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Poliploidia:
a mutação que mudou
a história dos seres vivos
Marcelo Guerra
Universidade Federal de Pernambuco, Departamento de Botânica,
Laboratório de Citogenética e Evolução Vegetal, Recife, PE
Autor para correspondência - [email protected]
Palavras-chave: cromossomos, evolução, híbrido, Nothoscordum,
plantas cultivadas, poliploidia
Figura 1.
Café da manhã com
poliploides. Banana triploide
(2n = 33), abacaxi tetraploide
(2n = 100), morango octoploide
(2n = 56), pães de trigo
hexaploide (2n = 42), açúcar de
cana-de-açúcar dodecaploide
(12x) (2n = 100-130), café
tetraploide (2n = 44) e kiwi
hexaploide (2n = 174). Até a
flor calanchoe é um tetraploide,
com 2n = 68.
Para muitos organismos, a poliploidia cau- porque a duplicação dos genes de um único
sa um descontrole fatal na expressão gênica cromossomo causa um desequilíbrio maior
e os embriões poliploides morrem antes de nesses organismos que a duplicação simul-
concluírem o desenvolvimento. Em plantas, tânea de todos os genes. Se a duplicação de
no entanto, a duplicação de todo o conjun- todos os genes não afetar significativamente
to cromossômico é bastante tolerada, mais o desenvolvimento completo do organismo,
até que uma única trissomia, aparentemente nem a sua fertilidade, então, ao longo de
muitas gerações, algumas dessas cópias ex- Quando o erro de divisão é na meiose, o que
tras dos genes, podem desaparecer gradativa- é relativamente frequente, formam-se dire-
mente por seleção natural ou assumir novas tamente dois gametas 2n. Se um gameta 2n
funções. Foi dessa maneira que a poliploidia fecundar um gameta normal (n), resultará
tornou-se um dos principais responsáveis em um zigoto com 3n cromossomos, que
pelo sucesso evolutivo e pela diversidade das produzirá um indivíduo triploide, e se fecun-
plantas. E o estrondoso sucesso adaptativo dar outro gameta com 2n, formará um tetra-
das angiospermas, situadas na base da cadeia ploide. É assim que surgiram quase todos
alimentar do planeta, garantiu também o su- os poliploides na natureza. O problema é a
cesso de muitos outros organismos. sobrevivência desses poliploides recém-for-
mados. Por exemplo, em certas variedades de
COMO SE ORIGINA tangerina ocorre uma frequência muito alta
UM POLIPLOIDE? de embriões triploides ou tetraploides, devi-
do a falhas na meiose. Apesar disso, não são
A poliploidia surge por um erro na divisão conhecidas plantas de tangerina poliploides,
celular, impedindo que a separação dos cro- porque esses embriões têm desenvolvimento
mossomos se complete e forme as duas célu- mais lento que os diploides e quase sempre
las-filhas. Se o erro for na mitose, forma-se são abortados antes de formarem sementes
apenas uma célula tetraploide, ao invés de poliploides maduras. Mesmo que a semente
duas células diploides (Figura 2). Essa célula poliploide seja robusta, germine bem e seja
mutada poderá gerar uma linhagem de célu- bem-sucedida, ela ainda vai passar por várias
las tetraploides e, se sofrer meiose, formará etapas críticas durante o crescimento até ge-
gametas com 2n cromossomos ao invés de rar uma planta poliploide que seja capaz de
gametas normais com n cromossomos. se manter por várias gerações.
Figura 2.
Origem de uma célula
poliploide. Ciclo mitótico
normal de Nothoscordum
pulchellum (2n = 10),
mostrando a prófase (PRO),
pro-metáfase (PROMET),
metáfase (MET), anáfase (ANA)
e os núcleos interfásicos (N.
INT) do final da mitose (o
citoplasma não é visível com
essa coloração). Se por um erro
(seta maior) os cromossomos
não se separarem bem na
anáfase, os cromossomos
formarão um só núcleo com 2n
= 20, gerando uma linhagem
de células tetraploides. Ambas
as metáfases foram tratadas
com colchicina, para visualizar
melhor os cromossomos.
POR QUE OS POLIPLOIDES do solo, etc. Além disso, o poliploide tem que
superar um problema importante: quando
RARAMENTE SE MANTÊM adulto terá que ser capaz de realizar uma
NA NATUREZA? meiose normal para produzir grãos de pó-
O poliploide recém-surgido precisa, primei- len viáveis. Organismos diploides, como nós,
ramente, ser capaz de competir com as nu- os humanos, recebem um cromossomo de
merosas sementes diploides em volta dele, cada tipo do pai e outro da mãe (os chama-
germinando mais rápido ou crescendo mais dos cromossomos homólogos), enquanto os
rápido, aproveitando melhor os nutrientes tetraploides herdam dois cromossomos de
Figura 3.
Planta inteira de Nothoscordum
pulchellum diploide (à
esquerda) e inflorescência
e bulbo do tetraploide (à
direita). Observe que as flores
do tetraploide são maiores e o
bulbo forma bulbilhos laterais
(brancos) que garantem a
reprodução assexuada.
espécies analisadas (Rhynchospora tenuis), Sul, mas exceto umas poucas populações de
coletada na beira de uma estrada próxima a Pernambuco, todas as demais eram diploi-
Porto de Galinhas, em Pernambuco, possuía des. O fato desse tetraploide ter uma distri-
2n = 4, o menor número de cromossomos buição geográfica restrita, sempre junto com
conhecido em plantas. Analisando mais in- populações diploides, e ser bastante parecido
divíduos desta população, verificamos que al- aos diploides, tanto no aspecto das plantas
guns eram tetraploides, com 2n = 8 (Figura quanto na morfologia dos cromossomos,
4). Expandimos então a análise por boa par- sugere, fortemente, que ele tenha surgido re-
te do Brasil, do Nordeste ao Rio Grande do centemente.
Figura 4.
Rhynchospora tenuis (a) com
indivíduos diploides com
apenas quatro cromossomos
(b) e tetraploides com oito
cromossomos (c).
Figura 6. Metáfases do
híbrido de trigo (2n = 42) com
centeio (2n = 14). Em a e b os
cromossomos das duas espécies
são indistinguíveis. Usando o
DNA de centeio marcado em
verde (c e d), observamos que
14 cromossomos da metáfase
a/c são provenientes de
centeio, enquanto em b/d
apenas um dos braços de
um par cromossômico é de
centeio. A metáfase a/c é de
um híbrido com 2n = 56 (nessa
foto, quatro cromossomos
de trigo não aparecem),
enquanto a célula b/d é de
um híbrido melhorado, com 42
cromossomos de trigo e apenas
uma região cromossômica de
trigo substituída pela região
de interesse do centeio.
Fotografias b e d reproduzidas
de Brasileiro-Vidal et al., (2005)
Genetics and Molecular Biology,
28, 2, 308-313.
A técnica de marcação dos cromossomos for retrocruzado com o trigo várias vezes,
de um dos pais foi utilizada pioneiramente seguido de autofecundação, seleção etc, no
no Brasil pela Profa. Ana Christina Brasi- final podemos obter uma planta que tenha
leiro Vidal, do Departamento de Genética herdado do centeio apenas a parte do cro-
da UFPE, para caracterizar o genoma de mossomo no qual estão os genes que inte-
alguns híbridos intergenéricos e aqueles re- ressam para o melhoramento. A figura 6b/d
sultantes de cruzamentos mais complexos, mostra uma metáfase de um triticale com
utilizados no melhoramento genético do 42 cromossomos, tendo apenas um braço
trigo brasileiro. Se, por exemplo, o triticale cromossômico de centeio.
Figura 7. Espécies de
serralhinha diploide, Emilia
sonchifolia (a), e tetraploide,
E. fosbergii (b). Observe que o
diploide possui flores menores
e apenas 10 cromossomos (c),
enquanto o tetraploide é maior
e apresenta 20 cromossomos
(d), dos quais os 10 menores
(em azul) parecem ter sido
originários de E. sonchifolia.
A poliploidia afetou tanto a evolução das es- incluindo trutas e salmões, a poliploidia tem
pécies existentes atualmente como também a sido induzida com sucesso para a produção
dos ancestrais da maioria das angiospermas. de animais maiores e estéreis.
Muitos desses poliploides ancestrais gera-
O primeiro caso de poliploidia em uma es-
ram linhagens evolutivas mais bem-sucedi-
pécie de vertebrado com reprodução sexuada
das que os seus parentes diploides e é por
foi publicado em 1966 pela professora Maria
essa razão que a maioria das plantas atuais
Luiza Beçak e colaboradores, do Instituto
é de origem poliploide. Sendo assim, nesses
Butantan, de São Paulo, ao analisarem os
casos, deveríamos esperar que as espécies
cromossomos de quatro exemplares de sapos
atuais tivessem números cromossômicos
da espécie Odontophrynus americanus, cole-
bem altos, o que de fato acontece em algu-
tados em Campos do Jordão (SP). Posterior-
mas espécies, como, por exemplo, no guara-
mente, foram observados indivíduos diploi-
ná, com 2n = 210, ou algumas espécies de
des e tetraploides morfologicamente muito
orquídeas e calanchoes, com mais de duas
semelhantes e amplamente distribuídos no
centenas de cromossomos. O caso extremo
sudeste do Brasil e em países vizinhos. Es-
ocorre em uma pteridófita, Ophioglossum re-
ses simpáticos sapinhos podem ter coloração
ticulatum, com cerca de 1.260 cromossomos,
mais clara ou mais escura tanto nos diploides
um número cromossômico bem alto e raro,
quanto nos tetraploides (Figura 8). Todos
possivelmente porque uma quantidade alta
têm fertilidade normal, mas na natureza não
de DNA por célula é mais difícil de manter
cruzam entre si, sugerindo que os tetraploi-
do que um genoma mais enxuto. Além disso,
des já estejam se estabelecendo como uma
ao longo do processo evolutivo, muitos poli-
espécie própria.
ploides perderam segmentos cromossômicos
repetidos e alguns cromossomos foram aci-
dentalmente fusionados, reduzindo assim o
E NÓS,
número de cromossomos. TAMBÉM SOMOS
POLIPLOIDES?
EXISTEM ANIMAIS Desde que os mamíferos surgiram, apa-
POLIPLOIDES? rentemente nunca houve um caso bem-su-
A poliploidia é rara em animais, sendo mais cedido de poliploidia. Portanto, podemos
frequente naqueles que não dependem de re- dizer que todos os mamíferos, inclusive os
produção sexual para se perpetuarem. Além humanos, são diploides. Entretanto, a aná-
disso, muitos animais possuem cromosso- lise comparada de diversos genomas ani-
mos sexuais, como os nossos cromossomos mais revelou um grande número de genes
X e Y. Genes localizados nesses cromos- duplicados nos vertebrados, sugerindo que
somos controlam direta ou indiretamente o início da evolução desse grupo foi mar-
a determinação e diferenciação do sexo. A cado por um evento de poliploidia, con-
duplicação de todos os cromossomos altera tribuindo também para o elevado número
o delicado balanço dos genes relacionados à cromossômico encontrado na maioria dos
diferenciação sexual, contribuindo para in- vertebrados. Além disso, a linhagem de in-
viabilizar tais poliploides. vertebrados que deu origem aos vertebrados
parece ter passado por mais de um evento
A poliploidia é mais comum entre os inver- de poliploidia. Sendo assim, a poliploidia
tebrados, principalmente vermes, insetos, também estaria envolvida tanto com o su-
alguns crustáceos, moluscos e vários outros. cesso evolutivo dos vertebrados quanto dos
Entre os vertebrados, a poliploidia é mais fre- invertebrados.
quente em peixes, é rara em répteis e anfíbios
e é inexistente em aves e mamíferos. Entre O fato de não existirem nem aves nem
os peixes poliploides, destacam-se o peixe- mamíferos poliploides não significa que
-japonês de aquário, as carpas e os esturjões, a meiose nesses organismos não produza
estes últimos, responsáveis pela produção do eventualmente gametas diploides. Na es-
apreciado caviar. Além disso, em várias espé- pécie humana, por exemplo, a formação de
cies de mariscos e peixes de valor comercial, gametas 2n é uma alteração relativamente
frequente, mas os embriões poliploides não cesso evolutivo dos eucariotas, está presente
conseguem se desenvolver bem e logo abor- no nosso dia a dia e pode ser usada no me-
tam espontaneamente. Na espécie humana, lhoramento genético de plantas e animais.
cerca de 10% dos abortos espontâneos são A diversidade das angiospermas, com suas
de embriões poliploides, o que torna a poli- flores e frutos atraentes e extremamente di-
ploidia uma das alterações mais frequentes versificados, quase todos poliploides, foi fun-
conhecidas em humanos. damental para a diversificação dos grandes
grupos animais, como os insetos e os mamí-
Afora a eventual formação de gametas 2n,
feros, mudando assim o curso da evolução da
a maioria dos organismos diploides possui
vida na Terra.
células poliploides em vários tecidos. No
homem, o órgão com maior quantidade de
células poliploides é o fígado, com mais de PARA SABER MAIS
50% de células poliploides, principalmente BARKER, M. S.; HUSBAND, B. C.; PIRES, J.C.
Spreading Winge and flying high: The evolu-
tetraploides, enquanto que, em alguns roe- tionary importance of polyploidy after a century
dores, 90% das células hepáticas são polipoi- of study. American Journal of Botany, v.103, n.7,
des. Neste caso, a poliploidia não é devida a p.1139 – 1145, 2016.
uma mutação que surge ao acaso, mas sim à CIANCIARULLO, A.M.; BONINI-DOMINGOS,
programação genética de nossas células, uma C.R.; VIZOTTO, L.D.; KOBASHI, L.S.;
vez que todos os indivíduos apresentam o BEÇAK, M.-L.; BEÇAK, W. Whole-genome
mesmo padrão de células poliploides. A du- duplication and hemoglobin differentiation traits
between allopatric populations of Brazilian Odon-
plicação do genoma em tecidos ou órgãos tophrynus americanus species complex (Amphibia,
específicos provavelmente acontece devido à Anura). Genetics and Molecular Biology, v.42, n.2,
maior demanda por transcrição gênica des- p.436-444, 2019.
ses tecidos. SCHIFINO-WITTMANN, M.T.; DALL’AGNOL,
M. Gametas não reduzidos no melhoramento de
No geral, vemos que a poliploidia é um tipo
plantas. Ciência Rural, v.31, n.1, p.169-175, 2001.
de mutação que foi fundamental para o su-