peduzzi, L. O. Q.; Aspectos da natureza
5. Considerações Finais da ciência e do trabalho científico no período inicial de
desenvolvimento da radioatividade. Revista Brasileira de Ensino
de Física 2011, 33, 1. [Crossref]
Trouxemos neste texto um breve resgate histórico da 5. Quinn, S.; Marie Curie: uma vida, 1a. ed., Scipione Cultural:
descoberta da Radioatividade, bem como os benefícios e São Paulo, 1997.
malefícios das radiações, estes últimos com o intuito de 6. Xavier, A. M.; Lima, A. G.; Vigna, C. R. M.; Verbi, F. M.;
mostrar as consequências reais para as pessoas envolvidas Bortoleto, G. G.; Goraieb, K.; Collins, C. H.; Bueno, M. I. M.
no acidente de Goiânia. Além disso, a partir da apresentação S.; Marcos da história da radioatividade e tendências atuais.
dos fatos que levaram à ocorrência do acidente, é possível Química Nova 2007, 30, 83. [Crossref]
entender o seu contexto, o que nos possibilita fazer uma 7. Atkins, P.; Jones, L..; Princípios de Química, 5a. ed., Bookman:
leitura freireana do acontecimento. Porto Alegre, 2012.
O acidente radiológico ocorrido, em Goiânia, em 1987, 8. Kotz, J. C.; Treichel, P. M.; Townsend, J. R.; Treichel, D. A.;
é considerado o maior acidente radiológico do planeta, Química Geral, v. 2, 9a. ed., Cengage Learning: São Paulo, 2015.
até os dias de hoje, devido a suas proporções tanto em 9. Halliday, D.; Resnick, R.; Walker, J.; Fundamentos de Física:
relação ao número de vítimas quanto à quantidade de Óptica e Física Moderna, 9a. ed., LTC: Rio de Janeiro, 2014.
rejeitos radioativos gerados. Dessa forma, ele poderia ter 10. Buonocore, T. C. C.; Oliveira, A. I. B.; Farias, D. S.; Martinez, F.
servido de exemplo em relação à importância do descarte A.; Silva, G. E.; Lezo, T. C.; Rocha-Lima, A. B. C.; Energia das
correto das fontes de materiais radioativos, como também radiações: radioatividade natural e articial, radiações ionizantes
da necessidade de a população, de modo geral, ter acesso a e excitantes. UNISANTA Bioscience 2019, 8, 447. [Link]
conhecimentos que pudessem evitar esses tipos de acidentes, 11. Mazzilli, B. P.; Máduar, M. F.; Campos, M. P.; Radioatividade
como o reconhecimento do símbolo da radioatividade e no meio ambiente e avaliação de impacto radiológico
saber da sua periculosidade. Nesse sentido, destacamos o ambiental. Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares
papel da educação e dos professores, em uma escola que (IPEN): São Paulo, 2013. Disponível em: <https://www.ipen.br/
aborde assuntos que ressigniquem a vida dos estudantes, portal_por/conteudo/posgraduacao/arquivos/201103311026310-
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social e que poderiam levá-los a transformar o mundo para setembro 2020.
melhor. 12. da Silva, R. C.; da Silva, R. M.; Aquino, K. A. S.; A Interação
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