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http://dx.doi.org/10.1590/1982-3533.2016v25n2art7
Resumo
Nos anos 1990, a indústria automobilística brasileira experimentou um processo de reestruturação
induzido pela mudança nas estratégias de concorrência das montadoras e pelas transformações na
economia nacional. O trabalho analisou como ocorreu esse processo no período 1989-2013 desde uma
concepção teórica Evolucionária. A reestruturação levou à redução do hiato tecnológico em veículos e
em processos de fabricação, frente ao observado em países avançados. Isto se manifestou por meio de
investimentos em modernização das plantas existentes e em abertura de novas unidades de produção.
O resultado foi um expressivo aumento de produção, produtividade e consumo de autoveículos, que
alçaram o Brasil à 7ª posição no ranking de países produtores e à 4ª no de vendas domésticas,
consolidando sua condição de plataforma regional de fabricação para o mercado sul-americano.
Ademais, algumas das subsidiárias brasileiras chegaram a um nível de domínio da tecnologia, que as
habilitaram ao desenvolvimento autônomo de novos autoveículos.
Palavras-chave: Paradigma tecnológico; Estratégias empresarias; Padrão de concorrência setorial;
Indústria automobilística brasileira; Plataforma regional de produção.
Abstract
Competitive strategies and performance of the automotive industry in Brazil
In the 1990s, the Brazilian automotive industry experienced a restructuring process induced by the
changes in competitive strategies of assemblers and in the national economy. This study analyzes how
this process took place in the period 1989-2013, under an Evolutionary theoretical approach. The
restructuring process reduced the technological gap in vehicles and in the manufacturing process, in
comparison to what was observed in developed countries. This has been shown in investments in the
modernization of existing plants and the opening of new ones. The result was an expressive increase in
production, productivity and consumption, putting Brazil in the 7th position on the ranking of producers
by countries and in the 4th for domestic sales, which consolidates its condition as a regional
manufacturing platform for the South American market. Moreover, some subsidiaries reached a high
technological mastery level, which has enabled the autonomous development of new products.
Keywords: Technological paradigm; Competitive strategy; Pattern of sectoral competition; Brazilian
automotive industry; Regional manufacturing platform.
JEL L1, L23, L62, O14, O33.
*
Artigo recebido em 9 de fevereiro de 2015 e aprovado em 30 de junho de 2016. Agradecemos ao
parecerista anônimo pelas sugestões, as quais ajudaram a aprimorar a qualidade deste trabalho. Eventuais erros e
omissões remanescentes permanecem sendo de inteira responsabilidade dos autores.
**
Pesquisador da Fundação de Economia e Estatística (FEE), Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail:
[email protected].
***
Professor do Programa de Pós-Graduação em Economia da Faculdade de Ciências Econômicas da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGE/UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil. E-mail: [email protected].
Introdução
O trabalho analisa a evolução das estratégias de concorrência da indústria
automobilística mundial, particularmente em sua atuação no Brasil, no período 1989-
2013. A ótica analítica empregada tem por base a Teoria Evolucionária, com foco
nos conceitos de concorrência schumpeteriana e de paradigmas tecnológicos. Busca-
se mostrar que a convergência das estratégias de concorrência das subsidiárias
brasileiras com as de suas matrizes, somada ao processo de mudanças econômicas e
institucionais ocorridas no Brasil no período 1989-2013, em conjunto, levaram à
reestruturação produtiva da indústria automobilística no País. Esse movimento
caracterizou-se por investimentos, a partir de uma estratégia direcionada a
plataformas regionais de produção e vendas, que resultaram na entrada de outras
montadoras externas no Brasil e modernização de filiais nacionais. Isto significou a
atualização tecnológica – catching-up – em veículos e em processos de fabricação,
reduzindo o hiato em relação aos países avançados. Em decorrência, houve
significativos incrementos de produção, de produtividade e de consumo, que
consolidaram o Brasil como plataforma regional de fabricação para atender o
mercado da América do Sul.
O estudo aqui realizado foca os produtores de autoveículos: automóveis,
veículos comerciais leves, caminhões e ônibus. Ainda que cada um desses produtos
apresente especificidades de mercado, existem pontos em comum entre eles, em
termos das estratégias adotadas, tecnologias e outras, permitindo que sejam tratados
conjuntamente. Dada esta delimitação, a pesquisa foi realizada mediante revisão de
literatura sobre a indústria automobilística internacional e nacional e de análise de
dados disponíveis no Anuário Estatístico da Indústria Automobilística Brasileira
(2014), publicado pela Anfavea1. Além desta introdução, o trabalho está organizado
em cinco seções: a primeira contempla o arcabouço teórico do estudo; a segunda
trata da caracterização da indústria automobilística; a terceira analisa a evolução de
suas estratégias de concorrência; a quarta estuda os seus impactos no Brasil; e a
quinta apresenta as conclusões do trabalho.
1 Arcabouço teórico
A concorrência schumpeteriana é entendida como sendo a disputa de
mercado entre empresas rivais por meio da diferenciação de algum atributo ligado
ao produto. Para tanto, as empresas adotam estratégias capazes de desenvolver
capacitações que propiciem vantagens competitivas sustentáveis e maiores lucros.
Assim, uma estratégia competitiva é definida como sendo:
[...] um conjunto de metas, políticas e restrições autoimpostas que descrevem
como a organização planeja dirigir e desenvolver todos os recursos investidos
antigas tecnologias, assim como aquelas empresas que não conseguem acompanhar
a mudança. A isto Schumpeter (1984) chamou de “processo de destruição criadora”,
em que os agentes passam a progressivamente produzir, consumir e direcionar
recursos para aquilo que é novo, destruindo o antigo e criando novos padrões de
produção e consumo no mercado. Segundo Dosi e Nelson (1994, p. 163, tradução
nossa) isto ocorre porque as “[...] técnicas mais produtivas e lucrativas tendem a
substituir as menos produtivas através de dois mecanismos: firmas usando
tecnologias mais lucrativas crescem; e tecnologias mais lucrativas tendem a ser
imitadas e adotadas por firmas que utilizavam outras que propiciavam lucros
menores”. A aceitação e a difusão dessas novas tecnologias radicais estabelecem o
que Dosi (2006, p. 41) chamou de um novo paradigma tecnológico. Em sua
definição, um paradigma tecnológico é “[...] um ‘modelo’ e um ‘padrão’ de solução
de problemas tecnológicos selecionados, baseados em princípios selecionados,
derivados das ciências naturais, e em tecnologias materiais selecionadas”. Uma vez
firmado, o paradigma determina e limita as possibilidades de desenvolvimento
futuro de inovações tecnológicas, bem como a direção do esforço de solução de
problemas, a tecnologia material desenvolvida, as propriedades físico-químicas
exploradas e seus aspectos econômicos (Dosi, 2006, p. 43). Nesse sentido, há um
efeito de focalização dos desenvolvimentos subsequentes das inovações radicais
introduzidas, como avanços secundários, que acabam se constituindo em uma
determinada trajetória tecnológica. As inovações que ocorrem ao longo de uma dada
trajetória tecnológica podem ser consideradas como incrementais, devido ao seu
caráter de complementaridade em relação àquela radical. Isto significa que são
avanços que ocorrem em design, em novas funções e características, em adaptação
de outras tecnologias ao produto, etc. Ou seja, as tentativas adicionais de
diferenciação das empresas no processo de concorrência tenderão a ocorrer ao longo
da trajetória, até que o paradigma tecnológico alcance os seus limites e venha a ser
substituído. O que determinaria o caráter do avanço, se radical ou incremental,
seriam dificuldades crescentes, tanto técnicas quanto econômicas, de propiciar
vantagens competitivas quando o ciclo do produto atinge sua fase de maturidade,
onde existe pouco campo para melhorar alguma característica da mercadoria ou de
seu processo de fabricação com viabilidade econômica (Utterback, 1996).
O caráter de seleção e focalização dos esforços no avanço tecnológico,
determinados pelo paradigma, também acabam criando uma hierarquização dos
atributos de competição que as firmas procuram desenvolver, em termos de
características dos produtos, eficiência do processo de fabricação e habilidade em
atender ao mercado, resultando na instituição de um padrão de concorrência setorial.
Isto significa que dentre todas as variáveis possíveis de competição empregadas
pelas empresas, existe um conjunto delas que possui maior importância relativa. Os
atributos de concorrência cruciais são determinados pelas características da
tecnologia, da mercadoria, da fase do ciclo de vida em que o produto se encontra e
pelos requisitos de sua aceitação pelo mercado. Isto, obviamente, não significa que
as firmas não procurem, sempre que oportuno, concorrer também nas demais
variáveis. Assim, as estratégias individuais seguidas pelas empresas devem ser
compatíveis com o padrão de concorrência setorial dominante.
(3) Um exemplo dessa situação pode ser observado nos modelos ‘Golf’ da Volkswagen e ‘A3’ da Audi,
que utilizam a mesma plataforma.
(4) A segmentação de fornecedores pelas montadoras vem causando um processo de reestruturação no setor
de autopeças, expresso por um aumento da concentração de mercado por meio de fusões, aquisições e eliminação
de empresas menos competitivas. Contudo, foge ao escopo deste trabalho a análise deste processo.
(5) Nessa seção serão tratados apenas os investimentos realizados em abertura de novas unidades de
produção. Os demais tipos de investimentos foram comentados em suas respectivas seções.
(6) O grupo das sete economias mais desenvolvidas do mundo (G7) é formado por Estados Unidos, Canadá,
Japão, Alemanha, França, Itália e Reino Unido.
menos suscetível aos impactos da crise financeira mundial, iniciada em fins de 2007,
enquanto que no G7 a queda de produção foi acentuada. Note-se também que os
dados contidos no Gráfico 1 evidenciam o ponto da saturação do mercado de
autoveículos nas nações do G7, o que se expressa na relativa estabilidade observada
entre 2001 e 2007. Portanto, o encurtamento da diferença entre o número de
autoveículos fabricado a cada ano nos BRICS e no G7 salienta o ponto, como já
mencionado, de que esteja em curso uma transição de um modelo “doméstico” de
competição para um novo de cunho “global”.
Gráfico 1
Produção Mundial de Autoveículos 2001-2012
(Milhões de Unidades)
40,0
30,0
20,0
10,0
0,0
2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012
G7 BRICS Demais Países
Fonte: Anfavea/Anuário Estatístico da Indústria Automobilística 2014. Elaboração dos autores.
Gráfico 2
Investimentos das Montadoras da Indústria Automobilística no Brasil no Período 1980-1995
(US$ Bilhões a Preços de 2012)
6,0
5,0
4,0
3,0
2,0
1,0
0,0
1980
1981
1982
1983
1984
1985
1986
1987
1988
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
Fonte: Anfavea/Anuário Estatístico da Indústria Automobilística 2014. Dados deflacionados pelo
IPC EUA (Ipea, 2015). Elaboração dos autores.
(11) As principais medidas de incentivo ao setor entre 1989 e 1993 foram: a implantação da Câmara Setorial
da Indústria Automobilística em 1992, os Acordos Automotivos de 1992 e 1993 e o Decreto 799/1993 que
estabelecia incentivos à fabricação de veículos “populares” (Latini, 2007, p. 288-295).
Gráfico 3
Licenciamento de Autoveículos Novos Importados pelo Brasil 1989-2013
(Unidades Licenciadas)
900000
800000
700000
600000
500000
400000
300000
200000
100000
0
1989
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
Fonte: Abeiva, Anfavea e Denatran em Anuário Estatístico Anfavea 2014. Os dados até 2001
referem-se a vendas internas no atacado. A partir de 2002 referem-se a licenciamento
(Denatran/Renavam). Elaboração dos autores.
(12) Valores a preços anuais de 2012, deflacionados pelo IPC dos Estados Unidos (Ipea, 2015).
(13) Valores a preços anuais de 2012, deflacionados pelo IPC dos Estados Unidos (Ipea, 2015).
Tabela1
Produção de autoveículos, emprego e produtividade nas montadoras
da indústria automobilística no Brasil 1989-2013
Gráfico 4
Licenciamento de Autoveículos Novos Nacionais e Importados no Brasil de 1989 a 2013
(unidades licenciadas)
(17) Valores a preços anuais de 2012, deflacionados pelo IPC dos Estados Unidos (Ipea, 2015).
Tabela 2
Exportações Brasileiras de Autoveículos em 2013
Valor Participação
Países/Regiões Quantidade
(US$ Milhões) % Valor
Mundo 609.793 9.553 100,0
América do Sul 535.282 8.365 87,6
Argentina 479.212 6.845 71,7
Chile 12.446 461 4,8
Peru 8.452 369 3,9
Uruguai 15.020 227 2,4
Colômbia 9.672 219 2,3
Paraguai 4.832 77 0,8
Venezuela 2.683 72 0,8
Outros 2.965 93 1,0
México 48.149 509 5,3
Resto do Mundo 26.362 679 7,1
Fonte: Brasil (2015). Elaboração dos autores.
Conclusões
A partir do referencial de análise evolucionário, baseado nos conceitos de
concorrência schumpeteriana e de paradigma tecnológico, o trabalho procurou
estudar como a indústria automobilística no Brasil se reestruturou e foi alçada ao
posto de plataforma de produção e de distribuição para a América do Sul no período
1989-2013. Este processo foi decorrente de duas vertentes. A primeira deriva da
expansão das montadoras em âmbito internacional para mercados emergentes. A
segunda vertente resulta das mudanças ocorridas na economia brasileira nos anos
1990. Dentre as principais modificações institucionais, se pode elencar a abertura
comercial, a estabilização econômica, a alteração do regime cambial e o
estabelecimento de novas políticas de apoio à indústria automobilística. Além disto,
a formação do Mercosul também foi um fator importante a incentivar o processo de
reestruturação do setor. O resultado da influência destas duas vertentes foi uma maior
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