Dialogos para Uma Politica Nacional Book

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Marco Aurélio Costa

Diálogos para uma Política Nacional


de Desenvolvimento Urbano
Escalas, agendas e aspectos federativos
no urbano brasileiro

Volume 1
Governo Federal

Ministério do Planejamento e Orçamento


Ministra Simone Nassar Tebet

Fundação pública vinculada ao Ministério do Planejamento


e Orçamento, o Ipea fornece suporte técnico e institucional
às ações governamentais – possibilitando a formulação de
inúmeras políticas públicas e programas de desenvolvimento
brasileiros – e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e
estudos realizados por seus técnicos.

Presidenta
Luciana Mendes Santos Servo
Diretor de Desenvolvimento Institucional
Fernando Gaiger Silveira
Diretora de Estudos e Políticas do Estado,
das Instituições e da Democracia
Luseni Maria Cordeiro de Aquino
Diretor de Estudos e Políticas Macroeconômicas
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Diretor de Estudos e Políticas Regionais,
Urbanas e Ambientais
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Regulação e Infraestrutura
Fernanda De Negri
Diretor de Estudos e Políticas Sociais
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Diretor de Estudos Internacionais
Fábio Véras Soares
Chefe de Gabinete
Alexandre dos Santos Cunha
Coordenador-Geral de Imprensa e Comunicação Social
Antonio Lassance

Ouvidoria: https://www.ipea.gov.br/ouvidoria
URL: https://www.ipea.gov.br
Brasília, 2023
© Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – ipea 2023

C837d Costa, Marco Aurélio


Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano : escalas,
agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro / Marco Aurélio Costa. –
Brasília : IPEA, 2023.
v. 1 (255 p.) : il., color.

Inclui referências bibliográficas.


ISBN: 978-65-5635-062-2

1. Política Urbana. 2. Planejamento Urbano. 3. Cidades. 4. Desenvolvimento


Urbano. 5. Políticas Públicas. 6. Brasil. I. Título.
CDD 711.40981

Ficha catalográfica elaborada por Andréa de Mello Sampaio CRB-1/1650


DOI: https://dx.doi.org/10.38116/978-65-5635-062-2

Como citar:

COSTA, Marco Aurélio. Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano: escalas,
agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro. Brasília: Ipea, 2023. v.1. ISBN: 978-65-5635-062-2. DOI:
http://dx.doi.org/10.38116/978-65-5635-062-2.

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e ePUB (livros e periódicos). Acesse: https://www.ipea.gov.br/portal/publicacoes

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores,
não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
ou do Ministério do Planejamento e Orçamento.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte.
Reproduções para fins comerciais são proibidas.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.........................................................................................7

CAPÍTULO 1
A AGENDA URBANA NO BRASIL: MARCADORES/BALIZAS
PARA A CONSTRUÇÃO DE UM PACTO URBANO............................................9
Marco Aurélio Costa

CAPÍTULO 2
FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O DESENVOLVIMENTO
URBANO: POSSIBILIDADES PARA O PENSAMENTO E A AÇÃO......................31
Maria Encarnação Beltrão Sposito

CAPÍTULO 3
A AGENDA URBANA E A ESCALA MUNICIPAL: DESAFIOS TIPOLÓGICOS
ENTRE A INSTITUCIONALIDADE E O ESPAÇO CONSTRUÍDO.........................51
Armando Palermo Funari
Lizando Lui
Carlos Henrique C. Ferreira Jr.

CAPÍTULO 4
(RE)ARRANJOS E INSTRUMENTOS PARA O DESENVOLVIMENTO
URBANO NA ESCALA SUPRAMUNICIPAL....................................................89
Bárbara Oliveira Marguti
Marco Aurélio Costa

CAPÍTULO 5
GOVERNANÇA SUPRALOCAL: ALGUMAS REFLEXÕES
E CONSIDERAÇÕES SOBRE O BRASIL........................................................129
Maria do Livramento Clementino
CAPÍTULO 6
QUESTÕES DE ARTICULAÇÃO MUNICIPAL: APROXIMAÇÕES AOS
CONSELHOS DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL SUSTENTÁVEL
DO ESPÍRITO SANTO..................................................................................149
Latussa Laranja Monteiro
Nathalia Nogarolli Bonadiman Imbroisi

CAPÍTULO 7
CONTRIBUIÇÕES PARA UMA AGENDA URBANA DE INTEGRAÇÃO
REGIONAL: BASES PARA INTERPRETAÇÃO E TIPOLOGIA DE REDE
URBANA PARA UM BRASIL MAIS POLICÊNTRICO......................................171
Ernesto Pereira Galindo

CAPÍTULO 8
POLICENTRALIDADE NOS GRANDES AGLOMERADOS URBANOS
BRASILEIROS ENTRE 1980 E 2010.............................................................209
Cassiano Ricardo Dalberto
Pedro Amaral

CAPÍTULO 9
FEDERALISMO E RELAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS NO BRASIL:
NOTAS PARA A CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE
DESENVOLVIMENTO URBANO .................................................................229
Lizandro Lui
Sara Rebello Tavares
Marco Aurélio Costa
Cleandro Krause
Armando Palermo Funari
APRESENTAÇÃO

No final de 2019, o Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR), por meio


da Secretaria Nacional de Mobilidade e Desenvolvimento Regional e Urbano
(SMDRU), e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) firmaram o Termo
de Execução Descentralizada (TED) no 71/2019, com o objetivo de
realizar ações de cooperação técnico-científica, intercâmbio de conhecimentos, infor-
mações e experiências entre o Ipea e a SMDRU/MDR, compreendendo a produção
e a sistematização de insumos preliminares para a formulação da Política Nacional
de Desenvolvimento Urbano (PNDU).1
Com esse TED, vislumbrou-se a oportunidade de desenvolver e consoli-
dar uma parceria que permitiria ao Ipea contribuir para as reflexões da equipe
da Coordenação-Geral de Desenvolvimento Regional e Urbano (CGDRU) do
MDR. Isso seria realizado no processo, tão necessário quanto complexo, de desenhar
e elaborar uma política nacional que tem por objeto um campo temático amplo,
cuja competência de implementar e executar os projetos e as ações diz respeito aos
entes municipais, ainda que seja responsabilidade da União o estabelecimento de
diretrizes para o desenvolvimento urbano. Caso fosse um desafio trivial, a PNDU
já seria uma realidade e estaria, quem sabe, celebrando algumas décadas de vida.
Ao longo dos últimos três anos, uma equipe do Ipea, que contou com mais
de quarenta pessoas, entre pesquisadores, bolsistas e colaboradores, seguindo o
plano de trabalho acordado entre o instituto e o MDR, dedicou-se a levantar infor-
mações e dados; desenvolver análises e discussões; organizar e realizar seminários;
e produzir dezenas de documentos para subsidiar o processo de construção da
PNDU, tudo em sintonia com o MDR e com os outros parceiros institucionais
da CGDRU, especialmente o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) e a Agência Alemã de Cooperação Internacional (Deutsche Gesellschaft
für Internationale Zusammenarbeit – GIZ).
O resultado desse esforço analítico encontra-se disponibilizado em cerca de
duas dezenas de notas técnicas, num livro relativo à governança metropolitana no
país e em sumários executivos, organizados em torno de blocos temáticos.
Esse material, previsto no TED e em seu plano de trabalho, ainda que
esteja em sua maior parte aberto para consulta, traduz-se numa extensa coleção
de publicações, cuja leitura integral demanda bastante tempo, o que reflete o

1. BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Desenvolvimento Urbano e Metropolitano. 3o Termo Aditivo
ao Termo de Execução Descentralizada no 71/2019. Brasília: MCidades Ipea, 2023.
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escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

próprio período empregado na sua produção. O termo de execução previu a


publicação de três volumes de livros, que reúnem um conjunto amplo de reflexões
em torno dos temas abordados pelas notas técnicas e possibilitam uma leitura
ora mais objetiva, ora mais aprofundada de alguns elementos trazidos por esses
documentos. Os livros foram ainda enriquecidos pelas contribuições que surgiram
ao longo dos Diálogos para uma PNDU, série de eventos realizada para ampliar
a discussão qualificada e formular uma visão compartilhada e pública do desen-
volvimento urbano sustentável no Brasil, com a promoção de conversas virtuais
técnico-acadêmicas organizadas pela equipe do Ipea, com o apoio da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
Com a recriação, em 2023, do Ministério das Cidades (MCidades), a par-
ceria se revigora e as publicações previstas originalmente no TED vêm buscar
ampliar a disseminação da produção técnica e acadêmica associada à execução
das atividades desenvolvidas.
Refletindo a lógica presente no plano de trabalho do TED, os livros foram
organizados com base em blocos temáticos. Dessa forma, o volume 1 traz as
contribuições em torno da agenda urbana no Brasil, cotejada a partir de dife-
rentes perspectivas escalares; o volume 2 reúne os temas do financiamento do
desenvolvimento urbano e da governança interfederativa, o que envolve desafios
estruturantes para a construção de soluções de financiamento associadas a uma
governança multinível; e o volume 3 reúne os temas transversais à PNDU, no
qual se buscou propor diálogos pouco habituais em torno de temas setoriais
específicos que nem sempre são objeto da agenda urbana, mas que devem se fazer
presentes, sobretudo, no quadro de mudanças e transformações sociais, econômicas,
culturais e ambientais que se encontra em curso.
Esperamos que a leitura das contribuições aqui reunidas seja leve, instigante
e inspiradora, bem como registramos o agradecimento a cada um dos colaboradores e
autores que deixaram seus apontamentos críticos e suas sugestões, na esperança de
termos espaços urbanos mais justos e sustentáveis no território brasileiro.

Marco Aurélio Costa


Técnico de planejamento e pesquisa na Diretoria de Estudos e
Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais (Dirur) do Ipea;
e coordenador nacional do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
em Políticas Públicas e Desenvolvimento Territorial (INCT/INPuT).
CAPÍTULO 1

A AGENDA URBANA NO BRASIL: MARCADORES/BALIZAS PARA A


CONSTRUÇÃO DE UM PACTO URBANO
Marco Aurélio Costa1

1 INTRODUÇÃO
Este capítulo foi desenvolvido a partir das reflexões reunidas no Texto para Discussão
(TD) no 2686, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea
(Costa et al., 2021a). O TD decorre da nota técnica elaborada pela equipe da
entidade no âmbito do termo de execução descentralizada (TED) firmado entre o
instituto e o então Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) – atualmente a
cargo do Ministério das Cidades (MCidades) –, com vistas ao apoio à construção da
Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU). O objetivo da nota técnica,
apelidada de “nota-mãe”, era o de contextualizar o atual processo de construção
da PNDU. A nota tornou-se documento de referência para o conjunto de notas
técnicas e seminários (Diálogos para uma PNDU) que foram produzidos entre
2020 e 2022. Dessa forma, cobriram-se os eixos temáticos da agenda urbana, do
financiamento do desenvolvimento urbano, da governança interfederativa e dos
temas transversais à política urbana.
A nota-mãe e o TD têm como ponto de partida – e pano de fundo – uma
leitura da recente história da política urbana no Brasil, especialmente a partir da
redemocratização. Procura-se compreender como, historicamente, nesse período
recente, se deu a trajetória da política urbana no país, tomando como referência
os entendimentos expressos na Constituição Federal de 1988 – CF/1988 (Brasil,
1988), de forma associada à forma como o Estado brasileiro e o governo federal
procuraram lidar com os desafios associados à agenda urbana, em suas diferentes
escalas, a partir da compreensão acerca do que é o desenvolvimento urbano.
Neste capítulo, busca-se retomar essa leitura dando-se ênfase a alguns dos
elementos que melhor permitiriam reconhecer ou construir um entendimento
do que seria a agenda urbana brasileira, em perspectiva multiescalar, intersetorial,
interfederativa e interinstitucional.

1. Técnico de planejamento e pesquisa na Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais do Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Dirur/Ipea); e coordenador nacional do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em
Políticas Públicas e Desenvolvimento Territorial (INCT/INPuT). E-mail: <[email protected]>.
10 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

O texto explora, inicialmente, a noção de desenvolvimento urbano e procura


analisar como esta se expressa na CF/1988 e na Lei Federal no 10.257, de 10 de
julho de 2001, denominada de Estatuto da Cidade – EC (Brasil, 2001). Estes
consistem nos dois pilares de referência normativa da política urbana no país.
A partir de um breve relato, que procura, tomando-se por base o marco legal
e a forma como a política urbana foi assumida pelos entes da Federação brasileira,
apresentam-se os principais elementos que poderiam nortear um pacto urbano
no país, considerando-se alguns marcadores/balizas (estruturantes) do quadro
urbano brasileiro.

2 PENSAR A POLÍTICA URBANA, PROMOVER O DESENVOLVIMENTO URBANO:


QUAL DESENVOLVIMENTO? QUAL POLÍTICA URBANA?
O que é desenvolvimento urbano? A partir dos anos 1980, a Editora Brasiliense
editou uma coleção, a Primeiros Passos, que buscava, com uma linguagem aces-
sível, explorar questões e conceitos-chave das ciências humanas e sociais, e que
ficou famosa por seus títulos, que sempre envolviam a pergunta “o que é…?”.
A coleção fez grande sucesso, para o qual colaborou o rol de autores convidados
para escrever os textos. Em seus 312 títulos, contudo, não consta um que se dedique
a responder “o que é desenvolvimento urbano?”.
Em esforço que se adequaria facilmente ao espírito da Coleção Primeiros
Passos, Marcelo Lopes de Souza (2003), em seu livro ABC do Desenvolvimento
Urbano, procura explorar o significado do desenvolvimento urbano trazendo, nos
cinco capítulos iniciais do livro, elementos para se pensar o que é uma cidade, o
que é o urbano, em toda a sua complexidade, no contexto do desenvolvimento
capitalista, para somente então entrar na discussão acerca do que seria o desen-
volvimento urbano.
Em um texto claro, que buscar tratar de temas complexos de forma didática
e “acessível” – ou seja, com o objetivo de atingir um público mais amplo do
que o acadêmico –, o autor discute algumas questões importantes. Dois pontos
destacam-se: o primeiro diz respeito à noção de desenvolvimento. Desenvolvi-
mento tem sido um termo cujo uso se encontra carregado de noções de valor,
nem sempre reveladas. Uma série de evidências associadas sobretudo, mas não
somente, aos campos econômico-produtivo e tecnológico costuma ser usada para
validar uma noção de desenvolvimento que se associa ora ao crescimento econô-
mico stricto sensu, ora ao desenvolvimento de instrumentos, artifícios e métodos
de amplificar o domínio do homem sobre os recursos – sobretudo naturais – e
as técnicas de explorá-los para a produção.
Como contraponto, o autor defende buscar um entendimento acerca do
termo desenvolvimento que considere, também, as contradições, os conflitos e as
A Agenda Urbana no Brasil: marcadores/balizas para a construção | 11
de um pacto urbano

disputas de interesse e projetos societais que derivam do desenvolvimento econô-


mico e tecnológico. Esse é o primeiro e fundamental ponto de partida.
O segundo ponto tem a ver com a forma como o entendimento historica-
mente prevalente do termo desenvolvimento envolve um esquecimento – talvez
um desprezo mesmo – pela sua dimensão espacial. Nas palavras de Souza (2003,
p. 98), “falta algo: aquilo que se pode chamar de a dimensão espacial da sociedade”.
Então, a partir do convite para que o espaço participe das reflexões associadas
ao desenvolvimento, Souza propõe que
um desenvolvimento urbano autêntico, sem aspas, não se confunde com uma
simples expansão do tecido urbano e a crescente complexidade deste, na esteira do
crescimento econômico e da modernização tecnológica. (...) [É] mas, antes e acima
de tudo, um desenvolvimento socioespacial na e da cidade: vale dizer, a conquista de
melhor qualidade de vida para um número crescente de pessoas e de cada vez mais
justiça social (Souza, 2003, p. 101).
Portanto, em um entendimento ampliado, que Souza chama de autêntico,
desenvolvimento urbano teria a ver com desenvolvimento socioespacial, melhor
qualidade de vida e justiça social.
Nessa perspectiva, o conjunto de temas que tangenciariam e informariam o
desenvolvimento urbano e que poderiam compor uma agenda urbana mostra-se
bastante amplo, com diversos rebatimentos em termos das perspectivas escalares,
setoriais e político-institucionais – federativas, no caso brasileiro. Em síntese, uma
política de desenvolvimento urbano federal envolveria diversas políticas setoriais,
indo além das tradicionais políticas setoriais urbanas (habitação, saneamento e
mobilidade), para abarcar tudo o que diz respeito às cidades e à vida cotidiana
urbana, o que, no limite, dadas as interações e a complexidade dos sistemas de
vida do planeta, implicaria lidar com temas e escalas que vão muito além da escala
urbana, estrito senso.
Para além das reflexões trazidas por Marcelo Lopes de Souza, há ainda outros
elementos que devem ser considerados em uma discussão sobre o termo desen-
volvimento urbano. Como qualquer termo socialmente construído, a noção de
desenvolvimento urbano também expressa valores (histórico-espaciais) específicos,
de modo que cada formação socioespacial, em cada contexto histórico-cultural,
possui entendimentos a respeito do que são as condições de desenvolvimento, de
qual é – ou quais seriam – a(s) régua(s) para medir o desenvolvimento, em geral,
e o desenvolvimento urbano, em particular. Em um diálogo com a proposta do
próprio autor: como se estabelecem os padrões associados à qualidade de vida?
A resposta a isso estará sempre associada a um contexto histórico-cultural específico.
Parece evidente, a partir das considerações anteriores, que é muito difícil, em
termos das políticas públicas, conceber uma política urbana capaz de operar esse
12 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

entendimento ampliado do desenvolvimento urbano. Há um desafio estruturante


quando se parte do entendimento do desenvolvimento urbano para se pensar no
escopo da política urbana e nas suas efetivas condições operativas; (um desafio)
que tem a ver com todas as chamadas políticas públicas espaciais2 e que envolve
a tensão existente entre estas e as políticas setoriais. O entendimento da noção
de desenvolvimento quando “aterrissa” no território, seja em qual for a escala,
trará sempre consigo uma perspectiva totalizante, porque isso faz parte do que é o
território, o espaço. São totalidades. E as políticas públicas, construídas de forma,
digamos, fragmentadas, parciais, setoriais, não conseguem acolher a totalidade que
o território impõe. Tornar entendimentos desse tipo operativos para as políticas
públicas é um desafio que demandaria soluções sistêmicas e articuladas para o
desenho, a implementação, o monitoramento e a avaliação das políticas públicas.
Soluções que esbarram em diversos obstáculos, sejam estes conceituais/perceptivos,
tecnológicos e operacionais ou político-institucionais.
Ainda assim, mesmo tendo esse enorme desafio em conta, o processo de cons-
trução da PNDU não pode abdicar de propor uma política que seja multiescalar,
intersetorial (integrada a partir do território), interfederativa – considerando-se
a estrutura federativa brasileira – e interinstitucional, com base em uma gover-
nança multinível. Ainda que não se consiga propor uma política urbana – ou
seja, uma política pública espacial da escala urbana, associada à esfera municipal
de poder – que reflita o entendimento do desenvolvimento urbano “autêntico”,
pelas limitações apontadas anteriormente, há de ter-se a noção ampliada de de-
senvolvimento urbano como um norte para a política, de forma mais próxima
ao entendimento de desenvolvimento urbano como qualidade de vida e justiça
social no território, no espaço.
Há, portanto, de recorrer-se a uma concepção dialética – e estratégica – do
que pode ser a política urbana nesse contexto. Se, de um lado, a política urbana
dificilmente poderá ir além de determinados limites associados a seu escopo restrito,
melhor dito, restringido, e às suas formas de operacionalização, de outro, há de
se ter os desafios, as tensões e as contradições em perspectiva e buscar construir
uma política o mais multiescalar, intersetorial, interfederativa e interinstitucional
possível, com os recursos, os apoios e as forças disponíveis. Dessa forma, mira-se
um horizonte futuro em que a superação desses desafios seja, por assim dizer, uma
possibilidade menos intangível.
Ao buscar trazer para o processo de construção da PNDU as reflexões
em torno do termo desenvolvimento urbano, cujo sentido ampliado se reforça
pela agregação do adjetivo sustentável, que envolve tanto suas várias dimensões
quanto sua durabilidade, sua longevidade, faz-se necessário também construir as

2. Sobre as políticas públicas espaciais, ver Steinberger (2006).


A Agenda Urbana no Brasil: marcadores/balizas para a construção | 13
de um pacto urbano

mediações com o campo operacional das políticas públicas. Ou seja, os enten-


dimentos acerca do desenvolvimento urbano sustentável devem refletir-se nas
propostas da construção da política, que envolvem seu desenho programático e
seus elementos: agentes/atores, ações, responsabilidades e recursos.
Tendo-se isso em conta, para entender os desafios da agenda urbana no Brasil
e as possibilidades de um novo pacto urbano, apresenta-se, a seguir, uma breve
caracterização da história recente da política urbana brasileira. Esta compreende
as três décadas que se seguiram à CF/1988.

3 NOTAS SOBRE A RECENTE TRAJETÓRIA DA POLÍTICA URBANA NO BRASIL


PÓS-1988 E DE POR QUE É OPORTUNO UM NOVO PACTO URBANO
Tomando-se o período que vai da CF/1988 até 2018, quando se encerra um ciclo
da política urbana brasileira, esta seção procura explorar a forma como o enten-
dimento acerca do desenvolvimento urbano vai se transformando e de como o
campo jurídico-normativo acolhe e materializa esse entendimento. Conforma-se,
assim, a base legal que sustentará as experiências que marcarão esse longo período.
A CF/1988 consiste no marcador temporal de início do período mais recente
da política urbana do país, ao dedicar um de seus capítulos ao tema, por meio dos
arts. 182 a 183 do Título VII, da Ordem Econômica e Financeira. De partida, a
despeito da importância da presença destacada da questão urbana no texto cons-
titucional, resultado da mobilização de setores sociais, abrigados no Movimento
Nacional pela Reforma Urbana, a inserção do capítulo da política urbana nesse
título que trata das atividades econômicas, da política agrícola e do sistema finan-
ceiro revela que a política urbana é percebida como uma política instrumental para
a promoção do desenvolvimento econômico-financeiro do país – talvez por lidar
com o tema da propriedade urbana.
Apesar dessa inserção com viés econômico, o texto da CF/1988 estabelece
que a política, voltada para a promoção do desenvolvimento urbano, “tem por
objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir
o bem-estar de seus habitantes” (Brasil, 1988). Ainda que a norma não conceitue
objetivamente o que são as funções sociais da cidade e como se pode caracterizar
e aferir o bem-estar da população, não se pode negar que um entendimento pro-
gressista, ainda que impreciso e carecedor de um esforço de regulação posterior,
prevaleceu, em especial na redação do art. 182.
Esse artigo, inclusive, foi aquele que estabeleceu a obrigatoriedade de elabora-
ção de planos diretores para alguns casos específicos de municípios, no que acabou
sendo uma das poucas diferenciações determinadas pela norma federal no que diz
respeito ao seu olhar sobre os municípios brasileiros – um olhar, de resto, homo-
geneizador e profundamente desatento para as diferenças socioespaciais do país.
14 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

De todo modo, tanto a noção abrangente de funções sociais da cidade quanto


aquela talvez ainda mais abrangente – talvez até subjetiva – de bem-estar apresentam
um entendimento amplo do que seria o desenvolvimento urbano, compatível com
aquele que se discutiu na seção anterior.
A partir da vigência da CF/1988, independentemente das imprecisões e dos
“compromissos dilatórios” (Bercovici, 2009) deixados para tratativas posteriores,
seguiu-se um período fértil para a política urbana brasileira, sobretudo na escala
local, com experimentações que passaram a ocorrer em várias cidades brasileiras,
especialmente nas regiões Sul e Sudeste. Esse conjunto de experimentos contribuiu
para o fortalecimento de ideias e teses em torno do direito à cidade e teve reco-
nhecimento internacional, como ficou evidenciado na destacada participação da
delegação brasileira na Conferência Habitat II, em Istambul, em 2006.
Nos anos seguintes à CF/1988, sob os efeitos da redemocratização e no
contexto dos processos de municipalização ensejados pela própria Carta constitu-
cional, a tônica da política urbana no Brasil foi marcada pela dinâmica daquelas
experiências municipais. Esse conjunto de elementos confluiu para a aprovação do
EC, que viria regulamentar o capítulo de política urbana da CF/1988, trazendo
maior amparo normativo e segurança jurídica para as diversas práticas que já
vinham ocorrendo na escala local.
A prevalência da escala local e da esfera municipal na política urbana e nas
práticas observadas a partir da CF/1988 tem relação direta com o fato de a Carta
não atribuir nenhum papel à União no texto constitucional, no capítulo que trata
da política urbana. O tema aparece como de interesse local, e todas as diretrizes
e definições legais devem ser elaboradas, aprovadas e executadas pelo governo
municipal, por meio da prefeitura e da câmara de vereadores.
O EC, publicado treze anos após a promulgação da CF/1988, vem reforçar,
em grande medida, aquilo que a Carta já havia estabelecido. As diretrizes da política
urbana enumeradas no art. 2o do EC reforçam o entendimento ampliado da noção
de desenvolvimento urbano presente na Carta constitucional e representariam, se
levados a cabo – ou a sério – um desafio significativo para a construção de uma
PNDU, uma vez que esta deveria considerar uma multiplicidade de aspectos que
vão além de uma visão circunscrita ao planejamento urbano e seus instrumentos.
A política urbana, nesse sentido, não se limitaria à oferta de serviços urbanos pelo
poder público municipal, e este, é de certa forma, o que faz do direito à cidade o
mote que melhor traduz a política urbana “à brasileira”, ao menos em termos de
uma concepção idealista.
No EC, ainda que a maior parte das normas diga respeito ao governo mu-
nicipal, o art. 3o dedica-se a explicitar as (poucas) competências da União em
A Agenda Urbana no Brasil: marcadores/balizas para a construção | 15
de um pacto urbano

matéria de política urbana. Segundo a redação atualmente vigente do EC, são


competências da União:
I – legislar sobre normas gerais de direito urbanístico;
II – legislar sobre normas para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios em relação à política urbana, tendo em vista o equilíbrio
do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional;
III – promover, por iniciativa própria e em conjunto com os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios, programas de construção de moradias e melhoria das con-
dições habitacionais, de saneamento básico, das calçadas, dos passeios públicos, do
mobiliário urbano e dos demais espaços de uso público;
IV – instituir diretrizes para desenvolvimento urbano, inclusive habitação, sanea-
mento básico, transporte e mobilidade urbana, que incluam regras de acessibilidade
aos locais de uso público;
V – elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de
desenvolvimento econômico e social (Brasil, 2001).
Remetendo aos artigos que estavam sendo regulamentados, o EC estabe-
leceu as diretrizes gerais (art. 2o) e elencou os instrumentos da política urbana,
com destaque para o plano diretor – ainda circunscrito a tipologias específicas
de municípios – e para os instrumentos que favoreceriam a gestão democrática
das cidades, mas, no espírito do que já constava na CF/1988 – e não poderia ser
mesmo diferente disso –, cabe ao poder municipal a tarefa da execução da polí-
tica urbana, restando um papel normativo e articulador mais geral para a União.
Ou seja, afora a determinação da extensa e ampla lista de diretrizes gerais que
dialogam com uma versão ampla e totalizante da noção de desenvolvimento ur-
bano, não há nenhum indício de arranjos de governança mais robustos/complexos
sobre o tema, nenhuma proposta de governança multinível, nenhum arranjo para
a governança das diferentes tipologias municipais e supramunicipais existentes no
país. Nenhuma diretriz específica para as regiões metropolitanas (RMs). A única
percepção um pouco mais ampliada da perspectiva multiescalar da política urbana
aparece no inciso V do art. 3o apresentado anteriormente, quando se atribui à União
a competência de elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação
do território e de desenvolvimento econômico e social. A integração das políticas
públicas espaciais não é percebida como relevante e é insuficientemente abordada
pelo EC.
Poucos anos após o início da vigência do EC, em 2003, a criação do Ministério
das Cidades (MCidades) e o estabelecimento do ciclo das conferências da cidade
seriam a grande novidade da política urbana brasileira.
16 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Ainda que sob a herança de um arcabouço jurídico-normativo que frag-


menta a gestão do território e que pouco considera as interações multiescalares, o
MCidades estruturou-se e procurou ser protagonista no que diz respeito à orien-
tação da execução da política urbana nos municípios brasileiros.3
De todo modo, do ponto de vista institucional, a estrutura do MCidades
reproduzia a clássica compartimentação da política urbana entre, de um lado, as
políticas setoriais urbanas – em especial aquelas explicitadas no art. 3o do EC – e,
de outro, a secretaria responsável pelos chamados programas urbanos, nos quais
se desenvolveram ações de apoio aos municípios no campo da gestão urbana, bem
como intervenções urbanísticas, em consonância com o que dispõe o inciso III do
mesmo art. 3o do EC.
A experiência desse ciclo de políticas públicas, iniciado em 2003 e finaliza-
do no período 2017-2018, envolve um robusto arcabouço de políticas públicas
urbanas de orientação nacional e uma trajetória, de cerca de quatorze anos (2003-
2017), de existência efetiva do Conselho Nacional das Cidades (ConCidades) e
dos ciclos de conferências nacionais das cidades (CNCs), instâncias e estruturas de
participação que foram palco de debates e deliberações importantes, como aquela
que propôs a consolidação e a formalização da PNDU e do Sistema Nacional
de Desenvolvimento Urbano (SNDU), desde o primeiro ciclo de conferências.
No TD que serve de ponto de partida para este texto, faz-se uma apresentação
mais detalhada das experiências que ocorreram ao longo desses anos de existência
do MCidades e discute-se sobre a existência ou não de uma PNDU “na prática”, a
despeito de esta não ter sido formulada e editada, nos moldes da Política Nacional
de Desenvolvimento Regional (PNDR).
Sem querer retomar e aprofundar essa discussão, ao olhar-se para a recente
trajetória da política urbana no Brasil, no contexto do federalismo tripartite vi-
gente a partir da CF/1988, no qual o papel da União no que concerne ao tema
aparece de forma tímida em apenas um artigo do EC, cabendo aos municípios
a execução da política, defende-se aqui a tese de que a pactuação de uma agenda
urbana, observadas a perspectiva interescalar e as tensões existentes nas relações

3. A campanha dos planos diretores participativos e a produção de material de orientação e apoio aos municípios
constituem ações que ilustram muito bem esse esforço. A avaliação dessa experiência pode ser encontrada em Santos
Junior e Montandon (2011).
A Agenda Urbana no Brasil: marcadores/balizas para a construção | 17
de um pacto urbano

interfederativas, é oportuna e necessária, sobretudo no contexto contemporâneo


de um mundo transicional.4

4 POR UM (NOVO) PACTO URBANO NO BRASIL


Nas seções anteriores, buscou-se refletir sobre os entendimentos em torno do
que seria o desenvolvimento urbano e de como a política urbana deveria refletir
tais entendimentos, fazendo-se uma breve digressão sobre como essas reflexões
e esses entendimentos pactuados se deram na recente história da política urba-
na no país. Nesta seção, resgatam-se – sublinham-se, rediscutem-se – alguns
dos elementos apresentados anteriormente, por entender que são importantes
marcadores, balizadores que devem ser considerados na construção da PNDU.

4.1 Visão territorial e município: um balizador de partida


A CF/1988 propôs um pacto social que reconhece um amplo conjunto de direitos.
Desde sua promulgação, há um processo tanto intenso quanto irregular, lento e
instável de efetivação desses direitos. Ainda assim, os avanços trazidos pela Carta
mostram-se, sobretudo nos períodos de instabilidade político-institucional, valo-
rosos e referenciais.
No que diz respeito à visão territorial do país, contudo, a CF/1988 traz um
olhar pobre, de limitada atenção para as desigualdades socioespaciais do país nas
diferentes escalas. As desigualdades da escala macrorregional mereceram maior
atenção no texto constitucional, mas, por sua vez, as escalas municipal e metro-
politana foram abordadas de forma mais que modesta.
Pode-se argumentar, com alguma justiça, que não caberia ao texto constitu-
cional detalhar elementos que pudessem aprofundar uma visão territorial do país,
sobretudo em escalas menores. Ainda assim, o fato é que prevalece uma visão
simplista da dimensão territorial na Carta Magna.
A regulamentação do capítulo dedicado à política urbana na CF/1988, o EC
de 2001, pouco contribuiu para oferecer uma melhor abordagem territorial para
o capítulo de política urbana. Tanto na CF/1988 quanto no EC, há apenas um
caso de uso de caracterizações tipológicas que permitem lidar com a diversidade

4. A contemporaneidade coleciona um extenso conjunto de evidência que dão conta de transformações socioe-
conômicas, geoambientais, culturais e institucionais importantes no mundo, em escala global. Há um mundo em
transição que se manifesta no mundo do trabalho, em novos padrões de produção e consumo e nas mudanças
tecnológicas que se dão em ritmo rápido. A transição possui também uma dimensão ambiental, associada aos desafios
da sustentabilidade, em tempos de mudanças climáticas, que demandam uma visão sistêmica dos assentamentos
humanos. Valores culturais associados a um mundo cada vez mais urbano e conectado, de aceleração do tempo
e compressão do espaço, demandam soluções para os diversos desafios sociais, econômicos e ambientais, com
rebatimentos na dimensão político-institucional, em diversas direções, nem todas necessariamente convergentes,
mas que podem ser sintetizadas, de um lado, nas demandas por uma governança multinível “inteligente” e, de
outro, no aprofundamento dos mecanismos de transparência e na gestão democrática (urbana).
18 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

dos municípios do país, e isso se dá especificamente no tema da política urbana,


ao restringir-se a obrigatoriedade de uso do principal instrumento da política para
alguns municípios.
Na CF/1988, a única diferenciação que se faz entre os municípios brasileiros
aparece no capítulo da política urbana, quando a exigência por elaboração de planos
diretores é estabelecida apenas para cidades com mais de 20 mil habitantes. Esse
olhar especial para alguns municípios é mantido e ampliado pelo EC, passando
a englobar também: as cidades de RMs e aglomerações urbanas; aquelas que pre-
tendem utilizar os instrumentos voltados para coibir o solo urbano não edificado,
subutilizado ou não utilizado (§ 4o do art. 182 da CF/1988); as cidades integrantes
de áreas de especial interesse turístico; as inseridas em área de influência de empre-
endimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional
ou nacional; e aquelas incluídas no cadastro nacional de municípios, com áreas
suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas
ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos (art. 41 do EC).
Entretanto, o estabelecimento legal dessa distinção, desse único tratamento
diferenciado para as cidades brasileiras, pouco contribui para um entendimento mais
aprofundado das desigualdades socioespaciais do país. O que se tem, no final das
contas, é uma mensagem restritiva do que seria a matéria da política urbana – ou
seja, das ações no campo das políticas públicas voltadas para promover o desenvol-
vimento urbano, porque a interpretação legal é que o uso do principal instrumento
de política urbana apenas se justifica nas cidades em que há ou pode haver razões
para tratar-se da legislação urbanística estrito senso.
Por fim, para a grande maioria das cidades brasileiras – terminologia utilizada
tanto pela CF/1988 quanto pelo EC, a qual somente reforça o entendimento restrito
do interesse urbano –, o principal instrumento de política urbana não é necessário.
A adoção dessa diferenciação, ao final das contas, mostra-se mais problemática
do que alvissareira. O corte populacional de 20 mil habitantes em uma cidade
consiste no marcador para a adoção do instrumento maior da política urbana.
Um corte ad hoc que não guarda qualquer relação com uma visão territorial do país.
Se, de um lado, a diferenciação não contribui em nada para entender e pensar em
políticas públicas que considerem a diversidade dos entes municipais no país, de
outro, sua adoção leva a entender que o tema da política urbana é exclusivo para
um grupo de municípios que detém determinado perfil demográfico, econômico
e, no limite, que faz parte de um arranjo populacional e institucional mais com-
plexo, que é o caso das RMs.
Desse modo, tem-se que o entendimento do desenvolvimento urbano cons-
tante tanto na CF/1988 quanto no EC, tal como foi visto anteriormente, é mais
amplo e que a política urbana deve promover esse desenvolvimento socioespacial
A Agenda Urbana no Brasil: marcadores/balizas para a construção | 19
de um pacto urbano

que promove qualidade de vida e justiça social. Faz-se então a seguinte indaga-
ção: como não exigir da maior parte dos municípios do país a pactuação do que
deveria ser o projeto de cidade, condizente, por óbvio, com as especificidades de
cada cidade, por meio da política urbana, a partir do seu principal instrumento?
Decerto o escopo e o perfil dos planos diretores devem variar de acordo com
as características de cada município. Contudo, essa adaptação do instrumento à
realidade local não seria mais interessante do que simplesmente desobrigar os entes
locais a adotarem esse instrumento de planejamento, que de resto se articularia
a outros instrumentos de planejamento orçamentário que os municípios já são
obrigados a possuir?
A partir da CF/1988, um intenso processo de municipalização das políticas
públicas, notadamente no campo social, deu-se no país, obrigando os municípios
a assumirem diversas competências e atribuições das quais antes não se ocupavam
direta ou exclusivamente.5
Diversos sistemas, como o Sistema Único de Saúde (SUS) ou, posterior-
mente, o Sistema Único de Assistência Social (Suas), passaram a exigir que os
municípios tivessem certas instâncias participativas, muitas destas de caráter
deliberativo, para lidar com a gestão das políticas públicas. Tudo isso de forma
mandatória e homogeneizante – ou seja, sem considerar as características socio-
econômicas, geoambientais, regionais ou político-institucionais dos municípios.
O município passou a receber atribuições, muitas vezes sem possuir os recursos
adequados para exercê-las, independentemente de seu porte, de sua inserção
regional e de seus atributos.
Em todas as demais áreas das políticas públicas e da gestão pública, o mu-
nicípio possui um papel importante na execução de políticas e responsabilidades
quanto à gestão, devendo ter determinadas estruturas para lidar com as atribuições
que passaram à competência local. Contudo, no que diz respeito à política urbana,
a visão que decorre da diferenciação entre os municípios é de que nem todos os
municípios precisam lidar com a promoção do desenvolvimento urbano.
No que diz respeito a esse primeiro balizador, cumpre aqui destacar que, ao
defender-se a obrigatoriedade do processo de gestão urbana, a partir da determi-
nação e da implementação de seu plano diretor, pactuado pelos agentes/atores
locais, não se está aqui fazendo uma apologia ingênua ou acrítica do que vem
sendo a experiência de muitos planos diretores elaborados no país a partir do EC.
A bibliografia dá conta de diversas leituras críticas sobre esse instrumento,6 que

5. Há uma extensa bibliografia dedicada a isso, como exemplificam as publicações de Arretche (2000), Santos Junior
(2001), Sposati e Falcão (1990), entre tantas outras.
6. Ver, entre outros, Villaça (2005) e Bueno e Cymbalista (2007).
20 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

precisam ser consideradas, inclusive, para repensar o que deve ser um instrumento
desse tipo na contemporaneidade. Contudo, o que se argumenta aqui é que, se
este é o instrumento básico da política urbana, não seria adequado e compatível
com o entendimento de desenvolvimento urbano, constante tanto na CF/1988
quanto no EC, estender a obrigação de construí-lo para todos os municípios do
país? Não seria pedagógico que os agentes/atores econômicos, sociais e políticos
de todos os municípios precisassem discutir seu projeto de cidade (de município),
criando balizas orientadoras do desenvolvimento local?
Enfim, o que se argumenta aqui é que a política urbana deve ser capaz de
construir uma visão de território que considere a diversidade do território brasileiro
em suas diferentes escalas, a começar da escala municipal, envolvendo todos os
municípios do país.

4.2 Visão territorial para além do município: os arranjos socioespaciais


A limitada visão territorial prevalecente na CF/1988 aportou um olhar fragmentado
e fragmentador sobre o território nacional, em boa medida alimentado pelo movi-
mento municipalista e pela resistência à tecnocracia e ao autoritarismo centralista
vigentes no período que antecedeu a retomada democrática. Isso contribui para
que os arranjos socioespaciais brasileiros não recebessem tratamento adequado por
parte da Carta Magna.
Como se sabe, a CF/1988 delegou aos estados a competência para “instituir
regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões (...) para integrar a
organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum”
(Brasil, 1988, § 3o do art. 25). A partir disso, processos ambivalentes de fragilização
do planejamento e da gestão metropolitana deram-se de forma paralela à metropoli-
zação institucional, sem que a matéria tenha recebido atenção por parte da União.7
Apenas com o Estatuto da Metrópole (EM), Lei Federal no 13.089, de 12
de janeiro de 2015 (Brasil, 2015), ocorre a edição de uma norma que busca, de
um lado, conter a metropolização institucional – processo que não chega a re-
presentar um problema em si mesmo –, e, de outro, oferecer diretrizes mínimas
para o planejamento e a gestão metropolitana no país, envolvendo instrumentos
e procedimentos que permitem à União reconhecer aquelas RMs que possuem
uma gestão plena, a qual lhe habilita a receber recursos orçamentários da União.
A análise da questão metropolitana encontra-se em outro capítulo desta publi-
cação e, como dito anteriormente, vem sendo nosso objeto de estudo há um tempo.

7. No projeto Governança Metropolitana no Brasil, desenvolvido desde 2012 no Ipea, vem se produzindo diversas
publicações, entre relatórios de pesquisa e livros, nas quais essas análises podem ser encontradas – ver, especialmente,
Costa e Tsukumo (2013) e Costa et al. (2021b). E, no âmbito do apoio à construção da PNDU, foi elaborada uma nota
técnica sobre o tema, a qual pode ser encontrada na plataforma Brasil Metropolitano (Marguti et al., 2020).
A Agenda Urbana no Brasil: marcadores/balizas para a construção | 21
de um pacto urbano

Para além do número de RMs legalmente instituídas e dos desencaixes entre os


arranjos populacionais identificados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
tatística (IBGE), sua classificação hierárquica e a institucionalização dos arranjos
supramunicipais (RMs, aglomerações urbanas etc.), é importante que a política
urbana ofereça ao país um entendimento segundo o qual a União reconheça a
diversidade desses arranjos, a partir de critérios que sejam nacionais, apresentando
políticas públicas adequadas a cada caso, sem que isso confronte a competência
que a CF/1988 delegou aos estados.
No que diz respeito aos marcadores/balizadores da PNDU, considerando-se
essa discussão em torno dos arranjos socioespaciais e do reconhecimento diferencial
que a União deve ter em relação a esses arranjos, é importante sublinhar o prota-
gonismo das cidades na promoção do desenvolvimento socioespacial – tema que
será abordado adiante. Nesse sentido, qualificar os espaços urbanos do país, tendo
como referência sua rede de cidades – a que se tem e a que se quer ter – é uma
estratégia de desenvolvimento que favorece um olhar interescalar para a política e
que promove o diálogo entre as diferentes políticas públicas espaciais.
Ou seja, desenvolver e adotar tipologias relativas a arranjos socioespaciais, for-
malizados ou não, é importante tanto para a escala supramunicipal e seus diferentes
arranjos quanto para conceber, desenhar e implementar políticas interescalares,
nas quais há efeitos cruzados e sinergias entre as diferentes escalas.

4.3 Olhar a PNDU a partir do (novo) protagonismo das cidades


O primeiro marcador apresentado nesta subseção diz respeito à escala municipal,
ponto de partida para uma visão territorial que considere a diversidade socioespacial do
país, tendo o município como unidade político-administrativa. O segundo marcador
ressalta a escala supramunicipal e as possibilidades que esta oferece no que se poderia
chamar de mediação interescalar, no qual o entendimento do papel que as cidades
desempenham ou podem desempenhar na rede de cidades e na própria promoção
do desenvolvimento regional se mostra estratégico.
Nesta subseção, procura-se sublinhar o papel das cidades como protagonistas
do desenvolvimento socioespacial, seja como palco privilegiado das oportunidades
que surgem na nova economia, seja no sentido de buscar soluções para os problemas
decorrentes das desigualdades socioespaciais que se manifestam, cada vez mais, nos
espaços urbanos, nesses tempos de transição.
Desde a crise financeira global do período 2007-2008, ficou evidente em
vários países que, ao contrário dos ganhos obtidos com a bolha imobiliária, que
eram apropriados de forma concentrada por alguns agentes econômicos, os efeitos
e as consequências da crise afetavam mais fortemente alguns segmentos sociais
vulnerabilizados, deixando marcas profundas em algumas cidades. Essa crise, que é
22 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

a expressão financeira de uma crise mais ampla associada aos tempos transicionais,
coloca as cidades como protagonistas desses tempos, em movimento que tem a
ver com a valorização do local. Às manifestações de vulnerabilidade trazidas pela
crise para o espaço urbano correspondem também a oportunidades para a criação
e o desenho de soluções criativas, baseadas no estímulo e no uso de recursos do
território, ensejando o florescimento do que tem sido chamado de “novo munici-
palismo”, segundo Blanco e Gomà.
O mundo local na mudança de época, entendido como um âmbito em que são
possíveis respostas criativas, confluências em um novo espaço público compartilhado
no qual se articulam os bens comuns: políticas públicas com vontade de construção
de uma nova política democrática. Um novo municipalismo para a mudança de
época; dizemos: o municipalismo do bem comum (Blanco e Gomà, 2016, p. 20,
tradução nossa).
Em oposição a um municipalismo autocentrado, de visão curta, esses autores
vislumbram um novo municipalismo, nascido de contexto de mudanças e tensões,
mas que compreende as dimensões estrutural, multidimensional e interescalar
desse momento sócio-histórico.
As manifestações locais das crises, agravadas, no período mais recente, pela
pandemia, reforçam o papel dos governos locais na gestão dos aspectos cotidianos
e na promoção do bem-estar social, ainda que estejam claras as limitações dessa
esfera em lidar com processos econômicos que são globais. De um lado, os efeitos
da crise global e de suas variantes nacionais/regionais rebatem-se no território e
manifestam-se nos municípios e nas crescentes demandas por políticas sociais; de
outro, os movimentos no campo econômico mostram-se bastante descolados da
esfera local, usam os recursos locais a partir de lógicas globais e deixam no território
uma série de efeitos que os governos e as populações locais precisam enfrentar, com
os recursos que possuem. Dessas tensões e contradições, deriva a necessidade de
dar-se respostas locais para os efeitos de problemas que não são gerados, na maior
parte das vezes, localmente. E é isso, esse misto de problemas, tensões, desafios e
oportunidades, que coloca o município como protagonista nesses novos tempos.
Esse protagonismo da esfera local varia para os diferentes perfis de muni-
cípios existentes em cada lugar. No caso do brasileiro, a diversidade de cidades
e municípios que compõem o país, em suas diversas tipologias, permite antever
variadas formas de lidar – e responder aos – com os desafios dirigidos à esfera
local. As cidades brasileiras possuem diferentes capacidades de resposta em face
dos problemas que enfrentam e, mais que isso, têm distintos escopos de prota-
gonismo, podendo assumir importantes papeis no que diz respeito à promoção
do desenvolvimento nas suas áreas de influência.
A Agenda Urbana no Brasil: marcadores/balizas para a construção | 23
de um pacto urbano

Tendo-se isso em consideração, a PNDU deve, mais uma vez, cotejar a


diversidade interescalar existente no território brasileiro e favorecer iniciativas de
desenvolvimento local, tendo o território como sua base, seu ponto de partida.
Nesse sentido, mais uma vez, deixar de trazer para a política urbana uma
perspectiva ampliada de desenvolvimento urbano seria dar as costas às oportu-
nidades que se apresentam no tempo presente, com suas tensões e seus desafios.

4.4 Balizadores institucionais/operacionais: a política na prática


O quarto elemento balizador para pensar-se na PNDU tem a ver com a operação
da política. Como dito anteriormente, políticas públicas espaciais têm sempre o
desafio de trazer o território para o centro da política. E o território, como totalidade,
tensiona o campo político-institucional, com sua necessidade de operacionalizar
as ações normativas e de intervenção.
Nesse sentido, ao menos dois esforços fazem-se necessários quando se trata
de pensar na operacionalização da política. Primeiro: conseguir uma integração
mínima da política no território, buscando-se superar as tensões entre as políticas
setoriais, especialmente as políticas setoriais urbanas, e a política urbana conquanto
uma política pública espacial. Segundo: refletir sobre as relações interfederativas,
com o foco no papel da União, de forma articulada a uma governança multinível
e multiescalar.

4.4.1 Buscar superar as tensões entre políticas setoriais e políticas públicas espaciais
As políticas públicas associadas à política urbana envolvem elementos que
compõem uma agenda específica, que diz respeito a seu conteúdo finalístico,
conformando uma política urbana estrito senso (apoio à gestão e ao planejamento
urbano; ao desenho, à implementação e ao monitoramento e à avaliação dos
instrumentos de política urbana e seu financiamento; às informações relativas ao
desenvolvimento urbano; ao controle social; e à participação cidadã). Além disso,
também abarcam as chamadas políticas setoriais urbanas (mobilidade urbana,
saneamento básico e habitação), que possuem relação direta com a formação
socioespacial das cidades, o que demanda a necessidade de cotejar suas ações
programáticas com os efeitos que produzem no território.
As intervenções das políticas setoriais, em geral, e das políticas setoriais urbanas,
em particular, sobre o território não são neutras. Produzem efeitos e transformam
o território. Portanto, não há como falar em política urbana de forma dissociada
das políticas setoriais, sobretudo das políticas setoriais urbanas.
As relações entre as políticas setoriais e as políticas territoriais, em geral,
envolvem tensões, disputas e conflitos de grande envergadura, que muitas vezes
ficam sem solução. A coordenação das políticas setoriais a partir da gestão do
24 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

território encontra resistências. Algumas se justificam pelas particularidades das


políticas setoriais e pela complexidade que o desenho e a execução de seus progra-
mas impõem; outras remetem às diferenças relativas às estruturas institucionais
necessárias para lidar com seus programas e aos recursos orçamentários mobilizados,
normalmente muito superiores àqueles disponibilizados para estruturar políticas
urbanas estrito senso.
Assim, as políticas públicas urbanas envolvem elementos de conteúdo, que
não apenas dizem respeito à gestão do espaço urbano, mas também abarcam ele-
mentos associados aos usos concorrentes desse espaço, inclusive aqueles associados
às políticas setoriais. Ao abarcarem elementos de características e implicações tão
distintas, as políticas públicas urbanas acabam se situando em um campo instável.
Encerrar-se no campo de seu conteúdo específico sem considerar as necessi-
dades associadas às demais políticas urbanas com impacto no território empobrece
e reduz a potência das políticas que querem promover o desenvolvimento urbano;
assumir um papel central na concretização da intersetorialidade, em contrapartida,
é um desafio nada trivial, que exige repensar formas de promover a integração, a
articulação e a coordenação dessas políticas. Um desafio regulatório e de gover-
nança, pelo menos.
Há, portanto, um desafio intrínseco à política urbana, que por sua natureza,
transita entre sua dimensão territorial e sua permeabilidade às políticas setoriais,
cujo enfrentamento informará sobre a qualidade e a potência do que pode a PNDU.
Há de se identificar e buscar formas de estabelecer pontos de contato entre
as políticas setoriais urbanas e os programas urbanos que compõem a política ur-
bana. Ainda que haja razões gerenciais e operacionais para lidar com as políticas
de forma separada, faz-se necessário criar mecanismos, procedimentos e práticas
que favoreçam uma versão integrada da política, tendo-se por base o território.
Há enormes desafios nesse sentido. Desafios que têm a ver não apenas com
a gestão cotidiana dos programas que compõem as políticas, mas também dizem
respeito à forma como os recursos de investimentos em infraestrutura urbana são
alocados no país. Esse é o caso das emendas parlamentares que se mostram descola-
das do que poderia ser um conjunto mais articulado de investimentos no território
associado às estratégias de promoção do desenvolvimento socioespacial do país.
Sem dúvida, os desafios para a integração das políticas públicas no território
e para a superação das tensões entre políticas setoriais e políticas públicas espaciais
parecem de difícil solução. Entretanto, os ganhos decorrentes da suplantação desses
obstáculos são proporcionalmente maiores, porque requalificam os territórios e
representam novas possibilidades de desenvolvimento socioespacial, em termos
multiescalar e intersetorial.
A Agenda Urbana no Brasil: marcadores/balizas para a construção | 25
de um pacto urbano

Por fim, uma política urbana minimamente associada a uma percepção mais
avançada de desenvolvimento urbano não pode prescindir de enfrentar os desafios
e as tensões de coordenação das políticas públicas. E isso nos leva ao segundo
ponto de atenção.

4.4.2 As relações interfederativas e a governança multinível


O segundo elemento que tem a ver com a operacionalização da política e o bali-
zador institucional diz respeito às relações interfederativas e à construção de uma
governança multinível.
No que tange às relações interfederativas, a CF/1988 deixou um legado po-
sitivo em termos do reconhecimento de direitos. Entretanto, legou também um
campo nebuloso de tensões decorrentes das sobreposições de competências e das
necessidades de articulação e coordenação para o desenho e a implementação de
políticas públicas no país. Como se efetivar direitos sem a articulação e a coorde-
nação das políticas públicas? Sem que os entes da Federação tenham uma atuação
minimamente coordenada?
No que diz respeito à governança multinível, o desafio tem a ver tanto com
a construção institucional e operacional da política, que envolve as diferentes
esferas governamentais, quanto com a consolidação da gestão democrática, com a
participação dos diversos segmentos sociais.
O texto constitucional deixou muitos compromissos dilatórios para serem
equacionados, regulamentados e ajustados, a partir de sua promulgação. De certa
forma, esses compromissos expressam os limites para a construção de acordos na
redação da Carta, ficando a regulamentação e a determinação de algumas regras
para acordos a serem construídos posteriormente.
Adicionalmente, embora o espírito geral da CF/1988 seja o estabelecimento
de uma federação por cooperação entre os entes, na prática, o federalismo brasileiro
tem se mostrado pouco cooperativo, pouco solidário. Seja a guerra fiscal entre es-
tados e/ou entre municípios – que a reforma tributária proposta pelo ministro da
Fazenda Fernando Haddad deverá equacionar –, seja a deficiência de cooperação no
âmbito das RMs, diversas são as evidências sobre as falhas do federalismo brasileiro.8
Essa situação não se resolve em um passe de mágica. Os sistemas e as estruturas
que conformam o federalismo brasileiro não serão alterados no curto prazo, e as
dificuldades para o estabelecimento de relações cooperativas tendem a permanecer.
Contudo, é necessário estimular a construção de relações interfederativas mais
“positivas”. Na verdade, o sucesso da PNDU depende, entre outros fatores, de
governos locais, estaduais e federal serem capazes de edificar relações e interações

8. Para uma análise dos obstáculos que dificultam a cooperação metropolitana, ver Garson (2009).
26 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

transparentes, sólidas e solidárias, que permitam o desenvolvimento de confiança.


É preciso encarar a desconfiança em – e entre as – instituições e entidades políticas
e de governo para se construir políticas eficazes.
O olhar sobre a totalidade do território brasileiro deveria contribuir para superar
a fragmentação que, de certa forma, foi estimulada pelo quadro jurídico-normativo
brasileiro. Uma política multiescalar e intersetorial contribui para a construção de
uma agenda e de um pacto urbano que promova melhores relações interfederativas
e que contribua para lidar com a desconfiança institucional e as disputas existentes
no quadro atual. Não é um desafio trivial, mas precisa ser enfrentado.
Um caminho para lidar com esse desafio tem a ver com a construção de um
quadro normativo objetivo e transparente, no qual os papéis dos entes fiquem mais
claros e os ganhos decorrentes da ação solidária e articulada entre os agentes/atores
econômicos e políticos sejam evidentes.
Nesse sentido, tanto há de reconhecer-se o papel dos municípios na execu-
ção, “na ponta” da política urbana, quanto ter clareza sobre o papel dos estados e,
sobretudo, da União, seja no sentido de fornecer orientações e apoiar as diversas
tipologias de municípios existentes no país, seja no sentido de assumir responsa-
bilidades no que diz respeito às ações que concernem aos interesses supralocais,
devendo haver critérios objetivos e claros a respeito do que são interesses locais e
do que são interesses supramunicipais, regionais etc.
É preciso ter transparência, clareza e objetividade no desenho e na implementa-
ção das políticas públicas, bem como em procedimentos e critérios necessários para
a execução dos programas. Todos esses elementos são condições necessárias para que
se estabeleçam relações de confiança entre os entes governamentais encarregados de
atuarem, juntos, na proposição e na efetuação das políticas, com suas programáticas
e ações.
E é nesse mesmo sentido que se faz necessário também estabelecer melhores
relações entre os setores público e privado e com a população, nas diversas escalas,
esferas e instâncias da política urbana.
A governança multinível envolve não apenas o estabelecimento de melhores
relações e interações entre os governos, em suas diversas esferas, mas também dos
atores privados e cidadãos, seja na formulação das políticas, seja na sua imple-
mentação. Nesse sentido, sobretudo na escala local, nas cidades, a construção de
políticas públicas e o apoio a experiências conduzidas por entidades privadas e/ou
por cidadãos devem ser uma prática estimulada. Da mesma forma, é necessário
encorajar e facilitar a apropriação de políticas geradas no interior de instituições
públicas pelos agentes/atores econômicos e sociais.
A Agenda Urbana no Brasil: marcadores/balizas para a construção | 27
de um pacto urbano

Mais uma vez, nada disso é simples ou acionado por alguma espécie de “botão
automático”. É necessário pensar em estratégias que estimulem a construção dessas
experiências de governança multinível, nas diversas escalas. É um projeto que mira
no longo prazo, mas que apenas pode ser atingido se constituir um dos princípios
da política e se for traduzido em orientações e estratégias que explicitem isso por
meio dos programas que compõem a política. Instrumentos de estímulo à atuação
cooperativa e solidária e de transparência e accountability no que diz respeito às
ações realizadas é um caminho possível para que as práticas urbanas contribuam
para melhorar a confiança entre agentes e atores econômicos, sociais e políticos.
Respeitando-se o marco de competências legais estabelecido pelo quadro nor-
mativo, o desafio da política urbana é conseguir colocar o território em seu centro.
E, a partir disso, buscar determinar relações baseadas em uma confiança multinível.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS OU DE COMO A PNDU DEVE ESTRATEGICAMENTE


SE ARTICULAR ÀS AGENDAS GLOBAIS
É preciso colocar o território no centro da política urbana. É necessário trazer a
dimensão socioespacial para a noção de desenvolvimento urbano. Território que
é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da política de desenvolvimento urbano.
Colocar o território no centro da política é reconhecer sua diversidade, bem
como suas especificidades sociodemográficas, geoambientais, técnico-produtivas
e político-institucionais. Mas isso é o básico. Na verdade, a abordagem centrada
no território abre possibilidades para operar a integração de políticas setoriais,
promover práticas baseadas em um olhar multiescalar e agregar agentes/atores em
torno de uma governança multinível voltada para pactuar um projeto de futuro
do território, a despeito das diferenças de interesses e perspectivas desses agentes/
atores. A visão do território remete ao enfrentamento das questões federativas e
pode ser uma chave para sua superação.
Por sua vez, com base em Costa et al. (2021a), “[n]a ausência de uma visão
de território que oriente a ação dos diferentes entes e facilite uma ação coordenada,
prevalecem os eventos episódicos e pontuais, expressões de experiências descontínuas
e de práticas que não se consolidam (Costa et al., 2021a, p. 61)”.
Por fim, nesses breves apontamentos finais, vale resgatar aqui o papel que as
agendas internacionais e transversais podem desempenhar como instrumento para
que a PNDU consiga atingir seus objetivos, digamos, mais nobres.
Estabelecer diálogos entre a PNDU e as agendas nacionais (transversais) e
globais, sobretudo dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e da
Nova Agenda Urbana (NAU), significa ampliar o debate em torno do tema das
transições estruturais do mundo contemporâneo e dos desafios que estas encerram,
28 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

envolvendo, como dito em uma nota de rodapé deste texto, mudanças na organiza-
ção e na estrutura do mundo da produção, do consumo e do trabalho; nas técnicas
e nas formas como o uso da tecnologia molda a vida cotidiana; nas mudanças
sociopopulacionais e culturais, em diferentes perspectivas; no enfrentamento das
mudanças climáticas; na gestão dos recursos naturais vis-à-vis as demandas por
soluções por novas matrizes de produção e consumo energético etc.
O Brasil possui grande tradição na reflexão sobre o desenvolvimento urbano e
já produziu experiências e noções centrais nesse campo de conhecimento e prática,
inclusive por meio de suas políticas públicas. Há muitos e variados registros da
trajetória da política urbana brasileira que devem ser referidos e utilizados para a
construção de um novo pacto urbano, como é o caso do Relatório Brasileiro para
o Habitat III (Ipea, 2016) e do TD que resgata a participação do ConCidades na
produção de um relatório para esse evento (Marguti et al., 2018).
Cotejar a agenda internacional com as reflexões acumuladas pela trajetória
brasileira constitui uma estratégia possível e potencialmente eficaz para mobilizar a
sociedade brasileira em torno da construção de um novo pacto urbano, ancorado na
superação de uma visão fragmentada do território. Em um país tão diverso e vasto,
é fundamental usar estratagemas; ferramentas que funcionem como catalisadores
dos debates e propulsores de experimentos e práticas inovadoras e alinhadas com
os objetivos desejados.
Mas não se trata, ao menos não se trataria apenas, de promover amarrações,
vínculos conceitos e de princípios entre a PNDU e as agendas globais, traduzindo-as
às peculiaridades brasileiras, em um movimento ao qual o país possui certa tradição.
Significa também, nas esferas subnacionais, estabelecer diálogos com o mundo,
dialogar e aprender com experiências bem-sucedidas, participar das redes de cidades
internacionais e inserir as cidades brasileiras no novo globo urbanizado que está sendo
constituído – e que se encontra em permanente transformação.
Essas experiências de articulação e compartilhamento de experiências e práticas
possuem grande potencial de transformação das cidades envolvidas e colaboram
para ampliar a perspectiva do mundo transicional, ainda que os problemas e os
desafios enfrentados por cada uma dessas cidades tenham cores e sons locais.
Há de ser criativo, usar recursos e adotar estratégias inteligentes que permitam
responder aos muitos desafios para a construção da política urbana brasileira, a
partir de princípios e diretrizes que permitam a promoção do desenvolvimento
socioespacial, com qualidade de vida e justiça social – como propõe a noção de
desenvolvimento urbano.
Para isso, se, de um lado, não há receita de bolo, de outro, não se parte do
zero. Há uma longa trajetória de práticas e um acúmulo considerável de reflexões,
A Agenda Urbana no Brasil: marcadores/balizas para a construção | 29
de um pacto urbano

no campo do planejamento urbano e regional, a iluminar o caminho. E, ainda que


não haja respostas prontas, a formulação de boas perguntas, de questionamentos
fundamentados, já é em si um recurso precioso, porque ajuda na construção de
respostas adequadas, bem endereçadas.
O momento atual, no qual as cidades se enchem novamente de pessoas em
situação de rua e risco, em que as condições de trabalho e renda estão agravas e
as várias facetas da crise se manifestam, pode parecer para alguns um momento
inoportuno para uma construção tão difícil e ambiciosa como a PNDU. Pode-se
questionar “como pactuar uma política urbana multiescalar, intersetorial, assentada
em uma governança multinível, em um contexto de crise?”. No entanto, sem mi-
nimizar o tamanho do desafio, dizem que em momentos de crise surgem algumas
soluções de grande potência transformadora. Esperamos que isso se confirme e
que este seja um momento auspicioso.

REFERÊNCIAS
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CAPÍTULO 2

FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O


DESENVOLVIMENTO URBANO: POSSIBILIDADES
PARA O PENSAMENTO E A AÇÃO
Maria Encarnação Beltrão Sposito1

1 INTRODUÇÃO
Os desafios para a elaboração de políticas públicas são grandes e seus autores estão
efetivamente preocupados em mover o pêndulo da teoria para a ação e desta para
aquela. Visam à apreensão das mudanças recentes, como tem sido a atuação do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que organiza esta obra.
Fazer isso é muito diferente e mais difícil em algumas situações e contextos
políticos, como no atual, do que trabalhar no plano teórico-epistemológico, aquele
no qual as ideias podem voar, promover avanços e recuos na linha de pensamen-
to, além de afrontar a política e a ideologia – o que é bom. Contudo, em grande
parte das situações, isso não necessariamente favorece mudanças sociais em curta
e média durações.
Em face dessa avaliação, de partida, manifesto meu respeito aos profissionais
desse instituto pelas contribuições que vêm oferecendo e pelo esforço de manter
aberto o diálogo com a universidade, como ocorreu no ciclo de debates intitulado
Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano: Visão Territorial,
Escalas e Tipologias (2021), que gerou este texto.
As ideias que apresento neste ensaio têm mais a finalidade de alimentar o
debate do que de fazer balanços exaustivos, apresentar conclusões ou delinear cami-
nhos. Por isso, dou-me o direito de usar poucas referências bibliográficas; de “falar”
para poder “escutar” o contraditório, a partir do ponto de vista dos leitores; e de
errar, ainda que o espírito seja o de tentar acertar, por meio de algumas sugestões.
O texto está organizado em duas partes: a primeira é voltada aos fundamentos
que orientam a reflexão; e a segunda, aos desafios ensejados pela formulação e pela
implantação de políticas públicas, ou seja, o pensamento e a ação. Cada uma das

1. Docente no Departamento de Geografia da Universidade Estadual Paulista (Unesp); e pesquisadora 1A do Conselho


Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: <[email protected]>.
32 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

duas partes está subdivida em outras seções, em que busco pormenorizar algumas
ideias e, quando possível, apresentar alguns exemplos.

2 A BASE DA REFLEXÃO
Quatro planos estão subjacentes aos pontos que serão desenvolvidos na segunda
parte deste texto. Eles funcionam como fundamentos do pensamento e, ao mes-
mo tempo, como ferramentas para colocá-lo em ação e para submetê-lo à prova
das decisões, as quais orientam as múltiplas formas de intervenção na realidade a
partir do poder público.
Embora as ideias sejam aqui expressas como “planos”, faço um esforço para
não as tomar como paralelos, mas sim como páginas finas, maleáveis e leves o
suficiente para se entrelaçarem continuamente. As dificuldades estão sempre
nas interpenetrações entre elas, nas fricções que decorrem desses contatos, no
esconde-esconde peculiar a todo modo de articulação do pensamento. Ainda
assim, farei a tentativa de, com a organização didática do texto, não estancar a
condução do pensamento.

2.1 O peso da política


O primeiro plano é o político. Em um país como o Brasil, extenso, diverso e díspar,
os diagnósticos e as tomadas de decisões têm de enfrentar o binômio generalização
x especificidades, oscilando entre o perigo de simplificar demais, ao generalizar, ou
detalhar excessivamente, ao tentar contemplar desigualdades e diferenças.
Em países com histórias mais longevas e políticas de Estado mais estáveis, que
ultrapassam governos, esse desafio é menor. Quando menos populosos ou menos
desiguais, as possibilidades de acertos são maiores. Ademais, naquelas sociedades
em que a democracia e o acesso à informação e ao conhecimento são mais bem
distribuídos, há mais cabeças para enriquecer o debate, contestar e encontrar algum
equilíbrio, mesmo que sempre provisório para o encaminhamento das decisões.
Há, assim, muita diferença entre o delineamento de políticas públicas para um
país como a Dinamarca e um país como o Brasil.
Ademais, nossa estrutura político-administrativa – municípios, estados e
Federação – e seus respectivos níveis de estruturação do poder constituído resultam
em obstáculos adicionais: de um lado, o fato de que há poder maior ou menor
para determinado nível de gestão, conforme o tipo de política a ser estabelecida
(por exemplo, saúde, educação, infraestrutura etc.); de outro lado, fricções entre
os níveis quando partidos políticos, ou mesmo grupos do mesmo partido, têm
compreensões ou formas de atuação diferentes. Por fim, ainda é um obstáculo o
fato de que há níveis intermediários, como as aglomerações urbanas, grandes ou
pequenas, além das regiões geográficas intermediárias e grandes regiões, para os
Formulação de Políticas Públicas para o Desenvolvimento Urbano: possibilidades | 33
para o pensamento e a ação

quais não há estruturas de poder e ação efetivamente bem delineadas. Nessas situ-
ações, tanto impasses como retrocessos levam à perda de capacidade de mudança
e ao desperdício dos recursos investidos.
Quando a pauta é elaborar política nacional de desenvolvimento urbano, esses
obstáculos se avolumam pela complexidade da realidade urbana e do processo de
urbanização e pela necessidade de integrar saberes muito diferentes entre si para
ampliar as expertises e articulá-las.
O binômio generalização x especificidades está todo o tempo orientando a
reflexão quando da formulação de políticas públicas, porque elas não se formulam
fora dos contextos políticos nem podem afrontar o marco jurídico, mas têm de,
simultaneamente, resultar de acordos e coalisões ou promovê-los para que a eficácia
e a efetividade dessas medidas prevaleçam.
Em outras palavras, e para ser bem direta, não há aqui espaço nem para a
ingenuidade, nem para o romantismo. Por isso, é de se esperar que tenhamos
capacidade, como nação e como poder público, de encontrar consensos, mas sem
esconder diferenças e sem realizar cambalachos. É disso que se trata este trabalho
quando o assunto é política em uma sociedade que deseja ser democrática, ainda
que estivesse longe de tal propósito no período em que foi escrito este texto.

2.2 A interferência da economia


O segundo plano é o econômico. Subjacente a ele está o desafio de equilíbrio, no
fio da navalha, sem deixar ferir a política que se quer estabelecer entre os polos do
binômio especialização x diversificação, aspectos abordados nos textos debatidos.2
O desenvolvimento do capitalismo, desde o início do século XX, devido
à internacionalização da economia e à tendência de supressão ou diminuição
proporcional dos custos da circulação (transportes e comunicações), promoveu
aumento da tendência de especializações, tanto funcionais como espaciais, em
múltiplas escalas geográficas.
A flexibilização dos processos e a volatilidade dos investimentos vêm tor-
nando essa especialização passível constantemente de alteração, e isso significa
perigo para os territórios e para sua gente, que se expõem ao jogo de ganha e
perde constantemente, ainda que haja ganhos adicionais para algumas empresas
e conglomerados econômicos, que se movimentam mais facilmente, escolhem e
abandonam territórios, bem como contratam e demitem pessoas.
A diversificação da economia, em múltiplas escalas, quando se pensa no país,
tem de se tornar, então, uma meta, mas ela nunca pode se estabelecer radicalmente,

2. Nota do organizador: a autora faz referência às notas técnicas que foram apresentadas e discutidas nos Diálogos
para uma PNDU, incluindo o Texto para Discussão no 2686 (Costa et al., 2021).
34 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

porque cada setor, ou ramo, ou atividade precisa de sinergias que lhes são muito
peculiares e que, se estão aqui, não se encontram alhures. Ademais, a elevação dos
custos de produção e circulação, com a diversificação levada ao limite, baixaria a
competitividade a níveis que poderiam fazer com que os mesmos territórios e as
mesmas pessoas sucumbissem.
Nesse contexto, o poder público terá de sempre realizar o pendant em relação
à tendência do mercado – especializar-se –, favorecendo a diversificação econômica
e, portanto, produtiva e de oferta de bens e serviços nas regiões e em suas cidades.
Assim, o objetivo é compensar exageros ou evitar oscilações muito fortes, cujas
consequências são, depois, difíceis e custosas de serem contornadas.

2.3 O espaço como condição


O terceiro plano é o espacial. Nesse caso, é necessário grande esforço para apreender
de que modo, espacialmente, combinam-se estruturas territoriais em áreas e estruturas
territoriais em rede. Se, no passado, antes da difusão de tecnologias de informação
e comunicação, as quais ligam pontos distantes do território, era possível, sempre
que se definia política pública, pensar em áreas de ação (bairro, cidade, município,
mesorregião, estado, grande região, país), hoje é necessário, como sabemos, observar
de que modo elas se mantêm como resultado da história, reinventam-se e se adaptam
como presente. Contudo, simultaneamente, reconfiguram-se por fluxos que ligam
pontos distantes do território, assumindo configurações espaciais reticulares. Não
ao acaso, Santos (1996; 1998) conceituou o período atual do desenvolvimento do
capitalismo como técnico-científico informacional.
Dessa maneira, o pensamento tem de se organizar por continuidades e des-
continuidades territoriais (o que se liga ou não por transporte terrestre, fluvial ou
marítimo está ou não justaposto no terreno) e por continuidades e descontinuidades
espaciais (o que está ou não articulado por meios de transporte aéreo e por circu-
lação de informação e comunicação), conforme Sposito (2004). Essa combinação,
que pode se consubstanciar em cada parcela do espaço de modo diverso, há de ser
considerada no estabelecimento de políticas públicas.
Na Amazônia, vamos encontrar fragmentos espaciais caracterizados por quase
completa descontinuidade territorial e espacial, o que também pode ocorrer no sul
da metrópole de São Paulo, no Vale do Ribeira, por exemplo. Em outras situações,
uma forte continuidade territorial resultante de densidade demográfica elevada
compõe-se com baixa continuidade espacial para uma parte de seus moradores e forte
para outros. Isso é perceptível nas regiões cobertas por tecnologias de informação
e comunicação que estão, do ponto de vista social, mal distribuídas na sociedade,
como observamos em toda a faixa litorânea do Brasil, em escala de centenas de
quilômetros, e em suas metrópoles, em escala de dezenas de quilômetros.
Formulação de Políticas Públicas para o Desenvolvimento Urbano: possibilidades | 35
para o pensamento e a ação

Pode ocorrer, também, a combinação de descontinuidade territorial e forte


continuidade espacial nas grandes propriedades rurais do Centro-Oeste do Brasil,
que se articulam a distância por avião (são servidas de pequenos aeroportos) e por
tecnologias de informação via satélite (compram e vendem na Bolsa de Chicago).
Entretanto, seus poucos trabalhadores estão longe de cidades médias ou metrópoles,
onde poderiam ter acesso, por exemplo, a serviços de saúde e educação melhores.
Com base no que foi identificado por Santos e Silveira (2001) como espaços
luminosos, a continuidade territorial e espacial prevalece, mas os que contribuem
para essa luminosidade, com sua força de trabalho, cotidianamente deslocam-se
para espaços opacos onde habitam. Por exemplo, se analisarmos a densidade de
empresas que se situam no quadrante oeste da Região Metropolitana de São Paulo
e se observarmos os deslocamentos diários de grande parte de seus trabalhadores,
veremos, ao mudar de escala, que também há descontinuidades onde há conti-
nuidade espacial e territorial.
Assim, desenvolver políticas públicas que partem ou querem chegar a um
dado território requer mover o pensamento, com múltiplas combinações, entre
estruturas espaciais em áreas e estruturas espaciais reticulares.

2.4 Um par dialético para a análise


Por fim, o quarto plano é analítico, relativo ao movimento do pensamento, o que
compreende uma sugestão de método, a qual me parece muito importante para
a elaboração e a implantação de políticas públicas. Refiro-me à necessidade de
considerar as relações quantidade x qualidade, tanto nos diagnósticos quanto na
formulação de propostas.
Em um país com as dimensões do Brasil (extensão e tamanho demográfico),
é imprescindível que grandes bancos de dados, análises estatísticas avançadas,
coeficientes de correlação etc. sejam tomados como primeira aproximação para
a compreensão das dinâmicas em curso e, por consequência, como base para a
análise deste trabalho, um primeiro raio-X, que oferece mapeamento do problema
em pauta. Muitas vezes, isso pode parecer impossível justamente por causa das
dimensões quase continentais dos processos em tela, mas é necessário haver esforço
na direção de checar a primeira avaliação no plano qualitativo.
No passado, há sessenta anos, com um país menos complexo e no qual as
mudanças eram mais lentas, os levantamentos de informações, inclusive os de perfil
censitário, eram acompanhados de trabalhos de campo. Havia no próprio Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a prática corrente de acompanhar o
trabalho estatístico de checagem, complementação e refinamento da primeira
análise. Hoje, com orçamentos mais estreitos; interregnos temporais menores entre
a encomenda de diagnósticos e a conclusão destes; e muitas flutuações no âmbito
36 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

político, que levam a descontinuidades de iniciativas e, às vezes, de política, secretaria


ou ministério, é muito mais difícil valorizar ou realizar iniciativas que, do ponto de
vista metodológico, possam completar a sistematização de informações e, assim,
ir além das médias, medianas, tendências estatísticas que mostram disparidades e
desigualdades para alcançar o conteúdo das diferenças.
Estratégias novas podem ser, então, experimentadas para que a qualidade dos
processos seja ponderada de acordo com os resultados obtidos da análise quanti-
tativa. Uma primeira pode advir da ampliação significativa da pós-graduação no
Brasil, que possibilitou a produção de mestrados e doutorados que oferecem análises
pontuais, é claro, mas que poderiam ser objeto de uma análise cuidadosa para,
vez ou outra, um ponto novo vir à luz. Assim, penso que as equipes de pesquisa
de institutos ou níveis da administração direta envolvidos com a formulação de
políticas devem ser compostas, também, por profissionais que se dediquem siste-
maticamente a ler tudo o que vem sendo produzido e a fazer sínteses ou extrair
aspectos que possam auxiliar os experts na análise dos resultados estatísticos obtidos.
Uma segunda iniciativa pode decorrer de adoção de metodologias que, não sendo
exaustivas nem muito caras, possam trazer à luz tensões, contradições, diferenças
e problemas que aflijam grupos de interesses, segmentos de classe social, territó-
rios etc. Entre elas, indicaria a realização de grupos focais (Cruz Neto, Moreira e
Sucena, 2002; Gondim, 2003), estratégia que há muito é adotada por empresas e
que, no ambiente acadêmico e científico, vem ganhando força.
Adotando essas e/ou outras estratégias, é necessário avançar em relação ao que
poderia ser e muitas vezes foi visto como um dilema – quantidade x qualidade –,
porque não se trata de um par composto por opostos, mas de trabalho no plano
da metodologia de modo a analisar dados (quantidade) para chegar aos conteúdos
(qualidade). Buscam-se, então, as situações ou os limiares em que a mudança na
quantidade acarreta a alteração da qualidade – as diferenças entre os tipos consti-
tutivos de uma “tipologia” devem se apoiar nesses “saltos”.
Portanto, independentemente de se realizarem estratégias metodológicas
qualitativas como as sugeridas no parágrafo anterior, o que nem sempre é possível,
é necessário aguçar o pensamento, do ponto de vista qualitativo, para conduzir a
sistematização de informações quantitativas.

3 OS DESAFIOS PARA O PENSAMENTO E A AÇÃO


Tomados como base e simultaneamente como caminho, os quatro planos descritos
sucintamente na primeira parte, além de outros que podem ser adicionados a eles ou
substituí-los, ajudam a ter clareza dos desafios que se apresentam para a formulação
de políticas públicas, especialmente aquelas vinculadas ao desenvolvimento urbano
do país. Será possível notar que os planos não apenas fundamentam o olhar para os
Formulação de Políticas Públicas para o Desenvolvimento Urbano: possibilidades | 37
para o pensamento e a ação

desafios como os atravessam. Em algumas situações, são constitutivos deles, razão


pela qual voltam em cena para se desenvolver um outro ponto.
Vou chamar, nesta seção, de políticas públicas não apenas as propostas e os
documentos que as traduzem, mas o movimento necessário para a ação, compreen-
dida como implementação e redefinição contínua do que foi proposto no processo.
Em outras palavras, estamos abordando o deslocamento do plano das ideias para
aquele das intervenções, de forma mediada pela reflexão. Essa compreensão requer
que a proposta evolua do plano político-institucional para o social e econômico,
reconstruindo o político em bases mais amplas. Se as políticas não forem pensadas
no plano e para o plano da ação, podem ser bem feitas e até perfeitas, mas nada
consecutivas ou transformadoras.
Escrevendo desse modo, parece simples defender essa ideia, e, com certeza,
a maior parte dos leitores não teria posição diferente e/ou jamais argumentaria
em outra direção, porque é um pouco óbvio que desejamos políticas contínuas.
Faço esse destaque, no entanto, porque penso que vários de nós, que trabalhamos
com ideias, especialmente os que são pesquisadores em universidades, como é o
meu caso, podemos ser capturados pela tendência à idealização quando queremos
permanecer na nossa posição de leitura crítica. Isso é importante, sem dúvida, para
um intelectual, mas não é suficiente para a ação política.
Um primeiro passo, talvez, possa ser analisar os desafios, reconhecendo e
distinguindo os que são estruturais e os que são conjunturais, sabedores que somos
do fato de que nunca chegaríamos a dividir os desafios nesses dois grupos, pois
cada desafio de natureza estrutural é também circunstanciado pela conjuntura.
Ademais, desafios caraterizados como conjunturais revelam traços estruturais da
nossa história e da nossa cultura.
Feita essa ressalva, é possível partir da constatação de que alguns desafios são
prevalentemente estruturais com base no perfil do país, na natureza da política em
tela ou no modo como é possível circunscrever o “problema” e abordá-lo. Outros
desafios, por sua vez, podem decorrer de circunstâncias e têm caráter conjuntural.
Entretanto, tais circunstâncias podem se alongar no tempo, o que vai, pouco a
pouco, tornando-as estruturais.
Já foi feita referência ao tamanho do país e à sua diversidade, e sem dúvida
esse é um desafio estrutural e do qual não se pode ou não se deve fugir, a menos
que se esteja defendendo a divisão do país, o que não é o meu caso absolutamen-
te; é preciso reconhecer tanto as diferenças como as desigualdades socioespaciais.
Nesse contexto, em virtude de o país ser extenso, o mosaico que resulta desse
reconhecimento é composto por mais facetas, o que torna mais difícil a tarefa de
decifrar e sintetizar o poliedro.
38 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Posso lembrar também que as políticas públicas são diversas e, para delinear
uma ação no campo da saúde pública, precisamos de ferramentas e escalas de aná-
lise diferentes das que são adequadas para definir investimentos em infraestrutura
urbana, por exemplo. É muito diferente a propositura de políticas se o foco recai
sobre o território ou sobre a sociedade, embora não haja sociedade aespacial nem
território despido de sociedade. Trata-se, então, de algo estrutural, e como tal, não
se pode disso fugir.
As diferenças herdadas do período colonial, em que nos organizávamos
como uma economia de arquipélago, como apontou Oliveira (1982), compõem
um mosaico de constituição de poderes e formas de atuação que tornam a ação
política atravessada, de um lado, por coalisões de grupos de interesses e, portanto,
de hierarquias que se estabelecem segundo clivagens não coincidentes; e, de outro
lado, por divisões regionais que se orientam por regionalismos que são tanto porta-
-vozes do reconhecimento das disparidades como reprodutores destas por meio de
benesses às elites das regiões onde se concentra mais pobreza.
São diferentes as formas de organização da política, sob formações socioes-
paciais que se originaram da pequena propriedade no Sul do Brasil, por exemplo,
as que resultaram da grande propriedade exportadora do período colonial; as que
se desenvolveram industrialmente a partir da substituição do trabalho escravo pelo
trabalho livre de imigrantes; as que mais recentemente resultaram do avanço intenso
e rápido de formas de produção capitalista, compondo nova forma de produção
primária para exportação, ou da tensa combinação entre a permanência de prá-
ticas extrativistas tradicionais e o avanço de formas ditas modernas de produção.
É preciso ter em mente então que as políticas públicas não devem apenas enfrentar
desigualdades, as quais devem ser minimizadas, mas, ao fazer isso, precisam navegar
em meio a diferenças estruturais, porque estão inscritas no espaço, nas práticas
sociais e nas formas de organização do poder e da política.
Outros desafios são conjunturais e decorrem de algumas circunstâncias que a
equipe de pesquisa não pode controlar, como é o caso dos desafios estruturais, nem
pode prever. Exemplos: mudanças na coalisão de forças que sustentam os governos,
nas várias escalas do poder político-administrativo; variações no desempenho da
economia, que tanto podem decorrer de escolhas políticas nacionais como de
flutuações internacionais; alterações na equipe de pesquisa dos institutos ou dos
órgãos públicos, o que pode acarretar avanços nos modos de ver os problemas
(como a perda de conhecimento acumulado relativa a algum setor ou território) etc.
Vamos abordar quatro desafios que poderiam ser destacados e são igual-
mente importantes.
Formulação de Políticas Públicas para o Desenvolvimento Urbano: possibilidades | 39
para o pensamento e a ação

3.1 As séries históricas


Sem dúvida, há imenso valor na existência de séries histórias longevas, tanto no
que tange aos bancos de dados disponíveis quanto no que se refere à mantença de
parâmetros, critérios e variáveis para o levantamento e a sistematização de infor-
mações. Contudo, em muitas situações, as séries históricas foram interrompidas
ou são tão novas que é um desafio realizar qualquer análise de evolução, porque
não temos senão dados demasiadamente recentes.
Somos um país jovem, uma república ainda adolescente, e temos certa
tendência a, em algumas situações, mudar quando teria sido melhor permanecer
metodologicamente para favorecer a comparação temporal.
De partida, a elaboração e a aplicação de uma política pública são acompa-
nhadas do desafio de equiparar informações e garantir comparabilidade na escala
temporal das décadas e dos anos. Nem chegamos a pensar, desse ponto de vista,
nos séculos, o que seria exigir demais.
É preciso, então, ao tomar decisão sobre parâmetros, critérios e variáveis que
orientam um levantamento de informações, ponderar muito antes de optar por
mudanças, embora às vezes elas sejam imprescindíveis e salutares.
Quando os dados já estão levantados, quando há mais de uma fonte ou
quando se procederá à combinação entre bancos de dados diferentes, é triplo o
papel das equipes que conduzem a formulação de políticas públicas. Em primeiro
lugar, devem-se avaliar criteriosamente as fontes e os dados a serem utilizados, de
tal modo que haja relação entre a escolha feita e os objetivos centrais da política em
elaboração. Em segundo lugar, é necessário testar a escolha, à luz da efetiva possi-
bilidade de trabalhar esses dados, o que inclui tamanho da equipe, equipamentos,
softwares etc. Por último e de grande importância, deve-se buscar informação sobre
a continuidade e a atualização das fontes e do levantamento de dados eleitos, visto
que o mais importante na formulação de políticas públicas não está no presente,
mas no seu potencial de se alongar no futuro próximo e, se possível, mais adiante
por meio da atualização dos dados.
Exemplifico as dificuldades inerentes a esse desafio – o de eleger parâmetros,
critérios, variáveis e fontes que favoreçam comparabilidade no tempo – de dois
modos entre outros tantos que poderiam ser lembrados.
A memória elaborada pelo IBGE,3 a propósito das mudanças pelas quais passou
a compilação demográfica no Brasil, desde 1872 (IBGE, 2003; Oliveira e Simões,
2005) e mesmo antes disso (Silva, 1986), reflete, de um lado, o impulso para a
melhoria da coleta e da sistematização de dados; de outro lado, as intercorrências

3. Disponível em: https://memoria.ibge.gov.br/historia-do-ibge/historico-dos-censos/censos-demograficos.html.


40 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

que inviabilizam continuidades. Além disso, observa-se certa variação demasiada


de escolhas que podem ser mais circunstanciais que claramente decorrentes de
políticas de Estado.
Entre 1776 e 1869, dezesseis estimativas populacionais foram elaboradas,
segundo Silva (1986). Com base em inúmeras fontes e autores, o IBGE registrou4
a memória de algumas dezenas de estimativas entre 1550 e 1870. Essas estima-
tivas oferecem alguma base para estudos históricos, mas não o suficiente para se
analisarem os períodos colonial e imperial do Brasil.
Desde que se decidiu pelos recenseamentos decenais, após o de 1872, pri-
meiro levantamento oficial da população brasileira, não ocorreram os de 1880, o
primeiro previsto, e os de 1910, 1930, 1990 e 2020. Em relação aos primeiros, a
não realização gerou lacunas e promoveu saltos temporais que deixam nebulosos
certos períodos da evolução; no que se refere aos dois mais recentes, as causas da
não realização nos anos previstos são de natureza diversa, como sabemos, e eles
foram postergados. Em 1990, não ocorreu devido à suspensão do orçamento
necessário durante o governo Collor de Melo, embora tenha sido efetuado no
ano seguinte.5 Em 2020, não foi possível realizar o levantamento censitário em
função da pandemia causada pela difusão do coronavírus, mas está previsto para
ser finalizado em 2023.
De todo modo, ao se produzirem políticas públicas, atualmente, não pre-
cisamos ter séries tão longevas, razão pela qual os recenseamentos feitos são sufi-
cientes. Todavia, é preciso observar mudanças tanto nos intervalos intercensitários
(especialmente por causa de 1991 e 2022) como nos critérios de classificação da
população – urbana e rural.
Nos censos de 1940 e 1950, o IBGE divulgou informações sobre a condi-
ção de domicílio em três grupos, a saber, população rural, suburbana e urbana.
De 1960 até 2010, compondo uma série histórica (seis censos) que favorece
a comparabilidade, a população recenseada foi classificada em rural e urbana,
segundo a situação do domicílio.6

4. Disponível em: https://memoria.ibge.gov.br/historia-do-ibge/historico-dos-censos/dados-historicos-dos-censos-


-demograficos.html. Adaptado de IBGE (1990).
5. Para realizar esse censo demográfico, o IBGE “(...) precisava contratar mais de 180 mil pessoas em caráter temporário.
Entretanto, a autorização da contratação desse contingente foi sendo protelada, visto que o governo tinha a diretriz de
reduzir o quadro de servidores públicos. Quando a contratação foi autorizada, em julho de 1990, não havia mais tempo
hábil para se realizar o processo seletivo público para contratação dos recursos humanos destinados ao censo, cuja
coleta de dados estava programada para se iniciar no mês de setembro. Por tal motivo, o IBGE decidiu realizar o censo
em 1991.”. Extraído de: https://memoria.ibge.gov.br/historia-do-ibge/historico-dos-censos/censos-demograficos.html.
6. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?dados=8&uf=00.
Formulação de Políticas Públicas para o Desenvolvimento Urbano: possibilidades | 41
para o pensamento e a ação

Em 2017,7 foi publicada a informação de que uma nova tipologia para ca-
racterização de espaços rurais e urbanos, que orientaria a contagem populacional,
teria base na densidade demográfica, e não mais na separação segundo os limites
dos perímetros urbanos. Estes são aprovados pelos legislativos municipais, muitas
vezes estendidos demais, definindo como urbana a população que vive em áreas
de ocupação muito rarefeita e/ou não parceladas para uso urbano, cujos habitantes
nem sempre estão vinculados a funções consideradas urbanas.
Embora a notícia faça referência ao debate a ser finalizado, já se assinalava que
haveria cinco tipos distintos de classificação dos municípios – urbano, intermedi-
ário adjacente, intermediário remoto, rural adjacente e rural remoto. Em março
de 2022,8 o IBGE confirmou a decisão de coletar as coordenadas geográficas de
cada domicílio no recenseamento que seria feito no segundo semestre daquele
ano. O objetivo dessa medida era possibilitar melhor classificação da população
segundo condição urbana e rural, além de considerar as nuances entre elas, o que
se constitui um avanço importantíssimo na coleta. Entretanto, novamente, foram
exigidos cuidados adicionais para a compatibilização de informações de modo a
assegurar alguma análise comparada em termos de série histórica.
Não há dúvida de que a mudança se faz necessária, tendo em vista os incon-
venientes da adoção do perímetro urbano para a classificação das áreas em urbana
e rural.9 No entanto, ainda não há total clareza do impacto da nova tipologia no
recenseamento e sobretudo nos cuidados que serão necessários para compatibilizar
informações e garantir, dentro do possível, a comparabilidade.
Outro desafio grande para a elaboração de políticas públicas, o que já é de
pleno conhecimento dos institutos e dos órgãos responsáveis por isso, é a tendên-
cia ao desmembramento municipal, que cria, ao longo do tempo, novas unidades
municipais. Conhecemos, na história do país, mudanças nos limites territoriais a
partir das quais ou para as quais as políticas vão ser delineadas por desmembra-
mentos, divisões ou redefinições de limites e perímetros, tanto porque a realidade
muda como porque evoluem as formas de coleta e sistematização das informações,
como foi apontado no exemplo relativo às mudanças de classificação da população
em urbana ou rural.

7. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-07/nova-proposta-de-classificacao-territorial-do-


-ibge-ve-o-brasil-menos-urbano.
8. Disponível em: https://costanorte.com.br/geral/ibge-censo-2022-coletara-coordenadas-de-residencias-urbanas-e-
-rurais-1.376822 e https://www.tnh1.com.br/noticia/nid/ibge-censo-2022-coletara-coordenadas-de-residencias-
-urbanas-e-rurais/.
9. A pesquisa intitulada Brasipolis, realizada sob minha supervisão e com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (Fapesp), já mostra os inconvenientes dessa adoção (Chatel, Moriconi-Ebrard e Sposito, 2017;
Chatel e Sposito, 2019a; 2019b).
42 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Nos anos de 1990, várias medidas foram tomadas para evitar ou monitorar a
criação de municípios, entre elas, em 1996, a emenda à Constituição que condi-
cionou essa criação à aprovação de lei federal, já que até então isso era competência
dos estados, e os critérios eram os mais diversos possíveis. Foi também importante
a exigência de que dois municípios não tivessem o mesmo nome, o que facilitou
a busca de dados e a compatibilização de informações de censos diferentes; a geo-
metria dos limites municipais sempre se alterava, o que exigia estimativas de como
a população de dois ou mais novos municípios estava dividida entre os territórios
que anteriormente compunham o município que lhes deu origem.
Esse tipo de problema, que desafia e exige trabalho adicional dos formula-
dores de políticas públicas, parece-me de natureza estrutural, pois o Brasil verá
no século XXI o aparecimento de muitas novas cidades. Isso ocorrerá tanto pelo
desmembramento municipal, de modo que um núcleo urbano distrital se torna
uma sede, quanto pelo aparecimento de novos núcleos urbanos em regiões ainda
pouco ocupadas. Uma em cada cinco cidades brasileiras, que são, por lei, sedes
dos municípios, foi criada depois da Constituição de 1988.10
Ademais, há um debate importante acerca da necessidade de repensar o prin-
cípio da Constituição11 para que os entes municipais não sejam todos tratados da
mesma maneira. Não há dúvidas de que essa mudança teria enormes efeitos positivos
sobre políticas públicas a incidirem sobre metrópoles ou aglomerações urbanas,
mas não se faria sem cuidados e ajustes necessários à produção das informações e à
formulação de propostas de modo a considerar um plano de disparidades, além das
já indicadas. Tampouco é possível desconsiderar as mudanças que seriam necessárias
do ponto de vista do pacto federativo em relação à tributação e à distribuição de
verbas entre os diferentes níveis da gestão pública.

3.2 As tipologias
A elaboração de tipologias surge da necessidade de sistematizar informações e de
agrupá-las para que uma miríade de dados, por meio de análise apurada, possa ganhar
alguma compreensão com vistas ao estabelecimento de escolhas, ao delineamento de
ações e à tomada de decisões. Elas podem ser compostas por categorias que variam
segundo intervalos quantitativos, como as classes que agrupam os dados censitários,
ou critérios qualitativos, como tipos e gêneros textuais, por exemplo. Além disso,
podem combinar as duas formas de definição, o que me parece sempre melhor.

10. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/11/saiba-quais-as-regras-para-criacao-de-municipios-


-atualmente-no-brasil.shtml.
11. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/490851-ipea-defende-revisao-constitucional-para-respeitar-
-diferencas-municipais/.
Formulação de Políticas Públicas para o Desenvolvimento Urbano: possibilidades | 43
para o pensamento e a ação

A tipologia que orienta o estudo Regiões de Influência das Cidades (Regic),


do IBGE, por exemplo, embora estabeleça intervalos quantitativos do ponto de
vista populacional, para definir os tipos segundo os quais é classificada a rede
urbana brasileira, matiza esses intervalos com um significativo conjunto de outras
variáveis que possibilitam a qualificação do que foi definido no plano quantitativo.
Dessa maneira, cidades de tamanhos demográficos muito semelhantes podem ser
classificadas em níveis diferentes da hierarquia urbana. Esse me parece um bom
exemplo de combinação quantidade-qualidade na elaboração de tipologia.
Outras tipologias elaboradas no âmbito federal, as quais têm finalidades muito
próprias devido à qualidade dos princípios que as orientam e à capacidade de seus
autores de considerarem variáveis de diferentes naturezas, podem ser apropriadas
pelos elaboradores de outras políticas públicas. Eles poderão, assim, aproveitar
integral ou parcialmente a tipologia e sua respectiva classificação.
Profissionais envolvidos com a formulação de políticas públicas enfrentam
cotidianamente o desafio de utilizar diferentes tipologias e, em muitas situações,
propor novas. A dificuldade está, no caso brasileiro, no fato de que, no plano federal,
há que se considerar a necessidade de articular todo o território e a sociedade, o
que exige considerar a extensão, a diversidade e a desigualdade. Durante os Diálo-
gos para uma PNDU,12 fez-se referência à diversidade dos amplos contrastes que
caracterizam a realidade brasileira, e penso que esse é um grande desafio.
Em ambientes acadêmicos, algumas vezes, há críticas à elaboração de tipolo-
gias com base no argumento de que elas resultam de pensamento cartesiano que
não possibilitaria reflexão dialética sobre os processos, tampouco valorizaria as
contradições e as tensões pelo fato de fazer separações em grupos. Discordo desse
ponto de vista, ainda que o considere relevante para o debate, porque penso que,
ao mesmo tempo que esse perigo ocorre, podem-se elaborar tipologias compostas
por muitas variáveis. Estas, se combinadas de uma forma, revelam um aspecto;
se combinadas de outra, mostram características diversas, o que garante certa in-
terpenetração entre os tipos definidos. Ademais, a possibilidade de disponibilizar
on-line e gratuitamente o que vem ocorrendo no Brasil – em bancos de dados que
geram as respectivas tipologias – garante que pesquisadores ou técnicos envolvi-
dos com esse trabalho acessem informações e as recombinem segundo diferentes
compreensões e finalidades.
Um bom exemplo de tipologia com potencial para ser considerada em dife-
rentes estudos é a Tipologia Regionalizada dos Espaços Rurais Brasileiros: implica-
ções no marco jurídico e nas políticas públicas, elaborada com o apoio do Instituto

12. Nota do organizador: a autora faz referência em particular a um dos eventos que compôs os diálogos, ocorrido em
2021, no qual foi discutida e apresentada nota técnica que se transformou em texto para discussão do Ipea (Costa et
al., 2021). Nesse documento, foram reforçados os amplos contrastes que caracterizam a realidade brasileira.
44 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Interamericano de Cooperação para a Agricultura (Miranda, 2017; Bitoun et


al., 2017). Os autores dessa obra propuseram 26 tipos rurais, agrupados em ma-
crogrupos segundo biomas, mas consideraram outras variáveis importantes para
pesar densidade e distância, o que é fundamental para a análise e a distribuição
dos fenômenos no território. Essa é efetivamente uma tipologia que oferece base
para o delineamento de políticas públicas de diferentes naturezas e combina, de
forma inteligente, informações e escolhas conceituais que garantem a expressão
de diferentes qualidades do território e da sociedade na composição dos grupos.
Embora os tipos rurais ofereçam qualificados elementos para a definição
de uma política nacional de desenvolvimento urbano, seria necessário pensar em
construção tipológica especificamente voltada à compreensão do fato urbano, que,
intrinsecamente, difere do rural. Entretanto, podem-se e devem-se considerar as
relações com ele, sobretudo em um período da história em que as distinções claras
entre cidade e campo se tornam mais difíceis e que o imbricamento entre funções,
papéis e representações entre esses dois espaços se amplia.

3.3 Da multi à interescalaridade


Os documentos analisados nos debates que geraram este livro, bem como algumas
das falas ditas durante o encontro, fizeram referência à multiescalaridade e à sua
importância como fundamento central para a definição de políticas públicas de
base territorial, posição em torno da qual há muito consenso no atual período.
No entanto, é preciso ponderar que multiescalaridade não é a mesma coisa
que múltiplas delimitações de territórios em diferentes escalas cartográficas e
divisões político-administrativas, o que poderia se reduzir à análise de áreas.
Contudo, isso seria insuficiente em um mundo em que os processos se organizam
também reticularmente.
Esse desafio é grande, porque não se trata apenas de buscar uma posição
no âmbito do debate acerca da escala geográfica para compreender o espaço; ele
se desdobra, ao menos, em outros dois de ordem prática, que podem constituir
empecilhos à renovação do pensamento a partir da ideia de escala geográfica.
O primeiro decorre da própria divisão político-administrativa, o que orientou
e continuará a orientar a organização da política. Nesse sentido, o local, o regional,
o nacional, o supranacional ou o subcontinental, como o global ou o mundial, não
são apenas instrumentos do pensamento, mas contam com estruturas de poder
e aparatos normativos que os sustentam. Dessa forma, é muito difícil delinear
políticas públicas sem que esses desenhos estejam subjacentes a elas ou sem que
sejam pensadas para aplicação, segundo tais configurações. Além disso, não basta
que políticas sejam elaboradas no plano técnico ou científico – é preciso que sejam
assumidas politicamente, o que requer a consideração dos territórios do poder.
Formulação de Políticas Públicas para o Desenvolvimento Urbano: possibilidades | 45
para o pensamento e a ação

Em segundo lugar, é importante lembrar que os dados são produzidos, se-


gundo os limites que se expressam nessa mesma cartografia de escalas, por causa
dessas divisões político-administrativas. Com grande frequência, quando algo é
proposto para a ação pública, sem haver coincidência entre as escalas do poder e
as divisões territoriais propostas, a probabilidade de consecução da política em tela
é pequena. O IBGE organizou durante muito tempo seus dados segundo micro e
mesorregiões; mais recentemente reviu a divisão regional13 e substituiu essas duas
definições, respectivamente, pelas mais contemporâneas de regiões geográficas
imediatas e regiões geográficas intermediárias.14 A substituição não se reduziu à no-
menclatura ou aos limites quando se comparam as duas divisões, mas fundamentou-
-se em alteração metodológica, na medida em que se levaram em consideração os
conceitos de território-rede (conjunto de arranjos populacionais em áreas contínuas
de municípios integrados por fluxos importantes) e de território-zona (polarização
exercida pelas cidades com base em alcances intra e inter-regionais). Sem dúvida,
houve um esforço grande de mesclar critérios e integrar a compreensão escalar de
modos diversos em uma mesma divisão regional.
No entanto, é necessário pontuar que, primeiramente, essa divisão, como a
anterior, poderá ser mais útil no campo científico do que naquele da ação, justa-
mente porque não há territórios de poder e distribuição orçamentária estabelecidos
segundo os mesmos limites. Além disso, em que pese o esforço de considerar dois
conceitos – território-rede e território-zona –, cujas palavras poderiam levar à com-
binação entre áreas e redes, do ponto de vista da geometria das regiões desenhadas,
ambas foram estabelecidas segundo princípios de continuidade territorial. Isso leva
à constituição de áreas e não facilita a compreensão do que ocorre sob a forma de
redes quando não há continuidade territorial.
Segundo essas lógicas, que orientam nosso pensamento e nossa ação pública,
as escalas seriam como bonecas russas, que se encaixam umas dentro das outras.
Por essa razão, elas têm ênfase na circunscrição dos fatos analisados, e não no
movimento deles e entre eles. Assim, quando refletimos sobre distribuição das
condições socioeconômicas que precisam ser ancoradas nos locais de moradia, essa
lógica é suficiente. Todavia, quando pensamos que a mobilidade não se realiza do
mesmo modo para todos na sociedade e que os limites são facilmente saltados por
alguns, mas aprisionam outros, seria preciso considerar a combinação de lógicas
que desenham regiões como áreas alógicas que organizam a ação pública em rede.
Aqui o princípio da combinação entre (des)continuidade territorial e (des)conti-
nuidade espacial teria de prevalecer.

13. Para ver as novas divisões, por estados da Federação, acessar: https://www.ibge.gov.br/geociencias/cartas-e-mapas/
redes-geograficas/15778-divisoes-regionais-do-brasil.html?=&t=acesso-ao-produto.
14. Para acessar uma explicação sintética sobre essa mudança, ver: https://aredeurbana.com/2017/10/02/novas-divisoes-
-regionais-do-brasil-regioes-geograficas-imediatas-e-regioes-geograficas-intermediarias/.
46 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Sem dúvida, uma primeira aproximação decorreria do fato de os dados que


compõem os bancos serem georreferenciados, como já ocorre com levantamentos
recentes do IBGE e como ocorrerá no próximo censo demográfico, porque isso
possibilita cruzar informações a partir de pontos (são os que conformam as redes
juntamente com os fluxos), e não apenas agrupá-los em áreas. Relacionando o
desafio desta subseção ao tratado na 2.1, friso a necessidade de sermos cuidadosos
e não interrompermos séries históricas, além de não abandonarmos intempesti-
vamente o desenho que orientou até aqui coletas e agrupamento de informações.
Pelo contrário, simultaneamente, devemos ter a capacidade de, para cada política
pública, agrupar informações segundo mais de uma lógica espacial.
Se isso for possível, do ponto de vista da proposição de uma política pública,
caminharemos da ideia de multiescalaridade para a de articulação entre escalas geo-
gráficas, pensamento esse que busca ver como diferentes os sujeitos, as empresas, as
instituições, as organizações etc. Assim, será possível movimentar-se, apropriar-se,
transformar e viver os espaços.

3.4 Regiões e redes


A subseção anterior desemboca nesta. Aqui desejo chamar atenção para a impor-
tância de não fazer escolhas entre regiões e redes, ou entre configurações espaciais
em área e em rede, mas de pensar como relacionar as duas, visto que, na vida das
pessoas, das empresas, das instituições, dos movimentos sociais etc., essa passagem
da área para a rede, e vice-versa, faz-se cotidianamente por meio, inclusive, de
simultaneidade de ações.
Quando um sujeito dirige um carro ou está em uma ambulância, saindo
da cidade onde mora para buscar serviço de saúde mais especializado em cidade
de maior importância na hierarquia urbana, ele se locomove na região; transpõe
alguns quilômetros; e precisa se deslocar materialmente. Simultaneamente, acessa
o telefone celular, busca informações sobre o serviço médico-hospitalar ou sobre o
preço de um aparelho eletrodoméstico que pensa em adquirir nessa viagem. Decide
comprá-lo pela internet, porque os preços estão mais baratos: a plataforma virtual
de vendas está sediada em um ponto distante do território, que não é o mesmo
do depósito onde estão acondicionados os produtos. Estes aguardam para circular
de acordo com os impulsos de consumo, os quais vêm de pontos próximos ou
distantes do território. Aqui, parece-me que a ordem christalleriana que orientou
em grande parte a ideia de alcance espacial é importante, mas insuficiente, porque,
em um mesmo interregno, o do deslocamento entre cidades, o sujeito raciocina,
vive e, portanto, produz o espaço em área e em rede.
Formulação de Políticas Públicas para o Desenvolvimento Urbano: possibilidades | 47
para o pensamento e a ação

Assim, dois desafios estão presentes para distinguir os dois olhares – o regio-
nal e o reticular – e para fazer a combinação entre eles, em dois planos diferentes,
conforme descrito a seguir.
1) Há regiões que podem ser classificadas no mesmo grupo em uma dada
tipologia, mas o resultado-síntese da combinação de variáveis, embora as
tenha levado à mesma “gaveta” da tipologia, não é composto pelo mesmo
peso de cada variável (resultado do esforço de agrupamento e de genera-
lização). No entanto, o diagnóstico, como resultado das generalizações
que evoluíram para as ações, compreendidas também como tomada de
decisão sobre as prioridades de investimentos públicos, tem de alcançar
as especificidades.
2) A rede se apoia no movimento, e a região, no território (fluxos e fixos).
Se a primeira é fundamental para a compreensão, a segunda é o conti-
nente das ações materializadas na forma de investimentos, ao menos até
o momento. Contudo, dessa constatação advém a seguinte indagação:
em muitas situações, os serviços públicos, em vez de serem oferecidos
segundo circunscrições territoriais, poderiam estar disponíveis e serem
escolhidos pelos usuários conforme suas possibilidades de deslocamento?
Sabemos que o princípio de justiça territorial deve prevalecer na oferta
de serviços públicos, mas é preciso pensar que esse princípio poderia ser
organizado não exclusivamente em áreas, mas também em redes, ainda
que, em cada situação e segundo a condição de monopólio natural ou
não, múltiplas variáveis devam ser ponderadas para a tomada de decisão.
Esses aspectos apontam a necessidade de pensar um pouco mais na orien-
tação de proposta de política de desenvolvimento urbano consoante alguns
pontos de partida. Um deles é a definição dos centros que serão definidos para
reforço da polarização (em função das distâncias em relação às suas áreas pola-
rizadas) e dos que serão eleitos para promover descentralização (em função de
redes mais “encadeadas”).
Em outras palavras, em algumas situações regionais, será preciso reforçar a
hierarquia; em outras, será possível exercitar a heterarquia (Catelan, 2013). Por
isso, ela tem de ser uma proposta policêntrica, e não multicêntrica; o prefixo poli
designa diferentes, enquanto o prefixo multi refere-se a muitos ou vários.
Como foi destacado no debate, é preciso qualificar o tipo de policentrismo
desejado para reforçar esta ou aquela primazia. Penso que a ênfase deve estar na
valorização das diferenças (e não das desigualdades) de modo a tensionar a ideia
de equilíbrio. O policentrismo não pode ser visto com ênfase na descentralização,
mas sim na (re)centralização ou na definição de uma centralização múltipla e
diferenciada. Por essa razão, é preciso, especialmente para políticas públicas de
48 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

desenvolvimento urbano, estabelecer critérios diferentes. Em que pese a necessida-


de de universalizar para o território nacional as políticas, é preciso atentar para as
especificidades que caracterizam as parcelas da rede urbana em que as fragilidades
na oferta de bens e serviços públicos são tão grandes quanto as do setor privado.
Para isso, penso que uma saída é definir prioridades no tempo. Dessa forma,
sempre que se delinear uma política pública, é preciso ordenar a ação, escolhendo o
que se vai efetuar no curto e no médio prazo. Contudo, sempre haverá o perigo da
descontinuidade promovida pelas mudanças de governo ou de equipes no mesmo
governo, afinal estamos ainda longe da definição, na maior parte das situações, de
políticas de Estado.

4 PARA FECHAR O TEXTO


Reitero o que busquei esclarecer nos primeiros parágrafos: classifico este texto como
um ensaio que foi preparado para um diálogo, como o nome do evento propôs, e
que foi por ele enriquecido.
Nesse cenário, as ideias não foram suficientemente desenvolvidas, nem com-
pletamente fundamentadas na literatura, embora haja muita produção qualificada
disponível. Essa opção decorreu de, ao menos, dois fatos: o texto foi feito com base
nos textos que foram objeto do evento, o que direcionou a minha sensibilidade
mais para uns pontos que para outros; e os textos eram qualificados e amplos,
razão pela qual sugeriam muitos pontos, o que me obrigou a fazer as sínteses e/ou
as primeiras aproximações dos problemas que emergiram.
Gostaria de ter escrito alguma coisa, ainda, sobre a necessidade de passar das
políticas setoriais para as territoriais, o que já foi ensaiado aqui e ali, especialmente
no estado da Bahia durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), mas esse
tema exigiria um texto completo, que ficaria mais bem escrito por outros experts.
Também poderia ter desenvolvido um pouco o desafio de proposição de
políticas públicas em um mundo que muda mais do que permanece, o que carac-
teriza o período da aceleração contemporânea, como conceituou Santos (1998).
No entanto, tenho certeza de que os profissionais envolvidos com a elaboração e a
implantação de políticas públicas sabem disso muito bem, afinal são eles que mais
se defrontam com a realidade em mudança constante (no plano geral); com as
flutuações na coalisão de forças que sustenta o poder nacional (no plano particular);
e com as condições materiais e de capital social e cultural de cada localidade (no
plano das singularidades).
Assim, mais provocativo do que conclusivo, mais caracterizado pelo meu
desejo de suscitar reflexão do que de ensinar caminhos a quem já os trilha e sabe
bem onde estão as pedras, espero que o texto alimente o diálogo sobre os temas
de que trata.
Formulação de Políticas Públicas para o Desenvolvimento Urbano: possibilidades | 49
para o pensamento e a ação

REFERÊNCIAS
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escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

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CAPÍTULO 3

A AGENDA URBANA E A ESCALA MUNICIPAL: DESAFIOS


TIPOLÓGICOS ENTRE A INSTITUCIONALIDADE E O ESPAÇO
CONSTRUÍDO
Armando Palermo Funari1
Lizando Lui2
Carlos Henrique C. Ferreira Jr.3

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este capítulo resulta de um esforço exploratório prévio de levantamento, organi-
zação e análise de dados, informações e contextos voltado a subsidiar os debates
basilares para a elaboração da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
(PNDU), capitaneado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional – MDR
(Funari, Lui e Ferreira Junior, 2020). Em particular, preocupa-se em sistematizar
ponderações e contribuições para formulação de tipologias municipais que auxiliem
a persecução dos objetivos estipulados para a PNDU.
Para tanto, apoia-se em importante trabalho anterior de contextualização
oferecido por Costa et al. (2021), que reuniram elementos fundamentais para o
entendimento de aspectos históricos, sociais, econômicos e territoriais relacionados
à política urbana no Brasil, dos principais desafios ligados ao esforço de sistemati-
zação de uma PNDU e do próprio conceito de desenvolvimento urbano. Naquela
contribuição, considerou-se o desafio do alinhamento às agendas internacionais,
que trazem objetivos desejáveis no sentido da produção de cidades “inclusivas”,
“solidárias” e “sustentáveis”, porém sistematizados a partir de uma visão eminen-
temente neoliberal das dinâmicas socioeconômicas que dariam lastro a essa visão.
Essas contradições encontrariam dificuldades extraordinárias no cenário brasileiro:
A existência de uma realidade local marcada por um universo heterogêneo de
municípios, os quais apresentam diferentes relações e interações com outros en-
tes da Federação, bem como inserções distintas nos espaços regional, nacional

1. Pesquisador do Subprograma de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional (PNPD) na Diretoria de Estudos


e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Dirur/Ipea). E-mail:
<[email protected]>.
2. Professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) de Brasília. E-mail: <[email protected]>.
3. Pesquisador do PNPD na Dirur/Ipea e advogado consultor em política e planejamento urbano e regional. E-mail:
<[email protected]>.
52 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

e global, implica em diferentes níveis de adesão às agendas territoriais, varia-


das demandas e necessidades do ponto de vista dessas agendas e diversos usos
(ou omissões) em termos da adesão a planos territoriais e setoriais ou mesmo à adoção de
instrumentos de política urbana, notadamente aqueles trazidos pelo EC [Estatuto
da Cidade] (Costa et al., 2021, p. 40).
Essas diferenças se veem demasiado agravadas por aquilo que Brandão (2010)
enxerga como importante elemento nacional de unidade que abarca essa multi-
plicidade de contextos transescalares: uma verdadeira “máquina de exclusão”, que
promove degradação e depredação em amplos contextos, submetendo pessoas, o
ambiente e os espaços como variáveis de ajuste num processo de ampla capacidade
de mobilização de rotinas de apropriação e expropriação.
Isso configura um desafio central entre os que se acumulam para o cumpri-
mento daquilo a que este trabalho aspira. O esforço de criação tipológica implica
forçosamente um exercício de compressão dimensional, ou seja, de fragmentação
e síntese, separando e reunindo aspectos, a fim de hierarquizá-los e contrastá-los.
De outra maneira, coloca como proposta a objetivação de quadros e contextos
complexos para fins determinados. Nesse procedimento, são muitos os descami-
nhos possíveis.
Em termos abrangentes, talvez, o principal perigo seja configurado pela su-
persimplificação, porque disso decorrem problemas adicionais. A tentação, nesse
sentido, é sempre presente, estipulando-se linhas poucas ou retas demais, ao se
contemplarem dinâmicas que se quer organizar. A racionalidade tipológica não
raro se choca com as necessárias mediações de um trabalho analítico mais detido,
podendo fazer que feixes de nexos deem lugar a simples ligações diretas. Vencido,
porém, esse perigo imediato, não se esgota necessariamente a questão. Uma de-
terminada tipologia, de fato, cumpre papel definidor para atuação sobre aquela
variável ou conjunto de variáveis? Em que medida? Um exemplo poderia ser dado
pelas variáveis que embasaram as tipologias adotadas pela I Política Nacional de
Desenvolvimento Regional: crescimento do produto interno bruto (PIB) per capita
e nível médio de rendimento domiciliar poderiam cumprir os objetivos almejados
pela política em toda a sua extensão? Trata-se de uma dificuldade real de se trazer
para o escopo de trabalho as formas concretas de identificação e atuação, a fim de
que haja alinhamento entre visão e rumos para transformação.
Em termos específicos para a PNDU e a formulação de tipologias munici-
pais, permanece a dificuldade de se tratar de algo que tem escopo tão complexo
como municípios, simultaneamente agentes e objetos de uma miríade de proces-
sos e relações, sejam advindos dos termos explicitados por Costa et al. (2021),
sejam abordados por demais contribuições da bibliografia crítica sobre o tema.
Tal problemática compreende não apenas a abrangência continental do território
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 53
a institucionalidade e o espaço construído

nacional e suas implicações, mas também o contexto do subdesenvolvimento que


configura uma maneira própria de inserção no cenário global, bem como a hete-
rogeneidade estrutural que imprime rotinas particulares a dinâmicas que teimam
em se espelhar e, ao mesmo tempo, desfigurar padrões típicos de relações entre
sujeitos no contexto capitalista.
Destaca-se, aqui, a particularidade de se pensar uma política nacional em
que o planejamento e a prerrogativa de atuação não estão circunscritos ao mesmo
agente formulador – envolvendo um emaranhado de questões federativas e formas
de inserção distintas, com instrumentos e visões diferentes e sobrepostas, sendo
de especial relevância o papel destacado que o federalismo brasileiro atribui aos
municípios, como entes federados.
Formalmente, os municípios são uma categoria de entes político-adminis-
trativos que compõem a Federação. Seu surgimento e evolução estão ligados à
própria formação do Estado brasileiro, sendo a primeira forma de institucionalidade
construída no território. É importante que não se confunda o município com a
cidade ou o urbano. Legalmente, a cidade é o núcleo urbano sede do município que
também comporta outra categoria urbana, a vila. Mais recentemente, o Estatuto da
Metrópole reconheceu a metrópole e as aglomerações urbanas como tipos urbanos
que podem ser identificados nos municípios. É também importante lembrar que o
Distrito Federal e o distrito estadual de Fernando de Noronha não são municípios,
mas contam com núcleos urbanos.
Soma-se a isso a necessidade de se respeitarem diferentes contextos regionais
e locais, fugindo de receituários simplistas que tratam o território de maneira
uniforme – note-se, esforço que dificilmente ocorre no empenho para elaboração
de tipologias sem algum nível de contradição. Ainda assim, é preciso avançar no
entendimento do contexto brasileiro, heterogêneo e subdesenvolvido, tendo em
vista que o tratamento igual de entes distintos, como visão forçada imposta por
uma determinada forma de objetivação, mais contribui para o aprofundamento
das amplas desigualdades vigentes do que para seu combate. Analogamente, se a
formulação de políticas públicas para aquilo que se toma como o “cidadão médio”
consiste num forçoso atropelo da realidade, com implicações indesejáveis, pensar
políticas públicas para o município médio parece igualmente desastroso. Sobre isso,
seriam interessantes adições e complementos ligados à produção crítica que busca
questionar a construção, ocupação e apropriação de espaços urbanos baseadas em
um pretenso padrão de normalidade, sem questionamento das rotinas e dinâmicas
específicas de mulheres, das diversas realidades da população racializada, dos espaços
de convivência e afeto, e uma série de outras questões ligadas às subjetividades da
produção das cidades e seus cotidianos. Trata-se de uma preocupação humanista
que este capítulo em particular reconhece, ainda que nisso pouco consiga avançar.
54 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

As variações de porte da população e do território são mais um desafio para


o estabelecimento de uma escala de trabalho compatível com o planejamento
territorial urbano. Para além da escala, há também a configuração dos núcleos ur-
banos que variam em porte, distribuição no território municipal, situação relativa
à rede urbana e ao contexto de arranjos populacionais. Em vários casos, a sede
(formalmente cidade) é menor que uma sede de distrito (vila) ou que um bairro cujas
relações são mais intensas com um município vizinho. Essas questões representam
um desafio na construção de indicadores que não compliquem demais a tipologia
em um sem-fim de categorias, mas que precisam de um tratamento adequado.
Do contrário, corre-se o risco de, ao simplificar demais a representação da realidade,
terminar por ignorá-la completamente.
Um arcabouço adicional de dificuldades pode ser atribuído à articulação
entre questões de temporalidade própria que precisariam ser trazidas a uma base
comum pelo esforço tipológico: aspectos perenes ou de maior rugosidade temporal
em contraposição àqueles extremamente dinâmicos ou conjunturais. Levanta-se,
assim, a possibilidade de se aventarem abordagens dinâmicas que internalizem
mecanismos de atualização, ou ao menos reconheçam alguma forma de faseamento
ou transformação à medida que cenários se transfigurem.
Por fim, parece oportuno lembrar que o urbanismo e o planejamento urbano
também se configuram como campos de disputa: aquilo que se decide explicitar
ou ocultar contribui para delimitar em que termos e em que linhas as disputas
ocorrem – as tipologias carregam essa questão. O que se decide como tipologia é a
condensação, a cristalização dos termos que orientarão as políticas e transformações.
Tendo explicitado esse conjunto de considerações, sem nutrirmos qualquer
ilusão sobre a (in)capacidade de superá-las, faz-se oportuno apresentar, de maneira
geral, os termos em que se desenvolve e se organiza este capítulo. Há diferenças
muito marcantes nas capacidades municipais entre os 5.570 entes “formalmente
autônomos”, que a Constituição Federal de 1988 (CF/1988) trata de forma ba-
sicamente isonômica. Os esforços de sobreposição dos diferentes contextos que
conformam rotinas bastante distintas entre municípios – organizando-os por sua
inserção regional, na rede de cidades, em arranjos metropolitanos, dividindo-os
por faixa de PIB ou PIB per capita, por vulnerabilidade ou extensão da pobreza –
poderiam ser complementados por uma série de características (combinadas ou
não) que se aproximariam de perfis prioritários para a ação de políticas públicas.
Constata-se que as alternativas de composição territorial para o planejamento são
múltiplas e estão associadas, logicamente, às distintas características dos municípios,
não apenas sociodemográficas, mas em termos de suas inserções nos espaços regional,
nacional e global, bem como de suas capacidades institucionais. Nos desenhos de
políticas públicas e nos arranjos – institucionais, administrativos ou gerenciais –
utilizados para resolver as várias demandas dos municípios, desde as políticas sociais
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 55
a institucionalidade e o espaço construído

até as políticas espaciais, pouca atenção se dá, muitas vezes, à heterogeneidade e às


diferenças entre eles. Contudo, a análise e a categorização de diferenças tipológicas,
de ordenamentos territoriais supramunicipais e das formas como se estabelecem as
relações interfederativas, em nível horizontal e vertical, deve oferecer importantes
subsídios para elaboração da PNDU. É possível se adotar uma tipologia desses arran-
jos presentes no país com base em um amplo conjunto de indicadores de potencial
humano, produtivo, institucional, em cada território, aprofundando o conhecimento
que alicerçará a PNDU (Costa et al., 2021, p. 46).
O que se procurou organizar, no trabalho analítico exploratório mencionado
no início, foi uma sequência de temáticas a partir de uma listagem de indicado-
res municipais, organizados com o intuito de sensibilizar e embasar abordagens
tipológicas inclusivas e que lograssem enfrentar o desafio de atuar sobre temas,
dinâmicas e rotinas minimizando simplificações e presunções que contaminam seu
adequado equacionamento (ou o mais próximo que se poderia chegar disso, dadas
as limitações em vigor). Em vez de se oferecer uma formulação tipológica pronta,
optou-se por abrir e organizar questões para as quais existam dados disponíveis
para a escala municipal e apontar ou enumerar potenciais situações ou recortes de
fragilidade ou vulnerabilidade.
Os temas apresentados tencionavam permitir, ao fim, um exercício de ela-
boração de “etiquetas” ou “lâminas” tipológicas que poderiam ser ligadas ou
desligadas, combinando aspectos relevantes para o tipo de inserção específica do
município, do contexto, das necessidades e das formas de atuação. Isso foi pensado
tendo em mente a possibilidade de construção de um sistema ou base de dados
de informações municipais que oferecesse aos responsáveis pelo planejamento da
política insumos multidimensionais para recortes de prioridade e áreas/temas de
atuação. Com isso, não se encerrariam, tampouco se esgotariam as tarefas; apenas
se buscou apontar para questões pertinentes que podem ser integradas numa busca
por tipologias para a PNDU. A próxima seção apresenta, de maneira sintética, as
dimensões e alguns dos cruzamentos de dados e informações realizados no exercício
exploratório levado a cabo. Na sequência, tendo como base a sistematização dessas
rodadas temáticas, apresenta-se o exercício de formulação de possíveis lâminas ti-
pológicas, com ponderações acerca da proposta preliminar apresentada pelo MDR.
Por último, as considerações finais buscam organizar lacunas que potencialmente
configurariam caminhos profícuos no avanço desse tipo de esforço.

2 RECORTES DE GRUPOS E PERFIS DE VULNERABILIDADE


Adotou-se para este trabalho a postura de se recortarem grupos de fragilidade ou
vulnerabilidade a partir de dados municipais e seus cruzamentos, partindo da ideia
de que recursos e esforços escassos podem se beneficiar de critérios de priorização ou
métricas para ponderar diferentes formas de atuação a partir de verbas e programas
56 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

administrados pelo MDR. Isso se deu de duas formas principais: i) pelo apontamen-
to da existência de determinada característica – seja a presença de peça regulatória
específica, instrumento de controle, ou qualquer outro atributo que pudesse ser
identificado de forma binária; e ii) pela formação de grupos de valores, separados por
medidas de posição (mediana, quartis, decis), visando apontar grupos com maiores
ou menores valores para uma característica (maiores proporções de população em
situação de pobreza, de rendimento mediano domiciliar etc.).
Isso tudo foi feito em uma planilha de trabalho (formato Excel), para todos os
municípios brasileiros, na qual constam valores de variáveis e potenciais “etiquetas”
de grupos de valores. Com o auxílio do recurso de tabelas dinâmicas, foi possível
promover cruzamentos – tão gerais ou específicos quanto se desejasse –, a fim de
se permitir sobreposição ou agregação de características distintas e cortes parti-
culares que pudessem beneficiar a caracterização ou atuação de políticas públicas
sobre recortes ou sub-recortes específicos de municípios, em alinhamento com a
ideia de se buscarem maneiras adequadas de lidar com expressões diferenciadas
de suas situações e contextos locais. Uma longa apresentação desses cruzamentos,
juntamente com justificativas, comentários e resultados está disponível na versão
estendida deste estudo (Funari, Lui e Ferreira Junior, 2020). Decidiu-se, por ne-
cessidade de síntese, trazer quadros resumidos que indicassem os temas e recortes
trabalhados. Dessa forma, passa-se a ideia da trajetória explorada para composi-
ção dos cenários municipais em cada temática, a fim de, na sequência, propor-se
um exercício a partir dos perfis examinados, chegando a “lâminas” tipológicas.
Fica registrada aqui a forte recomendação de leitura e uso do documento com-
pleto, para quadros e análises mais detidas sobre os indicadores e estatísticas que
constam deste capítulo.
Vale ainda notar que, em nenhuma medida, as tabelas e os quadros apre-
sentados na referida versão estendida esgotam as possibilidades abarcadas pela
metodologia proposta. Em realidade, o esforço constante naquele documento
sistematizou retratos simplificados (e compatíveis, em maior ou menor grau, com a
visualização num documento de textos), tentando explicitar justamente as limitações
das usuais maneiras de serem estruturadas leituras sobre os municípios.4 Sempre
que possível, as informações foram organizadas em duplas de tabelas, contendo
cruzamentos entre a informação da inserção macrorregional e o porte populacional
e, adicionalmente, a inserção macrorregional juntamente com a classificação nas
categorias das Regiões de Influência das Cidades (Regics) do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Essa opção, no lugar da possibilidade de se apre-
sentarem isoladamente essas três sistematizações, objetivou permitir a visualização

4. Mesmo na versão completa indicada, o texto elencou variáveis e cruzamentos a partir de uma seleção, pois uma
quantidade ainda superior de dados foi manipulada na referida planilha de trabalho.
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 57
a institucionalidade e o espaço construído

de particularidades dos municípios dentro do escopo regional brasileiro. Assim,


foi possível diferenciar características de municípios de até 5 mil habitantes, por
exemplo, para cada uma das macrorregiões, ou verificar a diversidade de condições
em municípios metropolitanos regionalmente, para citar apenas duas possibilidades.
É importante destacar que a classificação pela Regic-18, atribuída a cidades e
arranjos (além de municípios isolados), passou, para fins deste trabalho, por proce-
dimento que permitisse sua “municipalização”. Isso significa que qualquer menção
feita, ao longo deste esforço, à classificação pela Regic, em realidade, remete a essa
classificação “municipalizada”. Municípios isolados receberam exatamente a mesma
classificação apresentada na pesquisa original. Para o caso dos arranjos populacio-
nais, foram identificados os municípios que deles faziam parte e adotou-se, para
cada um, a classificação estabelecida para o arranjo. Esse procedimento permitiu
determinar para cada município uma classificação. Isso, entretanto, comprometeu
a precisão na ordenação município a município para sua posição na hierarquia de
cidades. Isso poderia ser facilmente substituído por uma classificação mais precisa
que atingisse a totalidade dos municípios brasileiros, incorporando-a à menciona-
da planilha de trabalho. Em que pesem as limitações do procedimento, os 5.570
municípios receberam classificação, e é preciso atentar a isso ao se observarem as
tabelas e os quadros apresentados.
O levantamento de dados e sua organização na referida planilha de trabalho
reuniu fontes distintas, cada qual com seus próprios escopos e limitações. A Pesquisa
de Informações Básicas Municipais (Munic), do IBGE, por exemplo, realizada
anualmente, traz informações diversas sobre as condições que se apresentam para as
instituições públicas municipais, com respostas dadas pelos próprios agentes locais.
Cobre uma gama bastante extensa de temas, desde informações sobre legislação
específica até a existência e as condições de operação de conselhos municipais, pas-
sando pela incidência de impactos ambientais ou a verificação de fundos setoriais.
Por vezes, é possível encontrar registros indicando que os entrevistados não sabiam
informar se determinada condição foi verificada no município, ou ainda, observa-se
uma eventual recusa em responder a questões. O IBGE ainda foi responsável por
diversas outras pesquisas com informações municipais utilizadas aqui. Além da
Regic-18 e da Munic (de 2015 a 2018), foram empregados os registros da Pesquisa
de Acessibilidade Geográfica dos municípios, dados das Contas Regionais (para
o ano de 2017), além do Censo Demográfico 2010, bem como da Pesquisa de
Características Urbanísticas do Entorno dos Domicílios.
Integraram também esse esforço os dados da Relação Anual de Informações
Sociais (Rais), hoje ligada ao Ministério da Economia (ME), com informações sobre
vínculos de emprego fornecidas pelos contratantes. Em particular, foram utilizados
registros para 2018 sobre os vínculos empregatícios no Executivo municipal e a
58 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

escolaridade dos servidores, bem como cruzamentos pela Classificação Brasileira de


Ocupações (CBO). Adicionalmente, informações sobre a distribuição setorial dos
empregos formais nos municípios e sua concentração. Uma das principais limitações
dos levantamentos da Rais é justamente o fato de captar apenas registros formais,
num país que historicamente manteve grande parcela da população trabalhadora
em condição de informalidade.
Foram adicionados ainda à planilha de trabalho dados da Secretaria do Tesouro
Nacional (STN), por via do Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor
Público Brasileiro (Siconfi), em particular de Receitas de Finanças Municipais
(Finbra), relativos a 2017 – ano para o qual se obteve a maior quantidade de in-
formações inseridas no passado recente. Como as informações são fornecidas pelas
próprias municipalidades, são recorrentes ausências de informações ou até mesmo
alterações realizadas em anos posteriores. Isso acaba limitando a confiabilidade
geral, mas permanece como forma possível de pesquisar o tema.
Finalmente,5 completam os dados o levantamento sobre déficit habitacional
e inadequação de domicílios, sistematizado pela Fundação João Pinheiro (FJP),
e o Índice de Vulnerabilidade Social (IVS), do próprio Ipea, ambos referentes a
2010, ano em que as informações para os municípios encontravam-se completas.
As informações da planilha de trabalho foram ordenadas em quatro grupos
temáticos distintos, que integram as diferentes seções do trabalho: i) aspectos
institucionais; ii) planejamento e instrumentos territoriais de desenvolvimento;
iii) aspectos econômico-financeiros; e iv) políticas setoriais urbanas. Completa a
estrutura de conteúdos a seção 4, com considerações sobre indicadores geográfi-
cos situacionais e uma seção final, na qual se procurou sistematizar uma sugestão
básica e simplificada de encaminhamentos possíveis a partir dos conteúdos apre-
sentados. Ainda nessa seção, buscou-se aplicar uma contagem de “fragilidades” ou
“vulnerabilidades”, para a proposta de tipologia até então trabalhada pelo MDR,
sintetizando este esforço de sensibilização de adição de critérios complementares
para se pensar a PNDU.
Essa proposta preliminar, que buscou identificar perfis potenciais de fragili-
dade dentro da lista de variáveis trabalhadas, aqui identificadas como “lâminas” ou
“etiquetas” tipológicas, foi estruturada a partir de uma outra planilha, alimentada
pela referida planilha de trabalho (nomeada como planilha lâminas). Ali, a proposta
apresentada pode ser aprimorada para atender aos anseios e objetivos do MDR
quanto à formulação das tipologias municipais, substituindo indicadores, refinando
pesos, entre outras possibilidades.

5. Ademais, ressalte-se que muitas das questões pertinentes associadas às escalas supramunicipal e regional, bem como a
inserção na rede de cidades – ainda que impliquem condicionantes relevantes para a escala municipal –, a par de alguns
recortes temáticos apenas tangenciados neste exercício, foram tratados mais detidamente em outros capítulos deste livro.
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 59
a institucionalidade e o espaço construído

2.1 Aspectos institucionais


Para este tema, buscou-se apresentar considerações a respeito de diferentes questões
ligadas aos aspectos institucionais de competência municipal. De início, o esforço
se voltou para recursos técnicos, informacionais e pessoais à disposição das gestões
municipais. Em seguida, foram abordados elementos concernentes à atuação em
consórcio e mecanismos de participação social. Em sua maioria, foram utilizados
dados da Munic (2015, 2017 e 2018), da Regic (2018) do IBGE, da Rais (2018) e do
Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU). Os levantamentos foram organizados
para uma caracterização e posterior identificação de possíveis perfis de fragilidade,
que podem interessar à organização de ações prioritárias por parte do MDR.

QUADRO 1
Eixos temáticos e conteúdos trabalhados para o tema aspectos institucionais
Aspectos institucionais Fonte
1. Sistemas técnicos e informacionais
Contagem de municípios que responderam negativamente à existência de base carto-
gráfica digitalizada, de sistema de informação geográfica (2015) e de estudo setorial
Munic (IBGE, 2015; 2018)
ou diagnóstico socioeconômico (2018), por macrorregião e porte populacional; por
macrorregião e classificação na Regic-18.
Existência ou não de cadastro imobiliário informatizado, cuja última atualização se
deu em 2010 ou antes, por macrorregião e porte populacional; por macrorregião e Munic (IBGE, 2015)
classificação na Regic-18, 2015.
2. Fortalecimento da burocracia municipal
Municípios cuja proporção de vínculos para o Executivo, sem ensino superior completo,
estava no último decil e sem registro de arquitetos, urbanistas ou geógrafos, por Rais (Brasil, 2018)
macrorregião e porte populacional; por macrorregião e classificação na Regic-18, 2018.
3. Consórcios
Municípios participantes ou não de ao menos um consórcio, por macrorregião e porte
Munic (IBGE, 2015)
populacional; por macrorregião e classificação pela Regic-18, 2015.
Contagem de municípios por tema de consórcios celebrados, por macrorregião; por
Munic (IBGE, 2015)
porte populacional; por classificação pela Regic-18, 2015.
4. Mecanismos de participação social
Contagem de municípios que sinalizaram não dispor de conselho, por tema, por
Munic (IBGE, 2017b; 2018)
macrorregião; por porte populacional; por classificação na Regic-18, 2017 e 2018.

Fontes: IBGE (2010; 2015; 2017) e Brasil (2018).

2.2 Planejamento e instrumentos territoriais de desenvolvimento


Para este segundo tema, foram reunidas informações da Munic (2015-2018), com
foco particular em instrumentos de planejamento urbano e sua regulamentação.
Alguns recortes foram propostos, a começar pela temática do plano diretor (PD),
buscando identificar sua existência e necessidade de revisão pelos municípios.
Em seguida, de forma bastante sintética, foram identificadas as principais regula-
mentações de instrumentos centrais para gestão do território municipal e controle
60 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

sobre sua ocupação, inclusive com menção àqueles previstos no Estatuto da Cidade
(EC). Esse esforço foi sucedido pelo levantamento de planejamento e incidência
de situações de risco nos municípios, pela relevância (e urgência) que a temática
possui, remetendo a parcelas muito expostas da população. Por fim, lançou-se o
olhar sobre a legislação ambiental municipal e a incidência de impactos ambientais.

QUADRO 2
Eixos temáticos e conteúdos trabalhados para o tema planejamento e instrumentos
de desenvolvimento
Planejamento e instrumentos territoriais de desenvolvimento Fonte
1. PD
Existência de PD no município, por macrorregião e porte populacional; por macrorregião e
Munic
classificação na Regic-18, 2018.
Municípios que realizaram ou não revisão do PD, tendo implementado o plano há mais de dez
Munic
anos, por macrorregião e porte populacional; por macrorregião e classificação pela Regic-18, 2018.
Média de anos passados desde a aprovação do PD, em municípios que não realizaram sua revisão,
Munic
por macrorregião e porte populacional; por macrorregião e classificação na Regic-18, 2018.
2. Regulamentação de instrumentos territoriais
Contagem de municípios por número de itens de legislação (0 a 14), por macrorregião e faixa
populacional; por classificação na Regic-18, 2018 (PD; legislação sobre área e/ou zona especial
de interesse social; legislação sobre zona e/ou área de interesse especial; lei de perímetro urbano;
legislação sobre parcelamento do solo; legislação sobre zoneamento ou uso e ocupação do solo;
legislação sobre solo criado ou outorga onerosa do direito de construir; legislação sobre contri- Munic
buição de melhoria; legislação sobre operação urbana consorciada; legislação sobre estudo de
impacto de vizinhança; código de obras; legislação sobre zoneamento ambiental ou zoneamento
ecológico-econômico; legislação sobre regularização fundiária; legislação sobre estudo prévio de
impacto ambiental).
3. Planos e gestão de riscos
Contagem de municípios sem plano municipal de redução de riscos por tipo de incidência, por
Munic
macrorregião e porte populacional; por macrorregião e classificação pela Regic-18 2018.
4. Dimensão ambiental
Quadro de distribuição de municípios por número de itens de legislação ambiental (0 a 11), por
região geográfica e porte populacional; região geográfica e Regic-18 (abrangendo legislação sobre
coleta seletiva de resíduos sólidos domésticos; saneamento básico; gestão de bacias hidrográficas;
Munic
área e/ou zona de proteção ou controle ambiental; destino das embalagens utilizadas em produtos
agrotóxicos; poluição do ar; permissão de atividades extrativas minerais; fauna silvestre; florestas;
proteção à biodiversidade; adaptação e mitigação de mudança do clima).
Contagem de municípios sem qualquer legislação ambiental e que sofreram a incidência de
processos de impacto ambiental nos últimos 24 meses, por macrorregião e porte populacional; por Munic
macrorregião e classificação pela Regic-18, 2018.

Fonte: IBGE (2018).

2.3 Aspectos econômico-financeiros


Este tema trouxe itens ligados à dimensão econômica dos municípios, oferecendo
visões distintas que compõem os contextos locais. Foram reunidos, para tanto, alguns
dos principais cortes que podem ser utilizados para complementar as análises das
“etiquetas” ou “lâminas” organizadas ao longo do trabalho. A ideia continua sendo
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 61
a institucionalidade e o espaço construído

estabelecer critérios possíveis de serem combinados para embasar hierarquização


de municípios, permitindo uma atuação qualitativamente distinta e prioritária
junto àqueles que acumulem maiores ou mais profundos graus de fragilidades.
As informações utilizadas são advindas do Finbra, da STN, bem como da
Rais, além de sistematizações a partir de dados das Contas Regionais e do Censo
Demográfico 2010 do IBGE, complementados pelo IVS do Ipea.
A partir da ideia de perfis de priorização, muitos dos dados foram organizados
e classificados a partir de faixas de valores, em geral orientados por medidas de
posição. Para os dados apresentados em faixas, o padrão utilizado de classificação
estabeleceu os seguintes intervalos: primeiro e último decis como divisores dos
grupos extremos, muito baixo ou muito alto; primeiro e terceiro quartis como
divisores para valores baixos e altos; e, entre esses grupos, separados pela mediana,
médio baixo e médio alto. Essa classificação serviu para organizar faixas para um
número muito grande de variáveis que seguem lógicas e escalas diferentes. Por um
lado, isso facilitou procedimentos, adotando-se um mesmo padrão. Por outro, não
se procedeu a exame mais detido sobre aquele item verificado e analisado – como
resultado, um município que possa estar num grupo médio alto, para classificação
entre municípios nacionais, poderia certamente figurar com valores muito altos
numa comparação internacional, por exemplo.
Aqui, a ideia foi separar em grupos para o estabelecimento de prioridades,
identificando-se grupos de municípios em contextos específicos e classificados
como os “mais desiguais” ou com “menores receitas”. Os somatórios gerais de
municípios por faixas relacionadas a determinada estatística ou indicador, portanto,
não necessariamente respeitam as diferentes lógicas internas, mas funcionam como
separadores de posição, o que resulta em um número recorrente de municípios
dentro de cada grupo, a não ser em cruzamentos específicos.
Uma exceção a esse procedimento foi adotada para o caso do IVS, do Ipea,
e seus componentes. Para esse caso, as faixas seguiram as indicações apresentadas
no portal em que o índice e os dados relacionados estão disponíveis.6 Para o
restante das informações apresentadas, entretanto, sempre que as faixas fossem
utilizadas como recurso para organizar os dados municipais, seguiu-se a lógica
descrita no quadro 3.

6. O sítio de internet do referido portal pode ser acessado em: https://bit.ly/42qHG6v.


62 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

QUADRO 3
Distribuição dos rótulos adotados por medida de posição
Grupo Definição
Muito baixo(a) Valores entre o registro mínimo e o 1o decil
Baixo(a) Valores entre o 1o decil e o 1o quartil
Médio baixo(a) Valores entre o 1o quartil e a mediana
Médio alto(a) Valores entre a mediana e o 3o quartil
Alto(a) Valores entre o 3o quartil e o último decil
Muito alto(a) Valores entre o último decil e o registro máximo

Elaboração dos autores.

Em decorrência das escolhas metodológicas adotadas, os grupos extremos


contaram com menor número de resultados, ao passo que os grupos médios, com
os maiores. As contagens de municípios apresentadas, dessa forma, tiram muito
mais informações dos cruzamentos propostos – seja por Grande Região geográfi-
ca, faixa populacional ou classificação na Regic-18 – do que pela distribuição por
faixas em si.
Primeiramente, foram colocados exemplos de combinações específicas de
variáveis que poderiam ser adotadas para o estabelecimento de cortes prioritários
de municípios por algum tipo de fragilidade socioeconômica. Eles foram reunidos
no item perfis de fragilidade. Na sequência, foi posta a questão do peso do Fundo
de Participação dos Municípios (FPM) na receita municipal. Esse item foi seguido
pela questão do caráter de regressividade da tributação na competência municipal,
com um olhar acerca da composição de tributos sobre patrimônio e propriedade
e comparativos com municípios em que o Imposto sobre Serviços (ISS) possuía
maior peso relativo como parte das receitas municipais. Na sequência, foram apre-
sentados levantamentos para existência de Planta Genérica de Valores (PGV) nos
municípios e alguns comparativos, a partir disso, para o peso dos tributos sobre
o patrimônio na jurisprudência municipal. Ainda integraram esta seção alguns
breves comentários sobre perfis setoriais, a partir de dados de setores com maior
concentração de empregos formais e contribuição para o valor agregado municipal.
Por fim, tentou-se elaborar uma “etiqueta” para captar um tipo especial de fragilidade
que se mascara por trás de bons indicadores econômicos. Referimo-nos, no caso, a
municípios que não possuam grande população e que tenham forte dependência de
poucos agentes econômicos ou setores – arquétipo por vezes desejado por muitas
gestões municipais, mas que acaba subvertendo lógicas e procedimentos munici-
pais, muitas vezes de forma “invisível” para dados oficiais tratados isoladamente.
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 63
a institucionalidade e o espaço construído

QUADRO 4
Eixos temáticos e conteúdos trabalhados para o tema cenário econômico-financeiro
Cenário econômico-financeiro Fonte
1. Perfis de fragilidade
Índice de Gini – Censo Demográfico
Contagem de municípios na faixa muito alta para Gini e IVS, por faixa de PIB, por
(IBGE, 2010); IVS (Ipea, 2010); PIB –
macrorregião e porte populacional; por macrorregião e classificação pela Regic-18.
Contas Regionais (IBGE, 2017a)
Índice de Gini – Censo Demográfico
Contagem de municípios na faixa muito alta para Gini e IVS, por faixa de PIB per
(IBGE, 2010); IVS (Ipea, 2010); PIB –
capita, por macrorregião e classificação pela Regic-18.
Contas Regionais (IBGE, 2017a)
Municípios com faixas de IVS alto e muito alto de IVS (geral e todas as componentes),
IVS (Ipea, 2010); PIB – Contas Regionais
por faixa de PIB para região geográfica e porte populacional; para região geográfica e
(IBGE, 2017a)
classificação pela Regic-18.
2. FPM versus receitas e PIB
Participação do FPM no total de receitas, por faixas, por macrorregião e porte popula-
Finbra (Brasil, 2017)
cional; por macrorregião e classificação pela Regic-18, 2017.
Proporção do FPM frente ao PIB, por faixas, por macrorregião e porte populacional; Finbra (Brasil, 2017); Contas Regionais
por macrorregião e classificação pela Regic-18, 2017. (IBGE, 2017a)
3. Tributos sobre o patrimônio/propriedade versus ISSqn1 – municípios e a regressividade da carga tributária
Contagem de municípios por faixas de proporção de tributos sobre propriedade e
patrimônio na receita total do município, para macrorregião e porte populacional; Finbra (Brasil, 2017)
para macrorregião e classificação na Regic-18, 2017.
Média de proporção de tributos sobre propriedade/patrimônio na receita total, por
Finbra (Brasil, 2017); Ipea (2010)
faixa de IVS, para macrorregião e classificação pela Regic-18.
Média de Gini para agrupamentos de municípios em que a arrecadação de ISS supera Censo Demográfico (IBGE, 2010); Finbra
ou não o conjunto de tributos associados a patrimônio/propriedade, por macrorregião. (Brasil, 2017)
Média de IVS para agrupamentos de municípios em que a arrecadação de ISS supera ou
Ipea (2010); Finbra (Brasil, 2017)
não o conjunto de tributos associados a patrimônio/propriedade, por porte populacional.
Média de IDH para agrupamentos de municípios em que a arrecadação de ISS
2

supera ou não o conjunto de tributos associados a patrimônio/propriedade, por PNUD (2010); Finbra (Brasil, 2017)
classificação na Regic-18.
4. Existência de cadastros versus
arrecadação
Média de percentual de tributos sobre a propriedade e o patrimônio dentro da receita
Finbra (Brasil, 2017); Munic (IBGE, 2015)
total, por existência de cadastro imobiliário informatizado, 2017.
Média de percentual de tributos sobre a propriedade e o patrimônio dentro da receita
Finbra (Brasil, 2017); Munic (IBGE, 2015)
total, por existência de planta genérica de valores informatizada, 2017.
Existência, informatização e atualização da PGV, por macrorregião e porte populacio-
Munic (IBGE, 2015)
nal; por macrorregião e classificação pela Regic-18, 2015.
5. Quadro setorial
Contagem de municípios por setor que concentra a maior parcela da mão de obra
Rais (2018); Ipea (2010)
formal, por faixas de IVS, 2018.
Ipea (2010); Censo Demográfico (IBGE,
Médias de indicadores municipais selecionados, por setor que mais contribuiu para o
2010); Contas Regionais (IBGE, 2017a);
valor agregado bruto municipal.
Finbra (Brasil, 2017); PNUD (2010)
6. Fragilidade: concentração de domínio econômico
Municípios com “concentração de domínio econômico”, por macrorregião e porte Censo Demográfico (IBGE, 2010); Contas
populacional; por macrorregião e classificação Regic-18. Regionais (IBGE, 2017a); Rais (2018)

Fontes: IBGE (2010; 2015; 2017a); Ipea (2010); STN (Brasil, 2017); PNUD (2010); e Rais (Brasil, 2018).
Notas: 1 Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza.
2
Índice de Desenvolvimento Humano.
64 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

2.4 Políticas setoriais urbanas


Este tema reuniu tópicos a respeito de três dos principais eixos de políticas setoriais
urbanas: mobilidade, habitação e saneamento. Foram organizados dados a partir
da Munic, da Pesquisa de Características Urbanísticas do Entorno dos Domicílios,
ambas realizadas pelo IBGE, e da Pesquisa de Déficit Habitacional e Inadequação
de Moradias no Brasil, conduzida pela FJP. Essas informações foram objeto de
cruzamentos e recortes, buscando-se ilustrar algumas possibilidades e preocupações,
a partir do conteúdo sistematizado na planilha de trabalho. Assim como ocorreu
no restante do estudo, os tópicos abordados dividiram-se entre oferecer possíveis
perfis municipais de fragilidades ou evidenciar alguma dimensão marcante de
diversidade regional que tornasse desejável complementar cortes imediatos, por
porte populacional ou classificação na Regic.
De maneira geral, há uma interessante discussão que permeia os conteúdos
desta seção, no que diz respeito à relação entre condicionantes setoriais e territoriais
e suas consequências para a estruturação e persecução de objetivos de políticas
públicas. O passado recente brasileiro coleciona uma série de interações, se não
antagônicas, pelo menos contraditórias, quando se pensa em políticas nacionais
com foco no espaço urbano, em que os municípios possuem lugar destacado.
Balanços nas temáticas de mobilidade e habitação, principalmente, mostram como
aspectos externos ou paralelos podem implicar a anulação ou o enfraquecimento
de resultados almejados.
No caso da mobilidade, embora a Política Nacional de Mobilidade Urbana
(2012) tenha abraçado claramente a ideia de priorização dos meios de transporte
ativos, em detrimento dos motorizados e do transporte coletivo sobre os indivi-
duais, benefícios tributários concedidos à indústria automobilística, o aumento
do acesso ao crédito e o histórico rodoviarista consolidado ampliaram os desafios
para que as metas se traduzissem em resultados mais efetivos.
Algo similar poderia ser afirmado para a política habitacional (Fix e Arantes,
2009; Rolnik, 2015; Costa, 2019), em que critérios de qualidade urbanística
representaram, por inúmeras vezes, preocupações secundárias, contribuindo para
a continuidade e o agravamento de problemas persistentes ligados à expansão
excessiva do espaço urbano e sua qualidade insuficiente.
Essas questões se tornam ainda mais difíceis de superar quando se abor-
dam políticas com participação dos diferentes entes da Federação, cada qual
com preocupações específicas e, por vezes, posturas e visões desalinhadas. Nesse
sentido, um esforço de hierarquização de condicionantes, nas diferentes escalas,
para as diferentes políticas setoriais, seria de extrema valia para que se pudessem
estabelecer eixos mais coesos de atuação a partir dos princípios e objetivos estipu-
lados. Isso exige, entretanto, trabalho mais detido e prolongado. Adicionalmente,
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 65
a institucionalidade e o espaço construído

se o período expansionista recente da economia brasileira certamente trouxe ele-


mentos complicadores para a expansão e ocupação equilibrada, socialmente justa
e ecologicamente sustentável, vale também refletir quais seriam as condicionantes
lançadas para o cenário reverso, que teima em se prolongar, de recessão e crise,
em termos da qualidade da urbanização e da expansão dos centros urbanos e sua
relação com os espaços não urbanizados.
Os conteúdos para este tema foram divididos em quatro tópicos. O primeiro
trouxe informação sobre o planejamento em municípios, a partir da informação da
existência de planos setoriais e PD. O segundo tópico se preocupou em apresentar
alguns recortes ligados à mobilidade. Em seguida, abordou-se o tema da habitação;
e, por fim, o do saneamento básico.

QUADRO 5
Eixos temáticos e conteúdos trabalhados para o tema políticas setoriais urbanas
Políticas setoriais urbanas Fonte
1. PD e planos setoriais
Municípios sem PD e planos de transporte, habitação, saneamento e de gestão integrada
Munic (IBGE, 2017b), 2018); Ipea
de resíduos sólidos – por faixa de IVS, por macrorregião e porte populacional; por
(2010)
macrorregião e classificação na Regic-18.
2. Mobilidade
Existência de plano de transporte no município, por macrorregião e porte populacional;
Munic (IBGE, 2017b)
por macrorregião e classificação na Regic-18, 2017.
Municípios sem transporte intraurbano de ônibus, com IVS – infraestrutura urbana alto
ou muito alto, por faixa de densidade demográfica, macrorregião e porte populacional; Munic (IBGE, 2017b); Ipea (2010)
macrorregião e classificação pela Regic-18.
Municípios por faixa de fragilidade de entorno dos domicílios: mobilidade (termos Pesquisa de Características Urbanísti-
relativos), por macrorregião e porte populacional; por macrorregião e classificação pela cas do Entorno dos Domicílios
Regic-18, 2010. (IBGE, 2010)
Participação social e mobilidade – municípios sem conselho, sem fundo temático e sem
conferência nos últimos quatro anos, por macrorregião e porte populacional; por Munic (IBGE, 2017b)
macrorregião e classificação na Regic-18, 2017.
3. Habitação
Municípios sem plano de habitação, por faixa de IVS, macrorregião e porte populacional;
Munic (IBGE, 2017b) e (Ipea, 2010)
macrorregião e classificação na Regic-18, 2017.
Municípios por existência de favelas, cortiços e loteamentos irregulares, por
Munic (IBGE, 2017b)
macrorregião e porte populacional; por macrorregião e classificação na Regic-18, 2017.
Municípios por faixa de déficit habitacional (relativo), por macrorregião e faixa de porte
FJP (2010)
populacional; por macrorregião e classificação na Regic-18, 2010.
Contagem de municípios onde os domicílios vagos superam o déficit habitacional
(urbano), por macrorregião e porte populacional; por macrorregião e classificação na FJP (2010)
Regic-18, 2010.
Municípios por faixas de inadequação de domicílios urbanos – relativo, por macrorregião
FJP (2010)
e porte populacional; por macrorregião e classificação na Regic-18, 2010.
Participação social – habitação: municípios sem conselho, sem fundo temático e sem
conferência nos últimos quatro anos, por macrorregião e porte populacional; por Munic (IBGE, 2017b)
macrorregião e classificação na Regic-18, 2017.
(Continua)
66 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

(Continuação)
Políticas setoriais urbanas Fonte
4. Saneamento

Municípios sem PMSB¹ e PIGRS,² por faixa de IVS, por macrorregião e porte
Munic (IBGE, 2017b) e (Ipea, 2010)
populacional; por macrorregião e classificação na Regic-18, 2017.

Serviços abordados nos PMSBs, por macrorregião e porte populacional; por


Munic (IBGE, 2017b)
macrorregião e classificação na Regic-18, 2017.

Pesquisa de Características
Contagem de domicílios em faixas alta e muito alta de domicílios com esgoto a céu
Urbanísticas do Entorno dos
aberto, por macrorregião e faixas de porte populacional; por macrorregião e classificação
Domicílios
na Regic-18, 2010.
(IBGE, 2010)
Pesquisa de Características
Contagem de municípios com domicílios em faixas alta e muito alta de domicílios com
Urbanísticas do Entorno dos
lixo acumulado no logradouro (relativo), por macrorregião e porte populacional; por
Domicílios
macrorregião e classificação na Regic-18 2010.
(IBGE, 2010)
Municípios sem PMSB, com problema de falta de saneamento (destinação inadequada
de esgoto doméstico), por macrorregião e porte populacional; por macrorregião e Munic (IBGE, 2017b)
classificação na Regic-18, 2017.
Participação social – saneamento: municípios sem conselho, sem fundo temático, sem
conferência nos últimos quatro anos, sem consultas públicas e sem debates nos últimos
Munic (IBGE, 2017b)
doze meses, por macrorregião e porte populacional; macrorregião e classificação na
Regic-18, 2017.

Fontes: IBGE (2010; 2017b; 2018); Ipea (2010); e FJP (2010).


Notas: 1 Plano Municipal de Saneamento Básico.
2
Plano Intermunicipal de Gestão de Resíduos Sólidos.

2.5 Indicadores geográfico-situacionais


Nesta seção, propõe-se um esboço para a construção de indicadores geográfi-
co-situacionais das diferentes formas assumidas pelos assentamentos urbanos.
As informações trabalhadas anteriormente tomam como referência dados das
totalidades dos territórios e das populações municipais, o que, como esboçamos
a seguir, pode representar uma limitação para a tipologia a ser adotada no âmbito
da PNDU. Esta seção também destoa das demais, por não compor o índice de
vulnerabilidade dos municípios proposto ao fim deste documento. A explicação é a
inexistência de uma sistematização atualizada de dados sobre áreas e características
das manchas urbanas.
A caracterização das diferentes conformações dos assentamentos nos municí-
pios é uma lâmina de leitura importante para a construção da tipologia proposta
pelo MDR. Isso porque uma tipologia também invoca formas “físicas” e a apreensão
de aspectos espaciais, como a distribuição dos objetos urbanos (equipamentos pú-
blicos, habitações, infraestruturas de comunicação, transportes, abastecimento etc.),
dos fluxos e das funções desses mesmos objetos. Inclusive, muitos desses objetos
vêm a ser justamente os principais elementos dos programas de planejamento e
investimentos nas políticas urbanas.
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 67
a institucionalidade e o espaço construído

A questão fundamental a ser levantada diz respeito às limitações da adoção


do recorte institucional – que considera o município inteiro – como escala-base
para a PNDU. As discrepâncias territoriais, demográficas e da feição assumida
pelos assentamentos são de tal ordem que podem inviabilizar a comparação entre
municípios. Portanto, é importante distinguir o município da cidade e das demais
formações urbanas.
Observações empíricas mostram que os sítios urbanos não são necessariamente
homogêneos na totalidade da área de um dado município ou entre municípios
com indicadores semelhantes. Nesse sentido, o fato urbano não corresponde ape-
nas às divisões político-administrativas nas quais está inserido; é possível verificar
a existência de mais de um assentamento com características e funções urbanas
diversas em relação ao território do município que ocupa e ao território de mu-
nicípios vizinhos.
Essa questão, que já é em parte reconhecida pela tipologia dos arranjos
populacionais, assume outras escalas e formas além das aglomerações urbanas,
metrópoles e núcleos isolados. Esses tipos retratam a integração entre dois ou mais
núcleos urbanos ou a contiguidade da mancha urbana em dois ou mais municí-
pios, contudo não alcançam arranjos que podemos qualificar de intramunicipais.
A tipologia existente, também, não adota indicadores quantitativos ou qualitativos
que descrevam as características situacionais e funcionais das diferentes formas de
assentamento urbano conforme o contexto em que estão inseridos. Por exemplo,
um município em um arranjo metropolitano não é apenas sede/centro do arranjo,
ou periférico/subordinado. Bairros ou distritos dentro do próprio município-sede
podem assumir dinâmicas de subordinação/periferização mais acentuadas que
bairros/sedes dos outros municípios do arranjo.
Essas considerações não exaustivas se propuseram a levantar a necessidade
da elaboração de um conjunto de indicadores de, pelo menos, duas ordens.
Uma que considere a inserção relativa dos núcleos urbanos na rede urbana e nos
arranjos populacionais para além da acessibilidade; e outra que indique a configu-
ração desses núcleos urbanos. Por exemplo, município isolado “mononucleado”,
“polinucleado”; município integrado conurbado, não conurbado, central, subcen-
tral, subordinado etc.

3 EXERCÍCIO DE FORMULAÇÃO DE “LÂMINAS” TIPOLÓGICAS


Este esforço (amplo, mas limitado diante das possibilidades existentes – haveria
muito mais a ser elencado e cruzado, numa empreitada de maior fôlego) buscou
trazer elementos para se questionar soluções pré-desenhadas para categorização dos
municípios brasileiros e várias de suas limitações, aqui abordadas como fragilidades
organizadas nas cinco frentes que compuseram cada seção. A simples combinação
68 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

da categorização por macrorregiões com faixas de porte populacional ou pela


classificação derivada da Regic-18, confrontada por variáveis de natureza distinta
e cortes específicos de seus resultados, permite constatar extensa heterogeneidade
dos municípios brasileiros.
A partir da ideia de que o tratamento igual de entes desiguais carrega um
potencial muito grande de agravamento das já marcadas desigualdades no país,
sugeriu-se um arrolamento de itens de possível atenção para alguma forma de
atuação do MDR, como componente da PNDU e, quando possível, um recorte
de municípios que reuniriam condição de mais fragilidade em determinado tema,
como resultado de cruzamentos de características ou por sua simples expressão
mais aguda em comparação com outros municípios. Esses municípios mais frágeis
conformariam grupos prioritários para um determinado conjunto de ações que
viessem a incidir sobre tais questões.
Esse tipo de abordagem, em vez de oferecer tipologias prontas e que se
impõem sobre temas, dinâmicas e rotinas de ordem muito diversa, privilegia a
capacidade e visão analíticas em torno dos diferentes braços de atuação que podem
compor a PNDU. A combinação do que se chamou de “etiquetas” ou “lâminas”
permite não apenas estabelecer grupos prioritários para políticas específicas, mas
também subcortes nos eixos temáticos (potencialmente diferenciando abordagens
em torno de algum eixo para, por exemplo, municípios mais pobres, ou então
mais desiguais em comparação àqueles de maior IDH ou menor vulnerabilidade
social, mas que ainda assim dividam determinada fragilidade nesse heterogêneo
mosaico de municípios).
Uma das preocupações que orientou o trabalho foi a de oferecer esforços que
pudessem complementar as discussões acerca de tipologias municipais propostas
pelo MDR, focando justamente aspectos que ainda não tivessem sido integrados
de alguma forma aos trabalhos realizados nesse sentido. A proposta preliminar
a que o estudo teve acesso possui muitos méritos, particularmente o de buscar
compreender realidades urbanas e municipais em um quadro mais geral de inser-
ção em contextos de conjunto: na região de influência de cidades, em contexto
metropolitano, como parte de arranjo populacional, ou ainda de forma isolada.
Essa sistematização estava organizada com três tipos e dois subtipos, conforme a
seguir descrito.
1) Tipo 1: município integrante de arranjo metropolitano/grandes con-
centrações urbanas
a) 1.1: município núcleo do arranjo; e
b) 1.2: demais municípios do arranjo.
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 69
a institucionalidade e o espaço construído

2) Tipo 2: município integrante de arranjo populacional


a) 2.1: município núcleo; e
b) 2.2: demais municípios do arranjo.

3) Tipo 3: município isolado (integração fora de arranjo populacional)


a) 3.1: município-polo – de hierarquia superior na rede urbana
(Regic – hierarquia a partir de centro sub-regional); e
b) 3.2: município não polo – de hierarquia inferior na rede urbana
(Regic – hierarquia abaixo de centro sub-regional).

A proposta é definitivamente competente em termos de inserção de muni-


cípios nos contextos supramunicipais, mas deixa exposto flanco sobre condições
concretas muito distintas que se entrelaçam e configuram capacidades e contextos
muito heterogêneos – entre os grupos e dentro deles. Como forma de ilustrar isso
e, inclusive, de sugerir possíveis métodos para encaminhamento de uma formula-
ção adicional e que se acople a essa, pensou-se num exercício básico. A partir das
informações da planilha de trabalho,7 foram listadas, sem grandes aprofundamentos
ou refinamentos, 87 variáveis que pudessem ser associadas a cada município brasi-
leiro. Para cada uma, estabeleceu-se um critério que poderia ser contabilizado como
uma “fragilidade”. Isso englobou desde a ausência de regulamentações específicas
até a incidência de impactos ambientais, passando por perfil econômico ou faixa
de vulnerabilidade social. Isso portanto apontou, como um ponto de fragilidade,
características qualitativamente distintas. Para variáveis binárias, como existência
de lei de uso e ocupação do solo, ou incidência ou não, no município, de desti-
nação inadequada de esgotos (entre muitas outras), simplesmente se apontou a
resposta associada ao município que qualificaria como potencial vulnerabilidade.
Para outras, seguindo a classificação por faixas de incidência ou intensidade, con-
forme explicitado na seção 2.3, o trabalho consistiu em estipular “etiquetas” para
os municípios a partir de sua categorização: municípios com as maiores propor-
ções de déficit habitacional (grupos de faixa alta ou muito alta, ou seja, acima do
terceiro quartil ou acima do último decil), ou com mais altas faixas de IVS, para
citar dois exemplos. Aqui, visando à simplicidade, não se fez qualquer ponderação
sobre essas faixas criadas a partir de medidas de posição. Isso, entretanto, poderia
ser feito, sendo, inclusive, desejável, distribuindo-se pesos distintos para cálculo
de acúmulos de “fragilidades”.

7. Esse exercício foi feito em uma planilha separada, chamada de planilha lâminas, com dados da planilha de trabalho.
70 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Adicionalmente, poderiam ser atribuídos pesos para variáveis consideradas


“chave”: ausência de PD poderia pesar mais do que, por exemplo, inexistência de
algum plano temático, que poderiam, por sua vez, pesar mais do que atraso nas
suas revisões. Isso tudo acrescentaria camadas importantes para diferenciação e
hierarquização de perfis de atuação preferencial por tipo de política projetada pelo
MDR para os municípios. São trabalhos que exigem fôlego maior, com partici-
pação de perfis distintos de profissionais e especialistas, dada a grande variedade
de temas a serem cobertos e a necessária atribuição de valor, inerente à definição
de pesos para as variáveis.
Isso posto, para efeitos do que aqui se pretende mostrar, não foram promo-
vidas diferenciações de peso no exercício realizado. Cada uma das “etiquetas” foi
tomada com o mesmo peso e, por consequência, seria possível para um município
pontuar, no máximo, 87 pontos na escala de “fragilidades” acumuladas.8 Como
resultado, entretanto, o município com maior acúmulo de itens de “fragilidade”
obteve 63 pontos. Foi um município do Nordeste.
O resultado da rotulagem dos municípios aqui proposta pode ser visualizado
nos mapas apresentados a seguir. Foram elaborados mapas temáticos, abordando
cada uma das quatro dimensões trabalhadas neste esforço (aspectos institucionais;
planejamento e instrumentos territoriais de desenvolvimento; aspectos econômico-
-financeiros; e políticas setoriais urbanas), além de um mapa com o resultado geral
do exercício de pontuação de fragilidades/vulnerabilidades, considerando-se os
pontos acumulados pelas quatro dimensões simultaneamente. Os rótulos, como
apontado anteriormente, seguem a lógica relativa e posicional empregada ao
longo do trabalho. Isso significa que um município marcado como tendo muito
alto somatório de pontos de vulnerabilidade (seja para uma dimensão específica
ou para o total de acúmulo de fragilidades) esteve entre os 10% dos municípios
com a maior pontuação para aquele tema, ao passo que aqueles classificados como
tendo alto acúmulo de pontos de vulnerabilidade pertencem ao grupo de 15%
dos municípios brasileiros que teve resultado entre o 3o quartil e o último decil
para a somatória de pontos de fragilidade. Essa escolha foi feita por contribuir
mais diretamente para critérios de priorização, ao apontar resultados em relação
ao conjunto de municípios brasileiros. A alternativa de adoção de uma escala ab-
soluta, que estabeleceria patamares fixos de pontos que serviriam de fundamento
para o processo de rotulagem, traria outras vantagens, mas certamente enfrentaria

8. Em realidade, menos de 87, pois um município nunca poderia ao mesmo tempo não ter PD e ter PD sem revisão há
mais de dez anos. Todavia, o número total possível interessa menos do que o maior número verificado para os 5.570
municípios.
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 71
a institucionalidade e o espaço construído

dificuldades adicionais, de sorte que as escalas relativas oferecem subsídios sufi-


cientes para serem adotadas.9
Como consequência, é preciso atentar ao fato de que um município ro-
tulado como tendo médio alto acúmulo de vulnerabilidades certamente possui
pontuação de vulnerabilidade inferior a qualquer município que tenha recebido
os rótulos alto ou muito alto no somatório de pontos de vulnerabilidade, mas isso
não implica necessariamente dizer que a situação desse município seja “boa” em
termos absolutos, apenas “menos pior”, pois a escala é relativa. Para aprofundar
a questão, o que a escala relativa traz é uma leitura do conjunto de municípios
observados a partir de um determinado prisma, mas não diz muito sobre as con-
dições absolutas. Num exemplo adicional, se tomássemos uma característica para
a qual se sabe que os municípios brasileiros possuem boa ou excelente condição
de modo geral, o que a escala relativa apontaria seria, quanto a essa característi-
ca, quais municípios estariam pior ou melhor que outros, ainda que o patamar
atestado fosse, como um todo, bom ou excelente. O inverso também seria válido.
Ainda que fosse de notório conhecimento que os municípios brasileiros tivessem
péssimas condições para determinada característica, a escala relativa ainda assim
apresentaria um determinado conjunto deles como tendo muito baixo acúmulo de
vulnerabilidades, pois o rótulo é posicional e relativo. Isso reforça que o mérito
na adoção desse tipo de escala está justamente em oferecer ao gestor critérios
de priorização, uma vez que seria muito difícil atentar simultaneamente a uma
fragilidade para todo o universo de municípios brasileiros, sem qualquer critério
de distinção ou urgência.
Os mapas de 1A a 1E seguem a ordem em que foram examinadas as diferentes
dimensões (aspectos institucionais; planejamento e instrumentos territoriais de
desenvolvimento; aspectos econômico-financeiros; e políticas setoriais urbanas),
finalizando com a apresentação dos totais de pontos de vulnerabilidade.

9. Sem dúvida, o uso complementar de ambas as escalas traria os melhores resultados possíveis, o que pode ser cogitado
para a sequência dos trabalhos nesse tema.
72 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

MAPA 1
Escala relativa de vulnerabilidade dos municípios brasileiros por acúmulo de pontos
para as quatro dimensões e por acúmulo total de pontos

1A – Aspectos institucionais

Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 73
a institucionalidade e o espaço construído

1B – Planejamento e instrumentos territoriais de desenvolvimento

Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).

1C – Aspectos econômico-financeiros

Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).
74 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

1D – Políticas setoriais urbanas

Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 75
a institucionalidade e o espaço construído

1E – Acúmulo total de pontos

Fonte: Dados da planilha “lâminas” (2020).


Elaboração dos autores.
Obs.: 1. Crédito pela geração dos mapas em ArcGIS e RBG – Clayton Gurgel de Albuquerque e Patrícia Camarão.
2. Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).

O passo seguinte foi propor essa pontuação de acúmulo de fragilidades para


duas sistematizações, de modo simultâneo: as macrorregiões e a proposta preliminar
trabalhada pelo MDR. Aqui, como a ideia é justamente explicitar a diversidade
nessas formas de agrupamento dos dados, foram contabilizados os valores máximo
e mínimo obtidos em cada grupo (em vez, por exemplo, de se apresentarem as
médias obtidas para cada um). Seguindo o padrão de distribuição por medidas de
posição, utilizamos os seis grupos já empregados ao longo do trabalho.10 Cortes
alternativos, em menor ou maior número, poderiam ser aplicados. Os resultados
constam na tabela 1 e no gráfico 1.

10. Seriam os grupos de acúmulo de fragilidade: muito baixo, baixo, médio baixo, médio alto, alto e muito alto, de
acordo com as medidas de posição (decis para os grupos extremos, primeiro e terceiro quartis e mediana).
76 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

TABELA 1
Valores mínimos e máximos para pontuação de fragilidades,¹ por proposta preliminar
de tipologia municipal PNDU
1.1 1.2 2.1 2.2 3.1 3.2 Total

Min. Máx. Min. Máx. Min. Máx. Min. Máx. Min. Máx. Min. Máx. Min. Máx.

Centro-Oeste 19 22 13 34 6 43 16 45 9 22 10 44 6 45

Nordeste 15 30 14 45 13 54 23 53 15 35 15 63 13 63

Norte 22 22 23 30 23 51 26 52 11 46 15 61 11 61

Sudeste 9 20 9 32 7 37 12 42 8 25 6 52 6 52

Sul 11 14 13 35 8 35 6 37 9 21 6 42 6 42

Total 9 30 9 45 6 54 6 53 8 46 6 63 6 63

Fonte: Indicadores e recortes diversos reunidos na planilha “lâminas” (2020).


Elaboração dos autores.
Nota: ¹Quanto maior a pontuação, maior o acúmulo de fragilidades.

GRÁFICO 1
Valores mínimos e máximos para pontuação de fragilidades, por proposta preliminar
de tipologia municipal PNDU
70
60
50
40
30
20
10
0
Centro-Oeste Nordeste Norte Sudeste Sul Total
1.1 Mínimo 1.1 Máximo 1.2 Mínimo 1.2 Máximo 2.1 Mínimo
2.1 Máximo 2.2 Mínimo 2.2 Máximo 3.1 Mínimo 3.1 Máximo
3.2 Mínimo 3.2 Máximo Total mínimo Total máximo
Fonte: Indicadores e recortes diversos reunidos na planilha “lâminas” (2020).
Elaboração dos autores.
Nota: ¹Quanto maior a pontuação, maior o acúmulo de fragilidades.

Em termos regionais, os menores registros foram de municípios do Centro-


-Oeste, Sudeste e Sul (igual a 6), ao passo que os valores mínimos obtidos no Norte
e Nordeste foram próximos do dobro disso, 11 para municípios na região Norte;
e 13, no Nordeste. Em termos relativos, entretanto, os municípios do Sudeste se
mostraram particularmente desiguais: o município com valor máximo acumulou
quase nove vezes a pontuação do município com menor número de “fragilidades”
elencadas. Vale notar que, a partir da leitura dos mapas temáticos, alguns temas
se mostraram mais alinhados aos cortes clássicos das diferenças regionais que ou-
tros. Os aspectos ligados ao acúmulo de pontos de fragilidades para planejamento
e instrumentos territoriais de desenvolvimento tiveram padrão menos claramente
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 77
a institucionalidade e o espaço construído

marcado entre municípios do Norte versus Sul. Os resultados para aspectos ins-
titucionais e planos setoriais, ainda que em menor grau, também tiveram distri-
buição macrorregional mais dispersa. Por sua vez, os aspectos econômicos foram
aqueles que em maior grau se aproximaram de um claro corte, colocando de um
lado municípios do Norte e Nordeste, num grupo de acúmulo de mais pontos de
fragilidades frente aos municípios do Centro-Oeste, Sudeste e Sul.
Os municípios do tipo 1, metropolitanos, tiveram os registros de maiores va-
lores mínimos (9), seguidos pelos municípios isolados do tipo polo (tipo 3.2), numa
comparação entre os menores valores encontrados para municípios classificados
a partir da proposta preliminar de trabalho aventada pelo MDR (última linha da
tabela). Os demais tipos tiveram valor mínimo igual a 6. Chamou atenção como
foram divergentes os resultados para um mesmo grupo, entretanto. Isso posto, o
tipo 1.1 foi aquele com menor diferença interna, entre todos os grupos apresenta-
dos. As menores diferenças se verificaram na região Norte, como já apontado, com
número menor de municípios metropolitanos. As diferenças no Sul e Centro-Oeste
foram praticamente equivalentes (em número, não em qualidade).
Os municípios que não eram núcleos de arranjos metropolitanos, representa-
dos pelo tipo 1.2, mostraram diferenças internas consideráveis, ainda maiores que
as do tipo anterior, com o valor máximo verificado sendo o equivalente a cinco
vezes o valor mínimo. Os valores máximos apresentaram pontos de acúmulo de
“fragilidades” maiores do que os observados para o tipo 1.1, em todas as regiões.
Entre os municípios do tipo 2, integrantes de arranjo populacional, os valores
extremos, em termos gerais, foram muito próximos, se olhados os subtipos (6 versus
53/54). Olhando os registros mínimos, foram menores ou iguais aos metropolitanos
para o grupo 2.1. Para o tipo 2.2, com exceção do verificado no Sul, os valores
mínimos foram maiores do que para os municípios-núcleo do arranjo. A diferença
entre registros máximos e mínimos para o grupo 2.2 ficou muito próxima em
termos regionais, flutuando em torno de 30 pontos. Em termos gerais, entretanto,
a diferença só foi superada pela registrada no grupo 3.2.
Entre os municípios isolados, aqueles classificados no grupo 3.1
(município-polo – de hierarquia superior na rede urbana) tiveram valores extremos
na contagem de acúmulos de “fragilidades” bem menos desiguais do que o observado
para o grupo 3.2 (município não polo – de hierarquia inferior na rede urbana),
ainda que em patamar de diferenças considerável. Exceção feita à região Norte, os
patamares de valores máximos foram relativamente baixos (no comparativo entre
valores máximos de outros tipos), talvez superando apenas o que se verificou para
o grupo 1.1, de núcleos metropolitanos.
Por sua vez, os municípios classificados como 3.2 foram extremamente de-
siguais. Aqui, a pontuação de acúmulo de “fragilidades” teve diferença superior
78 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

a dez vezes, quando confrontados valores mínimos e máximos registrados pelos


municípios. Os menores patamares mínimos regionais foram obtidos nas regiões
Sudeste e Sul, ao passo que os maiores valores máximos foram de municípios no
Nordeste e Norte. Foi o grupo para o qual o contador de “fragilidades” atingiu o
maior patamar de valores máximos, mantendo valores mínimos relativamente bai-
xos. É o grupo com maior número absoluto de municípios, absorvendo contextos
municipais muito diferenciados entre si.
Esse exercício, embora simples, mostra que há muita diversidade dentro dos
grupos, sendo estruturante pensar formas de integrar essas dimensões à proposta
preliminar trabalhada pelo MDR. A separação em grupos ou faixas por acúmulo
de fragilidades poderia ser um modo de diferenciação interna, mas vale apontar que
as considerações expostas neste capítulo se remeteram tão apenas a uma simplória
proposta quantitativa, sem adentrarmos em problematizações de ordem qualitativa,
diferenciando-se tipos de fragilidade (por exemplo, a partir das cinco seções que
organizaram este trabalho). Há campo, por conseguinte, para se avançar, seja com
a separação temática, seja com os procedimentos já mencionados de ponderação.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A série de rodadas sucessivas de organização das variáveis e sistematizações mostra a
importância de uma abordagem multidimensional para formulação de tipologias.
Ainda que fiquem reforçadas, em linhas gerais, muitas das conhecidas desigualdades,
por exemplo, em nível regional, ou mesmo na hierarquia da rede de influência das
cidades (em que se pauta a proposta preliminar tipológica para municípios adotada
neste momento pelo MDR) e que possivelmente justifiquem incorporação em
tipologias para a PNDU, parece necessário incorporar elementos adicionais. Seria
contraproducente, por exemplo, trabalhar uma extensa gama de políticas públicas,
auxílios técnicos ou financeiros com uma tipologia que engloba 4.476 municípios
brasileiros, como é o caso dos municípios não polo – de hierarquia inferior na
rede urbana (Regic – hierarquia abaixo de centro sub-regional), grupo identificado
como tipo 3.2, sem nenhuma qualificação ou caracterização adicional. O exercício
relatado nos mostra existirem muitas questões – embora mais disseminadas nas
camadas mais baixas da hierarquia de cidades – que estendem seus efeitos ao longo
da hierarquia da Regic, fazendo-se presentes também em municípios metropolita-
nos.11 A oportunidade aqui é de justamente, a partir do cruzamento analítico de
dados, identificar quais as temáticas e fragilidades sobre as quais se queira trabalhar
políticas federais e que se estruturem a partir dessa lógica da hierarquia de cidades

11. As tabelas de levantamentos e os cruzamentos de variáveis presentes em nota técnica de Funari, Lui e Ferreira Junior
(2020) raramente deixam de estampar a presença de algum município metropolitano.
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 79
a institucionalidade e o espaço construído

(e seus limites). Ao mesmo tempo, compreender que há tantas outras questões


organizadas sob sistematizações alternativas, também consequentes.
Isso posto, parece oportuno afirmar que, do mesmo modo que a I PNDR
trouxe tipologias microrregionais que escondiam desigualdades intrarregionais
(Macedo e Porto, 2018), é preciso entender que, para uma gama de municípios, as
questões intramunicipais ganham dimensão destacada. Nesse sentido, a formulação
de “etiquetas” ou “lâminas” tipológicas a partir de um esforço similar ao realizado
aqui, que partisse de uma visão de delimitações intraurbanas (setores censitários,
por exemplo), tornaria mais claro os tipos de desigualdades que, em especial para
municípios metropolitanos (mas não apenas), pudessem ser alvo de política especí-
fica ou delimitações particulares, ao focar municípios que, em média, não figurem
entre aqueles com maior volume acumulado de fragilidades ou vulnerabilidades
no nível municipal, mas certamente contam com espaços fragilizados. O exercício
com os indicadores geográfico-situacionais ajuda a pôr em perspectiva os casos de
municípios de considerável porte populacional, possivelmente metropolitanos,
que incluem em seus limites territoriais diversas áreas em condição precarizada e
contingente populacional nessas condições em quantidade suficiente para superar
estatísticas médias de diversos outros municípios.
Esse perfil de município merece atenção especial, em virtude de complexidades
adicionais. O desenho para uma política setorial que pode funcionar bem para um
município não metropolitano e menos desigual pode mostrar-se preocupantemente
contraproducente num contexto intraurbano extremamente desigual. Isso porque
o cenário socioeconômico mais diverso introduz uma série de complicadores, seja
no sentido de estruturação e operação de uma política, seja por seus impactos
diferenciados sobre parcelas da sociedade (e do território), ou ainda pela ampliada
e desigual gama de capacidades de apropriação e/ou produção de impactos inter-
-relacionados. É necessário um cuidado especial que busque equilibrar, no desenho
das políticas, ações e efeitos sobre espaços e grupos populacionais de modo con-
jugado, em vez de se lançar mão da usual abordagem que toma esses aspectos de
maneira alternativa. Os atributos territoriais não podem ser apartados dos sociais,
pois corre-se o risco de expulsão, por mecanismos de mercado, dos grupos que
mais se beneficiariam das ações estruturadoras do território.
Sob esse prisma, e tendo em mente o desafio de pensar políticas nacionais
em contexto de extrema heterogeneidade, pondera-se a possibilidade de serem
tratados os parâmetros de desigualdade como um tipo específico de fragilidade ou
vulnerabilidade, assumindo-se o caráter relativo das multifacetadas desigualdades –
quer as inerentes à operação de uma economia capitalista de mercado, quer as
reforçadas pela atuação desavisada do poder público a partir de “perfis médios
ideais”. É preciso reconhecer que as abordagens tradicionais, que coexistem de
80 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

forma incomodamente pacífica com o aspecto relativo das desigualdades socioes-


paciais, acabam por reproduzir espaços e grupos de cidadãos “de primeira classe” e
espaços de cidadãos “de terceira classe”, o que tem indesejáveis implicações sociais,
econômicas e, principalmente, dificulta relações mais democráticas.
Avançando, outras ponderações podem ser feitas acerca da necessidade de se
explorarem aspectos intramunicipais adicionais, na busca por tipologias que con-
juguem satisfatoriamente questões territoriais e institucionais. Por diversas vezes,
no desenvolvimento do exercício aqui descrito, foi possível identificar cruzamentos
de variáveis cuja análise se beneficiaria sobremodo de dados e informações orga-
nizados sobre a ocupação urbana, rural e das áreas “não ocupadas”, que compõem
os mosaicos municipais. Nesse ponto, há de se distinguir entre o que de fato é
a “mancha de ocupação” e o que são os limites de perímetros (urbanos/rurais).
Não há, entretanto, sistematização nacional desse tipo de informação, uma difi-
culdade que pode ser superada no esforço preconizado de se organizar um sistema
nacional de informações dos municípios brasileiros. A ocupação urbana concen-
trada ou espraiada, mono ou polinucleada, incorre em diferentes possibilidades
de políticas, com custos e viabilidades muito distintos. As relações entre áreas
ocupadas, perímetros e limites territoriais municipais, em cruzamento com as
dimensões exploradas no estudo realizado, conformam importante arcabouço para
um salto de qualidade nas políticas para controle da expansão urbana, estratégias
de ocupação controlada e preservação ambiental.
Ademais, há a questão do impulso à associação de municípios que hoje pouco
se unem com o intuito de se organizarem políticas voltadas ao desenvolvimento
urbano, ou tampouco para o cumprimento de tarefas cotidianas, como implantação
de sistemas de monitoramento, fiscalização e controle da ocupação. Oportunidade
que poderia ser organizada com políticas específicas voltadas a consórcios e associa-
ções para esse fim, com assistência técnica e financeira, estendendo-se a diferentes
campos de atuação. Esse tipo de iniciativa subexplorada – de acordo com os dados
observados pelas informações da Munic – ajuda a dar escala e viabilizar soluções
que estariam demasiado distantes para municípios de forma isolada.
É preciso explicitar a necessidade de um esforço de padronização de termos
e conteúdo, com a construção de referências nacionais para linguagem, critérios,
extensão, formatação e intercambialidade de registros e informações pertinentes à
temática do desenvolvimento urbano, de maneira que se possa ter uma leitura sobre
as bases existentes e a capacidade de articulação – algo que beneficiaria, inclusive,
o planejamento e a articulação de informações entre municípios. Portanto, um
esforço de dotar municípios com sistemas e ferramentas necessárias para gestão
e planejamento municipais não se encerraria simplesmente na atuação em muni-
cípios que ainda não contam com essas ferramentas.
A Agenda Urbana e a Escala Municipal: desafios tipológicos entre | 81
a institucionalidade e o espaço construído

Num contexto de conformação de um sistema nacional de informações mu-


nicipais que auxiliasse a PNDU, seria interessante pensar e organizar um critério
territorial adicional para agrupamentos de tipos de municípios, que indicasse
municípios contíguos e compartilhasse um conjunto de características ou carên-
cias. Conforme apontado, não necessariamente faz sentido que todo município
tenha soluções completamente separadas de municípios vizinhos. Pelo contrário,
há ganhos em se pensar a inserção conjunta a partir de contextos comuns. Seria
importante consolidar rotinas de elaboração de diagnósticos, políticas, investimentos
e fiscalização, reforçando-se a relevância dos contextos locais e supramunicipais.
Analogamente, talvez fosse possível imaginar soluções em conjunto ou consorcia-
das para operação de sistemas de informação geográfica e digitalização de bases
cartográficas, compartilhando custos e operação, se isso facilitasse sua viabilidade.
Tendo em mente oportunidades de frentes de atuação para a PNDU, pare-
ce adequado ainda apontar que há um importante obstáculo representado pela
disponibilidade de dados e informações sobre as gestões municipais no que diz
respeito às rotinas e aos efetivos de pessoal ligados à fiscalização (mais precisamente
sobre a ocupação do solo; porém, poderíamos sem dificuldade acrescentar outras
temáticas). Não foi possível determinar que municípios se engajam em rotinas
consolidadas de fiscalização da ocupação e exercem controle mais qualitativo
sobre as formas de uso do solo municipal. Uma coisa é contar com instrumentos
e legislação adequados, e outra inteiramente diferente é dispor de aparato neces-
sário para aplicá-los. Isso parte da constatação de que uma gama muito vasta de
municípios se beneficiaria de rotinas e práticas regulares de controle da ocupação
do solo, a fim de melhor gerenciar dinâmicas comuns de ocupação irregular e as
já conhecidas consequências da expansão descontrolada de manchas urbanas (seja
por seu alargamento, seja por sua pulverização). Assim, embora a história recente
aponte apoios importantes relacionados à elaboração de planos municipais – algo
que deve ter sequência –, apoio à implementação e monitoramento das políticas
públicas de desenvolvimento urbano integram avanços importantes para contin-
gente considerável de municípios que possuem limitações em seus quadros técnicos
(por números insuficientes ou limitações técnicas).
Em que pesem essas considerações sobre as oportunidades de reforço de insti-
tucionalidades municipais (e fortalecimento de institucionalidades supramunicipais),
faz-se oportuno retomar o foco para o eixo central desta exposição. A abordagem
dinâmica a que se faz referência neste trabalho pressupõe uma ampla sistematização
das informações municipais, a fim de se operar um sistema ou banco de dados
que apresente perfis a partir de caracterização dinâmica e conjugada. Em adição à
proposta preliminar sistematizada pelo MDR, fortemente pautada na inserção e
hierarquia na rede urbana, as ponderações aqui apresentadas buscaram sensibilizar
para a relevância da caracterização de perfis de fragilidade municipais, trazendo
82 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

aspectos em diferentes dimensões que, em combinação, permitiriam aproximações


mais precisas a grupos de municípios a serem potencialmente priorizados para
diversos apoios e políticas de desenvolvimento urbano.
Esse esforço, ainda que útil, permitiu constatar a necessidade de avanços
adicionais na caracterização da heterogênea gama de municípios brasileiros, com
impacto sensível para os objetivos de estruturação de ações e estratégias para o
desenvolvimento urbano. Nesse sentido, duas considerações que esmaecem os
contornos entre o intraurbano e o intramunicipal merecem destaque e podem ser
conjugadas com os elementos supracitados. A primeira diz respeito aos padrões
de desigualdade interna identificados, com implicações sobre as estratégias de
atuação e suas consequências. A segunda remete à necessidade de sistematização
de informações sobre a ocupação urbana e rural nos municípios, frente aos seus
perímetros e limites territoriais legais. Ambas trazem elementos com potencial
transformador de estratégias e tornam relevante, por exemplo, aspectos relativos à
contiguidade dos fenômenos observados que se almeja transformar.

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CAPÍTULO 4

(RE)ARRANJOS E INSTRUMENTOS PARA O DESENVOLVIMENTO


URBANO NA ESCALA SUPRAMUNICIPAL
Bárbara Oliveira Marguti1
Marco Aurélio Costa2

1 INTRODUÇÃO
Este capítulo sintetiza e dá continuidade aos argumentos desenvolvidos na nota
técnica A Agenda Urbana na Escala Supramunicipal: estudo para uma hierarquia dos
arranjos institucionais para políticas públicas, elaborada no âmbito do apoio dado
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) ao processo de construção da
Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU).3 As reflexões aqui trazidas
dizem respeito à agenda urbana na escala supramunicipal e procuram analisar os
arranjos institucionais existentes no Brasil. Dessa forma, reúnem-se informações
e elementos analíticos que apoiam a proposição de tipologias e instrumentos
necessários para gestão, governança e financiamento urbano, conformando uma
agenda urbana para essa escala.
O fenômeno supramunicipal pode ser caracterizado pelas relações de com-
plementaridade e (inter)dependência entre municípios limítrofes. Ocorre quando
as competências dos municípios se complementam, ou quando há uma assimetria
de capacidades geradora de redes e fluxos em direção ao município com maior
e/ou melhor oferta de serviços. Quando suas malhas urbanas se conurbam, formam
um único “corpo” urbano no território, o qual o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) designa como cidade.4

1. Pesquisadora do subrograma de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional (PNPD) na Diretoria de Estudos e Políticas
Regionais, Urbanas e Ambientais (Dirur) do Ipea. E-mail: <[email protected]>.
2. Técnico de planejamento e pesquisa na Dirur/Ipea; e coordenador nacional do Instituto Nacional de Ciência e
Tecnologia em Políticas Públicas e Desenvolvimento Territorial (INCT/INPuT). E-mail: <[email protected]>.
3. O apoio deu-se no âmbito do Termo de Execução Descentralizada no 71/2019, firmado entre o Ipea e a Secretaria
Nacional de Mobilidade e Desenvolvimento Regional e Urbano (SMDRU) do então Ministério do Desenvolvimento
Regional (MDR) – atualmente Ministério das Cidades (MCidades) –, para apoiar o processo de construção da PNDU.
Disponível em: https://drive.google.com/file/d/19V53dRvHynXStla8B5b8PPcI72iJhvD6/view (versão pre-print).
4. Na Região de Influência de Cidades (Regic), a “unidade urbana” de análise, independentemente dos limites admi-
nistrativos existentes, é a cidade, entendida como a unidade formada pela mancha urbana conurbada de dois ou mais
municípios, “ou que possuam forte movimento pendular para estudo e trabalho, com tamanha integração que justifica
considerá-los como um único nó da rede urbana” (IBGE, 2020, p. 11).
90 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Nem sempre o “fato” do fenômeno supramunicipal encontra reconhecimento


em um arranjo institucional formal, enquanto este nem sempre expressa uma forma
urbana de escala supramunicipal. Isso gera certa confusão entre o que se observa
em termos de relações socioespaciais e a forma institucional de lidar com elas.
Esse desalinhamento entre o evento/processo socioespacial, bem como sua
expressão institucional, reflete, por um lado, a ação de alguns governos estaduais
em implementar arranjos institucionais do tipo metropolitano, envolvendo muni-
cípios que não formam um arranjo populacional (AP). Por outro lado, há a própria
atuação da União, ao indicar essas vantagens quando valoriza investimentos de
forma prioritária em regiões metropolitanas (RMs).
Tendo esse quadro de dissonâncias como pano de fundo, a primeira seção
deste capítulo busca resgatar o contexto histórico, as possíveis motivações políticas
e os instrumentos legais que deram vida aos diferentes arranjos institucionais exis-
tentes no Brasil, englobando as RMs, as aglomerações urbanas (AUs) e as regiões
integradas de desenvolvimento econômico (Rides). Para apoiar as análises e sus-
tentar os argumentos desenvolvidos neste texto, a seção traz também as definições
associadas aos APs e à hierarquia de cidades, desenvolvidas nas recentes edições da
pesquisa Regic, do IBGE (2018; 2020).
A segunda seção apresenta a comparação entre os arranjos institucionais e os
APs, tal como propostos pelo IBGE. A partir dessa comparação, propõe-se o uso
de categorias de arranjos institucionais, visando aclarar a confusão existente entre
sua nomenclatura e o fenômeno urbano-metropolitano que os configura.
Uma vez estabelecidas as tipologias, estas devem dialogar com as agendas
programáticas de uma PNDU. Nessa direção, a última seção resgata brevemente
os resultados do estudo que mensura as fragilidades de APs – relativas a aspectos
institucionais, instrumentos de desenvolvimento territorial e planos setoriais – e
realiza uma primeira aproximação com os instrumentos de desenvolvimento urbano
pensados para a escala supramunicipal.
Considerando-se os anos de acúmulo e experimentações de instrumentos
voltados para a promoção do desenvolvimento urbano e metropolitano, reunidos
no Estatuto da Cidade (EC) e no Estatuto da Metrópole (EM), tanto a seção 3
quanto as considerações finais do capítulo problematizam a aplicação dos dispo-
sitivos, sua importância em propor uma nova ordem jurídico-urbanística no país
e os principais desafios e entraves para sua aplicação na escala supramunicipal.
Com isso, os autores apontam para a necessidade de repensar os arranjos
supramunicipais do país em suas diversas tipologias, de forma a endereçar cor-
retamente a política urbana federal. Esta já conta com extenso arcabouço legal e
dispositivos operacionais para sua realização, que são, ao mesmo tempo, campo
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 91
na Escala Supramunicipal

de disputas entre as intenções políticas mais progressistas e as forças liberais, que


têm nas cidades um terreno fértil para acumulação.

2 OS ARRANJOS SUPRAMUNICIPAIS NO BRASIL: ENTRE O REAL E O FORMAL


A análise dos arranjos supramunicipais considera dois tipos de arranjos no Brasil:
os arranjos institucionais formalmente instituídos pelos governos estaduais e pela
União e os arranjos populacionais, expressões de fenômenos urbanos/supramunici-
pais reconhecidos por estudos desenvolvidos pelo IBGE5 a partir de determinados
critérios metodológicos.
Há, portanto, uma primeira e fundamental distinção entre arranjos supra-
municipais, que norteia a estrutura e os debates deste estudo. Denominaremos
como tipos supramunicipais “de fato” os arranjos populacionais definidos pelo IBGE,
os quais delimitam o fenômeno das relações entre centros urbanos, por meio da
observação dos APs e das grandes e médias concentrações urbanas, bem como
por intermédio de sua hierarquização como metrópole, capital regional, capital
sub-regional, centro de zona e centro local (as categorias da Regic).
Em contrapartida, nomeamos como tipos supramunicipais formais as regiões
e os conjuntos de municípios consorciados ou associados, instituídos por meio de
instrumentos legais federais, estaduais ou interfederativos. Aqui, serão tratados os
seguintes tipos supramunicipais formais: as RMs, as AUs e as Rides.6 Trataremos
desses “tipos” com o objetivo de caracterizar as motivações para sua concepção e
as intenções por trás da institucionalização desses espaços.7
O ordenamento jurídico brasileiro relativo à política urbana – notadamente,
a CF/1988, o EC e o EM – não distingue de forma adequada as características
singulares e heterogêneas dos 5.570 municípios brasileiros e dos vários arranjos
existentes entre eles. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a política urbana –
incluindo-se a metropolitana – e seus instrumentos tendem a não considerar as
diversas realidades locais/regionais. Ou seja, as diferenças socioespaciais dificilmente
são consideradas quando da definição e/ou aplicação de instrumentos disponíveis

5. São considerados, em especial, o estudo Arranjos Populacionais e Concentrações Urbanas do Brasil (IBGE, 2016), o
qual foi utilizado como subsídio para o mais recente estudo da Regic (IBGE, 2016).
6. Há outros formatos de arranjos, como as microrregiões, previstas na CF/1988, que não vêm sendo experimentados.
7. Resta ainda tratar de outros dois tipos supramunicipais formais, que são os consórcios públicos intermunicipais e
as associações de municípios, experiências que passam a ser comuns a partir das décadas de 1990, como forma de
resolver principalmente demandas relacionadas à saúde, e 2000, quando os consórcios se estendem para políticas de
meio ambiente, resíduos sólidos, desenvolvimento rural, segurança, defesa civil, entre outros temas. Por sua vez, as
associações de municípios (entidades jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, com duração indeterminada e
estatuto próprio) representam um canal de cooperação intermunicipal e, assim como os consórcios públicos, podem
colaborar com a PNDU. As especificidades de consórcios públicos e associações de municípios são tratadas em outro
capítulo deste livro, Federalismo e relações intergovernamentais no Brasil: notas para a construção da Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano, assim como em dois capítulos dedicados a esses tipos de arranjos supramunicipais, compilados
no segundo volume desta série, denominado Financiamento do Desenvolvimento Urbano e Governança Interfederativa.
92 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

na política urbana-metropolitana, e tanto os municípios quanto alguns arranjos


supramunicipais formais tendem a ser tratados como homogêneos.
Se, por um lado, todos os municípios apresentam as “mesmas necessidades”
(abastecimento de água e energia elétrica; serviços de coleta e tratamento de esgoto;
oferta habitacional; rede de transportes e mobilidade; segurança; equipamentos de
saúde; educação e assistência social; empregos; entre outros), por outro lado, seu
porte, o nível de integração regional, sua posição na rede de cidades, a relação de
oferta ou dependência de serviços, a região à qual faz parte, sua vocação econômi-
ca, entre inúmeras outras características fazem de cada município um território
único que demanda soluções particulares, podendo exigir adaptações no que diz
respeito aos instrumentos existentes ou até mesmo a criação de outros tipos de
instrumentos ainda não existentes no conjunto de dispositivos da política urbana/
metropolitana atual.
Observar a correspondência entre os fenômenos da conurbação, do compar-
tilhamento de serviços e as relações de dependência e cooperação entre os centros
urbanos é um exercício imprescindível para compreender as necessidades que se
impõem em termos sociais, econômicos, institucionais, financeiros e de desenvolvi-
mento urbano. É fundamental também para que o desenho das políticas públicas seja
coerente com a realidade e seja eficiente no atendimento das necessidades concretas
e na condução do desenvolvimento dos diferentes agrupamentos de municípios.
Na tentativa de melhor compreender os encaixes e os desencaixes existentes
entre o “real” e o “formal”, busca-se, nesta seção, caracterizar os tipos de arranjos
supramunicipais formais (RMs, AUs e Rides) e os tipos de arranjos supramunicipais
“de fato” (metrópoles e outros APs que aqui serão discutidos).

2.1 Tipos supramunicipais formais: os arranjos institucionais


Fazem parte deste grupo as RMs, as AUs, as Rides, os consórcios intermunicipais
e as associações de municípios. Parte-se de uma contextualização do momento/
cenário político em cada caso para compreender as motivações por trás da con-
cepção de cada um desses espaços. Ou seja, o que a legislação de criação aponta
como características, atribuições, funções e objetivos pertinentes a cada um dos
tipos supramunicipais formais? Ou, ainda, a delimitação de conjuntos de mu-
nicípios responde a quais tipos de demandas? Envolve quais tipos de interesses?
E em que medida a institucionalização do arranjo é necessária, ou suficiente, para
o atendimento das demandas daquele território?
Os marcos legais que trazem as diretrizes para a criação dos tipos supra-
municipais formais têm, em qualquer caso, a gestão de uma ou várias funções
públicas de interesse comum (FPICs) como principal motivação para a formação
de arranjos de gestão entre municípios. A necessidade da unificação da execução e
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 93
na Escala Supramunicipal

do planejamento integrado dos serviços comuns é uma das razões que ensejaram
a criação das primeiras RMs na década de 1970 – LC no 14/1973 (Brasil, 1973).
O rol de temas que pode ser eleito quando da definição das FPICs é bastante vasto,
indo de serviços estruturantes, como o saneamento, o transporte/mobilidade, a
habitação, o uso do solo, o desenvolvimento econômico até quaisquer outros te-
mas de relevante interesse para o conjunto de municípios, como saúde, segurança
pública, defesa civil, turismo etc.

2.1.1 O arranjo institucional das RMs


Cada um dos tipos supramunicipais formais aqui assumidos tem em sua origem
diferentes mecanismos de institucionalização. A criação das regiões metropolitanas
pode ser dividida em quatro momentos, conforme uma periodização que considera
as principais mudanças no ordenamento jurídico brasileiro, a saber: 1973-1987;
1988-2008; 2009-2015; e 2016 até os dias atuais. O período 2009-2015, ainda
que não tenha ocorrido nenhuma inovação ou acréscimo ao arcabouço legislativo
sobre o tema, conforma um importante ponto de inflexão na criação de RMs,
quando grandes investimentos em infraestrutura urbana fomentaram o aumento
na institucionalização de RMs pelos estados brasileiros, como se verá adiante.
O primeiro momento (1973-1987) engloba as RMs institucionalizadas por
meio das Leis Complementares (LCs) federais nos 14/1973 e 20/1974.8 Estas
abarcam o conjunto de nove RMs criadas durante o regime militar, a saber: RMs
de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belém,
Fortaleza e Rio de Janeiro.
A criação desse primeiro grupo de RMs deu-se no contexto em que a Cons-
tituição Federal vigente (CF/1967) atribuía à União a competência da criação
de RMs, que seriam constituídas por municípios integrantes de uma “mesma
comunidade sócio-econômica”, tendo como motivação os “serviços de interesse
comum” (Brasil, 1967, art. 157, inciso VI, § 10) crescentes, em uma realidade em
que o processo de metropolização ganhava impulso. Além da institucionalização,
a União era também responsável pelo financiamento das RMs criadas, por meio
do Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano (FNDU).
O segundo período de criação de RMs (1998-2008) tem como ponto de partida
a CF/1988,9 a qual redefiniu as atribuições dos entes federativos e concedeu aos

8. Além das RMs, a LC no 14/1973 definiu a estrutura institucional para a governança metropolitana, que deveria ser
composta por um conselho deliberativo, um conselho consultivo e um órgão de gestão ligado ao governo estadual.
Aos estados caberia a gestão das RMs, o que se deu por meio da atuação das entidades metropolitanas responsáveis
pela execução dos serviços de interesse comum e a elaboração dos planos metropolitanos.
9. “Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios
desta Constituição. (...) § 3o Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglome-
rações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização,
o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum” (Brasil, 1988).
94 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

estados o poder de criação, por intermédio de LC, de RMs, AUs e microrregiões.


A nova distribuição de papéis deixou à União a tarefa de definir as diretrizes e bases
nacionais para o planejamento, além da definição de políticas nacionais.
Se a “dança” federativa já é suficientemente desafiadora com a designação dos
municípios como entes autônomos da Federação, a partir da CF/1988, a entrada
das RMs na equação torna ainda mais complexo o “quebra-cabeça” de interesses
(econômicos, sociais e políticos) que convivem e conflitam no espaço metropolitano.
Do ponto de vista das relações interfederativas, a CF/1988 acabou por ampliar as
competências concorrentes, marcando as relações entre os entes pela competição
e pelo conflito. Durante a constituinte, não houve incentivo às práticas cooperati-
vas, em uma provável herança do período militar, quando os municípios estavam
subordinados às decisões da União e dos estados. Ao contrário, a nova correlação
de forças tornou o ambiente mais propício à competição, configurando aquilo
que Abrúcio (2000) e Daniel (2001) chamam de “municipalismo autárquico e
isolacionista”, que tem como uma de suas formas a guerra fiscal.
No novo arranjo federativo, o tema metropolitano, sua gestão e sua gover-
nança ficaram “sem lugar” (Souza, 2003). O casamento entre a competência dos
estados para criar RMs e a autonomia municipal na gestão do próprio território
geraram um vazio institucional para a gestão das metrópoles e um ambiente nada
favorável para a cooperação interfederativa: “no debate sobre a governança, a região
metropolitana ficou ‘órfã’ no pacto federativo brasileiro” (Klink, 2013, p. 83).
No decorrer desse segundo período de institucionalização das RMs (1988-
2008), foi sancionado o EC, Lei Federal no 10.257/2001, que avançou ao tornar
obrigatória a elaboração do plano diretor a outras categorias de municípios,10 e não
somente àqueles com mais de 20 mil habitantes, como definido de maneira gené-
rica pela CF/1988. Além dessas menções, não há no EC nada mais que diferencie
os 5.570 municípios brasileiros. O porte dos municípios, a região administrativa
em que se encontram, as relações que estabelecem com outros municípios, sua
relevância na hierarquia dos centros urbanos e sua posição na rede de cidades não
foram critérios tomados em conta para a definição dos instrumentos de indução
do desenvolvimento urbano, de regularização fundiária e de democratização da
gestão urbana.
Qualquer mediação ou interação entre a escala urbana e a escala supramu-
nicipal, entre o urbano e o regional ficou de fora do escopo do EC. No que diz
respeito à gestão metropolitana, a questão mal aparece no EC, ainda que o tema

10. Municípios integrantes de RMs e AUs; integrantes de áreas de especial interesse turístico; inseridos na área de
influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional; e
incluídos no cadastro nacional de municípios, com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto,
inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos (Brasil, 2001a, art. 41).
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 95
na Escala Supramunicipal

tenha figurado em versões prévias da redação que deu origem à essa norma. Sem
desconsiderar sua importância em inaugurar uma nova ordem urbanística para
as políticas de desenvolvimento urbano,11 o EC reforçou o papel do município
de legislar em matéria urbana, o que implicou soluções circunscritas aos limites
municipais. Ainda que a questão urbana seja, de fato, um tema de interesse local,
um olhar mais atento para as relações socioespaciais e para o território apontaria
para a necessidade de alguma mediação e soluções transescalares.
Da mesma maneira, a estrutura do Ministério das Cidades (MCidades),
criado em 2003, não contemplava o planejamento metropolitano, que permane-
ceu completamente órfão e sem diretrizes nacionais até 2015. Alguns passos nesse
sentido foram dados com a promulgação da Lei dos Consórcios (Lei Federal no
11.107/2005), que, com outras leis federais da década de 2000, conferiram maior
substância à ordem jurídico-urbanística.
O cenário descrito nos parágrafos anteriores, somado aos vultuosos inves-
timentos em infraestrutura urbana aportados pelo governo federal, por meio do
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)12 e do programa Minha Casa,
Minha Vida (MCMV),13 a partir de 2007 e 2009, respectivamente, formaram o
ambiente propício para a propagação de RMs em todo o país.
O ano de 2009 marca o começo do terceiro período, quando tem início a
“explosão” da chamada metropolização institucional,14 cujo pico acontece entre 2011
e 2013, com a institucionalização de 25 RMs apenas nesses dois anos. O saldo total
do período é de 42 RMs criadas, conformando um universo metropolitano de 72
RMs e 1.208 municípios metropolitanos no final de 2015 (gráfico 1).

11. Para uma discussão mais aprofundada sobre o contexto e as implicações da política urbana brasileira a partir da
década de 2000, consultar Costa et al. (2021) e Marguti, Costa e Galindo (2016).
12. “O PAC representou a retomada do planejamento e execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana,
logística e energética do país, contribuindo para o aumento da oferta de empregos e geração de renda, ampliando o
investimento público e privado em obras fundamentais para o desenvolvimento do país. O Programa teve importância
fundamental no enfrentamento da crise financeira mundial entre 2008 e 2009, prevendo inicialmente investimentos
de R$ 503,9 bilhões em obras nos quatro primeiros anos” (Martins et al., 2021).
13. “Em abril de 2009, é lançado o Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV, que apresentava um novo patamar
de investimentos públicos no setor habitacional (R$ 34 bilhões até o final do PPA 2008-2011), com impacto direto na
alavancagem do setor da construção civil, com vistas à produção de um milhão de novas moradias em sua primeira
fase” (Martins et al., 2021).
14. O termo metropolização institucional foi cunhado por Costa, Matteo e Balbim (2010) com o objetivo de designar os
diferentes processos legais que formataram o atual arranjo metropolitano brasileiro, em que, por meio de LCs estaduais,
foram institucionalizadas RMs em todo o território nacional sem que estas correspondessem, necessariamente, ao “fato
metropolitano” como fenômeno urbano.
96 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

GRÁFICO 1
Número de RMs criadas (1973-2022)
45
42
40

35

30

25 23
20

15
10
10
7
5

0
1o período 2o período 3o período 4o período
(1973-1974) (1995-2007) (2009-2015) (2016-2022)

Fonte: Plataforma Brasil Metropolitano. Disponível em: http://brasilmetropolitano.ipea.gov.br/.


Obs.: Os anos entre períodos que não constam no gráfico são aqueles em que não houve criação de RMs.

As RMs, criadas institucionalmente por LC estadual, não correspondem


necessariamente a espaços caracterizados por uma metropolização de fato, baseada
em dinâmicas e processos socioespaciais e que tenham como motivação o plane-
jamento e a gestão compartilhada das FPICs. A distinção entre as “metrópoles de
fato” daquelas que não o são é o primeiro passo para a diferenciação desse tipo
supramunicipal, sobre o qual deverão incidir políticas e programas governamentais
distintos, tendo em vista suas dinâmicas espaciais e seus processos de ordenamento
territorial que as caracterizam ou não como metrópoles.
A partir de 2015, com a sanção do EM (Lei Federal no 13.089/2015), houve
uma desaceleração da metropolização institucional. Nesse ano, houve um sprint final
na corrida para a criação de RMs que já estavam previstas, diante da expectativa de
que o estatuto traria critérios que pudessem dificultar a definição/criação de RMs. Na
véspera da sanção do EM, em 12 de janeiro de 2015, o governo do Paraná aprovou a
criação de quatro novas RMs (Apucarana, Campo Mourão, Cascavel e Umuarama).
Em maio, foi criada a RM da Grande São Luís; em novembro, a RM de Porto Velho.
Pelo exposto anteriormente, consideramos que, a partir de 2016, se inicia
um quarto momento no processo de criação de RMs no Brasil, pós-EM, com
a brusca desaceleração da institucionalização desses espaços. Ao mesmo tempo,
algumas RMs “de fato” foram arrancadas da inércia e deram início à corrida para
atender às disposições do EM.
O EM buscou preencher as principais lacunas abertas do planejamento me-
tropolitano, ao estabelecer as medidas resumidas a seguir.
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 97
na Escala Supramunicipal

• As diretrizes gerais para o planejamento, a gestão e a execução das FPICs.


• O regramento sobre o plano de desenvolvimento urbano integrado
(PDUI) e outros instrumentos de governança interfederativa.
• Os critérios para o apoio da União às RMs que alcançarem, no prazo
legal, as condições necessárias à gestão plena.
O estado da arte da movimentação das RMs entre 2015 e 2018 (Marguti,
Costa e Favarão, 2018) revelou grandes esforços de pactuação entre os entes,
buscando alcançar a cooperação interfederativa, apesar da coexistência de nume-
rosas dificuldades e desafios ao longo do processo. Não por acaso, as RMs que se
mobilizaram a partir das diretrizes do EM são aquelas em que o fato metropolitano
se impõe e que, para além da pressão exercida pelas sanções impostas pelo art. 21,
já possuíam estrutura de governança capaz de dar início às providências de ade-
quação dessa mesma estrutura e orquestrar todos os labirínticos processos para a
contratação e/ou elaboração de seus PDUIs.
Na trajetória descrita, ressalta-se, por um lado, o papel proeminente de-
sempenhado pelos governos estaduais na condução desses processos, com, em
geral, menor participação dos municípios e da sociedade civil. Por outro lado, foi
notória a lacuna deixada pelo governo federal ao longo desses três anos, quando
não prestou orientações nem apoio aos estados e municípios em seus esforços em
direção à governança cooperada e interfederativa.
Três anos após a sanção do EM, uma série de alterações15 na lei original trouxe
novos elementos e entendimentos para a instável e incerta cooperação interfederativa
para a governança metropolitana. Com as modificações, tanto os critérios técnicos
para definição de RMs quanto os mecanismos de enforcement foram retirados da
lei, o que levou, em alguns casos, à desaceleração de processos de adequação ao
EM que se encontravam em curso.
A falta de critérios para a definição do que é uma RM e quais conformações
de APs poderiam tornar-se RMs pode impactar diretamente a ação de apoio da
União, sobretudo se não há, por parte do governo federal, a adoção de uma tipologia
que permita dar tratamento diferenciado aos vários tipos de arranjos institucionais
existentes. A versão original da lei definia critérios técnicos para a criação de uma
RM (Brasil, 2018, art. 2o), qual seja, a área de influência de uma capital regional.
As alterações promovidas pela Lei no 13.683/2018 retirou essa definição e incluiu
que a definição de RMs, AUs e microrregiões “deve ser precedida de estudos técnicos
e audiências públicas que envolvam todos os Municípios pertencentes à unidade
territorial” (Brasil, 2018, art. 3o, § 2o).

15. A íntegra das alterações realizadas no EM pela Lei no 13.683/2018 foi apresentada e problematizada em detalhes
por Marguti et al. (2021a).
98 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Também ocorre a substituição do entendimento de RM como “aglomeração


urbana que configure uma metrópole” (Lei no 13.089/2015) por “unidade regional
instituída pelos Estados, mediante lei complementar, constituída por agrupamento
de Municípios limítrofes para integrar a organização, o planejamento e a execução de
funções públicas de interesse comum (Lei no 13.683/2018)” (Brasil, 2018, art. 2o).
A nova redação reafirma o entendimento presente na CF/1988 e deixa aberta a
via da metropolização institucional.
Ainda que o ajuste da lei defina o conceito de área metropolitana (Brasil,
2018, art. 2o, inciso VIII) como “área conurbada da malha urbana da metrópole”,
esse conceito não compõe a definição de RM, o que resulta na aparente inutilidade
do termo área metropolitana, o qual, aliás, não é mencionado em nenhum outro
trecho da lei. Assim, pode-se dizer que houve uma grande confusão de relatores e
revisores da lei ao tratarem dos termos metrópoles, área metropolitana, contiguidade
territorial, aglomeração urbana, área de influência etc.
Novamente, a ausência de critérios e o uso de conceitos e definições mais
“abertos” ressaltam as possibilidades de descolamento entre os fenômenos reais e os
arranjos formais. Isso torna premente a adoção de uma tipologia que favoreça um
olhar adequado da União para essa realidade, contribuindo para que as políticas
públicas sejam mais aderentes ao território.

2.1.2 As aglomerações urbanas e as Rides


Os outros tipos de arranjos supramunicipais formais previstos na CF/1988 e no
EM são as AUs e as Rides. Da mesma forma que as RMs, as AUs são instituídas
por LCs estaduais. O universo de AUs é muito menor que o das RMs, contando
com apenas cinco arranjos institucionalizados em apenas dois estados da Federa-
ção: São Paulo e Rio Grande do Sul, que envolvem 74 municípios, de acordo com
levantamento do Ipea.16
O tipo supramunicial formal das AUs, previsto tanto na CF/1988 quanto
no EM, não foi utilizado pela maioria dos estados brasileiros. Em proporção in-
versa, foram criadas RMs em locais onde as dinâmicas próprias do fenômeno da
metropolização são embrionárias, ou até mesmo inexistentes.
A opção pela criação de RMs em vez de AUs pode não apenas ter a ver com
expectativas em torno de acesso a recursos orçamentários da União, mas também
dizer respeito a um certo fetiche pelo pertencimento a uma RM. A opção por
produzir um recorte do território estadual utilizando-se a figura das RMs pode
ainda ser entendida como parte da estratégia de desenvolvimento regional dos es-

16. Dados sobre RMs e AUs atualizados trimestralmente na planilha População, PIB, IDH e estrutura das RM – Brasil –
atualizada – database: 30/6/2022. Disponível em: http://brasilmetropolitano.ipea.gov.br/#biblioteca. Acesso em:
20 nov. 2022.
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 99
na Escala Supramunicipal

tados que trilharam esse caminho, mas parece não haver evidências nesse sentido.
De todo modo, o fato é que as AUs – que poderiam ter sido adotadas como o for-
mato institucional mais adequado à realidade socioespacial e econômica de muitas
RMs que foram instituídas neste século – constituem exceções no cenário nacional.
As Rides, por seu turno, não são arranjos criados pelos estados, sendo criadas
a partir de LC federal, por envolver áreas de mais de uma Unidade da Federação
(UF). Diferentemente das RMs, cujo foco diz respeito ao compartilhamento de
FPICs, as Rides têm como foco a promoção do desenvolvimento econômico da
região. Estas são arranjos que se fundamentam na necessidade de solucionar pro-
blemas em comum, em regiões que se articulam em centros urbanos que podem
possuir intensas relações e fluxos entre si, mas que apresentam a particularidade
de encontrarem-se em diferentes estados. Ao envolver duas ou mais UFs, com-
pete à União definir e integrar esse arranjo, estabelecer as competências de órgão
colegiado para a governança, assim como promover incentivos e elaborar planos
para o desenvolvimento das Rides.
A partir da CF/1988, três Rides foram criadas no país, a saber: a Ride do
Distrito Federal (Ride-DF) e entorno, em 1998; e as Rides da Grande Teresina
e do Polo Petrolina-PE e Juazeiro-BA, criadas em 2001, com a finalidade de ar-
ticular e orquestrar a atuação dos três níveis de entes da Federação na efetivação
do desenvolvimento econômico em regiões consideradas estratégicas. A criação
dessas três Rides demonstra, em tese, o interesse no desenvolvimento do interior
do país como contrabalanço ao originário e histórico favorecimento concedido
às áreas litorâneas.
A Ride-DF foi criada pela LC no 94, de 19 de fevereiro de 1998, como única
alternativa para a questão da governança de uma região em franco crescimento,
tendo-se em vista que a CF/1988 não prevê a constituição de RMs interfedera-
tivas. O crescimento da região esteve marcado por profundas desigualdades, e as
iniciativas de investimentos para dirimir a progressiva disparidade socioeconômica
entre Brasília e as cidades da região remontam à década de 1960, com os recursos
do Fundo de Desenvolvimento do Distrito Federal – Fundefe (Souza, 2017).
É apenas no final da década de 1990 que a Ride-DF é institucionalizada para,
na esfera administrativa, enfrentar as questões regionais que envolvem municípios
goianos e mineiros bem como o Distrito Federal. Dessa forma, os temas próprios
da dinâmica metropolitana, já consolidada entre o Distrito Federal e um número
menor de municípios – tal como caracterizado academicamente desde meados
da década de 1980 (Paviani, 1985) –, permaneceram desatendidos, enquanto se
aprofundou o abismo social entre o Distrito Federal e os municípios vizinhos,
conformando o que Sasse (2020) chama de “cinturão de pobreza, desemprego,
violência e serviços públicos precários”.
100 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

As ponderações a respeito da atual conformação da Ride-DF como tipo


supramunicipal formal têm relevância, na medida em que há um conjunto de
municípios com fortes relações e fluxos com o Distrito Federal, o qual deveria estar
contemplado nas ações das políticas de maneira mais efetiva e de forma aderente à
real conformação desse AP. A atenção à Ride-DF não pode estar restrita ao plane-
jamento de caráter regional; há pungentes situações de precariedade, desigualdade
e vulnerabilidade nas escalas metropolitana, municipal e intraurbana que clamam
por instâncias e instrumentos adequados ao seu enfrentamento.
A Ride da Grande Teresina (Ride-GT), criada pela LC no 112, de 19 de setem-
bro de 2001 (Brasil, 2001b), e regulamentada pelo Decreto Federal no 4.367/2002,
engloba quatorze municípios do estado do Piauí e apenas um município do estado
do Maranhão, Timon, município com intensa relação com Teresina, além de sede
de uma das RMs do estado (RM leste do estado do Maranhão).
De maneira divergente da dinâmica metropolitana apontada para a Ride-DF,
a Ride-GT apresenta características de macrocefalia urbana, visto que a região é
marcada pela conurbação das duas cidades principais, Teresina-PI e Timon-MA,
enquanto os demais municípios contam com baixa urbanização, baixa densidade
demográfica, ausência de conurbação e de continuidade da malha viária, além de
apresentarem indicadores econômicos e sociais característicos de baixo desenvol-
vimento humano e alta vulnerabilidade social.
Se o arranjo institucional das Rides fosse entendido como equivalente às
RMs, com a particularidade de se encontrarem em UFs limítrofes, possivelmente
a Ride-GT não se enquadraria nesse tipo de arranjo. Observando de outra pers-
pectiva, a polaridade exercida por Teresina, notadamente pela busca por serviços
de saúde e educação, torna vital a necessidade de desenvolvimento de seu entorno
e de sua região de influência.
Por sua vez, a Ride do Polo Petrolina-PE e Juazeiro-BA foi criada em 2001,
pela LC no 113 (Brasil, 2001c), abarcando quatro municípios do sudoeste do
estado de Pernambuco e quatro municípios do norte do estado da Bahia, tendo
como principais motivações a resolução compartilhada de temas caros à região,
tais como: irrigação, recursos hídricos, turismo, reforma agrária e meio ambiente.
Ao analisar o período 2001-2010, Oliveira (2016) concluiu que a arquite-
tura institucional pensada para a Ride do Polo Petrolina-PE e Juazeiro-BA não foi
suficiente para estabelecer cooperação e diálogo entre os entes envolvidos. Assim
sendo, predominaram interesses individualistas, isolacionistas e privatistas, que
suplantaram a integração necessária para a colaboração e a cooperação entre os
entes envolvidos e demais atores-agentes, com vistas ao desenvolvimento da Ride
do Polo Petrolina-PE e Juazeiro-BA.
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 101
na Escala Supramunicipal

2.2 Tipos supramunicipais “de fato”: os arranjos populacionais


Os APs, entendidos para efeitos do argumento aqui desenvolvido como tipos
supramunicipais de fato, são definidos pelo IBGE (2016) com base na integração
entre centros urbanos, medida a partir de três fatores, conforme descrito a seguir.
1) Intensidade relativa dos movimentos pendulares para trabalho e estudo.
2) Intensidade absoluta dos movimentos pendulares para trabalho e estudo –
volume absoluto de pessoas que se deslocam para trabalho e estudo igual
ou superior a 10 mil pessoas.
3) Contiguidade das manchas urbanizadas – quando a distância entre as bor-
das das manchas urbanizadas principais de dois municípios é de até 3 km.
Essa quantificação resultou na identificação de 294 APs no país, compostos
por 953 municípios, reunindo 55,7% (cerca de 106,247 milhões em 2010) da
população brasileira.
Uma vez definidos os APs, o IBGE toma-os como ponto de partida para a
definição da região de influência de cidades (IBGE, 2020), ampliando o próprio
conceito e entendimento sobre cidade. Na Regic, a unidade urbana de análise,
independentemente dos limites administrativos existentes, é a cidade – entendida
como a unidade formada pela mancha urbana conurbada de dois ou mais muni-
cípios “ou que possuam forte movimento pendular para estudo e trabalho, com
tamanha integração que justifica considerá-los como um único nó da rede urbana”
(op. cit., p. 11).
Dessa feita, o estudo da Regic torna os APs equivalentes ao que passa a cha-
mar de cidades e, para o estudo da hierarquia dos centros urbanos e da região de
influência das cidades, toma como nós da rede tanto os APs (cidades) quanto os
chamados municípios isolados.
A Regic hierarquiza os centros urbanos em cinco níveis – com subdivisões
internas, a saber: metrópoles, capitais regionais, centros sub-regionais, centros de
zona e centros locais – e define as regiões de influência a partir das cidades de menor
hierarquia para as de maior hierarquia, resultando nas metrópoles como “elo final”
de cada rede, “para onde convergem as vinculações de todas as Cidades presentes
no Território Nacional” (IBGE, 2020, p. 11).
TABELA 1
102 |

Distribuição regional dos níveis de cidades – Grandes Regiões (2018)

Distribuição regional dos cinco níveis de hierarquia urbana

Grande Região Metrópole Capital regional Centro sub-regional Centro de zona Centro local
Nível hierárquico Nível hierárquico Nível hierárquico Nível hierárquico Nível hierárquico
Cidades Cidades Cidades Cidades Cidades
(%) (%) (%) (%) (%)
Brasil 15 100 97 100 352 100 398 100 4.037 100
Norte 2 13,3 11 11,3 27 7,7 21 5,3 373 9,2
Nordeste 3 20 21 21,7 88 25 135 33,9 1.436 35,6
Sudeste 5 33,3 38 39,2 120 34,1 107 26,9 1.074 26,6
Sul 3 20 21 21,7 83 23,6 90 22,6 819 20,3
Centro-Oeste 2 13,3 6 6,2 34 9,7 45 11,3 335 8,3

Fonte: IBGE (2020).


escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro
Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 103
na Escala Supramunicipal

A tabela 1 detalha a distribuição de cada nível de cidade na hierarquia urbana


nas Grandes Regiões do país. Essa hierarquização é ponto-chave para os argumentos
desenvolvidos neste texto, posto que embasa tecnicamente tanto os questionamentos
acerca da metropolização institucional quanto a proposta de redefinição dos tipos
supramunicipais, de maneira que representem os reais processos que se passam no
território. Isso permitirá definir e ajustar o foco de endereçamento das políticas
públicas de desenvolvimento urbano.

3 ARRANJOS POPULACIONAIS: BALIZADORES PARA A DEFINIÇÃO DE ARRANJOS


INSTITUCIONAIS?
Um dos efeitos esperados do EM, a partir de 2015, era o de conter a multiplicação
de RMs pelo país. De acordo com o último levantamento realizado pelo Ipea,17
existem 82 RMs institucionalizadas no país, conforme legislação complementar
das 27 UFs. Houve redução no ritmo de criação de novas RMs após o EM, mas
a metropolização institucional não foi completamente contida.
Ainda que conter, ou ordenar, esse fenômeno seja um dos elementos moti-
vadores do EM, em nossa avaliação, após muitos anos acompanhando a questão
metropolitana, o problema não reside no fato de os estados decidirem criar várias
RMs ou até mesmo dividir todo o território estadual em RMs. Isso não é inconsti-
tucional, não gera nenhuma consequência que contrarie a ordem jurídico-normativa
e não produz nenhum tipo de efeito pernicioso em termos das políticas públicas,
do ponto de vista das RMs criadas/instituídas. Esse seria um falso problema.
Qual então seria o problema associado ao fenômeno da metropolização
institucional? Considerando-se que as RMs criadas pelas diferentes UFs formam
um conjunto bastante heterogêneo, a questão que demanda um olhar cuidadoso
do ponto de vista da esfera federal é similar ao que se passa com o universo dos
municípios brasileiros: trata-se de um conjunto heterogêneo, diverso em muitas
dimensões, que não deve ser tratado de forma homogênea quando se trata de pensar
e implementar as políticas públicas em escala nacional, a partir da esfera federal.
Ainda que, constitucionalmente, seja atributo dos estados a criação de RMs
e AUs e que a institucionalização de RMs sem o fato metropolitano não seja um
problema em si – podendo inclusive colaborar com o planejamento regional dos
estados –, a questão posta é que a criação indiscriminada de “RMs fantasmas”
obstaculiza o endereçamento correto das ações da União, tendo-se em vista que,
na “categoria” RM, cabe atualmente qualquer configuração.
Por essa razão, a primeira proposta deste estudo é alinhar a hierarquia de
cidades (APs e municípios isolados) proposta pela Regic aos tipos supramunicipais

17. Disponível em: http://brasilmetropolitano.ipea.gov.br/.


104 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

formais, de maneira a propor tipologias a partir das quais seja possível o estudo
e a reflexão sobre instrumentos de desenvolvimento urbano adequados para cada
configuração de cidade.
Dessa forma, retoma-se o argumento central de que o tratamento isonômico
e igualitário não necessariamente resulta em abordagem justa para cidades desi-
guais – ao contrário, pode reforçar as injustiças e as desigualdades socioespaciais.
Assim sendo, a proposição de tipologias para a escala supramunicipal permitirá
a qualificação do papel ativo da União em sua tarefa de fomentar e apoiar o
desenvolvimento urbano-metropolitano, de maneira a equalizar as disparidades
intrarregionais e entre arranjos supramunicipais nas diferentes regiões do país.18
Ressalta-se que o estudo não pretende propor tipologias finalísticas, mas sim
reunir os elementos necessários para que seja possível compreender e refletir sobre
os “tipos” existentes e as incoerências do processo de institucionalização. Além
disso, pretende apontar a dimensão das questões supramunicipais que precisam
ser enfrentadas por uma política federal.
Sendo assim, não se trata de criar uma tipologia supramunicipal – a partir da
qual seja possível definir agendas urbanas personalizadas –, tendo-se em vista que
o primeiro degrau para a definição dessas tipologias já está pronto. Resta, então,
realizar o exercício de identificar o que no campo institucional corresponde a cada
nível na hierarquia de cidades e, assim, propor definições mais objetivas dos espaços
metropolitanos, para que, finalmente, se possa produzir uma efetiva política de
desenvolvimento (urbano-)metropolitano no país.

3.1 Características das RMs e hierarquização de cidades


Tal como apresentado na primeira seção deste capítulo, a metropolização institucional
foi intensa na última década (2010), resultando em 82 RMs contabilizadas até o
final de 2022. A tabela 2 apresenta o número de municípios e da população que
vive em RMs (2020), em cada uma das macrorregiões do país.
Os dados mostram uma concentração dos arranjos institucionais do tipo
metropolitano nas regiões Nordeste e Sul, com o Nordeste apresentando a média
de 3,8 RMs por estado e o Sul mostrando a média de 7,6 RMs por estado. É jus-
tamente nas UFs dessas duas macrorregiões que há maior número de municípios
“metropolitanos”: 395 e 536 municípios, respectivamente.

18. Apenas para não passar desapercebido, a questão dos arranjos institucionais metropolitanos, na perspectiva do
governo federal, não diz respeito apenas à diversidade de RMs instituídas; muitas destas sem o “fato” metropolitano.
Há de se destacar também a necessidade de adoção de abordagens interescalares que promovam a mediação entre a
política urbano-metropolitana e a política regional, de modo que as metrópoles possam exercer também um papel na
promoção do desenvolvimento nacional.
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 105
na Escala Supramunicipal

TABELA 2
Número de municípios metropolitanos – Grandes Regiões (2022)
Grande Região Número de RMs Número de municípios em RMs População (2020)

Centro-Oeste 2 34 3.704.172

Nordeste 34 394 26.223.458

Norte 10 73 8.082.725

Sudeste 13 342 58.515.656

Sul 23 536 19.996.532

Total geral 82 1.379 116.522.543

Fontes: MDR e IBGE, 2020; Plataforma Brasil Metropolitano, 2023. Disponível em: brasilmetropolitano.ipea.gov.br.

Ao menos institucionalmente, 24,8% dos municípios do país fazem parte de


alguma RM. Com isso, temos mais da metade da população brasileira vivendo em
regiões metropolitanas criadas por LCs estaduais. São, ao todo, 1.380 municípios,
que somam cerca de 116,5 milhões de habitantes (tabela 2).
Um cenário realista do fenômeno da metropolização no Brasil contaria,
a princípio, com quinze metrópoles, tal como consta na Regic 2018. Quando
aplicado o filtro de municípios pertencentes às metrópoles da Regic 2018, o universo
de municípios metropolitanos, além de expressar o real fenômeno da conurbação
e da articulação/integração entre os municípios, se reduziria de 1.380 para 206
municípios, com a diminuição de 40,9 milhões de habitantes metropolitanos. Isso
resulta em 17,6% da população brasileira vivendo de fato em metrópoles, e não
52,8%, como aponta o cenário institucional.

TABELA 3
População em arranjos populacionais do tipo metrópole na Regic-2018, que são também
RMs e Rides institucionalizadas (2020)
RMs/Ride Número de municípios em metrópoles da Regic 2018 População (2020)

Centro-Oeste 23 3.474.537

Nordeste 32 11.523.469

Norte 5 4.400.364

Sudeste 93 43.671.963

Sul 52 8.498.198

Total geral 206 74.583.799

Fonte: Plataforma Brasil Metropolitano, 2020 – disponível em: brasilmetropolitano.ipea.gov.br – e IBGE (2020).
Elaboração dos autores.

Tomando-se o inciso V do EM como parâmetro para a definição de uma


metrópole, é possível simular quais capitais regionais poderiam ser consideradas
106 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

como tal para fins de apoio da União. Assim, associando-se os parâmetros técnicos
aos critérios institucionais existes, além das três categorias de metrópoles definidas
pela Regic 2018 (grande metrópole nacional, metrópole nacional e metrópole),
é possível propor a quarta categoria de metrópole, advinda dos arranjos institu-
cionais (RMs) que possuem como sede uma capital regional e contiguidade do
espaço urbano.
À essa quarta categoria daremos, deste ponto em diante, o nome de metró-
poles regionais. Isso significa a inclusão de mais 34 APs – que são também RMs
institucionalizadas – ao conjunto das quinze já existentes. Outras seis RMs possuem
capitais regionais como sede, porém não atendem ao critério de “espaço urbano
com continuidade territorial”, tal como apresentado no EM. São estas: RM do
Agreste (AL); RM de Feira de Santana (BA); RM de Santarém (PA); RM de Boa
Vista (RR); RM de Palmas (TO); e RM de Lajes (SC). De acordo com a Regic
(2018), suas sedes são consideradas municípios isolados.
A região Norte contaria com mais duas RMs (Macapá e Porto Velho). A região
Sudeste teria outras oito RMs, sendo uma em Minas Gerais – correspondente à
já existente RM do Vale do Aço –; quatro em São Paulo, além das três AUs de
São Paulo (AU de Franca, AU de Jundiaí e AU de Piracicaba), passíveis de serem
convertidas em RMs, tendo-se em vista suas sedes serem capitais regionais C. Por
fim, a região Sul contaria com o reconhecimento técnico de mais onze RMs, já
institucionalizadas pelos estados, sendo três no Paraná, sete em Santa Catarina e
uma no Rio Grande do Sul, além da AU do Sul, com sede em Pelotas, uma capital
regional C.
Considerando-se as capitais regionais que restam no país, que fazem parte de
arranjos populacionais e que, até o momento, não foram formalizadas como regiões
metropolitanas – mas que, segundo os critérios do EM, poderiam ser consideradas
metrópoles –, percebe-se que na região Sudeste existem treze arranjos populacionais
e na região Sul, outros cinco.19 A hipotética transformação desses APs em RMs ou
AUs agregaria 1.348 municípios ao universo metropolitano, o que corresponde a
6,5 milhões de habitantes.
O exercício aqui empreendido não busca propor a criação de novas RMs,
mas sim dar destaque para as cidades que poderiam, a partir de critérios técnicos
e por interesse dos estados, ser institucionalizadas como RMs ou AUs. Indepen-
dentemente de sua efetivação ou não como RM, são arranjos que fazem parte do
mesmo grupo a que chamamos de metrópoles regionais.

19. Na região Sudeste, os APs de Juiz de Fora-MG; de Cabo Frio-RJ; de Campos dos Goytacazes-RJ; de Macaé-Rio das
Ostras-RJ; de Petrópolis-RJ; de Volta Redonda-Barra Mansa-RJ; de Araraquara-SP; de Bauru-SP; de Catanduva-SP; de
Marília-SP; de Presidente Prudente-SP; de São Carlos-SP; e de São José do Rio Preto-SP. Na região Sul, os APs
de Ponta Grossa-PR; de Foz do Iguaçu (Brasil)-Ciudad del Este(Paraguai); de Lajeado-RS; de Santa Cruz do Sul-RS;
e de Santa Maria-RS.
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 107
na Escala Supramunicipal

Resta ainda olhar para as capitais regionais que não conformam APs. Mesmo
sendo municípios isolados – ou seja, sem conurbação de sua malha urbana com
municípios limítrofes –, possuem área de influência de uma capital regional. Segundo
o IBGE, Manaus, ainda que seja um município isolado, configura-se como uma
metrópole na rede de cidades, uma vez que atrai população de mais de setenta mu-
nicípios com finalidades diversas, tais como negócios, serviços públicos e compras.
Com exceção das capitais estaduais (Campo Grande-MS, Rio Branco-AC,
Boa Vista-RR e Palmas-TO), o olhar e as ações propostas por uma PNDU para
esses municípios isolados, que são também capitais regionais e potenciais RMs – em
consonância com a Lei no 13.089/2015 –, não deve ser da mesma natureza daquele
dirigido às três primeiras categorias de metrópoles (grande metrópole nacional,
metrópole nacional e metrópoles).
Nesse grupo, apenas Campo Grande, capital do estado do Mato Grosso do
Sul, é classificada como capital regional A. Entre as oito capitais regionais B, está
Palmas, capital do estado do Tocantins. O maior conjunto é o de capitais regionais
C, com 31 cidades, entre as quais estão Rio Branco e Boa Vista, capitais dos estados
do Acre e Roraima, respectivamente, ambas com população aproximada de 400
mil habitantes. A distribuição dessas capitais regionais aponta maiores ocorrências
no Sudeste e no Nordeste do país. Em Minas Gerais, existem duas capitais regio-
nais B (Montes Claros e Uberlândia) e sete capitais regionais C, com populações
que variam de 691 mil habitantes, em Uberlândia, a 140 mil, em Teófilo Otoni.
O estado de São Paulo conta com três capitais regionais C (Barretos, Araçatuba e
Jaú), com média populacional de 156,4 mil habitantes.
No Nordeste, a Bahia conta com seis capitais regionais, sendo três destas do
tipo B: Itabuna, Vitória da Conquista e Feira de Santana, esta última com apro-
ximadamente 615 mil habitantes. Pernambuco também conta com uma capital
regional B, Caruaru, com 361 mil habitantes.
Na sequência, a região Norte apresenta uma capital regional B (Palmas-TO)
e outras oito capitais regionais C, com populações que variam de 407 mil habitan-
tes (Rio Branco-AC) a 85 mil (Cacoal-RO). A região Centro-Oeste tem Campo
Grande-MS como capital regional A; outras três capitais regionais C (Dourados-MS,
Rondonópolis-MT e Sinop-MT), com média populacional de 199,5 mil habi-
tantes; e Anápolis-GO, que conta com 386,9 mil habitantes. Na região Sul, Passo
Fundo-RS, com seus 203 mil habitantes, constitui uma capital regional B, além
de duas outras capitais regionais C.
Não há critério técnico que justifique considerar tais capitais regionais como
metrópoles, tendo-se em conta que são municípios isolados, sem contiguidade de
suas manchas urbanas com municípios limítrofes. Contudo, institucionalmente,
isso já acontece. Temos hoje no Brasil 27 RMs cujas sedes estão abaixo das capitais
108 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

regionais na hierarquia de cidades. Nove destas20 ao menos compõem APs, sem-


pre formados por dois ou três municípios, resultando em vinte municípios com
média de 95 mil habitantes. Esses casos ocorrem em apenas seis UFs das regiões
Nordeste e Sul.
As outras dezoito RMs21 com sedes em posição hierárquica abaixo das capitais
regionais não têm seus municípios-sede pertencentes a nenhum AP. Essas apare-
cem em estados das regiões Nordeste, Norte e Sul e possuem média populacional
de 165,5 mil habitantes/RM. As mais populosas estão na região Sul, com média
populacional de 295,5 mil habitantes/RM, em contraposição à média verificada na
região Norte, de 95,2 mil habitantes/RM. Dos 230 municípios que compõem essas
18 RMs, 89,1% são centros locais. Apenas quatro municípios (1,7%) são centros
sub-regionais A (Apucarana-PR, Campo Mourão-PR, Gurupi-TO e São Miguel
do Oeste-SC), todos sedes de RMs. Outros sete municípios (3,1%) possuem área
de influência de centro sub-regional B; seis destes são sedes de RMs no Nordeste.
Por fim, quatorze (6,1%) municípios têm área de influência de centro de zona B;
dois destes, Viçosa-AL e Piancó-PB, são sede de suas respectivas RMs.

3.1.1 Metrópoles regionais: uma proposta


Desta feita, chegamos à primeira camada de categorização de RMs, resultante da hie-
rarquização dos arranjos institucionais – tanto existentes quanto “em potencial” – de
maneira equiparada aos APs do IBGE. Até o nível das capitais regionais pertencentes
a APs, é possível justificar que estas conformem RMs, levando-se em consideração
não apenas a perspectiva técnica, mas também a perspectiva institucional.
A perspectiva técnica (IBGE, 2016) designa as capitais regionais como médias
e grandes concentrações urbanas, que apresentam relações diretas com as metró-
poles – no caso das capitais regionais A –, ou são centralidades de referência no
interior dos estados22 (capitais regionais B), ou são capitais estaduais em estados
do Norte e cidades do interior, principalmente do Sudeste (capitais regionais C).
Enquanto, pela perspectiva institucional, a criação de RMs a partir de capitais
regionais justifica-se pela delimitação feita pelo EM (art. 2o), ou pela autonomia
estadual em regionalizar seu território para fins administrativos e de planejamento.

20. RM do São Francisco-AL (AP de Penedo); RM de Grande Pedreiras-MA (AP de Pedreiras); RM de Patos-PB (AP de
Patos); RM de Guarabira-PB (AP de Guarabira); RM do Mamanguape-PB (AP Mamanguape-Rio Tinto); RM de Toledo-PR
(AP de Toledo); RM de Umuarama/PR (AP de Umuarama); AU do Litoral Norte-RS (AP de Tramandaí-Osório); e RM do
Alto Vale do Itajaí-SC (AP de Rio do Sul).
21. Em Alagoas: RM da Zona da Mata; RM de Caetés; RM de Palmeira dos Índios; RM do Médio Sertão; RM do Sertão;
e RM do Vale do Paraíba. Na Paraíba: RM de Araruna; RM de Barra de Santa Rosa; RM de Esperança; RM de Itabaiana;
RM de Sousa; e RM do Vale do Piancó. Em Roraima: RM de Central; e RM do sul do estado. No Tocantins: RM de Gurupi.
No Paraná: RM de Apucarana; e RM de Campo Mourão. Em Santa Catarina: RM do Extremo Oeste.
22. As capitais regionais B são numerosas nos estados do Sul do país, o que pode justificar tamanha profusão de RMs
institucionalizadas, sobretudo no Paraná, com oito RMs – das quais seis estão em arranjos populacionais –, e Santa
Catarina, com onze RMs – das quais nove estão em APs.
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 109
na Escala Supramunicipal

Em resumo, temos as configurações de metrópoles, RMs e possíveis RMs,


a seguir descritas.
1) Quinze metrópoles da Regic (uma grande metrópole nacional, duas
metrópoles nacionais e doze metrópoles).
2) Trinta e quatro RMs que apresentam contiguidade na malha urbana e
possuem capitais regionais como sede, incluídas nesse conjunto as Rides
do Polo Petrolina-PE e Juazeiro-BA e da Grande Teresina, além das AUs
de Franca, Jundiaí e Piracicaba, no estado de São Paulo, e a AU do Sul,
no estado do Rio Grande do Sul.
3) Dezoito capitais regionais, que conformam APs, mas ainda não são RMs.
4) Quatro capitais estaduais, que são capitais regionais, não conformam APs,
mas são médias ou grandes concentrações urbanas (Campo Grande-MS,
Rio Branco-AC, Boa Vista-RR e Palmas-TO).
Assim, uma quarta categoria de metrópole seria formada tanto pelas capitais
regionais que são APs e que já conformam regiões metropolitanas, a qual deno-
minamos – de maneira propositiva – como metrópoles regionais, quanto pelas
capitais regionais que possuem essas mesmas características e que podem, a qualquer
momento, ser transformadas em RMs por força do interesse de seus estados. Isso
corresponde à 49 RMs já instituídas e à 22 RMs “em potencial” – ou seja, que
possuem as configurações de “possíveis metrópoles”, mas ainda não o são. Desta
feita, de acordo com essa primeira análise, o universo metropolitano seria formado
por 49 RMs institucionalizadas.
As demais RMs que possuem como sede municípios que estão em nível
hierárquico inferior às capitais regionais e que, portanto, possuem atividades de
gestão menos complexas, com áreas de influência pouco extensas e menor porte
populacional, não chegando a conformar médias concentrações urbanas (IBGE,
2020). Dessa forma, não possuem respaldo técnico nem definição legal que
justifiquem uma espécie de reconhecimento nacional (federal) de seu status de
metrópole, o que não impede que os estados mantenham as RMs por eles criadas
ou até mesmo que crie outras.
Para uma PNDU, é importante diferenciar o conjunto de RMs, e de possíveis
RMs, do segundo grupo, que possui configurações de cidades com pouca influên-
cia regional e, principalmente, não apresenta FPICs a compartilhar, fundamento
inaugural para a criação de RMs e AUs. Em casos específicos, que contemplem a
necessidade de compartilhamento de um serviço urbano, tal como o transporte
intermunicipal ou a gestão dos resíduos sólidos, há de ponderar-se a relevância da
criação de RMs/AUs perante a possibilidade de formação de um consórcio público.
110 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

A reorganização hierárquica dos tipos supramunicipais formais é apenas a


primeira camada que deve ser estabelecida para a constituição e/ou ajustes de di-
retrizes nacionais, com o objetivo de formular políticas urbanas condizentes com
a realidade dos conjuntos de municípios.

3.2 Aglomerações urbanas: uma categoria “vazia”?


Tal como mencionado anteriormente, existem no Brasil apenas cinco AUs instituí-
das, três destas estão no estado de São Paulo e outras duas no estado do Rio Grande
do Sul. As demais UFs não fizeram uso desse instrumento; fato compreensível,
uma vez que nem a CF/1988, nem outra norma ou resolução esclarece em quais
casos criar AUs no lugar de RMs, e vice-versa.
O EM, ao definir metrópole como o espaço urbano que tem área de influência
nacional, ou equivalente à área de influência de uma capital regional, avançou alguns
passos na tentativa de estabelecer critérios para diferenciar arranjos que poderiam
tornar-se RMs daqueles que se encaixariam melhor como uma AU. Com isso, o
EM determinou uma espécie de “pré-requisito” para a institucionalização de RMs.
A definição de metrópole, após as reformas feitas pela Lei no 13.683/2018, deixou
de ter qualquer relação com a própria definição de região metropolitana, que passou
a ser utilizada pelos governos estaduais como uma unidade regional para fins de
planejamento de seu território, na esteira do que a própria CF/1988 já estabelecia.
Assim, não há nenhum impedimento legal para que qualquer agrupamento
de municípios se torne uma RM, independentemente de seu porte e do grau de
influência que exerça em seu entorno. De certa forma, como a criação de uma RM
depende de decisão normativa da UF, acaba não havendo nenhuma orientação ou
diretriz que diferencie RMs de AUs e que fomente a criação de AUs, o que acaba
funcionando como estímulo ao processo da metropolização institucional.
Em decorrência da falta de critérios e parâmetros objetivos e da inexistência
de qualquer impedimento jurídico, as AUs institucionalizadas pelos estados de São
Paulo e do Rio Grande do Sul poderiam, a princípio, ser convertidas em RMs.
É compreensível que o estado de São Paulo, com seus APs de médio e grande
portes – incluindo-se a RM de São Paulo, que está entre as dez maiores metrópoles
do mundo e a maior do continente sul-americano –, encontre na criação de AUs
uma tipologia intermediária para seu planejamento regional. As AUs do estado
contam com 49 municípios e uma população de 2,9 milhões de habitantes.
Assim como ocorre com as RMs, a institucionalização de AUs pode abarcar
os critérios mais diversos. Pela inexistência de critérios objetivos e comuns, cada
UF cria RMs e AUs segundo diretrizes e critérios variáveis, de modo que a RM de
um estado pode, em uma análise mais objetiva, equiparar-se a uma AU de outro
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 111
na Escala Supramunicipal

estado. Na verdade, as poucas AUs existentes no país conformam núcleos urbanos


maiores e mais dinâmicos, em termos demográficos e econômicos, do que muitas
das RMs legalmente instituídas.
Olhar a média populacional dos municípios que compõem as AUs nos dá
parte dessa dimensão, a maior (121,9 mil) e a menor (16,8 mil) média populacional
estão nas AUs do RS. A média populacional dos municípios da AU do Sul (121,9
mil) equipara-se às médias encontradas em municípios de RMs como a de Belo
Horizonte (119,2 mil), a de Goiânia (124,4 mil), a de São Luís (125,6 mil), a de
Curitiba (126 mil) e até mesmo na própria RM de Porto Alegre (127,6 mil). Sendo
Pelotas uma capital regional, seria razoável tomar a AU do Sul como uma RM.
O olhar da União para esse arranjo institucional deverá ser equivalente ao dado
para as chamadas metrópoles regionais, propostas por este estudo.
Pela perspectiva do estado, no Rio Grande do Sul, a definição de RMs e AUs
atende à necessidade de hierarquização de sua própria rede de cidades, assim como
em São Paulo. Ainda que faça sentido a adoção das tipologias supramunicipais para
estabelecer hierarquias em uma mesma UF, deve-se ter em conta que essas hierar-
quias não podem ser comparadas entre as UFs nem na escala nacional, uma vez
que cada UF tem liberdade para determinar os critérios para criação de RMs e AUs.
Na escala nacional, olhar para RMs e AUs significa olhar para um universo
completamente heterogêneo de regionalizações e dinâmicas. Esse fato reitera a
necessidade da adoção de uma hierarquia que faça sentido para um olhar em escala
nacional. Nessa direção, a utilização da Regic (IBGE, 2016) favorece a construção
de entendimento comum sobre as cidades e os municípios isolados do país, a partir
do papel que exercem na rede de cidades, tanto nacionalmente quanto de forma
ponderada à sua influência regional e local; isso torna possível avançar para a re-
flexão sobre tipologias que deem conta da escala supramunicipal.

3.3 As Rides e as dinâmicas de APs interestaduais


Dada a natureza de cada Ride (a motivação para sua criação, sua inserção regional,
o porte populacional, o número de municípios que integra e a posição na hie-
rarquia de cidades), não é possível analisá-las como um conjunto homogêneo de
regionalização. Cada uma destas mereceria análises individuais.
Parte-se do entendimento de que as Rides mesclam, em diferentes proporções,
as problemáticas associadas ao desenvolvimento econômico-produtivo regional –
tema mais próximo da PNDR – e às questões urbanas – tema da PNDU. Conforme
será demonstrado em outro capítulo desta publicação,23 ambas as problemáticas

23. Faz-se referência aqui ao capítulo Contribuições para uma agenda urbana de integração regional: bases para
interpretação e tipologia de rede urbana para um Brasil mais policêntrico, de Ernesto Pereira Galindo.
112 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

possuem uma forte relação causa-efeito bidirecional, que pode ser aferida na própria
evolução dos ciclos econômicos que marcam a formação do país.
Aqui, abordaremos brevemente a Ride do Polo Petrolina-PE e Juazeiro-BA,
cuja criação possui motivações relacionadas ao desenvolvimento regional produ-
tivo, e a Ride da Grande Teresina (PI/MA), que desempenha importante papel de
centralidade regional, com sua atração extrapolando as fronteiras de dois outros
estados, ao mesmo tempo que apresenta dinâmicas metropolitanas. Maior ênfase será
dada à Ride-DF e entorno, cuja problemática é fundamentalmente metropolitana.
A criação das Rides da Grande Teresina e do Polo Petrolina-PE e Juazeiro-BA
deu-se na mesma ocasião, em 2001, por meio das LCs nos 113 e 112, respectivamen-
te. Ambas constituíam “manchas” no interior nordestino que, como apontado por
Oliveira (2016), apresentavam indicadores que comunicavam sobre as possibilidades
de desenvolvimento da região. A intenção de sua criação era, entre outras, retirar
o peso das grandes cidades nordestinas, funcionando como polo intermediário,
tanto para as atividades econômicas, quanto para busca de serviços e empregos.
Os municípios que compõem a Ride do Polo Petrolina-PE e Juazeiro-BA
chamavam atenção pelo seu potencial de desenvolvimento em relação à “fruticultura
irrigada e à agroindustrialização da uva por meio da produção de vinhos, ambas
voltadas tanto para o mercado interno quanto externo, alimentadas pelo potencial
hídrico do rio São Francisco” (Oliveira, 2016, p. 118). Foi institucionalizada com
oito municípios,24 sendo quatro em cada um dos estados, Bahia e Pernambuco;
destes, apenas Petrolina e Juazeiro conformam um AP, com área de influência de
uma capital regional C.
O surgimento do AP de Petrolina-Juazeiro provocou a retração dos limites
da atração exercida pela metrópole de Salvador, no norte do estado, sobretudo nos
deslocamentos em busca dos serviços de saúde de baixa e média complexidade.
Do outro lado da divisa estadual, o AP faz parte da área de influência direta da
metrópole de Recife.
Com atividades majoritariamente agrícolas e de serviços voltadas para a pro-
dução e exportação de frutas (uva e manga, em especial), o polo dinamizou a cadeia
produtiva da agricultura irrigada, transformando completamente a dinâmica da
produção agrícola da região. Do ponto de vista da cooperação interfederativa, a forte
atuação de empresas de capital nacional e internacional, e sua influência na dinâmica
produtiva da região, sobrepôs-se à governança e à cooperação entre os entes federados,
necessária para a formulação de desenvolvimento abrangente para a região.

24. A Ride possuía 778.235 habitantes em 2020. Suas sedes (Petrolina-PE e Juazeiro-BA) reúnem 73% do contingente
populacional, enquanto a população dos demais municípios varia entre 15 mil e 72 mil habitantes, com média de 34,5 mil.
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 113
na Escala Supramunicipal

Por sua vez, a Ride-GT é formada por quatorze municípios, sendo que apenas
Timon não pertence ao estado do Piauí, como visto anteriormente. As duas sedes,
Teresina-PI e Timon-MA, abrigam pouco mais de 1 milhão de habitantes (2020)
e conformam o AP de Teresina, uma capital regional A, enquanto os demais mu-
nicípios da Ride são centros locais com média de 15,8 mil habitantes.
A rede do AP de Teresina possui um elevado alcance espacial, transpondo
as fronteiras do estado do Piauí, avançando sobre o oeste e o sul do Maranhão,
adentrando o estado de Pernambuco e chegando ao limite sul do Piauí, na fronteira
com o oeste baiano.
Entre os APs da Regic (IBGE, 2020), o AP de Teresina tem enorme destaque
por sua atração para serviços de saúde de baixa, média25 e alta complexidade.26 No
caso das baixas e médias complexidades, o AP de Teresina tem influência sobre
95 cidades. Por sua vez, no caso dos serviços de saúde de alta complexidade – que
são mais espaçados territorialmente, resultando em maiores distâncias a serem
percorridas –, exerce influência sobre trezentas cidades, o maior número do país.
É notável e importante a atração que o AP de Teresina exerce nos desloca-
mentos em busca do ensino superior, sendo a terceira colocada entre os APs, atrás
apenas de Belém-PA e Salvador-BA, seguida de São Luís-MA.27
A Regic (IBGE, 2020) aponta que o AP de Teresina possui a maior distância
do país entre a cabeça da rede (AP de Teresina) e a menor hierarquia encontrada
na rede (centros locais), igual a 146,6 km. Isso significa que o AP atrai centros
locais muito distantes que não têm opções intermediárias e recorrem diretamente
à maior cidade da rede (salto hierárquico).
A Ride-DF foi criada em 1998, pela LC no 94/1998, contando com 21 mu-
nicípios, além do Distrito Federal. Vinte anos depois, a LC no 163/2018 agregou
outros doze municípios ao arranjo, perfazendo um total de 4.627.771 habitantes
em 2020.
Quando cotejados, o arranjo institucional da Ride-DF, em sua atual formação,
e os APs do IBGE (2016), verificam-se três APs no interior da Ride-DF. O primeiro
deste é formado pelos municípios goianos de Alvorada do Norte e Simolândia,
um centro de zona B com 15,5 mil habitantes. O segundo AP é um centro sub-
-regional B, que agrupa os municípios goianos de Barro Alto e Goianésia, com

25. Os serviços de saúde de baixa e média complexidades envolvem “consultas médicas e odontológicas; exames
clínicos; serviços ortopédicos e radiológicos; fisioterapia; e pequenas cirurgias; dentre outros atendimentos que não
impliquem em internação” (IBGE, 2020, p. 109).
26. “Os serviços de saúde de alta complexidade compreendem tratamentos especializados com alto custo, envolvendo:
internação; cirurgias; ressonância magnética; tomografia; e tratamentos de câncer” (IBGE, 2020, p. 111).
27. Apesar do AP de São Luís-MA responder por mais de um terço dos deslocamentos para ensino superior de seu
estado, o AP de Teresina exerce atração sobre cinquenta municípios do leste do Maranhão, havendo sobreposição entre
os dois APs no centro deste estado.
114 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

81,2 mil habitantes. Outros nove municípios conformam o AP de Brasília, uma


metrópole nacional, com 3,99 milhões de habitantes, conforme dados de 2020.
Os outros 21 municípios28 que participam da Ride-DF não conformam APs.
São, em sua maioria, centros locais que agrupam, no total, 288,5 mil habitantes.
Outra parte da população está nos dois centros sub-regionais B (Formosa-GO e
Unaí-MG) e no centro de zona B (Niquelândia-GO), que, juntos, abrigam 252,4 mil
habitantes em 2020.
Como dito, o AP de Brasília exerce influência de uma metrópole nacional,
com seus nove municípios e quase 4 milhões de habitantes. Em 2014, o estudo
redigido por Miragaya e Paviani (Codeplan, 2014) propôs o reconhecimento da
AMB, por intermédio dos dados mais recentes sobre mercado de trabalho e mobi-
lidade da população, chegando a uma conformação significativamente menor, em
número de municípios, do que a definida na criação e na ampliação da Ride-DF.
À época, foram utilizados os dados da Pesquisa Operacional de Oferta e
Demanda de Passageiros em linhas Interestaduais, realizada em 2010 pela Agência
Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), os quais demonstraram a polarização
exercida por Brasília, com o maior volume de deslocamento semiurbano do país.
Os maiores e mais significativos deslocamentos tinham como origem os municípios
que hoje compõem a AMB. Essa relação foi reforçada após a análise do percentu-
al de atendimento à população nos hospitais da Secretaria de Saúde do Distrito
Federal (SES-DF) e dos dados demográficos de população, densidade demográfica,
taxa média anual de crescimento da população, taxa de urbanização e distância da
sede municipal (Codeplan, 2014).
O resultado final da composição da AMB foi o mesmo que o definido pela
Regic em 2018 – ou seja, formada por Águas Lindas de Goiás, Cidade Ocidental,
Luziânia, Novo Gama, Padre Bernardo, Planaltina, Santo Antônio do Descoberto,
Valparaíso de Goiás e Brasília –, acrescido dos municípios de Alexânia, Cocalzinho
de Goiás, Cristalina e Formosa.
Apesar dos entraves que impedem a institucionalização formal da AMB, é
essa delimitação territorial que tem orientado as ações da Companhia de Plane-
jamento do Distrito Federal (Codeplan), como é o caso da Pesquisa Metropoli-
tana por Amostra de Domicílios (PMAD), realizada por essa autarquia distrital.
As soluções relativas às FPICs, demandadas pela dinâmica metropolitana do arran-
jo, tem se dado por meio de consórcios, como é o caso do Consórcio Público de
Manejo dos Resíduos Sólidos e das Águas Pluviais da Região Integrada do Distrito

28. Em Minas Gerais: Arinos; Buritis; e Cabeceira Grande. No Goiás: Abadiânia; Água Fria de Goiás; Alto Paraíso de
Goiás; Cabeceiras; Cavalcante; Corumbá de Goiás; Flores de Goiás; Mimoso de Goiás; Pirenópolis; São João d'Aliança;
Vila Boa; Vila Propício; Alexânia; Cocalzinho de Goiás; e Cristalina. Os três últimos municípios formam parte da Área
Metropolitana de Brasília – AMB (Codeplan, 2014).
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 115
na Escala Supramunicipal

Federal e Goiás (Corsap DF/GO) e do Consórcio Público de Mobilidade Urbana


do Transporte Coletivo de Passageiros dos municípios integrantes da Ride.
As periódicas PMADs, realizadas pela Codeplan, apontam para a persistência
da relação de dependência dos municípios da Periferia Metropolitana de Brasília
(PMB) no que concerne ao Distrito Federal, pelas mais diversas motivações (gráfico
2). Tais motivações são encabeçadas pelo deslocamento de pessoas para fins de
trabalho, serviços de saúde, educação e lazer e outros serviços.

GRÁFICO 2
População da AMB que se desloca para o Distrito Federal em busca de serviços
e equipamentos
(Em %)
45
41
40

35

30
24
25

20
17
15
12
10

0
Trabalho Saúde Lazer e serviços Estudo

Fonte: Codeplan (2018) apud Codeplan (2020).

As disparidades de renda e de produto interno bruto (PIB) per capita entre o


Distrito Federal e a PMB apontam, para além da dependência de equipamentos
e serviços, a pobreza existente na PMB e a concentração da renda e da riqueza no
Distrito Federal. Dos doze municípios que compõem a PMB, seis têm metade da
sua população empregada trabalhando no Distrito Federal. Em média, a renda
domiciliar per capita (RDPC) no Distrito Federal é 3,72 vezes superior à da PMB,
chegando a ser 4,3 vezes superior que a RDPC de Cocalzinho de Goiás, que é de
R$ 574,00 (Codeplan, 2018 apud Codeplan, 2020).
A porcentagem de pessoas com nível superior é seis vezes maior no Distrito
Federal, em comparação com a média dos demais municípios da AMB, atingindo
o extremo na comparação entre Águas Lindas de Goiás e o Distrito Federal, onde
a população com nível superior chega a ser 9,7 vezes maior.
116 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Outros dados poderiam ser elencados, de maneira a corroborar a constatação


das desigualdades de toda ordem entre o Distrito Federal e a PMB. Contudo,
bastaria dizer que 23 anos de existência da Ride-DF não foram suficientes para
reduzir suas desigualdades socioespaciais e a intensa dependência da PMB pelos
serviços prestados e pelos empregos gerados em Brasília.
A criação da AMB permitiria o estabelecimento de uma estrutura de governança
metropolitana que funcionasse por intermédio de um arranjo institucional interfe-
derativo e com o suporte de um fundo para o financiamento do desenvolvimento
urbano-metropolitano. Essa estrutura institucional, tal como existe em diversas RMs
do país, seria capaz de promover o planejamento para o desenvolvimento descon-
centrado da AMB, por meio da produção de empregos na PMB, da integração do
transporte semiurbano e dos demais FPICs. Dessa forma, reduzir-se-ia a pressão
sobre os serviços e os equipamentos do Distrito Federal.
A possibilidade de criação de uma Ride, trazida pela CF/1988, permite que a
União atue sobre uma microrregião do país, mas não se debruça sobre os desafios
gerados em uma dinâmica metropolitana macrocefálica, como é o caso da AMB.
Ainda que, no contexto de uma Ride, exista a possibilidade do estabelecimento
de convênios entre os entes federados, estes se demonstraram ineficientes em
acompanhar os tempos e os desafios de uma metrópole nacional e estão longe de
serem capazes de dirimir a abissal desigualdade entre o Distrito Federal e a PMB.
Desta feita, a atuação de uma PNDU na escala supramunicipal tem a res-
ponsabilidade de criar os meios para superar os imbróglios legais e políticos para
viabilizar a fundamental constituição da AMB. Tal propósito já contou com o
esforço do governo federal, na figura do então MCidades, em alterar o EM, por
meio da Medida Provisória (MP) no 862/2018, a fim de possibilitar a conformação
de um RM que abarcasse o Distrito Federal e a PMB. Antes disso, em 2015, o
governo do Distrito Federal (GDF) movimentou o tema mediante a iniciativa de
criação do Instituto de Planejamento da AMB. Por razões que envolvem agendas
e interesses políticos e disputas por recursos, nenhum desses esforços foram sufi-
cientes para a criação de uma RM do Distrito Federal, ao menos por enquanto.

4 SOBRE AS FRAGILIDADES DAS CIDADES E OS INSTRUMENTOS


DE DESENVOLVIMENTO URBANO DISPONÍVEIS
O pareamento dos tipos supramunicipais formais com a hierarquia de cidades não é
suficiente para o endereçamento acertado e justo das ações políticas, tendo-se em
vista que o estudo da Regic é relacional. Em outras palavras, cidades pertencentes
à mesma hierarquia desempenham o mesmo papel no sistema urbano nacional, no
que se refere à atração e à centralidade que exercem em suas regiões de influência,
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 117
na Escala Supramunicipal

o que não significa que essas cidades, de mesma hierarquia, tenham o mesmo perfil
em termos populacionais, socioeconômicos, de oferta de serviços públicos etc.
Cidades muito diferentes, e em contextos regionais diferentes, podem exercer
a mesma influência na rede de municípios cidades. Então, para além do alinhamen-
to dos arranjos institucionais à hierarquia de cidades, realizado na seção anterior,
os estudos realizados por Funari, Lui e Ferreira Junior (2021) e Marguti et al.
(2021b) buscaram traçar um painel de fragilidades para as cidades brasileiras, a
partir de indicadores29 que buscam desvelar vulnerabilidades dos APs, com ênfase
em quatro conjuntos de aspectos: institucionais; de planejamento e instrumentos
de desenvolvimento territorial; de fortalecimento econômico-financeiro; e de
políticas setoriais urbanas.
Um balanço desse exercício demonstrou situações mais graves nos temas ins-
trumentos de desenvolvimento territorial e planos setoriais para todas as hierarquias de
cidades, ainda que em proporções diferentes. As variáveis desses dois temas dizem
respeito justamente aos instrumentos legais e técnicos necessários para que seja
realizado o planejamento integrado das ações no território. Nos vemos diante de
um problema institucional estrutural, que envolve a ausência ou desatualização
de planos diretores, da regulamentação de instrumentos territoriais, de planos de
gestão de riscos e dos instrumentos que tratam da questão ambiental.
De forma sintomática, a alta pontuação de critérios de fragilidades para o
tema dos “planos setoriais” expressa um encadeamento de vulnerabilidades ins-
titucionais. Esse encadeamento se inicia na ausência dos instrumentos de plane-
jamento e conselhos municipais para as políticas setoriais (transporte, habitação,
saneamento e resíduos sólidos), além de expressar as condições de inadequação
dos domicílios e de seu entorno.
As fragilidades ligadas aos aspectos institucionais expressam a inexistência de
diagnóstico socioeconômico nos municípios, ou sua desatualização, bem como a
ausência de base cartográfica digitalizada, sistema de informações geográficas (SIG)
e arquitetos e geógrafos nas secretarias de planejamento. Também expressam a ine-
xistência ou a desatualização de cadastro imobiliário, da planta genérica de valores
e de Cadastro de Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), além da
não participação dos municípios do AP em consórcios públicos intermunicipais
e da debilidade dos mecanismos de participação social.

29. Assim como na construção de índices sintéticos, o exercício de busca por fragilidades simplifica variáveis e indica-
dores (combinação de variáveis), por vezes complexos, no intento de comunicar com maior facilidade os melhores e
piores cenários. Contudo, para sua utilização em políticas públicas, um esforço como esse raramente será útil per se. Os
resultados-síntese desempenham então o papel de farol, a iluminar pontos de atenção que precisarão ser destrinchados,
para que se chegue aos problemas concretos que devem ser objeto do planejamento e da ação pública. O exercício
inverso, de mergulho nas variáveis propostas, é necessário para o mapeamento das reais fragilidades e vulnerabilidades
de cidades e municípios, com o objetivo de que seja possível, primeiro, o estabelecimento de tipologias – para além da
hierarquização – e, em seguida, o desenho de estratégias mais aderentes às diferentes tipologias.
118 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Ao observar os resultados para cada hierarquia de cidades, são os centros


sub-regionais que possuem o menor somatório de fragilidades relativas aos aspectos
institucionais, ao passo que as metrópoles concentram médias mais elevadas. Com
efeito, metrópoles e capitais regionais sustentaram fragilidades superiores às demais
hierarquias. Esse padrão se repete nos temas dos instrumentos de desenvolvimento
territorial e dos planos setoriais.
Em suma, mensurar as fragilidades dos APs demonstrou que, de certa maneira,
as fragilidades relativas aos instrumentos de desenvolvimento territorial e aos planos
setoriais acabam sendo decorrentes daquelas concernentes aos aspectos institucionais.
Uma vez elencadas e mensuradas as fragilidades e as vulnerabilidades dos
APs, é tentadora a ideia de abrir a “caixa de ferramentas” dos instrumentos urba-
nísticos, acumuladas nas últimas três décadas, e correlacionar problemas/escalas/
tipos à miríade de instrumentos possíveis de ser aplicados nas mais diversas
configurações urbanas.
Os instrumentos existem e são abundantes no EC e no EM e nas leis que
versam sobre as políticas setoriais. O EC segue sendo a principal peça que regula-
menta os instrumentos descritos adiante.
1) Instrumentos de indução do desenvolvimento urbano (parcelamento, edi-
ficação ou utilização compulsórios; Imposto Predial e Territorial Urbano –
IPTU progressivo no tempo; outorga onerosa do direito de construir;
operações urbanas consorciadas; direito de preempção, entre outros).
2) Instrumentos de regularização fundiária (as zonas especiais de interesse
social – Zeis, o usucapião especial de imóvel urbano e a concessão de uso
especial para fins de moradia e de direito real de uso – CDRU).
3) Instrumentos de democratização da gestão urbana, que atendem aos prin-
cípios constitucionais da democracia representativa e participativa, dois
quais se destacam os órgãos colegiados de política urbana; as audiências e
as consultas públicas; as conferências sobre assuntos de interesse urbano;
os então conselhos das cidades (sistemas de gestão democrática da política
urbana e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano – CNDU);
e a gestão orçamentária participativa.
Desde 2015, somam-se ao conjunto dos instrumentos do EC os instrumentos
trazidos pelo EM, os quais são citados a seguir.
• Plano de desenvolvimento urbano integrado.
• Planos setoriais interfederativos.
• Fundos públicos.
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 119
na Escala Supramunicipal

• Operações urbanas consorciadas interfederativas.


• Zonas para aplicação compartilhada dos instrumentos urbanísticos
previstos no EC.
• Consórcios públicos.
• Convênios de cooperação.
• Contratos de gestão.
• Compensação por serviços ambientais ou outros serviços prestados pelo
município à unidade territorial urbana.
• Parcerias público-privadas interfederativas.
Há, ainda, no caso das Rides, os planos de desenvolvimento. Nas Rides do
Nordeste, deverão ser elaborados ainda o Programa Especial de Desenvolvimento
e seus planos, os quais devem estar alinhados ao disposto no Plano Regional de
Desenvolvimento do Nordeste – PRDNE (Brasil, 2011; 2019a; 2019b; 2020).
Por que, então, diante de um repertório tão amplo de instrumentos, seguimos
aos tropeços no enfrentamento dos principais desafios de nossas cidades?
Do ponto de vista dos municípios – ou seja, dos planos diretores –, o que
as análises (Ferreira, 2003; Bassul, 2005; Santos Junior e Montandon, 2011;
Levy, 2019; Marguti, 2018; Fernandes, 2021) sobre a eficácia dos instrumentos
urbanísticos apontam não é a incapacidade do instrumento em si em realizar sua
função, mas sim de toda a estrutura prévia necessária para operacionalizá-lo. In-
capacidades e insuficiências de gestão, de integração de políticas, de recursos para
o financiamento do desenvolvimento urbano, entre outros exemplos, são etapas
anteriores à efetivação de qualquer instrumento.
Avaliações mais recentes (Fernandes, 2021) e que tomam um período mais
largo de observação dão conta de que não houve mudança da cultura urbanística
no país. A visão socioambiental e o reconhecimento de uma série de direitos so-
ciais e coletivos contidos no EC não foram materializados, sobretudo porque não
ocorreu, nesse período, o enfrentamento da estrutura fundiária e da propriedade
imobiliária (grande estoque de imóveis e terrenos vazios).
Fato é que a nova ordem jurídico-urbanística contida no EC sofreu, e sofre,
resistências justamente porque sua efetivação implica tocar em valores neoliberais
que, desde antes da lei, são hegemônicos e crescentes. E mais, ao longo de seus
22 anos, passada a euforia inicial de criação da lei, o EC foi sendo crescentemente
disputado, com seus instrumentos sendo seletivamente apropriados pelo mercado
imobiliário e fundiário (Fernandes, 2021).
120 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Especificamente para os arranjos supramunicipais, sobretudo RMs, AUs


e Rides, há uma construção bastante desafiadora a ser feita antes que qualquer
instrumento possa funcionar em benefício de todos os entes envolvidos: a coope-
ração interfederativa. No processo de elaboração dos PDUIs, por exemplo, o que
se observa é a proeminência dos estados em conduzir as etapas de contratação e
criação dos planos. Seja por desarticulação, incapacidade, desinteresse ou questões
políticas, o envolvimento dos municípios não se dá de maneira determinante, na
maioria dos casos.
De forma geral, os instrumentos de indução do desenvolvimento urbano podem
ser aplicados no território metropolitano, por meio da criação de áreas de interesse
metropolitano, como já pautado em alguns PDUIs. Contudo, essa alternativa en-
volve a superação de disputas quanto às atribuições constitucionais de cada ente,
aos interesses de uso e densidade de uso de seus territórios, além de desencontros
políticos quando não há um ambiente cooperativo consertado.
Os instrumentos de democratização da gestão urbana são ainda mais neces-
sários na escala supramunicipal – tendo-se em vista a ampliação dos interesses
e da diversidade de agentes-atores na disputa pelo uso e pela governança do
território –, de forma a garantir a gestão participativa metropolitana e a ampla
participação da sociedade na elaboração do plano metropolitano.
Após a aprovação do PDUI, a segunda etapa necessária para a coerência e
a viabilidade do planejamento metropolitano é a adequação dos planos diretores
municipais. As experiências demonstram que, para essa tarefa, assim como para
aplicação dos instrumentos previstos nos estatutos, é necessário estabelecer, na te-
oria e na prática, algo como uma “cultura da cooperação”, em que seja subvertida
a lógica da competição e das vantagens privadas, em benefício da cooperação e da
distribuição do ônus de todo o processo de urbanização.

5 POR UMA AGENDA URBANO-METROPOLITANA


Elaborar uma agenda urbana para a escala supramunicipal não é uma tarefa trivial,
a começar pelas definições sobre qual será essa agenda e sobre qual é a delimitação
do que se entende por escala supramunicipal. Aqui, a escolha foi tomar os arranjos
que já existem e para os quais há legislações e normas vigentes para, a partir destes,
encontrar coerência nos critérios de definição de suas categorias.
Chegamos a um universo supramunicipal vasto e diverso, marcado pela au-
sência de critérios, ou, ainda, de mudanças recorrentes de critérios; isso ocasiona
uma grande confusão sobre quais nomes designam o quê. Na escala nacional,
olhar para RMs e AUs significa mirar um universo completamente heterogêneo
de regionalizações e dinâmicas. Esse fato reitera a necessidade da adoção de uma
hierarquia que faça sentido para um olhar em escala nacional.
(Re)Arranjos e Instrumentos para o Desenvolvimento Urbano | 121
na Escala Supramunicipal

Para realizar essa distinção, este capítulo lançou mão dos estudos técnicos do
IBGE (2016; 2020), aproximando-se daquilo que seria uma hierarquia dos arranjos
institucionais – e daqueles que ainda podem ser, tendo-se em conta suas características.
Uma vez (re)organizados os arranjos institucionais, perante os parâmetros dos APs e
da hierarquia de cidades, chegou-se à primeira camada de categorização.
Não é possível ignorar as modificações realizadas no EM. Entende-se ne-
cessária a reconstituição do EM, de maneira que fiquem claros os critérios que
diferenciam as RMs, criadas pelos estados, e as metrópoles “de fato”, e quais destas
serão alvo de políticas públicas federais direcionadas à equalização das proble-
máticas urbano-metropolitanas no compartilhamento dos serviços comuns. Essa
distinção possibilitará o endereçamento correto dos dispositivos de uma PNDU
e dos critérios para o apoio da União. Este último deve ainda ser especificado: o
que é? E qual espécie de apoio será dada a cada “tipo” supramunicipal?
A seção 3 avançou, então, na apresentação dos resultados dos estudos sobre
fragilidades dos APs, sobre os aspectos institucionais, de instrumentos de desen-
volvimento territorial e planos setoriais, lançando luz às debilidades existentes nas
cidades, em maior medida nas metrópoles e capitais regionais.
Os 22 anos de existência do EC e os oito anos do EM significam um grande
acúmulo de instrumentos urbanísticos, ainda que os balanços se ressintam de sua
baixa aplicação, do fato de não terem revolucionado a forma de se “fazer” cidades e
da apropriação seletiva de dispositivos da lei pelos interesses imobiliários e financei-
ros. Isso posto, a tarefa de uma política nacional deverá, antes de mais nada, definir
qual projeto de cidade se deseja – qual desenvolvimento urbano e para quem? Sem
avançarmos nessa definição, a simples listagem e correspondência de instrumentos
a serem implementados nas diferentes tipologias de cidades não será suficiente e,
possivelmente, significará incorrer nos mesmos percalços e tropeços do passado.
Afinal, os instrumentos não caminham sozinhos. Retomar a disputa pelos
valores contidos no EC segue sendo necessário, e cada vez mais. Além disso, é
preciso que a União integre sua responsabilidade em equalizar as incapacidades de
gestão e governança que predominam nos municípios brasileiros e, tão importante
quanto, fomentar a cooperação entre os entes.
Em um cenário de municípios, pertencentes à APs ou não, sem repertório
para a gestão e a governança e sem recursos próprios, um caminho seria garantir
o nivelamento de suas competências, seja envolvendo diretamente os governos
estaduais no suporte aos municípios, seja dotando os municípios de recursos e
aptidões para aplicarem os instrumentos conforme necessitem. As atribuições
constitucionais dadas aos municípios na divisão interfederativa é desproporcional
se não há meios para que desempenhem suas competências.
122 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Para tanto, é necessária a superação da visão excessivamente tecnocrática das


políticas erigidas de cima para baixo, em benefício da conexão com o território
e de suas reais necessidades. O acompanhamento da implementação dos planos
das RMs tem demonstrado, além da dificuldade em se estabelecer a cooperação
interfederativa, uma desconexão entre os instrumentos e o complexo contexto
territorial e relacional em que se inserem, além da pouca clareza sobre quais são as
estratégias e objetivos de um desenvolvimento urbano-metropolitano – que podem
ser muitos. E é nesse sentido que se ressente da ausência de uma política federal,
que poderia trazer apoio e direcionamento às ações desenvolvidas pelos vários
atores e agentes, das várias escalas e esferas de governo, neste campo tão instável
e ainda não consolidado das práticas do planejamento, da gestão e da governança
urbana, sobretudo nas metrópoles do país.

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br/. Acesso em: 14 set. 2020.
CAPÍTULO 5

GOVERNANÇA SUPRALOCAL: ALGUMAS REFLEXÕES


E CONSIDERAÇÕES SOBRE O BRASIL
Maria do Livramento Clementino1

1 INTRODUÇÃO
A emergência teórica da questão urbana e a relevância da política urbana no mundo
contemporâneo podem ser tomadas como consenso. Expressam a inevitabilidade
da posição central do fato urbano, quando as redes de informação e articulação da
economia capitalista ganham dimensão global e têm nas cidades seu principal espaço
de comando. Ao mesmo tempo, expressam várias escalas:2 do local, da cidade e
das referências socioespaciais, sempre ampliadas e sempre localizadas, fortalecidas
e presentes na vida cotidiana.
As áreas urbanas estão mudando rapidamente sua forma e sua função. O in-
teresse pelo urbano, sempre progressivo, vem revelando um crescimento explosivo,
quer em número, quer em dimensão. Em 2016, 1,7 bilhão de pessoas, ou 23% da
população mundial, morava em cidades com pelo menos 1 milhão de habitantes.
Até 2030, uma população projetada de 27% das pessoas em todo o mundo estará
concentrada nesse porte de cidades (UN, 2017). E mais preocupante que a con-
centração da população mundial em grandes cidades será sua concentração em
grandes cidades de determinados países, como por exemplo o Brasil. Até 2030,
uma população projetada de 730 milhões viverá em cidades com pelo menos 10
milhões de habitantes, representando 8,7% das pessoas do mundo (UN, 2017).
De acordo com a recente divulgação dos dados populacionais do Censo Demográfico
de 2022, o município de São Paulo confirmou a projeção de população de 12,2
milhões de habitantes, sendo uma das grandes capitais a não perder população no
Brasil (IBGE, 2022).
Esses acontecimentos e projeções revelam a constante busca de oportunida-
des para uma melhor qualidade de vida nas cidades e ensejam, mais que nunca, a
necessidade de mecanismos efetivos de governança urbana. Os municípios lidam

1. Professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) lotada no Instituto de Políticas Públicas;
docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais; e coordenadora do Núcleo Natal do Obser-
vatório das Metrópoles (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico – INCT/CNPq). E-mail: <[email protected]>.
2. Ver Vainer (2002).
130 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

com novas responsabilidades endossadas por níveis de governos mais elevados,


assim como enfrentam desafios de planejamento mais complexos, oriundos de
questões de governo e jurisdição. As mudanças econômicas e demográficas vêm
sendo agravadas por novas problemáticas de caráter ambiental e social. As mudan-
ças climáticas, a degradação ambiental, o esgotamento de recursos (concernente
à saúde pública e à segurança energética) conferem um novo grau de urgência
no que diz respeito a sistemas de planejamento e governança, em direção a uma
economia próspera e saudável.
As pesquisas sugerem que, para chegar a uma melhor governança e a um
desenvolvimento urbano sustentável, é preciso entender que o crescimento eco-
nômico não basta por si só. É preciso que sejam assegurados a: i) conservação do
meio ambiente; ii) geração de renda e melhoria das condições de vida das pessoas;
iii) preocupação com o desenvolvimento da cultura local; e iv) capacitação e par-
ticipação ativa e permanente da comunidade nos processos decisórios. Para tanto,
precisamos contar com maior controle dos processos de urbanização, com sistemas
de justiça que propiciem a participação mais ampla da sociedade nas condições de
vida e urbanidades, uma distribuição mais justa dos benefícios e custos do desen-
volvimento urbano, com sistemas de planejamento integrais e holísticos; tudo isso
como ponto de chegada da ideia de qualidade de vida urbana (Câmara et al., 2015).
Como ocorre em todo o mundo, o Brasil enfrenta uma expansão desmedida
em suas áreas urbanas. Temos dois processos aparentemente contraditórios: a mul-
tiplicação de cidades de todos os tamanhos e a concentração da população total e
urbana em metrópoles ou “cidades milionárias” (Santos, 2008). Em 2010, o Brasil
tinha uma população de 195,7 milhões de pessoas, sendo sua taxa de urbanização
84,5%.3 Estima-se que o Censo de 2022 ratifique essa tendência.
Estudo recente, que inclui as principais regiões metropolitanas do país (to-
talizando 22 áreas), mostra que elas respondem por quase 40% da população
brasileira, ou mais de 80 milhões de pessoas (Ribeiro e Salata, 2021). O chamado
Brasil Metropolitano foi responsável, em 2009, por 52,2% da participação no
produto interno bruto (PIB) nacional (Ribeiro e Correia, 2012). As contri-
buições da literatura4 e das estatísticas oficiais (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE) sobre o desenvolvimento das regiões metropolitanas brasileiras
indicam a existência de transformações na organização social desses territórios.
As regiões metropolitanas receberam amplos contingentes de migrantes (nacionais

3. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html. Acesso em: 6 jun. 2023.


4. “Trata-se de um debate não apenas alimentado por fatos que vêm ocorrendo no país, nestes últimos 20 anos (cres-
cimento econômico, distribuição da renda, novas posições na estrutura social, inclusão social via consumo, emergência
de um discurso desenvolvimentista por atores do Estado etc.), mas também pela leitura das mudanças estruturais na
dinâmica global da expansão do capitalismo, e pelos claros efeitos da diminuição da hegemonia do projeto neoliberal”
(Ribeiro, 2013, p. 5).
Governança Supralocal: algumas reflexões e considerações sobre o Brasil | 131

e intraestaduais); a população mudou seu perfil rural para urbano; suas atividades
sociais e econômicas cresceram e se tornaram cada vez mais dinâmicas e complexas
(notadamente nas metrópoles e nas cidades maiores); a população urbana experi-
mentou transformações significativas em sua qualidade de vida e em seus valores,
atitudes, motivações, aptidões e aspirações.
No entanto, todo esse relevante processo sociocultural e socioespacial
(e urbanístico) mostrou aspectos colidentes: a ocupação territorial operou contra a
natureza, a produção foi depredadora e contaminante, a qualidade de vida tornou-
-se precária para muitos, a segregação residencial intensificou-se no interior das
cidades e a vida na cidade começou a entravar-se, na medida em que se agravaram
os problemas urbanos de transporte, segurança, moradia e tantos outros. A tudo
isso, agregam-se os efeitos adversos da globalização, o recrudescimento e “agudi-
zação” das falências político-eleitorais e político-administrativas que vêm afetando
o país historicamente.
No Brasil, a maioria das cidades, qualquer que seja o seu porte ou dimen-
são, conta com estruturas políticas e administrativas fragmentadas para manejar
os interesses compartilhados de suas jurisdições municipais. Cabe destacar aqui
a insuficiente capacidade de gestão, o pouco espírito público dos governantes, a
ausência de vontade política direcionada para a solução dos problemas urbanos, o
escasso compromisso com a cidade e seu futuro e, em muitas situações, o descaso
e até a corrupção. Revela-se, assim, a “falta de um planejamento com perspectiva
de futuro, ou seja, um planejamento prospectivo com visão de cidade, de conheci-
mento ecológico, de dinamismo econômico, e que inclua a solidariedade social e o
compromisso político de sua classe dirigente” (Clementino e Ferreira, 2015, p. 21).
Tudo isso tem chamado atenção para a necessidade de contar com sistemas efetivos
de governança que facilitem a coordenação em todos os níveis de governo e brindem
mecanismos eficientes para a tomada de decisões em matéria de desenvolvimento
territorial e econômico das regiões. Embora muitas soluções para essas questões
sejam formalmente de base local, o município, por si só, não consegue mobilizar
recursos institucionais para encaminhá-las. As relações de governança que ensejam
a solução de problemas de interesse comum são uma realidade a ser buscada. Aqui
reside nosso interesse.
Neste artigo, apresentamos algumas reflexões e considerações para a situação
em que a governança urbana requer a colaboração supralocal (ou supramunicipal)
para a solução de problemas de interesse comum. Ele está estruturado em seis seções,
além desta introdução: modelos de arranjos de governança; quadro normativo para
os arranjos de governança; potencialidades e lacunas normativas para o enfrenta-
mento dos efeitos negativos da descentralização; o pacto territorial enquanto pacto
político; a experiência de Sahuayo e Jiquilpan no México; e considerações finais.
132 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

2 MODELOS DE ARRANJOS DE GOVERNANÇA


Um problema recorrente na compreensão da “governança supralocal” é a escolha
do “modelo” (ou arranjo de governança), dos instrumentos mais convenientes e as
aplicações adequadas para empreender uma correlação mais direta entre diagnóstico
ou problemas de interesse comum, assim como o atingimento de uma determi-
nada meta ou objetivo a serem alcançados coletivamente. Para cada mecanismo
ou instrumento, é preciso identificar diversas escalas de atuação. Assim, classificar
arranjos de governança de acordo com as suas características mais distintivas pode
ajudar a compreender sua diversidade.
Lefèvre (2008) separa os modelos em institucionais e não institucionais,
classificando-os do maior para o menor nível de institucionalização, legitimidade
política e alcance setorial. Câmara et al. (2015), em estudo comparativo sobre a
governança metropolitana no México, Brasil e Canadá, propõem uma adaptação
aproximada de Lefèvre (2008) e classificam a governança na escala metropolitana
em três amplas categorias institucionalizadas, conforme a seguir.
1) Governança de um só nível, advindo da fusão ou integração de municí-
pios limítrofes em um só órgão de governo; presta diversos serviços e se
financia mediante direito e impostos que os usuários pagam (notadamente
dentro da área metropolitana).
2) Governança em dois níveis – supramunicipal – produto da introdução
de um novo nível de governo independente das unidades locais existentes
(municípios). Teria como características: legitimidade política através
de eleição direta dos responsáveis pela tomada de decisão; concordância
entre o território institucional e o funcional; autonomia fiscal; respon-
sabilidades e competências claras; pessoal qualificado para implementar
políticas – lembrando que essas características nem sempre aparecem em
forma pura e, no geral, se apresentam parcialmente.
3) Um conjunto de autoridades intermunicipais (CAM) criam novas ins-
titucionalidades que dependem das unidades de governo já existentes
(como recomenda o Estatuto da Metrópole5 brasileiro) em questões de
financiamento e funcionamento de áreas metropolitanas. Se baseiam na
cooperação de unidades que podem ser voluntárias ou compulsórias.

5. O Estatuto da Metrópole, Lei no 13.089/2015, quebrou o silêncio de quase três décadas após a Constituição Federal
de 1988 (CF/1988) e recoloca na agenda a questão metropolitana. Com a promulgação do Estatuto da Metrópole,
os gestores públicos estaduais e municipais passaram a ter a responsabilidade de implementá-lo em todas as regiões
metropolitanas (RMs) no país. Aos entes estaduais foi atribuída a responsabilidade de elaborar e aprovar o Plano de
Desenvolvimento Urbano Integrado (PDUI); aos municípios, por sua vez, foi imputada a compatibilização dos Planos
Diretores ao PDUI. Ambas as medidas possuíam prazo de implementação até 12 de janeiro de 2018. Em 2018 reformu-
lou-se com retrocessos no que se refere à obrigatoriedade de sua implementação e em sua forma de implementação,
uma vez que reduziu a participação da sociedade civil organizada no processo.
Governança Supralocal: algumas reflexões e considerações sobre o Brasil | 133

De acordo com Câmara et al. (2015), existem pelo menos quatro subtipos
do nível de cooperação institucional quando referidos a gestão metropolitana:
CAM metropolitano (administrado por conselhos), CAM inframetropolitano
(plurissetorial); CAM monossetorial com alcance multissetorial, e os distritos
especiais. Ainda seguindo a adaptação do modelo de Lefèvre (2008), os modelos
não institucionais estão planejados como alternativas para se estabelecerem novas
instituições, focando uma coordenação mais eficiente de políticas ou serviços em
diversos setores e em nível da área correspondente. Sua organização inclui a co-
ordenação das estruturas existentes, bem como dos acordos e convênios formais
(Câmara et al., 2015).
A OECD (2015) parte de um esquema mais rigoroso em termos institucio-
nais, embora classifique os modelos de forma similar a Lefèvre (2008): coorde-
nação informal leve (usualmente encontrada em centros urbanos policêntricos);
autoridades intermunicipais (que dividem custos e responsabilidades); autoridades
supramunicipais (nível de governo adicional ou por sobre os municípios); e trata-
mento especial de cidades metropolitanas.
Estudo recente realizado pelo Ipea (Marguti et al., 2021), visando ao esta-
belecimento de uma hierarquia dos arranjos institucionais para políticas públicas,
sistematiza, como tipos de arranjos urbanos, as categorias formalmente institucio-
nalizadas pelos governos (em todas as escalas, a partir de dois ou mais municípios),
cotejados à luz do fenômeno dos arranjos populacionais definido pelo estudo
Arranjos populacionais e concentrações urbanas do Brasil (IBGE, 2016), e utilizado
como subsídio para o mais recente estudo da Região de influência de cidades –
Regic 2018 (IBGE, 2020). Faz uma primeira e fundamental distinção em “tipos
supramunicipais de fato” e “tipos supramunicipais formais” (Marguti et al., 2021).
Como tipo supramunicipal de fato, toma como parâmetro os arranjos (infor-
mais) enquanto “fenômeno urbano” (Marguti et al., 2021) de interações entre áreas
urbanas, delimitando tecnicamente o fenômeno das relações entre centros urbanos,
e sua hierarquização como metrópole, capital regional, capital sub-regional, centro
de zona e centro local (conforme Regic 2018). Como tipos supramunicipais formais,
assume como parâmetro as regiões e conjuntos de municípios consorciados ou
associados que foram/são instituídos formalmente, através de instrumentos legais
federais, estaduais, municipais ou interfederativos.

3 QUADRO NORMATIVO PARA OS ARRANJOS DE GOVERNANÇA


No Brasil, os sustentáculos legais hoje existentes para os arranjos supracitados
(CF/1988), Estatuto da Cidade (2001) e Estatuto da Metrópole (2015, reformu-
lado em 2018), não consideram as características únicas dos municípios, e seus
variados arranjos estão desenhados da mesma maneira para distintas realidades
(Marguti et al., 2021).
134 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

As competências federativas estão inscritas na CF/1988. Incluem aquelas


comuns ou compartilhadas – arts. 23, 24 e 43 –, que devem ser implementadas de
modo descentralizado. Nesse sentido, estados e municípios inicialmente ganham
com a descentralização, notadamente sob o ponto de vista fiscal e financeiro. No
entanto, ela aumenta as suas responsabilidades na provisão de serviços públicos,
gerando gradativamente dissintonia entre recursos e encargos.
O arranjo federativo implantado com a Constituição democrática de 1988,
ao garantir aos municípios a condição de ente federativo (uma peculiaridade da
federação brasileira), provocou o desmonte de grande parte dos arranjos institucio-
nais de base centralizada. Essa mudança transformou os municípios em unidades
políticas estratégicas para a formulação e implementação de políticas públicas,
definindo um novo patamar para os mesmos, tanto do ponto de vista financeiro
como político-administrativo. Do ponto de vista financeiro, a nova fórmula de
distribuição dos recursos tributários do país aumentou a parcela destinada aos
municípios em quase 100%, pelo menos num primeiro momento. Admite-se, em
geral, que os municípios teriam sido os maiores beneficiários da divisão do bolo
fiscal promovida pela revisão constitucional de 1988. A União teria perdido cerca
de um quarto de suas receitas tributárias disponíveis, enquanto os municípios as
teriam ampliado em 30%. Essa generalização termina por levar o cidadão comum à
falsa ideia de que a situação da receita dos municípios brasileiros é a melhor possível
(Clementino, 1998). O que se tem observado nas últimas décadas são contínuos
movimentos de recentralização fiscal.
Formalmente, a descentralização fiscal trouxe junto a adoção de instrumentos
horizontais de fiscalização e controle social, calcados na ideia de participação nas
decisões públicas. Os controles verticais constam da própria estrutura do Estado
e estão ancorados na autonomia dos três poderes da República. Os controles ho-
rizontais são garantidos pelo que a literatura internacional define como political
accountability. Tem âncora na própria sociedade e respalda-se na ideia de participação
e transparência das ações do Estado. No Brasil, os mecanismos horizontais de fisca-
lização e controle social do gasto público surgiram junto com a própria motivação
dos processos de descentralização fiscal e vêm sendo lentamente implementados.
É preciso pensar, no entanto, que a descentralização fiscal não é apenas uma questão
que remete positivamente à participação e à transparência do controle social. Questões
de financiamento, de custo, tecnologia, escala e qualidade dos serviços públicos também
devem ser ponderadas. No Brasil, a motivação básica da descentralização fiscal foi de
natureza política. O processo não foi determinado por interesses precípuos de ordem
técnica ou econômica; não partiu de qualquer planejamento (Clementino, 2008),
muito menos persegue uma estratégia deliberada, com políticas bem definidas, bus-
cando maior eficiência e eficácia nas ações governamentais.
Governança Supralocal: algumas reflexões e considerações sobre o Brasil | 135

Do ponto de vista político-administrativo, muitas outras inovações foram


apresentadas pela Carta de 1988, levando a mudanças gradativas no plano institu-
cional ao nível local: um certo incentivo ao planejamento através da prerrogativa da
elaboração da Lei Orgânica, da obrigatoriedade do Plano Diretor para municípios
com população superior a 20 mil habitantes e do Plano Plurianual de Investimentos,
além da descentralização de alguns serviços públicos tais como saúde, assistência e
educação, que transformou o município em locus principal das ações de governo.
O problema mais visível de toda essa mudança é que, ao mesmo tempo
que se transfere ao município a responsabilidade das ações governamentais, lhe
faltam mecanismos para tornar isso possível, principalmente pela ausência de
qualquer articulação entre os diferentes níveis de governo. De um lado, porque
a burocracia federal resiste à perda de seu poder de distribuição de recursos, de
outro, porque o poder municipal se recusa a assumir novas responsabilidades,
pela insegurança em termos de recursos que possam garantir a realização de ações
efetivas (Clementino, 2000).
A descentralização, que certamente selou um novo pacto político entre as
elites locais e o governo central, trouxe sérias dificuldades para os governos esta-
duais. A disputa por recursos por parte dos governos locais, a fragmentação das
ações, a ausência de mecanismos de enfrentamento de problemas comuns, dentre
outros fatores, produziram um quadro de ausência de políticas públicas eficazes
na resolução de problemas próprios de realidades metropolitanas ou das grandes
cidades que são plurimunicipais.
Apesar de a Constituição ter modificado o padrão de distribuição dos recursos
fiscais entre os três níveis de governo, aumentando a participação dos estados e,
principalmente, dos municípios, ainda vigora um quadro marcado pela centrali-
zação, o que faz dos municípios eternos dependentes da transferência de recursos
do governo federal. As transferências automáticas (aquelas garantidas pela Consti-
tuição), obedecem a um calendário rigoroso de repasses. As transferências oriundas
de convênios (que são numerosas) nem sempre garantem a continuidade das ações.
Isso leva muitas vezes à interrupção da prestação de serviços básicos à população,
principalmente nas áreas da saúde, segurança e educação, pela falta de repasse dos
recursos para pagamento. Este problema afeta diretamente os governos locais, que
passam a enfrentar o desgaste político que ações dessa natureza tendem a provocar.
Diante desse quadro, os municípios tendem a pensar os seus problemas de
forma isolada, evitando ações cooperativas que, de imediato, não podem garantir a
solução dos problemas comuns, aumentando a pressão social local. Instala-se assim
um típico problema de ação coletiva – e sem ação coletiva (cooperativa) não há
solução para as regiões ou cidades que ultrapassam os limites territoriais municipais.
136 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Na perspectiva de estabelecer o processo de cooperação entre os poderes


municipais e estaduais, o Estado brasileiro promulgou alguns instrumentos com
o intuito de implementar ações setoriais. A respeito disso, pode ser citado como
exemplo a Lei no 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) que regulamentou os arts. 182
e 183 da CF/1988. Em seu art. 34-A, o Estatuto da Cidade estabelece que nas RMs
ou aglomerados urbanos (AUs), instituídas por lei complementar estadual (LCE),
operações urbanas consorciadas interfederativas poderão ser realizadas e executadas,
mediante a aprovação de leis estaduais específicas. Outro marco normativo que
merece ser enfatizado é a Lei no 11.107, de 6 de abril de 2005 (Lei dos Consór-
cios), que dispõe acerca das normas gerais de contratação de consórcios públicos.6
A partir dessa lei, os municípios poderão reunir-se em consórcios públicos em
torno de políticas setoriais específicas e solucionar problemas de interesse comum.
No entanto, não há no Estatuto da Cidade algo mais que diferencie os 5.570
municípios brasileiros. O porte dos municípios, a região administrativa em que se
encontram, as relações que estabelecem com outros municípios, sua relevância na
hierarquia dos centros urbanos e sua posição na rede de cidades não foram critérios
tomados em conta para a definição dos instrumentos de indução do desenvolvi-
mento urbano, de regularização fundiária e de democratização da gestão urbana
(Marguti et al., 2021).
Com vistas a reduzir esta problemática, foi sancionado, em 2015, o Estatuto
da Metrópole, o qual pode ser vislumbrado como marco regulatório para estabelecer
diretrizes gerais na regulação das funções públicas de interesse comum7 (FPICs) nas
RMs e AUs. Dessa forma, todas as RMs deveriam ter se adequado às diretrizes da
Lei no 13.089/2015 até o ano de 2018. De acordo com essa norma, os processos de
cooperação e coordenação metropolitana se caracterizam como fundamentais para
implementação de políticas que visem à execução de funções públicas de interesse
comum nas RMs. Essa execução só poderá ocorrer mediante o bom relacionamento
entre os governos municipais, uma vez que as ações desenvolvidas em conjunto serão
capazes de viabilizar o exercício pleno das FPICs.

6. A regulamentação da Lei no 11.107, de 6 de abril de 2005, que dispõe sobre normas gerais de contratação de
consórcios públicos, foi determinada pelo Decreto no 6.017, de 17 de janeiro de 2007.
7. Conforme apontado no Estatuto da Metrópole, as FPICs podem ser compreendidas como toda política pública e
ações cuja realização por parte de um município, isoladamente, seja inviável ou cause impacto em municípios limítrofes.
Governança Supralocal: algumas reflexões e considerações sobre o Brasil | 137

4 POTENCIALIDADES E LACUNAS NORMATIVAS PARA O ENFRENTAMENTO


DOS EFEITOS NEGATIVOS DA DESCENTRALIZAÇÃO
Garson (2009), ao levantar a questão do relacionamento entre os governos locais, coloca
que a maneira como eles se relacionam entre si e com os demais entes federativos de-
monstra ser primordial para o estabelecimento das funções de cooperação e coordenação.
A autora esclarece ainda que “a cooperação entre os governos locais pode ser a chave
para reduzir desigualdades e melhorar a eficiência econômica” (Garson, 2009, p. 74).
Contudo, observa que os mecanismos para a estimular são escassos e estão no centro
dos grandes debates das administrações. Dessa forma, faz-se necessário detectar quais
são as possíveis situações para desenvolver “a cooperação em políticas locais com algum
nível de coordenação entre os governos” (Garson, 2009, p. 74).
A superação dos obstáculos demanda, portanto, uma distribuição entre os
níveis de governos locais com o intuito de “elaborar estratégias de ação, estabe-
lecer metas e buscar alternativas para os inúmeros problemas que acontecem nas
metrópoles” (Almeida et al., 2015, p. 305).
Uma lacuna observada no Estatuto da Metrópole diz respeito à participação
da sociedade civil, pois mesmo que o estatuto incorpore a participação como meca-
nismo de governança metropolitana para elaboração e monitoramento das políticas
públicas urbanas, isso ficará ao encargo do gestor público. Caberá a ele abrir a
esfera pública (ou não) para participação dos cidadãos, de forma que possam con-
tribuir na elaboração e no monitoramento das políticas públicas (art. 7o, inciso V).
A única determinação acerca do assunto com caráter de obrigatoriedade é a de que
a sociedade participará do processo decisório de aprovação do PDUI. Ou seja, a
cautela que se deve ter reserva-se à participação democrática, que sempre deve ser
incluída na tomada das decisões estratégicas (Liborio, 2021).
Um outro ponto corresponde à relação do protagonismo do poder municipal,
visto que, ao receberem tais responsabilidades e autonomia, criou-se uma barreira
para a gestão de um território conurbado. Ademais, a nova lei não progrediu no
ponto que tange à revisão do atual quadro metropolitano, originado do desenho
institucional que a CF/1988 trouxe como prerrogativa acerca da temática, uma
vez que muitas RMs foram instituídas com caráter meramente político. Isso pode
ser verificado, pois muitos municípios que as integram possuem características
rurais, e mesmo assim são incorporados a elas. Além disso, podem ser identifica-
dos vazios urbanos nesses municípios e a inexistência de interesses comuns, o que
vem marcando a formação de RMs – uma decisão que, a despeito de ser política,
precisaria estar respaldada em critérios técnicos objetivos. Trata-se de um assunto
de extrema relevância, visto que a proliferação de RMs implementadas a partir de
um caráter meramente político pelos estados cria obstáculos à estruturação
de sistemas de governança metropolitana.
138 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

5 O PACTO TERRITORIAL ENQUANTO PACTO POLÍTICO


A governança supralocal no Brasil continua sendo um problema a ser enfrenta-
do, notadamente no que diz respeito ao planejamento das áreas metropolitanas.
A correção do distorcido pacto federativo brasileiro tem necessariamente de passar pelo
devido reconhecimento da natureza e identidade das áreas metropolitanas. Apesar de
não haver receita pronta para a superação desses limites, acreditamos que o pressuposto
básico para a mudança desta situação está num mínimo de consenso em torno do
PDUI, que promova o desenvolvimento metropolitano sem as amarras impostas pelos
limites municipais e esteja voltado para a solução dos problemas de interesse comum.
Nos parece que um pacto territorial seria uma nova forma de desenhar políticas
públicas, baseando-se no processo de planejamento e gestão urbana, e tendo como
princípio orientador o processo de construção social coletiva “de baixo para cima”.
A ideia central é que o território, mais do que uma simples base física para
relações entre indivíduos, empresas e instituições, possui um tecido social e uma
organização complexa, caracterizada por laços que vão muito além de seus atributos
naturais e dos seus custos de transportes e de comunicações.
Um território (ou espaço urbano) representa uma trama de relações com raízes
históricas, configurações políticas e identidades culturais que desempenham um
papel ainda pouco conhecido no próprio desenvolvimento econômico.
Para a concretização de um “pacto territorial”, seria necessário levar em conta:
• a necessidade de incorporação da variável política ao planejamento
técnico regional;
• as especificidades municipais, uma vez que cada um dos sistemas urbanos
possui lógica própria e se distribui diferentemente no território;
• o fato de que ele requer a construção uma agenda política que resgate a
visão supralocal e/ou visão regional;
• o fato de que ele requer a existência de instrumentos de gestão compar-
tilhada: jurídicos e institucionais, como os consórcios;8 e
• o fato de que a cooperação entre entes políticos integrantes da Federação
foi facultada pela CF/1988.
Nesse sentido, para a gestão e o planejamento supralocal há previsão normativa
de instrumentos de coordenação, o que pode ser visto como uma condição neces-
sária, mas não suficiente, para a gestão e o planejamento territorial. Este carece de

8. A Lei dos Consórcios, mesmo que não tenha sido traçada para a gestão metropolitana, pode auxiliar na superação
de alguns desafios impostos pela ausência de cooperação municipal, em razão da adoção de instrumentos firmados
que promovam uma maior confiança entre os poderes políticos. Nesse sentido, Almeida et al. (2015) chamam atenção
para o âmbito político na escala metropolitana, pois é nesse campo que se pode formar a cooperação, em razão da
inexistência de uma esfera de governo metropolitano.
Governança Supralocal: algumas reflexões e considerações sobre o Brasil | 139

práticas sociais a depender das relações entre governos e diferentes atores no que
tange à mediação dos múltiplos interesses a serem negociados.

6 A EXPERIÊNCIA DE SAHUAYO E JIQUILPAN NO MÉXICO9


Como ilustração, apresentamos aqui uma experiência colaborativa de gestão e
solução de problemas de interesse comum que vem sendo paulatinamente cons-
truída no estado de Michoacán, no México. Uma aproximação do que estamos
formulando como pacto territorial enquanto pacto político – que na concepção
de Ferreira (2018) conformaria a articulação técnico-política do território de
uma “metrópole emergente”,10 uma vez que a metropolização do espaço promove
transformações nos vários níveis de cidades, para além das metrópoles. Nesse
sentido, importa chamar atenção para os fenômenos da metropolitanização, nos
quais as funções e extensões físicas das cidades transcendem suas próprias frontei-
ras políticas. Assim, acreditamos que o tamanho, a forma e outras características
das áreas metropolitanas diferem com base no contexto particular do território.
Consequentemente, várias unidades administrativas (municípios, distritos etc.)
colidem em uma maior extensão física, que requer novos mecanismos para co-
laborar e fornecer soluções integrais.
A definição do que se considera metrópole pode se dar por meio de dois
caminhos. O primeiro se constitui na análise da literatura internacional, cuja
discussão se faz em torno da constituição de espaços de comando, em especial
com forte presença do capital financeiro, da concentração de atividades superiores
em termos de serviços avançados e de forte interação com o mundo, inserindo-se
num espaço de interações globais. Nessa perspectiva, tratar da metrópole significa
priorizar umas poucas metrópoles, que teriam papel relevante na economia mundial.
O segundo implica ficar atento aos eventos que realizam as transformações
territoriais de cidades vizinhas, daquilo que provisoriamente poderíamos chamar de
“metrópoles emergentes” e que passam a exigir ações e intervenções para problemas
de interesse comum. Hirschman (1958) já sustentava que o processo de desen-
volvimento regional passa pelo surgimento dos chamados “polos de crescimento”,
capazes de deflagrar o progresso das regiões em sua volta. Apesar de esse processo
trazer consigo consequências negativas relacionadas principalmente ao agravamento
das disparidades regionais, ele promove também efeitos positivos, sobretudo os

9. A descrição e análise acerca da experiência de Sahuayo e Jiquilpan é resultado de atividades do convênio estabelecido,
em 2022, entre o Núcleo Natal do Observatório das Metrópoles na UFRN e a Universidad de La Ciénega del Estado
de Michoacán de Ocampo – UCEMICH (México). Realizamos em agosto 2022 visita científica à instituição superior
mexicana, incluindo visita de campo nos dois municípios.
10. Segundo Ferreira (2018), região metropolitana emergente (RME) é uma área geográfica que começa a concentrar
áreas urbanizadas menores, como municípios em transição, que começam a se integrar espacial e funcionalmente com
outros municípios em uma região maior.
140 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

chamados “efeitos de fluência”, que alavancam o processo de desenvolvimento


através da complementaridade regional.
Uma região emergente, além de primar pela interação produtiva com a região
de fronteira, deve desenvolver a complementaridade inter-regional entre as esferas de
pesquisa e tecnologia, pilares do desenvolvimento no mundo atual. Desta forma, é
possível gerar o que ficou conhecido na literatura como “efeitos de transbordamento”
(spillovers) de conhecimento. Estes são imprescindíveis ao desenvolvimento econô-
mico, pois, para uma indústria dependente de inovações tecnológicas, o potencial
científico será tão importante quanto a infraestrutura urbana e financeira.
De acordo com as Nações Unidas (UN, 2017), o fenômeno da RME ocorrerá
principalmente em cidades intermediárias ou secundárias.11 No contexto latino-
-americano, somos tão próximos e tão distantes. Pouco nos enxergamos como
realidades constituídas a partir de processos semelhantes, pouco compartilhamos o
conhecimento produzido desde nossos países. Dentro dessa abordagem, categorizar
as cidades com base em suas funções, papéis e relevância é um primeiro passo.
Porém, mensurar o papel da “metrópole emergente” não é tarefa simples, pois em
nossa realidade isso não se faz apenas a partir do número de habitantes, que pode
ser um indicador importante, mas não o definidor de suas funções.12
A experiência de Sahuayo e Jiquilpan, no estado de Michóacan, no México,
serve como exemplo dos esforços de constituição de um pacto territorial entre os
municípios que formam um território às margens do lago de Chapala de uma zona
metropolitana emergente: “La Región de La Ciénega de Chapala comprende a los mu-
nicipios colindantes de los estados de Michoacán y Jalisco que conforman la zona oriental
del vaso del Lago de Chapala: Sahuayo, Jiquilpan, Venustiano Carranza e Villamar”13
(Rosiles, 2021, p. 77).
No México, são considerados zona metropolitana emergente municípios
com funções e atividades que ultrapassam seus limites, com alto grau de integra-
ção econômica, e que em conjunto somem 100 mil habitantes (Rosiles, 2022).14

11. Embora não haja um acordo universal sobre o conceito de cidades intermediárias, Roberts (2014) fornece
um resumo claro das principais ideias desse conceito. Este autor argumenta que as cidades estão substituindo
os Estados-nação como os principais motores do comércio e do investimento. Por esta razão, é importante focar
sistemas de cidades ao invés de sistemas de nações para fins de políticas públicas como descentralização, alocação
orçamentária e cooperação internacional.
12. Uma primeira categorização que Roberts (2014) discute é o tamanho das cidades secundárias. Em termos de
tipologia espacial e econômica, o autor categoriza as cidades secundárias em: i) subnacionais; ii) metropolitanas; e
iii) corredores de cidades secundárias. As cidades secundárias subnacionais são o tipo mais comum, geralmente com
uma população de mais de 200 mil habitantes e servindo como capitais provinciais, centros de manufatura e transporte
ou centros industriais de recursos naturais (Roberts, 2014). Seu desenvolvimento geralmente está associado a uma
história colonial ou culturalmente delimitada pela condição de cidades intermediárias ou secundárias.
13 “A Região de La Ciénega de Chapala inclui os municípios vizinhos dos estados de Michoacán e Jalisco, que com-
põem a zona leste da bacia do Lago Chapala: Sahuayo, Jiquilpan, Venustiano Carranza e Villamar” (tradução nossa).
14. No México existem 74 dessas zonas metropolitanas, totalizando 417 municípios.
Governança Supralocal: algumas reflexões e considerações sobre o Brasil | 141

É o caso de Sahuayo (78.477 habitantes) e Jiquilpan (36.158 habitantes), que


juntos concentram uma população de 114.636 habitantes. Ou seja, de acordo com
Rosiles (2022, p. 77),
comparten una conurbación intermunicipal, definida como la unión física entre dos o más
localidades geoestadísticas urbanas de diferentes municipios y cuya población en conjunto
asciende a 100 mil o más habitantes, dicha aglomeración conforma la ciudad central
de la metrópoli. Los municipios sobre los que se extiende la conurbación intermunicipal
(o ciudad central) poseen características urbanas. Se entiende por unión física entre las
localidades geoestadísticas a la continuidad en la conformación del amanzanamiento.15
Nesse caso de “metrópoles emergentes” com esse tamanho populacional, observa-
-se que a distância da cidade principal (Sahuayo) à outra (Jiquilpan) não é mais do
que 15 km de rodovia pavimentada e duplicada, com visível conurbação. A integração
funcional se dá por lugar de trabalho. Ao menos 15% da população ocupada de 15 a
70 anos trabalha no município central da zona metropolitana, ou seja, 10% ou mais
da população que trabalha num município reside no município central.
As iniciativas de cooperação entre municípios não são algo muito recente.
Em abril de 2009 foi celebrado convênio para coordenação de ações visando cons-
tituir a zona metropolitana de Sahuayo, composta pelos municípios de Jiquilpan,
Sahuayo, Venustiano Carranza e Villamar. Cria-se a Comissão da Zona Metropo-
litana de Sahuayo, formada por um presidente, que será o governador do estado
de Michóacan, os prefeitos municipais dos quatro municípios, e um secretário
técnico, que será o secretário de urbanismo e meio ambiente – provavelmente de
Sahuayo (Gobierno del Estado de Michoacán del Campo, 2009).
Desde então vêm sendo desenvolvidos esforços e ações para o desenvolvimento
regional dos municípios da Ciénega. Em 2013, por ocasião da terceira reunião de
informação sobre a conurbação Sahuayo-Jiquilpan, convocada pela Fundação Cidadã
para o Desenvolvimento Integrado de Michóacan, foi reafirmado que os quatro
municípios da Ciénega lograssem suportar juridicamente seus projetos executivos
conturbados, para suas respectivas evoluções e para poderem ser apoiados com
recursos econômicos pelo governo do estado no ano seguinte. O governo estadual,
por sua vez, se comprometia a fazer as gestões necessárias para que o governo federal
reconhecesse legalmente a zona metropolitana de Sahuayo-Jiquilpan.
O pacto pelo território de La Ciénega continua avançando em vários aspec-
tos, como mobilidade urbana, segurança, educação e tecnologia. Destacaremos

15. “[...] compartilham uma conurbação intermunicipal, definida como a união física entre duas ou mais localizações
geoestatísticas urbanas de diferentes municípios, e cuja população somada seja igual ou superior a 100 mil habitantes,
formando a cidade central da metrópole. Os municípios sobre os quais se estende a conurbação intermunicipal (ou
cidade central) têm características urbanas. A união física entre as localidades geoestatísticas é entendida como a
continuidade na conformação do bloqueio” (tradução nossa).
142 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

iniciativas recentes que ilustram as preocupações dos atores políticos e sociais


com a qualidade de vida urbana e com o futuro e expansão da área metropolitana.
1) Com o intuito de monitorar o avanço da conurbação entre Sahuayo e
Jiquilpan, foi instalada a Comissão de Ordenamento de Conurbação em 5
de julho de 2022, composta pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano
e Mobilidade do estado de Michoacán (com a presidência e secretaria
técnica), um(a) deputado(a) federal, um(a) deputado(a) estadual e os
prefeitos dos municípios envolvidos. A Comissão tem como atribuição
analisar todas as ações, temas e propostas consideradas de interesse do
território conurbado, a fim de coordenar a aprovação, promulgação, ou
autorização de políticas territoriais, assim como fazer gestão e dar cum-
primento a atividades que impactem o território conurbado.
2) No que diz respeito à mobilidade urbana, foi realizado recentemente um
convênio visando à melhoria de infraestrutura e regulação do transporte
urbano, favorecendo o deslocamento casa-escola e casa-trabalho. Esse
convênio foi celebrado em 26 de setembro de 2022 entre a prefeitura de
Sahuayo e o coletivo Ciudadanos por Municipios Transparentes (Cimtra),
com a finalidade de fortalecer a participação cidadã, propiciar a redução
de tarifas de transporte e combater a corrupção. Cabe ao município
estabelecer um governo aberto, informar de maneira transparente e com
apego à lei; ao Cimtra, o monitoramento das ações levadas a cabo pelo
município. Enfim, tenciona-se levar aos munícipes as informações de
seu interesse e avançar nas relações de melhoria da governança urbana.
3) Ainda em 2022 foi realizada a segunda reunião do Conselho Intermu-
nicipal de Segurança Pública da Região de Jiquilpan, com o propósito
de analisar as estratégias de segurança da região para estabelecer melhor
margem de manobra entre as ocorrências do gênero. Na ocasião, o alcai-
de de Sahuayo deixou claro que “la seguridad de los ciudadanos es lo más
importante, por lo que hay que seguir trabajando, analizando y generando
posibles soluciones y trabajando de manera coordinada entre los municipios,
así generando acciones que puedan regresar la paz y seguridad a la ciudada-
nía”16, 17 (Realiza Jiquilpan..., 2022).
4) Vale ressaltar a importância que tem hoje para o desenvolvimento regio-
nal o campus da Universidad de la Ciénega del Estado de Michóacan de

16. “[...] a segurança dos cidadãos é o mais importante, por isso devemos continuar trabalhando, analisando e gerando
possíveis soluções, e trabalhando de forma coordenada entre os municípios, gerando assim ações que possam devolver
tranquilidade e segurança aos cidadãos” (tradução nossa).
17. “Resulta importante mencionar que los Consejos Intermunicipales de Seguridad Pública son órganos colegiados
de coordinación, regulación y planeación, vinculados entre los tres niveles de Gobierno, cuya función es fortalecer la
coordinación para establecer estrategias y acciones conjuntas para cumplir con los fines de salvaguardar la seguridad
y el orden público” (Realiza Jiquilpan..., 2022).
Governança Supralocal: algumas reflexões e considerações sobre o Brasil | 143

Ocampo, uma instituição de fronteira para o desenvolvimento regional,


criada em 2002. Segundo o Plano de Desenvolvimento Institucional
(2010-2022), “atiende una matrícula de 616 alumnos, distribuidos en las
seis carreras que se ofrecen, además de 250 alumnos en el programa de idiomas
de la Escuela Municipal de Idiomas y Computación, en colaboración con
el municipio de Sahuayo”18 (UCEMICH, 2022, p. 15). A universidade se
localiza na metade da avenida que liga Sahuayo a Jiquilpan, facilitando
o acesso de alunos dos dois municípios e de toda a região da Ciénega.
5) Ainda em 3 de maio de 2022, a prefeitura de Sahuayo e o Instituto
Tecnológico de Jiquilpan celebram convênio de colaboração: “en dicho
convenio se contempla que alumnos de las distintas carreras que se imparten
en el Tecnológico de Jiquilpan puedan realizar su servicio en benefício de la
comunidad Sahuayense, firmaron dicho convenio el presidente municipal
y el director del tecnológico, siendo testigos los ya antes mencionados, con
esta firma ya son once años seguidos de estrecha colaboración entre estas dos
instituciones”19. (El Ayuntamiento de Sahuayo..., 2022).
Desse exemplo, resgataram-se as articulações supramunicipais de um território
chamado Ciénega, mais especificamente de sua área conurbada (área metropolitana
de Sahuayo-Jiquilpan), que parece estar efetivamente sob influência direta de um
processo de metropolização em termos de conurbação, de funções urbanas, de
relações de integração territorial e de deslocamentos pendulares.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O repertório legal brasileiro contempla caminhos possíveis para criar regionalizações,
em conformidade com o interesse dos entes estaduais e municipais. Essa forma de
regionalização, ausente das prerrogativas que levam ao “natural” relacionamento
entre áreas urbanas, acaba por confundir a compreensão daquilo que é o fenômeno
supramunicipal “de fato” (Marguti et al., 2021). A confusão se estende tanto ao
entendimento dos estados, na busca por pseudovantagens em implementar arran-
jos institucionais, quanto à União, em seu papel de fomentar as capacidades das
cidades de suavizar as polarizações – constituindo um território mais homogêneo
do ponto de vista da oferta e do fomento daquilo que é essencial – e de ofertar às
pessoas liberdades e possibilidades não limitadas pelas insuficiências e carências
do lugar onde vivem (Marguti et al., 2021).

18. “[...] atende uma matrícula de 616 alunos, distribuídos nas seis carreiras oferecidas, além de 250 alunos no programa
de idiomas da Escola Municipal de Línguas e Informática, em colaboração com o município de Sahuayo” (tradução nossa).
19. “No referido convênio está contemplado que os alunos das diversas carreiras que são ministradas no Tecnológico
de Jiquilpan possam realizar seu serviço em benefício da comunidade sahuayense; o referido convênio foi assinado
pelo presidente municipal e pelo diretor do Tecnológico, sendo testemunha o referido; com esta assinatura, são já onze
anos consecutivos de estreita colaboração entre estas duas instituições” (tradução nossa).
144 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Como vimos, no Brasil, os sustentáculos legais da política urbana hoje exis-


tente (tais como a CF/1988, o Estatuto da Cidade e o Estatuto da Metrópole),
não consideram as características únicas dos 5.570 municípios brasileiros e
seus mais variados arranjos. Estes instrumentos e políticas estão desenhados da
mesma maneira para realidades completamente distintas que, se não ocasionam,
ao menos colaboram para o aprofundamento das desigualdades regionais, para
o desequilíbrio da rede de cidades e, consequentemente, para a agudização das
injustiças socioespaciais. Isso vem dificultando sobretudo a solução de problemas
de interesse comum.
Vimos que a CF/1988 abriu espaço para o estabelecimento de um novo
acordo político institucional entre vários atores sociais. Eles começaram a defender
uma concepção municipalista na qual não havia espaço para figuras jurídicas de
alcance supralocal, a exemplo de regiões metropolitanas. Na realidade, a questão
metropolitana não foi vista como uma prioridade. Muito ao contrário, a Carta
Magna deu um tratamento genérico à questão das regiões metropolitanas, dele-
gando aos estados federados a maioria das definições de suas atribuições, antes
concentradas na União.
Levando em conta que o pacto territorial, enquanto pacto político, tem sempre
caráter provisório para cada mecanismo ou instrumento da política urbana, é preciso
identificar diversas escalas de atuação, considerando o papel das várias instâncias
governamentais para formalizá-lo de forma perene. É recorrentemente necessário,
para tal formulação, organizar o grupo de interessados e de patrocinadores, definir
as instituições promotoras, e destacar ou designar corpo técnico e gerencial para
assumir responsabilidades.
O exemplo aqui apresentado da área metropolitana de Sahuayo, no México,
nos mostra que nesse território há, claramente, uma articulação político-institu-
cional que transcende os limites municipais no sentido do estabelecimento de
uma boa governança e de um pacto territorial em curso, no sentido de preservar
seu ordenamento territorial. Ou seja, o tratamento dispensado ao fenômeno da
metropolização passa pela escala local, que ora se refere à escala municipal, ora
requer a coordenação do nível local de outra escala, a supramunicipal.
Fortalecer os laços entre as instituições patrocinadoras e promotoras, com-
prometendo os principais atores, e principalmente os atores governamentais, se
faz necessário para confirmar e consolidar o “pacto territorial”. Uma estratégia
de cunho mais duradouro a ser adotada na governança supralocal incluiria, no
entanto, um movimento de divulgação amplo pelo pacto territorial e ações
efetivamente concretas.
Governança Supralocal: algumas reflexões e considerações sobre o Brasil | 145

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CAPÍTULO 6

QUESTÕES DE ARTICULAÇÃO MUNICIPAL: APROXIMAÇÕES AOS


CONSELHOS DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL SUSTENTÁVEL
DO ESPÍRITO SANTO
Latussa Laranja Monteiro1
Nathalia Nogarolli Bonadiman Imbroisi2

1 INTRODUÇÃO
Este capítulo responde ao desafio proposto de dialogar com os temas discutidos nas
sessões virtuais e na Nota Técnica para Discussão Contextualização e diretrizes gerais para
a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Essa nota foi elaborada no âmbito do
Termo de Execução Descentralizada no 71/2019, firmado entre o Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) e a Secretaria Nacional de Desenvolvimento Regional e
Urbano (SDRU), do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, para
apoiar a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU). O objetivo é reunir e
atualizar as discussões sobre política urbana no Brasil, com foco específico nas questões
de articulação municipal.
Dessa forma, o capítulo apresenta como mote de discussão o projeto DRS
do Espírito Santo, uma experiência de planejamento na esfera estadual atualmente
em execução.
Concebido para qualificar a relação da política, principalmente nos âmbitos
municipal e estadual, a partir da lógica regional de integração, pretende “promo-
ver o desenvolvimento de forma mais equitativa e distribuir os benefícios gerados
por todo o território” (IJSN, 2022a, p. 11).3 Ademais, visa à descentralização das
oportunidades para além da Região Metropolitana (RM) da Grande Vitória.
O referido DRS é composto por dois pilares complementares de atuação:
i) projeto de pesquisa conduzida pelo IJSN, apoiado pela Fundação de Amparo à
Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes); e ii) conselhos de desenvolvimento
regional sustentável (CDRS), a cargo da Secretaria da Ciência, Tecnologia, Inovação,
Educação Profissional e Desenvolvimento Econômico (Sectides).

1. Coordenadora-geral do projeto Desenvolvimento Regional Sustentável (DRS) do Espírito Santo; e especialista em


estudos e pesquisas governamentais no Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN). E-mail: <[email protected]>.
2. Pesquisadora do projeto DRS do Espírito Santo no IJSN. E-mail: <[email protected]>.
3. Mais informações em: http://drs.ijsn.es.gov.br/projeto#oquee.
150 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

A pesquisa4 esteve incumbida de suprir as microrregiões de um plano de


desenvolvimento regional sustentável, elaborado em conjunto com os CDRS e
composto por diagnóstico e plano de ação, além de estabelecer informações para
o seu monitoramento. Já os CDRS são as instâncias de governança e pactuação
territorial que pretendem ser perenes e que articulam com representantes da so-
ciedade e de níveis de governo diversos. Por meio dos CDRS, foi possível ampliar
o alcance da pesquisa aplicada ao planejamento regional por meio da interlocução
entre pesquisadores, gestores e atores sociais.
Seguindo a premissa de descentralização, a vertente do trabalho buscou
fortalecer uma rede de estudos capilarizada, que constituiu o embrião de um
aprofundamento conceitual necessário ao entendimento do território como ele-
mento agregador das investigações futuras e de apoio às proposições das políticas
públicas. Dessa forma, incluiu a participação da Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES) e do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes). Insta ressaltar a de-
cisão consciente do aporte de recursos para fomento de grupos de pesquisadores,
coordenados por professores doutores, em um momento de cortes de orçamento
para a ciência no Brasil.
Para efeitos do diálogo proposto neste capítulo, a ênfase será dada ao pilar
da instalação dos conselhos, ocorrida no mundo pré-pandemia, o qual será mais
bem descrito adiante.
Além desta introdução, o capítulo possui outras quatro seções. A segunda se
aproxima das dificuldades trazidas pelas atribuições dos diferentes entes na efetiva-
ção da política urbana. A terceira seção evidencia aspectos da realidade do Espírito
Santo, que necessitam de atenção integrada. A quarta seção trata especificamente
dos CRDS, como experimento de fórum multidisciplinar para estabelecimento
de agenda prioritária de desenvolvimento. A quinta seção traz as conclusões finais,
que levantam as principais restrições do projeto e os desafios que se avizinham,
muitos dos quais são semelhantes aos da PNDU.

2 NECESSIDADE DO PLANEJAMENTO MULTIESCALAR


A questão da articulação municipal como parte de uma PNDU deve partir da
constatação de que os marcos legais e normativos atuais tratam como iguais os
mais de 5 mil municípios do Brasil. Nada pode estar mais distante da realidade.
Ademais, os principais instrumentos “prescritos” para remediar as discrepâncias e
os desequilíbrios regionais parecem aplicáveis apenas aos maiores e mais influentes
nós da rede de cidades – ela própria é extremamente desigual.

4. O Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metropolitana da Grande Vitória (PDUI/RMGV) foi elaborado
como projeto de pesquisa e recebeu apoio da Fapes.
Questões de Articulação Municipal: aproximações aos conselhos de | 151
desenvolvimento regional sustentável do Espírito Santo

A inclusão da política urbana na Constituição Federal de 1988 de fato repre-


sentou um marco na normativa urbanística brasileira. Por meio dos arts. 182 e 183,
reconheceu-se a importância de garantir o pleno desenvolvimento da função social
da cidade e a responsabilidade municipal na condução da política de desenvolvi-
mento urbano local, cujo instrumento básico é o plano diretor municipal (PDM).
O Estatuto da Cidade, Lei Federal no 10.257/2001, que normatizou os artigos
da política urbana, reafirmou o papel central do PDM na regulação urbanística
ao atrelar o atendimento da função da propriedade urbana a esse plano e definir
sua abrangência espacial para todo o território municipal (Brasil, 2001, art. 39).
Contudo, se, por um lado, a ampliação das atribuições municipais foi vista
como um importante passo durante a redemocratização do país, que saía do período
da ditadura militar com sua Constituição Cidadã; por outro lado, é patente que os
municípios encontram grandes dificuldades em fazer frente a suas competências.
Isso ocorre tanto porque há dificuldades de ordem fiscal e tributária quanto porque
os limites físicos das administrações municipais são extrapolados por uma série de
fatores que clamam por soluções compartilhadas.
O município é o executor da política de desenvolvimento urbano, mas
deve se subordinar às diretrizes gerais, uma vez que é da União a competência
de legislar sobre normas gerais de direito urbanístico e dos estados a competên-
cia para instituir RMs, aglomerações urbanas e microrregiões de planejamento.
O objetivo é, assim, “integrar a organização, o planejamento e a execução de funções
públicas de interesse comum” (Brasil, 1988, art. 25).
Portanto, apesar dos avanços e do crescente aparato regulatório, no Brasil há
um nítido descolamento entre planejamento, gestão municipal e aplicabilidade dos
instrumentos jurídico-urbanísticos, o que resulta em padrões de desenvolvimento
urbano em desacordo com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
(Brasil, 1988, art. 225).
Ademais, em alguns casos, como no das microrregiões de planejamento, os
limites da agregação dos municípios não encontram par em agentes governamentais
envolvidos em sua ação, ou mesmo nos consórcios públicos e nas associações de
municípios criados para fazer frente às demandas, os quais “mostram ser possível
estabelecer relações de cooperação entre os entes federativos” (Costa, 2021 apud Ipea,
2020, p. 58), mas que encontram os gargalos financeiros comuns à atuação pública.
Esse é o caso clássico da (não) cooperação metropolitana no Brasil, em que
o equilíbrio ambiental, atrelado ao uso do solo urbano, deve observar que o con-
junto de municípios metropolitanos funciona, de fato, como uma única cidade.
Nesse sentido, seria esperado que a oferta de soluções voltadas às funções públicas
de interesse comum (FPICs) fossem pensadas para o conjunto metropolitano, ou,
ao menos, para a área efetivamente conurbada. Não obstante os avanços trazidos
152 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

no Estatuto da Metrópole, Lei no 13.089/2015, sabemos que ainda há muito a se


construir no campo da gestão interfederativa, principalmente após as modificações
da Lei Federal no 13.683/2018 (Brasil, 2018), por exemplo, a retirada dos prazos
de elaboração do PDUI.
A “ausência de integração entre políticas que se realizam sobre um mesmo
território” (Ipea, 2020, p. 27) ainda é um dos principais desafios nesse cenário,
uma vez que impede, o mais das vezes, a análise conjunta entre políticas originadas
em diferentes órgãos setoriais e divididas em orçamentos distintos.
A eficiência no gasto público se amplia à medida que cresce a consciência de
crise ambiental e climática. Desse modo, buscam-se novos sentidos para desen-
volvimento, alinhado aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da
Organização das Nações Unidas (ONU), em substituição àquele pautado comu-
mente como crescimento econômico medido em termos de produto interno bruto
(PIB). Em termos urbanos, a Nova Agenda Urbana (ONU-Habitat III, 2021) mostra
a crescente consciência da necessidade de atuação, em escala intermediária, capaz de
agregar esforços isolados dos estados e dos municípios para solucionar problemas
de cunho espacial, os quais de outra maneira perdem em sinergia e convergência.
Decorre daí a necessidade de se buscar permanentemente a integração das
ações, enfrentando as dificuldades da cooperação institucional, tanto horizontal,
em um mesmo nível de governo; quanto vertical e interfederativa, articulando os
entes federados nos seus três níveis e garantindo a participação social.
Já se adivinha que tal integração não acontece sem que seja desenhado e
obedecido algum grau de governança.
A questão da governança é central para que se alcancem resultados sinérgi-
cos, uma vez que, para o público-alvo das políticas, o resultado nem sempre vai
evidenciar as parcelas de responsabilidade de cada setorial envolvida na qualidade
geral do espaço, principalmente quando somados os resultados de políticas seto-
riais (saúde, educação, assistência, meio ambiente e segurança) e os das políticas
especificamente espaciais urbanas (mobilidade, saneamento e habitação).
Em comum com a PNDU, o DRS do Espírito Santo sustenta a relevância de
uma visão estratégica sobre o território (Ipea, 2020, p. 13) pautada na multiescalari-
dade e nas relações interfederativas, em observância ao sistema urbano brasileiro e à
utilização da rede de cidades como ponto de apoio das possibilidades de mudança.
Apesar de toda a diversidade e das diferenças de escala que englobam a noção
do território, é a governança que ao fim pode incorporar o elemento territorial
como o lócus integrador das políticas públicas que visem a um maior equilíbrio
entre as partes.
Questões de Articulação Municipal: aproximações aos conselhos de | 153
desenvolvimento regional sustentável do Espírito Santo

Para a implementação da PNDU, tomou-se como premissa uma visão de terri-


tório que permitisse abordar o urbano de maneira ampla. Então, demarcou-se que:
[Para a PNDU] O território é concebido como a delimitação física de um espaço que
abriga uma população com traços de coesão e identidade ambiental, social e cultural,
definidos a partir de processos urbanos, caracterizados por uma mutiescalaridade de
demandas e outra multidimensionalidade institucional, realizados por seus distintos
grupos sociais constitutivos (Ipea, 2020, p. 42).
O planejamento regionalizado do Espírito Santo se baseia em uma divisão do
estado em dez microrregiões, sendo a RM da Grande Vitória a primeira delas. Já as
demais são: Central Serrana, Sudoeste Serrana, Central Sul, Litoral Sul, Caparaó,
Rio Doce, Centro-Oeste, Nordeste e Noroeste (mapa 1).
154 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

MAPA 1
Divisão microrregional do Espírito Santo

Fonte: IJSN (2020).


Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).
Questões de Articulação Municipal: aproximações aos conselhos de | 155
desenvolvimento regional sustentável do Espírito Santo

Dessa maneira, para se distribuírem as condições de prosperidade a todo o


estado, é preciso considerar as desigualdades entre as microrregiões, os aspectos
transversais integradores e, sem dúvida, as diferentes capacidades de os governos
municipais implementarem e gerirem diretrizes gerais. Para isso, consideram-se as
discrepâncias técnicas, financeiras e de gestão presentes na RM, mas agudizadas nas
microrregiões de planejamento, que agregam os demais 71 municípios do interior.
O fato de a RM da Grande Vitória contar com um sistema gestor metropolitano
desde 2005, cabe ressaltar, foi entendido como preponderante para a elaboração
do principal instrumento de gestão compartilhada, o PDUI/RMGV – Lei Com-
plementar Estadual no 872/2017. Assim, o DRS do Espírito Santo inicialmente
institui as instâncias de pactuação das políticas (os conselhos) e, em sequência, ela-
bora diagnósticos e plano de ação para os territórios formados pelas microrregiões
de planejamento do estado, excetuada a RM.

3 DESIGUALDADES REGIONAIS NO ESPÍRITO SANTO


Algumas assimetrias no território capixaba constituem ponto de apoio exemplifica-
tivo para a discussão com a PNDU, pois “são expressão de processos socioespaciais
diversos, alguns de larga duração, que se manifestam em diferentes escalas – da
intraurbana à macrorregional –, nas quais os agentes/atores, usando os atributos
do(s) território(s), forjam sua própria produção” (Ipea, 2020, p. 5).
No Espírito Santo o panorama das assimetrias internas não é oposto ao do
restante do país. O primeiro apontamento pode ser feito com relação às diferenças
entre o litoral e o interior capixaba. No litoral está mais da metade da população5 e
mais de 70% do PIB (IJSN, 2020) e dos empregos formais.6 Nesse sentido, os mapas
2 e 3 mostram a distribuição da população e do PIB nos municípios do estado.

5. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9103-estimativas-de-populacao.html?=&-


t=resultados. Acesso em: 21 jun. 2021.
6. Disponível em: http://pdet.mte.gov.br/rais/rais-2018. Acesso em: 7 jun. 2023.
156 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

MAPA 2
População dos municípios do Espírito Santo

Fonte: IJSN (2022).


Elaboração: Projeto DRS.
Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).
Questões de Articulação Municipal: aproximações aos conselhos de | 157
desenvolvimento regional sustentável do Espírito Santo

MAPA 3
PIB microrregional do Espírito Santo

Fonte: IJSN (2021a).


Elaboração: Projeto DRS.
Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).
158 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Os aspectos transversais a serem observados em busca da integração de políticas


espaciais abrangentes são múltiplos e complexos. Essa análise, relacionada aos obje-
tivos expostos, cita brevemente, a título de exemplo, dois aspectos preponderantes
no diálogo entre as questões de articulação municipal da PNDU e os aspectos do
território do Espírito Santo, alvo do projeto DRS: finanças municipais e água.
O porte do município e o nível de sua atividade econômica costumam estar
atrelados às capacidades de sua estrutura produtiva, que regula aspectos como a
relação de oferta ou a dependência de serviços e suas capacidades de arrecadação.
Brandão (2007), ao tratar das principais determinações da dimensão espacial do
desenvolvimento capitalista, enfatiza o seguinte:
A origem do processo que dá início ao crescimento econômico regional é, geral-
mente, a dotação, inicial e relativa, de recursos naturais e fatores produtivos. Existe
uma tendência inerente a se agruparem, aglomerarem e concentrarem as pessoas e
as atividades econômicas, e sua distribuição geográfica segue um padrão assimétrico
(Brandão, 2007, p. 60).
As assimetrias, portanto, além de esperadas, refletem a forma como foram
sendo constituídas as diferenciações espaciais no campo da produção voltada à
exportação. Esta foi inicialmente de produtos agrícolas, em especial o café, e em
sequência de produtos semi-industriais, sobretudo os siderúrgicos. A estrutura
industrial-portuária, impulsionada pelo ciclo desenvolvimentista do II Plano
Nacional de Desenvolvimento (II PND), foi sendo ampliada e cria, até os dias
atuais, demanda por serviços especializados, principalmente concentrados na RM
da Grande Vitória. Resulta dessa realidade histórico-concreta a macrocefalia da
mencionada RM em relação às demais microrregiões do estado.
Ressalte-se a dicotomia entre o Estado de bem-estar social, expresso na
Constituição Federal de 1988, e o “perfil anticrescimento da estrutura tributária
brasileira” (Ipea, 2020, p. 58), expresso em aspectos da Lei de Responsabilidade
Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000), que reduziu ou limitou a já curta capa-
cidade de financiamento e de investimentos públicos.
Estudo específico sobre as finanças municipais nas microrregiões do DRS
do Espírito Santo7 apontou que as receitas das microrregiões capixabas são majo-
ritariamente compostas por transferências relativas ao Imposto sobre Circulação
de Mercadorias e Serviços (ICMS) e ao Fundo de Participação Municipal (FPM).
Observa-se uma aparente falta de vontade das gestões na ampliação das receitas
tributárias de base municipal, sempre muito impopulares (IJSN, 2021a).

7. Disponível em: https://ijsn.es.gov.br/Media/IJSN/PublicacoesAnexos/cadernos/IJSN_Caderno_DRS-01.pdf. Acesso


em: 20 set. 2021.
Questões de Articulação Municipal: aproximações aos conselhos de | 159
desenvolvimento regional sustentável do Espírito Santo

Outro aspecto a se considerar como pano de fundo é a presença da Superin-


tendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene)8 nos municípios ao norte
do Espírito Santo, que contam com incentivos fiscais federais, além de facilidades
para tomar crédito por meio do Banco do Nordeste. Outra exceção é a Litoral
Sul, cujos investimentos estão relacionados à exploração de petróleo no mar.
Seja como for, é baixa a capacidade dos municípios para influenciar a atração de
novas empresas e investimentos, além da fragilidade financeira de promover o
desenvolvimento, seja por infraestruturas, seja por serviços.
A descentralização do desenvolvimento pode se apoiar no incentivo a ati-
vidades complementares, encadeadas aos projetos existentes, e na agregação de
valor nas cadeias produtivas para os municípios de menor arrecadação, sobretudo
voltados à agropecuária.
Nesse segmento, o mapa 4 mostra a distribuição espacial dos investimentos
previstos para o Espírito Santo no período de 2019 a 2024. Percebe-se que os mu-
nicípios localizados no litoral acumulam a maior quantidade desses investimentos.
Do total dos projetos previstos (726), quatro das nove microrregiões, a saber, RM
da Grande Vitória (303 projetos), Rio Doce (91 projetos), Litoral Sul (53 projetos)
e Nordeste (61 projetos), somam a significativa parcela de 94,1% do montante
anunciado (R$ 42,7 bilhões). Os demais municípios e as microrregiões receberam
investimentos (5,9%), em sua maioria, de projetos de infraestrutura (IJSN, 2021b).
Com relação à água, elemento primordial para a manutenção da vida, o apon-
tamento é a necessidade de se observar a divisão do território do Espírito Santo em
onze bacias hidrográficas (mapa 5). Isso é o exemplo mais claro da necessidade de
se compor o planejamento para além das linhas imaginárias dos limites municipais
e, nesse caso, mesmo dos limites microrregionais.9

8. A Sudene tem o objetivo de reduzir o desequilíbrio nas regiões do Brasil e inclui 28 municípios do Espírito Santo.
9. Para mais informações, ver: Caderno DRS 03: Diagnóstico de componentes ambientais relacionados à temática água
e desenvolvimento regional sustentável do Espírito Santo. Disponível em: https://ijsn.es.gov.br/Media/IJSN/Publicacoe-
sAnexos/cadernos/IJSN_Caderno_DRS-03.pdf. Acesso em: 20 set. 2021.
160 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

MAPA 4
Investimentos previstos para o Espírito Santo (2019-2024)

Fonte: IJSN (2021b).


Elaboração: Projeto DRS.
Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).
Questões de Articulação Municipal: aproximações aos conselhos de | 161
desenvolvimento regional sustentável do Espírito Santo

MAPA 5
Bacias hidrográficas no Espírito Santo

Fonte: Espírito Santo (2019).


Elaboração: Projeto DRS (2021c).
Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).
162 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Embora todas as regiões hidrográficas do estado possuam planos de bacia


além do plano estadual de recursos hídricos, há pontos de atenção com relação à
sustentabilidade: a insuficiente proteção às bacias hidrográficas, o que “pressiona
a disponibilidade quali-quantitativa dos recursos hídricos” (IJSN, 2021b); as
microrregiões mais afetadas são Nordeste, Noroeste e Centro-Oeste. As mesmas
três microrregiões se repetem quanto à situação mais frágil no Índice de Segurança
Hídrica10 (ISH), somadas à Rio Doce e à RM.
É esperado que a ocorrência de eventos extremos relacionados a excesso e
intensidade de chuvas ou de estiagem prolongada ocasione o tensionamento entre
os impactos e a capacidade de minimizar os efeitos socioeconômicos, como na
região norte do estado, onde 23 municípios estão inclusos nas áreas suscetíveis à
desertificação – ASD11 (MMA, 2004). Os municípios da microrregião Noroeste,
no caso de Ecoporanga e Ponto Belo, têm os dois maiores percentuais de área
ocupada com pastagens, a saber, 76,8% e 78,1%, respectivamente (IJSN, 2021d).
Mais uma vez, parte da solução está em uma gestão eficiente do uso desse solo,
capaz de evitar a ocupação de áreas propensas a risco e onde possam ser adotadas
medidas de preservação e conservação ambiental.
Nos levantamentos realizados nas microrregiões, nos diagnósticos elabo-
rados pelo Ifes e pela UFES, são citados os agravantes dessa ocupação. Como
exemplos, é possível citar as extensas áreas de pastagem em franco processo de
degradação e erosão do solo, o que está associado à perda da camada fértil, e o
consequente aumento do assoreamento em corpos hídricos nos municípios das
microrregiões Litoral Sul e Central Sul (IJSN, 2021d).
Importante destacar que, entre as fragilidades identificadas no Sistema de
Gerenciamento de Recursos Hídricos do Espírito Santo (SIGERH), estão
recursos humanos restritos para o atendimento de demandas técnicas e operacionais
elevadas; redes de monitoramento quali-quantitativos deficientes; dificuldade de
adesão aos cadastros de outorgas e licenciamento ambiental; deficiência na fiscaliza-
ção de infrações; potencial conflito de atribuições entre as instituições; carência de
coletivos e organizações civis organizadas nos espaços consultivos, entre outros (IJSN,
2021b, p. 423, grifo nosso).
Os resultados mostram a limitação no cumprimento da gestão integrada dos
recursos hídricos. O grifo destaca uma característica dos municípios menores, onde
uma das carências é a baixa densidade institucional, somada por vezes a um cenário
de baixa capacidade técnica, principalmente nos segmentos abertos à sociedade, o

10. O ISH segue metodologia construída pela Agência Nacional de Água (ANA, 2019) a partir da média simples de
indicadores agregados em quatro dimensões de análise: humana, econômica, ecossistêmica e de resiliência.
11. Na categoria de áreas do entorno das áreas semiáridas e subúmidas secas segundo o Programa de Ação Nacional
de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAN-Brasil).
Questões de Articulação Municipal: aproximações aos conselhos de | 163
desenvolvimento regional sustentável do Espírito Santo

que infelizmente está presente para além da gestão integrada de recursos hídricos.
Nesse sentido, de maneira geral, conforme apontado no diagnóstico fruto do Cader-
no DRS 3 (IJSN, 2021b), a aplicabilidade dos instrumentos de gestão, que fariam
então a governabilidade desses recursos hídricos, é afetada, a título de exemplo,
quando há baixo número de estações de monitoramento fluviométrico e baixa
adesão aos cadastros de outorgas, ou quando a própria confiabilidade e fragilidade
das informações repassadas se mostram como impeditivos para o gerenciamento e
o monitoramento do controle dos recursos hídricos.

4 A PACTUAÇÃO NO DESENVOLVIMENTO REGIONAL SUSTENTÁVEL


O tema da participação perpassa o estabelecimento de propostas de ação em
termos de políticas públicas, pois do contrário pode ser por demais insuficiente
a resposta à questão “O que querem os territórios?”. Evidentemente é sabido que
as respostas à pergunta variam de um conjunto de atores para outro, a depender
das ideias que lhes dão suporte ou que defendem. São permeados por paradig-
mas do seu tempo e embebidos em conceitos e termos nem sempre exatamente
traduzidos ou nem sequer enunciados claramente.
No âmbito do governo do estado, cabem à Secretaria de Economia e Planeja-
mento (SEP)12 a pactuação e a discussão tanto de prioridades quanto de execução,
gestão e monitoramento. Desse modo, muito embora conte com rodadas de parti-
cipação ampla em momentos específicos, como estrutura de governo, está restrita
às ações que estão a cargo da administração. Logo, não abarca, evidentemente,
iniciativas diretas da sociedade civil.
A governança do DRS tem o objetivo de elevar o nível da pactuação política com
foco no território, o que resulta em agendas prioritárias de discussão compartilhada
em substituição às listas de demandas que buscam suprir as necessidades municipais.
Ainda que muito desafiadora, criar uma estrutura que centralize suas atenções
no território, de forma integrativa, busca suplantar a dificuldade dos fóruns de
participação social em que, na maioria das vezes, o que ocorre é o diálogo entre
pares, ou seja, entre aqueles que trabalham temas específicos e que estão convencidos
de sua importância, a exemplo dos recursos hídricos, cuja escassez impacta todas
as atividades humanas. No entanto, há participações assimétricas e fragilidades
apontadas em setores que compõem os comitês de bacia.
Para evitar variações e mudanças de rumo repentinas ou, como é mais
comum, o abandono de processos antes que possam gerar conclusões ou re-
sultados mensuráveis, as definições estão ancoradas em atos públicos como

12. O Escritório de Projetos do Governo do Estado do Espírito Santo, que atua na SEP, desempenha o gerenciamento
intensivo, identifica e aponta soluções de riscos e gargalos dos projetos estruturantes do governo do estado.
164 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

forma de minimizar as descontinuidades causadas por circunstâncias externas


ou possibilitar sua retomada caso necessário.
Dessa forma, os CDRS foram criados como organismos consultivos e de par-
ticipação social para as microrregiões de planejamento no Espírito Santo, segundo
definição da Lei no 9.768, de 26 de dezembro de 2011.13
A normativa redefiniu o desenho das microrregiões de planejamento, pas-
sando de doze para as atuais dez, e aponta para uma atuação regionalizada em que
a participação social seja estimulada para a definição das diretrizes e das políticas
regionais. Entre seus objetivos, a referida Lei no 9.768/2011 cita o estímulo ao
desenvolvimento econômico e social em bases regionais e trata da integração por
mais de uma vez – na busca pela elevação da “qualidade dos serviços prestados
visando à integração de planos, recursos físicos e financeiros e de ações em parceria
com os demais níveis do Poder Público” (Espírito Santo, 2011) e diretamente na
promoção das ações intersetoriais integradas.14
Destaca-se que, na sequência da Lei no 9.768, em 2011, foi elaborado ins-
trumento de planejamento de longo prazo do estado do Espírito Santo. Esse
documento, denominado Plano de Desenvolvimento Espírito Santo para 2030 e
conhecido como ES 2030, viria a substituir e complementar seu antecessor, o plano
ES 2025. O ES 2030 utilizou metodologia de planejamento estratégico somada à
ampliação da participação social como um conceito-chave de elaboração, de modo
que foi simultaneamente construído por dezessete oficinas regionais, em cada uma
das dez microrregiões do Espírito Santo, bem como por oficinas temáticas para
discussão de quatorze temas propostos.
O ES 2030 propõe o aprofundamento da lógica de construção do planejamento
sugerido pelo seu antecessor. Para isso estimulou significativamente a participação
dos segmentos sociais e das lideranças, inclusive das 10 microrregiões, nos debates de
temas relevantes para a atualidade do Espírito Santo (Espírito Santo, 2013, p. 17).
Em 2019, a participação social nas formulações das políticas públicas em
âmbito federal sofreu os efeitos da desmobilização do aparato de conselhos e
conferências, os quais, por fim, foram extintos por ato do Executivo.15 Contudo,
é retomada a perspectiva de desenvolvimento regional pactuado nas microrregiões
do Espírito Santo após um período fortemente marcado pelo cenário de incertezas
e pela cartilha de austeridade no setor público.16

13. Modificada pela Lei no 11.174/2020.


14. Para ler o texto integral da Lei no 9.768/2011, ver: https://www3.al.es.gov.br/Arquivo/Documents/legislacao/html/
lei97682011.html#Lei11174.
15. Decreto no 9.759/2019, que extinguiu órgãos colegiados da administração pública federal.
16. Culminou com a PEC no 241/2016, apelidada PEC da morte.
Questões de Articulação Municipal: aproximações aos conselhos de | 165
desenvolvimento regional sustentável do Espírito Santo

O esforço de mobilização para a criação dos conselhos foi conduzido pela


Subsecretaria de Desenvolvimento Regional, da Secretaria da Ciência, Tecnologia,
Inovação e Educação Profissional (Sectides), responsável por estruturar e organizar
em setores os principais agentes microrregionais. A estrutura de planejamento
conta com o secretariado executivo da Sectides e com o IJSN, órgão de apoio
técnico tanto da governança metropolitana quanto dos demais nove CDRS. Vinte
e dois representantes das esferas públicas e da sociedade organizada compõem os
CDRS. Eles são representados pelos poderes Executivo e Legislativo estadual e
municipal, bem como pelo setor produtivo, pela sociedade civil e pelas instituições
de ensino, com vistas à criação de um ambiente de pactuação e integração de
interesses regionais (figura 1). A composição de cada conselho foi regulamentada
pelo Decreto no 4701-R, de 30 de julho de 2020.

FIGURA 1
Composição de um conselho de desenvolvimento regional sustentável

Fonte: IJSN (2022a).


Elaboração: Projeto DRS.
Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).

Retomando a trilha da normatização, a partir do Decreto no 4701-R/2020,


os CDRS instituídos17 passaram a ser vinculados à SEP. Definidos como órgãos
colegiados de natureza consultiva e de participação social, esses conselhos possuem
as seguintes finalidades:

17. A RM da Grande Vitória, que tem legislação própria, mantém-se vinculada ao Conselho Metropolitano de Desen-
volvimento da Grande Vitória (Comdevit) e às demais estruturas da gestão metropolitana, conforme Lei Complementar
no 318/2005.
166 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

I – identificar as demandas de interesse das microrregiões do estado do Espírito Santo


às quais estão vinculados;
II – recomendar programas, projetos e ações prioritárias nos diversos níveis de governo,
tendo em vista as necessidades do desenvolvimento sustentável das microrregiões;
III – sugerir medidas para aperfeiçoar a distribuição regional e setorial da aplicação
dos recursos públicos nas microrregiões que tenham impacto sobre o desenvolvimento
regional sustentável;
IV – propor a criação de mecanismos de articulação entre os programas, projetos e os
recursos públicos que tenham impacto sobre o desenvolvimento regional sustentável
das microrregiões;
V – contribuir com o monitoramento dos programas e projetos de interesse regional;
VI – articular e estimular as lideranças políticas e sociais das microrregiões na cons-
trução e no acompanhamento de projetos e ações que contribuam para o desenvol-
vimento regionalmente equilibrado e sustentável; e
VII – articular ações que promovam a estruturação de projetos e empreendimentos
privados e do terceiro setor que contribuam para o desenvolvimento regional sus-
tentável (Espírito Santo, 2020a, art. 2o, incisos I a VII).
Por fim, a Portaria SEP no 040-R, de 20 de outubro de 2020, entre outras
providências, estabeleceu o regimento interno e definiu a composição dos CDRS
em 22 membros assim distribuídos:
I – dois representantes escolhidos entre o(a)s Prefeito(a)s dos municípios que inte-
gram a Microrregião;
II – dois representantes do Poder Executivo Estadual designados pelo Governador
do Estado;
III – dois representantes do Poder Legislativo Estadual indicados pela Mesa Diretora
da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo;
IV – dois representantes do Poder Executivo Municipal escolhidos entre o(a)s
Secretário(a)s dos Municípios que integram a Microrregião;
V – dois representantes do Poder Legislativo Municipal escolhidos entre o(a)s
Vereadore(a)s dos Municípios que integram a Microrregião;
VI – cinco representantes do segmento empresarial indicados pela Federação da
Agricultura e Pecuária do Estado do Espírito Santo (FAES); Federação do Comércio
de Bens, Serviços e Turismo do Estado do Espírito Santo (FECOMÉRCIO-ES);
Federação das Associações e Entidades de Microempresas, Empresas de Pequeno
Porte e Empreendedores Individuais do Estado do Espírito Santo (FEMICROES),
Federação das Indústrias do Estado do Espírito Santo (FINDES); e Sindicato e
Organização das Cooperativas Brasileiras do Espírito Santo (OCB/ES);
Questões de Articulação Municipal: aproximações aos conselhos de | 167
desenvolvimento regional sustentável do Espírito Santo

VII – cinco representantes de entidades de trabalhadores e organizações não gover-


namentais indicados pelas associações ou sindicatos com atuação na Microrregião;
VIII – dois representantes de entidades profissionais, acadêmicas e de pesquisa,
escolhidos e indicados entre as instituições com atuação na Microrregião (Espírito
Santo, 2020b, art. 2o).
Buscou-se equilibrar a representação do setor empresarial e as entidades de
trabalhadores com cinco cadeiras cada. O setor público tem oito cadeiras, distri-
buídas entre o Executivo e o Legislativo municipal e estadual. Por fim, reservam-se
duas posições para as entidades profissionais e acadêmicas, incluindo instituições
de ensino e pesquisa.
Durante esse percurso de atuação do conselho, foram realizadas, dentro do
processo do plano de ação, 73 reuniões. Estas foram distribuídas em três rodadas,
sendo 18 reuniões com os CDRS para preparação; 27 para elaboração; e 28 com
órgãos e entidades governamentais para integração do plano. Esses encontros tiveram
o intuito de disseminar as principais informações, apresentar as etapas do trabalho
e realizar votações para selecionar prioridades, bem como possibilitar a abertura de
canal de diálogo permanente e contínuo. Além disso, foram produzidas dezoito18
publicações específicas que sumarizam informações levantadas nos diagnósticos
das microrregiões e apontam as diretrizes para o plano de ação.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em mente os principais resultados e as restrições do projeto DRS do Espírito
Santo como ferramenta da articulação municipal na escala regional, de início é
necessário lembrar que foi inteiramente pensado para atuar a partir do território
para o próprio território. Seu desenho, tanto na vertente da pesquisa quanto na de
participação social mediante conselhos, considerava primordial o estabelecimento
de equipes locais e a visita das equipes técnicas principais. Com o advento da pan-
demia da covid-19, foi preciso executar o projeto de forma virtual.
Apesar da principal adversidade, o maior risco, no entanto, é bastante comum:
o da descontinuidade do processo, dada a complexidade e as exigências de pessoal
e recursos envolvidos. Ainda que a virtualidade da execução tenha possibilitado
“percorrer” centenas de quilômetros ao mudar o link da sala de conferência remota,
é patente a maior interação gerada por meio do encontro presencial. Ademais, para
o pesquisador lotado na RM da Grande Vitória, a vivência da realidade interiorana
pode “calibrar” modos de se enxergar a realidade e de fato aproximar os investiga-
dores de seu objeto de investigação concreto.

18. Os sumários executivos dos diagnósticos e as diretrizes do plano de ação estão disponíveis em: http://drs.ijsn.
es.gov.br/produtos#microrregioes.
168 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

O aperfeiçoamento contínuo do planejamento levou à proposição de novas


bases para a descentralização do desenvolvimento no Espírito Santo em 2011. Ade-
mais, a redefinição das microrregiões de planejamento, a criação legal de conselhos
de desenvolvimento e a elaboração de um planejamento de longo prazo lançaram
as bases para a efetiva instalação, em 2019, de CDRS.
Resta a tarefa de se avaliar a própria composição dos CDRS, que deve ser apri-
morada posteriormente, inclusive, a partir dos conflitos que sua própria existência
pode descortinar. Exemplos disso são as divergências entre os atores responsáveis
pelas diversas políticas públicas e a baixa capacidade de se comunicarem entre
si e com a sociedade, o que pode acarretar confrontos entre expectativas locais e
prazos e/ou execução.
Os embates entre atribuições e capacidades orçamentárias, que geram listas
de demandas, vão continuar existindo e ensejando as respostas por múltiplas vias,
a despeito de agendas prioritárias de discussão compartilhada, por exemplo, as
emendas parlamentares federais e estaduais.
Assim como apontado na contextualização para a nascente PNDU, no âmbito
do atual Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, a integração
horizontal nas setoriais é um ponto de atenção, não obstante a estrutura de mo-
nitoramento de projetos do governo do estado.
Quanto à integração vertical entre municípios, estado e União, desafio nada
novo ou trivial, ela apenas poderá ser avaliada com base na perenidade do processo.
Sem dúvida a articulação de planos nas três esferas da Federação, tal qual preco-
nizado por uma PNDU, é a chave para o atendimento dos desafios em contexto
de heterogeneidade e polarização da rede urbana brasileira.

REFERÊNCIAS
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Plano Nacional de Segurança Hídrica. Brasília: ANA, 2019. 112 p.
BRANDÃO, C. Território e desenvolvimento: as múltiplas escalas entre o local
e o global. Campinas: Ed. Unicamp, 2007.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília:
Congresso Nacional, 1988.
BRASIL. Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183
da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, 11 jul. 2001.
Questões de Articulação Municipal: aproximações aos conselhos de | 169
desenvolvimento regional sustentável do Espírito Santo

BRASIL. Lei no 13.683, de 19 de junho de 2018. Altera as leis nos 13.089, de 12 de


janeiro de 2015 (Estatuto da Metrópole), e 12.587, de 3 de janeiro de 2012, que
institui as diretrizes da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Diário Oficial
da União, Brasília, 20 jun. 2018.
ESPÍRITO SANTO. Plano de Desenvolvimento do Espírito Santo 2030.
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ESPÍRITO SANTO. Decreto no 4701-R de 30 de julho de 2020. Diário Oficial
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Portaria SEP no 040-R, de 20 de outubro de 2020. Diário Oficial do Espírito
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ESPÍRITO SANTO. Lei no 9.768, de 26 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a
definição das Microrregiões e Macrorregiões de Planejamento no Estado do Espírito
Santo. Diário Oficial do Espírito Santo, Vitória, 28 dez. 2011.
ESPÍRITO SANTO. Plano Estadual de Recursos Hídricos do Espírito San-
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AGERH. 2019.
IJSN – INSTITUTO JONES DOS SANTOS NEVES. Investimentos anun-
ciados e concluídos no Espírito Santo 2018-2023. Vitória: IJSN, 2019. 52 p.
Disponível em: https://ijsn.es.gov.br/Media/IJSN/PublicacoesAnexos/cadernos/
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IJSN – INSTITUTO JONES DOS SANTOS NEVES. Produto Interno Bruto
(PIB) dos Municípios do Espírito Santo: 2018. Vitória: IJSN, 2020. Disponível
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IJSN – INSTITUTO JONES DOS SANTOS NEVES. Caderno DRS 1: finanças
municipais. Vitória: IJSN, 2021a. 37 p. Disponível em: https://ijsn.es.gov.br/
Media/IJSN/PublicacoesAnexos/cadernos/PIB_Estadual_2018.pdf.
IJSN – INSTITUTO JONES DOS SANTOS NEVES. Investimentos Anunciados
e concluídos no Espírito Santo 2019-2024. Vitória: IJSN, 2021b. Disponível
em: https://ijsn.es.gov.br/Media/IJSN/PublicacoesAnexos/cadernos/Investimen-
tos_Anunciados_e_Concluidos_2019-2024.pdf.
170 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

IJSN – INSTITUTO JONES DOS SANTOS NEVES. Caderno DRS 3: diagnós-


tico de componentes ambientais relacionados à temática água e desenvolvimento
regional sustentável do Espírito Santo. Vitória: IJSN, 2021c. 433 p. Disponível
em: https://ijsn.es.gov.br/Media/IJSN/PublicacoesAnexos/cadernos/IJSN_Ca-
derno_DRS-03.pdf.
IJSN – INSTITUTO JONES DOS SANTOS NEVES. Panorama Geral das
Unidades de Conservação do Espírito Santo. Vitória, IJSN, 2021d. 36 p.
IJSN – INSTITUTO JONES DOS SANTOS NEVES. Desenvolvimento
Regional Sustentável – Plano de Ação. Vitória, 2022a. 131 p. Disponível em:
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IJSN – INSTITUTO JONES DOS SANTOS NEVES. DRS Diagnóstico Inte-
grado: Vitória: IJSN, 2022b. 98 p. Disponível em: https://ijsn.es.gov.br/Media/
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IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Contex-
tualização e diretrizes gerais para a Política Nacional de Desenvolvimento
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-urbano/ContextualizacaoediretrizesGeraisparaaPoliticaNacionaldeDesenvolvi-
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ONU-HABITAT. Nova agenda urbana. Brasília: ONU-HABITAT Brasil, 2019.
Disponível em: https://habitat3.org/wp-content/uploads/NUA-Portuguese-Brazil.
pdf. Acesso em: 5 fev. 2021.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
BRASIL. Lei no 13.089, de 12 de janeiro de 2015. Institui o Estatuto da Metrópole,
altera a Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, e dá outras providências. Diário
Oficial da União, Brasília, 13 jan. 2015.
CAPÍTULO 7

CONTRIBUIÇÕES PARA UMA AGENDA URBANA DE INTEGRAÇÃO


REGIONAL: BASES PARA INTERPRETAÇÃO E TIPOLOGIA DE REDE
URBANA PARA UM BRASIL MAIS POLICÊNTRICO
Ernesto Pereira Galindo1

1 INTRODUÇÃO
Segundo Brenner (2013, p. 87), as geografias da urbanização eram vinculadas às
populações adensadas das cidades, mas agora têm assumido novas morfologias em
escala cada vez maior. O autor entende não haver mais espaço para a dicotomia
rural/urbano. Considera-se que a urbanização do território, como a difusão mais
ampla do urbano no espaço (Santos, 1993), torna a relação urbana/interurbana
relacionada a todo o território, incluindo o campo, ou, nos dizeres de Milton Santos:
estaríamos, agora, deixando a fase da mera urbanização da sociedade, para entrar
em outra, na qual defrontamos a urbanização do território. A chamada urbani-
zação da sociedade foi o resultado da difusão, na sociedade, de variáveis e nexos
relativos à modernidade do presente, com reflexos na cidade. A urbanização do
território é a difusão mais ampla no espaço das variáveis e dos nexos modernos
(Santos, 1993, p. 125).
Os grandes centros urbanos se multiplicam, em um contexto global que vis-
lumbra a intensificação do processo de urbanização com a criação de novas e grandes
cidades em todo o mundo. No Brasil, além disso, o crescimento de cidades médias
e seu papel articulador e intermediador regional, bem como o adensamento popu-
lacional em áreas já consolidadas e a ocupação de frentes pioneiras, trazem também
novos desafios de entendimento. Fenômenos que podem agravar a desigual repartição
dos ônus/bônus sobre o território.
Essa complexidade exige um referencial ontológico/epistemológico que possa
auxiliar na compreensão do fenômeno urbano para que decisões possam ser tomadas
tendo em vista a redução e mitigação das desigualdades socioterritoriais ou a melhor
distribuição dos ônus e bônus da urbanização e das relações econômicas.

1. Técnico de planejamento e pesquisa na Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais do Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (Dirur/Ipea). E-mail: <[email protected]>.
172 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Esses processos não podem ser compreendidos de forma isolada, tratando as


cidades como objetos individuais de apreciação, pois conforme Pumain (2001, p. 91,
tradução nossa):
No sistema altamente conectado das cidades, o tamanho das cidades não é uma mag-
nitude que possa ser controlada dentro de uma cidade. É o produto não intencional
da complexa rede de interações que se desenvolvem entre cidades, pelos atores que
investem nelas, econômica, social e simbolicamente.
Apesar da relevância dos estudos institucionais de rede de abrangência nacio-
nal, eles tendem a propor tipologias de centros urbanos, mas a análise da relação
interurbana poderia se referir ao estudo das próprias redes dos subsistemas urba-
nos nacionais como objetos e unidades de análise e de categorização tipológica.
Deve, portanto, valer-se da contribuição dos estudos tipológicos de redes urbanas como
os realizados por Corrêa (1989; 1996; 2001), Ribeiro (1998) e Mello et al. (2010).
Nesse sentido, a rede não deve ser entendida como (mais) uma escala de
análise, mas sim como uma abordagem, que pode ser feita em diversas escalas.
Para a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), essa abordagem
tem como objetivo identificar os transbordamentos, impactos e efeitos das in-
terações interurbanas no espaço urbano.
O estudo do urbano e da urbanização demanda, portanto, um entendimento
integrado do espaço, percebendo seus rebatimentos em todo o território, mas com-
preendendo as relações em rede que se desenvolvem entre os territórios. Em escala e
em dimensão temática, deve se apropriar das análises regionais, de rede urbana, mas
avançando na apreensão dos impactos socioeconômicos dessas relações na população.
Por sua vez, o papel que cada um desses territórios e suas redes de subsiste-
mas regionais exerce na totalidade da rede urbana vincula-se a suas capacidades
e fragilidades, conduzindo a melhores ou piores condições de cumprir com sua
responsabilidade territorial (Bitoun, 2009). Esses polos e sua rede imediata podem
deste modo ser intermediadores das necessidades de cidades e redes menos espe-
cializadas, cumprindo a função de hubs ou de cidades-trampolim e viabilizando a
configuração de uma rede policêntrica. Assim, aliviam a cidade primaz de sua rede
maior, tornando mais próximos e acessíveis serviços e empregos.
Deve-se avançar também para além da visão regional econômica em direção à
abordagem interurbana da rede, como feito no estudo das Regiões de Influência das
Cidades – Regic (IBGE, 2020) e na Caracterização e Tendências da Rede Urbana do
Brasil (Ipea, 2002). Nessa passagem da análise da cadeia produtiva para a condição
socioeconômica urbana, os desdobramentos da divisão internacional do trabalho
auxiliam na caracterização da intermediação oriunda da diversificação e especialização
diferenciada no território.
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 173
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

A análise do emprego (trabalho e renda) é uma pista potencial para a inte-


gração e compatibilização entre as abordagens regional, urbana e social, por meio
da rede urbana, já que “no bojo do processo de urbanização a rede passou a ser o
meio através do qual produção, circulação e consumo se realizam efetivamente”
(Corrêa, 1989, p. 37).
Com este foco, esta nota se propõe a três objetivos:
• propor dimensões a serem levadas em conta para a definição de tipologias
de redes urbanas da PNDU;
• sugerir parâmetros de interpretação de subsistemas urbanos, a partir da
rede urbana da Regic 2018, como base para determinar rede policêntrica
para a PNDU; e
• indicar diretrizes para compatibilizar/integrar a escala supramunicipal da
PNDU e a regional da Política Nacional de Desenvolvimento Regional
(PNDR), por meio da abordagem de rede (inter)urbana.
Para alcançar os objetivos pretendidos, o texto apresenta uma seção sobre
tipologias de rede, seguida de outra sobre consequências dessa visão na leitura
policêntrica de cidades médias. Na busca por pistas para uma visão conjunta da
abordagem urbana e regional, mais uma seção é desenvolvida, para enfim, em uma
síntese analítica que reúne o que foi levantado, apresentar uma última seção com
sugestões de diretrizes para os três objetivos propostos, antes das considerações
finais (em verdade encaminhamentos iniciais) e referências bibliográficas.
Essa construção propositiva final se ampara de forma simplificada na relação
entre os agentes econômicos e o território em uma visão integrada e pretensamente
compatibilizada entre os três objetivos, conectando os parâmetros para leitura e
estímulo de uma rede policêntrica com uma forma de conexão entre a PNDU e a
PNDR, conectando também com as tipologias com foco na rede e na relação do
papel econômico produtivo com o papel de provisão de serviços, resultando na
interpretação da relação urbano-regional em suas consequências socioeconômicas
para as famílias.

2 AS TIPOLOGIAS DE REDE
Os estudos institucionais que supostamente tratam de redes focam a regionalização
e a sua caracterização. Mesmo que tenham uma abordagem de região polarizada,
a tipologia resultante não tem as redes e os subsistemas em rede como objeto de
categorização. Mesmo os estudos de rede urbana institucionais tampouco produ-
ziram diretamente tipologias de rede. Ainda que a análise de rede faça parte de seu
processo de estudo, o resultado final é a hierarquia dos “nós” e sua caracterização,
além da indicação dos vínculos que cada subsistema de rede possui.
174 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Para além dos estudos institucionais sobre rede, observa-se que alguns autores
propuseram tipologias e definiram categorias de rede propriamente ditas. São reu-
nidos aqui três caminhos mais comumente encontrados na proposição de tipologias
ou de critérios para sua análise. Um deles parte da própria configuração proposta
por Christaller, distinguindo configurações de rede que fogem do tipo ideal por
ele proposto. Outro trata de definir indicadores que retratem a distribuição da
noção de centralidade, em uma linha mais aproximada da teoria de grafos. E por
fim, alguns diferenciam as redes por suas atividades preponderantes e como essas
definem sua configuração.
Milton Santos, ao tratar de sua nova teoria dos dois circuitos econômicos,
em um de seus textos em referência a países (à época referidos como) subdesen-
volvidos, aponta, por exemplo, que “algumas aglomerações de nível inferior não
necessitam mais transpor as cidades que estão num nível imediatamente superior,
mas recorrem diretamente às cidades mais importantes” (Santos, 1977, p. 53).
Ilustra-se isso por meio da figura 1.

FIGURA 1
Cidades dentro de uma rede

Fonte: Santos (1977, p. 54).


Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).

Tal estudo é similar ao que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


(IBGE) vem desenvolvendo ainda internamente e que já se encontrava também
em trabalhos realizados por outros autores, como o da Rede Urbana da Bahia de
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 175
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

2011 (Sedur/BA, 2011). Ao propor uma interpretação para a rede urbana baia-
na, Sedur/BA (2011) considera que “por salto hierárquico compreende-se a falta
de níveis de centralidade intermediários entre um centro de menor hierarquia
e um de hierarquia superior” (Sedur/BA, 2011, p. 78). Deste modo, completa,
“um subsistema urbano, ou mesmo a própria rede, pode apresentar baixa densi-
dade hierárquica quando apresenta grandes saltos hierárquicos ou alta densidade
hierárquica, quando o contrário ocorre” (op. cit., p. 76). Os saltos podem ser exem-
plificados com a análise da região de influência (RI) de Juazeiro à época (figura 2),
conforme apresentado em Sedur/BA (2011, p. 78).

FIGURA 2
Saltos hierárquicos da RI de Juazeiro

Fonte: Sedur/BA (2011, p. 14).


Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).

A partir desse critério, é possível definir tipos de rede conforme a densidade


hierárquica, como foi feito na rede urbana da Bahia de 2011 (tabela 1).
TABELA 1
176 |

RIs, níveis hierárquicos e saltos hierárquicos


Polo Polo sub- Saltos hierár- Número total
Classificação Metrópole Polo estadual Polo local Centro local Núcleo
sub-regional -regional quicos de municípios
Posição Hierárquica (PH) 1a 2a 3a 4a 5a 6a 7a
Salvador 1 - - 4 2 3 39 2 48
Feira de Santana - 1 - - - - 50 3 54
Vitória da Conquista - - 1 - 1 - 34 02/01 36
Barreiras - - 1 - 1 - 19 02/01 21
Ilhéus-Itabuna - - 2 - - 1 29 2 32
Juazeiro - - 1 - - - 8 3 9
Jequié - - - 1 - 1 20 1 22
Teixeira de Freitas - - - 1 1 - 11 1 13
-
Eunápolis - - 1 1 - 6 1 8
-
Santo Antônio de Jesus - - 1 - 1 12 1 14
-
Paulo Afonso - - 1 - - 8 2 9
-
Irecê - - 1 - - 22 2 23
-
Guanambi - - - 1 2 35 0 38
-
Senhor do Bonfim - - - 1 1 8 0 9
-
Valença - - - - 1 12 0 13
-
Brumado - - - 1 - 10 1 11
-
Jacobina - - - 1 - 14 1 15
-
Itaberaba - - - - 1 9 0 10
-
Ribeira do Pombal - - - - 1 13 0 14
-
Seabra - - - - 1 9 0 10
-
Total - - - - - - - 409

Fonte: Reprodução da tabela em Sedur/BA (2011, p. 77).


Nota: 1 O quadro contempla somente as RIs polarizadas por Salvador, portanto sem Correntina e os municípios polarizados por Aracajú.
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro
Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 177
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

Corrêa (1989) aponta dois tipos básicos de rede urbana. No Brasil a rede
dendrítica tem origem colonial, localização excêntrica, junto ao mar. Há uma
primazia desmesurada da cidade principal, com excessivo número de pequenos
centros indiferenciados e de início sem centros intermediários. Existe uma limitada
mobilidade de precárias vias de transporte, sendo exemplos a origem de Belém,
São Luís, Recife, Salvador e Rio de Janeiro (op. cit., p. 72). Por sua vez, a rede
complexa aproxima-se da estrutura christalleriana, com complexidade funcional e
espacial, na qual não há aleatoriedade nem distribuição de Poisson (op. cit., p. 73).
Corrêa (1996) traz ainda uma diversidade de tipos que podem servir para
caracterizar uma rede ao indicar, como um dos cinco pontos para se repensar a
teoria dos lugares centrais, a “conexão entre a inserção de uma determinada área
na divisão territorial do trabalho e o arranjo estrutural e espacial de sua rede de
localidade centrais”, em que “as diferenças nos arranjos estruturais e espaciais das
redes de localidades centrais sejam, em primeiro lugar, reveladoras das diferenças
relativas ao avanço do capitalismo e das formas que assume” (op. cit., p. 25).
Esses arranjos espaciais podem se apresentar, por exemplo, como primaz
(op. cit., p. 24) ou primate system (op. cit., p. 25), dois circuitos, de variação
temporal (sazonal ou semanal), christalleriana (conforme princípio de mercado,
transporte ou administrativo), dendrítica, feeder system, top-heavy system, hierár-
quico imperfeito (op. cit., p. 25).
Para Corrêa (1989, p. 52), “uma classificação funcional de cidades, isto é, a
descrição da divisão territorial do trabalho em termos urbanos, deve procurar dar
conta dos papéis que cada cidade cumpre na criação, apropriação e circulação do
valor excedente”. De certo modo, as configurações christallerianas de cada um
dos seus três princípios, mas especialmente o de mercado, auxiliam nesse desafio.
Essa indicação parece também permear a proposta – positivamente menos geome-
trista – de Ribeiro (1998) ao resgatar Miossec (figura 3).
Ao interpretar as redes conforme sua função predominante, Miossec, adotado
por Ribeiro (1998), reforça um entendimento que o IBGE utiliza na Regic ao iden-
tificar em sua análise de rede, mas sem definir tipos propriamente ditos, o comando
estatal e empresarial, além dos fluxos de comércio, serviços e produtivos – embora
este último seja mais o foco dos estudos regionais.
178 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

FIGURA 3
Tipos de rede miossecianas
3A – De distribuição de bens e serviços

3B – De produção

3C – De gestão

Fonte: Ribeiro (1998).


Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 179
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

Ainda que não seja exatamente tipologia, os indicadores de centralidade e conexão


são bastante úteis para se desenvolverem categorias de rede. Mello et al. (2010, p. 8),
por exemplo, se utilizam da teoria de grafos para análise da rede.
Em geral, a ideia de uma rede pode ser sintetizada a partir da seguinte definição
matemática: uma rede (grafo) constitui-se de um conjunto não vazio de ele-
mentos chamados vértices (ou nós) e uma lista de pares não ordenados destes
elementos chamados arestas (ou conexões).
Ainda que isso possa parecer excessivamente quantitativo e simplificado
diante da complexidade da realidade, indicadores analisados e propostos por eles
auxiliam na construção pragmática de elementos para proposição de tipologias
comparativas de redes.
Usando as categorias sistematizadas por Mello et al. (2010, p. 8-9), considera-se
neste texto que proposições tipológicas úteis para a PNDU devem partir da
premissa de termos no Brasil redes direcionadas, ponderadas, dinâmicas e não
conectadas, distinguindo-as quanto a esparsas ou densas dentro de cada cluster.
Direcionada, pois os sentidos das “arestas” (conexões, interações, fluxos) importam;
ponderada porque as conexões entre os nós da rede possuem importâncias distintas; e
dinâmica porque a rede evolui com o tempo, já que suas conexões diferem conforme
o momento em que sejam analisadas. A identificação sobre serem esparsas (poucas
ligações relativas em cada vértice) ou densas (uma parcela significativa de ligações
nos vértices) faz parte exatamente da distinção entre os tipos.
Sobre o critério de conexão, é preciso explicar melhor o enquadramento de
rede como não conectada na acepção de grafo utilizada por Mello et al. (2010).
Evidentemente que no mundo em que vivemos não se pode falar de uma completa
desconexão entre território algum. Mello et al. (2010) indicam que toda a rede está
necessariamente conectada a uma grande rede e deve ser analisada necessariamente
em seu conjunto completo. A própria Regic (ponto de partida para interpretação
e análise da rede urbana do Brasil), entretanto, considera subsistemas urbanos
também de forma individual, em que não consta uma necessária e obrigatória
vinculação hierárquica entre todos os nós.
Portanto, neste sentido, é necessário considerá-la para análise como não
conectada, permitindo assim uma análise por cluster, mais uma vez na acepção de
Mello et al. (2010, p. 8): “um conglomerado de nós em que todos os nós estão
conectados”. Ademais, como também feito por Mello et al. (2010), ir além do
“procedimento mais comum” de examinar apenas o maior cluster e olhar para
cada um deles de forma distinta (de onde é possível aplicar tipologias de forma
interpretativa). Para isso, Mello et al. (op. cit., p. 9) sugerem como uma das formas
“separar a rede por clusters, criando-se várias redes diferentes” – caminho seguido
pelos estudos de rede no Brasil.
180 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Considera-se que os indicadores abordados por Mello et al. (2010) são úteis no
entendimento da centralidade e das conexões de rede, podendo-se usar seus resultados
na construção de tipologias de rede. Um deles é a “distância entre nós”, que “mede o
comprimento do caminho entre dois nós considerados” (Mello et al., 2010, p. 10).
De forma simplificada, acredita-se ser possível utilizar os dados já mapeados pela
Regic referente à distância euclidiana entre os nós ou mesmo utilizar dados de tempo
de viagem como usado em Ferreira (2006) e passíveis de obtenção por dados de
agências reguladoras de transporte ou mesmo via aplicativos de rede ou sistema de
posicionamento global (GPS), como Waze, Moovit, Google ou similares.
Outro indicador que poderia ser usado consiste no “grau do nó”, mesmo com
as limitações e simplificações apontadas por Mello et al. (2010): de forma simples, ela
é o número de arestas que saem do nó. Também é conhecida por out-degree (out d).
A medida também pode ser construída utilizando-se o número de arestas que chegam
a este nó, sendo neste caso conhecida por in-degree (in d) (op. cit., p. 11).
Por sua vez, o rank de página “foi inicialmente desenvolvido por Brin e Page
(1998), os fundadores do Google, para medir a importância de uma página na World
Wide Web (www)” (Mello et al., 2010, p. 12). O rank de página é definido como:

, onde dout é o out-degree; 0 ≤ f < 1; e a soma é feita sobre


os nós da rede que apontam para o nó j. Sabendo-se que 0 ≤ f < 1, o sistema é uma
contração e pode ser resolvido, explicitamente, por iterações até que a solução con-
virja para um ponto fixo. Assim, o rank de uma página mede a importância de uma
página da www em função da importância das outras páginas que apontam para ela
(Mello et al., 2010, p. 12-13).
Ainda que Mello et al. (2010) tenham apresentado outras medidas, considera-se
que a aplicação dessas (distância entre nós, grau do nó e rank de página) já de-
monstre o potencial dos indicadores, os quais possam ser utilizados em possíveis
construções tipológicas.
Além do rol de tipologias de rede e indicadores apresentados até aqui, outras
questões e dimensões podem auxiliar na construção de outros tantos. Nesse sentido,
Lobato Corrêa traz à discussão uma série de temas e classificações que podem auxiliar
na indicação de variáveis e dimensões para construção tipológicas. Um caminho
seria, por exemplo, o uso da análise do trabalho, nos dizeres de Lobato Corrêa: uma
classificação funcional de cidades, isto é, a descrição da divisão territorial do trabalho
em termos urbanos, deve procurar dar conta dos papéis que cada cidade cumpre na
criação, apropriação e circulação do valor excedente (Corrêa, 1989, p. 52).
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 181
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

Corrêa (2005, p. 111-112) sintetiza também dimensões de análise das redes


geográficas que podem servir de apoio no desenvolvimento de abordagens de estudo.
Uma das dimensões de análise tratada por Corrêa (2005, p. 112) é a espacial, que
pode ser vista do ponto de vista da escala (local, regional, nacional ou global),
da forma (solar, dendrítica, circuito ou barreira) e da conexão (interna ou externa).
A forma solar é exemplificada pelo autor como cidade-Estado ou aldeias tribu-
tárias; a dendrítica, como a rede urbana da Amazônia em 1900; circuito, como
rede de tráfego aéreo; e barreira, como rede de utilidades político-administrativas.
Corrêa (2005, p. 328) sugere algumas questões para investigação sobre a
rede urbana brasileira que também poderiam auxiliar na busca por pista para a
construção de tipologias e dimensões a tratar, conforme a seguir descrito.
1) Como as alterações nas esferas da produção, circulação e consumo afetam
a rede de lugares centrais?
2) Qual o real papel da telemática na reestruturação da rede urbana?
3) Qual o papel da desconcentração de atividades na reestruturação da
rede urbana?
4) Qual a magnitude e quais os efeitos da drenagem da renda fundiária na
rede urbana?
5) Qual o papel dos agentes locais e regionais na reestruturação da rede urbana?
6) Que outras formas a rede urbana apresenta?
7) O que há de novo nas redes urbanas, ou em seus segmentos, criadas
recentemente?
Corrêa (1974, p. 15) ainda considera necessário investigar melhor os efeitos
na variação de renda e de densidade populacional nos sistemas de lugares centrais,
sendo este um dos pontos de investigação possível. Corrêa (1974, p. 16) faz ques-
tão de destacar que Christaller já tratava disso em seu clássico. De fato, apesar das
críticas, Christaller (1966) aponta essas diferenças em função da densidade e da
renda, mas não explora isso em sua teoria, mesmo porque a teoria explicitamente
parte do controle dessas outras variáveis. A proposta de Corrêa (1974, p. 16) é
combinar alta e baixa densidade com alta e baixa renda, criando quatro categorias:
• altas densidade e renda;
• alta densidade e baixa renda;
• baixa densidade e alta renda; e
• baixas densidade e renda.
182 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Corrêa (1974, p. 16) supõe que cada uma dessas categorias respectiva-
mente, desenvolve:
• tanto centros de ordem menor quanto maior;
• muitos pequenos centros, poucos centros de alta ordem;
• de forma fraca poucos pequenos centros e, de forma relativamente forte,
poucos centros de alta ordem; e
• de forma fraca lugares centrais de quaisquer ordens.
Essa análise, assumidamente simplificada pelo próprio autor, é ampliada
(Corrêa, 1974, p. 17) para abranger faixas intermediárias de cada uma das variáveis.
Moreira (2014) sugere uma divisão em três estratos de renda que poderia ser
adaptada à essa proposta de Corrêa (1974).
Da releitura realizada nesta seção, destacam-se, portanto, de forma resumida
e direta ao menos as seguintes tipologias:
• direcionada ou não direcionada, ponderada ou não ponderada, es-
parsas ou densas, conectadas ou não conectadas, dinâmica ou estática
(Mello et al., 2010);
• primaz ou primate system; dois circuitos; variação temporal (sazonal ou
semanal); christalleriana (conforme princípio de mercado, transporte ou
administrativo); dendrítica; feeder system; top-heavy system; hierárquico
imperfeito (Corrêa, 1996);
• dendrítica, complexa, radial, solar (Corrêa, 1989); e
• distribuição, produção e gestão (Miossec, 19762 apud Ribeiro, 1998).
Para além delas, todo esse conjunto de dimensões, preocupações e indicadores
desvelam um leque de possibilidades para se definirem categorias de rede que sejam
úteis aos objetivos das políticas públicas, em especial, mas não apenas aquelas de
caráter mais regional e urbano.

3 REDE POLICÊNTRICA DE CIDADES INTERMEDIADORAS


Os três principais estudos institucionais de rede urbana no Brasil, em momentos
diversos (final da década 1990/início de 2000, meados para fim da década de 2000
e fim da década de 2010), destacavam a relevância das cidades intermediárias.
O estudo da Rede Urbana do Ipea apontava três dinâmicas de destaque:
i) crescimento populacional mais elevado das antigas periferias econômicas nacionais;

2. Miossec, Jean-Marie. La localisation des forces de décision dans le monde: esquisse de geógraphie
politique théorique. L’Espace Géographique, Paris, n. 3, p. 165-175, 1976.
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 183
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

ii) ocorrência de padrões relativamente baixos de crescimento das regiões metro-


politanas (RMs), sobretudo de suas sedes; e iii) peso crescente do conjunto das
cidades de porte médio, ou cidades médias como aponta a literatura (Ipea, 2002,
p. 165). Destas, uma explicitamente revela o aumento no número dessas cidades,
enquanto as outras duas têm relação direta com o tema.
Quase vinte anos depois, a Regic 2018 (IBGE, 2020) também identificou um
expressivo crescimento da hierarquia intermediária de centro sub-regional B (gráfico 1).
O número total foi mais de três vezes maior que a Regic anterior de 2007.
Os níveis abaixo perderam em número absoluto, mas é preciso levar em consideração
a compatibilização da nova Regic com o estudo de arranjos do IBGE, que passou a
considerar diversos municípios como uma só “cidade” nas análises de rede.

GRÁFICO 1
Distribuição da hierarquia urbana na Regic (2007 e 2018)

Fonte: IBGE (2020).


Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).

Por sua vez, ainda na década de 2000, o Estudo da Dimensão Territorial para o
Planejamento (Brasil, 2008) indicava, para além dos onze macropolos consolidados,
32 outras centralidades, desde novos macropolos (sete) a aglomerações locais (três)
e geopolíticas (duas), passando pelas aglomerações sub-regionais (vinte), conforme
apresenta o quadro 1.
184 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

QUADRO 1
Níveis secundários do Estudo de Dimensão Territorial para o Planejamento
Nível Município Bacia
Belém
Litoral Norte-Nordeste
São Luís
Palmas
Macrorregional
Cuiabá
Porto Velho Centro-Norte
Campo Grande
Uberlândia
Boa Vista
Macapá
Amazônica
Rio Branco
Santarém
Marabá
Imperatriz
Centro-Norte
Araguaína
Barreiras
Petrolina
Juazeiro
Sub-regional
Crato
Juazeiro do Norte
Semiárido
Barbalha
Montes Claros
Teófilo Otoni
Vitória da Conquista
Sinop Centro-Oeste
Cascavel
Chapecó Sul-Sudeste
Santa Maria
Itaituba Amazônica
Local Eliseu Martins
Centro-Norte
Souza
Cruzeiro do Sul
Geopolítico Amazônica
Tabatinga
Fonte: Brasil (2008).

Mais coadunado com a abordagem regional, o que faz também se rebater na


PNDR, o Estudo da Dimensão Territorial para o Planejamento, para além de seu
possível aproveitamento na reflexão sobre a cidade média, pode ser usado como um
ponto de partida na discussão da rede policêntrica. Os estudos regionais possuem
uma clara e explícita vinculação com a redução das desigualdades regionais, tema
de estrito vínculo com o desenvolvimento de uma rede policêntrica.
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 185
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

Apesar de a Política Nacional de Ordenamento Territorial (PNOT) não ter sido


efetivada, seu documento base e seus princípios continuam alimentando a discussão
regional e mesmo dando base à própria PNDR. Em seu documento-base (Brasil, 2006),
indica-se, como uma das diretrizes de ação propostas, fortalecer a rede das cidades de
centralidade média (op. cit., p. 194) e, como uma das estratégias, articular a rede ur-
bana pela dinamização econômica das cidades de centralidade média (op. cit., p. 196).
A PNDR, em seu programa publicado na página do Ministério do Desenvolvimento
Regional (MDR), deixa explícito esse foco ao considerar como um de seus objetivos
“consolidar uma rede policêntrica de cidades, em apoio à desconcentração e à inte-
riorização do desenvolvimento regional e do país, considerando as especificidades
de cada região” (Brasil, 2019).
A atualização da análise regional e sua leitura conjunta com a hierarquia da
rede urbana contida na Regic mais atual permitem ao menos ter uma referência de
cidade médias/mediadoras/intermediárias/intermediadoras/secundárias que apre-
ende a real situação da rede. Os municípios apontados no quadro 1, por exemplo,
foram explicitamente selecionados para “a construção de uma rede de cidades mais
policêntrica” (Brasil, 2008, p. 114).
Lobato Corrêa desenvolveu muitos estudos na tentativa de apontar caminhos para
a análise conjunta e integrada da cidade média com outros necessários recortes
para o aprimoramento de sua análise. Corrêa (2017, p. 35), por exemplo, refere-se
a uma possibilidade de pesquisa relacionando cidade média e a teoria dos circuitos
indicando que Milton Santos se referia a um relativo equilíbrio do alcance espacial
(limitado) do circuito inferior e (mais amplo, porém seletivo) do circuito superior,
englobando este último uma população de maior status social.
Corrêa (2017, p. 35) também ressalta que a intensidade das relações espaciais de
e para cidades médias varia ao longo do ano referindo-se como exemplo à produção
agrícola na safra e na entressafra. Corrêa (op. cit., p. 35-36) destaca ainda o papel
das elites na análise regional (ao menos hinterlândia das cidades), apontando que
em geral isso tem ficado mais restrito entre os geógrafos nas análises intraurbanas.
Para ele, os tipos preliminares de cidades médias podem ser: lugar central, centro
de drenagem e consumo de renda fundiária e centro de atividades especializadas.
Para além de Lobato Corrêa, como diretriz geral, são observadas opções metodo-
lógicas mais simples ou mais complexas conforme se aproxima de uma apreensão mais
real do fenômeno caracterizador da cidade média. A mera análise por porte populacional
é a abordagem mais simples, mas ao mesmo tempo a mais falha. Mesmo em estudos
mais aprofundados e que se utilizam de outras variáveis é comum cair na tentação de
usá-lo como ponto de corte para excluir qual cidade pode se enquadrar como média.
A oposição ao conceito de primazia, identificando cidades secundárias, também tem
suas simplificações mesmo que fuja da mera variável populacional.
186 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Uma referência mais qualificada é o uso da posição ou hierarquia em que a cidade


se encontra na rede, sendo já uma análise mais próxima da realidade, importância
e capacidade de atração da cidade. Por fim, a real captação do papel intermediador
da cidade alcança de forma mais efetiva o fenômeno denominado de cidade média,
ou de modo mais apropriado, a cidade intermediadora, retratando não apenas a
nodalidade ou potencial de atração, mas a efetiva atratividade mediante a identifi-
cação dos fluxos interurbanos. A identificação de variáveis de estoque (populacional,
econômico etc.) estariam entre as variáveis mais simples e menos representativas do
fenômeno, enquanto o fluxo (em especial o efetivo, ou virtual na acepção miltoniana)
captaria a real atratividade, sendo a proxy mais precisa da intermediação. Essa escala
de simplicidade (facilidade) versus complexidade pode ser observada na figura 4.

FIGURA 4
Facilidade versus complexidade na identificação de uma cidade média
Porte

Complexidade - Fluxo
Facilidade - Estoque

Primazia

Posição

Intermediação

Elaboração do autor.

Em realidade, o fluxo parece determinar mais que o fixo no espaço, sendo


os estoques não mais os determinantes da hierarquia. De outra forma, Santos
(2014, p. 275) parece indicar algo parecido: “entre os agentes econômicos, impõe
distinguir, a partir dos volumes que produzem ou movimentam, entre aqueles que
criam fluxos e aqueles que criam massas, isto é, geram volumes, mas não têm força
de transformá-los em fluxos”.
Nesta análise, “a fluidez é, ao mesmo tempo, uma causa, uma condição e
um resultado” (Santos, 2014, p. 274) e “em realidade, não é mais a produção
que preside a circulação, mas é esta que conforma a produção” (op. cit., p. 275).
De fato, o principal não é mais o domínio do território, mas ter acesso a uma rede.
“O processo de fixação num lugar dos últimos séculos acabou e as migrações reco-
meçam” (Guéhenno apud Carlos, 2007, p. 24). O que se deve estudar, portanto,
são as redes urbanas (Tricart, 1951).
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 187
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

Essa percepção entre limitações e vantagens de uso das variáveis de estoque


e fluxo na determinação da nodalidade (potencial) e centralidade (polarização)
pode ser mais bem qualificada para também auxiliar em uma tipologia de cidades
médias, hubs ou centros de uma rede policêntrica.
A título de ensaio seria possível construir três grandes categorias de cidades
médias. A primeira em verdade seriam pseudopolos, tendo estoques significativos,
mas cuja massa (na definição miltoniana) não é suficiente para promover fluxos.
Estariam aí cidades que apenas tem grandes estoques que podem ser vinculados
apenas a dinâmicas internas, ou mesmo aquelas que apresentam alguma variável
de estoque significativo (como população, produto interno bruto – PIB etc.),
mas que sequer dão conta de suas próprias demandas, resultando em territórios
extremamente vulneráveis como apontado por Galindo (2016).
Outra categoria poderia se referir a cidades intermediadoras em sentido
estrito, em que a atração se converte efetivamente em fluxos, seja por ofertarem
muito serviços e em grande escala, seja por possuirem muitas vagas de emprego,
seja por serem especializadas em algum serviço. Por fim seria possível ainda pensar
em cidades que concentram comando governamental ou empresarial, que embora
possam em tese não ter grande atração, comandam outros territórios. Essas cate-
gorias podem ser esquematizadas na figura 5.

FIGURA 5
Tipos de cidades médias
A De massa
1 Pseudo-polo
B Vulnerável

Potencial: estoque
A Serviço Geral

2 Atratora B Trabalho Geral

C Especialização
Efetiva: fluxo

A Estatal
3 Comandante
B Empresarial

Elaboração do autor.

É possível também cruzar as diversas noções mais institucionalizadas de cidades


médias e termos similares em uma análise comparativa e classificação conjunta.
Aveni, Galindo e Oliveira (2016) submeteram o estado da Bahia a um ensaio
nesses moldes.
188 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Os autores sobrepuseram os critérios e classificações das cidades secundárias –


com base na primazia de Egler (2015) –, das cidades médias adaptadas de Castello
Branco (2006), das cidades-polos de regiões intermediárias do IBGE (2013) e da
classificação da Regic, à época ainda a edição de 2007 (IBGE, 2008). Os critérios
foram calculados com base nos dados do Censo 2010 agregados por arranjos po-
pulacionais quando existiam.
Os resultados obtidos evidenciam a diferença de resultados conforme o método.
A distribuição pelo estado da Bahia de arranjos ou cidades que se enquadram em
ao menos um dos métodos pode ser observado no mapa 1.

MAPA 1
Cidades intermediárias da Bahia (2010)

Fonte: Aveni, Galindo e Oliveira (2016).


Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 189
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

O mais relevante da proposta combinada dos autores é conciliar as noções de


hierarquia com base na rede de influências e a intermediação do polo de uma região
polarizada. Ou seja, a combinação de características de centralidade, atratividade e
fluxo a características mais vinculadas à nodalidade e teoria gravitacional por conta
da importância dos estoques. Ainda que não tenha abordado de forma direta o foco
regional, algo desse tema se reflete nos critérios usados nos métodos isoladamente.

4 AGENDA URBANA E INTEGRAÇÃO REGIONAL


A divergência entre desenvolvimento regional e desenvolvimento urbano, embora
seja claramente percebida na dissociação que se observa na academia e no governo,
não se justifica na realidade. O foco econômico produtivo da PNDR e o urbano
da PNDU se vinculam em uma forte relação causa-efeito bidirecional que pode
ser verificada no mapa da evolução de nossos ciclos econômicos (mapa 2).

MAPA 2
Recurso, ciclos econômicos e ocupação do território

Fonte: São Paulo Faz Escola (2008).


Elaboração: Sérgio Adas.
Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).
190 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Os recursos naturais do país determinaram nossos ciclos econômicos, como a


cana-de-açúcar, no século XVI, ou mesmo antes ainda que não apontada no mapa
com o pau-Brasil, no litoral de Mata Atlântica. O povoamento e a fundação de vilas
seguiram essa trajetória com a pecuária, o tabaco, as drogas do sertão e o movimento
bandeirante, o café, o garimpo/mineração, o cacau e a borracha. Evidentemente a
esse processo se seguiu a indústria, mas se manteve a vinculação entre produção,
ciclos econômicos (e suas crises), a formação do Estado, a ocupação do território
e a localização das cidades. As fronteiras produtivas continuam até hoje a definir
a povoação junto com outras atividades.
Deste modo, a base da abordagem regional (a produção) e a base da abordagem
(inter)urbana (a ocupação, povoamento, relação entre cidades) estão imiscuídas
em meio à nossa própria história de formação enquanto país, não sendo possível
compreender os fenômenos “regional” e “urbano” de forma independente.
Há evidentemente um forte vínculo entre as atividades produtivas, o de-
senvolvimento e a geração de emprego e renda, ainda que essa relação não seja
determinística nem tenha sempre o mesmo sinal. Diniz (1993) propôs um indi-
cador regional vinculado ao número de empregos industriais por microrregião,
considerando o ponto e corte de 10 mil empregos industriais para se considerar uma
microrregião como Aglomeração Industrial Relevante (AIR). Monteiro Neto, Silva
e Severian (2020) complementaram, criando duas outras categorias chamadas de
Aglomeração Industrial Potencial (AIP), uma de mil a 5 mil empregos industriais
e outra de 5 mil a 10 mil.
Muitos dos processos produtivos na história do país foram fortemente pauta-
dos pelo escoamento produtivo para outros países. Da mesma forma que a crítica
de Galvão (1996) relacionada à falta de integração de infraestrutura de transporte
nacional, Santos (1977, p. 52) aponta que parte da falta de integração de nossas
redes se deve a uma estratégia de integrar cada subsistema urbano nacional ao es-
coamento produtivo para fora do país. As exportações até hoje pautam a discussão
regional e suas consequências são visíveis até hoje.
Brandão (2017) sugere tipos ideais de territórios para entendimento de nossa
realidade e apoio a ação pública. A síntese dessas categorias está no quadro 2.
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 191
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

QUADRO 2
Territórios, tipos de investimento e fatos estilizados
Tipo ideal dos investimentos em territórios predo-
Territórios Fatos estilizados
minantemente impactados e (re)definidos por:
Concentração no litoral, RMs, capitais e cidades
Forças inerciais dos fatores de aglomeração e de
Territórios tipo I médias das vantagens locacionais produtivas sobre-
urbanização
tudo na rede urbana do sul-sudeste-litoral
Tendência a se constituírem em polos isolados ou en-
Territórios tipo II Investimentos pontuais, tópicos e enclavados
claves com baixa indução do entorno e da hinterlândia
Vulnerabilidade marcantes em sua dinâmica de
Territórios tipo III Demanda e preços mundiais das commodities
crescimento
Territórios tipo IV Provisão de infraestrutura de transportes e energia Constituição de eixos de expansão e escoamento
Chão da reprodução social cotidiana, com melhoria
Territórios tipo V Impulsos das políticas sociais
das condições de vida

Fonte: Brandão (2017, p. 61).

Percebe-se que a exemplificação de enquadramento relacionados às categorias


da figura 5 se aproximam dos tipos ideais de Brandão (2017). Ainda que se considere,
em muitos casos, a indústria como a atividade básica do ponto de vista econômi-
co, como já apontava Milton Santos “a indústria é, consequentemente, cada vez
menos uma resposta à necessidade de geração de empregos” (Santos, 1977, p. 37).
Além disso, a geração de riqueza a depender do setor é pouco absorvida pelas famílias.
O quadro 3 exemplifica com os municípios do estado do Rio de Janeiro que menos
retêm a geração de riqueza pelas pessoas do território.

QUADRO 3
Relação renda familiar/PIB em municípios selecionados do Rio de Janeiro (2010)
(Em %)
Município Relação renda familiar/PIB 2010
Porto Real 2
Quissamã 5
São João da Barra 6
Campos dos Goytacazes 14
Rio das Flores 15
Angra dos Reis 16
Carapebus 16
Casimiro de Abreu 17
Itaguaí 18
Itatiaia 19

Fonte: PIB dos Municípios 2010 (IBGE).


Elaboração do autor.
192 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Os grandes empreendimentos e grandes fronteiras produtivas possuem uma


forte capacidade de alterar as atividades, a população em termos totais e seu perfil
e, em consequência, a dinâmica urbana. Muitas vezes, as redes “produtivas” de
fluxo de exportação sugerem uma importância hierárquica que, na visão urbana,
esses territórios não possuem, mesmo que às vezes tenham população compatível
com centros regionais relevantes. A figura 6 exemplifica essa situação com os laços
exportadores do ferro brasileiro.

FIGURA 6
Exportação de ferro

Fonte: Comex Stat/Ministério da Economia. Disponível em: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home.


Elaboração do autor.
Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).

Além do impacto que esse modelo gera por princípio, a alta dependência
de um só produto ou setor atrelado a preços internacionais gera oscilações que
dificultam o planejamento orçamentário. Os efeitos no orçamento local podem
ser exemplificados com o caso do município de Campos, no estado do Rio de
Janeiro, que reduziu à metade os royalties de petróleo recebidos, passando de quase
1,4 bilhão, em 2012, para pouco mais de 600 milhões, em 2015.
Além das grandes mudanças sofridas de forma abrupta no tamanho da po-
pulação, na ocupação do território, no orçamento municipal e da baixa absorção
da riqueza gerada, muitas vezes, a depender do empreendimento, outros proble-
mas sociais são gerados, como aumento da insegurança, incapacidade de prover
infraestrutura urbana no ritmo do aumento da demanda etc. Não necessariamente
os bônus da instalação de grandes empreendimentos econômicos compensam
os ônus dos problemas sociais, ao menos não para parte da população residente.
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 193
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

Nesse aspecto, uma abordagem regional poderia gerar indicadores positivos en-
quanto análises urbanas e sociais não.
Considerando que um dos objetivos fundamentais contidos na Constituição
Federal (CF) é reduzir as desigualdades sociais e regionais, observa-se então que,
se pensados de forma independente, há grande risco de a busca por um afetar
negativamente o alcance do outro.
A própria PNDR já define em seus objetivos a necessidade dessa convergência
socioeconômica, como é indicado explicitamente em seu objetivo I (Brasil, 2019),
mas a síntese do diagnóstico da PNDR tem limitações de categoria pela sua sim-
plificação muito maior que a de Brandão (2017) por exemplo, resumida no mapa
de renda (PIB e rendimento). Deve-se, portanto, avançar na conciliação dessas
abordagens, passando eventualmente pelas categorias de Brandão.
Observados esses resultados, parece que a abordagem socioeconômica, com foco
no emprego e renda, pode funcionar tanto para se verificar a economia (o regional),
quanto o urbano (em suas atividades e conexões) e o social, sendo uma variável co-
mum a essas abordagens e servindo de tradutor para que se percebam as trocas entre
essas dimensões de análise. Do ponto de vista espacial, a região polarizada parece ser
o elo entre as análises regionais e (inter)urbanas, ao ter aspectos tanto de uma análise
em rede quanto em região.

5 CONTRIBUIÇÃO A UM OLHAR URBANO-REGIONAL


A teoria dos lugares centrais de Christaller (1966) já foi um avanço na tradição es-
pacial da economia, até o momento mais focada na produção (inicialmente agrícola
com Von Thünen e depois industrial com Weber). Ao sistematizar diversos estudos
e propor um método, a teoria dá luz às bases dos estudos de rede urbana, ainda
que mantenha um foco mais econômico e centrado no paradigma da racionalidade
econômica das decisões individuais. Exatamente por esse anacronismo, do ponto
de vista urbano, é que o método parece conseguir dialogar de alguma forma com
a abordagem regional (econômica e produtiva), confirmando o ponto de partida
para uma análise, se não integrada, ao menos conjunta entre o urbano e o regional.
Não à toa a teoria dos dois circuitos econômicos de Milton Santos se funda
em parte justamente na crítica à teoria locacional de Christaller. O próprio Milton
Santos demonstrou ajustes necessários à teoria dos lugares centrais para a compre-
ensão mesmo que simplificada dos dois circuitos (figura 7). Diferentemente da
escola americana que seguiu desenvolvendo a teoria, Santos, contudo, não investiu
em ser discípulo ou aprimorador da teoria christalleriana.
194 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

FIGURA 7
Os dois circuitos da economia e a rede de centros urbanos

Fontes: Corrêa (1988, p. 78) e Santos (2004).


Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).

No exemplo apresentado (figura 7), Santos (2004), aqui reproduzido por


Corrêa (1988), demonstrou que a zona de influência de cada centro varia conforme sua
hierarquia, o que também depende do circuito ao qual se refere (superior ou inferior).
Nos centros de menor hierarquia, a zona de influência sobre o circuito inferior
é maior que sobre o superior se invertendo essa lógica e ampliando a diferença
conforme se sobe na hierarquia urbana. Esse é apenas um dos aspectos limitantes
da teoria dos lugares centrais original, na visão de Milton Santos, para aplicação
sobre países como o Brasil.
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 195
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

Para além da essencial contribuição quanto à preocupação e distinção social,


Santos, ao apontar a interpendência dos dois circuitos e relacioná-los de forma
mais relevante dentro da cidade (circuito inferior) e entre elas (circuito superior),
traz as bases de uma possível conciliação entre o urbano e o regional, passando pela
análise de rede e assim auxiliando na compatibilização entre a PNDU e a PNDR.
De forma geral isso pode ser incluído na observação dos estratos sociais verificando
sua importância e relações em cada rede.
Do ponto de vista do território, por seu comando estatal, a reflexão sobre
as competências que os municípios possuem auxilia na definição de tipologias.
Seguindo a análise constitucional, verificado o cumprimento das competências
municipais, seria possível verificar o quanto o município consegue assumir das
competências comuns entre União, estados e municípios, conforme o art. 23, e
outros trechos constitucionais, que seriam: i) zelar pela lei, instituições democráticas
e patrimônio público; ii) cuidar dos portadores de deficiência; iii) proteger o patri-
mônio histórico, artístico e cultural, as paisagens naturais e os sítios arqueológicos;
iv) proporcionar acesso à cultura, à educação, à ciência, à tecnologia, à pesquisa e à
inovação; v) proteger o meio ambiente e combater poluição; vi) fomentar a produção
agropecuária e organizar o abastecimento alimentar; vii) promover programas de
construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento;
viii) combater as causas da pobreza e marginalização, promovendo a integração
dos setores desfavorecidos; ix) registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de
direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais; e x) estabelecer
e implantar política de educação para a segurança do trânsito.
Nessas competências comuns, caberia uma distinção para ver quais mu-
nicípios (ou arranjos) assumem com maior independência ou capacidade esses
requisitos, ou verificar como as leis complementares definem o que cabe a cada
ente dentro dessas competências comuns. Mesmo não contidos no art. 23, o
turismo é referido também como uma ação compartilhada entre os três entes
no art. 180, sendo papel dos três promovê-lo e incentivá-lo como fator de
desenvolvimento socioeconômico.
Analisadas as capacidades de cumprimento das competências privati-
vas e as comuns pelos municípios, seria possível constatar em que medida
o município consegue gerir a assistência social, passando então a verificar
quais municípios que os estados e a União elegem para instalar suas estruturas
de prestação de serviços burocráticos, de uma forma geral e em temas como,
por exemplo, segurança pública (efetivo policial, delegacia, presídio, veículos
de ronda, bombeiros).
A presença dessas atividades em quantidade e qualidade e a escassez dela
em outros territórios gera um potencial atrator que pode ou não ser efetivado
196 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

redundando na centralidade da cidade (arranjo ou município). Nem toda massa,


no sentido miltoniano, é capaz de gerar fluxos efetivos, mas o fluxo necessita da
massa, da lógica gravitacional para ocorrer. Nesse sentido, caberia verificar, para
além do que já foi indicado constitucionalmente, se o município se vale de porto,
aeroporto, rodoviária, embaixada ou consulado, shopping center, bancos, correios,
banco postal, equipamento de cultura, lazer e turismo, entre outros.
Como são múltiplas as atividades econômicas e variadas sua raridade e escassez,
caberia a análise de sua distribuição entre as cidades e territórios de modo a verificar
a especialização e a diversificação de cada local, sendo este um indicativo não apenas
do papel econômico produtivo na abordagem regional, como sua responsabilidade
territorial de provisão de serviços e emprego a outras cidades dentro e fora de suas redes.
Observa-se que os centros mais importantes tendem a ter maior número
de atividades, bem como exclusividade sobre as que são mais raras. Além dessa
diferenciação geral, infere-se a partir de Santos (1977, p. 41), ao apontar que a
diferença fundamental entre as atividades dos circuitos são as diferenças tecnológicas
e organizacionais, que as categorizações de atividades (na prática viabilizadas pelas
categorias da Classificação Nacional de Atividades Econômicas – CNAE) podem
auxiliar também na identificação de distintas tipologias. Essas ações são propos-
tas por várias instituições, como Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS (Economia Criativa), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE) e Ipea (inovação e intensidade tecnológica), Observatório das
Metrópoles etc., além da própria agregação da CNAE. Há também as distinções
gerais entre atividades básicas e não básicas, nível de intensidade de mão de obra etc.
Seria possível, observando as categorias de ocupação do Censo Demográfico,
identificar aquelas mais vinculadas ao circuito inferior como serviços informais
e mais precários, serviços domésticos etc. Observando a Pesquisa de Orçamento
Familiar (POF), do IBGE, são identificados padrões de despesa familiar, conforme
o estado e a faixa de renda. Caberia avaliar a viabilidade de usar os microdados para
identificar padrões, conforme a hierarquia urbana por faixa de renda. Por sua vez, a
presença de multinacionais, como apontado por Santos (2004, p. 36), poderia ser
usada para qualificar o circuito superior – uma fonte poderia ser a Relação Anual
de Informações Sociais (Rais), ou as listas de maiores empresas.
Santos (1977, p. 39) alerta, porém, que a enumeração de cada elemento
não é uma definição adequada de cada circuito, sendo necessário para sua
definição (op. cit., p. 41) além de identificar “o conjunto das atividades num
dado contexto”, observar também “o setor populacional que está essencial-
mente ligado a ele para trabalhar e para consumir”. Santos (1977, p. 41)
destaca, contudo, que não há uma rigidez, ou seja, todos podem estar ligados
ao consumo fora do sistema ao qual pertencem. Obviamente, a classe média
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 197
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

pode transitar por padrões mais afeitos a um ou a outro circuito e, além disso,
pessoas mais ligadas ao circuito inferior podem vender sua força de trabalho,
eventualmente, ao sistema superior.
Para identificar os circuitos de forma mais pragmática e útil para a ação
pública, ainda que sob o risco de se estar deturpando a pureza da teoria, a base
da Rais, desde que numa análise preliminar identificada e cruzada com outras
(base de agricultores familiares, Cadastro Único, beneficiários de políticas sociais
como Benefício de Prestação Continuada – BPC, bolsas e auxílios diversos, rendas
de aposentadorias e pensões), pode auxiliar na compreensão desses movimentos
e dinâmicas, podendo caracterizar territórios e vínculos interurbanos em sua
distribuição e peso, a cada circuito, bem como sua dinâmica intra e interurbana.
Questões como rotatividade, estabilidade, informalidade permeiam as conclusões
dessas potenciais análises. Dados do Censo Demográfico também permitem
análises mais específicas sobre a informalidade e categorias de trabalho mais
vinculados ao circuito inferior. Por sua vez, o próprio Censo Demográfico ou
a Rais podem auxiliar na identificação do trabalho formal e da administração
pública, em específico. O PIB pode ser usado também como proxy de intensidade
de emprego por setor e subsetor. O perfil de pequenas empresas e tempo de vida
pode ajudar também no entendimento.
A partir desse detalhamento e da qualificação das atividades, seria possível
identificar municípios/arranjos que não cumprem as competências básicas mí-
nimas, aqueles que cumprem apenas o básico, aqueles que cumprem mais que
o básico e aqueles que ainda ofertam a outros municípios/arranjos. Em tese,
espera-se mais conforme for a hierarquia do município/arranjo e consequente-
mente sua responsabilidade territorial, cabendo verificar também se as atividades
que desenvolvem são consumidas apenas em sua (sub)rede própria ou se também
ofertam a outros subsistemas urbanos de outras redes, incluindo a mundial.
Cabe distinguir a oferta de serviços/produtos propriamente urbanos, ou
a exportação/importação (interna ou externa ao Brasil) de serviços/produtos
fruto de sua atividade produtiva, bem como identificar possíveis relações entre
elas, podendo fazer parte de uma cadeia produtiva, mas não necessariamente
de relações interurbanas. Assim, assume-se um papel relevante na economia,
mas pouco significante na rede urbana propriamente dita, ou seja, sem exercer
influência nesse sentido.
Questionamentos devem permear essa análise. A atividade econômica passa
pela rede sem desenvolvimento urbano local? Há transbordamento, efeito mul-
tiplicador ou é apenas um enclave? Quais as externalidades positivas e negativas
conforme o papel econômico/regional que cada rede desempenha na relação entre
seus nós? Considera-se que daí advém o elo para conectar a PNDU com a PNDR na
198 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

busca por uma tipologia integrada/combinada entre as duas dimensões, a regional


econômica e a urbano-social. Nesse sentido, a desigualdade de renda e a pobreza
prejudicam, além da perspectiva socioeconômica de emprego e renda, a própria
economia local, ao não converter em consumo e investimento local o rendimento
familiar auferido – nesse aspecto, produz efeito similar à concentração de renda
e desigualdade social.
Na criação de parâmetro comparativo entre redes encabeçadas por mesma
hierarquia urbana, importa relativizar a área de influência da rede, já que em
tese trata-se do atendimento e cobertura no espaço. Nesse sentido é impor-
tante entender o padrão de dispersão da população em cada rede. Além disso,
a população pulverizada sem identificação pontual de sua concentração no
espaço sugere uma oferta diferenciada de serviços mais baseada em logística
de distribuição do que na definição de pontos ótimos de implantação de in-
fraestrutura construída fixa. Como atendimento médico em domicílio, trans-
porte escolar rural, uso das telecomunicações em lugar do transporte quando
possível, nesse caso a infraestrutura física essencial seria exatamente uma boa
rede de telecomunicação.
Como última contribuição deste ensaio, destaca-se que auxiliar em uma
abordagem útil à consecução, análise, avaliação e aprimoramento da ação pú-
blica implica sugerir uma forma pragmática de olhar a questão regional-urbana.
Pensar uma agenda urbana compatível com a integração regional e o policentrismo
pressupõe compreender os papéis urbanos (e sociais) e regionais (econômicos,
produtivos) dos agentes econômicos. Mesmo de forma simplificada, é essencial
haver a compreensão do que é pertinente a cada agente, entendendo também as
sobreposições e ações combinadas entre eles. As vulnerabilidades em um território
podem ter diversas dimensões e podem estar mais vinculadas ao perfil de deter-
minado agente em específico. Deste modo, alguns municípios, arranjos ou redes
podem ter firmas, famílias ou o próprio estado (aqui entendido como o governo
local) mais fragilizados, gerando situações diversas para o território em análise.
Observando a figura 8, uma combinação “saudável” e ideal seria a existên-
cia de, ao mesmo tempo, uma situação fiscal (do Estado, governos local), social
(das famílias) e financeira (das firmas) “confortável”, que gerasse bons frutos para
o desenvolvimento urbano local (incluindo a redução da desigualdade social)
e para o desenvolvimento regional (incluindo a integração e a redução da desi-
gualdade regional), resultando em uma situação socioeconômica de toda a rede
(território) perceptivelmente adequada. Deste modo haveria uma distribuição mais
justa e equânime dos ônus e bônus que as relações urbano-regionais produzem.
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 199
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

FIGURA 8
Relação e situação de agentes e território
“Estado” (governo local) Firmas

Território

Situação Situação
fiscal financeira
Situação
da rede

Situação
social

Famílias

Elaboração do autor.

As escalas e abordagens do território envolvem diversas funções, sendo a mais


basilar e fundante a da moradia (residência, habitação), na qual se envolvem todos
os agentes na sua produção para o desfrute das famílias, como sugerido na figura 9.
Ela é a base para a definição de um município, já que distingue os residentes de cada
lugar. Essa relação se amplia em complexidade e extensão ao envolver a base das
relações socioeconômicas sintetizada pelo trabalho, a unânime e mais importante
dimensão para se compreender as relações de arranjo.
A rede urbana mais imediata, para além do arranjo (que seria a unidade
urbana mínima) envolveria dois serviços básicos: a saúde e a educação. Embora a
educação seja usada pelo IBGE, por exemplo, para a definição do próprio arranjo,
a educação mais especializada e superior não estabelece esses laços, passando a ser
mais definidora da relação de rede junto com a saúde de média e alta complexidade,
não presentes em todos os municípios nem arranjos. Essa é a rede urbana mais
próxima e imediata, ainda que ultrapasse o limite dos arranjos. Uma ampliação
dessa rede de relações poderia ser feita para acrescentar à rede urbana a adjetiva-
ção de sustentável, incluindo as noções de consumo de recursos e velocidade de
absorção dos resíduos.
Poderiam ser incluídas outras dimensões como a própria questão alimentar,
que está na base da lógica desenvolvida por Von Thünen e poderia ser mapeada via
absorção da produção agropecuária local ou da rede mais imediata; mas, no mo-
mento e como sugestão construtiva apenas para se entender a lógica da abordagem,
200 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

atém-se ao saneamento (água, esgoto, resíduos sólidos etc.) e à energia.


A ideia seria não apenas entender a rede por meio do fluxo de pessoas fornecendo
serviços e produtos ou pessoas em busca desses serviços e produtos, que está na
base da teoria christalleriana, mas também sob uma ótima mumfordiana perceber
os limites da metrópole (ou no caso aqui da rede urbana mais imediata) em sua
capacidade de consumir recursos e processar seus resíduos. A sustentabilidade
estaria em ter “tentáculos” menos extensos e em menor quantidade. A construção
feita até aqui pode ser representada pela figura 9.

FIGURA 9
Saneamento, energia e rede urbana sustentável na relação agentes e território
“Estado” (governo local) Firmas

Território

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Rede urbana
sustentável
Famílias

Elaboração do autor.

Interpretando os diagramas apresentados, percebe-se que até aqui foram


abordadas dimensões que envolviam conjunta e diretamente os três agentes no
território, como sugere a interseção no diagrama de Venn da figura 9. Avançando
para uma rede de influência, surgem relações restritas a apenas um dos agentes ou
a apenas uma relação entre dois deles.
Considera-se assim que o Estado lança seu comando estatal no território,
as firmas promovem seu comando empresarial e as famílias entram com sua
participação na sociedade. Os três aspectos podem ser vistos sob escalas espaciais
diversas dentro de territórios que podem ir de um bairro a redes complexas e
mundiais com comando e participações envolvendo cidades em todos os cantos
do planeta. O Estado se relaciona com as famílias por meio de seus serviços às
pessoas físicas e com as firmas por seus serviços às pessoas jurídicas, enquanto
as firmas se relacionam com famílias na prestação e provimento de produtos e
serviços (figura 10).
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 201
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

FIGURA 10
Fluxos da visão territorial na relação agentes e território
“Estado” (governo local) Firmas

Território

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“Visão” Territorial

Famílias

Elaboração do autor.

Constata-se que se avançou do urbano mais básico para uma rede urbana e
de influência, ainda muito centrada no urbano e nas relações de rede por ele dire-
tamente geradas com base na ótica christalleriana de busca por serviços e produtos
ou deslocamento para o trabalho. Também já foram incluídas no último passo, as
cadeias de comando (estatal e empresarial) que podem ser vistas como um início de
transição da ótica da urbana para a regional (econômica). A última “extensão”
de temas (figura 10) continua nessa direção, incluindo a compreensão do fluxo de
cargas interno e externo (importação e exportação) pelas firmas, a comunicação
geral e fluxo também de cargas dos correios pelo Estado, e os fluxos de deslo-
camento gerais da população por motivos além dos já focados. Apesar de já ter
perdido a relação sempre tripartite que permeia até a rede urbana sustentável, até
aqui ainda se tratam de relações eminentemente territoriais, mas é possível avançar
para incluir como economicamente são financiadas essas atuações dos agentes na
transformação do território.
O Estado pode se autofinanciar por meio de transferências e financiamentos
entre governo central e locais, as firmas por meio de si mesmas e seus bancos, e as
famílias de forma direta pelas vias solidárias e alternativas de bancos locais e populares.
Entre os agentes o Estado tributa e, com isso, financia e fomenta as firmas por um
lado e tributa e transfere para as famílias por outro. Na relação das firmas (bancos e
instituições financeiras) com as famílias, enquanto os bancos lucram, as famílias se
financiam, podendo se endividar.
202 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Por fim, nessa estrutura de entendimento surgida da situação (fiscal, finan-


ceira e social) dos agentes numa visão urbana, supõe-se poder chegar a uma visão
mais regional captando as atividades econômicas, produção de riqueza e padrão de
vida e despesas das famílias, como sugere a síntese de todos os passos explicados na
figura 11. Essa visão pretende contribuir na conciliação entre o desenvolvimento
urbano e o regional por meio da abordagem de rede.

FIGURA 11
Do desenvolvimento urbano ao regional na relação agentes e território
“Estado” (governo local) Firmas

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Desenvolvimento Regional

Famílias

Elaboração do autor.

A partir dessa abordagem são identificados entre os agentes aqueles estratos


mais vulneráveis que em geral necessitam de maior enfoque das políticas públicas
na redução das desigualdades. A noção apresentada no início da proposta (a si-
tuação fiscal, financeira e social) serve de norte para balizar as dimensões a serem
analisadas, nomeadamente, distinguir os governos locais com situação fiscal mais
frágil, as firmas em situação financeira mais delicada, e as famílias em situação
social mais vulnerável. Há pontos de corte tradicionais para isso, mas sugere-se
usar quebras naturais (jenks) para cada escala de análise, permitindo assim que
a própria realidade encontrada no universo de dados atuais indique quais são as
situações mais preocupantes.
Os estratos não se atêm apenas ao recorte econômico (fiscal, financeiro e de
renda). Governos locais por seus perfis regionais e de governança ou pela responsabi-
lidade territorial que assumem sobre outros territórios em função de sua hierarquia
na rede podem isoladamente ou em cluster se vincular a situações mais fragilizadas.
Assim como determinados setores, portes e mercado nacional/internacional de firmas
bem como sua inserção regional também podem ser usados como identificadores
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 203
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

de estratos. Por sua vez as famílias além da essencial distinção de classes,3 por seu
perfil racial/étnico, de gênero, etário, de domicílio (rural ou urbano) ou mesmo
cultural, podem estar submetidos a determinadas vulnerabilidades.
A partir de todo esse constructo, a tipologia de rede poderia incluir análise de
sua variação em tamanho e complexificação, além de usar os critérios topológicos
de grafo das relações de centralidade e atratividade apontado de forma geral sua
macrocefalia, saltos hierárquicos, bem como comparando realidade com os tipos
ideais trazidos da literatura. Além disso caberia distinguir as idiossincrasias regionais
para além das hierárquicas de cada subsistema.

6 ENCAMINHAMENTOS INICIAIS À GUISA DE CONCLUSÃO


Pode-se interpretar, a partir de conclusões de Santos (1977, p. 53), duas grandes pre-
ocupações sobre a configuração da rede urbana nacional: sobra rede real dendrítica e
falta tanto o estímulo quanto a análise com foco heterárquico (as relações horizontais
para além das hierárquicas). Nesse sentido caberia almejar: i) uma situação social
que se valesse de menor desigualdade evitando que os circuitos “entrem em curto”;
ii) uma atividade produtiva mais integrada, evitando enclaves; iii) um território que
consiga cumprir com sua responsabilidade, evitando o esgotamento de sua capa-
cidade; e enfim iv) uma rede urbana mais equilibrada sem que seus “tentáculos” se
estiquem demais, se espraiarem demais e tenham também que acumular provisões
de serviços que deveriam ser supridas em escalas mais locais.
Se de um ponto de vista espacial o policentrismo reduz a desigualdade regional,
distinguir a vulnerabilidade dentro de estratos de cada agente refere-se a uma análise
da desigualdade social. De fato, os ônus e bônus são apropriados de forma diversa
por cada estrato. Ao identificar-se essa diferença, é possível definir tipologias mais
adequadas, tornar viável uma política mais assertiva para reduzir as desigualdades
internas a cada agente, bem como reduzir a fragilidade do território.
A vulnerabilidade é uma categoria fundamental para a compreensão dos pro-
blemas aqui apresentados. A polissemia do termo, entretanto, pode dificultar sua
compreensão prática para análise. Conforme Costa et al. (2018, p. 10) apontam, a
partir de outros autores, existem diversos sentidos para a vulnerabilidade da pobreza
monetária à noção de bem-estar e qualidade de vida. Os autores sintetizam, como
determinantes dessas questões, a disponibilidade de serviços públicos; a qualidade
do meio ambiente; ou, ainda, os graus de liberdade individual e política que uma
sociedade oferece. Essa vulnerabilidade deve ser entendida como fruto da desigualdade
no sentido de Therborn (2011, p. 21-22) em suas dimensões vital (sobrevivências),

3. Santos (2004, p. 359) é explícito ao considerar a classe média como o elo entre os circuitos.
204 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

existencial (liberdade) e de recursos (riqueza, renda, educação, cultura, contato,


poder, oportunidades).
O entendimento distinto de cada agente é essencial nesse sentido. Ter a base
de atividades econômicas de um município ancorada quase que exclusivamente em
empregos públicos estáveis pode ser uma vulnerabilidade da municipalidade por sua
falta de base fiscal, mas é uma garantia para as famílias. Da mesma forma, ter altos
salários na iniciativa privada pode ser bom para as famílias, mas pode ser uma alta
carga para as firmas, ainda que maior renda geral da população gere mais demanda
por seus produtos. Alta carga tributária pode ser bom para o governo local, mas
diretamente pode ser ruim para as famílias e as firmas, ainda que elas se valham da
prestação de serviços e produtos ofertados pelo Estado. Flexibilidade de trabalho
pode ser ótimo para as firmas, mas pode ser ruim para as famílias e assim por diante.
Desenvolver uma tipologia que identifique o equilíbrio de rede apontando sua
capacidade de corresponder à responsabilidade territorial (prover serviços a outros
territórios da rede) e à integração produtiva (ser necessário à cadeia), resultando
numa situação social (condição e qualidade de vida) satisfatória, sustentável e
resiliente, considera-se ser o cerne de uma proposta útil ao papel do Estado de mo-
nitorar, avaliar e aprimorar suas políticas para o desenvolvimento aqui preconizado.
A partir de uma capacidade suficiente de analisar o território nos termos aqui
indicados é possível ter respostas regionalizadas e categorizadas para questionamen-
tos essenciais para a efetividade das políticas públicas como as descritas a seguir.
1) É preciso equilibrar a rede?
2) Aumentar a capacidade de prover serviços?
3) Integrar-se melhor às cadeias produtivas?
4) Propiciar melhores oportunidades de trabalho?
5) Para equilibrar a rede é preciso promover melhorias urbanas?
A abordagem realizada aqui e suas dimensões sugeridas dão margem a diversas
tipologias. Diante da necessidade pragmática de se trabalhar com um número mais
viável para aplicação de políticas, pode-se, a partir dessa diversidade, construir as
devidas categorias com a vantagem de se estar ciente sobre o que se está agregando
(perdendo), compreendendo a heterogeneidade “aceitável” para a ação de governos
dentro de cada categoria. Deste modo, deixam-se claras as limitações e externali-
dades de se dar um mesmo remédio para problemas distintos, tendo, desde modo,
conhecimento dos possíveis efeitos colaterais a cada um.
Contribuições para uma Agenda Urbana de Integração Regional: Bases para | 205
Interpretação e Tipologia de Rede Urbana para um Brasil mais Policêntrico

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CAPÍTULO 8

POLICENTRALIDADE NOS GRANDES AGLOMERADOS URBANOS


BRASILEIROS ENTRE 1980 E 2010
Cassiano Ricardo Dalberto1
Pedro Amaral2

1 INTRODUÇÃO
Em meio à ampla e diversa literatura sobre economia urbana e regional das últimas
décadas, duas importantes noções ganharam espaço: as críticas aos modelos baseados
em estruturas espaciais monocêntricas, considerados cada vez mais defasados para
explicar a estrutura econômica no espaço; e o reconhecimento de que a compreensão
das unidades espaciais não se restringe às suas delimitações político-administrativas.
Em contraste à abordagem monocêntrica,3 desponta a ideia de policentrismo,4
em que a primazia de um centro no espaço passa a ser disputada, e mesmo compar-
tilhada, com outros núcleos, seja no nível intraurbano, seja no nível intrarregional,
de modo que a organização das atividades e sua articulação espacial se tornam mais
complexas e multifacetadas.
No que tange ao extravasamento dos limites cartográficos tradicionais, há que
se ressaltar a necessidade de considerar os vínculos funcionais dos centros urbanos
com seus respectivos territórios adjacentes. Nesse sentido, constructos teóricos
como cidade-região, mercado de trabalho local e região funcional (RF) têm povoado
os estudos que visam enfatizar tais vínculos.
Na interseção entre esses elementos há a possibilidade de caracterizar o poli-
centrismo em sua dimensão relacional (ou funcional), explorada neste capítulo. Em
uma sociedade de fluxos, afinal, é cada vez mais importante não limitar a análise
de tal fenômeno ao seu aspecto estrutural/morfológico.

1. Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: <[email protected]>.


2. Professor no Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). E-mail: <[email protected]>.
3. Cujas origens podem ser remetidas à obra de Thünen (1826; 1966), e posteriormente expandido no campo da
economia urbana pelo trabalho de Alonso (1964).
4. Em termos de fundamentação teórica, a policentricidade passa a ser definida de modo mais preciso em estudos como
os de Hartwick e Hartwick (1974), Fujita e Ogawa (1982) e Sasaki (1990).
210 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Compreender o fenômeno do policentrismo é importante por diversos motivos.


O conceito tem sido enfatizado na literatura regional em sua dimensão normativa,
em que frequentemente é entendido como meio para elevação da competitivi-
dade e da coesão bem como da redução de disparidades entre regiões e cidades
(Meijers, Waterhout e Zonneveld, 2007). Tal entendimento também consta
na agenda do European Spatial Development Perspective, documento elaborado
para o Conselho de Ministros de Planejamento Espacial da Comissão Europeia
(EC, 1999), no qual a promoção de um sistema urbano policêntrico é um dos
meios elencados para se alcançar um desenvolvimento regional mais equilibrado e
sustentável. Trata-se, portanto, de tema relevante para o atingimento dos Objetivos
de Desenvolvimento Urbano Sustentável (Odus).5
A validação dessas conexões entre o policentrismo e suas possíveis vantagens,
entretanto, carece de investigações específicas a cada contexto. Entre essas está,
naturalmente, a necessidade de mensurar e avaliar as dimensões desse policentris-
mo, a fim de retratar sua ocorrência e evolução no tempo e no espaço bem como
fornecer substrato para análises futuras que visem compreender suas implicações
socioeconômicas e fornecer direcionamentos para a formulação e a avaliação de
políticas públicas. Tem-se, dessa forma, que a centralidade do sistema urbano
é um tema fundamental a ser investigado no contexto da Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano (PNDU).
Nesse sentido, este capítulo busca qualificar a ainda incipiente investigação sobre
o policentrismo no Brasil. O ponto de partida, para tanto, é definir a dimensão espacial
a ser considerada para tal análise. Tal ação envolve abdicar dos recortes territoriais
comumente utilizados no país, seja no âmbito das políticas públicas, seja na litera-
tura acadêmica. Isso porque esses recortes tendem a coincidir com as fronteiras de
unidades políticas, ou então com regiões definidas segundo critérios com diferen-
tes níveis de arbitrariedade – como as regiões metropolitanas, cujas delimitações
utilizam critérios políticos mais variáveis, e as micro e mesorregiões (ou regiões
geográficas imediatas e intermediárias), que estão circunscritas às unidades federativas.
Além disso, se valem de limiares pré-determinados (como número mínimo/máximo
de municípios e tamanho dos fluxos pendulares).
Buscando um recorte que esteja associado à integração de fenômenos so-
cioeconômicos no espaço regional, opta-se aqui pelas RFs desenvolvidas por
Dalberto (2018), cuja delimitação retrata a integração dos mercados de trabalho
regionais, através de informações sobre movimentos pendulares dos trabalhadores.
O recorte em questão se aproxima, assim, de abordagens como as das labor market
areas, utilizadas em países como os Estados Unidos como recorte para o levantamento

5. Nota do organizador: os Odus foram definidos no processo de construção da proposta da PNDU, que vinha sendo
conduzida no Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR), durante a gestão 2019-2022.
Policentralidade nos Grandes Aglomerados Urbanos Brasileiros entre 1980 e 2010 | 211

de informações estatísticas e a definição de políticas de trabalho, das travel to work


areas, que cumprem tal função no Reino Unido, e mesmo das diversas definições
formais de regiões funcionais realizadas pela maioria dos países da Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD, 2002).
De forma mais específica, o foco desta análise se concentra sobre as 26 maiores
concentrações urbanas do país, que respondem por fração significativa da popula-
ção e da produção nacional. A partir de tais concentrações, busca-se verificar em
que medida suas respectivas RFs têm se tornado mais ou menos monocêntricas
no período considerado entre 1980 e 2010. Procura-se, assim, observar se as redes
urbanas regionais têm se desenvolvido de maneira mais dependente do núcleo ou
com tendências a uma estrutura mais policêntrica. As estatísticas que embasam
tais análises derivam dos métodos de análise de redes, utilizando os dados de
movimentos pendulares.
Entre os resultados, observa-se um movimento de redução da preponderância
do núcleo principal em favor de centros secundários, de modo a sugerir menor
monocentricidade em termos funcionais – isto é, levando em consideração as in-
terações entre os municípios dadas pelos fluxos pendulares. Todavia, em contraste
a esse movimento, observa-se uma estrutura geral mais centralizada dos fluxos ao
longo do tempo, tendendo a se concentrar ao redor de um ou poucos municípios.
A soma desses resultados indica que, mesmo com alguma tendência policêntrica,
esta tem ocorrido em termos concentradores, em que o ganho de importância dos
centros secundários tem se dado mais em detrimento de outros municípios de
menor porte na hierarquia urbana regional do que do núcleo da RF.

2 POLICENTRICIDADE NAS REGIÕES FUNCIONAIS BRASILEIRAS


A preponderância econômica e populacional dos grandes centros urbanos é objeto
de ampla investigação na literatura das ciências sociais, seja no âmbito empírico,
seja no teórico. No Brasil, São Paulo é o caso de maior destaque, concentrando
10,85% do produto interno bruto (PIB) e 5,9% da população do país, em um
território que representa apenas 0,018% deste. Essas participações já foram ainda
maiores: em 1970, 19,6% do PIB era gerado no município, e, em 1980, 7,1% da
população nacional nele vivia.6
O movimento de relativa desconcentração produtiva de São Paulo, bem como
de outros grandes centros e regiões brasileiras, é bem documentado em trabalhos
como os de Diniz (1993; 1995), Cano (1997), Lemos et al. (2003), Silveira-Neto
(2005) e Simões e Amaral (2011). Não obstante as possíveis qualificações desse
movimento de dispersão – como seu caráter espacialmente restrito ao polígono

6. As informações a respeito da população e do PIB foram obtidas do Ipeadata. Disponível em: <http://www.ipeadata.
gov.br/Default.aspx>.
212 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

descrito por Diniz (1993) –, pouca atenção tem se destinado a averiguar em que
medida ele se traduziu em uma configuração urbana mais ou menos policêntrica
no nível regional, especialmente no que tange à sua dimensão funcional.
Garcia e Simões (2013) propõem uma metodologia para identificar centros
urbanos que possam potencializar o desenvolvimento econômico no território,
em direção a um maior policentrismo da hierarquia urbana nacional e regional.
Os autores enfatizam indicadores morfológicos, isto é, que retratam característi-
cas dos municípios tomados individualmente, mas também adicionam à análise
indicadores funcionais, ou seja, de fluxo intermunicipal, como os movimentos
pendulares e de emigração. Tal trabalho, entretanto, não permite averiguar em que
medida esse policentrismo já é ou não uma realidade do tecido urbano do país,
tampouco possibilita comparações entre os diferentes sistemas urbanos regionais.
Pessoa (2011), por outro lado, elabora uma tipologia de sistemas urbanos
brasileiros, enquadrando-os em três possíveis casos de policentrismo, a depender do
porte urbano associado ao fenômeno: região de cidades-médias, região metropolitana
e região intermetropolitana. Os critérios utilizados para classificar um caso como
policêntrico não são claros, mas a desconcentração da distribuição demográfica
é um ponto que ancora a constatação feita pela autora de que o policentrismo é
uma tendência no país – constatação esta que não permite qualificação quanto a
períodos e regiões específicas, tampouco quanto ao caráter funcional dessas relações.
Apesar de a desconcentração populacional e da econômica serem, em
grande medida, reflexo de um processo de transição de estruturas monocêntri-
cas para policêntricas, não se pode tratar aquela como condição suficiente para
caracterizar esta. Cidades-dormitório, por exemplo, podem aglomerar grandes
contingentes populacionais nas vicinalidades de grandes centros urbanos, mas
dificilmente essa situação significa um movimento em direção ao policentrismo,
dado o caráter eminentemente subordinado com que essas localidades se inserem
na estrutura urbana regional.
Como esta análise se dará sobre o recorte das 26 maiores regiões funcionais
brasileiras, cabe destacar que essas representam territórios caracterizados pela
intensidade interna dos fluxos pendulares, além de serem marcadas pela presença
de grandes centros urbanos que as polarizam economicamente. Tais constatações
demandam análises que possibilitem compreender as dimensões desse segundo
fenômeno levando em consideração o primeiro. Metodologicamente, isso implica
mensurar a capacidade de atração de fluxos pendulares e a centralidade de cada
um dos municípios que compõem as redes de fluxos das regiões funcionais, bem
como obter tais medidas agregadas no nível de cada rede.
É importante salientar que a policentricidade é um fenômeno espacial mul-
tiescalar, isto é, a observação de sua validade empírica depende da escala geográfica
Policentralidade nos Grandes Aglomerados Urbanos Brasileiros entre 1980 e 2010 | 213

em análise. Desse modo, ela pode ser objeto de interesse tanto no nível intraurbano
quanto de uma região metropolitana, ou mesmo de uma região maior, delimitada
segundo outros critérios. No presente caso, o objeto de análise – a RF – é definido
de antemão, de modo que as conclusões e os resultados oriundos dessa definição de
unidade de análise se restringem à sua adoção. A ideia, assim, é a de verificar em
que medida a policentricidade é um fenômeno pertinente às regiões funcionais
brasileiras e como estas podem ser diferenciadas em relação a tal aspecto.
Outro sentido em que é necessária uma pormenorização da policentricidade
diz respeito à distinção entre seus perfis morfológico e funcional. Enquanto em sua
dimensão morfológica a avaliação se dá em termos dos atributos dos municípios
da rede, no quesito funcional o interesse está nas conexões existentes entre estes –
como é o caso neste trabalho, em que tais vínculos são dados pelos movimentos
pendulares entre os municípios que compõem a RF.

3 METODOLOGIA
A abordagem metodológica se divide em duas etapas. Inicialmente são utilizados
métodos que visam mensurar a centralidade dos nós, no caso, municípios, da
rede urbana de cada RF, a fim de dimensionar suas respectivas preponderâncias
em termos de fluxos pendulares. Em seguida, o policentrismo de cada região será
mensurado em duas dimensões: a importância relativa do centro principal vis-à-vis
o centro secundário; e o grau de centralização de sua estrutura geral de fluxos, dada
pelas medidas de centralização de redes.

3.1 Tipos de centralidade


Em análise de redes, existem diferentes medidas de centralidade, que visam men-
surar a preponderância de um nó (município) dentro da rede – aqui, as RFs –,
segundo critérios distintos. Entre as abordagens mais comuns na literatura, desta-
cam-se as centralidades do tipo in-degree e eigenvector. As descrições e formas de
mensuração dessas medidas são tratadas a seguir de forma resumida, tomando por
base Wasserman e Faust (1994).

3.1.1 In-degree
O degree representa o número de conexões (fluxos pendulares) que cada município
tem com outros municípios da rede, sem distinguir os fluxos por suas direções.
Para tanto, tal indicador pode ser desdobrado em in-degree e out-degree, que men-
suram, respectivamente, o número de fluxos que um município recebe e envia.
Como o interesse primário é mensurar a centralidade de um município em termos
de sua preponderância na rede de sua RF, o in-degree é mais adequado, por repre-
sentar o poder de atração de fluxos de um dado elemento dessa rede. Assim, quanto
214 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

mais elevado for seu valor na estatística, maior a sua capacidade de polarização dos
fluxos pendulares da RF. O in-degree de um município pode ser expresso por
. (1)
Em que representa a quantidade de conexões da rede direcionadas
para o município . Cabe destacar que as conexões, neste caso, são ponderadas
pela dimensão dos fluxos relativos à população do município.

3.1.2 Eigenvector
Tal medida consiste em mensurar o prestígio (influência) do nó que, neste caso,
corresponde ao município. Em tal abordagem, a influência é dada pelas conexões
de uma municipalidade com outras localidades bem conectadas – isto é, os mais
influentes são aqueles que se conectam a outros locais que possuem um elevado
número de conexões.
Definindo-se como a medida de prestígio do município i e tomando-se
a i-ésima coluna da matriz de adjacências da rede – em que constam os municípios
cujos fluxos se direcionam ao município i –, multiplicam-se os valores dessa coluna
pelo prestígio dos demais municípios da rede, de modo a obter uma combinação
linear para mensurar o prestígio de i.
PR (ni ) = x1i PR (n1 ) + x2i PR (n2 ) + ⋯ + xgi PR (ng). (2)
Assim, se o município n2 for escolhido por e , de modo que
e as demais entradas na segunda coluna da matriz de adjacências sejam zero,
então o valor do prestígio para tal ator é dado por , isto
é, a soma do prestígio dos atores que se conectam a ele.
Com isso, existirão equações (2) interdependentes, formando um sistema
com incógnitas. Definindo-se a matriz de adjacências como X e o conjunto de
índices de prestígio como um vetor = ( ), ( ),… , , o sistema
de equações pode ser escrito como
. (3)
Rearranjando os termos de modo que , sendo I uma matriz
identidade de dimensão g, e p e 0 vetores de comprimento g, tem-se uma equação
característica, em que p é um autovetor (eigenvector) de associado ao maior
autovalor (eigenvalue) normalizado, que assume valor 1.
Uma maneira de solucionar esse sistema é através de uma padronização
em , de modo que o somatório de cada coluna seja 1. O maior autovalor dessa
matriz assumirá o valor de 1, e o autovetor p a ele associado conterá os índices de
prestígio dos nós da rede.
Policentralidade nos Grandes Aglomerados Urbanos Brasileiros entre 1980 e 2010 | 215

. (4)
Dessa maneira, o nó mais bem conectado da rede (em termos de influência,
isto é, de conexão com outros nós bem conectados) apresentará uma centralidade
do eigenvector de valor 1, enquanto os demais nós apresentarão valores inferiores
a esse limite.

3.2 Concentração dos fluxos


A partir da mensuração dos graus de centralidade dos municípios, outras métricas
podem ser utilizadas para caracterizar cada RF sob diversos aspectos. Dado o presente
interesse em investigar a dimensão da policentricidade dessas regiões, serão utilizados
dois indicadores a fim de mensurar tais aspectos. O primeiro deles consiste na razão
entre os graus de centralidade do núcleo de cada região funcional f e seu segundo
município mais preponderante em cada período t, ou simplesmente

, (5)
em que RC representa a razão de centralidades; é a medida de centralidade g
(in-degree ou eigenvector) para o município i no período t, sendo i o município de
maior centralidade da RF; e é a medida de centralidade g para o município j
no período t, sendo j o segundo município de maior centralidade da RF.
Ao verificar se tal razão aumentou ou diminuiu ao longo do tempo, pode-se ter
uma ideia se houve um afastamento ou uma aproximação de um modelo policêntrico.
Caso o valor da razão aumente (diminua), tem-se que o centro principal ganhou
(perdeu) poder de atração em relação ao centro secundário (muito embora este não
necessariamente seja o mesmo ao longo do tempo). Além disso, tal métrica permite
comparar as regiões funcionais em termos de suas policentricidades.
A segunda maneira de se mensurar o grau em que uma dada RF é mais ou
menos monocêntrica será através das denominadas medidas de centralização de redes.
Essas visam atestar a dimensão em que uma dada rede é organizada ao redor de um
ou de poucos nós, isto é, quão centralizada é sua estrutura. A centralização pode
ser aos indicadores de centralidade anteriormente descritos e, segundo Wasserman
e Faust (1994), sua forma geral pode ser expressa por
, (6)

em que é a centralização da medida de centralidade g, é a centralidade g mensurada


no nível dos vértices (municípios) v, sendo o município com a maior medida
dessa centralidade na rede. Assim, o numerador da centralização é uma medida da
soma dos desvios das n centralidades individuais em relação à centralidade máxima.
216 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Tal medida é normalizada pelo máximo teórico da centralização daquela rede, dada
pelo valor que a soma dos desvios assumiria caso apenas um município central fosse o
destino de todos os fluxos dos demais n-1 municípios da rede. Quanto maior for ,
mais centralizada é a rede, de onde se depreende que ela também é mais monocêntrica.
Embora não sejam sinônimos exatos, modelos monocêntricos tendem a ser,
por sua própria natureza, mais concentradores de fluxos, uma vez que sua dinâ-
mica econômica está mais associada a um único centro. Neste caso, a medida de
centralização que será considerada a principal para análise do caráter monocêntrico
das regiões funcionais será o in-degree, ao passo que o eigenvector será interpretado
como medida complementar. A escolha pelo in-degree se dá pelo fato de ser a medida
mais comumente utilizada para mensurar o poder de atração de fluxos dentro da
rede, aproximando-se da ideia de monocentricidade funcional.

3.3 Bases de dados e o recorte das regiões funcionais


As informações dos fluxos pendulares têm origem nos Censos Demográficos realiza-
dos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para os anos de 1980,
2000 e 2010.7 O recorte utilizado abrange os indivíduos com 14 anos de idade ou
mais que trabalham e/ou estudam em municípios diferentes daquele em que residem,
caracterizados, dessa forma, como pendulares. O critério de 14 anos foi definido com
base na legislação existente, a qual prevê que a partir de tal idade se pode trabalhar
na condição de aprendiz.8
Uma limitação em relação a tais informações está no fato de não permitirem
distinguir qual a frequência desses movimentos, de modo que os dados abrangem
também casos de indivíduos que podem trabalhar em locais muito distantes de suas
residências, realizando o deslocamento poucas vezes por semana, ou mesmo por
mês – movimentos que muitas vezes não são caracterizados como pendulares, cuja
definição envolve a frequência diária (ou próxima a isso) do deslocamento.9 Apenas
o Censo 2010 possui uma variável binária que possibilita verificar se a pessoa retorna
diariamente para casa, mas optar por um recorte que abranja apenas tal situação
geraria uma incompatibilidade de critérios com os casos de 1980 e 2000, além de
possivelmente excluir pendulares que trabalham em frequência intermitente.
De posse de tais dados, é possível construir matrizes de origem e destino, cujas
células contêm o número de fluxos entre cada par de municípios, haja vista que cada
indivíduo representa um fluxo. Tais fluxos, posteriormente, são ponderados pela

7. O Censo 1991 não permite identificar os movimentos pendulares, pois seu questionário não possuía campo abran-
gendo a cidade de trabalho do indivíduo recenseado.
8. Art. 6o, inciso XXXIV da Constituição Federal; e art. 403 da Consolidação das Leis do Trabalho.
9. Para uma discussão em relação ao conceito de pendularidade, ver Moura, Branco e Firkowski (2005).
Policentralidade nos Grandes Aglomerados Urbanos Brasileiros entre 1980 e 2010 | 217

população do município de origem, de forma a tratá-los em termos de intensidade


dos movimentos, não de seus valores absolutos.
O recorte geográfico utilizado é o das RFs, delimitadas em Dalberto (2018),
através das mesmas informações de movimentos pendulares mencionadas, com
a utilização de métodos de análise de redes que formam agrupamentos de nós
(municípios) segundo a intensidade interna de seus fluxos. Mais especificamente,
a abordagem mencionada se valeu do algoritmo louvain para maximizar uma
função de modularidade – que é tanto maior quanto mais elevada for a propor-
ção dos fluxos internos ao agrupamento em relação aos fluxos direcionados para
fora desse. Isso significa, portanto, que as regiões funcionais foram construídas a
partir da busca pela maior homogeneidade interna dos fluxos, isto é, visando um
recorte cujos fluxos pendulares internos sejam os maiores possíveis em relação aos
fluxos externos.
A análise tem como foco as RFs dos 26 arranjos populacionais de grande concentração
urbana identificados pelo IBGE (2015), que abrangem os grandes centros urbanos
do país, lugares centrais das principais redes de cidades brasileiras e grandes articu-
ladores das regiões em seu entorno. Destes, doze possuem caráter metropolitano,
enquanto os demais constituem capitais regionais. Em 1980, os 26 arranjos equi-
valiam a 26 regiões funcionais, ao passo que em 1990 e 2010 estavam contidos
em 24 e 23 RFs, respectivamente (isto é, nesses anos algumas regiões passaram a
abranger mais de um arranjo: em 2000, Santos e São Paulo constituíram uma única
RF, bem como Campinas e Sorocaba; ao passo que em 2010, além dessas, Natal e
João Pessoa também se uniram em uma região). Em 2010, as 23 RFs respondiam
por 66,26% da população brasileira e por 73,96% do PIB, e suas extensões espa-
ciais podem ser visualizadas no mapa 1, em que também são comparadas com os
respectivos arranjos populacionais do IBGE.
218 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

MAPA 1
Distribuição das RFs para as grandes concentrações urbanas, contrastadas com os
arranjos populacionais do IBGE (2010)

Fonte: Dalberto (2018).


Obs.: Ilustração cujos leiaute e textos não puderam ser padronizados e revisados em virtude das condições técnicas dos
originais (nota do Editorial).

4 RESULTADOS
Calculados os indicadores de centralidade para cada município em cada RF,
procede-se inicialmente com o cálculo da razão entre a centralidade do município
mais preponderante da rede de cada região e a segunda maior centralidade desta.
Tal indicador visa observar se houve alguma aproximação entre a capacidade
de atrair fluxos dos principais municípios da RF, o que indicaria movimento de
caráter policêntrico.
As estatísticas obtidas para tais razões são apresentadas na tabela 1, na qual
constam as informações referentes a cada ano para as duas medidas de centralidade
ora utilizadas, in-degree e eigenvector.
Policentralidade nos Grandes Aglomerados Urbanos Brasileiros entre 1980 e 2010 | 219

TABELA 1
Estatísticas da razão entre a primeira e a segunda maior centralidade
In-degree Eigenvector
1980 2000 2010 1980 2000 2010
Observações 1
25 24 23 26 24 23
Mínimo 1,040 1,141 1,058 1,027 1,189 1,298
Máximo 42,700 36,333 22,258 23,102 24,714 16,410
1o quartil 1,944 2,188 1,623 3,553 2,993 2,702
3 quartil
o
10,035 9,452 5,049 10,222 9,151 6,111
Média 8,078 8,283 5,090 6,937 6,388 5,196
Mediana 6,196 6,087 3,063 5,103 4,487 3,642
Variância 83,524 88,203 34,314 30,213 27,065 16,564

Elaboração dos autores.


Nota: 1 Em 1980 o número de observações para a razão do in-degree é menor em função da exclusão da RF de Manaus, para
a qual o cálculo não foi possível.

No caso do in-degree, nota-se que a média permanece bastante similar de


1980 para 2000, reduzindo-se em 2010, quando também diminuem sua mediana
e sua dispersão. Enquanto em 1980 e 2000 o principal centro tinha capacidade de
atração cerca de oito vezes maior que a do segundo, em 2010 essa razão cai para
aproximadamente cinco vezes.
Além disso, cabe mencionar que, entre os centros principais das RFs, em 1980
apenas Campo Grande não detinha o maior in-degree de sua rede, enquanto que
em 2000 São José dos Campos também passa a estar em tal condição, e em 2010
Teresina soma-se a esses dois casos. De um lado, tal fato mostra que a preponde-
rância dos centros também se transcreve, em quase todos casos, em suas primazias
na atração de fluxos; de outro, revela um número crescente, ainda que em ritmo
modesto, de casos em que o centro deixa de ser o principal destino dos fluxos da RF.
No caso das centralidades medidas pelo eigenvector, dado que essas são
medidas da influência dos municípios na rede, é de se esperar que os maiores
centros sejam também os mais bem conectados, isto é, mais associados a outros centros
que também possuem maior grau de conexões. Da mesma forma que para o caso
do in-degree, observa-se uma diminuição da distância média entre o primeiro e o
segundo município de maior centralidade eigenvector, reforçando a constatação
anterior, agora pela ótica do prestígio na rede.
De modo geral, as razões mensuradas apontam para uma tendência de aproxi-
mação entre os municípios mais preponderantes das redes em cada um dos quesitos.
Isso sugere a existência de um movimento de redução do perfil monocêntrico dessas
regiões em sua dimensão funcional, isto é, em termos da integração e da dinâmica
de seus mercados de trabalho.
220 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Após calcular as razões entre as maiores centralidades de cada rede, foram


mensuradas as medidas de centralização para as respectivas medidas de centralidade
abordadas. Diferentemente destas, que dizem respeito aos municípios (ou nós)
tomados individualmente, a centralização abarca a estrutura de cada rede (isto é,
de cada RF) como um todo. Os resultados obtidos para essas medidas constam
na tabela 2.

TABELA 2
Estatísticas das medidas de centralização
In-degree Eigenvector
1980 2000 2010 1980 2000 2010
Observações 26 24 23 26 24 23
Mínimo 0,012 0,013 0,032 0,891 0,899 0,903
Máximo 0,649 0,411 0,507 0,997 0,998 0,992
1 quartil
o
0,032 0,040 0,055 0,954 0,952 0,952
3o quartil 0,088 0,127 0,147 0,980 0,977 0,973
Média 0,099 0,110 0,128 0,963 0,963 0,960
Mediana 0,053 0,075 0,095 0,968 0,973 0,964
Variância 0,018 0,010 0,012 0,001 0,001 0,000

Elaboração dos autores.

Para o caso do in-degree, observa-se aumento da centralização média ao


longo do tempo, sugerindo que a estrutura das redes tendeu a se tornar mais
centralizada – isto é, mais organizada em torno de um ou poucos centros urbanos.
Levando em conta a redução da razão da estatística entre o primeiro e o segundo
maior in-degree observada anteriormente, pode-se atestar que, neste caso, essa
maior centralização tendeu a se ancorar não apenas no centro principal, mas
também em centros secundários.
A tabela A.1, do apêndice A, apresenta as centralizações em termos indivi-
duais. O maior grau de centralização do in-degree mensurado para as RFs em cada
década foi observado na RF de São Paulo. Em 1980, a centralização dessa era de
0,649, isto é, cerca de 6,5 vezes superior à centralização média das RFs. Em 2000
sua centralização se reduz para 0,411, ou 3,7 vezes a média; voltando a aumentar
em 2010 para 0,507, o que representava cerca de 4 vezes a centralização média
daquele período e 78,1% da centralização observada em 1980. Levando essa métrica
em consideração, a RF de São Paulo seria a de caráter mais monocêntrico entre as
demais, embora tenha se observado alguma redução no grau dessa monocentricidade
entre 1980 e 2010 (mas com um incremento de 2000 para 2010).
Após São Paulo, a RF de Curitiba foi a que apresentou os maiores valores de
centralização do in-degree em 1980 e 2010. Enquanto naquele ano sua centralização
Policentralidade nos Grandes Aglomerados Urbanos Brasileiros entre 1980 e 2010 | 221

era de 0,291, neste era de 0,306. Já em 2000 o valor da estatística foi menor,
de 0,192, o que a colocava, então, em quarto lugar. Logo, da mesma forma que
para São Paulo, a RF de Curitiba reduziu sua monocentricidade entre 1980 e 2000,
mas voltou a incrementá-la entre 2000 e 2010. Diferentemente daquele caso, a
RF tornou-se mais monocêntrica em 2010 do que era em 1980.
Complementavam a lista de RFs de maior centralização do in-degree Brasília,
Belo Horizonte e Rio de Janeiro. No caso da capital nacional, houve expressivo
aumento da estatística de 1980 para 2000, quando passou de 0,053 para 0,362, o
que fez a RF avançar de 13a para a segunda mais centralizada no período. Em 2010,
com a redução da centralização para 0,269, a RF passa a ser a terceira mais mono-
cêntrica sob tal métrica. Belo Horizonte incorre em movimentos similares, mas me-
nos intensos: sua centralização cresce de 0,145 para 0,199 entre 1980 e 2000, de-
pois diminui para 0,147 em 2010. Esses valores situavam a capital mineira como a
quarta mais monocêntrica nos dois primeiros períodos e a sexta no último período.
Por fim, a RF do Rio de Janeiro observou considerável redução no tempo, de-
caindo de 0,289 em 1980, para 0,206 em 2000, e 0,186 em 2010, valor este que
equivalia a 64,6% do observado no primeiro período. Tal redução é a segunda
mais intensa entre as RFs, ficando atrás apenas do caso da RF de Vitória, cuja
centralização em 2010 equivalia a 59,4% da observada em 1980.
As RFs de menor centralização geral do in-degree, por sua vez, foram São
Luís, Teresina e Manaus. As três tenderam a apresentar crescimento ao longo do
tempo, mas não o suficiente para alterar suas posições relativas dentro das RFs
consideradas. São Luís, por exemplo, que apresentava a menor centralização em
2010, com 0,032, teve um incremento bastante tímido em relação a 1980, quando
tal valor era de 0,030. No caso de Teresina, a centralização nesse mesmo período
passou de 0,014 para 0,037. Já em Manaus, a mudança foi de 0,013, em 2000,
para 0,041, em 2010 (não foi possível calcular a centralização da RF para 1980
por possuir apenas dois municípios).
O panorama dessa estatística revela que, para os dois principais centros na-
cionais (São Paulo e Rio de Janeiro), ocorreu um movimento de amenização da
centralização entre 1980 e 2010, o que sugere redução de suas forças monocêntricas.
Por outro lado, os comportamentos tendem a ser diferentes para os demais centros,
onde, na maior parte dos casos (dezenove das 23 RFs de 2010), ocorreu um aumento da
centralização do in-degree no período, em linha com a elevação na média da estatística.
A centralização do eigenvector, por sua vez, apresenta pouca variação de
seu valor médio ao longo do tempo, concomitantemente a uma leve redução da
dispersão dessa métrica, o que se observa tanto pela aproximação entre os valores
máximo e mínimo quanto pela diminuição da variância. A menor dispersão indica
haver aumento da similaridade entre as RFs no que diz respeito à maneira como
222 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

se distribuem as conexões com as cidades mais influentes – similaridade essa que


também é maior que a observada no caso do in-degree, sobretudo se comparadas
as variâncias às respectivas médias.
As maiores centralizações do eigenvector pertenciam, em 1980, às RFs de Cam-
po Grande, Teresina e Goiânia; em 2000, Campo Grande, São Luís e Belém lidera-
vam o ranking; e, em 2010, eram São Luís, Teresina e Belém a figurar nessas posições.
Já os menores valores ocorreram em São Paulo, São José dos Campos e Brasília,
em 1980; Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, em 2000; e São Paulo, São José
dos Campos e Manaus, em 2010. Tais posições sugerem uma possível relação
inversa entre a centralização do eigenvector com aquela verificada para o in-degree.
Em outros termos, isso significaria que, ao levar em consideração não o número
de conexões que um município recebe, mas, sim, a qualidade dessas conexões, as
RFs que figuravam como as mais centralizadas pela ótica do in-degree passam a
estar entre as menos centralizadas sob o critério do eigenvector.
De modo geral, tanto as estatísticas de centralização quanto as das razões entre
as maiores centralidades não permitem afirmar indubitavelmente a existência de um
movimento comum de redução da monocentricidade, haja vista os comportamentos
diversos entre a razão das centralidades e os indicadores de centralização, especial-
mente do in-degree. Em conjunto, essas medidas sugerem que esteja ocorrendo
um movimento mais complexo – que não pode ser apreendido em um modelo
simplista, expresso apenas sobre o eixo monocentrismo-policentrismo –, no qual
o desenvolvimento de um relativo policentrismo (como verificado pela redução
na razão das centralidades) ocorre em termos centralizados (como expresso pelos
indicadores de centralização). Isso pode se dar, por exemplo, à medida que um centro
urbano secundário ganhe relevância em relação ao centro principal, mas com tal
ganho ocorrendo mais em detrimento de centros inferiores na hierarquia regional.
Ressalta-se, além disso, que essas tendências não são comuns a todas as regiões
funcionais, existindo casos que vão na direção contrária àquela observada para as
médias dos indicadores. Tal resultado é similar, por exemplo, ao observado por
Arribas-Bel e Sanz-Gracia (2014) para o caso dos Estados Unidos, em que os autores
não encontram evidências de um movimento comum em direção ao policentrismo
para as áreas metropolitanas entre 1990 e 2010. Não se pode perder de vista que
os fatores específicos de cada região possuem grande importância para explicar a
trajetória de suas hierarquias de cidades, e, em cada caso, haverá fatores de persis-
tência temporal, de modo que os resultados, em dado momento no tempo, serão
contingenciais também à história pregressa dessas regiões (Batty, 2001).
Policentralidade nos Grandes Aglomerados Urbanos Brasileiros entre 1980 e 2010 | 223

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pela ótica da estrutura de fluxos pendulares, o fenômeno da monocentricidade,
em termos funcionais, pode apresentar diferentes dimensões, com a capacidade
de atração de fluxos (mensurada pelo in-degree) sendo a mais objetiva, mas com-
plementada pela distribuição da influência na rede (eigenvector).
Utilizando inicialmente as medidas de centralidade segundo esses dois cri-
térios, as razões entre o primeiro e o segundo maior valor dessas estatísticas entre
os municípios de cada RF revelam uma tendência de redução, o que indica uma
possível redução do caráter monocêntrico das RFs, na medida em que se estreitam
as forças de polarização dos fluxos pendulares entre os grandes núcleos urbanos e
os centros secundários de cada região.
Já as medidas de centralização, especialmente do in-degree, indicam um mo-
vimento diverso, revelando que as redes de fluxos pendulares intermunicipais das
RFs se tornaram mais centralizadas ao longo do tempo, isto é, a estrutura de tais
movimentos passou a estar mais associada a um ou a poucos centros urbanos da
região. Embora isso não implique intensificação de seu perfil monocêntrico, tal
resultado, em conjunto com o observado para as razões das medidas de centrali-
dade, sugere um movimento mais intrincado. Nesse caso, tendências policêntricas
ocorrem em conjugação com uma maior concentração dos movimentos pendulares
através do ganho de força polarizadora de centros secundários, em detrimento não
do centro principal, mas, sim, dos demais municípios da região.
Contudo, cabe ressaltar que, nesse ínterim, esses movimentos não são unívocos
para todas as RFs, dada a existência de comportamentos que caminham em sen-
tido contrário à média. Assim, em última instância, eventuais mudanças no perfil
monocêntrico das RFs devem ser atestadas no nível individual. A heterogeneidade
dessas regiões, cujas estruturas dos fluxos pendulares apresentam movimentos
distintos e idiossincráticos, repele a tentativa de abordagens homogeneizantes.
Nesse sentido, por meio das estatísticas de centralização, evidenciou-se,
por exemplo, a proeminência de São Paulo, principalmente através do in-degree,
de modo que a sua RF pode ser considerada a mais monocêntrica do país em
todo o período. Apesar disso, a intensidade dessa monocentricidade se reduziu
entre 1980 e 2010 (mas se elevou entre 2000 e 2010). Após São Paulo, as RFs
mais monocêntricas foram Curitiba, Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
Do corpo de resultados obtidos, pode-se apontar que, apesar de haver um
possível movimento em direção ao policentrismo, esse deve ser qualificado quanto ao
seu caráter concentrador. Além disso, as principais RFs do país ainda se apresentam
marcadamente monocêntricas. Embora em diversas instâncias essa característica
tenha se amenizado entre 1980 e 2010, é importante ressaltar que entre 2000 e
224 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

2010 observou-se comportamento de reforço do monocentrismo em importantes


regiões, notadamente São Paulo e Curitiba.
Cada quadro terá, evidentemente, suas próprias nuances, sendo afetado tanto
por fatores de âmbito que lhe abarcam, como os contextos econômicos nacional e
internacional, quanto por questões de perfil eminentemente local – como políticas
públicas municipais, regionais ou estaduais, infraestrutura, configuração produtiva
e geografia. Dessa maneira, a utilidade das relações gerais deve estar em prover
uma referência, dispensando os determinismos. A partir disso, cada RF pode ser
avaliada em seus próprios termos, com sua estrutura de fluxos e sua dinâmica in-
tertemporal consideradas em suas especificidades, levando em conta a inter-relação
dos fatores multiescalares.
Ainda, os eixos de análise do monocentrismo ora utilizados não se restringem
às RFs, podendo ser replicados para outras dimensões territoriais, como as regiões
metropolitanas, os arranjos populacionais ou as regiões geográficas imediatas e
intermediárias. Tais abordagens podem fornecer um perfil mais detalhado da
centralidade e dialogar com a literatura focada em tais escalas.
O aspecto funcional não esgota, contudo, as dimensões possíveis do
policentrismo, sendo apenas um eixo em que esse deve ser considerado.
Investigações futuras podem avançar integrando diferentes dimensões para
avaliar o fenômeno, compondo, assim, um quadro mais nítido e amplo de
sua ocorrência no país e de suas trajetórias recentes. Tal constatação serve ain-
da para que se reflita sobre suas implicações para o desenvolvimento social e
econômico no território, ancorados em uma visão compartilhada e pública
de desenvolvimento urbano sustentável, e, ainda, para a definição de políticas pú-
blicas no âmbito da PNDU, tanto com relação ao seu conteúdo quanto ao nível
de descentralização ótimo para sua elaboração e execução.

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Policentralidade nos Grandes Aglomerados Urbanos Brasileiros entre 1980 e 2010 | 227

APÊNDICE A

MEDIDAS DE CENTRALIZAÇÃO DAS REGIÕES FUNCIONAIS

TABELA A.1
Medidas de centralização das regiões funcionais
In-degree Eigenvector
Período
1980 2000 2010 1980 2000 2010
Manaus NA 0,013 0,041 NA 0,951 0,935
Belém 0,036 0,039 0,056 0,984 0,986 0,978
São Luís 0,030 0,030 0,032 0,965 0,992 0,992
Teresina 0,014 0,040 0,037 0,995 0,979 0,985
Fortaleza 0,028 0,094 0,125 0,977 0,952 0,947
Natal 0,060 0,144 0,087 0,959 0,948 0,977
Recife 0,086 0,059 0,113 0,975 0,976 0,971
João Pessoa 0,039 0,094 NA 0,980 0,974 NA
Maceió 0,026 0,064 0,095 0,977 0,972 0,964
Aracaju 0,046 0,094 0,131 0,957 0,973 0,968
Salvador 0,032 0,027 0,049 0,960 0,979 0,960
Belo Horizonte 0,145 0,199 0,147 0,964 0,960 0,976
Vitória 0,077 0,039 0,046 0,968 0,978 0,976
Rio de Janeiro 0,289 0,206 0,186 0,935 0,931 0,948
São Paulo 0,649 0,411 0,507 0,891 0,903 0,903
Campinas 0,041 0,046 0,068 0,984 0,976 0,964
São José dos Campos 0,052 0,068 0,101 0,924 0,952 0,929
Sorocaba 0,099 NA NA 0,954 NA NA
Curitiba 0,291 0,192 0,306 0,932 0,965 0,957
Santos 0,106 NA NA 0,951 NA NA
Florianópolis 0,085 0,122 0,083 0,973 0,954 0,964
Porto Alegre 0,088 0,119 0,147 0,983 0,969 0,962
Campo Grande 0,012 0,014 0,054 0,997 0,998 0,960
Cuiabá 0,070 0,056 0,086 0,977 0,977 0,967
Goiânia 0,029 0,115 0,178 0,991 0,973 0,969
Brasília 0,053 0,362 0,269 0,926 0,899 0,938

Elaboração dos autores.


Obs.: NA – não se aplica.
CAPÍTULO 9

FEDERALISMO E RELAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS


NO BRASIL: NOTAS PARA A CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA
NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO
Lizandro Lui1
Sara Rebello Tavares2
Marco Aurélio Costa3
Cleandro Krause4
Armando Palermo Funari5

1C
 OMO O DESENHO FEDERATIVO BRASILEIRO IMPORTA PARA O
DESENVOLVIMENTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Soares e Machado (2018) fazem um resgate do que é federalismo e seu desen-
volvimento ao longo do tempo. Os autores iniciam o debate pela etimologia do
termo, com origem no latim foedus, que significa pacto ou contrato. O cientista
político Daniel Elazar, em sua obra clássica Exploring Federalism, de 1987, chega
ao mesmo ponto de debate acerca da acepção original do vocábulo. A ideia que
plasma o conceito de federalismo relaciona-se fortemente à questão da autonomia
política e administrativa das partes que compõem o todo.
O Brasil é uma federação desde a Proclamação da República, em 1889. To-
davia, o modelo de organização do Estado variou de formato desde períodos mais
centralizadores (como na era Vargas e na ditadura civil-militar) até períodos em
que se conferiu maior autonomia aos entes subnacionais (como o que vai de 1946
a 1964 e pós-1988). Conforme aponta Abrucio (2005, p. 42), a história federativa
brasileira foi marcada por sérios desequilíbrios entre os níveis de governo. No pe-
ríodo inicial, na República Velha, predominou um modelo centrífugo, em que os
estados tinham ampla autonomia, pouca cooperação entre si e um governo federal
bastante fraco. Nos anos Vargas, o Estado nacional fortaleceu-se, mas os governos
estaduais, particularmente no Estado Novo, perderam a autonomia. Segundo o

1. Professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) de Brasília. E-mail: <[email protected]>.


2. Ex-pesquisadora na Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais do Instituto de Pesquisa Eco-
nômica Aplicada (Dirur/Ipea). E-mail: <[email protected]>.
3. Técnico de planejamento e pesquisa na Dirur/Ipea; e coordenador nacional do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
em Políticas Públicas e Desenvolvimento Territorial (INCT/INPuT). E-mail: <[email protected]>.
4. Técnico de planejamento e pesquisa na Dirur/Ipea. E-mail: <[email protected]>.
5. Pesquisador bolsista na Dirur/Ipea. E-mail: <[email protected]>.
230 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

autor, o espaço temporal entre 1946 e 1964 foi o primeiro momento de maior
equilíbrio em nossa Federação, tanto do ponto de vista da relação entre as esferas
de poder como da prática democrática. Contudo, o golpe militar acabou com esse
padrão e, por cerca de vinte anos, manteve um modelo autoritário com grande
centralização política, administrativa e financeira.
A Constituição Federal de 1988 (CF/1988) remodelou o sistema federativo
brasileiro, reconhecendo, para além da União e dos estados (entes presentes em
praticamente todas as federações), a figura do terceiro ente federado: o município.
Além disso, outras duas marcas caracterizam o modelo proposto pela CF/1988, a
saber, o processo descentralizador e o amplo conjunto de direitos sociais assegurado
a todos os cidadãos brasileiros. A análise elaborada por Abrucio (2005) também
aponta que a redemocratização do país marcou um novo momento no federalismo.
As elites regionais, particularmente a figura dos governadores, foram fundamentais
para o desfecho da transição democrática – desde as eleições estaduais de 1982,
passando pela vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral (ele próprio, não
coincidentemente, um governador de estado), até chegar à Nova República e à
Constituinte. Além disso, segundo o autor, lideranças de discurso municipalista
associavam o tema da descentralização à democracia e também participaram ati-
vamente na formulação de diversos pontos da CF/1988.
É interessante observar que os demais entes (estados e municípios) passa-
ram a assumir maiores responsabilidades sobre o desenvolvimento das políticas
públicas a partir da CF/1988. Desse modo, não apenas se desconcentraram as
tarefas que eram da União para os entes subnacionais, mas também se descentra-
lizaram essas responsabilidades, quer dizer, criaram-se centros com competência
decisória sobre as políticas públicas, e não meros braços executores de atividades.
A diferença entre desconcentração e descentralização e, principalmente, a opção
por seguir na via da descentralização definiram todo o debate realizado desde
então sobre o federalismo, o que traz implicações para este estudo de apoio à
elaboração da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU).
Apesar da grande aceitação acadêmica da tese defendida por Abrucio (1998) – de
que a Constituição teria sido o resultado de um grande pacto de políticos localmente
influentes e de que, por isso, ela teria assumido contornos mais em prol da descentra-
lização –, estudos mais contemporâneos problematizam tal posição. Segundo Arretche
(2012), a CF/1988 já continha traços centralizadores que, ao longo do tempo, foram
tomando contornos mais perceptíveis. O principal argumento dessa tese está baseado
no fato de que a União centraliza a autoridade legislativa sobre a maioria das políticas
públicas e a maior parte dos recursos arrecadados. Esse arranjo, segundo a autora, não
proporcionou aos estados e aos municípios nenhum mecanismo de veto às decisões
da União. Conforme Liziero e Alcântara (2020), essa característica teria levado à crise
Federalismo e Relações Intergovernamentais no Brasil: notas para a construção | 231
da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

dos estados nos anos 1990, o que fomentou as diversas reformas que centralizaram
ainda mais a Federação brasileira, principalmente no que diz respeito às competências
decisórias e de alocação de recursos.
O principal argumento de Arretche (2012) é o de que os constituintes
formularam um modelo de Federação que concedeu vasta autoridade à União,
mas esparsas possibilidades de veto por parte dos governos subnacionais. Mais do
que isso, a partir da análise dos convênios firmados entre a União e os consórcios
intermunicipais que ocorreram entre 1996 e 2018, Lui, Schabbach e Nora (2020)
apontam para o fato de que os entes subnacionais tentam enquadrar as demandas
locais nas políticas ou nos programas federais já existentes a fim de garantir o re-
passe dos recursos. Assim, no quadro atual, tendo em vista que a União é a maior
detentora de recursos financeiros, os repasses ficam condicionados principalmente
às agendas das políticas propostas por esse nível de governo. Desse modo, a Fede-
ração brasileira apresentaria um caráter pendular, ora oferecendo a possibilidade
de autonomia dos entes subnacionais, ora concentrando recursos e a pauta sobre
as políticas públicas.

2 É POSSÍVEL EXISTIREM POLÍTICAS UNIVERSAIS EM PAÍSES FEDERATIVOS?


Arretche (2012) questiona se é possível ter igualdade territorial e políticas uni-
versais em países federativos. As federações gozam de diferentes esferas de poder,
sobrepostas no território, e cada qual conta com distintos graus de autonomia, a
depender do arranjo político de cada nação. Se a resposta para essa pergunta for
positiva, será necessário haver consenso político entre os entes que constituem de-
terminada federação, os mecanismos de coordenação e as formas de redistribuição
de recursos. Desse modo, para compreender como funciona um modelo federativo,
é necessário considerar a autonomia política e administrativa dos entes a fim de
desenvolver políticas públicas. Contudo, essa tarefa se torna mais complexa em
um país como o Brasil, onde um largo conjunto de direitos sociais universais foi
garantido pela CF/1988 e há mais de 5 mil municípios, 26 estados e um Distrito
Federal – todos possuidores de autonomia decisória sobre as políticas públicas.
Torna-se, dessa maneira, um desafio balancear a autonomia administrativa e política
dos entes federados ao mesmo tempo que se pretende assegurar o acesso de todos
os cidadãos aos mesmos direitos, tais como saúde, educação, assistência social etc.
Dessa forma, pode-se questionar se é possível existirem políticas de caráter
universal em países federativos. Como é sabido, nos Estados Unidos, por exemplo,
alguns estados têm a pena de morte prevista em seu direito penal, enquanto outros
não. Ademais, em alguns estados o comércio de certas drogas é permitido, enquanto
em outros isso é proibido. Apesar de simples, esse é um exemplo claro de que, em
certas federações, um importante conjunto de políticas universais (tais como as que
232 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

regulam diretamente o alcance da intervenção do Estado sobre a vida humana e a


liberdade) não é definido pelo governo central, e sim pelos subnacionais.
Com base nos esforços realizados pelo governo federal, uma parte importante
da literatura sobre o federalismo acredita ser possível desenvolver, de forma efetiva,
políticas públicas de caráter universal em países federativos (Segatto e Abrucio,
2016). Para isso, é imprescindível que o governo central coordene as atividades
através de mecanismos de cooperação intergovernamental. Alguns desses meca-
nismos são a implementação de sistemas nacionais de políticas públicas – como
o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único da Assistência Social (Suas),
respectivamente – e a redistribuição de recursos aos entes subnacionais, como o
Fundo de Participação dos Estados e Distrito Federal (FPE) e o Fundo de Parti-
cipação dos Municípios (FPM).
Conforme apontam Segatto e Abrucio (2016), uma das questões mais impor-
tantes no debate sobre o federalismo se refere à compatibilidade entre a diversidade,
característica do federalismo, e a garantia de políticas sociais, típica de países que
apresentam leis garantidoras de direitos universais definidas pelo governo central,
por exemplo, o acesso à saúde, à educação e à assistência social. Nesse sentido, no
Brasil, todos os cidadãos devem ter acesso a um conjunto de serviços de forma
uniforme, independentemente de qual ente federado esteja operando a política.
Segundo os autores, a análise das políticas sociais em sistemas federativos mostra
que a coordenação do governo federal tem capacidade de reduzir a heterogeneidade
na implementação feita pelos governos subnacionais.
Conforme Evans (1993), ao final dos anos 1980, instituições e agências até
então comprometidas com uma agenda de perfil liberal e ortodoxo passaram a se
mostrar dispostas a considerar a possibilidade de que os problemas de seus “clientes”
(leia-se, nesse caso, os Estados nacionais) pudessem decorrer não apenas de más
políticas conduzidas pontualmente, mas também de deficiências institucionais
corrigíveis somente no longo prazo. Nessa mesma época, autores que advogavam
pela via institucionalista, como Douglass North, vencedor do Nobel de Economia,
passaram a defender a importância do arcabouço institucional para o desenvolvi-
mento econômico e das políticas sociais. Dessa maneira, a orientação do mainstream
econômico passou para a defesa da reconstrução dos instrumentos do Estado, e não
mais para o seu desmantelamento.
Nesse segmento, para explicar a complexidade do ambiente institucional
brasileiro, principalmente em relação à morosidade em que as reformas políticas e
institucionais são formuladas, reportamo-nos à tese formulada por Tsebelis (2002)
relativa aos atores com poder de veto. Para o autor, os contextos institucionais que
abrigam formas federalistas de Estado, com uma ou duas casas legislativas, são os
arranjos de instituições que possuem o maior número de veto players. Esse fenômeno
Federalismo e Relações Intergovernamentais no Brasil: notas para a construção | 233
da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

acontece devido à separação de poderes e à organização do governo entre a esfera


nacional e as regionais/subnacionais com autonomia e responsabilidades próprias.
Nesse cenário, o autor aponta que, em um contexto com grande número de atores
com poder de veto, fica ampliado de modo substancial o volume de interesses envol-
vidos no jogo político e, mais propriamente, no processo legislativo. Desse modo,
gera-se amplo conjunto de arenas, o que torna ainda mais complexas e intrincadas
as estratégias dos atores. Pode-se também utilizar o esquema analítico de Tsebelis
(2002) a fim de observar o sistema federativo brasileiro, em que há também entes
subnacionais autônomos e com competência de desenvolver as políticas públicas
para além das arenas de decisão da União (na qual existem duas casas legislativas e
amplo conjunto de partidos e organizações, os quais representam os interesses de
inúmeros entes e atores). Assim, a constituição de qualquer nova política depende,
entre outras coisas, de complexo arranjo político e institucional.

3 A ESCALA MUNICIPAL DA AGENDA URBANA: UM OLHAR INSTITUCIONAL


Conforme apontado na Nota Técnica no 1.2, A Agenda Urbana e a Escala Municipal
(Funari, Lui e Ferreira Junior, 2020), os entes que compõem a Federação brasileira
são permeados por características similares, principalmente quando observamos as
fragilidades técnica, financeira e administrativa existentes, bem como por caracte-
rísticas distintivas, sobretudo atreladas às especificidades regionais.
Quando se observa a escala municipal na agenda urbana, a partir do olhar
institucional, deve-se ter em mente o contexto maior em que estamos inseridos. Ao
longo das últimas décadas, a disputa federativa por recursos e competências avan-
çou, e o resultado desse processo seguiu reforçando o papel da União, ainda que os
interesses dos municípios tenham sido atendidos de forma parcial, principalmente
quando se elevou o valor do FPM e de outras transferências intergovernamentais.
No agregado dos municípios brasileiros,6 houve elevação do total de trans-
ferências arrecadadas; foi de R$ 322,77 bilhões em 2013 para R$ 447,48 bilhões
em 2018. A arrecadação por meio do FPM, uma das principais fontes de receitas
municipais provenientes de transferências, também se elevou em termos nominais
no mencionado período. Dessa forma, passou de R$ 70,35 bilhões em 2013 para
R$ 97,11 bilhões em 2018. As transferências recebidas pelos municípios são centrais
para a formação de suas receitas. Mesmo com queda percentual de participação nas
receitas totais, de 70,6% em 2013 para 67,8% em 2015, as transferências subiram
para 68,8% em 2018. Os repasses do FPM aumentaram de 21,8% em 2013 para

6. Dados provenientes da base Finanças do Brasil (Finbra) e disponíveis na plataforma Sistema de Informações Contábeis
e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi), da Secretaria do Tesouro Nacional (STN). Para fins de comparação, consi-
deramos apenas os municípios comuns aos anos de 2013, 2015 e 2018 (5.306 dos 5.570 municípios brasileiros) que
estão presentes na base Finbra, uma vez que esta não contempla o total de municípios brasileiros para todos os anos.
234 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

22,2% em 2015, porém voltaram para 21,7% em 2018, o que mostra também a
importância de outras fontes para os municípios (tabela 1).

TABELA 1
Indicadores selecionados de finanças públicas – Brasil
Receitas 2013 (R$) 2015 (R$) 2018 (R$)
Receita total 457.051.765.942,67 537.868.195.476,12 650.750.162.234,46
Transferência total 322.767.866.061,27 364.694.763.927,73 447.476.604.105,52
FPM 70.347.836.107,39 80.895.103.222,46 97.110.152.716,05
Receitas 2013 (%) 2015 (%) 2018 (%)
Transferência total/receita total 70,62 67,80 68,76
FPM/receita total 15,39 15,04 14,92
FPM/transferência total 21,80 22,18 21,70

Fonte: Siconfi. Disponível em: https://siconfi.tesouro.gov.br/siconfi/index.jsf.


Elaboração dos autores.

A ideia de coordenação federativa parte do pressuposto de que a União for-


mularia melhor as políticas e que, por isso, caberia a ela a autoridade legislativa
(Abrucio, 2005). Somente assim, segundo essa lógica, as políticas seriam imple-
mentadas de forma equânime pelo território nacional. O desenho institucional
brasileiro, a partir dos anos 1990, incorporou essa lógica para o desenvolvimento
das políticas públicas, e isso conferiu à União maior controle sobre tais medidas.
Nesse sentido, o governo central teria maior autoridade na formulação e no de-
senho do público-alvo dos programas. Mesmo que a União leve em consideração
a autonomia política dos entes subnacionais, que, em tese, não poderiam ser
obrigados a aderir às políticas formuladas pelo governo central, eles, em regra,
geralmente aderem aos programas como forma de acessar recursos oriundos dos
fundos vinculados àquelas políticas.
Os municípios brasileiros, para além das questões intrínsecas ao federalismo
nacional, possuem outros tipos de desafios a serem enfrentados. Um desses pro-
blemas é a adequação, a seus contextos locais, dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS), desenvolvidos pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Nesse sentido, há novamente um desafio importante de coordenação por parte da
União quando esta se propõe a elaborar uma política nacional com vistas ao desen-
volvimento urbano. A integração dessa agenda, elaborada em âmbito internacional,
às políticas desenvolvidas em âmbito municipal é, sem dúvida, um desafio imenso.
O ponto de conexão entre a agenda desenvolvida em âmbito global e aquela desen-
volvida em escala local deve ser, precisamente, o Poder Executivo central de cada
país. Por essa razão, considera-se importante discutir aqui como a União, através
da PNDU, pode fomentar o desenvolvimento da Agenda 2030 nos municípios.
Federalismo e Relações Intergovernamentais no Brasil: notas para a construção | 235
da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Na sequência, pretendemos discutir as premissas e os princípios orientadores da


Nova Agenda Urbana (NAU) e como sua implementação pode ser realizada dentro
do atual contexto institucional. No segundo momento, entraremos na discussão
sobre capacidades estatais e, por fim, abordaremos de que modo os conceitos de
parceria e autonomia (formulados por Peter Evans, nos anos 1990, para estudar
alguns Estados nacionais) podem contribuir para o desenvolvimento da PNDU.
Esses três eixos de discussão foram pensados de forma complementar. O
desenvolvimento da Agenda 2030 está na pauta internacional em prol do desen-
volvimento sustentável, contudo sua implementação também precisa ser realizada
em âmbito local, nos municípios. Dessa maneira, torna-se fundamental o conceito
de capacidades estatais, que, basicamente, é a capacidade de o Estado atingir seus
objetivos e implementar suas políticas. Atrelado à essa constatação, é importante
apontar a autonomia dos entes locais para desenvolverem suas políticas públicas
como um objetivo específico. Por isso, a implementação das pautas de nível global
deve estar sempre de acordo com as agendas locais de desenvolvimento. Frisa-se que
um dos principais pontos destacados pela Agenda 2030 é a participação social, tema
historicamente relevante para as políticas urbanas no país. Nesse sentido, cientes
da necessidade de construir, em âmbito local, as estratégias de desenvolvimento
urbano sustentável, mobilizaremos o conceito de coprodução para ajudar no esta-
belecimento de um canal permanente de participação social. Por fim, defenderemos
que o desenvolvimento de uma relação de parceria e autonomia entre a União e
os governos subnacionais é imprescindível para o desenvolvimento da PNDU.

3.1 A NAU e a sua implementação nos municípios


A NAU foi adotada na Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desen-
volvimento Urbano Sustentável (ONU-Habitat III), realizada em Quito (Equador),
em outubro de 2016. No documento oficial da ONU (ONU, 2017), a definição do
que seria essa NAU se apresenta de forma abrangente e um tanto difusa. Contudo,
alguns elementos ficam claros e precisam ser ressaltados neste capítulo, tais como:
i) compromisso com o desenvolvimento sustentável, com o meio ambiente e com
o enfrentamento dos desafios relativos à mudança climática; ii) ideia do direito à
cidade7ou de cidade para todos, no sentido de promover a integração urbana e lutar
contra a exclusão social; iii) consenso sobre a necessidade de promover a participação
social, o engajamento civil e os marcos para uma governança urbana; e iv) promoção
do crescimento econômico, inclusivo e sustentável. Os objetivos expressos no referido
documento vão além do debate estritamente sobre o fenômeno urbano e abordam
questões como igualdade de gênero, incentivo à cultura e proteção à diversidade

7. Importante apontar que o conceito direito à cidade não foi registrado no documento oficial e que ele foi substituído
por direito a cidades sustentáveis.
236 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

cultural. Além disso, o conceito de cidades inteligentes e conectadas também está


explicitado nos documentos oficiais da conferência.
Pode-se afirmar que a NAU representa algo parecido com o que Max Weber
chamava de weltanschauung, ou seja, uma visão de mundo compartilhada por to-
dos os envolvidos com o debate sobre a agenda de políticas urbanas no Brasil e no
mundo. Essa agenda foi sancionada pelo Brasil, e o desafio neste momento é pensar
como implementar suas diretrizes no contexto federativo brasileiro, transformando
os ideais em metas exequíveis ao longo dos próximos anos. A seguir, vamos nos
concentrar em conciliar o debate da NAU com a pauta da agenda urbana brasileira.
Conforme apontam Alfonsin et al. (2017), com a aprovação do Estatuto da
Cidade, em 2001, o movimento social denominado Fórum Nacional de Reforma
Urbana (FNRU) foi vitorioso devido à inclusão de suas reivindicações relativas ao
direito à cidade na lei federal de desenvolvimento urbano do Brasil. A partir disso,
o FNRU concentrou seus esforços na formulação da Carta Mundial pelo Direito
à Cidade. Essa iniciativa, com começo no Fórum Social Mundial de Porto Alegre,
em 2002, recebeu contribuições de colaboradores do mundo inteiro nos anos
posteriores. Conforme destacado na Nota Técnica Contextualização e Diretrizes
Gerais para a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (Costa et al., 2020), os
movimentos sociais tiveram papel de protagonismo no desenvolvimento de políticas
urbanas no período que compreendeu a redemocratização do país. Identifica-se que
a NAU concentra amplo conjunto de princípios e diretrizes gerais, concertadas nos
documentos produzidos nas grandes conferências promovidas pela ONU, como a
ONU-Habitat III. Além disso, a positivação do direito à cidade no ordenamento
jurídico brasileiro confere legitimidade a essa agenda de políticas. Contudo, desa-
fios ainda persistem no que diz respeito à tradução desses princípios em diretrizes
políticas factíveis e implementáveis em âmbito local. Um desafio importante é a
construção de agenda de desenvolvimento urbano que conte ativamente com
a participação e a contribuição dos movimentos sociais em nível local. Conforme
o documento oficial, “vislumbramos cidades e assentamentos humanos que (…)
sejam participativos; promovam a participação cívica” (ONU, 2017, p. 5).
A questão da participação social e da coprodução da PNDU nos municípios
brasileiros merece destaque neste capítulo. Não raro, as políticas são desenhadas a
partir de princípios genéricos e universais, pouco aderentes aos múltiplos contextos
locais existentes no país. No que concerne à PNDU, argumentamos que ela precisa
ser formulada já com previsão para que os atores locais adaptem suas diretrizes aos
contextos locais. Por isso, defendemos a ideia de que a coprodução em âmbito local
poderá otimizar a sua implementação e produzir melhores impactos. O conceito de
coprodução, em outras palavras, implica promover a participação social em todos
os estágios, principalmente na implementação e no monitoramento da política.
Federalismo e Relações Intergovernamentais no Brasil: notas para a construção | 237
da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

Desse modo, caso ela se mostre inadequada ao contexto local, poderá ser reajustada
e monitorada novamente. Como é impossível, do ponto de vista da União, estar
no dia a dia dos municípios, essa tarefa deve ficar a cargo dos atores locais.
O conceito de coprodução de serviços públicos (CSP) existe há muitas décadas
na academia internacional, como mostra o trabalho de Whitaker (1980) e de Gomes
e Moura (2018), porém, nos últimos anos, esse debate ganhou força e relevância
dentro da academia e voltou a ser utilizado. Para Ribeiro, Andion e Burigo (2015),
a coprodução está associada ao compartilhamento de poderes e responsabilidades
entre agentes públicos e cidadãos na produção de bens e serviços públicos. Desse
modo, ela ocorre quando o Estado não está sozinho na tarefa de planejar e executar
a entrega dos serviços à sociedade, de modo que divide essa responsabilidade com
organizações do setor privado, do terceiro setor ou de ambos, simultaneamente.
O conceito de CSP tem sido aplicado a diversos estudos produzidos em
âmbito nacional (Rêgo, Teixeira e Silva, 2019; Gomes e Moura, 2018; Coutinho
et al., 2019; Reis e Isidro-Filho, 2020; Rocha et al., 2019; Rodrigues et al., 2020).
Nessas análises preliminares, verifica-se que as experiências, mesmo que incipien-
tes, demonstram potencial para promover melhorias na forma como as políticas
públicas são desenvolvidas nos contextos locais.
Há, de forma geral, três tipos de coprodução, conforme aponta a literatura.
O primeiro tipo refere-se ao que Rodrigues et al. (2020) chamam de consumer
co-production, ou seja, coprodução voltada ao usuário; nesse caso, o objetivo
da coprodução estaria ligado à melhoria da qualidade e ao impacto do serviço
público já existente. O segundo tipo seria algo mais voltado ao que se chama de
participative co-production, ou seja, coprodução participativa; nela, o objetivo seria
melhorar o planejamento dos serviços públicos existentes através do envolvimento
dos cidadãos. Por fim, o terceiro tipo de coprodução é a enhanced co-production,
ou seja, coprodução melhorada, cujo objetivo seria trazer a experiência do usuário
a fim de combinar o planejamento participativo, gerar novas abordagens para os
serviços públicos e, com isso, produzir inovação.
Esses tipos de coprodução podem ser aplicados à implementação dos objetivos
da NAU entre os entes municipais. Do ponto de vista da União, não se podem
prever todos os tipos de situações, demandas e questões que afetam as cidades atu-
almente. O que pode ser realizado, de fato, é a criação de ambiente institucional
que garanta e promova a concertação entre movimentos sociais, atores privados e
agentes públicos, de modo a possibilitar a troca de ideias e o controle da sociedade
civil sobre as ações do Estado.
Em relação às formas de participação e controle social, considerados elemen-
tos fundamentais para a prática da coprodução e também presentes na NAU, a
realidade brasileira mostra que ainda há um imenso caminho a ser percorrido. No
238 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

que concerne às regiões metropolitanas (RMs), conforme aponta Santos (2018),


identifica-se que, mesmo após a promulgação do Estatuto da Metrópole, a sociedade
civil participa apenas das instâncias consultivas, mas não detém poder decisório.
A autora aponta que, não raro nas RMs, as reuniões com a sociedade civil são
pouco frequentes, e, novamente, os espaços decisórios acabam se concentrando em
estruturas que não contam com participações. Esse dado indica que a constituição
de formas de participação social efetiva (que também consta entre os objetivos da
NAU) é um caminho que precisa ser feito.
A NAU também apresenta um desafio relacionado à escala de atuação. Afinal,
algumas diretrizes necessitam dos incentivos e ação federal, enquanto outras são
de escala local, atreladas aos municípios. Por exemplo, a promoção de economias
sustentáveis e inclusivas deve, primeiramente, estar a cargo da União, principal-
mente no que diz respeito à formulação de políticas. Contudo, toda a esfera de
participação social possui caráter mais local, tendo em vista que os sujeitos estão
territorialmente situados. Em todos os casos, obviamente, são necessários meca-
nismos que conectem as esferas de gestão.
As ideias de autonomia e parceria (conceitos originalmente concebidos para
observar o desenvolvimento de Estados nacionais) serão aqui utilizadas para observar
as relações interfederativas no Brasil e, principalmente, para produzir insights que
possam contribuir para o desenvolvimento da PNDU.

3.2 Autonomia e parceria: as relações entre União, estados e municípios na


implementação dos instrumentos de gestão urbana
Iniciaremos esta subseção analisando o pensamento do economista e cientista
político Peter Evans a respeito dos conceitos de autonomia e parceria. No segun-
do momento, discutiremos os estudos que versam sobre a implementação dos
instrumentos de gestão urbana e os conflitos federativos presentes no país. Por
fim, reforçaremos o argumento relativo à importância de desenvolver um sistema
cooperativo entre os entes federados e estabelecer canais de diálogo e parceria com
a sociedade civil e o setor privado.
Ao analisar o desenvolvimento de amplo conjunto de nações ao longo do
século XX, Peter Evans cunhou os conceitos de autonomia e parceria para expli-
car o motivo de alguns Estados apresentarem baixos índices de desenvolvimento
enquanto outros eram mais prósperos. A ideia de autonomia combina o conceito
weberiano de insulamento burocrático com a capacidade estatal de se conectar
com os grupos de interesse da sociedade.
Conforme aponta Evans (2004), a presença de uma burocracia weberiana
ideal implica a criação e a manutenção de corporação coerente que consiga dar
ao Estado a capacidade de formular metas e atingir objetivos. Nesse segmento,
Federalismo e Relações Intergovernamentais no Brasil: notas para a construção | 239
da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

há um questionamento da matriz defendida pela teoria da escolha pública, pois,


segundo o autor, alguns Estados desenvolveram arcabouço institucional capaz de
constranger os comportamentos predatórios de agentes sociais interessados em
capturar o aparelho estatal para satisfazer seus interesses. No entendimento de
Evans, um Estado ativo pode favorecer o desenvolvimento econômico dos países
(mediante a consolidação de matriz institucional que diminua as incertezas, asse-
gure os contratos e fomente o processo produtivo), em vez de sempre entravá-lo,
como advogam os neoutilitaristas.
O autor assume que o Estado está inserido em uma complexa teia de relações
entre inúmeros atores sociais que buscam se valer do aparato estatal para realizar
seus objetivos próprios. Dessa forma, a robustez institucional importa quando se
observa a forma como os Estados modernos buscam implementar seus objetivos,
visto que, de um lado, eles precisam da colaboração de inúmeros atores e que, de
outro lado, não podem deixar que esses múltiplos interesses desvirtuem ou modi-
fiquem demasiadamente a política outrora concebida. Assim, a ideia de autonomia
e parceria emerge. Autonomia para conceber e delinear as políticas de forma a
atingir o desenvolvimento social e econômico e parceria para engajar uma teia de
atores em torno dos objetivos concebidos previamente.
Este texto defende que os conceitos de “autonomia e parceria” são interessantes
para pensar em concepção, desenvolvimento, implementação e monitoramento da
PNDU dentro do contexto federativo brasileiro. Há inúmeros atores sociais, inseri-
dos em todas as esferas da Federação, que possuem suas próprias visões do que é uma
política de desenvolvimento urbano e de qual é a melhor forma de implementá-la
no território. Mais do que isso, dentro da esfera nacional, os três entes federados
são autônomos – o que torna ainda mais complexa a ideia formulada por Evans,
que concebe os Estados como um bloco mais ou menos monolítico. No caso bra-
sileiro, há que se falar em autonomias e parcerias devido ao desenho institucional
produzido pelo federalismo trino. De todo modo, o desenho da política feito no
âmbito da União precisa também levar em consideração a autonomia dos outros
entes para se apropriar do zeitgeist, ou seja, o espírito da política, e redesenhá-la
segundo seu contexto local.
De acordo com Evans (2004), a existência de uma “burocracia weberiana”,
isto é, funcionários constantemente treinados e qualificados, recrutados por
concurso, insulados e isentos da sazonalidade eleitoral, é um fator essencial para
a autonomia dos Estados. Ao mesmo tempo, demanda-se desses Estados que
desenvolvam interlocução com o setor privado e com os grupos da sociedade
civil para estabelecer parceiras. A parceria, nesse sentido, ajuda o Estado na co-
leta de dados e informações para a concepção e a implementação das políticas.
A ideia de parceria no âmbito da PNDU também se aplica ao setor privado,
240 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

principalmente porque ele produz inovações e investimentos, bem como de-


senvolve tecnologias de interesse da política.
A análise de Evans (2004) é diferente daquela feita pelos neoutilitaristas de que
o problema principal seria o excesso de burocracia. Segundo o mencionado autor, o
problema é a falta de burocracia weberiana bem treinada e apta ao trabalho. É essa
burocracia que garante que políticas sejam concebidas e implementadas.8
Conforme aponta Santos (2011), o princípio geral que delineia a repartição
de competências entre as entidades federais é o da “predominância do interesse”.
Dessa forma, segundo a autora, há clara hierarquização entre os entes nacionais.
Nesse contexto, a União é responsável pelas matérias de “interesse geral”; os
estados, pelas questões de “predominante interesse regional”; e os municípios,
pelos “assuntos de interesse local”. Dessa forma, com base nesse princípio geral, a
CF/1988 estabelece as regras para a divisão das competências entre os entes. Por
conta disso, o estabelecimento de direitos universais, como o direito à cidade,
acaba sendo proposto pela União; coordenado, em certa medida, pelos estados;
e, por fim, implementado pelos entes municipais. Então, a ideia de autonomia e
parceria fica um pouco comprometida, visto que há relação hierárquica entre os
entes e que as decisões são tomadas de cima para baixo.
Santos (2011, p. 79) afirma que as emendas constitucionais (ECs) aprovadas
desde a promulgação da CF/1988 expandiram relativamente pouco a autonomia
dos municípios. Além disso, há clivagem entre os municípios brasileiros, pois, de
um lado, os menores (a maioria dos entes) acabam se beneficiando pouco de leis
que conferem autonomia para coletar e gerir tributos em razão da pouca margem de
expansão existente. Por outro lado, no caso dos municípios de grande porte, interessa
a ampliação da margem de tributação devido ao montante de recursos a ser coletado.
De forma geral, segundo a autora, interessa a todos os municípios a expansão das
transferências de recursos da União, tanto as voluntárias quanto as constitucionais.
Entre as EC que podem conduzir à maior autonomia dos municípios, somente as de
números 39, 42, 44 e 55 beneficiam os pequenos municípios, que são a ampla maioria
dos municípios brasileiros (71% deles contam com população inferior a vinte mil
habitantes) e têm sua base econômica muito dependente da atividade rural; por isso,
pouco se beneficiam da autonomia para gerir os tributos de competência municipal, os
quais incidem sobre atividades urbanas. À grande maioria desses municípios, interessam
medidas que resultem no aumento das transferências (sobretudo o FPM), mesmo que
sejam transferências voluntárias, como é o caso dos convênios. Aos municípios de maior
porte, importa ampliar sua competência tributária. Observa-se que, para o conjunto
dos municípios, a medida de maior impacto em suas receitas – e, portanto, em sua
autonomia financeira – seria a retomada do crescimento, que significaria elevação

8. Em relação aos estudos sobre burocracia municipal, ver Nota Técnica no 1.2 (Funari, Lui e Ferreira Junior, 2020).
Federalismo e Relações Intergovernamentais no Brasil: notas para a construção | 241
da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

da quota-parte do ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços], a


principal fonte de receita dos municípios (Santos, 2011, p. 79).
Ainda segundo Santos (2011), a União fere a autonomia dos municípios
ao promulgar políticas que vinculam as receitas deles às políticas formuladas em
âmbito central. A referida pesquisadora aponta o caso da política educacional
como um exemplo, visto que a EC no 29 criou vinculação de receitas municipais,
no mesmo sentido que a política de saúde também exige contrapartida da União.
Há, na literatura, argumentos que defendem que, na esfera local, as deletérias
relações de clientelismo político se manifestam de forma mais aguda. Não raro, é
possível identificar que os grupos de interesse acabam cooptando as ações governa-
mentais. Neste capítulo, argumenta-se, a partir dos conceitos formulados por Evans
(2004), que é necessário construir e garantir a existência de espaços de participação
e controle social em âmbito local, além de estimular a constituição de um corpo
burocrático estável, para constranger os comportamentos predatórios. Por isso, cabe
aos agentes locais o monitoramento constante das práticas diárias.

4 A ESCALA SUPRAMUNICIPAL NA AGENDA URBANA


Conforme apontado anteriormente, a Federação brasileira passou por inúmeros
movimentos de centralização e descentralização. Após o fim do regime militar,
altamente centralizador e extremamente avesso à participação e ao controle social,
a CF/1988 inaugurou um novo período, dessa vez marcado por descentralização,
participação e transparência do Estado. Durante os anos 1990, no início do pro-
cesso de descentralização, os municípios passaram a ser os responsáveis por um
conjunto de competências sobre as políticas públicas. Contudo, com o passar do
tempo, percebeu-se que uma ampla gama de demandas não obedecia aos limites
territoriais dos municípios; pelo contrário, exigia atuação conjunta, coordenada
e de âmbito regional.
Nesse contexto, a escala supramunicipal se faz importante e necessária para
a implementação da PNDU. Inicialmente, abordaremos a temática das transfe-
rências voluntárias de recursos da União aos municípios e como os consórcios
públicos intermunicipais dialogam com essa temática. Em seguida, destacaremos
a discussão sobre a governança metropolitana e os desafios do desenvolvimento
da PNDU nesses espaços.

4.1 A transferência voluntária de recursos da União para os entes subnacionais


Segundo Abrucio e Franzese (2007; 2013), os convênios e as transferências vo-
luntárias abrangem a destinação de recursos federais ou estaduais a outro ente
federado (estados, municípios, Distrito Federal), a título de cooperação, auxílio
ou assistência financeira, estando desvinculados de determinação constitucional ou
242 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

legal. Segundo os autores, eles representam uma das formas recentes de cooperação
intergovernamental para a implementação de políticas públicas. Quando envol-
vem transferências voluntárias de recursos financeiros, os repasses são, em geral,
liberados após o envio de projetos pelos proponentes e a sua posterior aprovação,
com a exigência de que a execução financeira seja adequada ao objeto e ao plano
de trabalho. As transferências voluntárias não são reguladas por previsão legal que
padronize o volume ou a proporcionalidade de recursos passíveis de serem alocados
aos governos subnacionais, o que atribui autonomia ou discricionariedade à esfera
de governo concedente (Franzese, 2006; Moutinho, 2016).
É preciso observar que a prática não é exclusiva da Federação brasileira. Na lite-
ratura norte-americana sobre o tema, esse fenômeno é chamado de pork barrel – numa
tradução mais livre, significa trazer o porco para casa. Trata-se de metáfora para se
referir à apropriação de recursos do governo central para projetos localizados, garan-
tidos única e exclusivamente para trazer dinheiro ao reduto eleitoral do parlamentar
que destina a verba. Logo, representa controle legislativo sobre os projetos regionais
e sobre os recursos federais.
Conforme apontado pela literatura, há um viés alocativo que pode ser atribu-
ído às alianças dos governos locais com a União no que se refere às transferências
voluntárias federais para os entes subnacionais. Em outras palavras, o governo federal
distribui mais recursos para regiões governadas por aliados político-partidários e
menos para aquelas governadas pela oposição (Moutinho, 2016; Meireles, 2019).
Existe uma premissa dentro desses estudos de que a escolha de onde alocar verbas
se transforma em uma decisão de investimento eleitoral para a coalizão de partidos
do governo central. Em contrapartida, espera-se que os governantes subnacionais
retribuam, na forma de apoio eleitoral, os recursos recebidos anteriormente.
Além disso, segundo a análise de Meireles (2019), o alinhamento partidário
ao governo federal produz aumento da solicitação de recursos, seguido da sua
posterior distribuição. Esse dado mostra que as burocracias partidárias e as rela-
ções políticas estabelecidas entre os agentes municipais e os da União importam
tanto para o acesso aos órgãos federais que distribuem recursos quanto para a
distribuição em si. Do lado oposto, é interessante que os agentes políticos situados
no Legislativo e no Executivo federais (leia-se ministros, deputados e senadores)
acolham, tendo em vista o apoio político futuro, as demandas por verbas e políticas
públicas oriundas de suas bases eleitorais, o que pode ocorrer na forma de emendas
parlamentares, recursos orçamentários ou transferências voluntárias (Baião, 2016;
Baião e Couto, 2017).
Grande parte dos recursos discricionários no Brasil é distribuída por meio de trans-
ferências voluntárias da União (TVU), que são solicitadas pelos governos subna-
cionais por meio de propostas e planos de investimentos detalhados. Isso cria um
Federalismo e Relações Intergovernamentais no Brasil: notas para a construção | 243
da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

limite incontornável para a estratégia distributiva do governo federal: se governos


subnacionais aliados não submeterem propostas, não poderão receber parte daqueles
recursos. Apesar do apelo desse argumento, poucos estudos investigam as estratégias
que governos subnacionais adotam para pleitear transferências voluntárias – que
são importantes fontes de receitas para os orçamentos engessados dos municípios
brasileiros (Meireles, 2019, p. 174).
Em relação à distribuição de TVU por estado e região no Brasil, no período
de 2000 a 2012, Moutinho (2016) destaca que há grande disparidade no acesso
a esse tipo de recursos. O autor afirma que existe forte concentração de capital
direcionado para a região Sul do Brasil, quando se trata de emendas parlamentares
individuais provenientes de deputados da base aliada ao governo federal. Contu-
do, para a região Norte, foi destinado baixo volume de recursos voluntários. O
mencionado autor reitera que essa tendência contribui para a manutenção das
desigualdades inter-regionais, uma vez que a evolução dos recursos transferidos
aos entes subnacionais parece ser estabelecida muito mais por força política do que
por critérios de redução das desigualdades inter-regionais e de atendimento das
necessidades das populações locais. Analisando os recursos financeiros liberados
para a base aliada no período indicado, o estudo de Moutinho (2016) verifica que
a região Sul recebeu, proporcionalmente à quantidade de deputados, os maiores
valores médios, alcançando aproximadamente R$ 6,2 milhões por deputado, o que
é praticamente o dobro da média nacional. No outro extremo, a região Sudeste
ficou com apenas R$ 2 milhões por parlamentar. Comparando-se a quantidade
de deputados com o volume de transferências, percebe-se enorme distorção,
visto que, enquanto o Sudeste é responsável por 34,3% dos deputados, o valor
liberado equivale a apenas 20,7%. Já na região Sul, enquanto a bancada responde
por 15,7% dos deputados aliados, o volume financeiro alcançou 29,3% do total
(op. cit., p. 157).
Até o momento, discutimos o acesso dos municípios às TVUs. No caso do
acesso dos consórcios públicos aos recursos discricionários, há um conjunto de
ressalvas que precisam ser feitas em relação ao uso do raciocínio destacado pela
literatura. Destaca-se que um consórcio é formado por um conjunto de municípios,
dispostos regionalmente; assim, presume-se que existam prefeitos de vários partidos
políticos dentro dele. Desse modo, a proxy “é ou não é parte da coalizão partidária
do governo federal” usada na literatura sobre transferências voluntárias de recursos
para os municípios deixa de ser útil para explicar a celebração de convênios com os
consórcios. Contudo, como se trata de um conjunto de prefeitos que representa os
interesses de determinada região, uma nova variável entra para o cálculo de análise.
Conforme apontado por Lui, Schabbach e Nora (2020), o que pode contribuir
para compreender por que alguns consórcios conseguem celebrar convênios e outros
não é a sua robustez institucional, ou seja, a capacidade dessas organizações de:
244 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

i) agregar politicamente os interesses dos prefeitos em torno de uma demanda (ou


mais de uma); ii) solicitar os recursos ao governo de nível superior (estado ou União)
por meio do encaminhamento de instrumento específico (por exemplo, a proposição
de um convênio); iii) obter e gerenciar os recursos pleiteados; iv) implementar a
política pública, adequando os interesses e superando os conflitos que surgem em
escala regional; e v) prestar contas à União, possibilitando, assim, que mais recur-
sos sejam demandados. O referido estudo aponta que os prefeitos dos consórcios,
quando entram em consenso em relação a um projeto que necessite de recursos
da União, costumam fazer a negociação política de forma conjunta e cooperativa,
deixando de lado seus conflitos partidários internos. Em relação à realização de
convênios, no período anterior a 2019, a literatura descrevia esse processo como
bastante moroso, principalmente no que concerne às normas exigidas pela STN.
O Sistema de Informações sobre Requisitos Fiscais (Cauc) é o serviço auxiliar
de informações para transferências voluntárias mantido pela STN. Para um mu-
nicípio ter acesso às TVUs, precisa, no primeiro momento, estar com sua situação
regularizada no Cauc, por exemplo, a não prestação de contas de um convênio im-
possibilita que novos sejam firmados até que seja regularizada a situação. Contudo,
até o ano de 2019, essa lógica era aplicada aos consórcios públicos, ou seja, se um
município consorciado estivesse em situação irregular no Cauc, o consórcio do qual
faz parte não poderia firmar convênios com a União. A legislação que dispõe sobre
o tema mudou recentemente no sentido de apenas observar a situação do consórcio,
e não dos consorciados. Conforme aponta a Lei no 13.821, de 3 de maio de 2019,9
para a celebração dos convênios entre os consórcios e a União, as exigências legais
de regularidade serão aplicadas ao próprio consórcio público envolvido, e não aos
entes federativos nele consorciados. A atual legislação é entendida como um avanço
na área, pois fornece mais autonomia aos consórcios para firmarem convênios e
diminui a dependência dos entes que os compõem.
Os estudos sobre consórcios públicos verificam que os prefeitos que inte-
gram essas organizações se esforçam para suspender os seus interesses/conflitos
partidários e trabalhar conjuntamente na confecção de uma proposta (que, entre
outras informações, apresenta como será aplicado o recurso na região e como cada
município envolvido vai colaborar e se beneficiar). Posteriormente, os prefeitos
precisam solicitar formalmente o montante, seja por meio de proposta de convênio
encaminhada diretamente a um ministério (Poder Executivo), seja por meio de
emenda parlamentar (Poder Legislativo).
Nesse caso, o envio de propostas pelos consórcios públicos à União pode
ser entendido como fruto de um consenso regional. Após pesquisa sobre o tema,

9. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13821.htm e https://legislacao.


presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI&numero=13821&ano=2019&ato=783gXR61keZpWTea4.
Federalismo e Relações Intergovernamentais no Brasil: notas para a construção | 245
da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

identificou-se que a União, por intermédio de seus fundos (como o Fundo Nacional
de Saúde) e de alguns ministérios (Ministério da Integração Nacional, Ministério
do Meio Ambiente e Ministério da Agricultura), consegue estimular a proposição
de projetos dos consórcios públicos através de incentivos legais, como a Política
Nacional de Resíduos Sólidos, que institui que os municípios consorciados terão
prioridade no repasse dos recursos nessa área (Lui, Schabbach e Nora, 2020).
Nesse sentido, é consenso o fato de que os consórcios possibilitam aos municí-
pios (principalmente os menores, com baixa capacidade estatal instalada) alcançarem
um conjunto de produtos e serviços que, sozinhos, não teriam condições. Por isso,
entende-se que essas organizações representam um avanço na implementação do
federalismo cooperativo no Brasil.
Esse conjunto de reflexões tem implicações na forma como os municípios
podem buscar recursos para implementar projetos voltados às diretrizes da PNDU.
O primeiro fato constatado é que não há clareza em relação aos critérios que orien-
tam a distribuição de emendas parlamentares aos municípios. Mais do que isso,
verificou-se que a vinculação partidária e a busca por apoio político são variáveis
que regem essas relações políticas e financeiras.
Uma maneira de superar a falta de critérios para a transferência e a dificuldade
de acesso aos recursos é a construção de consenso social e político em torno da im-
portância do desenvolvimento urbano. Sem isso, recursos seguirão sendo destinados
sem critérios técnicos e tenderão a aprofundar as desigualdades regionais e inter-
municipais existentes. Contudo, o arcabouço institucional brasileiro foi desenhado
para operar dessa forma, o que dá liberdade para os parlamentares alocarem, por
intermédio de suas emendas, os recursos em áreas do próprio interesse. Na impos-
sibilidade de modificá-lo em curto prazo, a principal medida factível é a busca por
consenso entre os atores políticos, tanto em nível nacional quanto subnacional, em
torno da necessidade de financiar o desenvolvimento urbano no país. Os esforços
para a instituição do orçamento impositivo ilustram exatamente esse princípio da
autonomia parlamentar, visto que busca tornar obrigatória a execução orçamentá-
ria e financeira das emendas individuais dos parlamentares pelo Poder Executivo.
É bastante evidente que políticas setoriais, que têm rebatimento sobre a questão
urbana, estão constantemente sendo desenvolvidas nos municípios brasileiros.
Todavia, acredita-se que a PNDU deveria justamente promover a integração das
políticas voltadas ao urbano. No que concerne ao âmbito regional, os consórcios
são um espaço muito interessante para a construção de agenda coletiva e podem
ser instrumentos muito eficientes na implementação de políticas relacionadas ao
desenvolvimento urbano no país.
A pesquisa desenvolvida no Ipea, no âmbito do projeto Governança Metropo-
litana no Brasil, aponta que há, nas RMs brasileiras, amplo conjunto de consórcios
246 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

e arranjos institucionais. Contudo, são raros os casos em que o consórcio ocupa o


mesmo desenho territorial da RM. Normalmente, há consórcios que abrangem apenas
alguns municípios metropolitanos; outros são compostos por uma parcela dos muni-
cípios metropolitanos; e alguns estão fora do arranjo da RM. Nesse sentido, trata-se
de mosaico institucional complexo, fruto de arranjos e afinidades políticas locais.

5 A ESCALA REGIONAL NA AGENDA URBANA: A POLÍTICA NACIONAL


DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL E A PNDU
Sendo políticas irmãs, a fim de apreender a escala regional na agenda urbana,
refletiremos sobre relações interfederativas, desenho institucional e governança
da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR), bem como sobre os
elementos institucionais inseridos nas ações e nos projetos resultados dessa política,
a fim de dar subsídios à elaboração da PNDU. Voltemos à pergunta previamente
enunciada, qual seja: quais aprendizados podem ser extraídos da experiência de
concepção e execução da PNDR para o desenvolvimento da PNDU?
Apesar de as políticas supracitadas10 – saúde, política de apoio à gestão ad-
ministrativa dos municípios e meio ambiente – manejarem, de alguma forma, sua
organização e institucionalidade sobre o território, elas são sobretudo setoriais.
Nesse sentido, merece destaque a PNDR, que, na sua concepção, foi pensada para
o desenvolvimento territorial brasileiro, em escala regional. Nesse caso, enfatiza-se
a transversalidade temática da PNDR, que inclui eixos setoriais de intervenção,11
como desenvolvimento produtivo, ciência, tecnologia e inovação, educação e qua-
lificação profissional, infraestrutura econômica e urbana, desenvolvimento social
e acesso a serviços públicos essenciais, bem como fortalecimento das capacidades
governativas dos entes federativos.
Incidindo diretamente sobre o território, na escala regional, sua institucionali-
dade perpassa os diferentes entes federativos. O texto da política especifica que seu
fundamento consiste na mobilização planejada e articulada da ação nos diferentes
entes – federal, estadual, distrital e municipal – e nos setores público e privado.
Isso deverá ocorrer por meio de programas e investimentos da União e dos entes
federativos, associadamente, que estimulem e apoiem processos de desenvolvimento.
Assim, tal política apresenta-se como interfederativa.
Dessa forma, a PNDR, além de ser intersetorial e interfederativa, também
possui abordagem multiescalar.12 Sobre isso, Brito, Mattedi e Santos (2017, p. 2)
constataram que o “uso de múltiplas escalas geográficas aplicadas ao planejamento

10. Políticas citadas como tópicos da seção introdutória deste capítulo.


11. Esses eixos foram indicados no Decreto no 9.810, de 30 de maio de 2019.
12. A PNDR definiu estratégias de desenvolvimento regional em três escalas: federal, macrorregional e sub-regional.
Federalismo e Relações Intergovernamentais no Brasil: notas para a construção | 247
da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

de políticas públicas de desenvolvimento regional é recente no Brasil. Remete à


criação da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR)”.13
Tais características recaem sobre as premissas formuladas para a PNDU. Na sua
concepção geral, essa política se propõe “à construção de uma visão estratégica do
território brasileiro, adotando uma abordagem multiescalar (ou multinível) interfede-
rativa, intersetorial (e interinstitucional), e uma perspectiva sistêmica, que incorpora
temas transversais e a dimensão do desenvolvimento econômico” (Brasil, 2020).
Em 2003 iniciaram-se as formulações de uma PNDR, que, ao longo do
tempo, traduziram-se na PNDR I e II. Em síntese, o corpo normativo de ambas
sinaliza o reconhecimento das desigualdades regionais, que se configuram como
obstáculos ao desenvolvimento coeso e equitativo do país. Os objetivos de formu-
lação consistiram na promoção de trajetórias de desenvolvimento que resultassem
em maior equilíbrio econômico e social das regiões brasileiras. Tais trajetórias
incidiram de maneira diferenciada sobre o território e levaram em consideração,
além da diversidade nacional, temas como sustentabilidade, questões sociais e
culturais, transparência, participação social, entre outros.

5.1 A operacionalização da PNDU na escala regional


Apesar de ser uma política de cunho territorial, a PNDR versou sobre desenvol-
vimento que alcançasse as dimensões sociais, culturais e ambientais. Contudo,
seu nível escalar e a dimensão territorial avantajada das regiões brasileiras faziam
com que os temas das potencialidades e das capacidades estivessem muito mais
atrelados às questões produtivas. Os programas e os projetos empregaram recur-
sos em ativos territoriais, como grandes obras e empreendimentos de estradas de
rodagem, ferrovias, aeroportos, conjuntos habitacionais, programas de incentivo
e ampliação do setor industrial. Logo, a implementação da política e as relações
entre os entes ocorrem mais na implementação de ativos territoriais e no repasse
de recursos setoriais. Portanto, a operacionalização da PNDU na escala regional
deve caminhar para o alcance dessas dimensões que compõem o desenvolvimento
sistêmico da escala local para a regional.
A questão escalar de ambas é determinante para a sua implementação, e a
interconexão deve acontecer pela fluidez escalar. Dessa maneira, enquanto a PNDR
transcorrer de cima para baixo, das escalas grandes para menores, por meio das
grandes obras, a PNDU deverá transcorrer de baixo para cima, das escalas locais
para as regionais, por meio de ações estratégicas e investimentos que visem ao
desenvolvimento urbano in loco, ainda que este tenha rebatimento nos níveis
escalares adjacentes.

13. Os autores avaliam a I PNDR, de 2003.


248 | Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano:
escalas, agendas e aspectos federativos no urbano brasileiro

Do ponto de vista metodológico, a PNDR se utiliza da multiescalaridade


e tem quatro níveis escalares: o supranacional, o macrorregional, o de regiões
especiais e o sub-regional. Dessa forma, o intraurbano deverá ser protagonizado
pela PNDU. Nesse sentido, essa política não concorre com a PNDR, porque elas
diferem na escala.
A escala da PNDU conta com um nível maior de detalhe por atender a uma
proporção territorial e de governo menor que a da PNDR. Enquanto esta versa sobre
os princípios e as competências das grandes regiões brasileiras, aquela versará sobre as
cidades, grandes ou pequenas, inseridas em realidades de dinâmica urbano-regional
ou urbano-local, que fazem parte de um nível superior ou inferior da rede urbana.
Ademais, seu texto deverá circunscrever contextos, questões e demandas que trans-
correm no dia a dia das populações e no local onde vivem.
Ainda que a PNDR tenha criado ambientes de participação, a PNDU, a
partir da sua escala, logrará espaço de ação para os diferentes agentes inseridos nas
dinâmicas urbanas, ou seja, o indivíduo como membro do público e participante
de ações econômicas, sociais e políticas. A mudança de escala gera transformação
nos agentes envolvidos, mesmo que a discussão aqui levantada seja alumiar a im-
portância das relações interfederativas nas diferentes etapas da política pública. Não
há dúvida de que as arenas e os sujeitos ativos na PNDU se distinguem daqueles
presentes na PNDR.
Nessa mesma linha de pensamento, os investimentos dos programas oriundos
da PNDU poderão ser mais disseminados e fragmentados em comparação aos
investimentos realizados e previstos na PNDR. A transformação, o investimento
e a melhoria em um bairro, por exemplo, afetam com mais rapidez e intensidade
seus moradores do que um investimento regional, ainda que ambos resultem em
melhorias territoriais, econômicas e sociais. As demandas territoriais serão seme-
lhantes, mas terão dimensões e resultados diferentes, visto que a realidade local é
diferente da regional, ainda que estejam presentes uma na outra.
A natureza das políticas é fundamental para a relação de tangenciamento entre
elas. É possível afirmar que, enquanto a PNDR é de cunho regional, a PNDU é
de cunho municipal?
Macedo e Porto (2020) apontam com clareza essa distinção quando afir-
mam que, apesar da valorização da escala e dos atributos locais, a PNDR não
se resguardou de indicar a União como protagonista nas ações que visam à
superação das desigualdades regionais. Diante disso, questões como autonomia
e capacidade fiscal dos municípios voltam à tona, como discutido nas seções an-
teriores. Há um ambiente de insegurança fiscal diante da capacidade fragilizada
dos municípios de conduzirem as políticas públicas que foram transferidas para
sua responsabilidade. Voltemos à seguinte questão: os municípios tornaram-se
Federalismo e Relações Intergovernamentais no Brasil: notas para a construção | 249
da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano

executores de políticas centralmente definidas. É a conhecida relação entre a


municipalização das políticas públicas versus a concentração dos recursos na
União, fruto da descentralização administrativa – transferência da administração
e provisão de serviços como educação, saúde, assistência social e moradia aos
governos subnacionais –, sem, necessariamente, a descentralização fiscal, que
confere capacidades para esses entes aumentarem as receitas ou a autonomia
fiscal (Falleti, 2006, p. 60).
Com base nessas análises, infere-se que a experiência da PNDR no Brasil
carrega importantes ensinamentos em termos de arranjos institucionais e federati-
vos necessários para planejar e implementar política de desenvolvimento na escala
nacional. Olhando para essa experiência, a PNDU, que possui denominadores co-
muns com a PNDR, deve partir do desenvolvimento de coordenação institucional
e desenho de projetos e planos robustos a fim de dar conta de todas as questões
que permeiam a gestão e o planejamento urbano.

6 NOTAS FINAIS
Desde os anos 1990, a tônica criada no desenvolvimento de políticas públicas no
Brasil foi marcada por intensa centralização decisória e execução descentralizada.
Conforme aponta Jaccoud (2020), o progressivo engajamento dos níveis
subnacionais na produção de políticas sociais não foi, assim, acompanhado pela
retirada do governo federal. Segundo a autora, o que se deu foi o contrário, pois a
atuação da União foi crescente; buscou-se, em um primeiro momento, incentivar
a descentralização com foco na municipalização da oferta dos serviços e, poste-
riormente, aprofundar a integração de esforços dos entes federados em torno de
objetivos comuns e estratégias partilhadas.
Em certo sentido, a mesma lógica perdura até os dias atuais. Para a efetiva
implementação dos objetivos da PNDU, é preciso que se construam esforços no
sentido de promover a cooperação e a coordenação interfederativa. Não é possível
nem recomendável que a União elabore sozinha todos os objetivos e os instru-
mentos da política, visto que sua implementação depende de amplo conjunto de
atores no contexto subnacional.

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Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

EDITORIAL

Coordenação
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Assistentes da Coordenação
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Supervisão
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Revisão
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Editoração
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Missão do Ipea
Aprimorar as políticas públicas essenciais ao desenvolvimento brasileiro
por meio da produção e disseminação de conhecimentos e da assessoria
ao Estado nas suas decisões estratégicas.

Os volumes que compõem a série Diálogos para uma Política Nacional de Desenvolvimento
Urbano são frutos da parceria estabelecida entre o Ipea e o Ministério das Cidades, no âmbito
de um termo de execução descentralizada firmado ainda em 2019. Os três volumes da série,
que reúne 31 capítulos e mais de quarenta autores e autoras, trazem ao público as discussões
e as contribuições produzidas ao longo do desenvolvimento do projeto de apoio à construção
da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), abarcando o tema do
desenvolvimento urbano numa perspectiva interescalar, intersetorial e atenta aos desafios da
governança interfederativa e das soluções de financiamento. Os    e as
, bem como os registros dos onze Diálogos para uma PNDU, eventos realizados
ao longo de 2021, são os principais insumos desta rica e diversa produção que pretende
enriquecer e fomentar o debate sobre a PNDU. Objetiva-se contribuir, ao final, para que esta
seja capaz de orientar o desenvolvimento urbano no país levando em conta a diversidade do
território brasileiro e as necessidades de enfrentamento dos desafios contemporâneos que se
somam aos problemas e às assimetrias socioespaciais estruturais que fazem parte da formação
social e econômica do país.

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