A Mulher Suicida Na Obra de Sylvia Plath

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA


BACHARELADO EM SOCIOLOGIA

CAROLINA DOS SANTOS BORGES

A MULHER SUICIDA NA OBRA DE SYLVIA PLATH: LITERATURA COMO


REPRESENTAÇÃO DO SOCIAL

Niterói, RJ
2019
CAROLINA DOS SANTOS BORGES

A MULHER SUICIDA NA OBRA DE SYLVIA PLATH: LITERATURA COMO


REPRESENTAÇÃO DO SOCIAL

Trabalho de conclusão de curso


apresentado ao curso de Bacharelado em
Sociologia, como requisito parcial para
conclusão do curso. Área de concentração:
Sociologia da Arte e Sociologia da
Cultura

Orientadora:
Prof.a Dr.a, Lígia Maria de Souza Dabul

Niterói, RJ
2019
Ficha catalográfica automática - SDC/BCG
Gerada com informações fornecidas pelo autor

B732m Borges, Carolina dos Santos


A mulher suicida na obra de Sylvia Plath : literatura como
representação do social / Carolina dos Santos Borges ;
Lígia Maria De Souza Dabul, orientadora. Niterói, 2019.
53 f.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Sociologia)-


Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia, Niterói, 2019.

1. Sociologia da Arte. 2. Sociologia da Cultura. 3. Mulher


suicida. 4. Literatura. 5. Produção intelectual. I. De Souza
Dabul, Lígia Maria, orientadora. II. Universidade Federal
Fluminense. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. III.
Título.

CDD -

Bibliotecária responsável: Thiago Santos de Assis - CRB7/6164


CAROLINA DOS SANTOS BORGES

A MULHER SUICIDA NA OBRA DE SYLVIA PLATH: LITERATURA COMO


REPRESENTAÇÃO DO SOCIAL

Trabalho de conclusão de curso


apresentado ao curso de Bacharelado em
Sociologia, como requisito parcial para
conclusão do curso. Área de concentração:
Sociologia da Arte e Sociologia da
Cultura

Aprovada em 22 de julho de 2019.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________
Prof.a Dr.a, Lígia Maria de Souza Dabul (Orientadora) – UFF

_____________________________________________
Prof. Dr. Luis Carlos Fridman – UFF

_____________________________________________
Prof. Me. Guilherme Nogueira Milner – UFF

Niterói, RJ
2019
À minha tia, Mara Gilda, por ter me ensinado a apreciar a leitura.
AGRADECIMENTOS

À minha família, por todo o apoio durante este período de estudos. Sem a base que me
proporcionaram, jamais estaria escrevendo estas linhas;

À minha orientadora, professora Lígia Dabul pela ajuda na construção do tema deste trabalho
de conclusão de curso e pelo excelente trabalho de orientação durante todo o tempo;

Aos pareceristas, Luis Carlos Fridman e Guilherme Nogueira Milner pela gentileza de
aceitarem ler e comentar o trabalho;

Ao Tadeu Levy, amigo e parceiro de vida, por todo o carinho e apoio;

Aos meus poucos, mas valorosos amigos, por toda compreensão e suporte.
.
Escrever rompe os túmulos dos mortos e os céus acima dos quais se ocultaram os
anjos proféticos.

Sylvia Plath
RESUMO

O presente trabalho busca estabelecer um estudo interpretativo de algumas obras selecionadas


da escritora norte-americana Sylvia Plath: A Redoma de Vidro e Os Diários de Sylvia Plath,
com a finalidade de analisar de que forma se dá a construção da mulher suicida que é
constantemente representada em suas obras. Sabemos que Sylvia usava suas próprias
experiências de vida como inspirações para a confecção de seus escritos. A poeta, que morreu
em decorrência de suicídio na Inglaterra no ano de 1963, também costumava tematizar a
morte em seus trabalhos, assim como construía mulheres suicidas como personagens dos
mesmos. Podemos verificar que as personagens de seus escritos possuem um sentimento
comum: a sensação de desencaixe em relação à sociedade, proveniente dos papéis sociais
destinados a elas. Dessa forma, a mulher suicida representada em suas obras reflete não
apenas a si mesma, mas também outras mulheres de seu tempo que viveram as mesmas
experiências.

Palavras-chave: Sylvia Plath. Suicídio. Literatura. Mulher Suicida. Sociologia da Arte.


Sociologia da Cultura.
ABSTRACT

The present work aims to establish an interpretative study of some selected works of the
North American writer Sylvia Plath: The Bell Jar and The Unabridged Journals of Sylvia
Plath, with the purpose of analyzing how the image of the suicidal woman which is constantly
represented in her works is built. We know that Sylvia used her own life experiences as
inspirations to write her works. The poet, who died in England in1963 as a result of suicide,
also used to thematize death in her books as well as constructing suicidal women as
characters. We can verify that the female characters of her writings have a common feeling:
the feeling of detachment in relation to the society that comes from the social roles destined to
them. Thus, the suicidal woman represented in her works reflects not only herself, but also
other women of her time who lived the same experiences.

Keywords: Sylvia Plath. Suicide. Literature. Suicidal woman. Sociology of art. Sociology of
Culture.
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Números de suicídios na Inglaterra e País de Gales, 1952 - 1961 .......................... 23


Tabela 2 – Números de tentativas de suicídio por idade e sexo na Inglaterra e País de Gales,
1952 – 1961...............................................................................................................................23

Tabela 3 – Número de suicídios entre homens e mulheres entre 1955 e 1965 na Inglaterra e
País de Gales, por método utilizado.........................................................................................24
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................. 10
2. MORTE E SUICÍDIO COMO FATOS SOCIAIS......................................... 15
2.1 O suicídio de mulheres no contexto social de Sylvia Plath............................ 22

3. ALGUMAS PERSPECTIVAS SOCIOLÓGICAS EM ARTE E


LITERATURA.............................................................................................. 27
3.1. Sobre histórias de vida.................................................................................. 31

4. ANÁLISE DAS OBRAS DE SYLVIA PLATH .......................................... 34


4.1 As Sylvias ...................................................................................................... 35
4.1.1 Os diários ....................................................................................................... 39
4.1.2 A redoma ....................................................................................................... 43
4.2 Os traços ......................................................................................................... 47
4.2.1 As escolhas ..................................................................................................... 48
4.2.2 Suicídio e suas formas .................................................................................... 49

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 50

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................. 52
10

INTRODUÇÃO:

Abordaremos no presente trabalho as representações da mulher suicida na obra de


Sylvia Plath, questionando quem é a mulher suicida em suas obras e no que essas
representações nos ajudam na compreensão de seus escritos, bem como do contexto social em
que eles foram produzidos. Iremos utilizar algumas ideias de autores como Karl Marx (2006),
Émile Durkheim (2000) e Norbert Elias (2001). Utilizaremos neste trabalho material
bibliográfico e documental: o romance A redoma de vidro e Os diários de Sylvia Plath1. Para
isso, trabalharemos no sentido de fazer uma aproximação entre a Sylvia de seus próprios
diários e Esther, personagem principal do romance A redoma de vidro, as entendendo como
personagens que além de se descreverem, também trazem consigo um contexto social.
Portanto, a hipótese a ser verificada ao longo deste trabalho é a de que assim como as
mulheres suicidas de sua época, Esther e Sylvia possuíam uma relação de anomia para com a
sociedade no sentido de que não se encaixavam nos papéis sociais a elas apresentados no
contexto social em que viviam (e que então desta forma seria construída a imagem da mulher
suicida representada em suas obras).

Tema importante nessa pesquisa, o suicídio não é um assunto abertamente discutido


em nossa sociedade por diversos fatores, dentre eles pelo fato de que entre nós ocidentais, o
tema da morte é um tabu. Erguemos um muro entre os mortos e os vivos, construído a partir
da ordem de não falar sobre o assunto, como se assim pudéssemos afastar a morte. Também
temos receio do chamado “efeito Werther”2 ou “copycat effect”. O termo foi desenvolvido
pelo sociólogo David Phillips em 1974 com o objetivo de definir o efeito imitativo do
comportamento suicida e se refere ao romance de Johan W. Von Goethe: Os Sofrimentos do
Jovem Werther (2014), que conta a história de um jovem que, após uma desilusão amorosa,
cometeu suicídio com um tiro na cabeça. A venda do livro foi proibida em várias partes da
Europa, pois supostamente desencadeou uma onda de suicídios entre jovens que usaram o
mesmo método de suicídio que o personagem principal da obra.

1
Tematizar a morte e o suicídio era uma prática costumeira de Sylvia. Além dos trabalhos que
selecionamos, existem outros que seguem na mesma temática, como os poemas: Lady Lazarus, Palavras, Papai
e Olmo por exemplo. Os deixo de fora do trabalho atual, mas com a intenção de incluí-los em uma análise futura.
2
Phillips realizou um estudo entre 1947 e 1968 no qual encontrou dados reveladores. No mês seguinte
após o The New York Times publicar uma história relacionada ao suicídio de alguém conhecido, a taxa de
pessoas que se suicidavam aumentava em quase 12%. Este padrão continua a se repetir até hoje. Em meados de
2017, o Canadá tentou proibir a série “13 Reasons Why” depois de considerar que ela poderia causar esse
mesmo efeito. A Organização Mundial da Saúde preparou inclusive um documento com diretrizes para os
jornalistas seguirem no momento de informar os fatos relacionados ao suicídio.
11

Dito isso, embora tenha sido um objeto de estudo amplamente trabalhado por Émile
Durkheim na obra O Suicídio, a temática não é tratada abertamente, assim como não é
recorrente em estudos acadêmicos sociológicos3. Entretanto, ela se apresenta como um
assunto importante visto que atrai a atenção de indivíduos que se propõem a tematizá-lo e a
produzir sobre ele em diversos âmbitos, como por exemplo na literatura e na arte, ou seja, o
suicídio é um fenômeno social. Somando interesses pessoais à importância social de discutir o
assunto, o adotamos como eixo geral deste trabalho.

A partir disso, trabalhando com as limitações que a sociologia possui no tema


selecionado e com a finalidade de servir como recorte para esta pesquisa, escolhemos então
um caso relevante no mundo da arte contemporânea: o suicídio da escritora Sylvia Plath.
Sobre esta autora, sabemos que foi uma poeta americana nascida em 1932 em Boston,
Massachussetts, e que se suicidou em 1963, com 30 anos de idade. Quando aluna na
universidade, recebeu algumas bolsas de estudo e estágios por conta de suas notas excelentes;
na ocasião de sua morte, era mãe de dois filhos, Frieda e Nicholas e casada com Ted Hughes,
também poeta, que possuía então um reconhecimento e prestígio que Sylvia jamais receberia
em vida. Alfred Alvarez (1999), em prefácio dedicado a poeta em seu livro O Deus Selvagem,
afirma que Sylvia era a responsável por levar os contos e poemas do marido juntos dos dela
aos correios, e que enquanto as obras do marido eram publicadas sempre, as dela retornavam
com a crítica recorrente de que suas criações eram “cruas”, “reais” demais.

O livro A redoma de vidro, publicado originalmente em 1963 sob o pseudônimo de


“Victoria Lucas”, é uma de suas obras mais vendidas atualmente, porém, na época em que a
poeta escrevia, seus escritos não eram tão valorizados assim, ao contrário, costumavam ser
recusados. Sylvia morre por suicídio um mês após a publicação da primeira edição de seu
único romance, que veio a ser apresentado com seu nome apenas em 1967 e nos Estados
Unidos apenas em 1971. O livro, que contém traços biográficos4, trata da jovem personagem
Esther Greenwood, que vive no subúrbio de Boston.

Com um histórico impecável de notas na universidade, Esther consegue vaga em um


estágio de verão em uma revista adolescente em Nova Iorque e se vê desorientada não apenas
pelo tamanho da cidade e do estilo de vida diferente da que levava em Massachussets, mas

3
Em busca nas plataformas Scielo e Banco de teses Capes não foi possível encontrar estudos sobre
suicídio nas ciências sociais.
4
Note que uma obra possuir aspectos biográficos não significa necessariamente que é uma autobiografia.
Não podemos negar o caráter ficcional da obra ainda que possua aspectos biográficos.
12

também pelo contato com pessoas diferentes e com a dura realidade do “ser mulher” nos anos
1950, que a fazem refletir sobre o padrão social em que ela está submetida. Após voltar para
casa e receber a notícia de que não a haviam aceito em um curso para jovens poetas, Esther se
vê caindo pouco a pouco em um profundo estado de depressão que por consequência a leva a
algumas tentativas de suicídio.

Após a morte de Sylvia, cria-se então um costume crítico de atribuir ao seu romance
A redoma de vidro um caráter semi-biográfico visto que este possui alguns traços de sua vida,
assim como às suas poesias, que ficaram conhecidas como parte de um movimento literário
chamado “Poesia Confessional”5, onde o autor coloca em suas obras pedaços de seus próprios
traumas pessoais e trata de assuntos delicados sobre sua vida, construindo personagens a
partir de suas próprias experiências e anseios. De acordo com Rosenthal (1967) “Confessional
poetry is a poetry of suffering”6. O mesmo aconteceu com Goethe em Os sofrimentos do
jovem Werther, onde críticas literárias começaram a buscar aspectos biográficos em sua obra
e como resultado, o livro ficou conhecido como semi-biográfico, ainda que fosse um
romance.

Embora os escritos de Sylvia sejam fruto de sua exímia capacidade intelectual e


criativa, tanto quanto de sua imaginação, é impossível dizer que uma obra traduz
completamente um artista. Segundo Alvarez7:

Para o próprio artista a arte não é necessariamente terapêutica; ele não se livra
automaticamente de suas fantasias ao expressá-las. Ao contrário, por uma espécie de
lógica perversa da criação, o ato da expressão formal pode simplesmente tornar o
material trazido à tona mais prontamente disponível para o artista. O ato de lidar
com essas fantasias em seu trabalho pode muito bem fazer com que ele de repente se
perceba vivendo-as. Para o artista, em suma, a natureza muitas vezes imita a arte.
Ou, para mudar de clichê, quando um artista aponta um espelho para a natureza, ele

5
A poesia confessional, ou confessionalismo, é um gênero de poesia que se desenvolveu nos Estados
Unidos da América nas décadas de 1950 e 1960. Enfatiza a expressão da intimidade da vida pessoal do poeta,
tratando de temas como doença, sexualidade e depressão. Entre os "poetas confessionais" podemos citar nomes
como John Berryman, Allen Ginsberg, Robert Lowell, Sylvia Plath, Theodore Roethke, Anne Sexton e W. D.
Snodgrass. Atribui-se a criação deste termo ao crítico Macha Rosenthal que em 1959 em seu ensaio "Poetry as
Confession", a respeito do livro "Life Studies" de Robert Lowell afirmou: "The term 'Confessional Poetry'
naturally carne to my mind when I reviewed Robert Lowell's Life Studies in 1959"
6
ROSENTHAL, M. L. The New Poets. American and British Poetry; Since World War II. Londres e
Nova York
York, Oxford University Press, 1967. p. 65.
7
Citação original: “But as I have written elsewhere, for the artist himself art is not necessarily
therapeutic: he is not automatically relieved of his fantasies by expressing them. Instead, by some perverse logic
of creation, the act of formal expression may simply make the dredge-up material more readily available to him.
The result of handling it in his work may well be that he finds himself living it out. For the artist, in
short, nature often imitates art. Or, to change the cliché, when an artist holds up a mirror to nature he finds out
who and what he is; but the knowledge may change him irredeemably so that he becomes that image.” P. 38/39
13

descobre quem, e o que, ele é; mas essa descoberta pode modificá-lo


irremediavelmente, a ponto de ele se tornar essa imagem. (ALVAREZ. 1999, p.38 -
39)

Desse modo, é perfeitamente plausível a tentativa de fazer uma interpretação de suas


obras pelas lentes da biografia do criador, já que muitas vezes retira de suas próprias
experiências elementos primordiais para a construção de sua obra, entretanto as experiências
de vida do indivíduo estão diretamente ligadas ao contexto social em que ele vive e isso
também se mostra no que é produzido. Segundo Elias, para compreender uma obra, é preciso
compreender a vida do artista que a produziu, e para que isso seja feito, é necessário
“conhecer os anseios primordiais que este deseja satisfazer” (ELIAS, Norbert.1991, p13).
Dessa forma, embora o artista crie personagens, “finja” sentimentos e situações no conteúdo
que está produzindo, ainda assim não deixam de existir de alguma forma aspectos dele mesmo
dentro de sua criação. Portanto, partimos do pressuposto de que o contexto social em que o
artista está inserido, bem como os sentimentos que o preenchem refletem-se de alguma forma
nas obras que ele constrói, sendo essa ambivalência parte de seu processo criativo. Os trechos
citados a seguir nos mostram que Sylvia não apenas tematizava experiências de sua vida
pessoal em suas obras, mas também apresentava questões mais gerais, porém, utilizando de
uma linguagem metafórica e menos direta. Dessa forma, a poeta escrevia sobre si mesma ao
mesmo tempo em que narrava questões comuns a outras pessoas.

Como explicar a Bob que minha felicidade depende de arrancar um pedaço de minha
vida, um fragmento de aflição e beleza, e transformá-lo em palavras datilografadas
numa página? Como ele poderia entender que justifico minha vida, minhas emoções
ardentes, meu sentimento, ao passá-los para o papel? (PLATH, 2018)

Meus poemas não são sobre Hiroshima, mas sobre uma criança que dedo após dedo
se vai formando no escuro. Não são sobre o terror do aniquilamento em massa, mas
sobre o luar desolado iluminando um teixo em um cemitério não muito distante
daqui. Não sobre os testamentos dos argelinos torturados, mas sobre os pensamentos
noturnos de um cirurgião exausto. Em certo sentido, estes poemas são deflexões.
Não creio que seja uma escapatória. Para mim, os verdadeiros problemas do nosso
tempo são os problemas de todos os tempos – o sofrimento e o espanto do amor; a
criação sob todas as suas formas (...) (PLATH, 1962)

Tendo introduzido o tema e objetivo deste trabalho, nas próximas páginas


trabalharemos sobre o conceito de morte e suicídio na perspectiva das ciências sociais,
tecendo uma revisão bibliográfica no primeiro capítulo e apresentando dados sobre o suicídio
de mulheres no contexto social de Sylvia Plath. Já no segundo capítulo faremos uma análise
da relação entre vida, arte e sociedade, passando pelas problemáticas da literatura como
descrição social. Já no terceiro e último capítulo trabalharemos duas obras selecionadas da
poeta supracitada: A Redoma de Vidro e Os Diários de Sylvia Plath com o objetivo de ilustrar
14

de forma mais detalhada os conceitos e questões trabalhadas nos capítulos anteriores. Nesse
sentido, o presente trabalho contribui no sentido de apresentar uma nova perspectiva de
análise dos escritos de Sylvia Plath, afastando o costume de interpretar sua obra como fruto de
uma mulher louca, desequilibrada e depressiva e propondo estudar sua obra sob o viés da
descrição social. Adotando a teoria de que o conteúdo produzido transmite não somente a
“essência” de seu criador, mas também traços de um determinado tempo e sociedade.
15

2. Morte e suicídio como Fatos Sociais

O Death, come near me,


and stay (by my side). Hear my silent cry!
In sadness I'm veiled, to the cross I am nailed,
and the pain around me freezes my world.
My cold world...

(Draconian – Death Come Near Me)

Segundo os cinco primeiros conceitos do dicionário online Aurélio, a morte se define


por “ 1 - Ato de morrer. 2 - O fim da vida. 3 - Cessação da vida (animal ou vegetal). 4 -
Destruição. 5 - Causa de ruína. 6 - Termo, fim. 7 - Homicídio, assassínio. 8 - Pena capital. 9 -
Esqueleto nu ou envolto em mortalha, armado de foice, que simboliza a Morte. ” Em uma
rápida busca por verbetes podemos perceber significados distintos para o mesmo conceito de
morte; de fato, ela se define por ser um campo transdisciplinar, estudado não só pela religião,
mas também pelas ciências, sejam elas médicas, jurídicas ou humanas. Ao pensar sobre a
morte, o senso comum nos transporta diretamente para o “fim da vida”. Segundo Norbert
Elias, “podemos encarar a morte como um fato de nossa existência; podemos ajustar nossas
vidas, e particularmente nosso comportamento em relação às outras pessoas, à duração
limitada de cada vida” (2001, p.7).

Se analisarmos brevemente documentos e estudos sobre a morte durante a história da


humanidade perceberemos como diferentes sociedades, em épocas distintas, lidavam com o
assunto morte. De acordo com Ariès (2012), na Vulgata editio, o livro da Sabedoria, após a
morte, o destino do indivíduo justo é o Paraíso. As versões nórdicas deste livro rejeitaram a
ideia de Paraíso descritas no original pois, segundo os tradutores, os nórdicos não esperam os
mesmos deleites que os orientais após a morte. Isso pois os orientais caracterizam o Paraíso
como lugar possuidor da “frescura da sombra”, enquanto os nórdicos preferem “o calor do
sol”. Isto nos mostra como é generalizado o desejo de, ao menos após a morte, obter o
conforto que não se conseguiu em vida.

O budismo por sua vez, de acordo com sua mitologia, apresenta a morte como algo
imutável, fatal, e nos conta então a “Parábola do Grão de Mostarda”: uma mulher com o filho
já falecido nos braços, vai atrás de Buda e pede que o faça reviver. Buda, sábio, aconselha à
mulher que consiga alguns grãos de mostarda para fazê-lo voltar à vida. Todavia, a mulher
16

deveria conseguir estes grãos em uma casa onde a morte não havia se feito presente.
Obviamente esta casa não foi encontrada e a mulher compreendeu que teria que conviver
sempre com a morte. Na crença hindu, a morte é encarada como um jeito de se escapar da
sobrecarga populacional. Quando a Mãe-Terra se satura de entes vivos, ela suplica ao deus
Brahma que envia, então, a “mulher de vermelho”, para levar as pessoas excedentes, aliviando
assim, os recursos naturais e sua sobrecarga populacional.

Os exemplos acima indicam uma ideia de continuidade em relação à morte, fazendo


com que o sentimento de temor não se mostrasse presente nos indivíduos, ou seja, se
diferenciando da morte-aniquilação que traz a morte como a finitude de tudo, caos e
interrupção da vida. Da mesma forma com que algumas ideias tradicionais passam por uma
ressignificação de acordo com o contexto histórico e cultural de cada época, as representações
de morte e a atitude que se tem em relação a ela também se alteram e se ressignificam. O
advento do capitalismo e seus muitos tempos de crise, fez surgir uma nova visão sobre a
morte que segundo Torres, (1983), muito tem a ver com o surgimento do capital como força
principal de produção. Torres explica que “o vivo pode tudo e o morto não pode nada”, já que
teve sua vida produtiva interrompida. José Luiz de Souza Maranhão em O que é morte?
aborda essas diferenças entre o morrer do antes e do agora. Nas primeiras páginas de seu livro
o autor detalha uma cena em que o moribundo pressente o abraço gélido da morte e se prepara
para o ato do morrer junto de sua família e amigos. Por sua vez, Maranhão (2017) nos mostra
como a morte era encarada como algo natural da sociedade ocidental, onde cerimônias de
passagem eram feitas de modo que podiam durar até quatro dias contando do momento em
que família e amigos iam até a casa do moribundo para o momento de despedida, até o
fatídico dia da morte e do enterro, acompanhado de procissão pela cidade antes de chegar de
fato à sua morada eterna. Com o desenvolvimento da sociedade capitalista industrial há uma
inversão de tabus à medida em que a interdição em torno do sexo foi se relaxando e a morte se
tornando um tema temido e inominável8 (2017).

Um dos fatores importantes que ajudou na ressignificação do ato de morrer foi o


deslocamento do local da morte, que antes era o lar e agora passa a ser o hospital. O avanço
da medicina e tecnologia, o desaparecimento do médico de família e a demanda crescente de
pacientes que impossibilitava o deslocamento dos médicos culminou na construção de um
local especializado para o tratamento de doenças. Entretanto o hospital também impõe ao

8
Embora José Luiz de Souza Maranhão não referencie esta passagem em seu livro O que é morte? A
mesma pertence ao sociólogo Geoffrey Gorer, que desenvolve a ideia em “The pornography of death”, 1955.
17

moribundo uma agonia que o lar não impunha anteriormente. Segundo Maranhão (2017): “ele
possibilita o prolongamento da vida dos doentes pelo maior tempo possível, mas não os ajuda
a morrer. Já não se morre em casa, rodeado pela família, mas no hospital, sozinho. ” Assim, se
calcifica a repulsa que a sociedade moderna possui de seus mortos e moribundos, fazendo
com que os indivíduos se mantenham longe deles e da morte em geral.

O doente terminal é marginalizado socialmente, porque deixou de ser funcional.


(...)na sociedade industrial não há espaço para os agonizantes: São indivíduos que
não produzem, não consomem, não acumulam, não respondem aos seus apelos, não
competem, não se incomodam com o progresso, com o tempo nem com o dinheiro.
(MARANHÃO, 2017, p.14)

Sobre isso, José Carlos Rodrigues em O Tabu da Morte (1983) pontua:

As pessoas não encontram mais padrões de comportamento diante da morte. Das


crianças são afastados os velhos, entre outros motivos porque são uma evocação da
morte. Quando a morte acontece, a estas mesmas crianças, a quem hoje podemos
explicar os complicados sistemas de tratamento eletrônico de informações e os
detalhes da fisiologia sexual, dizemos que o morto fez uma viagem, que está
descansando em outro lugar, que saiu e vai demorar a voltar... [...] Não se fala mais
em morte, embora se pague cada vez mais seguro de vida; não se pensa mais em
morte, não se formulam mais conceitos para pensá-la, mas a ela se reage com
sorrisos embaraçados, como silêncios reticentes, com desconversas que são signos
do aparecimento de algo cuidadosamente reprimido. Tenta-se esconder a morte,
fazendo-se com que seu tratamento seja responsabilidade de técnicos especializados,
banindo-a completamente do domínio dos leigos, instituindo seu conhecimento em
algo hermético e distante. (RODRIGUES, 1983, p.187-188)

Segundo o próprio Elias, a forma mais antiga de os seres humanos enfrentarem a


finitude do que chamamos de vida seria uma mitologização ou mistificação de uma ideia de
“algo além”, uma outra vida pós morte, seja no Hades, no Valhalla, no Inferno ou no Paraíso.
De acordo com o mesmo, é possível evitar a ideia da ceifadora da essência humana “(...)
afastando-a de nós tanto quanto possível – encobrindo e reprimindo a ideia indesejada – ou
assumindo uma crença inabalável em nossa própria imortalidade – ‘os outros morrem, eu
não. ” Ou, Elias prossegue, podemos encarar de frente a morte como fato consumado de nossa
existência. O sociólogo continua então, dizendo que a morte é um “problema dos vivos” e
segundo ele, dentre esses vivos, apenas os seres humanos a encaram como um problema, já
que apenas eles sabem que morrerão.

A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas. Entre as muitas
criaturas que morrem na Terra, a morte constitui um problema só para os seres
humanos. Embora compartilhem o nascimento, a doença, a juventude, a maturidade,
a velhice e a morte com os animais, apenas eles, dentre todos os vivos, sabem que
morrerão; apenas eles podem prever seu próprio fim, estando cientes de que pode
ocorrer a qualquer momento e tomando precauções especiais – como indivíduos e
como grupos – para proteger-se contra a ameaça da aniquilação. [...] Na verdade não
é a morte, mas o conhecimento da morte que cria problemas para os seres humanos.
(ELIAS, Norbert.2001, p. 10-11)
18

Segundo Allan Kellehear (2016), “esse entendimento fundamentalíssimo do morrer


possibilita a todos nós vermo-nos ocasionalmente como ‘gente morrente’” (p.37). A partir daí,
pode-se procurar compreender o comportamento humano no sentido de tentar lidar com seu
inevitável fim. Nesse sentido, seria presunçoso de nossa parte dizer que já desvendamos todos
os segredos da morte, porém sabemos que embora seja a única coisa na qual temos certeza da
chegada, ela não atinge da mesma forma a todos. Segundo o site jusbrasil9 a morte é o último
dos aspectos traumáticos. O mesmo usa de categorias para definir tipos de morrer: a morte
natural – patológica ou teralógica, morte súbita, morte aparente e a morte violenta, que inclui
homicídio e suicídio – o que nos interessa mais diretamente.

A cada 40 segundos uma pessoa se suicida no planeta. Quando o próximo


parágrafo deste texto terminar de ser lido, uma pessoa já terá morrido por suicídio. Segundo
dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) divulgados em 2018, mais de 800 mil
pessoas morrem por suicídio a cada ano e indicadores mostram que para cada adulto que
morre por suicídio, existem outros 20 tentando. De fato, 79% dos suicídios em 2016
ocorreram em países de baixa e média renda. O mesmo foi responsável por 1,4% de todas as
mortes em todo o mundo, tornando-se a 18ª principal causa de morte em 201610.

O número de suicídios é frequentemente subestimado. A extensão deste viés varia de


acordo com o país, dependendo principalmente da maneira como o suicídio é registrado.
Razões para esta subestimação incluem estigmas, fatores políticos e sociais e regulações de
agências seguradoras, o que significa que alguns suicídios podem ser registrados como
acidentes ou mortes por causa indeterminada.

O documento Prevenção do Suicídio – Um manual para profissionais da mídia


publicado em 2000 pela OMS, revela que o suicídio é subestimado numa taxa de 20-25% no
idoso e de 6-12% em outras faixas etárias. O mesmo documento mostra que não existem
registros mundiais oficiais de comportamentos suicidas não-fatais (tentativas de suicídio),
principalmente devido ao fato de que somente cerca de 25% dos que tentam o suicídio
precisam e/ou buscam atenção médica. A maioria das tentativas de suicídio, portanto,
permanece não relatada e não registrada.

9
Como de acordo em: https://www.jusbrasil.com.br/topicos/298192/morte/artigos último acesso:
03/07/19
10
Dados podem ser acessados em: https://nacoesunidas.org/oms-quase-800-mil-pessoas-se-suicidam-
por-ano/ último acesso: 03/07/19
19

Conseguimos manter as tentativas e os suicídios de pessoas anônimas “escondidos”


dos indivíduos, porém, quando tratamos de suicídios de pessoas conhecidas por uma parcela
muito grande de pessoas, se torna impossível o total abafamento das notícias. Assim, opta-se
por não estender a cobertura desses fatos, com a finalidade de prevenir um número de
suicídios por imitação. Segundo Andrew Solomon em Um crime da solidão – reflexões sobre
o suicídio (2018), houve um aumento de quase 10% nas taxas de suicídio após a morte de
Robin Williams, por exemplo.

Mas como podemos conceber o suicídio? Émile Durkheim (2000) vai definir suicídio
como “toda morte que resulta mediata ou imediatamente de um ato positivo ou negativo,
realizado pela própria vítima. ” (2000, p.11). Entretanto, o autor pontua:

Mas essa definição é incompleta; não faz a distinção entre duas espécies de mortes
muito diferentes. Não poderíamos incluir na mesma classe e tratar da mesma
maneira a morte do alucinado que se joga de uma janela alta por acreditar que ela se
encontra no mesmo nível do chão e a do homem, são de espírito, que se atinge
sabendo o que está fazendo. (DURKHEIM. 2000, p.12)

Dessa forma, chegamos ao conceito definitivo de suicídio explicado pelo autor:

Chama-se suicídio todo o caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um


ato, positivo ou negativo, realizado pela própria vítima e que ela saiba que
produziria esse resultado. A tentativa é o ato assim definido mas interrompido antes
que dele resulte a morte. (DURKHEIM. 2000, p.14)

A expressão “direta ou indiretamente” nos transporta a uma, distinção comparável à


que foi feita por ele entre o ato positivo e o negativo. Um tiro de uma pistola por exemplo,
acarreta a morte de forma direta; não sair em retirada de uma casa em chamas ou recusar
alimentação, pode provocar indiretamente ou a longo prazo o resultado requerido, ou seja, a
morte. De acordo com esta definição, o conceito de suicídio engloba não só os casos
reconhecidos por todos, mas também, por exemplo, o ato do capitão que prefere afundar seu
navio do que ter que render-se e o de mulheres indianas que se jogam nas piras funerárias de
seus maridos falecidos. Em outras palavras, é preciso considerar também como suicídio os
casos de morte voluntária envoltos em auréola de heroísmo e de glória, e que à primeira vista
não somos tentados a incluir na categoria dos suicídios dito comuns.

Indo além, Karl Marx em Sobre o Suicídio analisa excertos de Jacques Peuchet11,
anotações de incidentes e episódios que levaram de alguma forma ao suicídio. A principal

11
Peuchet trabalhava como arquivista da Prefeitura de Polícia de Paris, e teve acesso aos arquivos de
diversos casos de suicídio, assim, escrevia comentários sobre esses episódios, procurando uma causa em comum
a todos eles.
20

questão social discutida no livro em paralelo ao suicídio é a opressão social sofrida por
mulheres nas sociedades modernas. Se para Marx (2006, p.16) o suicídio é significativo
sobretudo como sintoma de uma sociedade doente e que necessita de uma transformação
radical, na visão metodológica de Durkheim, o fenômeno do suicídio é estudado de forma a
colocar a questão da conservação e/ou dissolução da sociedade no centro do seu referencial.
Assim de acordo com o autor, existe uma disposição social para o suicídio, isto é, uma
tendência de grupos sociais para tal ato, isoladamente das suas manifestações individuais.
Dessa forma, o fenômeno suicídio se categoriza como um fato social para o autor, não sendo
possível separá-lo da sociedade.

Durkheim (2000) categoriza o suicídio em quatro tipos: Altruísta, egoísta, anômico e


fatalista. O suicídio altruísta é o suicídio resultante de excesso de integração na sociedade, à
custa de uma insuficiente individualidade. O indivíduo pode ser levado ao suicídio, então, por
um excessivo altruísmo e sentimento de dever. O suicida altruísta está dedicado a uma causa
maior que o indivíduo. O autor define os subtipos: obrigatório, em que o suicídio é um dever
social, o opcional, em que apesar de não ser obrigatório a sociedade lhe é favorável e a isso
incita, e o agudo – mais discutível se é ou não verdadeiramente altruísta. São exemplos neste
caso: o suicídio de homens bomba e os pilotos kamikaze.

O suicídio egoísta, por sua vez, se entende como suicídio decorrente da baixa
integração na sociedade. Nesse tipo o indivíduo depende menos do grupo e mais de si próprio,
e são os seus interesses a determinarem as suas ações, havendo uma perda de significado das
ações para além da perspetiva individual. A apatia e indiferença levariam esses indivíduos a
cortarem sua relação com a sociedade já que não se sentem integrados a ela. O suicídio de
deprimidos seria um exemplo desse tipo de morte.

Já o suicídio anomico é definido por Durkheim como todo o suicídio que sucede uma
quebra na ordem social, ou seja, estados de baixa regulação da sociedade. Em resumo, define
como anomia a perda de relação entre o indivíduo e a sociedade. Durkheim(2000) escreve:
Toda ruptura de equilíbrio, mesmo que resulte em maior abastança e aumento da
vitalidade geral, impele à morte voluntária. Todas as vezes que se produzem graves
rearranjos no corpo social, sejam eles devidos a um súbito movimento de
crescimento ou a um cataclismo inesperado, o homem se mata mais facilmente.
(DURKHEIM, 2002, p.311)

No que respeita a alterações do status econômico, uma demissão ou uma promoção, se


profundos, têm impacto no modo como a sociedade rege o indivíduo. Outros autores
21

complementaram a definição, referindo a anomia enquanto incapacidade das ações individuais


serem “institucionalizadas” num sistema social. Uma perspetiva mais recente afirma que a
ação individual e a regulação social são complementares, e que a anomia surge da perda desta
propriedade.

Por fim, temos o suicídio fatalista, que de acordo com a perspectiva de Durkheim é
caracterizado por um decorrente excesso de regulação pela sociedade. Esse conceito é
explorado posteriormente pelo autor, por oposição ao estado de anomia. Resulta do indivíduo
não ver possibilidade de futuro em virtude de viver num contexto de despotismo físico ou
moral, em que as suas aspirações são totalmente reguladas pela sociedade. O suicídio surge
como única escapatória possível a um contexto normativo imposto e inapelável, tendo como
exemplos os suicídios de escravos.

É importante ressaltar que assim como os “tipos ideais” desenvolvidos por Weber, a
taxonomia de Durkheim não é algo engessado e sim um tipo de abstração ou metodologia
usada para analisar e aplicar a uma teoria de estudo. É fato que nem todos os tipos de suicídio
vão sempre se encaixar em uma dessas categorias, já que segundo o próprio Durkheim
algumas andam de mão dadas. É possível encontrar similaridades e fazer uma aproximação
sociológica da (ou das) que mais faze sentido para determinado caso.

Atualmente, quando tomamos consciência do suicídio de alguém, nosso primeiro


pensamento é concluir ou deduzir que a fatalidade ocorreu por conta de uma depressão. No
caso de Sylvia Plath por exemplo, é comum a ideia de atribuir seu suicídio a uma depressão
desencadeada pela sua separação de Ted Hughes, mas é importante ressaltar que muitos
depressivos nunca se tornam suicidas, e muitos suicídios são cometidos por pessoas que não
são depressivas. Segundo Andrew Solomon (2015) “A capacidade humana de suportar a dor é
absurdamente forte. Só se pode considerar todos os suicidas deprimidos se a tendência ao
suicídio for estipulada como uma condição por si só suficiente para o diagnóstico da
depressão.” Ou seja, a tendência ao suicídio vem sendo tratada como um sintoma da
depressão, quando na verdade pode ser um problema que coexiste com ela. O autor vai
argumentar que na realidade, não existe nenhuma relação forte entre a gravidade da depressão
e a probabilidade do suicídio.

Boa parte de nós, de tempos e tempos tem o desejo ou a intenção de estar morto, além
das consequências da dor, mas é importante ressaltar que existem diferenças entre querer estar
22

morto, querer morrer e querer se matar. Em casos de depressão, os indivíduos são atingidos
por um desejo persistente de querer morrer, uma solução para as “aflições da consciência”,
nas palavras de Solomon. Mas, querer de fato se matar requer um nível extra de violência
direcionada. O autor afirma que “ O suicídio não é o resultado da passividade; é o resultado
de uma ação. Requer uma grande quantidade de energia e uma vontade forte, além de uma
crença na permanência do momento atual e pelo menos um toque de impulsividade.”

Solomon (2015) age de forma similar a Durkheim (ao categorizar os tipos de suicídio)
e divide os tipos de suicidas em quatro grupos. O primeiro grupo seria o de suicidas
impulsivos, os que cometem o ato sem pensar no que estão fazendo. São pessoas mais
propensas a serem levadas à morte por um evento externo específico, o que muitas vezes faz
com que suas mortes sejam repentinas. O segundo grupo já se caracteriza por uma “paixão”
pela morte que consola. Para o autor, essas pessoas cometem o suicídio como vingança, são
pessoas que não estão fugindo da vida, mas correndo diretamente para os braços da morte,
desejando não o fim da existência mas a presença da aniquilação, do caos. O terceiro grupo
cometeria suicídio por uma lógica em que a morte parece ser a única saída para os problemas
que jã não são mais toleráveis. Esses indivíduos, segundo o autor, são os que planejam seus
suicídios, escrevem bilhetes e arquitetam a hora e os detalhes. Já o último grupo cometeria
suicídio “com uma lógica racional”. Essas pessoas por conta de doenças físicas, mentais ou
questões econômicas acreditam que o ímpeto de viver nao é suficientemente compensativo
para se sobressair da dor.

Por fim, Durkheim em As regras do método sociológico (2002, p.11) define por “fato
social” os fenômenos entendidos por “toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer
sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou, ainda, que é geral na extensão de uma sociedade
dada, apresentando uma existência própria, independente das manifestações individuais que
possa ter”. Nesse sentido, podemos interpretar o fenômeno suicídio como um fato social pois
se caracteriza por ser um fenômeno geral já que é presente em todas as sociedades, exterior
pois mostra que existem implicações exteriores dos quais os indivíduos levam em
consideração no ato individual e coercitivo pois existe uma pressão social que nem sempre o
indivíduo consegue alcançar, forçando-o a interromper sua vida como forma de sair dessa
sociedade.

2.1 O suicídio de mulheres no contexto social de Sylvia Plath


23

O suicídio é uma prática universal, Podemos encontrá-lo em diversas sociedades e


épocas, e pode ser praticado por todos, sem exceção de gênero ou raça. Sabemos que Sylvia
Plath viveu entre 1932 e 1963, morreu por suicídio aos trinta anos de idade em Londres, na
Inglaterra. Antes de ter conseguido pôr termo à vida, Sylvia já havia cometido outras
tentativas de suicídio. Nos primeiros anos em que estudou no Smith College ela cometeu sua
primeira tentativa, suicídio por overdose de narcóticos (mais especificamente pílulas para
tratar sua insônia). Em seus diários ela menciona ainda outras duas tentativas, por afogamento
e enforcamento. Em 1963 Sylvia comete a tentativa que culminou em sua morte, asfixia por
inalação de gás doméstico.
Segundo Erwin Stengel em Suicídio e tentativa de suicídio, em meados do século
XX , de 4000 a 5000 pessoas morreram por suicídio em cada ano na Inglaterra. O autor afirma
que as tentativas de suicídio são de oito a dez vezes mais numerosas que os suicídios efetivos.
De acordo com os dados apresentados por Stengel o número de suicídios de homens ao longo
dos anos na Inglaterra é maior que o de mulheres, entretanto, ao longo do tempo os suicídios
masculinos diminuem e os suicídios femininos aumentam.

Tabela 1: Números de suicídios na Inglaterra e País de Gales, 1952 - 1961

1952 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 1960 1961

Homens 2800 3021 3179 3075 3196 3188 3145 3115 3071 3034

Mulheres 1543 1746 1861 1955 2084 2141 2123 2093 2060 2182

Total 4343 4767 5040 5030 5280 5329 5268 5208 5131 5216

Fonte: British Med. J., p. 137, 1965

O próximo quadro, também retirado do livro de Stengel mostra o número de


tentativas de suicídio em distribuição por idade e sexo de uma amostra de 639 tentativas de
suicídio:

Tabela 2: Números de tentativas de suicídios por idade e sexo na Inglaterra e País de Gales,
1952 - 1961

Ano Sexo <20 20-29 30-39 40-49 50-59 60-69 70-79 80+ Total
1960 H 10 29 27 17 14 11 9 5 122
24

M 25 28 43 34 28 19 12 9 198
1961 H 11 24 24 20 13 4 10 5 111
M 28 41 32 32 29 23 16 7 208
74 122 126 126 84 57 47 26 639
(British Med. J., p. 137, 1965)

Analisando os dados que os gráficos acima mostram, podemos perceber que embora
homens se matem mais que mulheres, é delas o maior número de tentativas de suicídio. Ainda
que não haja apenas um método típico de suicídio, a escolha depende em alguma medida de
sua disponibilidade. Stengel afirma que embora a facilidade de acesso seja um fator
importante, ela não é o único aspecto que incide sobre a escolha entre os diversos métodos
existentes, já que se assim fosse, o afogamento ou a queda de lugares altos estariam em quase
toda a parte no topo da lista de métodos de suicídio (1980).

Tabela 3: Número de suicídios entre homens e mulheres entre 1955 e 1965 na Inglaterra e
País de Gales, por método utilizado.
Método Homens Homens Mulheres Mulheres
1955 1965 1955 1965
Analgésicos e 79 246 182 486
narcóticos
Outro veneno 29 24 22 19
sólido ou líquido
Gás doméstico 412 335 553 322
Outros gases 13 48 1 7
Enforcamento 187 134 64 55
Afogamento 92 60 106 66
Armas de fogo e 71 63 5 4
explosivos
Instrumentos 53 21 11 5
cortantes/
perfurantes
Queda de lugares 19 18 29 17
altos
Outros agentes 43 50 26 19
25

Fonte: World Health Statistics Report 21, nº6, Genebra: OMS, 1968)

De acordo com a tabela acima, o suicídio por gás doméstico era o método mais
utilizado tanto por homens quanto por mulheres na Inglaterra embora as tentativas de suicídio
femininas fossem maiores. É importante ressaltar que no ano de 1955 (onde o número de
suicídios por gás é expressivo) o gás doméstico utilizado nas casas continha um alto teor de
monóxido de carbono de modo que a exposição a pequenas quantidades já significava alto
risco de toxicidade, e por isso foi o método de suicídio mais utilizado nos anos 50. O fato
também explica a diminuição do número de tentativas em 1965, pois nessa época o gás
passava por um processo de desintoxicação, ou seja, as casas passaram a utilizar o gás
desintoxicado ou o gás do mar do Norte, que não é tóxico. Após a diminuição progressiva da
utilização de gás tóxico nas casas britânicas os indivíduos migraram para outros métodos
possíveis para o suicídio. Na mesma época, o número de mortes voluntárias por
envenenamento consequente de analgésicos e narcóticos quase dobrou. Assim, os dados nos
mostram que as mulheres daquela sociedade e época davam preferência a métodos menos
violentos como a inalação de gás ou a morte por overdose de analgésicos, enquanto homens
por sua vez preferiam métodos mais agressivos, como a utilização de armas de fogo e
explosivos ou o enforcamento. Esse fato pode explicar o motivo da disparidade entre as taxas
de suicídio e tentativa de suicídio que mostram que embora as mulheres atentassem mais
contra suas vidas eram os homens que mais morriam por suicídio, visto que eles utilizavam
artifícios mais violentos, ou seja, métodos que proporcionam uma taxa de êxito mais alta e
garantida. Embora Sylvia tenha vivido parte e sua vida (bem como seus últimos momentos)
em Londres, a poeta era americana. Erwin Stengel também apresenta dados sobre as mortes e
tentativas de suicídio de mulheres nos Estados Unidos. Os dados apesar de se mostrarem de
forma diferente por conta da grande disponibilidade de armas de fogo no país, também
chegam à mesma conclusão. Em 1965, de 1000 homens que se mataram 546 utilizaram armas
de fogo ou explosivos, enquanto no mesmo período de 1000 mulheres que deram fim cabo de
suas vidas, apenas 240 utilizaram este mesmo método e 312 preferiram a morte por overdose
de analgésicos ou narcóticos. Assim sendo, podemos concluir que mesmo em uma sociedade
onde a disponibilidade de armas de fogo é maior, existe uma preferência feminina por um
método específico de morte voluntária.
26

O autor também explicita os principais fatores causadores para essas tentativas.


Segundo Stengel os “fatores sociais12” representam 60% dos fatores contributivos nesses
casos e 35% das principais causas o suicídio. Em segundo lugar temos “desordem mental”
representando 47% de contribuição e 37% como principal motivação. A categoria “fatores
pessoais” vem atrás, com apenas 20% de contributivos e 14% como principal causa.
De acordo com esses dados é possível fazer em certa medida alguma tentativa de
análise da conjuntura inglesa da segunda metade do século XX. Sendo uma sociedade que
assim como o mundo todo sentia as consequências do pós guerra, o corpo social inglês
experimentava mudanças em suas estruturas, como por exemplo o esfriamento da economia
inglesa13 sob o comando do primeiro-ministro trabalhista Harold Wilson e a segunda onda do
feminismo que agora se debruçava sobre as desigualdades sociais e o papel da mulher na
sociedade.
Podemos interpretar os dados trabalhados acima na medida em que eles nos
mostram que de todas as mulheres que tentaram dar fim à sua vida, Sylvia Plath era apenas
mais uma delas. Sylvia se suicida em 1963 em sua casa em Londres, utilizando-se do método
de morte por inalação de gás doméstico. Uma mulher comum como todas as outras, que teve
uma morte comum se utilizando de um método habitual das mulheres da época. Nesse
sentido, seu suicídio não diz respeito apenas a ela mas também à outras mulheres de sua
época. Suas obras possuem traços que partem de sua própria experiência pessoal, porém suas
questões e sua trajetória esbarram nas experiências e percursos de outras diversas mulheres de
seu tempo e assim acaba as representando. Desta forma podemos interpretar seus escritos na
perspectiva da descrição social que eles nos proporcionam, já que as questões pessoais
descritas por Sylvia Plath esbarram nas experiências de inúmeras mulheres de seu tempo.

12
O autor considera crises econômicas, mudanças no estado social, desemprego, dependência financeira,
pobreza, guerras, convulsões políticas e qualquer condição social como um “fator social”.
13
Segundo pesquisa na base de artigos em economia Economics Help, artigo disponível em
https://econ.economicshelp.org/2010/02/economy-in-1960s-and-1970s.html, acesso em 20/05/2019
27

3. Algumas Perspectivas Sociológicas em Arte & Literatura

“A ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas,


como se sente que são. ”
Fernando Pessoa

Embora a arte seja uma das formas de o indivíduo expressar seus sentimentos, ideias e
emoções, ela não é representada apenas na forma de pintura, mas também através de
esculturas, cinema, dança, teatro, música, arquitetura, literatura, dentre outros. A arte de certa
forma é o reflexo da cultura e da história de um tempo e lugar. Desde a pré-história, na forma
de pintura rupestre, verificamos a necessidade e/ou vontade dos indivíduos em representar a
realidade sob a sua perspectiva e percepção. A arte difere de acordo com o tempo e o contexto
histórico. Ela pode ser vista como algo inerente ao ser humano, feito por artistas a partir de
um senso estético, com o objetivo de despertar e estimular o interesse de sua própria
consciência, assim como a de um ou mais espectadores, além de causar algum efeito. Cada
expressão artística possui significado único e diferente. Clifford Geertz em O Saber Local
(1999) nos diz que “é difícil falar sobre arte. Pois a arte parece existir em um mundo próprio,
que o discurso não pode alcançar. (...) a arte fala por si mesma: um poema não deve significar
e sim ser (...)”.

Chamamos de literatura a arte de construir textos. Dentro dessa arte podemos elencar
diversos segmentos literários, como por exemplo a literatura de ficção, cordel, romance,
poesia, dentre outros. Assim como a sociologia e a filosofia, a literatura está inserida na
sociedade desde a antiguidade. Wolf Lepenies diz que é possível considerar que “desde a
metade do século XIX, a literatura e a sociologia disputam a primazia de fornecer a
orientação-chave da civilização moderna” (Lepenies,1996, p. 11), portanto podemos dizer que
antes da sociologia e suas subáreas se constituírem e se institucionalizarem, a literatura
ocupava o lugar de interpretar o mundo social.

De acordo com o sociólogo Z. Barbu em O contexto social da arte, sempre que a


sociologia analisa obras literárias ou de arte em geral, ela admite um certo grau de
correspondência entre dois tipos e fenômenos existentes na atividade humana – o real e o
imaginário. (1975). Ou seja, admite implicitamente que existe uma relação entre a arte e a
28

sociedade. Segundo ele, é possível analisar essa relação de acordo com a percepção de uma
espécie de identidade entre tendências ou aspectos sociais e culturais de um mesmo período.

Porque, não é preciso dizer, ele está interessado nas representações literárias e
artísticas apenas na medida em que isso lhe permite aumentar ou clarificar seu
conhecimento dos fatos sociais. Assim, enquanto o crítico de arte ou literatura pode
tornar-se genuinamente interessado na “sociedade” dos romances de Jane Austen ou
das pinturas de Chardin, o historiador ou o sociólogo o faz apenas na medida em que
isso lhe diz alguma coisa sobre a sociedade em que Jane Austen ou Chardin
viveram. (BARBU, 1975 p.15)

Barbu argumenta que não são só os aspectos sociais que uma obra pode conter que
importam na hora de analisar uma arte literária sob o aspecto da descrição social, mas também
sua personalidade, na medida em que esta também reflete os padrões de personalidade
dominantes em sua sociedade.

“A personalidade do artista é relevante, nesse contexto, na medida em que reflete


padrões de organização mental dominantes em sua sociedade ou, para colocá-lo
mais precisamente, na medida em que sua arte expressa esses padrões de
organização mental. ” (BARBU, 1975, p.27)

Entretanto, o discurso de que a literatura deve ser analisada de acordo com as


realidades que ela exprime - sejam elas do autor que as escreve ou do contexto social vivido -
passou a ser visto como ultrapassado. Segundo Antônio Cândido em Literatura e Sociedade,
anteriormente procurava-se analisar o valor de uma obra pelos aspectos sociais que ela
exprimia, depois essa ideia é superada pelo argumento de que “(...)a sua importância deriva
das operações formais postas em jogo, conferindo-lhe uma peculiaridade que a torna de fato
independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social, considerado inoperante como
elemento de compreensão. ” (2006, p.13) Cândido prossegue, dizendo que na verdade, não se
pode analisar uma obra na íntegra sem adotar essas duas visões juntas. Segundo ele, os fatores
sociais, ou seja, fatores externos importam para análise não como causa, mas como “elemento
que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. ”

O poeta não é uma resultante, nem mesmo um simples foco refletor; possui o seu
próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o seu núcleo e o seu órgão,
através do qual tudo o que passa se transforma, porque ele combina e cria ao
devolver à realidade" (BADY. 1943, p.31, apud CÂNDIDO,2006, p.28)

Cândido afirma que existem duas tendências principais de análises da chamada


sociologia da literatura, a primeira delas é estudar em que medida a arte é uma expressão da
29

realidade, já a segunda, em que medida a arte se preocupa com os problemas sociais.


Entretanto, ambas tendências mostraram que a arte é social em dois sentidos já que:

(...)depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos


de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua
conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores
sociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independe do grau de consciência
que possam ter a respeito os artistas e os receptores de arte. (CÂNDIDO, 2006, p.
30)

Há de se concordar que dizer que a arte em geral exprime exatamente a realidade


social constitui certo truísmo14, já que como dito anteriormente, o artista não possui obrigação
de retratar o real, o social. Dito isso, Nathalie Heinich (2008) considera que a sociologia da
arte deve se construir como sistema autônomo para que as análises científicas no mundo da
arte não caiam em “sociologismos” apenas.

(...)certas problemáticas parecem obsoletas. [Tal fato] é prova de que existe um


progresso nas ciências sociais: não é mais possível imaginar uma “arte” constituída
fora de uma “sociedade”, nem mesmo no seu interior [...] A arte é uma forma, entre
outras de atividade social, possuindo suas próprias características. Enfim aliviados
do fardo de ter de produzir uma “teoria do social” a partir da “arte”, tanto quanto
uma “teoria da arte” a partir do “social”, os sociólogos da arte podem consagrar--se
livremente à pesquisa das regularidades que governam a multiplicação das ações,
dos objetos, dos autores, das instituições, das representações, compondo a existência
coletiva dos fenômenos compreendidos pelo termo “arte” (HEINICH, 2008, p. 63-
64).

Por sua vez, Roger Bastide (1967, p.48) questiona a ideia de que a arte é um produto
que pode ser analisado de forma a se dissociar da sociedade, ao afirmar que “ a arte não plaina
no espaço”, ou seja, ela possui seu tempo e seu contexto histórico social. O fenômeno que
Bastide chama de “estetização das relações sociais” se apresenta na medida em que a arte
constrói imagens e percepções do mundo à sua volta que acabam por dar estilo às formas das
relações entre indivíduos e sociedade, atribuindo-a o caráter de” retentora do estado geral dos
espíritos e dos costumes de seus meios”.

A arte age efetivamente sobre a sociedade e a modela, mas inversamente a obra de


arte nos possibilita a atingir o social, tanto como a economia, a religião ou a política.
Ela nos dá acesso a setores que o sociólogo interessado pelas instituições não
consegue atingir: as metamorfoses da sensibilidade coletiva, os sonhos do
imaginário histórico, as variações dos sistemas de classificação, enfim, às visões de
mundo dos diversos grupos sociais que constituem a sociedade global e suas
hierarquias (BASTIDE, 1979, p. 200).

14
Termo utilizado por Antônio Cândido em Literatura e Sociedade.
30

Gilberto Velho (1967) em seu livro Sociologia da Arte, volume II, compartilha com
Bastide (1979) a ideia de que a arte não pode ser compreendida sem uma devida análise de
seu contexto histórico- social já que o indivíduo criador também é produto de seu meio. Nesse
sentido, mesmo que o artista crie um microcosmo à parte, ainda assim haverá em alguma
medida uma influência social presente em sua criação.

(...) a análise da obra de arte isolada de seu contexto sócio-histórico leva, também, a
inevitáveis deformações. Não temos condições de compreender o significado total
da criação artística se ela não for pesquisada em suas raízes sociais, históricas e
psicológicas. Frisamos que se trata de trabalho fundamental, para que seja atingido
um verdadeiro conhecimento, a utilização de todos esses recursos, inclusive a
análise da obra em si, que tem uma importância óbvia (VELHO, 1967, p. 11).

Usemos como exemplo o livro de Clarice Lispector (1981), A Hora da Estrela. O


romance traz como personagem principal Macabéa, mulher nordestina que migra para o Rio
de Janeiro. Mulher ingênua, sonhadora e maravilhada com as novas experiências do lugar.
Macabéa é de fato um personagem criado e, portanto, fruto da imaginação de Clarice,
contudo, a personagem também carrega consigo outras mulheres de sua mesma origem social,
que fogem da fome e da miséria e dessa forma passam por experiências similares as suas.
Clarice tematiza então a realidade de um grupo social específico que se dá em um
determinado tempo e contexto histórico-social através de um personagem fictício.

Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama


num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são
facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam. Poucas se
queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será
que existe? (LISPECTOR, 1981, p. 18).

No caso de Sylvia Plath temos então Esther Greenwood, personagem do livro A


Redoma de Vidro (2019) que assim como Macabéa traz consigo outras mulheres em sua
construção. Jovem interiorana que chega em Nova Iorque e se deslumbra com possibilidades
que antes eram impensáveis. Em sua fase de descobrimento sexual e emocional, Esther se
depara com os papéis sociais que eram destinados a ela e percebe que estes não são similares
às suas vontades.

Essa é uma das razões por que nunca quis me casar. A última coisa que eu queria da
vida era “segurança infinita” ou ser o “lugar de onde a flecha parte”. Eu queria
mudança e agitação, queria ser uma flecha avançando em todas as direções, como as
luzes coloridas de um rojão de Quatro de Julho. (PLATH, 2019, p.95)

Os exemplos nos mostram que não é preciso necessariamente fazer uma descrição
direta e detalhada de uma sociedade ou de um grupo para que seja possível perceber e
interpretar os vestígios de descrição social de uma obra. Ao contrário do historiador que
31

precisa ser fiel aos fatos e atores, o escritor possui a liberdade de criar o que deseja e ainda
sim descrever acontecimentos ou traços de uma sociedade sem que seja preciso ser totalmente
“verdadeiro” em sua criação.

3.1. Sobre histórias de vida

Ao terminar uma leitura de um livro que nos agradou, é comum que tenhamos o
ímpeto de pesquisar sobre o autor daquela obra, sobre outros títulos que ele possa ter escrito
ou até mesmo sobre sua história de vida em formato de biografia ou autobiografia. A história
de vida se apresenta como ferramenta importante para análises sociológicas na medida em
que, segundo Maria Isaura Pereira de Queiroz (2008) “se admitiu que valores e opiniões não
eram apenas produto individual mas tinham base coletiva. ” (p.154). Pereira de Queiroz
argumenta que ao analisar relatos ou histórias de vida, se percebeu que dessa forma seria
possível estudar os fatos sociais de sua origem, de seu interior ao contrário do que se fazia
anteriormente quando apenas o exterior era levado em consideração.

Eis porque dizemos que, na história de vida encarada do ponto de vista sociológico,
o problema é ao mesmo tempo exterior e interior – exterior porque é um modo de
agir coletivo, que se inscreve nos costumes do grupo; interior porque o indivíduo o
absorve, tornando-o parte de sua personalidade. O relato de uma história de vida
pode sugerir problemas ao sociólogo, e sempre possui elementos que o interessam,
pois nunca se viu um homem que existisse completamente só, sem inscrever em sua
vida os aspectos da comunidade em que se criou e habita (...) (PEREIRA DE
QUEIROZ, 2008 p.156)

Entretanto é importante ressaltar que, ao examinar a autobiografia de um indivíduo, é


necessário que se tenha em mente que a obra foi escrita e pensada para transmitir alguma
mensagem a um público alvo previamente definido. Dessa forma, a narrativa é perfeitamente
construída, em uma sucessão de fatos que culminam em um ponto específico da vida daquele
indivíduo. Pois todos contamos sobre nós o que queremos ser, e não sobre quem somos.
Howard Becker (1993) em A História de vida e o mosaico científico argumenta que

O autor biográfico se propõe a explicar sua vida para nós, se comprometendo, assim,
com a manutenção de uma estreita conexão entre a história que conta e aquilo que
uma investigação objetiva poderia descobrir. Entretanto, quando lemos uma
autobiografia, estamos sempre conscientes de que o autor só nos está contando uma
parte de sua história, que selecionou seu material de modo a apresentá-lo com o
retrato de si que preferiria que tivéssemos e que pode ter ignorado o que poderia ser
trivial ou desagradável para ele, embora de grande interesse para nós. (BECKER,
1993, p.102)
32

Pierre Bourdieu corrobora com a ideia de que a autobiografia é em alguma medida


uma história criada, quando diz que:

Sem dúvida, cabe supor que o relato autobiográfico se baseia sempre, ou pelo menos
em parte, na preocupação de dar sentido, de tornar razoável, de extrair uma lógica ao
mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância,
estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito à causa eficiente ou final, entre
os estados sucessivos, assim constituídos em etapas de um desenvolvimento
necessário. (BOURDIEU, 2006, p.184)

A mesma ideia pode ser utilizada quando analisamos documentos pessoais. Um diário
por exemplo, embora se trate de um documento privado, escrito pelo indivíduo sem o
interesse de direcionamento a um público específico, não pode ter seu conteúdo considerado
como “verdade absoluta”. Embora o indivíduo escreva para si mesmo, ele o faz de acordo
com suas próprias perspectivas, sem levar em consideração a do outro. Dessa forma, o “eu”
que escreve em um diário, se torna o narrador de sua própria história para si mesmo: o
público.

Nesse sentido, após um contato mínimo com a vida pessoal do autor somos levados a
encontrar similaridades entre suas próprias experiências e suas obras, mesmo que estas não
existam na vida real. Um personagem com o mesmo nome de um tio ou primo, a cidade onde
se passa a história passa ser a cidade onde o autor viveu ou seus conflitos amorosos
convergindo com as experiências do autor nos campos do amor por exemplo. O fato é que o
autor não tem por obrigação retratar sua própria realidade, assim como também não é
obrigado a não retratá-la. Entretanto, embora o autor se desvencilhe de sua vida na hora de
criar um texto, ele parte de suas próprias vivências e experiências para que tal objetivo seja
cumprido.

Não há como ignorar o fato de que todo indivíduo é um ser social, e como tal é uma
construção de seu meio, assim, parte de sua própria experiência já que ela é a única que
possui. Dessa forma, mesmo que sua obra seja inteiramente ficcional e não o represente,
acaba por representar outras pessoas com experiências pessoais ou sociais similares, um
imaginário social comum ou até mesmo seu contexto histórico. Sendo assim podemos
considerar toda literatura como biográfica em alguma medida.

Longe da ingênua atribuição de um nexo causal entre “vidas e obras”, da busca


detetivesca do autor emboscado em seu texto, do traço, da marca, da cena, do matiz
autobiográfico, poderia se afirmar que toda literatura – escrita – é autobiográfica na
medida em que participa desse plano concreto, não pode aglutinar
33

convencionalmente um conjunto de tropos, mas por compartilhar, mesmo sem


confessar, medos, paixões, obsessões, fantasias. (ARFUCH, 2010, p.233)

Ainda assim é preciso encarar a literatura como literatura, mesmo que ela reflita fatos
concretos ou represente pessoas e vivências reais. Todavia, a partir do momento em que o
artista revela ao mundo sua criação, ela não mais o pertence, mas sim ao público, que possui o
direito de criar suas próprias interpretações e seus próprios significados acerca da obra de arte
que vê ou do livro que lê. O fato do leitor brincar de detetive em sua leitura e encontrar
diversos vestígios de biografia nos textos, constrói um elo entre obra e público, autor e leitor.
Essa ligação faz com que o leitor se sinta parte daquela narrativa, atribuindo muitas vezes
significados próprios ao que ele lê. Segundo Leonor Arfuch (2010) esse elo é de exímia
importância, pois

Se a identificação amarra laços invisíveis e poderosos, talvez as vidas criadas no


trabalho de artífice da escrita (os pensamentos, os sistemas, os valores) tenham
frequentemente para os leitores uma atração inclusive maior do que as vidas ‘reais’.
Benefício duplo da entrevista com escritores, que oferece a possibilidade de tratar as
criaturas ficcionais com a mesma familiaridade, de incluí-las na fabulação identitária
do autor com o selo “próprio” do leitor. (ARFUCH, 2010, p.232)

Os escritos de Sylvia Plath nos mostram então essa ambiguidade. Da mesma forma em
que é possível analisar sua obra a partir de seu contexto social e de sua história de vida, assim
como interpretar algumas similaridades de suas personagens como vestígios de si mesma, é
necessário atentar para o fato de que seus escritos ainda assim são histórias criadas.

Dessa forma, o ato de “criar histórias” não se limita a narrar universos, mas também
fazê-los. Universos esses que não são vazios, mas sim habitados por personagens que agem de
forma a produzir ou reproduzir acontecimentos que mesmo ficcionais, têm sua existência
garantida em determinado lugar ou determinada sociedade e que, portanto, acabam por
representar pessoas, lugares, sentimentos, pensamentos etc. Assim sendo, reconhecemos a
dualidade existente nos estudos que envolvem análises de histórias de vida. Há de se
considerar então as experiências pessoais do autor que podem interferir em sua obra assim
como o contexto histórico-social vivido pelo mesmo, ao passo que este pode ser a fonte de
comportamentos ou ideias coletivas.
34

4. Análise das Obras de Sylvia Plath

Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well. ”
(S. Plath, Lady Lazarus)

A noite de 11 de fevereiro de 1963, diz-se, foi a mais fria daquele ano. A poeta
americana Sylvia Plath vivia na casa que tinha pertencido a Yeats, em Primrose Hill, Londres.
Deitou os filhos no quarto do 1º andar, esperou que eles adormecessem, abriu-lhes a janela do
quarto, calafetou as portas, deixou pão com manteiga e leite na mesa de cabeceira desceu para
a cozinha, enfiou a cabeça no forno do fogão e abriu o gás. Silêncio. Enquanto a “senhora
Hughes” – como gostava de ser chamada- morria naquela noite, nascia o mito Sylvia Plath,
assim como a alegoria mítica da fênix, a poeta renascia das cinzas. Com a morte de Sylvia,
seus contos e poemas que antes enfrentavam dificuldades para serem publicados, agora
pairavam sob os olhos de inúmeros leitores no mundo. Sylvia Plath se torna um ícone literário
e feminista após sua morte. O reconhecimento não era relacionado diretamente à sua
qualidade intelectual de poeta, e sim da vítima. A sua poesia tornou-se quase secundária ao
que foi a sua vida conjugal com o reconhecido poeta Ted Hughes; as traições, os maus tratos,
a solidão, os desencontros fizeram dela a bandeira perfeita da luta feminista: a bela, jovem e
promissora poeta mata-se devido à infidelidade conjugal. E assim, Sylvia Plath começou a ser
lida não como a escritora talentosa que era, mas como uma vítima. No filme “Annie Hall”,
Woody Allen resume a história de forma brilhante: “Sylvia Plath. Interesting poetess whose
tragic suicide was misinterpreted as romantic by the college-girl mentality.”15

A teoria apresentada acima é apenas uma das versões em que se pode ler o “pós-
morte” da poeta. A poesia de Plath interessa alguns grupos específicos da sociedade, podemos
citar primeiro os acadêmicos, que discutem a profundidade de sua obra e a qualidade da
mesma, clubes que incentivam a leitura de escritoras mulheres e a categoria que chamaremos
aqui de “almas torturadas”, pessoas que ao buscarem sua obra, procuram reflexos de suas
vidas na figura de Sylvia Plath.

Sendo indiscutivelmente uma grande poeta, algumas questões pairam sobre nossa
mente: será que se não tivesse morrido teria tido a mesma consagração? Até que ponto se

15
Em tradução livre: “ Poetisa interessante cujo trágico suicídio foi mal interpretado como romântico pela
mentalidade juvenil universitária. ”
35

tornou consagrada pelo seu suicídio? Leram-na e leem-na como um ato de justiça e de
afirmação feminista ou como referência poética? Ou melhor: leem-na por aquilo que foi ou
por aquilo que a fizeram representar? Essas questões são difíceis de serem respondidas, a
começar pelo fato de que quem podia nos responder, não se encontra mais entre os vivos. O
fato, é que Sylvia não se resume a sua morte ou a sua vida como esposa de Ted Hughes. A
“obsessão” da autora para com o tema “morte” e o tipo de morte que a mesma teve, foi fator
primordial na construção de sua imagem apenas como uma “mulher suicida”, fazendo com
que suas obras fossem lidas como reflexo direto de suas próprias experiências. Dessa forma, a
análise que segue neste capítulo não se caracteriza como um estudo da imagem suicida do
indivíduo Sylvia Plath em si, mas das mulheres suicidas que são representadas em suas obras.

4.1. As Sylvias

Após a morte de Sylvia Plath, foram publicados inúmeros materiais especulando a


vida e morte da autora, livros, poemas, teses, documentários e filmes são alguns exemplos do
conteúdo de publicação póstuma que levou o nome de Sylvia Plath a ser reconhecido por
todos. O que essas obras têm em comum é o fato de focarem única e exclusivamente no
relacionamento conturbado de Sylvia e Hughes, deixando em segundo plano sua vida anterior,
convicções políticas, influências, sonhos e relações familiares. É como se os acontecimentos
que precedem sua morte se tornassem então a tal redoma de vidro onde se aprisiona para
sempre a imagem da poeta frágil torturada pela infidelidade do marido. Janet Malcolm em seu
livro A mulher calada – Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia consegue explicar
melhor essa ideia quando diz que:

Mas uma pessoa que morre aos trinta anos, no meio de uma separação tumultuada,
fica para sempre fixada no tumulto. Para os leitores de sua poesia e de sua biografia,
Sylvia Plath será sempre jovem e implacável com a infidelidade de Hughes. Nunca
chegará à idade em que as dificuldades da vida de um adulto jovem podem ser
rememoradas com uma tolerância pesarosa, sem ódio ou desejo de vingança.
(MALCOLM, 2012 p.9)

Em “Sylvia” filme escrito e dirigido por Christine Jeffs16, podemos acompanhar Sylvia
Plath ainda na universidade, alguns dias antes de conhecer Ted Hughes e se apaixonar
perdidamente por ele. O filme retrata a imagem da poeta como a típica mulher histérica e
obcecada, um estereótipo feminino que surge tempos atrás e que continua em voga ainda hoje.
Também vai em oposição a figura da poeta vítima criada por algumas pessoas, mas também
não a representa como uma mulher independente e segura de si, ao contrário, o filme de uma

16
SYLVIA. Direção de Christine Jeffs. United Kingdom: BBC Films, 2003. 1 DVD (110 min.).
36

forma sutil representa Ted Hughes como a vítima de uma mulher inescrupulosa e
insuportável, e embora ele deixe explícita a traição de Hughes com uma amiga de Plath, ele
sutilmente tenta convencer o espectador de que o erro de Ted não foi trair, e sim aguentar
Sylvia por tanto tempo. Este imaginário social que faz com que seja difundida a ideia de que a
culpa pela separação do casal, ou a traição do parceiro é causada por uma insuficiência
feminina nata de “segurar” seu homem ou sua relação existe até hoje, sendo assim a figura
feminina sempre é a responsável pela felicidade familiar, sendo então a primeira culpada
quando essa família sucumbe. O mesmo filme tenta retratar que o suicídio de Sylvia teria
como principal razão a separação entre ela e Ted Hughes, que de acordo com o filme, a teria
feito desistir da própria vida, dos filhos e da própria carreira.

No livro intitulado A Mulher Calada, Janet Malcolm mostra como algumas biografias
de Plath foram escritas e por qual motivo algumas não agradaram o público. Começando pelo
livro de Anne Stevenson, que obteve acesso exclusivo ao espólio de Sylvia Plath tendo como
tutora ninguém menos que Olwyn Hughes, a irmã de Ted Hughes, então ex marido de Sylvia.
O livro em questão não teve boa aceitação por parte do público pois segundo Malcolm “se
negava a ir fundo o bastante”, fazendo com que os leitores de biografias, acostumados a se
deliciar com um prato cheio de intrigas não tivessem sua curiosidade saciada. Além disso, o
livro intitulado Bitter Fame chegava as prateleiras como se já tivesse sido violado, adulterado,
já que a autora dizia em sua introdução que obteve tanto a ajuda da irmã de Hughes para
escrever, que a obra poderia transformá-la em coautora. Segundo Malcolm, Stevenson foi
certamente usada por Ted e Olwyn para apresentar a versão dos dois sobre as relações do
casal Hughes-Plath.

Malcolm diz então que Plath representa de maneira nítida e quase emblemática o
caráter esquizoide do período em que ela viveu, onde a Guerra dos Bôeres foi finalmente
derrubada pela revolução sexual, pelo movimento feminista, pelas lutas em favor dos direitos
civis, pelo movimento ecológico e pelos protestos contra a Guerra do Vietnã. Dito isso,
Malcolm mostra que Anne Stevenson caracteriza Sylvia como uma mulher que mantinha foco
apenas em si mesma, moça histérica que lidava com crises de humor constantes, agressiva e
instável.

Indo de encontro a essas versões, podemos encontrar um prefácio inteiramente


dedicado a Sylvia no livro “The Savage God” [O Deus Selvagem] de autoria de Alfred
37

Alvarez. Ele, por sua vez, era amigo pessoal de Hughes e crítico de poesia no jornal “The
Observer”, onde publicou poemas de Ted e começou a publicar os de Sylvia também. Com o
passar dos anos, a proximidade de Alvarez com o casal se estreita e ele se torna amigo pessoal
de Sylvia Plath. Nesse prefácio, ele detalha suas impressões sobre ela antes e depois da
separação. Segundo ele, nunca conseguiremos descobrir uma solução para o problema social
do suicídio, visto que ele significa coisas diferentes para pessoas diferentes em épocas
diferentes. De acordo com ele, o suicídio para Sylvia significava “(...) uma tentativa de
conseguir sair de um canto desesperado em que sua própria poesia a havia colocado”17
(ALVAREZ, 1999, p.14). Alvarez recebe então alguns poemas de Plath para redigir uma
crítica sobre eles no The Observer, e descreve o material como “sério, retido e parcialmente
embaixo da enorme sombra de seu marido” (1999, p10).

A percepção de Alvarez sobre os poemas da fase marital de Plath se torna interessante


na medida em que os escritos da própria mostram uma diferença entre as duas fases de sua
vida (antes e pós Hughes), então a escritora independente passa a viver na sombra do “grande
poeta” com quem se casou. Parte dessa “investida nas sombras” parece acontecer a medida
em que ela começa a enfrentar dificuldades para engravidar. Nesse contexto, nota-se um
grande volume de entradas em seus diários, registrando a frustração de Sylvia como poeta e
mulher. Segundo a mesma, ela só alcançaria sua completude social feminina quando
conseguisse atingir o “objetivo para que seu corpo foi feito”:

Sempre me identifiquei profundamente com a definição de Morte que diz:


Inacessibilidade à Experiência, (...) E, para uma mulher, ser Privada da Grande
Experiência para qual seu corpo foi feito, nutrir, é uma imensa e devastadora Morte.
(...) (PLATH, 2018, p572)

Em outra citação podemos ver a profundidade desse pensamento da poeta:

Tudo subitamente se torna pavoroso, irônico, mortal. Se eu não puder ter filhos (...)
como eles poderão me completar? Eu morreria. Estaria morta para meu corpo de
mulher. Sexo seria morte, um beco sem saída. Meu prazer sem prazer, um escárnio.
Minha escrita um simulacro vazio e inútil como substituto da vida real, em vez de
um prazer extra, um bônus a florescer e frutificar. Ted precisa ser um patriarca. E eu,
mãe. (...) (PLATH, 2018, p578)

A quase obsessão em conseguir ser mãe parece um pouco assustadora nesses trechos
acima citados, ainda mais se compararmos as ideias que a mesma possuía sobre o tema
maternidade antes de conhecer aquele que viria se tornar seu marido. O que para alguns pode
parecer normal, já que a opinião de qualquer pessoa pode sofrer mudanças (ainda mais depois

17
Tradução livre. O trecho original diz “(...) it was an attempt to get herself out of a desperate corner
which her own poetry had boxed her into.”
38

de um casamento), porém não podemos nos esquecer de que a pressão social feita sobre as
mulheres em sociedades patriarcais age exatamente dessa forma, fazendo com que as mesmas
acreditem que seus corpos tenham um objetivo pré-definido e que sem alcançar esse objetivo,
não atingirão a completude. O próprio uso da palavra “patriarca” na última citação nos mostra
isso. Patriarca, que segundo o dicionário online da língua portuguesa se define por “Chefe de
família; aquele que, por ser o mais velho de uma grande família, merece respeito, obediência
ou veneração”. Quando Sylvia consegue alcançar o que chama de “ a grande experiência”
feminina, ou seja, ser mãe, o poder que antes pairava sobre a figura do marido, agora se volta
para ela, como também constata Alfred Alvarez:

Eles haviam tido um novo bebê em janeiro, um menino, e Sylvia havia mudado. Não
mais quieta e contida, uma dona -de -casa dependente do marido poderoso, ela
parecia sólida e completa, sua própria mulher novamente. Talvez o nascimento do
filho teve algo a ver com esse novo, confiante ar. (...). Eu entendi o porquê quando
eu estava indo embora. “Eu estou escrevendo novamente” ela disse. “Realmente
escrevendo”.18 (ALVAREZ, 1999, p13)

Após o nascimento do segundo filho e a completude idealizada alcançada, acontece o


fator apontado por muitos como a causa de sua morte, a separação do casal de poetas. Alvarez
não considera esse motivo como suficiente para a explicação de seu suicídio e existem muitos
indícios de que ele esteja certo. Após a separação, o bloqueio que pairava sobre ela havia se
dissipado, e ela escrevia ao menos um poema por dia. Nos meses que antecederam sua morte
ela havia criado suas obras mais famosas: “Lady Lazarus” e “Daddy”, e seu livro “semi
biográfico” A redoma de vidro já estava em fase de impressão. Alvarez ainda conta que antes
de morrer, Sylvia endereçou um pacote com seus melhores poemas para a publicação em uma
revista britânica semanal, mais uma vez nenhum dos poemas foi aceito. Hoje, esses mesmos
poemas são venerados como clássicos da poesia americana.

Muitos dizem que Sylvia escrevia tanto sobre morte por estar obcecada por ela, ou por
estar extremamente deprimida. Alvarez por sua vez argumenta que na verdade ela escrevia
sobre morte, sobre suas tentativas de suicídio pois ela já as havia superado. Em Lady Lazarus
ela escreve “I Have done it again. One year in every ten, I manage it. A sort of walking
miracle… I am only thirty. And like the cat I have nine times to die. This is Number Three.”
Sylvia parecia levar a ideia da morte não como contemplação, mas como desafio, desafio
mental colocado por ela mesma desde a morte de seu pai, que a fez encarar o fato de ser uma

18
Trecho traduzido livremente, o original segue: “They had had a new baby in January, a boy, and Sylvia
had changed. No longer quiet and withheld, a housewifely appendage to a powerful husband, she seemed made
solid and complete, her own woman again. Perhaps the birth of a son had something to do with this new,
confident air. (…) I understood why as I as leaving. “I’m writing again,” she said. “Really writing”.
39

mulher adulta na sociedade como o “ser sobrevivente”. Para ela, segundo Alvarez, a morte era
um débito a ser pago a cada dez anos, então para permanecer viva, como uma mulher adulta,
mãe e poeta, ela devia pagar de maneira parcial, com sua vida:

Suicídio, em suma, não foi um desmaio na morte, uma tentativa de "cessar a meia-
noite sem dor" Era algo a ser sentido nas extremidades nervosas e lutado contra, um
rito de iniciação qualificando-a para uma vida própria19 (ALVAREZ, 1999, p. 19)

4.1.1. Os Diários:

“É impossível capturar a vida se a gente não mantém diários” disse Sylvia. Os diários
de Sylvia Plath – 1950-1962 nos trazem as versões da própria autora sobre sua vida e
trajetória, e seu prefácio revela que a mesma começou a escrever diários e memórias aos onze
anos de idade e levou consigo essa prática até as semanas que precederam sua morte, aos
trinta anos. Esta obra reúne memórias de Sylvia até um ano antes de seu suicídio. É sabido da
existência de mais dois diários. Um deles “desapareceu” segundo Ted Hughes em seu
prefácio aos Diários de Sylvia Plath (1982) e o outro, cujos registros iam até três dias antes de
seu suicídio, foi destruído por Hughes sob a justificativa de que assim o fez pois não queria
que seus filhos fossem obrigados a lê-lo já que ele considerava o esquecimento como algo
imprescindível para a sobrevivência. (MALCOLM, 2012)

Embora seja talvez a fonte mais “confiável” sobre os fatos, Os diários de Sylvia Plath
não devem ser lidos como uma história amarrada do início ao fim, uma trajetória que inicia na
página um com acontecimentos que vão culminar em um fim específico na página oitocentos.
A obra não deixa de ser de uma certa maneira fictícia mesmo que tenha sido escrita sem a
pretensão de um futuro lançamento como livro, já que quem o escreve está relatando apenas
sua versão sobre os fatos ali descritos. Dessa forma, a Sylvia dos diários se apresenta como
personagem de si mesma.

Ao analisar a obra, é possível fazer uma separação entre Sylvias distintas. A estudante
universitária empenhada em se tornar uma escritora independente e de sucesso, a poeta, a
esposa e a mãe. No primeiro momento dos diários é possível conceber uma imagem de
Sylvia: uma escritora que têm consciência de sua capacidade literária, que rechaça a
sociedade sexista da época em que vive e que nega veementemente a dita “vocação” feminina

19
Trecho traduzido livremente, o original segue: “Suicide, in short, was not a swoon into death, an
attempt to "cease upon the midnight with no pain" It was something to be felt in the nerve ends and fought
against, an initiation rite qualifying her for a life of her own”
40

para viver para a família e cuidar de maridos e filhos. Uma mulher está a todo momento
questionando as figuras masculinas em seu redor e ao mesmo tempo questionando o meio
patriarcal da sociedade em que vive, que pressiona a todo momento que mulheres se casem e
que se dediquem quase que inteiramente aos seus maridos.

Pois um homem, se escolher ser promíscuo, pode continuar torcendo o nariz para a
promiscuidade, do ponto de vista estético. Ele pode continuar exigindo que sua
mulher lhe seja fiel, para salva-lo de sua própria luxúria. Mas as mulheres também
desejam, por que devemos ser relegadas à posição de zeladoras de emoções, babás
de crianças, alimentando sempre a alma, o corpo e o orgulho do homem? Ter
nascido mulher é minha tragédia horrorosa. (…). (PLATH, 2018, p. 97)

Embora a poeta fosse uma mulher questionadora, inconformada e consciente do


padrão de sociedade masculina em que vivia, ela também se sentia pressionada pela mesma,
caindo em inseguranças causadas por influência do meio social vivido. O que nos mostra que
ser consciente dos padrões impostos pela sociedade não nos blinda de sofrer com as
inseguranças que a mesma nos causa. Segundo Sylvia “(...)é isso que precisamos aprender
para fazer parte de uma comunidade: reagir cega e inconscientemente às sirenes elétricas que
tocam no meio da noite. ” (PLATH, p.37)

Desagrada-me ser mulher, pois como tal devo aceitar que não posso ser homem. Em
outras palavras, devo concentrar minhas energias na direção e na força de meu
homem. Meu único ato de liberdade é aceitar ou recusar determinado homem.
Contudo, é o que eu temia: Estou começando a me acostumar e a aceitar a ideia. E,
se eu puder ser sua companheira, rirei dos medos passados. (PLATH, 2018, p. 71)

Durante seu terceiro ano de estudos no Smith College, a então estudante consegue um
estágio de alguns meses na revista Mademoiselle após vencer um concurso de contos. Algum
tempo após essa experiência Sylvia executa sua primeira tentativa de suicídio, uma overdose
por narcóticos. Foi encontrada dentro de um buraco em um anexo da lavanderia no sótão por
sua mãe, que alegou ter ouvido os gemidos de sua filha, dada como desaparecida alguns dias
antes. Após esse episódio, Sylvia foi internada em uma instituição psiquiátrica, onde recebeu
tratamentos de terapia por eletrochoques.

Além disso, a morte de seu pai Otto Plath, deixara uma grande ferida aberta em sua
vida e na relação com sua mãe. Otto morre quando Sylvia ainda tinha oito anos de idade,
devido a complicações seguidas à amputação de uma das pernas em decorrência de diabetes.
A mãe de Sylvia, Aurelia Plath, havia se casado com um homem vinte anos mais velho pelo
desespero de estar próxima aos trinta anos de idade e ainda solteira, por consequência, vivia
em um casamento de aparências, sem amor. Em anotações sobre uma consulta com sua
psiquiatra, Sylvia escreve:
41

Ele se recusava a consultar um médico, não acreditava em Deus e no recôndito do


lar idolatrava Hitler. Ela sofria. Casou-se com um sujeito a quem não amava. (...).
Quanto a mim, jamais conheci o amor de um pai, o amor de um homem sólido, com
laços de sangue, após oito anos de idade. Minha mãe matou o único homem que me
amaria incondicionalmente pela vida afora: apareceu certa manhã com lágrimas
generosas nos olhos e contou que ele se fora para sempre. Eu a odeio por isso. Eu a
odeio porque ela não o amava. (...) (PLATH, 2018, p. 501)

A relação de Sylvia com sua mãe, passa longe de ser uma relação saudável entre mãe e
filha. Analisando os escritos da poeta podemos encontrar trechos onde ela expressa suas
mágoas para com sua mãe, que segundo ela, sentia vergonha da mulher que Sylvia havia se
tornado, já que ela não se encaixava no padrão social de mulher que aquela sociedade possuía
como o desejável. Plath se relacionava com os homens sem pretender algum tipo de
relacionamento sério com eles e desaprovava a ideia de se tornar a mulher dona de casa e mãe
que precisava abdicar de seus sonhos pessoais e profissionais para se dedicar inteiramente a
uma família. Segundo a poeta, sua mãe a considerava um desencaixe na sociedade da época,
“(...) o que a Filha aprontou? Dormiu com rapazes, recusou os rapazes de bem, com quem ela
teria se casado (...) ela era muito agressiva e ferina, nenhum homem de bem a suportava”
(p.501). Dessa forma, segundo Sylvia, sua relação com a mãe também constitui um dos
fatores que tiveram influência em sua primeira tentativa de suicídio.

Li “Luto e Melancolia” de Freud esta manhã, depois que Ted foi para a biblioteca.
Uma descrição quase exata de meus sentimentos e motivos para o suicídio: um
impulso assassino transferido de minha mãe para mim mesma: a metáfora do
“vampiro” usada por Freud, “sugando o ego”: é exatamente o que sinto que me
bloqueia a escrita: o espectro de minha mãe. Mascaro minha autodegradação (a
transferência do ódio por ela) e a misturo com minhas próprias frustrações reais
comigo mesma, até que se torna difícil demais distinguir o que é realmente crítica
falsa e um impedimento que possa ser mudado realmente. (PLATH, 2018, p518)

E na sequência, o trecho complementar ao anterior:


POR QUE NÃO SINTO QUE ELA ME AMA? O QUE ESPERO EXATAMENTE
QUE SEJA O “AMOR” POR PARTE DELA? O QUE É QUE NÃO RECEBO E
ME FAZ CHORAR? Creio que sempre senti que ela me usa como uma extensão de
si mesma; que eu quando cometo suicídio, ou tento, faço com que ela passe
“vergonha”, sinta-se acusada. O que é verdade claro. Trata-se de uma acusação de
que seu amor foi ineficaz. (...). Como, gostaria de saber, mamãe entendeu minha
tentativa de suicídio? (PLATH, 2018, p.519)

Talvez a morte do pai, a relação com sua mãe e sua própria relação para com a
sociedade da época tenham influenciado em alguma medida a relação que Sylvia mantinha
com os homens que diversas vezes apareciam em sua vida, entretanto, é inegável que o meio
social em que ela vivia constituía um grande fator para que Sylvia se revoltasse com toda a
42

espécie humana, as guerras, mortes e desastres sociais causados por um sistema de governo
cruel. Ela era apenas uma adolescente em 1945, mas já vivia o fim da Segunda Guerra, o
início do período de guerra fria que se instaurou entre Estados Unidos e União Soviética. O
famoso período de expansão demográfica conhecido como “baby boom” e o início do
movimento feminista no país. Todos esses fatores parecem influenciar o desenvolvimento do
pensamento político e crítico de Sylvia através dos anos de sua juventude.

Odiava os homens porque sentia que eram fisicamente necessários. (...) mulheres
não devem pensar, não podem ser infiéis (mas seus maridos podem), precisam ficar
dentro de casa cozinhando e lavando. (...). Se escrever não for uma válvula de
escape, o que é. (PLATH, 2018, p.535)

Enquanto na primeira metade de seus diários podemos reconhecer uma mulher ávida
por justiça e equidade social e de gênero, focada em se tornar uma escritora de renome,
reconhecida mundialmente por suas obras, na segunda metade dos diários nos encontramos
com outra Sylvia, aquela que se tornaria a esposa do também poeta Ted Hughes.

Alegro-me em saber que Ted é o primeiro. Todas as teorias que acalentei contra me
casar com um escritor se dissolveram com Ted: as recusas que sofre mais que
duplicam minha dor & saber de suas vitórias provoca um prazer maior do que saber
das minhas, é como se ele fosse o perfeito contraponto masculino para minha
personalidade: cada um de nós dando ao outro uma extensão da vida na qual
acreditamos. (PLATH, 2018, p.313)

Ao analisar lado a lado passagens dos diários de antes e depois desse acontecimento, é
possível perceber que a figura de Ted Hughes aos poucos vai esmaecendo cada vestígio da
primeira Sylvia Plath. A mulher crítica, consciente do papel social e político da figura
feminina na sociedade, da poeta que coloca em primeiro lugar seu trabalho e tem como
prioridade sua própria ascensão profissional. A cada semana de escritos em seus diários, a
possibilidade de se tornar uma mãe, dona de casa responsável pelos cuidados e felicidade do
marido se torna mais palatável. É possível acompanhar o processo de transformação de Sylvia
Plath em Sylvia Hughes a medida em que seu relacionamento com Ted avança.

Se eu não puder ter filhos como eles poderão me completar? Eu morreria. Estaria
morta para meu corpo de mulher. Sexo seria morte. (...) Ted precisa ser um
patriarca. E eu mãe. (PLATH, 2018, p. 578)

Após o casamento com Ted Hughes, começam a surgir pequenos empecilhos na vida
pessoal de Plath. Agora como uma mulher casada, Sylvia passa a ter dificuldades em escrever
seus poemas, fato que segundo a mesma, torna-se o principal gatilho para que a depressão
volte a se manifestar de uma forma mais agressiva. Nos diários é possível perceber que a
pressão social pela produtividade constante do indivíduo afeta Sylvia de modo que a faz
43

acreditar em sua própria incapacidade intelectual – criativa. É rara a ocasião em que Sylvia
documentasse seus sucessos e alegrias em seus diários após o casamento com Hughes. Porém,
a medida que o casamento progredia é possível acompanhar progressivamente uma Sylvia
Plath caminhando cada dia a mais em direção a um ciclo perigoso de insatisfação, insucessos
e decepções. Agora com uma filha, era ainda mais difícil ter tempo e ânimo para escrever, e
suas brigas com o marido se tornavam cada vez mais constantes. Ted já havia a traído uma
vez, e a estabilidade emocional de Sylvia só piorava a medida em que ela não se via mais
suficiente. A medida em que o tempo passava, suas obras eram recusadas pelos jornais,
revistas e editoras e Sylvia se via cada vez menos “poeta”.

O que mais temo é o fracasso, e isso me impede de escrever, pois assim não posso
fracassar como escritora: é a última trincheira de defesa, ou quase a última --- a
última é quando o mundo se dissolve e as letras desbotam. Sabendo disso, como
posso me dedicar ao trabalho? Transferindo essa noção aos meus demônios mais
íntimos? (PLATH, 2018, p.545)

Somado a esses fatores, é possível perceber que o sentimento de desencaixe que Sylvia
sentia no passado, volta a se fazer presente, visto que mesmo depois de casada ainda não se
via integrada à sociedade, ainda que tivesse se tornado o ideário de perfeição feminina social:
mulher casada, com filhos, responsável pelo cuidado de seu lar e, portanto, de sua família.

Não ser perfeita machuca. Ter de me preocupar com trabalho para poder comer &
ter uma casa dói. Grande coisa. Estava mais do que na hora. Este é o mês que
encerra um quarto de século para mim, vivido sob a mesma sombra do medo: medo
de que não chegarei à perfeição idealizada: sempre lutei, lutei & venci, sem
perfeição, com a aceitação de mim mesma como alguém que tem o direito de viver
em meus próprios termos humanos e falhos. (PLATH, 2018, p.712)

4.1.2. A redoma

Recapitulando, o romance A Redoma de Vidro foi publicado em 1963 com o


pseudônimo de Victoria Lucas. O livro ficou conhecido por ser um romance semibiográfico,
mesmo sem nenhuma menção de Sylvia a isso por conta de similaridades entre sua vida e o
romance. A personagem principal, Esther Greenwood é uma jovem escritora com o sonho de
se tornar uma poeta de sucesso. Esther, assim como Sylvia, ganha um estágio em uma revista
jovem após ganhar um concurso de contos. No início, a personagem Esther se mostra o
oposto da personagem Sylvia dos diários: uma jovem casta que ao chegar em Nova Iorque se
encanta ao mesmo tempo se apavora ao entrar em contato com a “cidade grande”.
44

O estereótipo da menina interiorana criada em lar religioso que chega à cidade grande
é retratado no capítulo inicial do romance, quando Esther vai em uma festa, acompanhada de
sua amiga Doreen20, que por sua vez seria o personagem inicialmente mais compatível com a
Sylvia da “vida real”. Esther recusa a ideia de se envolver com bebidas e com homens com o
argumento de que é “pura demais”.

Eu não os conheço, nunca conheci, e sou muito pura. Toda aquela bebida e aqueles
beijos grudentos que testemunhei, e a sujeira que se instalou na minha pele no meu
caminho de volta está voltando a ser algo puro. (PLATH, 2019. p.28)

Com o passar da narrativa, Esther nos conta de sua história familiar, de seu pai que era
alemão e morreu quando ela ainda era uma criança e sua mãe que trabalhou duro após a morte
de seu pai. A personagem mostra um profundo ressentimento para com sua mãe, pois segundo
ela, na ocasião da morte de seu pai, sua mãe não demonstrou tristeza, mas pelo contrário,
“tinha aberto um sorriso e falado que era até bom que ele tivesse morrido, porque se ele
continuasse vivo teria sido um inválido até o fim da vida, e isso era algo que ele não
suportaria” (PLATH, p.187). Esther também nos mostra que não possui nenhum desejo de se
casar ou ter filhos embora todos ao seu redor só se preocupem com isso. Mesmo assim, a
personagem se envolve emocionalmente com um rapaz, que no romance tem o nome de
Buddy. Após alguns dias, Esther decide fazer uma visita a ele em seu dormitório na
faculdade:

Tudo o que eu vivia escutando, na verdade, era como Buddy Willard era bom e
decente, e como ele era o tipo de pessoa para quem uma garota devia manter-se boa
e decente. Logo eu não via problema em nada do que Buddy sugerisse. (PLATH,
2019, p.79)

Após uma conversa entre os dois, a protagonista descobre que Buddy já havia tido
relações amorosas e sexuais com outras mulheres. Dessa forma, se sente profundamente
enganada e traída, já que ela havia se mantido “pura” para ele, enquanto Buddy já se tornara
um homem experiente. A partir desse momento, Esther adquire uma mágoa profunda dos
homens, já que percebe que a sociedade exige muito mais das mulheres do que deles. Passa
então a recusar toda e qualquer ideia que leve ao casamento e à maternidade. Na passagem a
seguir, Esther analisa a vida matrimonial dos pais de Buddy Willard, e chega à conclusão de
que a vida de uma mulher casada não a cabia.

20
Doreen se caracteriza por ser uma mulher decidida a aproveitar sua vida. Saía com os homens que
queria e na hora que queria. Personagem independente e de personalidade forte, que com suas ações, questionava
a todo momento a sociedade sexista da época.
45

Parecia uma vida melancólica e desperdiçada para uma garota com quinze anos
seguidos de notas A, mas eu sabia que os casamentos eram assim, porque cozinhar,
limpar e lavar era tudo o que a mãe de Buddy Willard fazia, e olha que ela era
casada com um professor universitário e tinha dado aulas numa escola particular.
Uma vez fui visitar Buddy e topei com a sra. Willard tecendo uma manta (...) depois
de terminada a manta, porém, em vez de pendurá-la na parede como eu teria feito, a
sra. Willard resolveu substituir o tapetinho da cozinha com ela, e em poucos dias
aquele tecido estava todo manchado e puído (...) E eu soube que apesar das rosas e
dos beijos dos jantares que o homem despejava sobre a mulher antes do casamento,
o que ele secretamente desejava depois da cerimônia nupcial é que ela se estendesse
sob seus pés como o tapetinho de cozinha da sra. Willard. (PLATH, 2019, p. 96-97)

Esther também faz referência ao desejo do homem (e da sociedade) de que depois do


casamento, a mulher pare de trabalhar, já que o trabalho para uma mulher casada é apenas um
capricho quando ela se torna mãe, sua verdadeira vocação.

Também lembrei de Buddy Willard dizendo com uma voz sinistra e sabichona que
depois que tivéssemos filhos eu me sentiria diferente e não teria mais vontade de
escrever poemas. E me ocorreu que talvez fosse verdade aquela história de que casar
e ter filhos era como passar por uma lavagem cerebral, e que depois você ficava
inerte feito um escravo num pequeno estado totalitário. (PLATH, 2019, p.97)

Indo além, se sente pressionada a tomar uma decisão em sua vida. Escolher entre uma
família ideal com filhos e um marido, uma carreira de sucesso como uma poeta independente
e reconhecida mundialmente, uma professora brilhante, uma vida de solteira conhecendo
quantas pessoas quisesse, viagens etc. Incapaz de fazer apenas uma decisão que a satisfizesse,
Esther cita então um conto para exemplificar suas diferentes opções de escolha:

Eu via minha vida se ramificando à minha frente como a figueira verde daquele
conto. Da ponta de cada galho, como um enorme figo púrpura, um futuro
maravilhoso acenava e cintilava. Um desses figos era um lar feliz com maridos e
filhos, outro era uma poeta famosa, outro, uma professora brilhante, outro era Ê Gê,
a fantástica editora, outro era feito de viagens à Europa, África e América do Sul,
outro era Constantin e Sócrates e Átila e um monte de amantes com nomes estranhos
e profissões excêntricas, outro era uma campeã olímpica de remo, e acima desses
figos havia muitos outros que eu não conseguia enxergar. Me via sentada embaixo
da árvore, morrendo de fome, simplesmente porque não conseguia decidir com qual
figo eu ficaria. Eu queria todos eles, mas escolher um significava perder todo o
resto, e enquanto eu ficava ali sentada, incapaz de tomar uma decisão, os figos
começaram a encolher e ficar pretos e, um por um, desabaram no chão aos meus pés.
(PLATH, 2019, p.89)

O estágio na revista acaba e ela volta para a casa de sua família, no interior,
esperançosa de que pudesse ter ganhado uma vaga em um curso de verão para escritores.
Logo que se encontra com sua mãe, a mesma lhe transmite a notícia de que não havia
conseguido a vaga no curso. Os dias se passam e Esther não consegue mais dormir. A
personagem relata que chegou a ficar sete dias inteiros acordada e nesse momento começa a
sentir “a redoma de vidro” pairando sobre sua cabeça. A redoma de vidro não é apenas o jogo
46

de palavras que nomeia o livro, mas também como a protagonista nomeia a depressão. A mãe
de Esther começa a perceber o estado de degradação da filha e então a leva a um psiquiatra,
que decide tentar o tratamento de choque como solução para o problema de Esther. A
personagem relata que o método em questão foi extremamente agressivo e não havia
funcionado. Decide, então, começar a escrever um romance, com uma heroína que
representasse ela mesma, e que assim tivesse seis letras no nome, assim como “Esther”21.

Com o passar dos dias Esther se encontra impossibilitada de escrever qualquer coisa,
pois percebe que não havia tido experiências suficientes na vida que fossem dignas de serem
retratadas em seu romance. Não tinha experiências amorosas, não era mãe, odiava
crianças...Em sua cabeça, as palavras “Você nunca vai chegar a lugar algum desse jeito”
soavam repetidamente. Assim, a personagem passa noites sem dormir e começa a pensar cada
vez mais na ideia de cometer suicídio. No dia seguinte, Esther se tranca no banheiro, enche a
banheira de água e munida de uma lâmina tenta se disferir um corte no pulso, porém, recua do
ato.

Mas quando chegou a hora, a pele do meu pulso pareceu tão branca e indefesa que
não consegui fazer nada. Era como se o que eu quisesse matar não estivesse naquela
pele ou no leve pulsar azul sob o meu dedão, mas em outro lugar mais profundo e
secreto, bem mais difícil de alcançar. (PLATH, 2019, p.165)

Após este episódio, outras tentativas se sucederam: enforcamento e afogamento, mas


percebendo que seu corpo com seu extinto de sobrevivência fazia de tudo para tentar impedir
sua morte, Esther decide então por outro método: overdose de analgésicos. Essa é uma das
similaridades entre Sylvia e Esther, as duas tentam suicídio das mesmas maneiras. Esther pega
um vidro de pílulas para insônia, desce até a cozinha, pega um copo d’água, desce para o
porão, adentra um vão escuro na parede e vai até à parede do fundo.

(...) comecei a tomar as pílulas rapidamente, entre goles de água, uma depois da
outra. Inicialmente nada aconteceu, mas quando me aproximei do fim do frasco
luzes vermelhas e azuis começaram a piscar diante de meus olhos. O frasco escapou
dos meus dedos e eu me deitei. O silêncio recuou, revelando as pedrinhas, as
conchas, todos os destroços decadentes da minha vida. Então no limite da visão, ele
se recompôs e, numa grande onda, me arremessou para o sono. (PLATH, 2019,
p.189)

Após essa tentativa, ela é levada a um hospital psiquiátrico, onde conhece outras
mulheres em condições similares às suas. Ela passa por uma segunda experiência com os
21
Curiosamente, podemos notar que é a mesma quantidade de caracteres para “Sylvia”
47

tratamentos de choque, porém, dessa vez eles “dão certo” e Esther recupera seu pleno controle
sob si mesma. A personagem não morre no livro. Ao contrário, os tratamentos de choque se
apresentam como a salvação da protagonista. Sua amiga Jody22, comete suicídio no fim do
romance. Nas últimas páginas do livro, Esther recebe uma visita de Buddy Willard, que antes
havia a pedido em casamento, agora a faz a seguinte pergunta: “Fico me perguntando com
quem você vai se casar agora, Esther. (...) agora que você passou (...) por aqui.” (p.271)
Esther responde que não faz a menor ideia, e nos trechos finais do livro expressa sua alegria
por finalmente estar livre.

Após a leitura do livro, é possível interpretar o sentimento de sufocamento da “redoma


de vidro” como uma metáfora das pressões sociais em cima das mulheres de uma sociedade
como um todo. A “preocupação” que Buddy Willard demonstra por Esther após vê-la não
esbarra na saudade ou no cuidado que ele deveria ter com a saúde da moça, mas sim uma
preocupação de quem irá querer se casar com uma jovem que acabou de sair de um hospital
psiquiátrico. O romance inteiro nos mostra como as pressões sociais interferem na qualidade
de vida das mulheres de uma sociedade a ponto de levarem-nas a um impulso suicida por
conta de um desencaixe social. O dilema de Esther que se se materializa na metáfora do conto
da figueira nos mostra que ela não poderia escolher mais de um figo pois em sua condição de
mulher, um anulava o outro.

4.2. Os traços

A partir das análises acima e da passagem citada na introdução deste trabalho em que
Sylvia Plath reconhece um certo teor biográfico em suas obras, é possível perceber que de
fato existem vestígios da vida pessoal de Sylvia em seus escritos. Esther, Doreen e Jody de A
Redoma de Vidro e a própria Sylvia de Os diários de Sylvia Plath, que possuem muitas
características similares com a Sylvia descrita por familiares, amigos e por si mesma. Todas
essas personagens passam pelo mesmo problema fundamental, que não se define pela
depressão em si, mas nos fatores que levam essa depressão a se manifestar.

Sylvia e suas personagens vivem em um contexto social que se desequilibra a medida


em que aquela sociedade começa a passar por mudanças estruturais que influenciam a vida

22
Jody é uma personagem que no livro aparece como uma amiga de longa data de Esther. Jovem alegre e
afetuosa que por não ter muito protagonismo na história e aparecer em poucos momentos do livro, acaba por nos
surpreender quando se suicida.
48

dos indivíduos que ali vivem. O período do fim das guerras, a revolução sexual, o próprio
baby boom e a instabilidade econômica do período fizeram com que seus indivíduos
passassem por mudanças também. Por exemplo, com o início da revolução sexual e o avanço
do feminismo, as mulheres começaram a lutar contra as opressões diárias que sempre
viveram, mas essa luta não significava que essas mulheres percebessem uma melhora social
por conta disso. Pelo contrário, o conhecimento dessas opressões e injustiças de gênero
faziam com que as personagens das obras se sentissem muito mais deprimidas.

A relação conturbada com a família também é um tema utilizado de fundo para essas
obras. Sylvia possuía um ressentimento em relação a sua mãe e a morte de seu pai assim
como suas personagens. Outro ponto similar é a relação de desencaixe das personagens em
relação à sociedade vivida por elas. Desse modo a mãe de Esther assim como Buddy Willard
representam o desejo social quase que obsessivo que espera fazer com que as mulheres
percebam a vida de casada como um destino já escrito e esperado para todas. Isso faz com que
as mulheres que não se sentem preparadas para um casamento ou para a maternidade também
não se sintam integradas a sociedade, de modo a coagi-las mesmo que contra suas vontades a
se casarem e se tornarem mães, com o argumento de que o sentimento de integração e
completude irá magicamente despertar em suas mentes e corações.

4.2.2 As Escolhas

O conto da figueira narrado por Esther Greenwood em A Redoma de Vidro, serve


como alegoria para que seja possível discutir as escolhas femininas ao passar dos anos nas
sociedades. Quando Esther narra que se sentia embaixo de uma figueira observando os
maravilhosos figos dos quais ela poderia obter, ela está nos dizendo que ela consegue
enxergar diversos caminhos desejáveis em seu próprio futuro. Um emprego dos sonhos, sua
carreira de poeta, uma família perfeita com marido e filhos, viagens ao redor do mundo,
pessoas diferentes que ela poderia conhecer e mais que tudo, sonhos que ela poderia
concretizar. O dilema de Esther em escolher apenas um desses figos nos mostra que não era
possível para ela, como mulher, obter mais de um pois um fruto automaticamente anularia o
outro.

A própria Sylvia percebe o teor de oposição desses frutos em sua vida real, quando
opta por tentar uma conciliação entre ter uma família perfeita nos moldes sociais e seguir seu
49

sonho de ter uma carreira de sucesso. Sylvia não se completa nessas escolhas, talvez porque a
maternidade e o casamento não tenham sido de fato uma escolha. Seja por quaisquer razões,
Sylvia passa para Esther esse aprendizado e Esther faz sua escolha. Escolhe por sua própria
liberdade, por retomar o controle sobre si mesma e sua vida ao passo que os tratamentos de
choque conseguiram retirar de si o peso da redoma de vidro. A Sylvia dos diários escolhe se
dedicar ao papel de mulher e mãe, a Sylvia da realidade em algum momento se livra do papel
de mulher e retoma o de escritora. Jody escolhe por dar fim à sua vida e Doreen faz a escolha
de viajar por inúmeros lugares conhecendo pessoas novas. Esther, decide por cuidar de si.

4.2.2 Suicídio e suas formas

Sylvia Plath também retrata em suas obras o suicídio como escolha. A morte se faz
presente em seus escritos assim como em algum momento fez parte de sua vida. Sylvia assim
como Esther comete três tentativas principais de suicídio, ambas tentam a morte por
afogamento, enforcamento e analgésicos. O último, foi para as duas onde a morte chegou
mais perto de completar sua função. Vale lembrar que o suicídio por overdose de analgésicos
foi o método de tentativa suicídio mais utilizado por mulheres na Inglaterra de Sylvia Plath
assim como nos Estados Unidos. Dessa forma, Sylvia e Esther são apenas mais duas dentro
das estatísticas de mulheres suicidas entre 1950 a 1963. Ambas também nos mostram sua
incapacidade pela utilização de métodos mais agressivos, como lâminas ou armas de fogo,
número que também converge com os dados apresentados nos primeiros capítulos deste
trabalho. Sylvia chega às vias de fato quando comete o suicídio por inalação de gás, que como
já mostrado, foi o método de suicídio com mais êxito na Inglaterra, lugar onde ela morre. A
mulher suicida de A redoma de vidro é representada por Jody, amiga de Esther que não possui
muito protagonismo na narrativa. Ao contrário de Sylvia, Esther consegue um final feliz, ou
melhor dizendo, Sylvia Plath cria um final feliz para a personagem, mas não consegue achar a
sua própria salvação. A Sylvia dos diários também não morre, já que o mesmo por ser um
diário e não um romance, não possui um final.
50

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Sabemos que hoje a morte se apresenta como tema tabu entre os indivíduos das
sociedades ocidentais, embora no passado fosse percebida como acontecimento natural que
perpassava as relações humanas em sociedade. Escondemos nossos moribundos dos outros
indivíduos em uma tentativa de afugentar o ato de pensar sobre a morte, bem como sua
própria chegada. Prolongamos a vida dos enfermos até que não seja mais possível adiar seu
perecimento e ocultamos os idosos e doentes mentais pois eles possuem o cheiro indigesto
que nos lembra do fim da vida. Nesse sentido, a morte se caracteriza por ser um tema
importante não só para os debates no meio popular, mas também no meio acadêmico das
ciências sociais, pois como vimos até aqui, ela se caracteriza como um fato social que embora
seja crucial para o entendimento da sociedade, não se mostra como tema recorrente de
pesquisas na área.

Da mesma forma que tentamos pôr os moribundos à margem, também tentamos


afastar a existência do suicídio do imaginário social dos indivíduos, levando os suicidas a
clínicas psiquiátricas e retirando assim parte da responsabilidade que a sociedade possui sobre
eles. Quando Karl Marx diz que o suicídio é o resultado de uma sociedade profundamente
doente, ele não diz que ela diretamente causa a morte daquele indivíduo, mas sim que algo
naquele sistema não está funcionando corretamente e a sociedade em alguma medida
influencia o indivíduo a ponto de fazê-lo desencadear algum tipo de transtorno ou até mesmo
uma depressão que acaba por aniquilá-lo.

O caso Sylvia Plath se mostra então objeto deste trabalho pois a poeta costumava
tematizar a morte (assim como o suicídio) como algo natural e cotidiano e não como algum
tabu. Os dados trabalhados até aqui nos apresentam que mais que escrever sobre suicídio,
Sylvia escrevia sobre mulheres suicidas; não só pelo fato dela própria se caracterizar como
uma, mas pelo fato de ter vivido em um contexto social que propiciava o suicídio de mulheres
no geral. Os caminhos e experiências pelos quais Sylvia percorre em sua vida convertem-se
em personagens que levam consigo não apenas traços de Sylvia Plath mas também vestígios
de outras mulheres de seu tempo. Esther, Doreen, Jody, ou a própria Lady Lazarus além da
Sylvia dos diários são construídas a partir da mistura de experiências pessoais de Sylvia Plath,
de sua criatividade como grande artista que foi e de traços sociais determinantes de sua
sociedade. Suas personagens são fictícias, mas em alguma medida representam mulheres
51

reais. Sua obra traduz de forma bela as angústias do “ser mulher” na Inglaterra da década de
60, onde a estrutura social era balançada por fortes mudanças históricas e culturais.

De fato, as personagens de Sylvia Plath, assim como ela mesma, se mostram em uma
relação de anomia para com a sociedade, mas mais que isso, elas se sentem desintegradas.
Nesse sentido, os papéis sociais destinados a essas mulheres não as cabiam, mas suas
vontades também não. Desse modo, a pressão de escolher apenas um dos “figos” da
deslumbrante figueira de sonhos e opções fazia com que essas mulheres se sentissem fora do
padrão ideal feminino da época, tornando-as infelizes para o resto de suas vidas. Os dados de
Stengel sobre as tentativas de suicídio nessa época nos mostram que a morte de Sylvia não foi
nada fora do comum; na verdade ela foi apenas uma das diversas mulheres que por inúmeros
fatores sociais (e em seu caso aliados à depressão) se utilizaram de um mesmo método e
puseram fim à sua vida.

Assim sendo, o presente trabalho buscou trazer uma nova perspectiva de análise da
obra de Sylvia Plath sob o viés da descrição social e contribui para que seus escritos não
sejam lidos como fruto de uma mulher histérica e louca, que atormentada pela separação do
marido cometeu suicídio. Também mostra que Sylvia não era a exceção e, sim, a regra; e que,
portanto, a mulher suicida representada em suas obras espelha diversas outras Sylvias que
viveram ou ainda vivem sob as mesmas condições que a poeta descreve em seus escritos.
52

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