O Caçula (Livro 1) - Anny Mendes
O Caçula (Livro 1) - Anny Mendes
O Caçula (Livro 1) - Anny Mendes
Fiquei sem saber o que fazer, diante do quadro que tinha à minha
frente. Não achei que, logo pela manhã, em plena terça-feira, teria
que lidar com uma bizarrice daquelas.
Pensei que estivesse tendo um pesadelo, quando aquela lata
rosa – com cílios – entrou na minha frente e, mesmo que eu tenha
afundado o pé no freio, ainda acabou com a frente do meu
conversível. O fato de o airbag abrir, demonstrou o quanto foi forte a
pancada. Não sei como a garota não quebrou o pescoço.
Eu sabia que a lata do fusca era dura, mas não tinha ideia do
quanto. Enquanto a frente do meu carro afundou, a garota estava
sentada no chão aos prantos por causa de um pequeno amassado
na porta. O pior, o carro da maluca tem nome. A lata velha deve ter
mais de vinte e cinco anos. Acho que nem ela tem essa idade.
Respirei fundo e me agachei, punindo-me mentalmente por ter
dado folga ao Sebastião. Podia ouvi-lo: “Eu digo que o senhor
precisa de proteção.” Só podia ser carma.
— Garota — chamei com cuidado, pertinho de seu rosto. O
trânsito já tinha tomado conta de tudo. Ela não podia simplesmente
ficar sentada chorando, tínhamos que tomar uma providência.
No momento em que ela ergueu o rosto cheio de lágrimas,
com sangue grudado na testa – um calafrio passou pela minha
espinha –, como um presságio. Não saberia explicar. Foi como se
alguém estivesse me avisando de algo. Meneei a cabeça –
desviando qualquer que fosse o sentimento estranho que tinha
passado por mim.
— Levante-se, venha, vou te ajudar — falei calmamente,
estendendo a mão para que ela pegasse.
Outro calafrio, só que em ondas bem maiores, assim que seus
dedos tocaram os meus. Meu instinto foi puxar a mão – assustando-
a.
— O que foi isso? — A pergunta veio dela, o que me deixou
completamente aturdido.
— Você também sentiu? — murmurei e passei as mãos pelo
cabelo, achando tudo aquilo muito bizarro.
— Tira essa lata velha do caminho, porra! — gritou um
estressado. Foi o gatilho para a garota ficar em pé, rapidamente.
Ela enxugou as lágrimas e me olhou, esperando que eu
dissesse o que fazer.
— Vamos tirá-los do meio da rua, o seu eu sei que sai, agora
o meu... — Olhei para o meu conversível e quase me deixei levar em
lágrimas como a garota.
— Não vamos chamar a polícia?
Neguei e abri a porta para que ela entrasse.
— Não tem vítima, a não ser que... — Apontei para o seu
rosto, onde alguns fios de cabelos grudaram no sangue seco.
— Ela passou a mão pelo machucado e suspirou. Mas...
— Não se preocupe, não vai precisar pagar o meu carro. Você
quer que eu chame uma ambulância? — ofereci e sua recusa foi
imediata. Assenti e caminhei até o meu carro – na esperança de
conseguir encostá-lo.
Após um tempo, com os dois carros devidamente
estacionados, acionei o seguro do meu e fui até a garota. A mesma
continuava com lágrimas nos olhos e de cabeça baixa – encostada
em seu fusca rosa.
— Você pode ir, acho que não afetou muito seu carro —
comuniquei, tentando confortá-la.
Ela ergueu os olhos e foi aí que consegui ver a cor deles. Era
um pouco amarelo, misturado com verde, e tinha uma transparência,
permitindo que víssemos o seu interior, bem... felinos. Não teria outra
definição para o que tinha diante de mim.
— Obrigada — balbuciou e forçou um sorriso.
Assenti e sorri também.
Atrás do volante, a garota abriu o vidro e me encarou. Franzi o
cenho, sem saber como agir. A verdade é que queria sentir raiva da
falta de atenção dela. Por estar me fazendo perder uma reunião
importante com um cliente, no entanto, minha vontade era de colocá-
la no colo e consolá-la. Precisei apertar os punhos para não tirar os
cabelos grudados em seu machucado e saber o tamanho do estrago.
Embora ela fosse a culpada pelo acidente, queria dizer que eu
arcaria com os prejuízos do seu carro. Mas, honestamente, eu não
conseguia nem me mexer. A beleza dela era desconcertante. Toda
minha ousadia me deixou na mão.
— Ei — chamou-me e obriguei meus pés a se aproximarem.
— Posso te levar, quer uma carona?
Escrutinei o carro minúsculo e me imaginei apertado ali
dentro. A primeira reação foi negar, contudo... não tinha reparado o
quanto o vestido dela era curto. Ao sentar-se, subiu, o bastante para
deixar boa parte de suas coxas à mostra. Bom... no fim das contas,
não seria uma má ideia ficar apertado... com ela. Seguramente,
minhas pernas compridas iriam, o caminho todo, roçar naquelas
coxas. Isso foi um ótimo motivo para eu não recusar.
— Só um minuto — pedi, erguendo o indicador.
Liguei para o Sebastião.
— O trânsito está pesado, patrãozinho — justificou-se de
prontidão.
— Não precisa mais vir, Sebastião. Arrumei uma carona —
avisei-o e o ouvi limpar a garganta. — Volte pra sua folga, não se
preocupe — tranquilizei-o, sabendo que não seria fácil o convencer
de que estava tudo bem.
— Por que ouço o senhor? Agora, está aí, sozinho —
resmungou e eu sorri – involuntariamente.
— Sebastião, já tenho vinte e sete anos, sabe que posso me
virar — garanti e ouvi um grunhido de confirmação. — Até amanhã,
vá se divertir um pouco.
Virei de volta à garota e encontrei um rosto diferente do
anterior – divertido.
Com muito trabalho, me encaixei dentro da lata velha. Assim
que ela começou a andar, me arrependi. Como alguém conseguia
conviver com aquilo? Não dava para saber o que era pior: o
tamanho, o barulho, o tanto que chacoalhava, ou o fato de estar calor
e o carro, obviamente, não ter ar condicionado.
Já tinha tentado de tudo com minhas pernas, como eu previa,
estava praticamente em cima da garota. Embora estivesse gostando
da sensação de sentir o calor de sua pele, mesmo que tivesse o
tecido da calça entre nossas peles, começava a temer pela minha
vida. A garota era uma péssima motorista.
— Quer dizer que tem babá? — provocou e me olhou de
esguelha – com um sorriso brincalhão.
— Olha só, eu adoraria te mostrar quem tem babá e tal, mas,
não estou nada confortável — admiti – segurando-me com força no
puta-que-pariu.
— Sinto muito se eu não posso te proporcionar o conforto que
você está acostumado — atacou-me, sem hesitar.
— Antes só o desconforto que estivesse me deixando
apreensível — retruquei e freei, automaticamente, quando a lata
velha lambeu a traseira de uma camionete. Cheguei a segurar a
respiração. Os nós dos meus dedos estavam esbranquiçados, de
tanto que apertava o suporte à minha frente.
— Não entendi — refutou e me olhou, enquanto dirigia, como
se estivesse no país das maravilhas. Com toda a certeza, a garota
não era da capital paulista. Nem sabia quanto tempo duraria ali.
Rapidamente, seria engolida. Deveria ser modelo, ou algo do tipo.
— Olha só, melhor você não conversar comigo, enquanto
dirige — alertei, tentando não ser grosseiro.
Ela fez uma cara engraçada, como se eu fosse um alienígena,
e continuou, como se fosse a melhor motorista da face da terra. De
uma coisa eu tinha certeza, independentemente do que a garota
fazia, era confiante. Mesmo que tivesse se desfeito em lágrimas, em
nenhum momento, recuou.
— Qual é o seu nome? — perguntei, assim que paramos em
um semáforo.
— Agora posso falar?
Dei de ombros e sorri de canto. Ousadia, outra característica
que me atraí.
— Valentina — respondeu, sem me olhar.
— Prazer, Valentina, sou o Lucca. — Soltei a mão da borracha
que me deixava mais seguro, e estendi a mão a ela.
Ela pegou e assentiu, sem dizer uma palavra. O semáforo
liberou e, durante alguns minutos, um silêncio incômodo dominou o
ambiente.
— Quer que eu te deixe em uma estação de metrô?
Enruguei a testa e neguei.
— O que te faz pensar que ando de metrô?
— Sei lá, as pessoas dizem que andar de metrô é moderno,
você me parece ser bem antenado — argumentou e eu sorri
abertamente.
— Você, com toda a certeza, não é da capital — afirmei e
continuei sorrindo. — Se puder me deixar na Paulista, minha
empresa fica lá.
— O que te faz pensar que não sou da capital? — A pergunta
saiu em um tom divertido. Seria estranho dizer que estava gostando
daquilo? E pior, que eu poderia me acostumar facilmente com a
companhia dela?
Ergui as sobrancelhas e espremi os lábios, segurando uma
gargalhada. Não queria ofendê-la, ela, apesar de não conseguir
esconder que era do interior, mostrava-se determinada a me provar
que era capaz de qualquer coisa.
Antes que eu respondesse, o trânsito andou e logo avistei o
prédio da empresa.
— Ufa, acho que sobrevivi — desabafei e soltei o corpo, que,
até então, estava tenso. — Ali. — Apontei o prédio e seu rosto
enrubesceu completamente. Achei estranho, e deduzi ser vergonha
por comparar à sua condição financeira.
— Não tem onde estacionar, acho que terei que parar um
pouco longe.
— Entre naquela garagem.
— Mas...
— Faça o que estou dizendo.
Ela concordou e embicou o carro. Joguei o corpo em cima
dela para que o segurança pudesse me reconhecer. A pior e a
melhor decisão do dia. Nossos corpos estremeceram
simultaneamente. Recuei e limpei a garganta, sem saber como
esconder as reações do meu corpo.
— Senhor Bennett, está tudo bem? — perguntou o segurança,
com uma ruga de preocupação na testa.
O olhar assustado que a garota me lançou, assim que ouviu
meu nome, demonstrou o quanto não foi uma boa escolha de
palavras do homem. Detestava saber que as pessoas se
aproximavam de mim por interesse. Fechei a cara e abri a porta,
querendo sair logo dali, assim, não correria o risco de criar qualquer
expectativa.
— Obrigada pela carona — agradeci e desci do carro. — Pode
me chamar de Lucca, deixa o senhor para o meu pai e o chato do
meu irmão — pedi ao segurança e bati de leve em seu ombro, indo
em direção à entrada principal do prédio.
Amigas
Eu deveria ter imaginado que ele era uma pessoa importante. Como
sou burra! E agora? Não tem a menor possibilidade de eu conseguir
o estágio novamente. Eu não só causei um acidente, como a vítima
foi, nada menos, do que o dono da empresa.
Bati a testa no volante e me arrependi imediatamente.
— Ai, merda! — praguejei, no momento em que levei a mão à
testa e meus dedos tingiram novamente de vermelho. Tinha me
esquecido.
— Moça, você está sangrando, vou chamar o socorro. — O
senhor simpático foi ligar e o impedi, não teria a menor chance de eu
causar reboliço na porta da empresa que eu pretendia trabalhar. Se
eu conseguisse convencer a pessoa que me entrevistou de que sofri
um acidente...
— Está tudo bem. — Sem dar a chance de ele prosseguir,
engatei ré e arrancei com o carro, provocando algumas freadas atrás
de mim.
— Sua louca! — Um rapaz colocou a cabeça pra fora de um
carro importado e gritou.
Dei de ombros, engatei primeira e continuei.
— Bem que me disseram que os paulistas eram estressados,
Penélope — resmunguei e meu carro deu um pequeno engasgo.
Tomei aquilo como resposta.
§§§§
Estacionei a Penélope em frente ao prédio de quatro andares
onde morava e desci ajeitando o vestido – cabisbaixa. Não tinha
ideia do que fazer. Me arrastei pelas escadas.
— O que aconteceu? — berrou Mia, vindo ao meu encontro –
dando um pulo do sofá.
Minha colega de apartamento trabalhava em um bar noturno,
o que lhe dava a liberdade de poder descansar durante o dia.
Assim que senti seu toque, desabei novamente. Tinha tanta
coisa passando pela minha cabeça, não sabia nem por onde
começar. Era muito azar para uma pessoa só.
— Amiga, está me assustando, vem aqui, vamos limpar esse
sangue e ver se não precisa de pontos.
Às vezes, parecia que nos conhecíamos há muito tempo.
Quem visse aquela cena, jamais imaginaria que fazia um mês que eu
tinha visto um anúncio na internet para alugar um quarto.
Mia me sentou no banco alto, que fica em frente ao balcão da
cozinha americana. Foi até a pequena lavanderia e voltou com um
pano limpo e uma bacia de água.
Enquanto limpava o sangue, eu gemia um pouco e soluçava,
as lágrimas pareciam não terem fim.
A verdade é que tinha pavor de pensar em voltar à minha
cidade. O que eu faria lá? Absolutamente, nada. Depois de tantos
anos ajudando meus pais em casa e lutando para pagar a faculdade
de marketing, não poderia, simplesmente, voltar. Foram anos,
viajando cento e sessenta quilômetros por dia, para estudar. Se eu
não tentasse, estaria jogando tudo fora.
— Estraguei tudo — confessei às lágrimas.
— Seja o que for que aconteceu, o importante é que está aqui
pra me contar. Com toda a certeza, não foi tão grave assim.
— Isso porque não te contei que entrei na frente do carro do
dono da empresa que eu, até então, começaria a estagiar, agora... —
solucei — esquece. Pela maneira que saiu do meu carro, nunca mais
vai querer me ver na frente dele.
Mia parou com o pano no ar e franziu o cenho – me
encarando.
— Como assim, saiu do seu carro? O que um Bennett estava
fazendo dentro da Penélope?
Respirei fundo.
— A história é longa. Se alguém me contasse, diria que era
uma baita invenção. Porque, seguramente, eu sou a pessoa mais
azarada da face da Terra.
— Desculpe-me, amiga, não sei – se tivesse tido um Bennett
dentro do meu carro – se me consideraria uma azarada, acho que
seria bem o contrário.
Mia continuou seu trabalho na minha testa. Pegou curativos
no banheiro e só parou quando teve certeza de que eu estava bem.
Durante seu cuidado, relatei os fatos a ela. Até para contar estava
difícil, parecia uma mentira deslavada para eu não chegar a tempo
no primeiro dia de estágio.
— Então quer dizer que ficou um tempão com o chefão dentro
do seu carro e não contou a ele que está na capital por causa de sua
fixação em trabalhar na empresa dele?
— Acha mesmo que eu tinha ideia de quem ele era?
— Coisa muito estranha, diga-se de passagem, Valen. Me
disse que era o Lucca, o rosto dele está toda semana na capa de
alguma revista. Sem contar que ele é o garoto propaganda da
Bennett.
— Não sei o que aconteceu, comigo — murmurei e enfiei o
rosto entre as mãos. — Fiquei passada, quando vi a Penélope
machucada.
Mia sorriu e balançou a cabeça.
— Você é inacreditável.
A porta da sala foi aberta bruscamente e olhamos em
conjunto, sabendo quem seria. Afinal, quando que a Betina era
discreta?
Nossa companheira entrou correndo, sem nem olhar para nós.
Não precisamos tirar muitas conclusões, era de praxe Betina
esquecer algo importante. Sorte a dela ser autônoma, se tivesse que
bater cartão, seguramente, seria demitida na primeira semana. Bom,
eu não sou a pessoa mais indicada a julgá-la.
Na mesma velocidade que Betina correu para o quarto, voltou.
Já estava com a mão na maçaneta quando nos viu.
— Que merda aconteceu com sua testa?
— Delicada, como sempre! — desdenhou, Mia e foi para a
lavanderia levar os itens que tinha usado para fazer meu curativo.
— Nada para alardes — garanti e limpei o restante de
lágrimas do rosto.
Sem se contentar, Betina se aproximou e ergueu meu rosto,
analisando o curativo.
— Devia ter colocado gelo nisso aí, já está inchando —
comentou e virou meu rosto —, o sangue está descendo, está
ficando tudo roxo em volta de seu olho esquerdo. Qualquer um vai
achar que levou uma porrada.
Desvencilhei-me dela e revirei os olhos.
— Não está atrasada, mamãe? — ironizei e ela estreitou os
olhos, me encarando.
— Se cuida, pequena caipira.
Quase nem terminou de falar, já tinha saído, só senti o vento
da velocidade que seu corpo provocou.
A questão é que, das três, sou a mais nova. Mia tem trinta e
Betina trinta e três, enquanto eu tenho vinte e três. As duas sentem-
se responsáveis por mim, muito mais a Betina. O fato de eu estar
longe dos meus pais e ter vindo do interior, só as deixou mais
neuróticas, nesse sentido. Isso que não contei a elas pelo que
passei.
— Então — continuou Mia, voltando a ficar ao meu lado. — O
que pretende fazer?
Dei de ombros, completamente desnorteada. Como ela frisou,
desde que comecei a faculdade de marketing criei uma fixação pela
empresa Bennett. Acredito que seja por ser a maior empresa
alimentícia do país. Sua política de marketing também foi um fato
predominante. Gosto de como eles se expõem. Mia tem razão
quanto a eu não reconhecer o Lucca. Ainda não consigo entender o
que aconteceu com a minha cabeça.
— Quer minha opinião?
— Vai dar de qualquer maneira — brinquei e pulei do banco
alto – indo em direção à cozinha. Alcancei um copo no armário e o
enchi com água.
— Ligue para o RH e explique que sofreu um acidente.
— Hum — murmurei, enquanto engolia uma boa quantidade
de água. — E conto que a vítima é o chefe dela? — desdenhei.
— Por que faria isso? Uma empresa daquele tamanho, acha
mesmo que o Lucca vai saber quem é você? Os chefões devem
passar longe da ralé — simplificou, minha amiga.
Lavei o copo que usei e refleti sobre o argumento de Mia.
Seria muita burrice minha pensar que poderia cruzar com Lucca
novamente. Pelo que deu a entender, até babá ele tem.
— Você tem razão — concordei e sequei as mãos no pano.
Me aproximei novamente de Mia. — Vou ligar.
— Essa é minha pequena caipira, bate aqui — ergueu a mão
e fizemos o nosso toque especial – terminando com nossas bundas
se chocando.
Antes que eu pudesse pensar nos prós e contras, peguei meu
celular dentro da bolsa e disquei o número da empresa. Enquanto
ouvia o toque, fiquei muito inquieta – andando de um lado para o
outro.
— Bennett, bom dia.
— Bom dia, poderia me passar para o RH?
— Com quem precisa falar?
— Vanessa.
— Só um minuto.
Meu coração acelerou, assim que a musiquinha começou a
tocar ao meu ouvido.
— RH, bom dia.
— Bom dia, por favor a Vanessa.
— Quem gostaria?
— É a Valentina, estive aí ontem e fiquei de começar o estágio
hoje. — As palavras saíram um pouco atropeladas.
— Me lembro, então, a Vanessa teve um problema familiar e
vai se ausentar por uns dias. O diretor de marketing que assumiu a
contratação dos estagiários. Como você não veio, chamamos outros
que estavam na lista de espera, para que ele possa entrevistar.
Uma laranja se formou na minha garganta, imediatamente.
Claramente, eu tinha perdido a oportunidade da minha vida. Respirei
bem fundo.
— Valentina? — chamou-me, após uns segundos em que a
linha ficou muda.
— Gostaria de poder explicar o que aconteceu — pedi,
controlando a voz para não sair embargada.
Ouvi seu suspirar na linha e, novamente, houve um silêncio.
— Olha, posso tentar, mas não garanto que vá conseguir. Se
fosse a Vanessa, tenho certeza de que seria mais fácil, mas... enfim,
não é tão simples quando a diretoria vem a campo. Eles são bem
exigentes.
— Que horas posso te ligar? — insisti.
— Daqui umas duas horas, se tiver sorte, encontrarei uma
brecha na agenda dele e tento convencê-lo a te atender.
— Muito obrigada, qual é mesmo o seu nome?
— Mariana, e não me agradeça, ainda.
— Só o fato de você tentar, já tenho que te agradecer,
Mariana. Daqui a duas horas te ligo. Mais uma vez, obrigada e até
mais.
— Até.
Desliguei o aparelho e o coloquei no peito – fechando os olhos
e inclinando a cabeça para trás. Fiquei um bom tempo na mesma
posição, sem saber o que fazer. Até sentir Mia me pegando pelos
braços e me levando para sentar no sofá.
— Vai dar tudo certo — garantiu.
— A pessoa que me contratou não está lá, Mia. Vou ter que
começar tudo de novo e com vários agravantes.
— Não seja pessimista, Valen.
— Estou sendo realista. Estou concorrendo a uma vaga muito
disputada. Agora, tenho que convencer o diretor de marketing de que
sou boa e que, realmente, sofri um acidente. Por isso que não
cheguei a tempo.
— Venha aqui, pequena caipira — convidou e me puxou para
deitar a cabeça em seu colo. Aceitei e aproveitei para fechar os olhos
e relaxar – enquanto Mia tirava os grampos que seguravam meu
coque e alisava meus cabelos. — Você é uma das pessoas mais
corajosas e determinadas que eu conheço. Qualquer um que te
entrevistar vai perceber isso, você é autêntica. Tenho certeza de que
a pessoa vai reconsiderar e permitir que fique com a vaga.
— Primeiro ele tem que aceitar me entrevistar — retruquei e
bufei.
— Bom, até que isso aconteça, é hora de você trocar de
roupa.
Mia levantou e me fez acompanhá-la.
— Por que preciso trocar de roupa? Escolheu a dedo esse
vestido pra mim — argumentei, enquanto era puxada para o quarto.
— Acho que ele deu azar, vamos deixar você mais despojada,
afinal, você é da área de marketing.
Sentei na beirada da cama e fiquei observando minha amiga
tirar todas as minhas poucas peças de roupas das gavetas e
cabides.
— Caraca! Ainda bem que você tem a mim e a Betina pra te
ajudar, quanta cafonice em um guarda roupa. Não nega que é
caipira. Sem contar que... — Ergueu uma peça de roupa. — Estão
muito surradas. Valen, vou te emprestar uma grana pra você comprar
umas coisas decentes.
Fui retrucar, meu celular tocou na sala. Saí em disparada para
atendê-lo.
— Alô — atendi sem olhar o identificador de chamadas.
— Valentina, consegui um horário pra você, consegue chegar
em uma hora?
Motivos
Abri uma fresta dos olhos e sorri. Ergui a mão e afaguei a cabeça de
Oliver. Miauuuu...
— Já sei, tenho que levantar, não precisa fazer esse
escândalo.
Sentei na cama e Oliver se acomodou nas minhas pernas,
ronronando e se contorcendo inteiro.
— Assim fica bem difícil, né, bebê.
— Estou começando a me preocupar com você, seu maior
dialogo é com um gato — acusou-me minha mãe, parada à porta do
meu quarto.
Coloquei meu gato amarelo de lado e levantei-me – ignorando
seu comentário sagaz.
Fui ao banheiro sentindo sua presença atrás de mim.
— Mãe, eu dialogo com várias pessoas, o dia todo, até
demais — retruquei e sentei no vaso sanitário.
De braços cruzados e com uma carranca, continuou me
encarando:
— Quais dias está indo na terapeuta?
Limpei a garganta e desviei o olhar. Se contasse a ela que
fazia algumas semanas que não aparecia na terapia, certamente me
carregaria até lá. Mesmo estando doente, minha mãe não se deixou
abater. Sua força e determinação são minha inspiração. Aliás, tudo
nela me inspira.
Dei descarga e fui até a pia para escovar os dentes – com
seus olhos me seguindo.
— Por que está se sabotando, Gabrielle?
— Hum... Eu não xei do que voxê... — Cuspi a espuma da
boca e me virei para ela. — Do que você está falando? — Fiz-me de
desentendida.
— Acha que pode me enganar? Esqueceu-se de que sou sua
mãe?
Bufei e revirei os olhos. Como é irritante o fato de eu não
conseguir esconder-lhe nada.
Dei-lhe às costas e voltei ao quarto. Peguei um jeans e uma
camiseta e comecei a me trocar. Ela não desistiria, caso contrário,
não seria minha mãe.
— Não estou me sabotando, só estou sem tempo. — Até certo
ponto, não mentia. Os casos no departamento tinham aumentado
bastante. Claro que não contei a ela sobre ter colocando o todo-
poderoso na berlinda. A deixaria mais preocupada.
— Olhe pra mim, Gabrielle Mantovani — exigiu.
O fiz, porque, quando minha mãe me chama pelo nome
completo, a coisa está feia. Deixei as botas de lado e respirei fundo –
encarando-a.
— Mãe, não sei por quê está se preocupando com isso. Estou
bem, não vê? Você é quem está precisando de uma atenção maior.
— Faz-me rir, Gabrielle. Você nunca esteve tão mal. Não
percebe, filha? Não tem vida social, aos trinta e ainda mora com
seus pais...
— Não vou deixar vocês sozinhos.
— Não me interrompa.
— Desculpe-me — murmurei e abaixei a cabeça.
— Isso é uma tremenda muleta que você usa para se
esconder, Gabrielle. — Ergui a cabeça para rebater e seu olhar me
fez recuar. — Somos perfeitamente capazes de nos cuidar sozinhos.
A quem nos toma? Velhos inúteis?
— Sabe que não, mãezinha.
— O que eu sei é que aquele filho de uma puta roubou minha
filha. O que está te faltando aqui, Gabrielle? Eu e seu pai não somos
suficientes?
Fiquei em pé e fui ao seu encontro. Ameacei abraçá-la e ela
negou.
— Não faz assim, mãezinha, conhece meus motivos.
— O que não te dá o direito de se sabotar. Essa vingança está
acabando com sua vida. Não percebe, Gabrielle? Ninguém aqui está
ficando mais novo.
Não tinha mais argumento. A verdade é que, quando minha
mãe coloca algo na cabeça, é perda de tempo fazê-la reconsiderar.
Assenti e voltei a sentar-me, calçando minhas botas de cano
curto.
— Falei com o Bento.
Cerrei os dentes e os olhos.
— É por isso que está assim — concluí.
— Não tome conclusões precipitadas.
— Já falei pra ele parar de te preocupar com bobagens.
— Acha bobagem ter ido à toca do leão, Gabrielle? — gritou,
com o dedo em riste no meu nariz. — Estou pedindo pra você parar,
filha! — ponderou e sua respiração deu uma oscilada.
Teria que amenizar aquela situação, não queria ser
responsável pela piora da saúde da minha mãe.
Voltei a ficar em pé e, dessa vez, minha mãe me deixou
abraçá-la. Ficamos um tempo abraçadas. Alisei suas costas e beijei
sua têmpora.
— Preciso ir — avisei e afastei o corpo.
Seus olhos estavam marejados, eu me senti um lixo. No
entanto, não poderia parar. Era minha meta de vida. Se ninguém
fizesse nada, ele continuaria destruindo a vida das pessoas. E, pior,
suas proles seguiriam o mesmo caminho. Um círculo vicioso de
merda. Família desgraçada.
— Prometa, filha — suplicou, alisando meu rosto.
Inspirei forte e fechei um pouco os olhos.
— Desculpe-me.
— Estou te perdendo, Gabrielle. Não vê que está só piorando
a situação?
Coloquei seu rosto entre as mãos e beijei sua testa.
— Te amo, mãezinha, mais que tudo. Não me peça o
impossível, por favor.
— Pelo menos, prometa que vai voltar à terapia.
— Isso eu posso fazer — garanti e sorri de lábios fechados
— Deixa-me te acompanhar...
— Mãe...
— Na primeira consulta.
Assenti e a abracei novamente – respirando fundo. Como
explicaria para ela que terapia nenhuma consertaria o que ele tinha
feito com ela? Que o seu cheiro era muito melhor do que qualquer
remédio?
A garota não saiu da minha cabeça o dia todo. Cada vez que me
lembrava de seu rompante, me xingando de riquinho de merda, eu
sorria.
Ainda não tinha decidido o que fazer com ela. Li seu currículo,
e, mesmo não tendo experiência, cursou uma excelente
universidade. Fiquei admirado, pois a instituição é paga e cara. Das
duas uma: ou ela estava se passando por menos favorecida; ou era
muito inteligente e conseguira bolsa de estudos. Eu apostaria na
segunda opção.
Honestamente, Valentina deixou-me intrigado. Teria que
encontrar uma maneira de trazê-la de volta. Estando por perto,
descobriria por que ela me chamou tanto à atenção. Claro que a
beleza da garota é um fator predominante.
Desde o momento em que ela desceu daquela lata rosa, eu
soube que era diferente. Nenhuma garota da capital senta no chão,
no meio de uma avenida movimentada, na cidade de São Paulo, e
chora por causa de uma porta amassada de um carro velho. Foi ali,
no meio da rua, vendo-a determinada a acusar-me, que me encantei
por ela.
— Não vai comer, filho?
A voz doce e melódica da minha mãe tirou-me dos meus
devaneios. Nem tinha percebido que só cutucava a macarronada
com o garfo. Sorri e estiquei o braço, alcançando a mão da minha
mãe por cima da toalha de mesa – apertando-a.
— Adoro sua comida — elogiei e ela respondeu com outro
sorriso. Voltamos a comer em silêncio.
Minha mãe mora em um condomínio fechado na grande São
Paulo. Fica um pouco longe da minha cobertura, mas foi escolha
dela. Ela gosta do conforto e calmaria do bairro, além de se deliciar
com suas plantas. Segundo ela, quanto mais perto de prédios e
carros, pior para suas preciosidades.
Meu padrasto é tranquilo, tem um trabalho em casa, o que
proporciona aos dois ficarem juntos a maior parte do tempo. Acabo
visitando-os pouco, pela distância e os compromissos da empresa.
Entretanto, quando posso, no pouco tempo que fico com eles,
consigo resgatar o que tem de melhor em mim.
Sou proibido de falar de trabalho com minha mãe, tocar no
nome do meu pai é o mesmo que ser desconsiderado seu filho. Ela
respeita minha decisão em permanecer com ele, sabe o quanto é
importante para mim estar trabalhando na empresa. Mas continua o
detestando.
— Como é nome da garota? — questionou de repente.
Eu estava levando uma garfada à boca e parei no meio do
caminho.
— O quê?
— Mãe sabe das coisas.
Bufei e ri, chacoalhando a cabeça.
— Não sabe não.
— Quer que eu pegue as cartas? Elas vão me contar tudo.
Odeio a crença estranha dela. Mesmo que respeite, sempre
tive um certo medo. Essa coisa de invocar coisas do além não me
deixa muito confortável. Não seria mais fácil se ela simplesmente
fosse uma beata?
Fiquei em pé e levei meu prato à pia – desconversando.
Quando me virei, dei um pequeno pulo, ela já estava virando aqueles
troços e sorrindo.
— Sabe o quanto esse negócio me assusta, mãe.
— Ela bonita e... — Virou outra carta. — Ingênua. — Respirou
fundo e ergueu o rosto, com um sorriso de satisfação. — Gostei dela,
quando vai trazê-la pra me conhecer?
Passei os dedos pelos cabelos e ri sem vontade, balançando
a cabeça.
— Achei que tivesse parado com essa bruxaria — recriminei-a
e caminhei até à sala. Peguei meus pertences. — Preciso ir. — Fui
até ela e beijei sua testa.
— Ela é especial, filho, não a machuque — sussurrou ao meu
ouvido, enquanto me abraçava.
Decidi por não responder, não valeria a pena. Nada do que eu
dissesse mudaria o que as malditas cartas tinham enfiado na cabeça
da minha mãe. Até porque, era sempre a mesma coisa, elas, de
alguma maneira bizarra, acertavam o que estava acontecendo na
minha vida.
§§§§
Verdade seja dita, Sebastião fez muita falta. Detestei ter que
andar de Uber para cima e para baixo. Não achei que ficaria sem
carro, quando decidi lhe dar folga. Eu nunca admitiria para ele, caso
contrário, não poderia mais ir à esquina sem que ele estive no meu
encalço.
Entrei na minha cobertura e me joguei no sofá, tirando os
sapatos e os jogando longe. Inclinei a cabeça no encosto e fechei os
olhos. Fiquei um bom tempo na mesma posição, em silêncio, se é
que morar na região da Paulista tenha algum momento tranquilo.
Quando menos esperava, lá estava o rosto dela, novamente
dominando minha mente. Algo que nunca havia me ocorrido, estava
prestes a acontecer. Lutava contra a necessidade pavorosa de entrar
em contato com ela. Ouvir sua voz. Saber quais eram seus próximos
passos. Eu precisava, e nem sabia o porquê.
Ergui o tronco e passei as mãos pelos cabelos, ponderando
se ligava ou não. Eu tinha ficado com o currículo dela, porque já
sabia que, em algum momento, entraria em contato. Só não
esperava que fosse no mesmo dia, nem – muito menos, àquele
horário.
Alcancei o celular e fiquei brincando com ele entre os dedos,
pensando o que eu falaria para a garota. Não queria parecer
pessoal, no entanto, naquele horário, seguramente seria o que
pareceria.
Depois de criar coragem e trocar algumas mensagens, fui
obrigado a ligar, no fim das contas, a garota não era tão ingênua
como as cartas a descreveram.
— Ainda está aí? — balbuciei na linha, tentando não
demonstrar o quanto me decepcionou saber que ela estava partindo.
Se nem eu mesmo estava entendendo nada, como lhe explicaria?
— Você me ligou... — Limpou a garganta. — Pra me pedir pra
voltar?
Ri, um pouco mais alto do que pretendia.
— Você é pretenciosa.
— Eu sou? — A voz dela já não estava tão segura como
antes. Isso é bom — pensei.
— Como posso te pedir pra voltar de onde você ainda não
tinha ido? — provoquei, pois estava gostando do lado agressivo dela.
— Acho que deveria se informar melhor, o estágio já era meu
— afirmou, voltando a ter a voz segura.
Meus lábios se expandiram. Era daquela garota que eu
gostava.
— Não estou falando de estágio. — Valentina começou a
tossir na linha, compulsivamente. Aguardei uns minutos. —
Valentina?
— Desculpe-me.
— Então?
— Está me oferecendo uma vaga de emprego?
— Vou ter que desenhar?
— Nossa... não precisa... — suspirou — esquece.
— Está com medo de falar a verdade e perder o emprego? —
Eu não conseguia parar de provocá-la. Queria passar a noite ali,
ouvindo sua voz com o sotaque arrastado.
— Você é bem arrogante e atrevido.
Me acomodei no sofá e decidi mudar o rumo da conversa.
Precisava saber se teria qualquer chance com ela. Eu sabia que
estava indo pelo caminho mais perigoso. Mas os Bennett adoram
jogar, é o que sabemos fazer de melhor.
— As mulheres costumam gostar — comecei o jogo.
Silêncio.
Respiração pesada.
— Devo voltar amanhã? Procuro a Mariana? — desviou o
assunto, atiçando-me mais ainda. Com sangue Bennett correndo nas
veias, jamais que eu recuaria.
— Me procure. — Aguardei uns instantes. — Estarei à sua
espera — sussurrei, propositalmente.
— Olha só, o que vou ter que fazer pra conseguir esse
emprego? Não estou gostando do rumo que a conversa está
tomando. E, sinceramente, é muito estranho você me ligar a essa
hora pra me oferecer emprego. Que tipo de pessoa você pensa...
— Ou... ou... ou... Devagar aí, garota, só estou brincando —
cortei-a. Não queria pagar para ver o que mais poderia sair daquela
boca.
— Certo, eu vou, mas prefiro falar com a Mariana —
determinou, sem hesitar.
— Uau! Você quem dá as cartas, agora?
— Só pra deixar claro, não fui eu quem te ligou — rebateu de
imediato.
— É justo.
Silêncio novamente.
— Bom, preciso dormir, amanhã começo em um emprego
novo. — O tom de sua voz demonstrava que sua guarda tinha
baixado um pouco.
— E seu chefe é exigente.
— Não espero menos.
— Fico feliz em saber.
Mais silêncio.
Estava ficando estranho aquilo, as palavras, que nunca me
faltaram, resolveram sumir. Tudo que pensava em dizer parecia
banal. Não queria que ela me achasse fútil. Embora fosse a imagem
que eu passasse. Por algum motivo incógnito, queria que ela me
enxergasse de verdade. Não o Bennett riquinho de merda, como ela
disse.
— Então... boa noite, acho — quebrou o silêncio, com a voz
bem baixa.
— Passou sua dor de cabeça?
— Qual o seu problema?
— No momento?
— Ah, deixa pra lá!
— Ok, Valentina, boa noite, até amanhã.
Não esperei a resposta, desliguei, antes de puxar outro
assunto, só para ficar ouvindo a voz dela.
Deitado no sofá, fechei os olhos e coloquei o antebraço sobre
eles. O sorriso teimava em ficar no meu rosto. O dia tinha sido, no
mínimo, interessante.
Dessa vez, não cometeria o mesmo erro. Acordei bem mais cedo,
me arrumei de acordo e tomei um rápido café. Conversei com a
Penélope e combinamos de ela colaborar. Acho que entramos em
um acordo, pois, logo de cara, ela pegou, sem que eu precisasse dar
um tranco.
Prestei mais atenção às placas de trânsito, principalmente nos
balões. Ou, seja lá, qual for o nome daquele negócio redondo, onde
os carros quase se batem quando estão tentando entrar. No meu
caso, se bateram.
Ainda bem que cheguei bem mais cedo, porque não encontrei
lugar para deixar o carro. Os poucos estacionamentos que perguntei
o preço da diária, quase engasguei. Quem consegue comer,
pagando esses valores para estacionar o carro? Meu Deus, que
coisa de louco! Acabei deixando o carro umas três quadras de
distância e, ainda assim, bem fora do meu orçamento.
— Entendi porque vocês andam espremidos nos metrôs —
resmunguei, a caminho da empresa. Sorte o clima de São Paulo ser
uns bons graus abaixo do que na minha cidade, caso contrário,
chegaria molhada de suor.
Parei diante da porta e ajeitei a roupa. Segui o conselho da
Mia e coloquei uma de suas roupas, assim que receber o primeiro
salário, terei que comprar algumas peças de roupas. Não sei como
farei, prometi aos meus pais que mandaria um pouco de dinheiro
para eles. Não consigo pensar neles trabalhando naquela fazenda,
sozinhos. Sei que, no começo, não vou poder ajudar muito, mas farei
o meu melhor.
Não deixei o prédio imponente, com vidro espelhado, me
intimidar. Não era a primeira vez que estava ali e não seria a última.
Ergui o queixo e entrei pelas portas giratórias. Chegando ao
balcão de atendimento, me identifiquei e logo me entregaram um
crachá provisório. O sorriso teimava em enfeitar meu rosto. Não
queria parecer caipira, embora minhas atitudes e sotaque me
denunciassem.
As portas do elevador se abriram e abri mais o sorriso para as
pessoas que estavam ali.
— Bom dia! — cumprimentei toda alegre e recebi olhares de
esguelhas. Uma, ou duas, menearam a cabeça. Credo, que gente
triste!
A caixa de aço era enorme, maior do que a lavanderia do
apartamento que divido com minhas amigas. Estava quase repleto
de pessoas. A maioria concentrada na tela de seus celulares. Eu
nem sabia onde que o meu estava, esperava que o tivesse colocado
dentro da bolsa, não tenho muito o hábito de usá-lo.
Em cada andar que o elevador parava, descia uma leva de
pessoas. Saíam inquietas, sem se despedir. Aquilo era ruim. Se
estavam todos os dias ali, na certa se conheciam, mesmo que só de
vista.
Finalmente, chegou no andar que eu desceria, ainda ficaram
algumas pessoas. Antes de sair, virei o rosto e me despedi, mesmo
que as pessoas me achassem caipira, era melhor do que sem
educação. Meus pais não ficariam nada felizes se soubessem de
uma atitude feia daquela vinda de mim.
— Até logo — disse sorrindo. Mais uns meneios de cabeça.
Dei de ombros e segui. — Pelo menos a minha parte eu fiz —
resmunguei para mim mesma.
Diante das portas duplas, com letras pratas, respirei fundo e
entrei. A primeira pessoa que me viu foi a Mariana, arregalou os
olhos e levantou-se rapidamente, vindo ao meu encontro.
— O que faz aqui? Não disse pra esperar a Vanessa voltar?
— Sua expressão estava aflita, como se eu estivesse cometendo um
crime.
— Nossa, que costume feio que os paulistas têm de não falar
bom dia — recriminei-a sem pensar.
Mariana franziu a testa e inclinou a cabeça para o lado, sem
entender nada.
— Bom dia, Valentina — corrigiu-se. — Não temos esse
costume e somos bem-educados, por sinal, é que você me assustou,
confesso.
— Bom dia, achei que o seu chefe já tinha avisado, ele...
— Bom dia, Mari, vejo que a nova integrante da equipe já
chegou.
Estremeci, sem mesmo me virar para confirmar de quem era
aquela voz. Puxei uma lufada de ar e segurei o lábio inferior nos
dentes. Eu não poderia estar tendo aqueles tipos de sensações, não
ali, ouvindo a voz de ninguém menos do que um dos donos da
empresa. Seria muita burrice minha. Se quisesse ganhar espaço ali,
mostrar meu potencial, teria que controlar meus instintos. Já os
deixei me prejudicar uma vez.
— Bom dia, Lucca, nova integrante? — inquiriu, Mariana –
franzindo mais sua testa.
— Sim, contratei a Valentina para o cargo que estava vago.
— Como assim? Ela não tem experiência, e... — Algo fez com
que Mariana parasse. Deduzi que fosse a feição de Lucca. Ela
recuou, meneou a cabeça e calou-se – permanecendo no mesmo
lugar.
Até então, eu continuava de frente para a Mariana e de costas
para ele. Me preocupei com a expressão da Mariana quando soube
que eu tinha sido contratada e não iria apenas estagiar e me virei.
Não sei se foi uma boa ideia. O que é isso? Meu paizinho do céu!
Se no dia anterior, a beleza dele tinha me encantado, não
saberia descrever aquele momento. Os cabelos estavam úmidos e o
cheiro almiscarado quase me tirou a capacidade de respirar. A barba
por fazer tinha crescido um pouco, deixando seu rosto bem...
másculo. Abri a boca para cumprimentá-lo e a voz não saiu. Sem
perceber, estanquei com a boca meio aberta.
O erguer de apenas uma sobrancelha e o sorriso torto, deixou
claro que eu não estava conseguindo disfarçar o que ele estava
provocando em mim.
— Bom dia, Valentina, como está sua cabeça, hoje? —
cumprimentou e se aproximou, olhando mais de perto o curativo na
minha testa.
Engoli em seco e tentei não surtar, sentindo o calor de sua
respiração no meu rosto. Estava tão perto que poderia tocá-lo. Não
tive controle dos meus olhos, quando desceram exatamente para os
poucos pelos do pedaço de peito que os primeiros botões da camisa
abertos me presentearam. Uma vontade insana de baixar o rosto e
passar o nariz ali, poder absorver melhor o seu cheiro. Cristo!
Chacoalhei a cabeça, desvencilhando qualquer pensamento
inapropriado.
— O gato comeu sua língua novamente? — sussurrou,
aproximando sua boca do meu ouvido. Instantaneamente, dei um
pequeno pulo para trás, apavorada com o que meu corpo estava
aprontando comigo. Traidor.
— Er... Bom dia, Lucca... desculpe-me, senhor. — Me
embananei toda nas palavras.
— Achei que já soubesse o quanto odeio que me chamem de
senhor. Apenas Lucca, linda! — alertou-me e bateu com a ponta do
dedo na ponta do meu nariz. Assenti e segurei a bolsa – que
transpassava meu corpo – mais forte.
— Lucca, podemos conversar um instante? — pediu, Mariana.
Ele estreitou os olhos e ficou pensativo, por uns segundos, na certa
ponderando se deveria aceitar o convite.
— Mari, eu sei o que vai me dizer e você tem razão, Valentina
não tem experiência, no entanto, vou apostar. — Virou-se novamente
para mim. — Gosta de jogar, Valentina?
Olhei dele para a Mariana, uma três vezes, tentando entender
que espécie de pergunta era aquela. Seu rosto tinha um ar de
malandro, não queria pensar que ele estava brincando comigo,
porém, era exatamente o que estava parecendo.
— Depende — respondi por fim, com a voz um pouco falha.
Um sorriso de canto dançou em seus lábios, mostrando-me o
quanto seria difícil controlar as reações que cada gesto dele causava
em mim. Sorte a minha que a sala dele era na diretoria.
Com dois passos, ele estava a milímetros do meu corpo.
Prendi a respiração e nossos olhos travaram uma luta silenciosa de
quem pode mais.
Sempre soube o que os homens buscam em uma mulher,
principalmente uma como eu: sozinha, almejando crescer na
carreira. Meu sinal de alerta precisava se manter ligadíssimo. Por
isso, comecei a me detestar, por estar demonstrando fraqueza a um
homem que claramente só estava querendo me levar para cama.
Precisava demonstrar firmeza, pois, não era só minha decência que
estava em jogo e sim, minha carreira. O que tinha deixado para trás
já era o suficiente para me aporrinhar pelo resto da minha vida.
— Depende do parceiro? — murmurou e sorriu de verdade,
sem tirar os olhos dos meus. Ele não me tocou em momento algum,
mas só o fato de estar muito perto, a ponto de eu sentir o calor do
seu corpo, estava me desestabilizando. Recuei.
As pessoas em seus aquários, já começavam a se levantar,
esperando por outro espetáculo. Não daria aquele gostinho a elas.
Estava ali para ser profissional e o faria.
— Se está se referindo a parceiro de trabalho, sim. Gosto de
desafios, a adrenalina nos mantém em alerta — elucidei com
clareza, cuidando para que nenhuma palavra tivesse sentido duplo.
Abri um sorriso tímido e dei mais um passo atrás, mantendo uma
distância segura.
— Ótimo, que comece o jogo! — afirmou e saiu andando, sem
dizer se eu deveria acompanhá-lo.
Mariana fez um sinal com a cabeça para que eu o seguisse.
Respirei fundo e acelerei o passo. Paramos em frente a um dos
aquários e ele abriu a porta, fazendo um sinal para eu entrar.
A sala era espaçosa, com uma vista perfeita para a avenida
Paulista. Assim como o restante do andar, a decoração minimalista e
moderna, com cores vibrantes misturadas com muito branco.
Uma mesa com pés cromados e tampo de vidro, ocupava a
maior parte da sala. Uma cadeira confortável atrás dela e duas, uma
amarela e a outra azul celeste, em frente. Ao lado da mesa, um
móvel com vários casulos, intercalando as cores das cadeiras com
branco. Em cima da mesa, um monitor enorme com o símbolo da
maçã. Segurei a voz para não dizer “Uau!”. Só tinha visto um
daqueles na faculdade, na sala do reitor.
— Sente-se. — Apontou à sua frente e sentou em uma
confortável poltrona de couro branco, que até então eu não tinha
visto, no canto da sala.
Me acomodei em uma poltrona, como a dele, e ficamos de
frente. Fiquei um pouco incomodada com o seu olhar. Era muito
intimidador, parecia que estava lendo minha alma. Fiz o possível
para não alterar a respiração. Sentia o retumbar acelerado do meu
coração em meus ouvidos.
— Bonita sala, é da Vanessa? — perguntei aleatoriamente,
olhando em volta – na tentativa de aliviar aquela tensão. Se
continuasse daquela maneira, em qualquer teste que ele decidisse
fazer comigo, eu falharia vergonhosamente.
— Pode ser sua, só depende de você.
Olhei rapidamente para ele, com os olhos arregalados e a
boca escancarada.
— Minha? — Apontei para o peito, formando várias linhas de
expressão na testa.
— Não disse que gosta de jogar? Faz parte do jogo. — Sua
postura estava tão relaxada, que comecei a achar que era um teste.
Ri de nervoso e chacoalhei a cabeça.
— Qual é a pegadinha? O que espera que eu faça? É um
teste, confessa? — despejei o que passava pela minha cabeça, sem
hesitar.
Esse é o meu maior defeito, não costumo pensar antes de
falar. Minha espontaneidade beira à ingenuidade. Só pioro as coisas.
Já tenho que enfrentar preconceito por ser do interior, com sotaque
forte, agindo impetuosamente, não vou muito longe. Bufei, só em
pensar.
— Você é incoerente, sabia? — Lucca chegou com o corpo
mais para frente, inclinou o tronco e apoiou os cotovelos nos joelhos
– cruzando as mãos na frente do corpo. Não respondi, esperei que
se explicasse melhor. — Tem momento em que tenho certeza de que
venceria um leão e, em outro, como esse, até mesmo um gatinho te
faria sair correndo.
— Estou... — suspirei e organizei os pensamentos — estou
pronta — assegurei e ergui o tronco – demonstrando segurança.
— Essa é minha garota — comemorou e alcançou minha mão
– colocando-a entre as dele.
Era tudo que eu precisava para voltar a ficar instável. Droga!
Pense na merda que te aconteceu lá atrás... pense... pense! Eu tinha
que desviar meu pensamento daquele momento. Se me focasse no
fato de a minha mão estar entre as dele, de seu polegar estar
fazendo círculos em meu punho, de o contato de nossas peles estar
enviando sinapses elétricas contínuas ao meu cérebro, de o meio
das minhas pernas começarem a formigar, sairia correndo, como ele
disse.
— Ei, está tudo bem? — Fiquei em pé de uma vez e me
aproximei da janela, sentindo meu rosto queimar.
De costas para ele, me abanei discretamente, respirando com
dificuldade. Droga... Droga... Droga! Que merda de sensações eram
aquelas que estavam me tirando do meu cerne.
Um frio na espinha me avisou de que ele estava próximo
novamente. Começava a me assustar com o que estava sentindo.
Mantenho distância dos homens, apenas uma vez abri a guarda e o
resultado foi péssimo. Escorregar de novo, seria o fim.
— Vou diminuir a temperatura do ar condicionado — avisou às
minhas costas. Senti o resvalar de seu corpo no meu, quando foi
pegar o controle do ar condicionado que estava sobre a mesa. Não
sei se foi de propósito. Não quis me arriscar olhar para ele para
descobrir.
Uns segundos se passaram e o calor de seu corpo estava
aquecendo minhas costas.
Meus cabelos escorridos foram colocados de lado e, no trajeto
desse movimento, as pontas de seus dedos tocaram meu pescoço,
terminando de me desmanchar. Seria impossível me concentrar com
ele ali. Esperava que terminasse logo, assim, raríssimas vezes o
veria.
— Acho melhor tirar essa jaqueta, está quente hoje — ciciou
ao pé do meu ouvido.
Cerrei os olhos e suspirei. Ok, tenho que reagir!
— Diga-me o que tenho que fazer e termina logo com essa
tortura — cuspi, virando-me em sua direção.
Lucca não recuou nem um milímetro, o que só piorou a
situação para mim. Estar diante daquele pedaço de peito à mostra,
juntando com o cheiro tentador que exalava dele, meu fim estava
decretado.
Ergui o rosto lentamente, descobrindo que sua altura é uns
bons centímetros a mais do que a minha, e olhei em seu rosto. O
sorriso maroto estava ali e a sobrancelha questionadora o
acompanhava.
— Estou te torturando? — inquiriu com tom divertido.
Engoli em seco e não soube como responder. Todas as
palavras do meu vocabulário foram surrupiadas. Nada...
simplesmente nada, me ocorria naquele momento. Qualquer coisa
que saísse da minha boca me denunciaria. Não tinha a menor
possibilidade de eu me safar do que tinha deixado escapar.
Neguei com a cabeça, porque era minha única saída.
Ele inclinou o rosto em minha direção e meu corpo virou
gelatina, queria dar uns passos para trás, mas o comando do cérebro
foi ignorado pelas minhas pernas.
— Hora do jogo — ciciou com o rosto bem próximo do meu.
— Não sei... o que quer dizer com isso — declarei, prevendo o
meu fim, antes mesmo de começar. Porque, certamente, se o teste
era que eu fosse forte a ele, estava reprovada. Não precisava ser
muito inteligente para constatar.
— Vai descobrir — afirmou e se afastou, caminhando até a
porta. Antes de sair, virou-se para mim e concluiu: — Vou pedir pra
Mariana te passar o serviço, nos vemos por aí.
Como estátua, permaneci, assimilando o que tinha acabado
de acontecer.
A Testemunha
Sem ter escolha, tive que ceder e voltar à terapia. Melanie me olhou
com desconfiança, assim que apontei à porta de sua sala. Dei de
ombros e entortei os lábios.
— Entre, Gabrielle — convidou-me e eu sentei em frente sua
mesa.
— Achei que criaria raízes na porta — brinquei e ela balançou
a cabeça – com meio sorriso.
— Você entraria de qualquer maneira.
— Acho que sim.
Melanie apoiou os cotovelos na mesa, cruzou os dedos e
encostou o queixo neles – me estudando. Depois de alguns
segundos, decidimos falar ao mesmo tempo.
— A coisa deve...
— Desculpe-me...
Paramos e rimos.
— Comece você — ofereceu, recostando-se em sua cadeira.
Melanie é uma mulher bonita e elegante. Em seus cinquenta
anos, exala tranquilidade. Acredito que seja muito difícil fazer com
que a mulher saia de seu cerne. Seu consultório combina com sua
aparência e personalidade. As cores neutras e os móveis em mogno
transmitem paz.
Baixei o olhar e apertei as unhas nas palmas das mãos. Estar
ali era um grande avanço. É muito difícil verbalizar tudo o que passa
pela minha cabeça. Não consigo fazer com que as pessoas me
entendam. Mesmo que Melanie seja imparcial, fico sempre com a
sensação de que não concorda comigo. Não que ela tenha dado
algum indício disso, mas é como se fosse uma trava na minha
mente.
— Eu queria ter vindo antes — comecei e ergui novamente o
rosto. Melanie permanecia firme, inexpressiva.
Calei-me novamente. A terapeuta arrastou o corpo até a
beirada da cadeira e espalmou a mesa.
— Olha só, Gabrielle. Eu procuro entender os meus pacientes,
da melhor forma possível. No entanto, não podemos continuar, se
todas as vezes que tento fazer com que fale, você desaparece.
Percebe que estamos sempre começando do zero? Progredir dessa
maneira é quase impossível. Por mais apreço que eu tenha por você,
seus pais e seu padrinho, essa é a última vez. Se decidir sumir,
novamente, não vou te atender mais. — Deu o ultimato e eu só
assenti. Ela tinha razão.
— Onde quer sentar? — questionou-me, eu apontei o sofá. O
divã era muito para mim. Acho que nunca me sentiria à vontade nele.
Nos acomodamos, eu no sofá e ela em sua poltrona. Colocou
seus óculos e pegou seu tablete. Aguardei que me olhasse
novamente, dando o sinal para eu começar.
Honestamente, eu nem sabia por onde começar. O que dizer-
lhe? Que minha meta de vida era acabar com a dele? Que, enquanto
ele estivesse solto, eu não conseguiria seguir? Que eu amanhecia e
deitava pensando em uma maneira de pegá-lo? Que tudo aquilo
consumia minha mente; minhas energias? Mesmo assim, eu não
conseguia parar?
— Como está indo no trabalho? — perguntou, percebendo
que eu não conseguiria, se ela não desse o start.
Encolhi os ombros e entortei o nariz.
— Bento me suspendeu.
Melanie assentiu e sorriu.
— É duro ter o padrinho como chefe — comentou e anotou
alguma coisa.
— Ele é um pé no saco, nem meu pai pega tanto no meu pé
— desabafei e ela sorriu mais ainda.
— Acha que isso é ruim?
— Claro que sim, não posso fazer nada, que ele me poda.
— Já pensou que ele pode estar te protegendo?
— Do quê?
— De você mesma.
Cerrei os olhos e a boca – suspirando. Lá estava a Melanie
questionadora novamente. Quis sair correndo como das outras
vezes, mas temi que não pudesse voltar. Ela não pareceu brincar em
seu decreto. Procurar outra pessoa, estava fora de questão. Jamais
que eu conseguiria chegar ao estágio em que estávamos.
As Cartas
Enquanto fui ver minha mãe, pedi que Sebastião fosse cuidar
da manutenção do carro, mesmo sabendo que estava tudo em
ordem. Ele sabia que eu precisava de um tempo e não questionou.
Portanto, eu mesmo dirigia.
No caminho de volta, fiquei pensando no quanto aquelas
malditas cartas poderiam estar certas. Eu realmente não deixei que
Valentina se explicasse. Fui pelo caminho mais fácil: julguei a
situação pelo que parecia. Sei que foi uma forma de escudo. Força
do hábito, já que estou acostumado que as pessoas só se
aproximam de mim por interesse.
Perdido em pensamentos, quando me dei conta, estava
parado em frente ao prédio dela. Encostei a testa no volante e fiquei
pensando no que falaria. Isso, se ela me deixasse subir. Mas eu
precisava, como precisamos de ar para respirar, estar com ela mais
uma vez. Eram tantos sentimentos confusos dentro de mim. Nunca
tinha sentido nada parecido.
Desci do carro decidido, arrumaria um jeito de fazê-la me
atender. Teria que ouvi-la, nem que fosse pela última vez. Somente
para ter certeza de que não estava cometendo um erro.
Toquei o interfone e reconheci a voz da amiga.
— Oi, Mia, posso falar com a Valentina?
— Você é muito cara de pau, cara. Depois do que fez? Claro
que não pode! — Antes que ela desligasse, gritei:
— Espera! — Pensei um pouco no que dizer. — Eu sei que fui
cretino, quero me desculpar. — Ela ficou muda, sabia que estava ali,
porque sua respiração estava oscilante.
— Ela não está — comunicou e cheguei a duvidar.
— Tem certeza?
— Por que eu mentiria, já que não vou abrir pra você subir?
— Faz sentido — murmurei. — Onde consigo encontrá-la?
— Ela saiu com um monte de currículos. Disse que procuraria
emprego de vendedora nos shoppings. Boa sorte na busca. — A
garota nem me esperou agradecer, bateu o interfone na minha cara.
Que merda que eu tinha feito. Um talento daqueles precisando
trabalhar em uma área que não era sua. Só por causa da minha falta
de sensibilidade. Claro que eu não sairia pelos shoppings
procurando-a, seria sandice minha.
Entrei no carro e fiz a única coisa que me restou: esperei que
ela voltasse.
Cedendo
Não achei que meus sentimentos pudessem dar uma virada, tão
brusca, em poucas horas.
A conversa com a mãe do Lucca já tinha conseguido me
acalmar e, quase, me convencido de que ele não me machucaria. Há
muito que eu não me sentia tão à vontade e acolhida. Enquanto
Lucca resolvia as questões da empresa na sala, me prontifiquei em
ajudar sua mãe na cozinha. Tudo parecia bom demais para ser
verdade.
Aos poucos, fui relaxando e me deixando envolver com o
momento. Permitindo-me aceitar que estava tudo bem. Não posso
dizer que tudo na minha vida têm dado errado, seria ingratidão da
minha parte, no entanto, no quesito “homens”, sim.
— Se quiser chamar o Lucca, já está pronto — avisou, dona
Aurora, eu sequei as mãos no pano, antes de ajeitar os cabelos e
sair – em direção à sala.
Estava quase na porta da cozinha, um garoto entrou correndo.
— Vovó, que saudades — gritou e agarrou na cintura da mãe
do Lucca. A senhora abriu um lindo sorriso e o apertou ao seu corpo
– beijando-lhe o topo da cabeça.
Fiquei parada, uns segundos, buscando em minha memória
sobre os irmãos do Lucca. Pelo que tinha lido nas mídias, nenhum
era da mesma mãe. Então..., não precisei de muito tempo para juntar
as peças. Antes que eu me recuperasse, Lucca entrou na cozinha,
acompanhado da... Cristo, de novo, não! Estremeci e levei a mão à
boca – arregalando os olhos! Como que ele podia ter omitido que
tinha um filho e, pior, da mulher que quase me agrediu no banheiro
daquele bar. Bom, se eu tivesse um filho com ele, faria o mesmo que
ela.
Não esperei explicações, continuei meu caminho. Peguei
minha bolsa no aparador do corredor que levava à sala e caminhei
rapidamente – em direção à porta.
— Ei, onde pensa que vai? — Lucca berrou às minhas costas.
Apressei os passos e alcancei a fechadura da porta. Fui
impedida imediatamente.
Lucca pegou em meu braço e me virou para ele. Ergueu meu
queixo e me fez olhá-lo nos olhos.
— O que foi que a Roberta te falou àquele dia?
Neguei com a cabeça e segurei as malditas lágrimas que já
queriam cair. Quando eu aprenderia?
— Por que não me disse que tinha um filho com ela?
Lucca riu com vontade e colocou meu rosto entre as mãos.
— A única mulher que já pensei em ter filhos é você, meu
amor — declarou e eu fiquei mais confusa.
— Ela disse pra eu ficar longe de você e me chamou de
putinha — desabafei e funguei.
A expressão do Lucca mudou instantaneamente. Sem dizer
nada, pegou em minha mão e me arrastou à cozinha – parecendo
bravo.
Entramos no cômodo e os três acuaram, percebendo que
Lucca não estava em seu estado normal.
Paramos em frente a Roberta.
— Peça desculpa, agora, à Valentina — exigiu Lucca – com o
rosto transtornado.
Vi a cor do rosto da mulher desaparecer. A mãe dele se
aproximou e a criança ficou atrás da avó, com cara de assustada.
— Desculpa, eu... — começou e parou. — Estava confusa,
não achei que esse garanhão ia se acertar com alguém. — Tentou
parecer divertida e Lucca não amenizou para o lado dela.
— Explique-se melhor, Roberta. Nada te dá o direito de
chamar alguém de putinha. — Respirei fundo, ao ver a cara de
espanto que a mãe dele fez.
— Fez isso, filha? — perguntou dona Aurora à Roberta. Ela
baixou o olhar e abraçou o corpo — assentindo. — Nossa, isso foi
cruel — comentou a senhora e se afastou, carregando a criança com
ela.
— Estou esperando, Roberta — insistiu, Lucca.
— Desculpa, é que... — hesitou —, senti ciúmes —
confessou. Vi o olhar de Lucca amenizar um pouco.
— Está tudo bem, Lucca. Ela tem o direito de sentir ciúmes.
Às vezes, a gente age pela emoção — ponderei, querendo acabar
logo com aquilo. Na verdade, nem almoçar ali eu queria mais.
— Não, ela não tem direito de sentir ciúmes, nunca tivemos
nada. Somos amigos e nossa proximidade é por causa do Rodolfo,
que me pediu para cuidar dela e do Theo. Não quebraria a promessa
que fiz ao meu amigo. Só que... — Fechou os olhos e passou as
mãos pelos cabelos. — De agora em diante, Roberta, só darei
atenção ao seu filho, que considero como meu sobrinho.
Nossa, tudo me parecia cada vez mais confuso. Quem é
Rodolfo?
— Não, Lucca, não faça isso, eu errei, me perdoe —
continuou, Roberta, pegando no braço dele.
Lucca desvencilhou-se dela e me encarou, claramente sem
saber o que fazer.
— Quem é Rodolfo? — questionei, na esperança de poder
ajudá-lo.
— Era meu melhor amigo — disse e engoliu em seco –
inclinando a cabeça para trás. Depois de uns segundos, encheu o
peito de ar e continuou: — Faz um pouco mais de um ano que ele se
foi...
Não terminou a frase. Nunca tinha o visto tão transtornado.
Roberta arriscou se aproximar. Com os braços em volta do corpo e
um olhar cheio de súplicas, se direcionou a mim:
— Somos só amigos, estou muito sozinha, vulnerável... —
Baixou a cabeça e a balançou. — Confundi tudo, me desculpa... —
implorou, com a voz embargada.
De esguelha, vi quando dona Aurora se acomodou no canto
da cozinha, esperando para ver o término da situação. Olhei para
ela, que meneou a cabeça, garantindo que Roberta falava a verdade.
— Tudo bem, eu te entendo — assegurei e Lucca me lançou
um olhar de admiração. Veio até mim e beijou minha têmpora.
— Por isso, que me apaixonei por você. Você tem a mesma
luz da minha mãe — sussurrou, só para eu ouvir. Na certa, as outras
duas mulheres conseguiram ouvir, também – a tirar pela expressão
de felicidade de dona Aurora e de decepção, da Roberta.
Abracei meu homem. Sim, eu tinha que abrir à guarda.
Naquele dia, Lucca Bennett começou algo muito importante pra mim:
provar que eu podia dar uma chance ao amor.
§§§§
O acúmulo de trabalho, no departamento de marketing, e a
cobrança em cumprirmos os prazos, nos obrigaram a aumentar as
horas de trabalho. A semana voou. Mesmo que estivéssemos juntos,
quase todo o tempo, não tivemos oportunidade de conversarmos
sobre o que tinha acontecido.
No mesmo dia, quando voltamos da casa da sua mãe, Lucca
fez algo que me deixou numa situação comprometedora. Anunciou
ao departamento que estávamos juntos. Com essa atitude, a
responsabilidade de ser a melhor elevou-se ao nível máximo.
Mariana passou a me tratar diferente, como se eu fosse sua
superior. Tentei, por vezes, dizer-lhe que não era daquela maneira –
em vão.
Não podia me concentrar no comportamento da equipe, diante
do fato de eu ser a namorada de um dos donos da empresa, tinha
que continuar com o meu propósito: mostrar o quanto sou boa no
que faço. Queria que as pessoas continuassem a me ver como uma
funcionária nova, sem experiência – disposta a aprender com eles.
Concentrada na tela do computador, analisando com mais
calma o projeto que me foi atribuído, nem percebi a presença de um
homem imponente – de fronte à minha mesa. Ergui os olhos da
máquina e, rapidamente, fiquei em pé – reconhecendo a figura.
— Bom dia, senhor Henry — cumprimentei o irmão mais velho
do Lucca.
Ele não respondeu de imediato. Por alguns intermináveis
segundos, me analisou – com os olhos estreitados.
— Você é a tal Valentina? — questionou, por fim. Assenti –
receosa. Mesmo que fizesse pouco tempo que estava na empresa, já
conhecia sua fama de mau. Sem contar o quanto Lucca praguejava
quando estava falando com ele ao telefone. — Espero que seja tão
boa quanto dizem, pra valer a pena o esforço que o idiota do meu
irmão está fazendo. Detesto pensar que, mais uma vez, ele esteja
agindo de acordo com a cabeça de baixo. — Despejou sua ira e
virou-se. Antes que saísse, com risco de perder o emprego, não
segurei minha língua.
— Deveria conhecer melhor seu irmão — iniciei e esperei que
voltasse a me olhar. Henry virou-se e me encarou com um olhar
cheio de ódio. Senti um frio na espinha. Nossa, esse homem precisa
de Deus!
— Só porque abre as pernas pra ele, não quer dizer que o
conhece — destilou, mais uma vez, seu veneno.
Ri completamente de nervoso e não perdi a coragem.
— Não sei qual o seu problema, mas não vou deixar você
estragar o que temos de bom. Nem me abater pelo seu julgamento
cruel — cuspi e sentei-me novamente. Coloquei as mãos sobre o
teclado e vi o quanto tremia.
Ele continuava no mesmo lugar. Fiz-me de desentendida.
— O que está fazendo aqui, Henry? Espero que não esteja
chateando a Valentina. — Lucca entrou falando, soltei a respiração,
que nem tinha percebido que segurava. Parou ao lado do irmão e
ficou nos olhando, percebendo que o clima não estava dos melhores.
— O que ele te disse, Valentina?
Sorri e, sem tirar os olhos do infeliz – no sentido literal da
palavra –, respondi:
— Nada que eu já não tenha ouvido.
O riso sarcástico de Henry quase me fez desistir de desafiá-lo
com o olhar... quase.
— Você é corajosa, garota — disse, por fim. Assenti e
acompanhei seus passos para fora da minha sala.
Lucca ficou me olhando, querendo entender o que tinha
acabado de acontecer. Não achei que contar-lhe os detalhes mudaria
alguma coisa.
— Vai me contar o que foi isso?
Neguei e fiquei em pé, indo até ele e o abraçando – fungando
em seu pescoço.
— Deixa pra lá — desdenhei e alisei seu rosto, com a barba
por fazer – que passei a amar, muito rápido. — Meu Deus, seu irmão
precisa de ajuda — comentei e Lucca riu – negando com a cabeça.
— Ele precisa trepar — disse, sorrindo.
Bati de leve em seu ombro.
— Lucca!? — repreendi-o e ele deu de ombros.
— Vamos almoçar? — confirmei e alcancei minha bolsa.
§§§§
Achei estranho Lucca dispensar o Sebastião para irmos
almoçar. Já estava habituada ao senhor que me tratava como filha.
Entramos no conversível do Lucca e ele assumiu o volante,
todo cheio de si. Acabei rindo da ironia de estar dentro do carro que
tinha ferido minha Penélope.
— Está feliz assim, por causa da volta desse monstro, que
assassinou minha Penélope? — diverti-me e Lucca me olhou sério,
antes de ligar sua máquina potente.
— Precisamos conversar sobre sua lata velha — anunciou e
eu recuei com o tronco.
— Cuidado como fala dela! — alertei-o, para que entendesse
o quanto Penélope é importante para mim.
— Valentina... — suspirou —, entendo o quanto goste daquela
lata rosa, mas não é segura e você sabe que eu tenho razão.
Cruzei os braços e fechei a cara.
— Esse monstro fez o favor de deixá-la incapaz de andar, não
sei o porquê da preocupação, já que ando de metrô — retruquei,
mesmo não sendo de tudo verdade, afinal, a bateria dela tinha
arriado completamente e, o fato de eu andar de metrô, é porque os
estacionamentos são muitos caros.
Lucca negou com a cabeça e ligou o carro, ignorando-me.
Ficamos em silêncio um tempo, até eu perceber que
estávamos chegando em seu apartamento.
— Por que estamos indo pra sua casa?
Ele sorriu, sem tirar os olhos da estrada.
— Surpresa.
— Não sou muito fã de surpresas — admiti e me calei
novamente.
Fim
Continua...
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Incentivada pela mãe, assim que aprendeu a ler passou a viajar nas
histórias. Os livros tornaram-se seu vício.