12 Temas de Direito Administrativo

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Novos temas da

responsabilidade civil
extracontratual
das entidades públicas
ICJP – 5 de Dezembro de 2012

Coordenação
Carla Amado Gomes e Miguel Assis Raimundo
Organização de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes
Com o patrocínio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento
Novos temas da
responsabilidade civil
extracontratual
das entidades públicas
ICJP – 5 de Dezembro de 2012

Coordenação

Carla Amado Gomes


Miguel Assis Raimundo
Edição:

www.icjp.pt

Abril de 2013

ISBN: 978-989-97834-3-0

Alameda da Universidade
1649-014 Lisboa

e-mail: [email protected]
Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 3

Novos temas da responsabilidade civil extracontratual


das entidades públicas

Dia 5 de Dezembro

Coordenação: Profª Doutora Carla Amado Gomes


e Prof. Doutor Miguel Assis Raimundo

1º Painel: 10H30/13H00

Responsabilidade civil extracontratual por actividades de regulação


Prof. Doutor Pedro Gonçalves

Ilicitude e presunções de culpa na responsabilidade pelo exercício da função


administrativa
Prof.ª Doutora Alexandra Leitão

Cumulação de responsabilidades de várias funções do Estado


Prof. Doutor Miguel Assis Raimundo

Inconstitucionalidade e responsabilidade civil do Estado


Mestra Dinamene Freitas

2º Painel: 15H00/18H00

Responsabilidade civil extracontratual e danos de perda de chance


Prof.ª Doutora Vera Eiró

O direito de regresso
Mestre Diana Ettner

A responsabilidade dos estabelecimentos hospitalares integrados no Serviço


Nacional de Saúde por actos de prestação de cuidados de saúde
Mestra Cláudia Monge

Responsabilidade civil dos árbitros


Mestre Ricardo Pedro

Responsabilidade civil por riscos de civilização


Prof.ª Doutora Carla Amado Gomes

A Lei 67/2007 e os seguros de responsabilidade civil


Profª Doutora Margarida Lima Rego

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 4

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 5

INDICE

Apresentação

Ilicitude e presunções de culpa na responsabilidade pelo exercício da função


administrativa
Prof.ª Doutora Alexandra Leitão

Cumulação de responsabilidades de várias funções do Estado


Prof. Doutor Miguel Assis Raimundo

Responsabilidade civil extracontratual e danos de perda de chance


Prof.ª Doutora Vera Eiró

O direito de regresso
Mestre Diana Ettner

A responsabilidade dos estabelecimentos hospitalares integrados no Serviço


Nacional de Saúde por atos de prestação de cuidados de saúde
Mestre Cláudia Monge

Responsabilidade civil dos árbitros


Mestre Ricardo Pedro

Risco(s) de civilização, responsabilidades comunicacionais e


irresponsabilidades residuais
Prof.ª Doutora Carla Amado Gomes

A Lei 67/2007 e os seguros de responsabilidade civil


Profª Doutora Margarida Lima Rego

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 6

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 7

Apresentação

A Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, em vigor desde 30 de Janeiro de 2008, e


cedo cirurgicamente alterada pela Lei 31/2008, de 17 de Julho, aprovou o
novo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais
entidades públicas (e equiparadas). Em cinco anos de vigência, muitas têm
sido as dúvidas levantadas a propósito das três (ou quatro?) vertentes
responsabilizantes que cobre: administrativa, judicial, legislativa (e política?). A
jurisprudência não é, por ora, significativa, em virtude de os novos casos ainda
não terem passado da primeira instância, cabendo portanto, aos
especialistas, académicos e práticos, sugerir e ensaiar soluções.

O colóquio do ICJP cujas Actas ora se publicam constituiu um momento de


reflexão particularmente rico sobre um amplo leque de temáticas relativas à
responsabilidade civil extracontratual pública. A perspectiva crítica dos
oradores foi uma constante e teve resposta viva por parte da audiência, cujas
observações enriqueceram o debate e deixaram lastro para indagações
futuras. Agradecimentos são devidos a ambos, oradores e público, pelo
sucesso do colóquio, que agora aqui fica inscrito nestas Actas para memória
futura.

Um agradecimento especial à Drª Telma Oliveira, responsável pelo


Secretariado do ICJP, pelo cuidado que sempre coloca nos detalhes da
organização destes eventos.

Os coordenadores,

Carla Amado Gomes


Miguel Assis Raimundo

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Ilicitude e presunções de culpa


na responsabilidade pelo exercício da função administrativa

Alexandra Leitão
Professora auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

1. O conceito de ilicitude no regime da responsabilidade extracontratual do Estado e


demais pessoas coletivas Públicas; 2. O conceito de culpa no regime da
responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas.
Presunções de culpa, responsabilidade objetiva e relações internas entre entidades
públicas;

1. O conceito de ilicitude no regime da responsabilidade extracontratual do


Estado e demais pessoas coletivas Públicas

A ilicitude é definida no artigo 9.º no Regime da Responsabilidade


Extracontratual do Estado (adiante designado abreviadamente RREE),
aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro. O n.º 1 do preceito assimila
a ilicitude à ilegalidade (“consideram-se ilícitas as acções ou omissões dos
titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios
constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinja regras de ordem técnica
ou deveres objetivos de cuidado e de que resulte ofensa de direitos ou
interesses legalmente protegidos”)1.
O primeiro aspeto a salientar é que o legislador não distingue entre
ilegalidade internas ou materiais e ilegalidades externas, procedimentais,

1
Esta solução é semelhante à consagrada no artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de
Novembro de 1967. No n.º 2 do artigo 9.º do RREE, relativo ao funcionamento anormal do
serviço, o padrão de conduta não é a violação de normas, mas sim a atuação abaixo dos
padrões médios de resultado e de exigência razoável nas circunstâncias do caso concreto, “um
standard objetivo de funcionamento” (a expressão é de VIEIRA DE ANDRADE, “A
Responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função administrativa na nova lei
sobre responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos”, in Revista de
Legislação e Jurisprudência, n.º 3951, pág. 366).

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formais ou orgânicas. As primeiras afetam o conteúdo do ato jurídico,


enquanto as segundas apenas inquinam aspetos externos do mesmo, relativos
à competência do respectivo autor, às formalidades procedimentais e à
própria forma2. Estas últimas não impedem a prática de um novo ato com
conteúdo idêntico, desde que não se repitam os mesmos vícios “externos”. Por
outras palavras: estes vícios não condicionam o conteúdo lesivo do ato, sendo
discutível se o dano provocado na esfera jurídica do lesado lhes é imputável
diretamente.
Alguma doutrina tem entendido que as ilegalidades meramente formais
não preenchem, por isso, o conceito de ilicitude, mas apenas as ilegalidades
das quais resultem violação de direitos ou interesses legalmente protegidos de
terceiros3.
Neste sentido, estaria em causa um problema de causalidade adequada:
se a Administração pode substituir o ato ilegal por um ato de conteúdo
idêntico, isso consubstancia uma situação de relevância negativa da causa
virtual, afastando o dever de indemnizar4.
Aparentemente, o legislador foi, pelo menos em parte, sensível a estes
argumentos, uma vez que, apesar de equiparar ilegalidade e ilicitude, fez
depender a verificação desta última da violação de disposições normativas e
de regras técnicas ou deveres de cuidado, desde que “resulte ofensa de
direitos ou interesses legalmente protegidos”.
Não parece, no entanto, ser esta a melhor solução.
Em primeiro lugar, devido a um argumento estritamente literal, decorrente
do disposto no artigo 128.º, n.º 1, alínea b), in fine do CPA. Este preceito,
apesar de atribuir eficácia retroativa aos atos administrativos que dão
execução a decisões judiciais, exclui essa retroatividade se os atos forem
“renováveis”, ou seja, se o seu conteúdo for repetível, o que acontece

2
V. ESTÊVÃO NASCIMENTO DA CUNHA, Ilegalidade externa do ato administrativo e
responsabilidade civil da Administração, Coimbra, 2010, págs. 160 e seguintes.
3
V. RUI MEDEIROS, Ensaio sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Atos Legislativos,
Coimbra, 1992, pág. 169, e MARGARIDA CORTEZ, “Responsabilidade civil da Administração
Pública”, in Seminário Permanente de Direito Constitucional e Administrativo, volume I, Braga,
1999, págs. 72 e seguintes.
4
V. RUI MEDEIROS, op. cit., págs. 209 e 210.

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exatamente quando o ato padece apenas de vícios externos. Isto retira


relevância à causa virtual, pelo menos relativamente aos danos produzidos no
período que decorre entre a prática do primeiro e do segundo atos.
Em segundo lugar, no plano axiológico, o princípio da legalidade impõe
que todas as ilegalidades se traduzam numa atuação ilícita, enquanto
conduta anti-jurídica e contrária ao Direito, não havendo nenhum valor ou
princípio geral do direito administrativo que justifique afastar a ilicitude nesses
casos.
Isso mesmo entendeu o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 154/2007,
proferido no Processo n.º 65/02, de 2 de Março de 2007 5, no qual decidiu
“julgar inconstitucional, por violação do princípio da responsabilidade
extracontratual do Estado, consagrado no artigo 22º da Constituição, a norma
constante do artigo 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de
1967, interpretada no sentido de que um ato administrativo anulado por falta
de fundamentação é insuscetível, absolutamente e em qualquer caso, de ser
considerado um ato ilícito, para o efeito de poder fazer incorrer o Estado em
responsabilidade civil extracontratual por ato ilícito” (sublinhado nosso).
A argumentação do Tribunal Constitucional passa pela afirmação de
que não é compatível com o artigo 22.º da CRP afastar-se a responsabilidade
extracontratual do Estado com o fundamento de que não se verifica o
pressuposto da ilicitude do ato quando está em causa um vício de falta de
fundamentação (ou seja, um vício de natureza formal).
Efetivamente, se o objetivo do preceito constitucional é garantir que os
particulares são ressarcidos pelos danos causados por atos ilegais praticados
pelos titulares dos órgãos, funcionários e agentes do Estado e demais
entidades públicas, essa função reparadora é posta em causa se se excluir a
responsabilidade nestes casos.
No aresto não se afasta liminarmente a possibilidade de faltarem outros
pressupostos da responsabilidade extracontratual, mas isso carece sempre de
demonstração casuística e é independente da existência de ilicitude.

5
In www.tribunalconstitucional.pt.

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De facto, a relevância do comportamento alternativo lícito – no caso, a


renovação do ato com igual conteúdo – implicaria a demonstração cabal de
que a Administração Pública atuaria da mesma forma sem aquele ilícito 6. Por
isso, a atuação administrativa posterior à anulação ou declaração de
nulidade do ato não pode ser um fator determinante para indagar qual teria
sido conteúdo do ato se a ilegalidade (externa) não tivesse ocorrido7.
Questão diversa é a de saber se há dever de indemnizar quando o ato
administrativo não é declarado nulo ou anulado judicialmente, em virtude de
se tratar da violação de uma formalidade não essencial, que não implique,
por isso, a invalidade do ato administrativo. Trata-se de situações que se
traduzem numa mera irregularidade, como acontece, por exemplo, com a
violação do disposto no artigo 38.º do Código do Procedimento Administrativo
(adiante designado abreviadamente CPA). A doutrina não é unânime quanto
à ilicitude destes atos administrativos para efeitos de fazer incorrer a
Administração em responsabilidade8.
Na minha opinião, e sem prejuízo de ulterior análise, a verdade é que se a
própria ordem jurídica entendeu não cominar estas ilegalidades com um
desvalor que afecte a eficácia dos atos administrativos que delas padecem,
torna-se difícil justificar que essa atuação comporte uma conduta ilícita. Trata-
se, ainda assim, de matéria de grande complexidade, até porque, no
contencioso administrativo, obter a declaração de nulidade ou anulação
judicial do ato administrativo não é um pressuposto necessário da ação de
responsabilidade extracontratual, atendendo ao disposto no n.º 1 do artigo

6
Como salienta ESTÊVÃO NASCIMENTO DA CUNHA, op. cit., págs. 399 e 400.
7
Aparentemente em sentido diverso, v. a declaração de voto do Conselheiro Vítor Gomes no
Acórdão n.º 154/2007, acima referido, nos termos da qual, apesar de acompanhar o sentido do
aresto, esclareceu que “o artigo 22.º da Constituição não impede que, independentemente do
que a lei ordinária disponha quanto à eficácia retroativa dos atos renovadores de atos
contenciosamente anulados, se atribua relevância excludente da indemnização à “conduta
alternativa lícita” da Administração, mesmo quanto aos efeitos produzidos medio tempore”.
8
CARLOS CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais
Entidades Públicas Anotado, Coimbra, 2008, pág. 152, defende que essas situações, bem como
as ilegalidades sanáveis, não relevam para a ilicitude. Pelo contrário, MARCELO REBELO DE
SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo III, 2.ª edição, Lisboa,
2009, pág. 188, consideram, que os atos administrativos irregulares são ilegais e, como tal, ilícitos
para efeitos de responsabilidade disciplinar e civil, o que acarreta uma diminuição da sua força
tituladora.

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38.º do CPTA. Sempre se diga, contudo, que o juízo que o tribunal efetua em
sede de apreciação incidental ao abrigo deste preceito tem como
pressuposto que o ato, caso ainda pudesse ser impugnado, seria,
efetivamente, declarado nulo ou anulável, o que não aconteceria se estivesse
inquinado com um vício gerador de mera irregularidade.
Finalmente, a exigência de que a ilegalidade ofenda direitos ou interesses
legalmente protegidos para ser equiparada à ilicitude pode traduzir-se, na
prática, na confusão entre ilicitude e dano.
Como refere VIEIRA DE ANDRADE, a violação de normas, jurídicas ou
técnicas, corresponde a uma “ilicitude de conduta” e a violação de direitos e
interesses a uma “ilicitude de resultado”9, sendo que esta última acaba, por
sua vez, por se confundir com a própria ideia de dano. A demonstração de
que a atuação administrativa implicou a ofensa de posições jurídicas
subjectivas de terceiros equivale, na prática, à verificação da existência de
um dano na respectiva esfera jurídica10. Ora, uma ilegalidade que não
provoque danos não deixa de ser ilícita, falta é esse outro pressuposto da
responsabilidade extracontratual.
É verdade que a jurisprudência dos tribunais administrativos tem sido
constante no sentido de exigir a violação de direitos ou interesses alheios para
que haja ilicitude, não considerando suficiente que se verifique qualquer
ilegalidade para que daí decorra uma obrigação indemnizatória11. Contudo,
esse entendimento tem de ser compatibilizado em cada caso concreto com a
necessidade de proceder a uma interpretação conforme à Constituição, à luz
da garantia de ressarcimento que resulta da doutrina expendida no Acórdão
do Tribunal Constitucional n.º 154/2007, acima citado, atendendo a que nem

9
V. VIEIRA DE ANDRADE, “A Responsabilidade…, cit, pág. 365.
10
LUÍS CABRAL DE MONCADA, “A Responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais
entidades públicas”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, Volume
II, obra coletiva, Coimbra, 2006, pág. 52, trata este inciso final, relativo à ofensa de direitos e
interesses, como uma questão que tem a ver com o dano e não com a ilicitude.
11
V. o Acórdão do STA de 9 de Julho de 2009, proferido no Processo n.º 0921/08, o Acórdão do
STA de 23 de Setembro de 2009, proferido no Processo n.º 01119/08, e o Acórdão do STA de 27
de Janeiro de 2010, proferido no Processo n.º 0358/09, todos in www.dgsi.pt.

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todas as ilegalidades externas correspondem, necessariamente, à violação de


direitos e interesses protegidos.
Uma última questão a propósito da definição de ilicitude do n.º 1 do artigo
9.º do RREE prende-se com a ausência de uma menção ao Direito da União
Europeia enquanto parâmetro de atuação administrativa. Vários Autores têm
estranhado a completa insensibilidade desta lei ao Direito da União Europeia 12,
exceto na redação do n.º 2 do artigo 7.º introduzida pela Lei n.º 31/2008, de 17
de julho. A remissão para os requisitos da responsabilidade civil extracontratual
definidos pelo direito comunitário resulta da necessidade de dar execução a
uma sentença do TJUE através do qual este Tribunal condenou o Estado
português por violação da Directiva “Recursos”13 (Acórdão de 14 de outubro
de 2004, proferido no Processo n.º C-275/0314).
Na minha opinião, a referência expressa ao Direito da União Europeia é
dispensável se tivermos em atenção que essas normas fazem parte integrante
da ordem jurídica nacional e, portanto, do bloco de legalidade que serve de
parâmetro à atuação administrativa para efeito de verificação de uma
ilegalidade e consequente ilicitude15.
Sendo assim, a alteração introduzida no n.º 2 do artigo 7.º pode afigurar-se
até contraproducente, por permitir uma interpretação “a contrario sensu”,
segundo a qual nos restantes casos as regras de Direito da União Europeia não
são aplicáveis16.

12
V. CARLA AMADO GOMES, “O livro das ilusões. A responsabilidade do Estado por violação
do Direito Comunitário, apesar da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro”, in Textos Dispersos sobre
Direito da Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas, Lisboa, 2010, págs. 206
e seguintes, embora concluindo que o recurso ao reenvio prejudicial e ao conjunto do
ordenamento jurídico permite colmatar essa falha, e MARIA JOSÉ RANGEL MESQUITA, “Influência
do Direito da União Europeia nos regimes da responsabilidade pública”, in Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 88, 2011, pág. 11.
13
Diretiva n.º 89/665, do Conselho, de 21 de dezembro de 1989.
14
In http://www.europa.eu.int.
15
Neste sentido, v. VIEIRA DE ANDRADE, A Responsabilidade…, cit., pág. 365.
16
Como realça HELOÍSA OLIVEIRA, “Jurisprudência comunitária e regime jurídico da
responsabilidade extracontratual do Estado e demais entidades públicas – influência, omissão e
desconformidade”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, volume IV,
Coimbra, 2010, pág. 626.

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2. O conceito de culpa no regime da responsabilidade extracontratual do


Estado e demais pessoas coletivas públicas. Presunções de culpa,
responsabilidade objetiva e relações internas entre entidades públicas

A culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes está definida, por sua
vez, no n.º 1 do artigo 10.º do RREE, determinando este preceito que a mesma
deve ser aferida à luz da “diligência e aptidão que seja razoável exigir, em
função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário
ou agente zeloso e cumpridor”. A adoção de um critério de culpa específico
da responsabilidade pelo exercício da função administrativa, que não se limita
a remeter para a “diligência do bom pai de família” a que se refere o n.º 2 do
artigo 487.º do Código Civil (adiante designado CC), afigura-se uma solução
correta, permitindo que a densificação do conceito se opere a partir de outras
disposições de direito administrativo, por exemplo, as relativas aos deveres dos
funcionários e agentes da Administração Pública.
O n.º 2 do artigo 10º estabelece uma presunção de culpa leve quando haja
ilicitude na prática de atos jurídicos17. Trata-se de uma presunção “juris
tantum”, que se traduz numa inversão do ónus da prova, nos termos do n.º 1
do artigo 487.º e do n.º 1 do artigo 344.º do CC. Como tal, pode ser
duplamente ilidida: pode demonstrar-se que há culpa grave ou dolo, ou que
não houve nenhuma culpa devido, por exemplo, à ambiguidade do quadro
legal aplicável, à proliferação de legislação extravagante, à existência de
divergência jurisprudencial e doutrinária sobre a questão, ou, simplesmente, à
necessidade de cumprir um comando normativo inconstitucional18.
17
Como havia sido preconizado antes da reforma, por exemplo, por MARGARIDA CORTEZ,
“Contributo para uma reforma da lei da responsabilidade civil da Administração”, in
Responsabilidade civil extracontratual do Estado. Trabalhos preparatórios da reforma, obra
coletiva, Coimbra, 2002, pág. 261. CARLA AMADO GOMES, “A responsabilidade civil
extracontratual da Administração por facto ilícito. Reflexões avulsas sobre o novo regime da Lei
n.º 67/2007, de 31 de Dezembro”, in Textos dispersos sobre Direito da responsabilidade civil
extracontratual das entidades públicas, Lisboa, 2010, págs. 60 e 61, critica esta imputabilidade
genérica por faltas leves, que pode levar à paralisia da Administração Pública por medo do
erro, preconizando que nestes casos só haveria indemnização se o dano provocado fosse
especial e anormal, o que não seria, segundo a Autora, inconstitucional à luz do artigo 22.º da
CRP, na medida em que este preceito tem de ser compatibilizado com outros valores,
designadamente, com o próprio funcionamento da máquina administrativa, que actua para o
interesse da comunidade.
18
V. VIEIRA DE ANDRADE, A Responsabilidade…, cit., pág. 367 e CARLOS CADILHA, Regime …,
cit., pág. 167. Quanto às causas de exclusão de culpa na responsabilidade da Administração, v.

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Sem prejuízo de esta solução legislativa configurar uma clara objetivização


da responsabilidade administrativa19 – o que é, na minha opinião, uma
decorrência da especial natureza da responsabilidade pública ―, não deixa
de merecer alguns reparos.
Efetivamente, quando está em causa a prática de um ato jurídico ilícito,
designadamente um ato administrativo ilegal, tem de se considerar irrelevante
que o titular do órgão, o funcionário ou o agente autor do ato estivesse ou
não convencido da validade do mesmo, sob pena de se pôr em causa a
garantia de reparação de danos que o artigo 22.º da CRP pretende assegurar.
Ora, afastar a obrigação de indemnizar por falta de culpa afeta
negativamente essa garantia e, em última análise, o próprio princípio da
legalidade. A total sujeição da Administração Pública ao bloco de legalidade
tem também uma dimensão garantística que fundamenta a função
reparadora do instituto da responsabilidade.
Por isso, como já defendi antes 20, parece-me que deveria ser consagrada
ou uma presunção inilidível de culpa leve decorrente da prática de atos
jurídicos ilícitos – sem prejuízo da possibilidade de se demonstrar a existência
de culpa grave ou dolo -, ou mesmo prescindir-se completamente da culpa
nestes casos, admitindo que se trata de responsabilidade objetiva e não
subjetiva. No primeiro caso, poderia haver direito de regresso sobre os titulares
dos órgãos, funcionários ou agentes se se comprovasse que atuaram com
culpa grave ou dolo.
Por outro lado, a circunstância de a responsabilidade externa da
Administração, perante o particular, ser objetiva ou resultar de uma presunção
inilidível não afasta a possibilidade de, no plano interno, o órgão administrativo
PAULO OTERO, “Causas de exclusão da responsabilidade civil extracontratual da Administração
Pública”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, volume II, Coimbra, 2010,
págs. 976 e seguintes.
19
VIEIRA DE ANDRADE, “Panorama geral do Direito da responsabilidade “civil”, in La
Responsabilidad Patrimonial de los Poderes Públicos, Madrid, 1999, págs. 44 e 45, salientava, já
em 1999, que na responsabilidade da Administração ocorre uma desvalorização da culpa
como censura ético-comportamental, subordinando-a à ideia de ilicitude.
20
V. ALEXANDRA LEITÃO, “Duas questões a propósito da responsabilidade extracontratual por
(f)atos ilícitos e culposos praticados no exercício da função administrativa: da responsabilidade
civil à responsabilidade pública. Ilicitude e presunção de culpa”, in Estudos em Homenagem ao
Prof. Doutor Jorge Miranda, Coimbra, 2012, pág. 57.

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poder demonstrar que a ilegalidade (ilicitude) do ato que praticou se deveu a


factos imputáveis a outra entidade pública. Nesses casos, o órgão que
praticou o ato lesivo teria que indemnizar o particular, mas teria direito a ser
compensado pela entidade que, pela sua atuação a montante, deu azo à
situação.
Por outras palavras: se um órgão da Administração tiver praticado um ato
inválido em virtude da existência de um quadro legal ambíguo, complexo ou
lacunar, pode invocar essa circunstância não para deixar de ressarcir o
particular pelos danos sofridos, mas para, por sua vez, exercer uma espécie de
direito de regresso junto dos(s) órgão(s) legislativo(s).
A solução não é, no fundo, muito diferente da relação que existe entre a
Administração e o seu funcionário ou agente quando estes atuam com dolo
ou negligência grave.
Outra hipótese seria considerar ilidida a presunção do artigo 10.º, n.º 2, o
que afastaria o dever de indemnizar por parte do órgão administrativo, e
remeter o particular lesado para a responsabilidade por ato da função
legislativa.
No entanto, esta solução pode acarretar uma desproteção inaceitável dos
particulares.
É que os pressupostos da responsabilidade por ato da função legislativa são
muito mais restritivos, implicando, desde logo, que a norma legal já tenha sido
declarada inconstitucional ou objeto de desaplicação com esse fundamento,
nos termos do artigo 15.º, n.º 2, do RREE.
Mais: o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República já
considerou, em Parecer homologado e publicado no Diário da República21,
que a figura da imunidade dos Deputados implica, necessariamente, a
irresponsabilidade da Assembleia da República pela aprovação de um
diploma legal e que, por isso, relativamente aos danos causados pelo
exercício da função legislativa, a responsabilidade é exclusiva do Estado ou
das regiões autónomas.

21
II série, n.º 46, de 7 de março de 2011.

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Isto significa que se o particular lesado demandar uma entidade


administrativa pela prática de atos administrativos ilícitos e a presunção de
culpa for ilidida no sentido de afastar a responsabilidade dessa entidade, tão
pouco será o órgão legislativo a responder em termos de responsabilidade civil
extracontratual.
Efetivamente, sendo ilidida a presunção de culpa, não existiria
responsabilidade pelo exercício da função administrativa e, por sua vez, o
Estado legislador poderia não ser responsável por faltarem os pressupostos
específicos daquele tipo de responsabilidade. E esse é o resultado que não
parece admissível à luz do artigo 22.º da Constituição e dos princípios gerais do
Direito, designadamente, o da proteção dos direitos dos particulares.
Ora, é preciso ter presente que o direito ao ressarcimento por danos
causados por ações ou omissões da Administração Pública é um direito
fundamental, o que significa que as limitações ou exclusões da
responsabilidade são restrições a um direito fundamental e estão, por isso,
sujeitas a um regime particularmente restritivo e exigente (GOMES CANOTILHO
e VITAL MOREIRA)22.
Também JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS acentuam o caráter restritivo das
normas que limitem ou restrinjam o direito ao ressarcimento dos particulares
lesados por atuações dos entes público, e, embora refiram que “[O] legislador
pode, pois, densificar os pressupostos da obrigação de indemnizar e o regime
da responsabilidade, cabendo-lhe designadamente delimitar o conceito de
ilicitude relevante e esclarecer em que medida uma ideia de culpa –
entendida, evidentemente, numa aceção normativa e não psicológica –
constitui pressuposto da responsabilidade” 23, não deixam de salientar a
natureza normativa e não psicológica de uma ideia de culpa relevante.
No caso, por exemplo, de ser duvidoso o quadro legal aplicável, o que está
em causa é ainda a ilicitude do ato administrativo e os tribunais decidirão se é

22
Como salientam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, volume I, 4ª ed., Coimbra, 2007, págs. 437 e 438, embora sem referir a
questão da responsabilidade objetiva ou subjetiva.
23
V. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição,
Coimbra, 2010, pág. 480.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 19

ilegal ou não. E, sendo o ato ilegal, a possibilidade de afastar a culpa e,


consequentemente, o dever de indemnizar, acaba por desproteger o lesado,
ao arrepio do disposto no artigo 22.º da CRP.
Está sempre em causa, no mínimo, um funcionamento anormal
generalizado dos poderes públicos, que contribui, em termos de
concausalidade, para a produção de um dano na esfera jurídica do
particular, pelo que se impõe, em primeira linha, o ressarcimento deste, sem
prejuízo dos eventuais “acertos de contas” internos a que haja lugar entre
entidades públicas.
Ora, a indemnização só pode ser devida a título de responsabilidade por
ato ilícito, porquanto a indemnização pelo sacrifício afigura-se impossível de
aplicar nestas situações, por duas razões: primeiro, porque há um ato ilícito;
segundo, porque essa figura pressupõe que o lesado tenha sofrido um dano
especial e anormal (artigo 16.º do RREE).
Além disso, a responsabilidade objetiva em caso de ato jurídico ilegal e
ilícito é uma solução mais próxima do Direito da União Europeia, podendo
colocar-se a questão de saber se o estabelecimento de uma responsabilidade
subjetiva, ainda que com presunção de culpa leve, não viola mesmo o Direito
da União Europeia. Há doutrina que considera que sim24, e outros Autores que
entendem que a presunção basta para aligeirar o ónus que recai sobre o
lesado para efetivar a responsabilidade da Administração25.
De facto, é duvidoso que a possibilidade de a presunção ser ilidida não
viole o conceito de “violação suficientemente caracterizada” que a
jurisprudência do TJUE tem vindo a afirmar, designadamente a partir do
Acórdão “Brasserie du Pêcheur”26 e, no caso da responsabilidade por danos
ocorridos no procedimento de formação de contratos públicos, é evidente
24
MARIA JOSÉ RANGEL MESQUITA, “A Proposta de Lei n.º 56/X em matéria de responsabilidade
civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas: Notas breves à luz do Direito da
União Europeia, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano, Volume II,
obra coletiva, Coimbra, 2006, pág. 247 e, mais recentemente, Influência do Direito da União
Europeia nos regimes da responsabilidade pública, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 88,
2011, págs. 11 e 12.
25
V. HELOÍSA OLIVEIRA, op. cit., págs 623 e 623.
26
Acórdão de 5 de Março de 1996, proferido nos Processos apensos n.ºs C-46/93 e C-48/93, in
http://eur-lex.europa.eu .

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 20

que a responsabilidade tem de ser objetiva, atendendo ao regime


consagrado na Diretiva “Recursos”27.
No Acórdão “Hedley Lomas”28, o TJUE remeteu para o direito nacional a
definição dos termos em que a responsabilidade se efetiva, desde que estes
não sejam menos favoráveis do que aqueles que são aplicáveis a
reclamações semelhantes de natureza interna e, independentemente disso,
não tornem impossível na prática ou excessivamente difícil a obtenção da
reparação (princípio da efetividade)29.
O enquadramento jurídico-comunitário não é, contudo, o único argumento.
Concorrem para este entendimento outros fatores.
Em primeiro lugar, verifica-se uma objetivização da responsabilidade da
Administração Pública como decorrência lógica da procedimentalização da
formação da vontade das entidades administrativas30.
Por outro lado, a consagração da figura do funcionamento anormal do
serviço, que prescinde da culpa, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 7.º do
RREE31, releva a incoerência que decorre de uma solução que admite que o
lesado seja menos protegido quando o autor do dano é um sujeito
identificável do que quando resulta do funcionamento anormal do serviço.
27
V. MARIA JOSÉ RANGEL MESQUITA, “O Regime da responsabilidade civil extracontratual do
Estado e demais pessoas coletivas públicas e o Direito da União Europeia”, Coimbra, 2009, pág.
54.
28
Acórdão do TJUE de 23 de Maio de 1996, proferido no Processo n.º C-5/94, in http://eur-
lex.europa.eu
29
Sobre este princípio, v. ALEXANDRA LEITÃO, O princípio da efetividade do Direito
Comunitário: Comentário ao Acórdão do TJUE “Recheio-Cash & Carry, SA”, de 17 de Junho de
2004, Processo C-30/02, in 20 Anos de Jurisprudência da União sobre casos portugueses. O que
fica do diálogo entre os juízes portugueses e o Tribunal de Justiça da União Europeia, obra
coletiva, Lisboa, 2011, págs. 233 e seguintes. Cabe, assim, aos Estados proporcionar a
“infraestrutura normativa” (a expressão é de SÉRVULO CORREIA, “Efetividade e limitações do
sistema português de aplicação impositiva do Direito da Concorrência através de meios
processuais administrativos e civis”, in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira
Ascensão, volume II, Coimbra, 2008, pág. 1777) de natureza procedimental, processual e
substantiva, para que as situações subjetivas constituídas à luz do direito comunitário recebam
uma tutela eficaz e adequada.
30
Incluindo no conceito de “entidade administrativa” também os privados que exercem a
função administrativa, que estão igualmente adstritos a vinculações jurídico-públicas de
natureza procedimental.
31
O disposto neste preceito é qualificado como ilicitude e não como culpa (artigo 9.º, n.º 2, do
RREE). Neste sentido, VIEIRA DE ANDRADE, “A Responsabilidade…, cit., pág. 363 considera mais
adequada a expressão “funcionamento anormal do serviço” em detrimento de “culpa do
serviço”, na medida em que nestes casos não existe verdadeiramente culpa, tratando-se,
quando muito, de um conceito impróprio de “culpa anónima”.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 21

Finalmente – e acima de tudo – a objetivização da responsabilidade da


Administração decorre do estrito respeito pelo princípio da legalidade, uma
vez que, como salienta PEDRO MACHETE “se o facto lesivo [praticado pela AP]
também é ilícito, isso significa necessariamente que os serviços administrativos
não funcionaram como deviam (…) Daí ser compreensível que no caso da
Administração – caracterizada por uma função específica e regendo-se por
uma legalidade própria – a questão da culpa tenda a esbater-se ou a
objetivar-se”32. Por isso, o Autor defende uma presunção inilidível de culpa
leve33.
Como referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, a localização
constitucional do instituto da responsabilidade das entidades públicas, no
artigo 22.º da CRP, significa que ele “não transporta apenas uma lógica
indemnizatória-ressarcitória decalcada da responsabilidade do direito civil. A
responsabilidade conexiona-se, desde logo, com outros princípios jurídico-
constitucionalmente estruturantes, como o princípio do Estado de Direito, o
princípio da constitucionalidade e o princípio da legalidade”34.
Os conceitos de ilicitude e de culpa, tal como estão consagrados no RREE,
estão, contudo, ainda um pouco “presos” aos conceitos civilistas, sendo que
as considerações aqui tecidas visam lançar a discussão sobre estes dois
aspetos num momento em que já passaram três anos sobre a entrada em
vigor da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, e justifica-se, por isso, repensar
algumas das soluções aí consagradas.

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32
V. PEDRO MACHETE, “A responsabilidade da Administração por facto ilícito e as novas regras
de repartição do ónus da prova, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 69, 2008, pág. 34.
33
Cfr. PEDRO MACHETE, op. cit., pág. 38.
34
V. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., pág. 425.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 23

Concurso de imputações por actos de diferentes funções do Estado

Miguel Assis Raimundo


Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Advogado

1. O pretexto da interrogação: alguns casos difíceis 2. Diferenciação de regimes de


acordo com o critério da separação de funções 3. Ausência de critério geral explícito
de relacionamento entre os diversos regimes 4. A ocorrência de casos nos quais as
actividades de diversas funções concorrem para o resultado danoso 5. O problema
de articulação 6. A insuficiência de uma perspectiva “demasiado separada” da
separação de poderes 7. O movimento de relativização da separação de poderes
7.1. Em geral 7.2. No direito da responsabilidade 7.2.1. Na responsabilidade por
violação do direito comunitário 7.2.2. Na responsabilidade por violação de direitos
consagrados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem 7.2.3. Na
responsabilidade por facto lícito do RREE 8. O enriquecimento dogmático do direito da
responsabilidade civil 8.1. Desenvolvimento do tema da multicausalidade 8.2.
Responsabilidade contratual e extracontratual 9. A configuração e o regime do
concurso de responsabilidades por actos de diferentes funções 9.1. A dimensão
substantiva 9.2. A dimensão processual 9.2.1. Em geral 9.2.2. Competência em razão
da hierarquia 9.2.3. Concurso envolvendo outras jurisdições

“Não há venenos, apenas doses


venenosas.”

Paracelso

1. O pretexto da interrogação: alguns casos difíceis

Imaginemos – ou se calhar, não precisamos de imaginar – os seguintes casos:

Caso I:
Num procedimento pré-contratual, um concorrente vencido impugna
contenciosamente a decisão de adjudicação.

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A entidade adjudicante não celebra o contrato com o adjudicatário, por


entender que a impugnação contenciosa da adjudicação tem efeito
suspensivo automático desse acto.
Sobre essa questão, há forte ambiguidade quanto ao enquadramento
jurídico da questão: há atraso na transposição de directiva europeia
sobre a matéria; as normas nacionais (do CPTA) não são claras sobre o
efeito suspensivo neste caso; os tribunais superiores dividem-se sobre as
várias dimensões da questão (quer sobre a existência de efeito directo
das disposições pertinentes da directiva, quer sobre a interpretação a
dar às normas nacionais).
Por fim, o tribunal administrativo profere decisão na qual declara
improcedente a impugnação e considera que a mesma não
suspendia o dever de celebrar o contrato; profere contudo essa
decisão muito para lá dos prazos previstos na lei para o efeito (mas
dentro do habitual em tais casos), o que leva a que entretanto passe o
prazo de execução do contrato previsto nas peças procedimentais.

Caso II:

Uma entidade administrativa, convencida de que certo terreno é do


domínio público marítimo, inicia lá uma obra;
Um particular propõe, num tribunal administrativo, providência cautelar de
embargo de obra nova, mas o tribunal julga-se incompetente por
considerar que está em causa uma questão de propriedade, da
competência dos tribunais comuns; estes, porém, julgam-se também
incompetentes, por entenderem que está em causa o exercício de um
poder de direito público (o poder de realizar obras públicas);
A competência é deferida pelo Tribunal de Conflitos à jurisdição
administrativa, que vem a entender que a obra é ilegal, por o terreno
ser privado, já que a linha de preia-mar (utilizada pela lei, neste caso,
como critério da dominialidade) retrocedeu desde a última
demarcação do domínio público face ao prédio particular em
questão.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 25

Caso III

Um agente de órgão policial falsifica grosseiramente indícios para permitir a


imputação de um crime a um determinado sujeito;
O magistrado do Ministério Público responsável pelo processo deveria ter-se
apercebido de tal falsificação, que era evidente para qualquer leigo,
mas ainda assim deduz acusação;
O tribunal que julga o pedido de prisão preventiva, bem como o tribunal de
julgamento, também não se apercebem da referida falsificação de
prova e, respectivamente, deferem a prisão preventiva e condenam o
arguido, condenação que vem a ser revertida pelo tribunal de
recurso, precisamente com fundamento na inexistência das “provas”
existentes.

Os casos referidos têm, obviamente, múltiplos aspectos de interesse do


ponto de vista jurídico. Aqui, no entanto, interessa-nos apenas explorar um
deles: o problema do regime jurídico aplicável ao ressarcimento de danos
sofridos pelos particulares afectados por esta sucessão de acontecimentos. Se,
como veremos, há regimes diferentes consoante as funções do Estado que
causam o dano, como é que os mesmos se articulam, nos planos jurídicos
relevantes – o plano substantivo e o plano processual – perante situações de
facto nas quais ocorra uma ligação causal entre o(s) dano(s) e as actividades
danosas provenientes de diversas funções do Estado?
O isolamento deste problema como tal parte, claro, de pressupostos e pré-
compreensões. Porque estes podem ser erróneos, é fundamental enunciá-los,
já que outros podem, no limite, denunciar esse carácter erróneo, desse modo
refutando que aqui exista, sequer, um problema – e há poucas coisas piores e
mais improdutivas do que um falso problema.

2. Diferenciação de regimes de acordo com o critério da separação de


funções

O primeiro pressuposto de que se parte é o de que o sistema de


responsabilidade civil pública por danos causados aos particulares se
organiza, hoje, de acordo com uma separação de regimes correspondentes

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às diferentes funções do Estado – administrativa, político-legislativa ou


legislativa, e jurisdicional.
A essa separação de regimes de acordo com um critério funcional está
associada uma consequência, que é a da diferença dos mesmos regimes
entre si, em aspectos fundamentais, que vão desde os pressupostos da
obrigação de indemnizar até ao quantum dos danos a indemnizar, passando
pela diferente configuração das relações entre devedores e do direito de
regresso.
Este pressuposto (ou conjunto de pressupostos interrelacionados) parece-
nos difícil de refutar, à luz do direito vigente, neste caso, do Regime da
Responsabilidade Extracontratual do Estado (RREE)1.

3. Ausência de critério geral explícito de relacionamento entre os diversos


regimes

Também difícil de refutar nos parece ser o segundo pressuposto: o de que o


direito vigente, à primeira vista, não parece oferecer qualquer critério explícito
de natureza geral que relacione entre si os diversos regimes de
responsabilidade das diversas funções do Estado, isto é, que permita
compreender como é que tais regimes funcionam em conjunto (se é que
funcionam).
Isso não quer dizer que não existam elementos sistemáticos relevantes a
partir dos quais se pode procurar construir esse critério, como se verá.

4. A ocorrência de casos nos quais as actividades de diversas funções


concorrem para o resultado danoso

O terceiro pressuposto já não resulta, como os anteriores, de uma


consideração abstracta do regime da responsabilidade civil pública, mas sim
da atenção aos elementos específicos dos exemplos acima apresentados.
Esse pressuposto é o de que em muitas situações, considerada globalmente
a relação jurídica em questão, é difícil isolar uma das funções do Estado como
única “responsável” pelos danos sofridos pelo particular.

1
Aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, com as alterações resultantes da Lei
31/2008, de 17 de Julho.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 27

Quer dizer: o ponto de partida implícito da separação de regimes de


responsabilidade de acordo com a função do Estado (lato sensu) que origine
os danos – o de que essa separação em concreto não só é possível, como é
fácil – fica em cheque em casos como aqueles que acima se enunciou, nos
quais o dano não parece poder com facilidade ser separado de uma
actuação conjunta de diversos agentes públicos (em sentido amplo).
O que está em causa em tais situações são, antes, processos causais
complexos, facilmente apreensíveis e muito expressivos, se se adoptar uma
perspectiva sintética, todavia difíceis ou impossíveis de compreender de um
ponto de vista estritamente analítico.
Explicando melhor o que queremos dizer: o nosso ponto de vista é o de que
numa perspectiva de senso comum, ninguém que analise os casos hipotéticos
acima descritos poderá deixar de considerar que “o Estado” agiu mal, e agiu
mal de diversas maneiras; e que foi essa acção errada “do Estado”, essa
incapacidade “do Estado” para dar resposta às necessidades diferentes, mas
complementares, que um particular tem para fazer valer eficazmente os seus
direitos (a necessidade de um legislador que legisle com qualidade e
completude; de uma administração que actue bem e depressa; e de um
tribunal que julgue bem e em tempo útil), que levou a que o particular tivesse
sofrido os danos. Mais: em muitos casos pode afirmar-se que, pelo menos de
acordo com as regras da experiência comum, foi não tanto a acção isolada,
mas sobretudo a combinação de diversas acções, reveladoras de um mau
funcionamento “geral” dos agentes “públicos” intervenientes, que levou à
desprotecção dos direitos do lesado.
Na verdade, aquilo que porventura o legislador do RREE terá imaginado
como hipóteses, mais do que separadas, verdadeiramente alternativas – um
determinado dano é produzido ou pela função administrativa, ou pela função
político-legislativa, ou pela função jurisdicional – está, aparentemente,
confundido, nos casos que acima foram referidos.

5. O problema de articulação

Assim, para nós, o confronto do direito vigente com as hipóteses factuais


acima descritas revela aquilo a que poderemos chamar um problema de
articulação. Há, com efeito, em nosso entender, casos (situações de facto)

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cuja solução jurídica adequada reclama o tal critério de articulação entre


regimes de responsabilidade que o legislador não apresenta de forma
explícita.
É escusado sublinhar que ao dizer que a articulação se coloca como
problema, se toma desde já posição (susceptível de crítica) no sentido de que,
como princípio, é desejável que haja uma articulação, isto é, se rejeita que
seja dogmaticamente adequado tratar de forma completamente autónoma
e não relacionada a (eventual) responsabilidade de cada uma das
“funções”2, em casos como aqueles que acima elencámos.
Na realidade, pensamos que o tratamento autónomo das questões relativas
às diferentes funções do Estado poderia levar, em certos casos, a fenómenos
de distorção da factualidade subjacente e à desprotecção, parcial ou total,
dos interesses do lesado, o que se prende com a já mencionada dificuldade
de decomposição analítica dos elementos do processo causal.
Pior: considerada a situação de facto de acordo com critérios estritos de
diferenciação de funções do Estado, onde cada função seja concebida
como um “universo alheio” em relação à(s) outra(s), a actuação das
diferentes funções do Estado pode porventura até ser invocada pelos
diferentes intervenientes (públicos) para afastar ou atenuar a sua
responsabilidade.
Assim, por exemplo, numa situação como a do Caso I acima enunciado,
em eventual acção por demora na administração da justiça e/ou erro
judiciário, ou por omissão ou ambiguidade legislativa, poderia dizer-se que a
actuação da administração é que foi determinante para a causação do
dano, por exemplo porque a administração deveria ter identificado a solução
juridicamente mais adequada, independentemente de eventuais
ambiguidades ou divergências interpretativas sobre o direito aplicável. Mas
em acção por responsabilidade por exercício da função administrativa,
inversamente, poderia a administração defender-se dizendo que havia
ambiguidade e dúvidas sérias sobre o direito vigente e que, como tal, a sua
conduta, que seguiu uma das interpretações que à data dos factos eram

2
As aspas justificam-se porquanto obviamente não se imputa responsabilidade a “funções”,
mas a pessoas (ou a patrimónios). Quando responde o poder legislativo ou o poder jurisdicional,
quem responde é sempre a mesma pessoa/património (o Estado). Contudo, pelas razões
referidas no texto, é justificável, para efeitos de estudo, utilizar a facilidade de expressão que se
traduz na ideia de “função responsável”.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 29

aceites na doutrina e na jurisprudência, não merece qualquer censura – linha


de defesa esta que tem sido considerada pela nossa doutrina como
permitindo o afastamento da presunção de culpa que acompanha os actos
ilegais3. Ou então – hipótese mais plausível nos tempos que correm – a mesma
Administração, através do Governo, poderia afirmar não ter meios financeiros
para agir, devido à actuação do Parlamento, que havia rejeitado a proposta
governamental de aprovação de uma dotação orçamental suficiente4.
Além disso, como já se disse, são perfeitamente concebíveis situações nas
quais, consideradas isoladamente, as intervenções activas ou omissivas das
diversas funções do Estado não teriam, porventura, “força” suficiente para
estabelecer um nexo causal susceptível de constituir o Estado em
responsabilidade, mas que consideradas em conjunto, o são (casos
designados na doutrina como de “concurso necessário” de causas 5 ou
“causalidade cumulativa”6, e na jurisprudência tratados habitualmente, com
ou sem autonomia, sob as designações de “concurso real de causas” 7 ou
“concurso de causas adequadas”8).
A reflexão e experiência mais recentes têm-nos levado a pensar, em
particular, nos efeitos potenciadores de danos que podem ser assacados a leis

3
Neste sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, "A responsabilidade por danos decorrentes do
exercício da função administrativa na nova Lei sobre Responsabilidade Civil Extracontratual do
Estado e demais Entes Públicos", Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 137.º, (3946-3951),
2007-2008, pp. 360 ss., 367; CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da responsabilidade civil
extracontratual do Estado e demais entidades públicas anotado, 2ª ed., Coimbra: Coimbra
Editora, 2011, 202, que escreve: “[e] não será sequer difícil conceber algumas circunstâncias
desculpabilizantes da ilegalidade: sistema legislativo imperfeito; proliferação de legislação
extravagante; prolixidade das disposições legais aplicáveis; divergência na jurisprudência sobre
a mesma questão jurídica; inflexão do entendimento jurisprudencial após a prolação do acto
administrativo impugnado”. A mesma interpretação do regime é feita, de jure condito, por
ALEXANDRA LEITÃO, "Duas questões a propósito da responsabilidade extracontratual por (f)actos
ilícitos e culposos praticados no exercício da função administrativa: da responsabilidade civil à
responsabilidade pública. Ilicitude e presunção de culpa", in AA/VV, Estudos de Homenagem
ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Vol. IV - Direito Administrativo e Justiça Administrativa, Lisboa,
2012, pp. 43 ss., 56, embora a autora teça em seguida fortes críticas a esse regime (e coloque
em causa a sua conformidade com o direito europeu, no que diz respeito à responsabilidade
por violação do mesmo).
4
CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da responsabilidade civil... cit., 165; afirmando-se
crítica da posição deste Autor, ANA PEREIRA DE SOUSA, "A culpa do serviço no exercício da função
administrativa", Revista da Ordem dos Advogados, ano 72, (I), 2012, pp. 335 ss., 355, que, no
entanto, nos parece chegar a uma posição muito semelhante.
5
É a terminologia de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. II - Direito
das Obrigações - tomo III - Gestão de negócios. Enriquecimento sem causa. Responsabilidade
civil, Coimbra: Almedina, 2010, 739 e de boa parte da doutrina nacional.
6
Na expressão de ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, Causalidade e imputação na responsabilidade civil
ambiental, Coimbra: Almedina, 2007, 102.
7
Por exemplo, RPt 16-12-2009 (Henrique Antunes), proc. 2866/07.4TBMAI.P1.
8
Por exemplo, RPt 26-06-2012 (Márcia Portela), proc. 506/07.0TBSJM.P1.

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que actualmente são tanto mais abundantes em número como em


obscuridade. Os juristas nacionais, que já a muito custo acompanhavam o
Diário da República, nunca pensaram em assistir, por exemplo, a uma
declaração de rectificação que rectifica… outra declaração de rectificação;
mas isso é hoje prática corrente entre nós9.
Tais situações poderiam ser tratadas apenas como fait divers; e na maior
parte dos casos, supomos que as suas consequências são inócuas. Porém, elas
são como que um anúncio (algo anedótico) das inúmeras e reais “patologias
normativas” do “direito pós-moderno” 10, um direito no qual se verifica uma
verdadeira “explosão normativa”11 a qual, combinada com as crescentes
ambiguidade e tecnicidade das normas12, opera uma erosão de
consequências dramáticas na capacidade que mesmo os profissionais têm de
responder a uma pergunta tão simples como: que norma está em vigor 13? É
óbvio que a incerteza é inerente ao exercício do juízo jurídico, mas também é
verdade que é possível formular normas com mais ou menos clareza e
perfeição; esta incerteza ― em particular, a que decorre da perfeição das
normas ― é, por isso, susceptível de alguma medida de controlo14.
Ora, uma das consequências imediatas de um panorama de grande
incerteza acerca dos comportamentos devidos (incerteza que também
afecta os servidores públicos) é a de que ele pode consubstanciar causa
cumulativa do dano, pois um tal panorama pode ser importante para,
juntamente com outras causas, fazer pender para um resultado danoso aquilo
que, até aí, era simplesmente um desempenho imperfeito, mas por si só
insuficiente para causar os danos, ou para os causar na extensão em que eles
ocorreram15.

9
Entre tantos exemplos, v. as Declarações de Rectificação n.ºs 15/2009; 66/2009; 2/2010;
10/2010; 1427 a 1431/2010; 1783/2010; e muitas outras...
10
JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, "Direito pós-moderno, patologias normativas e protecção da
confiança", Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 7, (n.º especial), 2010, pp.
383-409,
11
J. FREITAS DA ROCHA, "Direito pós-moderno...", cit., 389 ss..
12
J. FREITAS DA ROCHA, "Direito pós-moderno...", cit., 393 ss..
13
J. FREITAS DA ROCHA, "Direito pós-moderno...", cit., 391.
14
MARK A. GEISTFELD, "Legal Ambiguity, Liability Insurance, and Tort Reform", DePaul Law
Review, 60, 2011, pp. 539 ss, 540 (disponível em ssrn.com).
15
Uma causa cumulativa por vezes não só opera, com outra, o resultado danoso, como
pode dar origem a danos proporcionalmente muito superiores à sua própria contribuição para o
processo causal; assim, A. PERESTRELO DE OLIVEIRA, Causalidade e imputação... cit., 103.

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Na verdade, estes casos não nos parecem tão diferentes assim dos
exemplos de escola utilizados para exemplificar a causalidade cumulativa (ou,
em outra terminologia, necessária), nos quais um agente deita veneno em
quantidade insuficiente para matar, mas outros dois agentes deitam a mesma
quantidade, sendo que o conjunto acaba por ser fatal. O que queremos aqui
salientar é que, por vezes, os agentes que deitam, cada um, o veneno em
doses homeopáticas, são o administrador, o legislador e o julgador. É verdade
que cada um deita um veneno diferente, mas todos eles são venenos, e pode
ser a sua acção conjugada que os torna fatais.
São as considerações antecedentes que autorizam a asserção de que, em
casos como os acima enunciados, aquilo que ocorre é o mau funcionamento
global do “sector público”; uma espécie de faute de service que, ao contrário
do que é típico dessa figura16, não seria apenas imputável a diversos órgãos ou
serviços da administração pública, ao contrário do que pressupõe o direito
positivo (veja-se a colocação sistemática do art. 7º/3 e 4 do RREE no âmbito
da responsabilidade por actos da função administrativa), mas sim a diversos
órgãos ou pessoas colectivas, independentemente da função que exercem
(administrativa, legislativa ou jurisdicional)17.

Na verdade, a faute de service (administrativa) não é propriamente um


juízo subjectivo de censura, mas a avaliação do que sucedeu por confronto
com um padrão objectivo, em que o que é censurado é o eventual
“afastamento dos standards de actuação e rendimento dos serviços” 18. Estes
standards são medidos, não em atenção à mediania concreta daquele
serviço ou de serviços equivalentes (que pode ser muito má), mas de acordo
com o programa normativo que se extrai das normas que norteiam a
actuação do serviço19. Dessa forma não nos parece difícil, nem descabido,
aplicar a mesma ideia, para lá dos serviços administrativos, abrangendo os

16
Sobre a culpa do serviço, JEAN RIVERO/JEAN WALINE, Droit administratif, 19ª ed., Paris: Dalloz,
2002, 278 ss; TIAGO VIANA BARRA, "A responsabilidade civil administrativa do Estado", Revista da
Ordem dos Advogados, ano 71, (I), 2011, pp. 111 ss., 165 ss; A. P EREIRA DE SOUSA, "A culpa do
serviço...", cit..
17
Claro que uma questão inteiramente legítima é a de saber se uma tal ideia (que no
fundo trata toda a actuação pública, para este efeito, como interligada entre si) pode sequer
ser equacionada. Procuramos abordar essa dificuldade no texto.
18
MARGARIDA CORTEZ, "Contributo para uma reforma da lei da responsabilidade civil da
Administração", in MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Responsabilidade civil extra-contratual do Estado.
Trabalhos preparatórios da reforma, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, pp. 257 ss., 260-261.
19
A. PEREIRA DE SOUSA, "A culpa do serviço...", cit., 353.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 32

demais sectores de actuação pública, dos quais seguramente também se


pode dizer que têm padrões objectivos de bom funcionamento – que não
parecem estar a ser cumpridos, por exemplo, quando se torna necessário
publicar declarações de rectificação que rectificam declarações de
rectificação...
Em todas as situações que temos vindo a abordar, seria eventualmente
possível demandar cada órgão/função autonomamente, quer isso significasse
demandar apenas um órgão ou função (no pressuposto, normal na prática,
de que a demanda possa ter mais sucesso em relação a esse/a) ou
demandar todos (cada um numa acção diferente).
Porém, a nosso ver, isso seria sempre empobrecedor, do ponto de vista da
apreensão global do litígio20, e consequentemente, arriscado, do ponto de
vista do interesse do lesado numa tutela ressarcitória completa.
Por outro lado, mesmo que a demanda separada de todas as funções
pudesse conseguir o resultado de nenhum dos agentes do dano ficar fora de
responsabilidades, isso deixaria por resolver o problema substantivo: o da
relação das diversas responsabilidades entre si, o que, no limite, sempre
poderia colocar questões do ponto de vista da uniformidade das decisões
que viessem a ser proferidas em tais acções21/22.
20
Já noutro lugar tivemos oportunidade de referir que as relações jurídicas devem ser
apreciadas jurisdicionalmente de acordo com a perspectiva que permita a sua compreensão
global, o que torna imediatamente suspeitos, do ponto de vista da tutela jurisdicional efectiva,
quaisquer mecanismos (substantivos ou processuais) que tenham por efeito fragmentar essa
apreciação. Cf. MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, As Empresas Públicas nos Tribunais Administrativos.
Contributo para a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa face às entidades
empresariais instrumentais da Administração Pública, Coimbra: Almedina, 2007, 157 ss..
Chamando a atenção para a necessidade de uma leitura das normas sobre separação de
jurisdições subordinada ao imperativo da tutela jurisdicional efectiva, MAFALDA CARMONA, O Acto
Administrativo Conformador de Relações de Vizinhança, Coimbra: Almedina, 2011, 288, 389
(mas reconhecendo, a pp. 388, a fatalidade dos conflitos de jurisdição, a qual, como afirma a
pp. 392, estaria relacionada com o facto de ainda não estar plenamente ultrapassada a
concepção que vê público e privado como mundos diferentes).
21
Sublinhando a possibilidade de divergência de decisões a propósito das situações de
concurso de responsabilidade subjectiva da Administração com factos de terceiro, J. RIVERO/J.
WALINE, Droit administratif, cit., 276. Identificando dificuldades idênticas, no seu campo de
investigação (o julgamento de questões de responsabilidade de privados e da Administração
por violação de actos conformadores de relações de vizinhança), em termos quase totalmente
transponíveis para o nosso tema, veja-se Mafalda CARMONA, O Acto Administrativo... cit., 389-392.
22
Colocando-se ainda um problema adicional, nos casos em que as diferentes acções
devessem ser propostas em jurisdições diferentes (o que, como se verá adiante, aconteceria no
caso III que acima enunciámos). Nesse caso, provavelmente aconteceria aquilo que
aconteceu no Acórdão do STA de 10-04-2002 (Pamplona de Oliveira), proc. 47556 (a propósito
de uma situação onde vinha invocada a responsabilidade solidária entre a entidade pública e
um privado): o tribunal administrativo, invocando a concausalidade e a consequente
prejudicialidade da acção no tribunal comum, sobrestou na sua decisão até que fosse resolvida
a acção no tribunal judicial. Isto significa que o particular terá de esperar o tempo da duração
de dois processos judiciais para ver o seu direito atendido. É certo que a questão do acórdão

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 33

6. A insuficiência de uma perspectiva “demasiado separada” da separação


de poderes

Desde já antecipamos uma crítica: esta simplificação decorrente do senso


comum – “colocar no mesmo saco” administração, tribunais e até legislador –
seria posta em causa, a diversos níveis, pelo rigor dos conceitos e até pelo
próprio direito positivo, que expressamente distingue esferas de
responsabilidade de acordo com funções. O conhecimento, como se sabe, é
por vezes contra-intuitivo, e conduz ao desfazer das impressões do senso
comum. Não seria este um bom exemplo disso? Será sequer legítimo pensar
nos casos que acima elencámos como casos que convocam uma ideia geral
de “mau funcionamento do sector público”?
Porém, a isso pode desde logo responder-se que a questão que nos ocupa
é precisamente a de saber se, em casos como aqueles que enunciámos, o
rigor dos conceitos, se levado no sentido da incomunicabilidade ou
incapacidade de relação dos conceitos entre si, não acaba por resultar na
perda da apreensão de algo que precisamente deveria relevar, do ponto de
vista jurídico, como um todo, e que só como um todo ganha dimensão e
relevância.
Não podemos esquecer duas coisas acerca da separação de poderes
(que está na base da separação de regimes de responsabilidade do RREE):
primeiro, a separação de poderes é uma metáfora. Segundo, é uma metáfora
que visa limitar o poder; evitar que pela sua concentração, ele se torne
arbitrário.
Francesco Galgano ilustrou recentemente a relevância da primeira
prevenção: a utilização de metáforas no discurso jurídico, se tem um enorme
poder de convencimento, torna-se um problema, quando se quer levar a
metáfora à letra, “forçando” soluções que já não decorrem do intuito primeiro
que presidiu à construção da metáfora, mas sim da própria consideração
desta como um fim em si mesma 23. A “insídia” da metáfora, que ocorre na

seria hoje atendida pelo art. 10º/7 do CPTA, mas é duvidoso se o mesmo regime vigora para a
situação de concurso de responsabilidades da competência da jurisdição administrativa com
responsabilidades da competência de outras jurisdições.
23
FRANCESCO GALGANO, Le insidie del linguaggio giuridico. Saggio sulle metafore nel diritto,
Bologna: Il Mulino, 2010, passim, analisando várias metáforas clássicas do direito (como a pessoa
colectiva ou o negócio jurídico).

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 34

linguagem corrente mas também na linguagem jurídica, é, portanto, a de


querer transformar numa identidade aquilo que é apenas uma semelhança24.
Ora, a separação de poderes é uma metáfora que nos diz que, para certos
fins (e sublinhamos: para certos fins), o Estado deve ser considerado de modo
fragmentado. Como tal, é uma metáfora que apela à separação, à divisão,
“dentro” do Estado. Porém, há que ter cautela: não se pode cair no erro – na
insídia – de, a partir desta metáfora da separação, eliminar um outro aspecto
da realidade: é que se para certos fins, convém separar as águas, para outros,
convém uni-las25. E aqui é importante recordar que a separação de poderes
serve, essencialmente, um propósito de limitar o poder em favor da tutela dos
direitos das pessoas, sendo contraditório com esse propósito um resultado, que
seria a todos os títulos irónico, de uma construção que visa proteger as pessoas
acabar por servir para as desproteger.
Podemos ilustrar com um exemplo a necessidade de nos mantermos
vigilantes quanto às consequências perniciosas da linguagem para a
compreensão da realidade.
Se olharmos à Constituição portuguesa e afirmarmos, por exemplo, que só a
função administrativa está sujeita aos princípios enunciados no seu artigo 266º,
como a letra da Constituição parece inculcar (pois em parte alguma da
Constituição se encontra, para as demais funções, preceito correspondente
ao art. 266º), incorremos num erro, cuja origem estará em levar
excessivamente à letra a metáfora da separação de poderes. É evidente, e a
doutrina nacional tem-no afirmado, que também as outras funções do Estado,
incluindo a função legislativa, estão sujeitas a tais princípios26.
Ou seja, encontramos aqui, neste exemplo – que não é de todo único,
como teremos oportunidade de referir na sequência deste trabalho – um
contexto no qual a metáfora da separação não vale, sob pena de se afirmar
um Estado esquizofrénico, que aqui, como legislador, não teria de respeitar a
boa-fé, mas mais adiante, como administrador, já teria de o fazer. Pelo
contrário: se para certos efeitos (competenciais, orgânicos, formais), vale a

24
F. GALGANO, Le insidie... cit., 19.
25
Como, de resto, a Constituição dá a entender, quando se refere ao princípio da
separação e interdependência dos poderes – cf. art. 111º.
26
PAULO OTERO, Direito Constitucional Português, Vol. I - Identidade constitucional, Coimbra:
Almedina, 2010, 90 ss.; e com enfoque, sobretudo, na boa fé e tutela da confiança, JORGE
MIRANDA, "Função legislativa e tutela da confiança: o caso dos notários", O Direito, ano 139.º, (5),
2007, pp. 1135-1159, 1153-1154.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 35

separação, para os efeitos da sujeição dos órgãos do Estado a certos


princípios jurídicos essenciais do Estado de Direito, vale a unidade.

7. O movimento de relativização da separação de poderes

Diríamos mesmo, na sequência desta última ideia, que da dogmática actual


do direito público ressalta, precisamente, em muitos domínios, uma ideia de
relativização da separação de poderes, quer em geral, quer no próprio
domínio do direito da responsabilidade. Com efeito, já numa aproximação à
responsabilidade civil pública, são cada vez mais os sinais que apontam para
uma possibilidade de considerar de forma unitária fenómenos de
responsabilidade decorrentes, não da actuação de uma única função do
Estado, mas de várias.

7.1. Em geral

Na verdade, a separação de poderes assenta numa preocupação com os


meios de acção do Estado, enquanto a moderna dogmática do direito
público (como direito das políticas públicas) valoriza cada vez mais os
resultados da acção pública27. Por outras palavras, mais importante do que
(ou pelo menos tão importante como) saber quem executa as políticas
públicas, é saber se elas são executadas. O conceito de política pública apela
precisamente à ideia de pluralidade de actores e de funções 28, tendo os
arranjos institucionais um papel secundário.
Esta relativização da separação de poderes pode também verificar-se na
atribuição de amplíssimos poderes, que porventura já não são apenas
administrativos, a múltiplas entidades independentes, as quais actuam, por
exemplo, como verdadeiras definidoras das políticas públicas do sector que
regulam, e já não como seguidoras de um programa pré-definido pela lei.

27
MARIA DA GLÓRIA F. P. D. GARCIA, Direito das políticas públicas, Coimbra: Almedina, 2009;
DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, "Novos horizontes para o direito administrativo: pelo controle das
políticas públicas. A próxima missão", in AUGUSTO DE ATHAYDE/JOÃO CAUPERS/MARIA DA GLÓRIA F. P. D.
GARCIA, Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, Coimbra: Almedina, 2010,
pp. 649 ss..
28
M. D. G. F. P. D. GARCIA, Direito das políticas públicas, cit., passim.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 36

7.2. No direito da responsabilidade

7.2.1. Na responsabilidade por violação do direito comunitário

Por outro lado, uma perspectiva que toma unitariamente as funções do Estado
é também a adoptada num sector importante do direito da responsabilidade
pública: a responsabilidade por violação de direito da União Europeia.
Aí, com efeito, não só a jurisprudência europeia parte de uma noção – a de
violação do direito europeu – que pode ser preenchida pela actuação de
qualquer das funções do Estado membro 29, como expressamente rejeita que
os Estados invoquem a repartição interna de competências entre as diferentes
entidades públicas para se eximir ao cumprimento de obrigações emergentes
do direito comunitário30.
Assim, pelo menos à luz do direito europeu, é realmente indiferente qual a
função do Estado que opera a violação 31. Isto torna, aliás, no mínimo
problemática a conformidade do regime do RREE com o direito europeu neste
campo, sendo provavelmente necessário fazer interpretação conforme ou
mesmo correctiva do regime nacional, deferindo aos critérios europeus a
determinação da responsabilidade32. Com efeito, ao estabelecer pressupostos
mais exigentes para a responsabilidade do que os do direito europeu, o que se
torna particularmente visível nos casos da função jurisdicional, com a
exigência de prévia revogação da decisão danosa (art. 13º/2 RREE), e
legislativa, cuja indemnizabilidade depende da existência de dano anormal
(art. 15º/1 RREE), o legislador nacional restringe a plena efectividade do
princípio da responsabilização por violação do direito comunitário33.

29
Com análise de diversos casos decididos pelo TJUE nos quais estavam em causa
acções ou omissões do legislador, dos tribunais nacionais ou dos órgãos administrativos, Carla
AMADO GOMES, "O Livro das Ilusões: a responsabilidade do Estado por violação do Direito
Comunitário, apesar da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro", in Textos dispersos sobre Direito da
Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas, Lisboa: AAFDL, 2010, pp. 185 ss.,
particularmente 192 ss..
30
Acórdão Konle, referenciado em Carla AMADO GOMES, "O Livro das Ilusões...", cit., 197.
31
Carla AMADO GOMES, "O Livro das Ilusões...", cit., 205.
32
Assim, Carla AMADO GOMES, "O Livro das Ilusões...", cit., 206 e ss..
33
Carla AMADO GOMES, "O Livro das Ilusões...", cit., 209 ss.. Sobre o tema veja-se igualmente
MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA, O regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e
demais entidades públicas e o Direito da União Europeia, Coimbra: Almedina, 2009, e em
relação à responsabilidade pela função administrativa, Alexandra LEITÃO, "Duas questões...", cit.,
57-58.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 37

7.2.2. Na responsabilidade por violação de direitos consagrados na


Convenção Europeia dos Direitos do Homem

Postura semelhante adopta o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ao


analisar as situações de violação de direitos conferidos pela Convenção
Europeia dos Direitos do Homem não como violações perpetradas por esta ou
aquela função, antes analisando se, do ponto de vista do resultado, as
“autoridades públicas” cumprem as suas obrigações (positivas ou negativas)
de protecção de direitos fundamentais34.

7.2.3. Na responsabilidade por facto lícito do RREE

O último dos sinais que aqui consideraremos é dado por uma modalidade de
responsabilidade civil extracontratual consagrada no RREE que prescinde de
uma referência a esta ou àquela função do Estado: falamos, claro, da
responsabilidade pelo sacrifício, a que se refere o art. 16º daquele Regime.
Ao dispor que “[o] Estado e as demais pessoas colectivas de direito público
indemnizam os particulares a quem, por razões de interesse público,
imponham encargos ou causem danos especiais e anormais, devendo, para o
cálculo da indemnização, atender-se, designadamente, ao grau de
afectação do conteúdo substancial do direito ou interesse violado ou
sacrificado”, cria-se um dever de indemnizar que “não se circunscreve ao
exercício de uma específica função estadual” 35 que imponha o encargo ou
cause o dano. Tal conclusão também resulta da colocação sistemática do art.
16º: ao contrário dos capítulos anteriores do RREE, aquele no qual se integra
este preceito não se reconduz a uma específica função36.
Tal dever de indemnizar apresenta-se, assim, como “uma cláusula de
salvaguarda do direito fundamental do cidadão à reparação dos danos
resultantes da acção do Estado e demais entidades públicas, para abranger o
34
Para um caso recente e muito elucidativo, veja-se TEDH 15-01-2013 (procs. reunidos
48420/10, 59842/10, 51671/10 e 36516/10), Eweida c. Reino Unido, disponível em
www.echr.coe.int. É nítido que a abordagem do Tribunal é uma abordagem de resultado e não
de meios: tanto aprecia, num caso, se uma empresa pública violou directamente a liberdade
religiosa, como, nos outros casos, quando a violação dessa liberdade é imputada a entidades
privadas, aprecia se o legislador e os tribunais atingiram, nas suas missões respectivas (legislar e
julgar), o equilíbrio correcto entre a liberdade religiosa e outros direitos e interesses em jogo. É
uma abordagem totalmente indiferente à função do Estado desempenhada.
35
MARIA DA GLÓRIA F. P. D. GARCIA, "A responsabilidade civil do Estado e das Regiões Autónomas
pelo exercício da função político-legislativa e a responsabilidade do Estado e demais entidades
públicas pelo exercício da função administrativa", Revista do CEJ, (13), 2010, pp. 305 ss., 316.
36
Carlos Alberto Fernandes CADILHA, Regime da responsabilidade civil... cit., 361-362.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 38

«resto» de actuações não abrangidas pelas específicas modalidades de


responsabilidade civil, e que mereçam ainda protecção jurídica”37. A lei
apenas faz referência, como fundamento do dever de indemnizar, a motivos
de interesse público, os quais facilmente podem verificar-se em actos ou
actuações administrativas, políticas ou legislativas38. Por outro lado, a lei não
opera qualquer distinção no regime (por exemplo, no quantum
indemnizatório) que seja tributária da separação de funções.
Consequentemente: mais um regime de responsabilidade que é indiferente a
tal separação.

8. O enriquecimento dogmático do direito da responsabilidade civil

Mas não é só o movimento de relativização da separação de poderes que


pode ser apontado como facilitador de uma consideração compreensiva dos
processos danosos que envolvam mais do que uma função do Estado. É
também a revisão do(s) próprio(s) direito(s) da(s) responsabilidade(s), em
particular do direito da responsabilidade civil.
Consideramos particularmente relevantes, aqui, dois tópicos: o primeiro diz
respeito à evolução das concepções relativas ao nexo de causalidade, de
modo a abarcar, com construções cada vez mais aperfeiçoadas, o fenómeno
designado multicausalidade; o segundo, trabalhado sobretudo no direito
privado da responsabilidade civil, concerne à evolução das relações entre
responsabilidade contratual e extracontratual. Vejamos os dois tópicos em
sequência.

8.1. Desenvolvimento do tema da multicausalidade

O primeiro movimento identificado é visível sobretudo nas teorias da


imputação (penal e civil) defendidas a propósito dos novos sectores da
sociedade do risco (ambiente, segurança de produtos, saúde pública). No
tratamento de tais sectores, a doutrina sublinha que, em casos de
causalidades múltiplas e complexas, das quais, por vezes, pouco se sabe 39,
37
M. D. G. F. P. D. GARCIA, "A responsabilidade civil...", cit., 316.
38
M. D. G. F. P. D. GARCIA, "A responsabilidade civil...", cit., 316-317 e 321; Carlos Alberto
Fernandes CADILHA, Regime da responsabilidade civil... cit., 361-362.
39
Entre tantos, VASCO PEREIRA DA SILVA, Verde Cor de Direito - Lições de Direito do Ambiente,
Coimbra: Almedina, 2002, 70; Ana PERESTRELO DE OLIVEIRA, Causalidade e imputação... cit., 14 ss;

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 39

mais importante do que saber qual dos agentes intervenientes em concreto


causou o dano e em que medida, é saber se o lesado sofreu um dano que o
ordenamento jurídico considera injustificado e em caso positivo, se fica
indemne desse dano.
É isso que explica que a doutrina mais recente sublinhe que o critério da
causalidade, o critério do nexo entre facto e dano, não é tanto um critério
naturalístico como um critério normativo ou jurídico; e que não há, em rigor,
um critério de causalidade único, porque não há uma única, mas muitas,
normas jurídicas cuja violação pode provocar danos.
O critério da causalidade resulta, em última análise, da interpretação da
norma que prevê a indemnização e em particular da compreensão do
respectivo fim ou escopo, e também das funções desempenhadas pelo
instituto da responsabilidade (civil, penal, outra), elementos que orientam a
decisão do aplicador do direito sobre se, num dado caso caso, deve dizer-se
que há um nexo suficientemente relevante do ponto de vista jurídico entre o
facto e o dano40.
Estes desenvolvimentos são um claro avanço no tratamento da figura do
nexo de causalidade e no cumprimento dos fins do instituto da
responsabilidade civil. O tratamento jurídico dos processos causais nos dias
que correm pede soluções capazes de abarcar realidades factuais que
produzem danos de formas complexas, por vezes indefinidas, muitas vezes
massificadas. Se assim não acontecer, inevitavelmente, a complexidade dos
processos causais resultará em não ressarcimento dos danos, pelo efeito da
diluição da responsabilidade que a multicausalidade potencia. É por isso de
salientar positivamente que estes desenvolvimentos comecem a fazer a sua

MANUEL A. CARNEIRO DA FRADA, Direito Civil. Responsabilidade Civil. O método do caso, Coimbra:
Almedina, 2011 (2ª reimp. da ed. de 2006), 101; Carla AMADO GOMES, Introdução ao Direito do
Ambiente, Lisboa: AAFDL, 2012, 194.
40
Neste sentido, de prismas e com posições e terminologias diferentes, mas, neste ponto, em
consonância, por exemplo, MARGARIDA CORTEZ, Responsabilidade civil da Administração por actos
administrativos ilegais e concurso de omissão culposa do lesado, BFDUC, Studia Iuridica - 52,
Coimbra: Coimbra Editora, 2000, 116; J ORGE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral, tomo I -
Questões fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, 322
ss. (maxime 322-323, 332-333, 339 ss.); Ana PERESTRELO DE OLIVEIRA, Causalidade e imputação... cit.,
51 ss. (com uma posição bastante radical, porquanto afirma prescindir da causalidade
naturalística como base de imputação no caso de dano ambiental e ecológico, substituindo-a
pela criação ou aumento de risco proibido); L UÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, Direito das
Obrigações, Vol. I - Introdução. Da constituição das obrigações, 7ª ed., Coimbra: Almedina,
2008, 349-350; A. MENEZES CORDEIRO, Tratado, II-III, cit., 537 ss. (maxime 548-550), 738; Manuel A.
CARNEIRO DA FRADA, Direito Civil... cit., 100-102 (embora notando que em alguns casos a teoria do
fim de protecção da norma perde relevância).

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 40

entrada decidida na jurisprudência, que recorre com cada vez mais


frequência aos conceitos e mecanismos relativos à multicausalidade
trabalhados pela doutrina, defendendo que nessas situações de concurso de
causas, deve funcionar o regime de solidariedade entre todos os que
contribuem para o dano, com base no art. 497º do CC 41, regra que é
adequadamente estendida a casos que literalmente não cobriria42.
O tópico é crescentemente relevante, também, no contexto do direito da
responsabilidade civil pública, a ponto de ganhar consagração legal em
alguns ordenamentos43. Mesmo que na doutrina e sobretudo na jurisprudência
administrativa se note, ainda, formalmente, um grande apego às formulações
clássicas em sede de causalidade, também aqui se tem sublinhado a
possibilidade de concurso de responsabilidades por actuação conjunta de
diversas entidades administrativas44, ou de entidades administrativas e de
privados45. A profusão de actos a praticar em co-autoria 46, que vai crescendo
numa administração cada vez mais em rede 47, bem como a criação de

41
Vejam-se as seguintes decisões dos tribunais judiciais superiores: do Supremo Tribunal de
Justiça: STJ 13-12-2005 (Faria Antunes), proc. 5A3519, STJ 20-06-2006, CJ/STJ, Tomo II, p. 119 e STJ
16-09-2008 (Sebastião Póvoas), proc. 8A2433. Da Relação do Porto, RPt 10-02-2000 (Alves Velho),
proc. 9931517, RPt 17-09-2009 (Amaral Ferreira), proc. 4651/04.6TBVFR.P1, RPt 16-12-2009
(Henrique Antunes), proc. 2866/07.4TBMAI.P1 e RPt 26-06-2012 (Márcia Portela), proc.
506/07.0TBSJM.P1. Da Relação de Lisboa, RLx 17-09-2009 (Ezagüy Martins), proc. 6160/05-2 e RLx
09-02-2010 (Ana Resende), proc. 48/06.1TBVFC.L1-7. Da Relação de Coimbra, RCb 03-02-2009
(Gonçalves Ferreira), proc. 2637/06.5TBCBR.C1.
42
Com efeito, literal e sistematicamente, a regra do art. 497º do CC só se aplicaria à
responsabilidade aquiliana, mas a jurisprudência já o aplicou em casos de concorrência de
diversas responsabilidades contratuais, em situações a que chama de “solidariedade atípica” –
cf. STJ 16-09-2008 (Sebastião Póvoas), proc. 8A2433.
43
No direito espanhol, o art. 140º da Ley n.º 30/1992, de Régimen Jurídico de las
Administraciones Públicas y del Procedimiento Administrativo Común, é inteiramente dedicado
à “responsabilidade concorrente das Administrações Públicas”.
44
J. RIVERO/J. WALINE, Droit administratif, cit., 275; C. A. F. CADILHA, Regime da responsabilidade
civil... cit., 221; ANA RAQUEL GONÇALVES MONIZ, Responsabilidade civil extracontratual por danos
resultantes da prestação de cuidados de saúde em estabelecimentos públicos: o acesso à
justiça administrativa, Centro de Direito Biomédico - 7, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, 61-64.
45
Cf., para diferentes hipóteses, Rui MACHETE, “A Acção para efectivação da
responsabilidade civil extracontratual”, in AA/VV, A Reforma do Contencioso Administrativo, vol.
I, O Debate Universitário, Ministério da Justiça, 2000, pp. 140 e ss., 146-147; C. A. F. CADILHA,
Regime da responsabilidade civil... cit., 208; MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, "Responsabilidade de
entidades privadas submetidas ao regime da responsabilidade pública", Cadernos de Justiça
Administrativa, (88), 2011, pp. 23 ss., 33; Mafalda CARMONA, O Acto Administrativo... cit., 355 e ss..
46
Identificando essa como uma situação de responsabilidade conjunta, Carla AMADO GOMES, "A
responsabilidade pessoal e institucional...", cit., 177.
47
Por exemplo, quando várias entidades adjudicantes se juntem para celebrar um contrato
público, a decisão de contratar, a decisão de escolha do procedimento, a decisão de
qualificação e a decisão de adjudicação são tomadas em conjunto – art. 39º/3 do CCP. Sobre
a decisão de contratar e a decisão de escolha do procedimento, designadamente para a
afirmação da sua potencial lesividade, v. o que escrevemos em MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, A
formação dos contratos públicos. Uma concorrência ajustada ao interesse público, Lisboa:
AAFDL, 2013, 771 ss..

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 41

procedimentos administrativos complexos, típica de alguns direitos


administrativos especiais, como o direito do ambiente, o direito do urbanismo
ou o direito do património cultural, aumenta claramente o campo de
aplicação da responsabilidade concorrente.

Em reconhecimento desta mesma realidade, o art. 10º/4 do RREE


estabelece que em caso de pluralidade de responsáveis, é aplicável o
disposto no art. 497º do Código Civil, ou seja, a regra da solidariedade,
acompanhada de direito de regresso entre os responsáveis; regra esta que
acaba também por ser aplicável à responsabilidade pelo exercício da função
jurisdicional, por força da remissão do art. 12º do RREE.
O RREE apresenta, aliás, um elenco significativo de casos nos quais
relaciona diferentes causas entre si, de formas que não podem deixar de
merecer atenção para o nosso tema: assim, (i) a culpa do lesado releva para
(mas não afasta necessariamente) a aferição da responsabilidade, nos termos
do art. 4º do RREE48; (ii) o facto de terceiro releva (mas de forma a ponderar
em concreto e com consagração expressa da responsabilidade solidária da
Administração com o terceiro) na responsabilidade pela função
49
administrativa .

8.2. Responsabilidade contratual e extracontratual

Um outro movimento perceptível na revisão da responsabilidade, cuja


relevância para o nosso tema poderá parecer remota, mas que ficará mais
clara adiante, é o da evolução das relações entre responsabilidade contratual
e extracontratual, no direito privado da responsabilidade, no sentido de uma
colocação em causa da divisão estanque entre ambas.
Essa divisão é colocada em causa, em primeiro lugar, pelo reconhecimento
de que uma mesma conduta pode preencher os pressupostos de aplicação
das normas sobre responsabilidade contratual e extracontratual, isto é, que
uma mesma conduta pode simultaneamente violar um dever contratual e um

48
Sobre o ponto, Carla AMADO GOMES e Miguel ASSIS RAIMUNDO, "Topicamente...", cit., 253 ss..
49
Literalmente, a solução apenas valeria na responsabilidade pelo risco (art. 11º/2 RREE), mas
a doutrina, a nosso ver bem, estende a solução à responsabilidade por facto ilícito: assim, PAULO
OTERO, "Causas de exclusão da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública
por facto ilícito", in AA/VV, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, vol. II,
Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2010, pp. 965 ss., 984, nota 73.

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dever geral de respeito, no que se apresenta como um concurso real 50. Tal
como no caso que nos ocupa, os regimes são diferentes (no que diz respeito à
presunção de culpa, que existe na responsabilidade contratual mas não na
extracontratual; e no prazo de prescrição, que é de 20 anos naquela e de três
anos nesta; existem outras diferenças) e não existe norma de articulação.
Perante esta questão controvertida, doutrina e jurisprudência têm oscilado
entre (i) permitir ao lesado a escolha simples entre um dos regimes; (ii) permitir
ao lesado a composição de um regime aproveitando as normas que lhe sejam
mais favoráveis em cada regime; (iii) aplicar um critério normativo externo de
resolução do concurso (consumpção)51.
Em segundo lugar, a doutrina e a jurisprudência foram autonomizando
figuras que de algum modo se apresentam como resistentes a uma integração
plena num dos termos da distinção. Surge, assim, a chamada “terceira via”
como resposta à necessidade de construção de regimes para figuras de
fronteira entre formas de responsabilidade, não autonomizadas na lei ou
escassamente reguladas52. Em tais casos, na ausência de indicação da lei, a
doutrina compõe um regime, aproveitando elementos dos regimes existentes
(contratual e aquiliano) baseado na que considera a melhor composição dos
interesses em jogo.
Por fim, é de notar que a doutrina vem admitindo a possibilidade de
preenchimento, em relação a um dano, das previsões de diferentes regimes
de responsabilidade, resultando na imputação a diferentes sujeitos, por
diferentes títulos (por exemplo, um por culpa e outro pelo risco) por uma
mesma causalidade, no que já foi designado um concurso heterogéneo 53.

50
A. MENEZES CORDEIRO, Tratado, II-III, cit., 398.
51
Sobre a questão, STJ 22-09-2011 (Bettencourt de Faria), proc. 674/2001.P L.S1; RÉv 20-10-2011,
CJ, ano 36, tomo 4, n.º 233 (agosto-outubro 2011), p. 251-254; RCb 16-12-2009 (Jorge Arcanjo),
proc. 5/05.5TBOHP.C1; RPt 21-03-2006 (Cura Mariano), proc. 299/06. Na doutrina, MIGUEL TEIXEIRA DE
SOUSA, O concurso de títulos de aquisição da prestação, Coimbra: Almedina, 1988; A. MENEZES
CORDEIRO, Tratado, II-III, cit., 387 ss.
52
Autonomizando a culpa in contrahendo, a culpa post pactum finitum, o contrato com
eficácia de protecção para terceiros e a relação corrente de negócios, Luís M. T. D. MENEZES
LEITÃO, Obrigações..., I, cit., 354 ss.. No entanto, bastante restritivo quanto à admissibilidade e
relevância da terceira via, A. MENEZES CORDEIRO, Tratado, II-III, cit., 400 ss..
53
A. MENEZES CORDEIRO, Tratado, II-III, cit., 737.

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9. A configuração e o regime do concurso de responsabilidades por actos de


diferentes funções

9.1. A dimensão substantiva

As considerações precedentes permitem fundamentar a necessidade e a


possibilidade de considerar a existência de concurso de responsabilidades
decorrentes de actos de diferentes funções do Estado. Mas não avançam
ainda na tarefa de encontrar um regime para tais casos. Isto é, se até agora se
fundamentou a legitimidade de tomar em consideração de modo global
processos causais nos quais participem as diferentes funções do Estado, ainda
não se encontrou os critérios normativos de articulação entre regimes que,
como dissemos acima, o legislador não enunciou de forma explícita.
Pensamos que o critério de articulação essencial passa por uma extensão
da regra de solidariedade passiva do art. 10º/4 do RREE a todos os casos de
concurso de responsabilidade. Como se disse, essa regra, actualmente, já vale
quer para a responsabilidade administrativa por facto lícito, quer, por força da
remissão do art. 12º do RREE, para a responsabilidade por má administração
da justiça, sendo apenas uma questão de a estender a todas as outras
hipóteses de multicausalidade onde intervenham diversas funções do Estado.
Esta extensão não enfrenta dificuldades de maior atendendo ao tratamento
que, como vimos, o art. 497º do CC (para o qual remete o art. 10º/4 do RREE)
tem tido no direito privado da responsabilidade civil, sendo estendido a
contextos nos quais seria prima facie duvidosa a sua aplicação.
Seria igualmente de considerar a possibilidade de atenuação do rigor dos
pressupostos legais da responsabilidade pelas funções jurisdicional e legislativa
(em particular, a questão do dano anormal). Com efeito, como se viu, não é
solução estranha na doutrina e na jurisprudência a atribuição, ao lesado, da
possibilidade de escolha e mesmo de composição de um regime de
responsabilidade que lhe seja mais favorável. Essa solução parece-nos
valorativamente adequada, pelo menos em alguns casos: se um particular é
afectado por diversos factos, todos imputáveis a órgãos do Estado ou
entidades públicas, isso cria um quadro de especial detrimento da posição do
lesado e de especial censurabilidade da actuação conjugada dos agentes

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públicos do dano, que justifica plenamente um nivelamento, por baixo, da


exigência dos requisitos para conseguir a responsabilização54.
Por outro lado, pensamos que há adaptações a fazer, também, em
resultado da especial propensão destes casos para a fragmentação e
dispersão em termos de vias de reacção do particular. Assim, por exemplo,
não sendo possível, pelos motivos que analisaremos em seguida, a análise da
integralidade do processo danoso na mesma acção (ou não tendo essa via
sido escolhida pelo autor), pelo menos, o prazo de prescrição de toda(s) a(s)
responsabilidade(s) não deveria decorrer enquanto não houver decisão(ões)
final(ais) sobre todas as questões que são relevantes para aquele processo
danoso55.

9.2. A dimensão processual

9.2.1. Em geral

A articulação processual das eventuais responsabilidades emergentes de


diversas funções do Estado não apresenta, em princípio, dificuldades em
termos de jurisdição competente, meio processual aplicável e possibilidade de
cumulação de pedidos na mesma acção.
As acções de responsabilidade civil extracontratual nas quais sejam
demandadas pessoas colectivas públicas são julgadas nos tribunais
administrativos56. A cumulação de pedidos é amplamente admitida na

54
Assim, por exemplo, poderia ser considerada a co-responsabilidade da função legislativa
com a função administrativa, por ter criado um regime legal de dificílima aplicação, sem que se
exigisse a inconstitucionalidade desse regime e sem que se exigisse o carácter anormal do
dano, pois esse requisito seria consumido pela circunstância de o particular não ter sido só
atingido pela lei imperfeita, mas também pela actuação da função administrativa. De facto,
como se diz no texto, esta solução é valorativamente adequada, pois não é descabido dizer
que a exigência do dano anormal tem como pressuposto implícito que seja apenas a função
legislativa a contribuir para o dano. Nos casos em que há outros agentes do sector público a
contribuir para o dano, esse pressuposto de grande exigência perde razão de ser, porque o
particular lesado tem outras razões de queixa, que como que substituem e consomem o
carácter anormal do dano. Estas considerações são facilitadas, sobretudo, pelo apelo à criação
de risco proibido como fundamento da imputação (v. supra). É que nesses casos, o risco
proibido não é criado apenas por uma função do Estado, mas por mais do que uma, e é essa
acumulação de risco proibido com uma origem unitária (o Estado) o que justifica que se torne
mais fácil a imputação.
55
Ou seja, tratar-se-ia aqui apenas da extensão, a todas as funções, do mecanismo, que já
vigora para as relações entre acto administrativo e responsabilidade civil, segundo a qual a
impugnação do acto demonstra a intenção de vir a exigir a responsabilidade civil (art. 41º/3
CPTA). Mais uma vez, tal extensão mostra-se valorativamente adequada, pelos mesmos motivos
indicados na nota anterior.
56
Sobre a unificação do contencioso da responsabilidade civil extracontratual das entidades
públicas operada pelo ETAF de 2004, seja-nos permitido remeter para Miguel ASSIS RAIMUNDO, As

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 45

jurisdição administrativa. Tratando-se de uma pretensão que tem na base a


responsabilidade civil, a acção administrativa comum é o meio processual
aplicável, quer a causa de pedir seja a actuação de órgãos da função
administrativa, quer seja a actuação de órgãos de outras funções; se, porém,
o pedido de responsabilidade civil for cumulado com um pedido relacionado
com a prática ou omissão de um acto administrativo (designadamente, um
pedido de impugnação), é a acção administrativa especial a aplicável, por
força da sua vis atractiva57.
Assim, na generalidade dos casos, não parece haver obstáculo, quer de
jurisdição competente, quer de meio processual aplicável, à demanda
baseada em actuações de diferentes funções do Estado. Por hipótese, se
estiver em causa actividade danosa proveniente da actuação de uma
direcção-geral (função administrativa) e de erro judiciário de um tribunal
administrativo (função jurisdicional), demandado será o Estado, ao qual
pertencem todos os órgãos em questão, neste caso acompanhado do
ministério ao qual pertença a direcção-geral (art. 10º/2, 4 e 5 do CPTA); e o
meio será sempre a acção administrativa comum, a não ser que haja uma
pretensão conexa com actos ou normas administrativas, caso em que o meio
processual será a acção especial (na qual, como se disse, podem ser
cumulados pedidos de responsabilidade civil).
Não obstante, há que atender a alguns casos residuais que podem suscitar
dúvidas e/ou desarmonias.

9.2.2. Competência em razão da hierarquia

A competência para o julgamento de acções de responsabilidade civil


pertence aos tribunais administrativos de círculo, nos termos do art. 44º/1 ETAF.
Porém, o Supremo Tribunal Administrativo é o tribunal competente em razão
da hierarquia para o julgamento dos “processos em matéria administrativa
relativos a acções ou omissões” de uma série de órgãos cimeiros da estrutura
do Estado (cf. art. 24º/1/a) ETAF), colocando-se a questão de saber se nessa

empresas públicas... cit., 311 ss. e referências aí citadas.


57
Cf. MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, "A efectivação da responsabilidade civil extracontratual do Estado
e demais entidades públicas ", in AA/VV, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de
Pitta e Cunha, Vol. III - Direito Privado, Direito Público e Vária, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 587
ss., 597, com referências.

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referência entram as acções de responsabilidade civil decorrentes de tais


“acções ou omissões”.
A este propósito, a jurisprudência tem perfilhado uma interpretação de
acordo com a qual o art. 24º/1 do ETAF apenas teria querido submeter ao
julgamento do Supremo a questão primária da legalidade ou ilegalidade dos
actos e omissões dos órgãos aí referidos, ou mais precisamente, apenas teria
querido submeter a esse julgamento os pedidos típicos da acção
administrativa especial, mantendo-se na competência dos tribunais
administrativos de círculo o julgamento das eventuais acções de
58
responsabilidade daí decorrentes .
Essa interpretação é discutível, e aliás, de jure condito, parece-nos mesmo
insustentável na classe de casos mais relevante que pode ocorrer: a de
cumulação de um pedido típico de acção administrativa especial relativo à
actuação de um dos órgãos do art. 24º/1/a) do ETAF com um pedido
indemnizatório. A cumulação de tais pedidos é expressamente prevista no art.
4º/2/f) do CPTA, e não fica prejudicada pela circunstância de serem prima
facie diferentes os tribunais competentes em primeira instância59. A prova de
que assim reside em que o legislador previu e resolveu expressamente tais
casos: de acordo com a estatuição inequívoca do art. 21º/1 do CPTA, em
caso de cumulação de pedidos para os quais sejam competentes tribunais
diferentes em razão da hierarquia, é competente para o julgamento de todos
os pedidos o tribunal superior; no caso que nos ocupa, o Supremo. A posição
em crítica não atende a este dispositivo legal, e parece que sem fazer
interpretação abrogante do mesmo, ela é insustentável.
Assim, em nosso entender, em abstracto, o tribunal competente para julgar,
em primeira instância, uma acção de responsabilidade civil na qual se
invoque, como causa de pedir, a actuação (administrativa) de algum dos
órgãos do art. 24º/1/a) do ETAF e a actuação (administrativa, legislativa ou
jurisdicional) de algum outro órgão ou entidade deveria ser o Supremo Tribunal

58
STA 30-11-2011 (Madeira dos Santos), proc. 1021/11; STA (Pleno) 11-05-2005 (António
Samagaio) e também 30-11-2004 (Alberto Augusto Oliveira), ambos proferidos no âmbito do
proc. 616/04.
59
Sob pena de uma posição processual diminuída face aos órgãos cimeiros do Estado, o que
é inaceitável. Com efeito, não é próprio de um Estado de Direito que o particular, só porque foi
objecto de um acto em matéria administrativa praticado pelo Presidente da República, fique
em posição processual mais diminuída do que se tivesse sido objecto de um acto de um
presidente de câmara.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 47

Administrativo, embora tenhamos dúvidas acerca da adequação prática da


solução60.

9.2.3. Concurso envolvendo outras jurisdições

Outro caso que pode suscitar desarmonias do ponto de vista da articulação


processual prende-se com uma situação de eventual concurso entre
pretensões de responsabilidade emergentes, por um lado, de erro judiciário
imputável a outras jurisdições que não a administrativa, e, por outro lado, de
quaisquer acções para as quais seja competente a jurisdição administrativa
(como sucederia no Caso III acima descrito).
Com efeito, como se sabe, a lei opera a exclusão da jurisdição
administrativa das acções de responsabilidade e respectivas acções de
regresso que decorram de erro judiciário cometido por tribunais de outras
ordens jurisdicionais (art. 4º/3/a) ETAF)61, o que sucede, por exemplo, com os
erros judiciários dos tribunais judiciais em sede criminal.
Assim, parece que numa situação como a do Caso III acima descrito, de
jure condito, o lesado nunca conseguiria uma apreciação processualmente
unitária da sucessão de actos e omissões dolosos e negligentes dos vários
actores públicos. Com efeito, o lesado tem, se bem vemos, duas vias possíveis;
nenhuma delas permitindo uma acção compreensiva.
Uma primeira via seria optar entre demandar, nos tribunais administrativos, o
Estado, pela actuação negligente da polícia criminal e do Ministério Público,
ou demandar o mesmo Estado, nos tribunais judiciais, por erro judiciário do
tribunal de instrução criminal e do tribunal de julgamento.
Se o lesado não prescindisse de demandar todos aqueles que, em seu
entender, haviam contribuído para a lesão, teria uma segunda via, que seria a
de repartir a sua actividade processual, propondo ambas as acções acima
referidas. Contudo, para assim fazer – além do custo de litigância acrescido
pela dispersão de acções – teria de avançar com uma qualquer fórmula de
repartição de responsabilidades (por exemplo: se considerasse que o total dos
danos por si sofridos ascende a 130.000€, pediria uma indemnização de
60
Ou seja, partilhamos as dúvidas de MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA/RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código
de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
Anotados, Coimbra: Almedina, 2004, 83; e JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa
(Lições), 10ª ed., Coimbra: Almedina, 2012, 126, nota 254.
61
Miguel ASSIS RAIMUNDO, "A efectivação da responsabilidade civil...", cit., 593-595.

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100.000€ nos tribunais administrativos, por considerar que a causa principal do


dano tinha sido a falsificação de prova imputável à polícia, e uma
indemnização de 30.000€ nos tribunais judiciais, por considerar de menor
gravidade que os juízes tivessem deixado passar a falsificação).
Esta necessidade de avançar com uma fórmula de repartição de
responsabilidades parece-nos essencial para que, designadamente, não se
invoque que o lesado procura o duplo ressarcimento do mesmo prejuízo (o
que constituiria enriquecimento sem causa).
Porém, ela apresenta dificuldades praticamente insuperáveis,
designadamente do ponto de vista da prova: numa situação como a do Caso
III, como conseguirá um juiz quantificar, por exemplo, a parcela dos danos de
imagem do lesado imputável à polícia criminal (órgão da função
administrativa) e a imputável a erro judiciário (função jurisdicional)? E o que
sucederá se, por exemplo, algum dos tribunais ou os dois discordarem da
repartição de responsabilidades entre funções proposta pelo autor? Afigura-
se-nos perfeitamente concebível que isso redunde em decisões contraditórias
nas diferentes jurisdições, e independentemente disso, afigura-se-nos certo
que a acção será sempre mal julgada, porque em nenhuma das acções o
tribunal tem jurisdição sobre todos os (eventuais) lesantes, o que obviamente
significa que nenhum dos tribunais tem autoridade para dizer, com segurança,
que parcela de responsabilidade cabe a um deles, pois dizer isso implica dizer,
também, que parcela de responsabilidade cabe ao(s) outro(s).
Para situações desta última natureza, pensamos que a solução só pode ser
uma: a permissão da demanda unitária, numa das jurisdições prima facie
competentes. Tal solução tem sido defendida ou com base na ideia de
alternatividade entre jurisdições competentes62, ou com base numa
“ultrapassagem” das regras de separação das jurisdições em alguns casos, de
que constitui exemplo (praticamente singular) o litisconsórcio necessário – tese
já defendida ousadamente na jurisprudência63.

62
Cf. MADALENA PERESTRELO DE OLIVEIRA, "Conflitos de princípios na repartição da competência
material dos tribunais: os casos aut-aut e et-et", O Direito, ano 142º, (III), 2010, pp. 593 ss..
63
Enunciando esta possibilidade, embora no caso concreto, recusando que a mesma seja
aplicável num caso de solidariedade passiva, por entender que aí se está perante litisconsórcio
meramente voluntário, veja-se TCAS 22-03-2007 (Teresa de Sousa), proc. 1237/05.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 49

A perda de chance na responsabilidade extracontratual do Estado


e das demais pessoas coletivas públicas

Vera Eiró

Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa


Professora convidada na FDUNL e na Faculdade de Direito da Universidade Católica
Portuguesa Advogada na Linklaters LLP

1. Apresentação do tema; 1.1. O que é a «perda de chance» e de onde veio?;


1.1.1. França; 1.1.2. Itália; 1.2. Os juízes administrativos e a perda de chance;
1.2.1. A perda de chance e inexecução de sentença; 1.2.1.1. Acórdão do STA,
de 29 de novembro de 2005; 1.2.1.2. Acórdão do STA de 30 de Setembro de
2009; 1.2.2. A «perda de chance» e os procedimentos concursais. A alegada
aplicação da «perda de chance» em resposta a exigências comunitárias; 1.3.
Qual o lugar da «perda de chance» no RRCEEPCP?

1. Apresentação do tema

O tema que nos traz aqui hoje é a perda de chance na responsabilidade


extracontratual do Estado e das demais pessoas coletivas públicas. Trata-se de
um tema pouco discutido e trabalhado entre nós mas que se apresenta de
uma atualidade inegável, sobretudo se atendermos a algumas decisões
recentes tomadas pelos tribunais administrativos.
O tema é amplo e não cabe numa exposição de 20 minutos como aquela
que devo fazer. Por isso mesmo, urge escolher as vertentes a abordar de forma
a que se garanta, simultaneamente, o interesse dos meus interlocutores, todos
vós que tiveram a amabilidade e a gentileza de comparecer a esta
conferência e, naturalmente, algum sentido útil para as minhas palavras.

É neste contexto que proponho o seguinte caminho para a minha exposição


de hoje:

1.1 Em primeiro lugar, enquadrar a «perda de chance» no instrumentarium


jurídico.

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1.2 Em segundo lugar, dar-vos nota da mais recente jurisprudência neste


domínio apresentando, simultaneamente, as minhas dúvidas e
inquietações sobre o rumo atual das decisões dos nossos magistrados.

1.3 Em terceiro e último lugar, perceber qual o lugar da «perda de chance»


na aplicação do Regime da Responsabilidade do Estado e das Pessoas
Coletivas Públicas.

Comecemos

1. O que é a «perda de chance» e de onde veio?

Em primeiro lugar, gostava de deixar claro que o princípio da «perda de


chance» foi recebido pela doutrina portuguesa através da sua designação
mais usual naqueles que são os ordenamentos em que a sua utilização é
menos recente (França e Itália). A designação portuguesa lexicalmente mais
correta, conforme foi já apontado entre nós, seria a de perda de
oportunidade, ao invés do galicismo chance. Não obstante, e para que
possam mais facilmente compreender as minhas palavras manterei a
designação que tradicionalmente vem sendo adotada entre nós.
Para perceber bem a figura da «perda de chance» importa ter presente
alguns traços essenciais do instituto da responsabilidade civil tal como este é
regulado no nosso ordenamento jurídico. Desde logo, deve sublinhar-se que
sem dano não se pode falar de responsabilidade civil. O dano e o nexo de
causalidade são, assim, condições inevitáveis da responsabilidade civil: a
“existência de um dano é condição essencial da responsabilidade civil” 1 e é o
“dano do lesado que está no centro do instituto”2 .
Deve ainda relembrar-se que a condição do nexo de causalidade,
também no Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e das
demais Pessoas Coletivas Públicas (o “RRCEEPCP”) por força da remissão
operada pelo n.º 3 do artigo 3.º daquele regime, circunscreve a indemnização

1
Cfr. PAULO MOTA PINTO, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo,
2008, p. 536 e a extensa doutrina civilista que o autor cita na nota 1555. Nas palavras
de Sinde Monteiro, “o dano constitui um pressuposto do nascimento desta relação
jurídica [a obrigação de indemnizar], cuja finalidade principal reside justamente na
sua reparação”, JORGE SINDE MONTEIRO, "Rudimentos da responsabilidade civil", in Revista
da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2005, p. 377 (parêntesis nossos).
2
Cfr. FRANCISCO MANUEL PEREIRA COELHO, O Enriquecimento e o Dano, 2003, p. 35.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 51

aos danos necessariamente causados pelo facto ilícito quando estes, em


abstrato, figuram como consequência adequada do facto em causa.
Mais concretamente, a doutrina e a jurisprudência portuguesas tendem a
considerar que a regra de causalidade vigente entre nós – e consagrada no
artigo 563.º do Código Civil (o “CC”) – corresponde à formulação negativa da
teoria da causalidade adequada, segundo a qual o facto que atuou como
causa do prejuízo não será considerado causa deste se, atendendo à sua
natureza, se revelar de todo em todo indiferente para a produção do prejuízo.
Pois bem, a «teoria da perda de chance» (nas suas diversas formulações) é
a resposta dada, nalguns ordenamentos jurídicos e fundada essencialmente
no labor da doutrina e da jurisprudência, aos casos em que, por força de um
especial contexto da prática do ato lesivo, não é possível afirmar que os danos
verificados não teriam ocorrido não fora a ilegalidade praticada. A teoria da
perda de chance, pensando agora nas suas diversas formulações, permite
portanto ultrapassar a lógica do tudo ou nada associada à responsabilidade
civil3 e abre a porta à atribuição de uma indemnização mesmo quando não
fique provado que o comportamento do lesante foi a causa adequada do
resultado final.
Numa palavra, a «perda de chance» permite atribuir uma indemnização
mesmo naqueles casos em que não é possível demonstrar a certeza do dano.
Mas vejamos mais em detalhe a forma como, noutros ordenamentos
jurídicos, esta teoria vem sendo trabalhada e aplicada. As limitações de
tempo impõem que faça um tratamento necessariamente sucinto desta
temática. Deixo-vos portanto apenas alguns dados essenciais.
Os ordenamentos jurídicos onde mais se tem trabalhado a teoria da perda
de chance são os ordenamentos francês e italiano4.

3
A lógica do tudo ou nada traduz-se no seguinte: ou bem que o lesado consegue demonstrar
o nexo de causalidade entre o facto lesivo e os danos que sofreu (sendo ressarcido da
integralidade dos danos sofridos, correspondendo esta situação a tudo) ou, não conseguindo
demonstrar o nexo de causalidade, não é ressarcido (nem mesmo parcialmente,
correspondendo esta situação a nada).
4
Sobre a perda de chance no direito comparado veja-se, entre nóse a título de exemplo, R UI
CARDONA FERREIRA, Indemnização do Interesse Positivo e Perda de Chance na Contratação
Pública, 2011, passim; RUI CARDONA FERREIRA, A perda de chance – Análise comparativa e
perspectivas de ordenação sistemática, in O Direito, ano 144, 2012, pp. 31 e ss; e o nosso
Obrigação de indemnizar das entidades adjudicantes. Fundamento e pressupostos, 2013 (no
prelo).

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1.1.1. França

No ordenamento jurídico francês, e de acordo com a jurisprudência francesa


maioritária, a perda de chance é antevista como um dano autónomo,
ontologicamente independente do designado dano final. Este
enquadramento não é, porém, isento de crítica, havendo diversos autores que
sustentam que, mais do que concretizar a indemnização por um especial
dano, a perda de chance importa uma certa configuração do nexo de
causalidade que, por força do contexto da prática do ato lesivo, se afigura
especialmente aligeirada e menos exigente.
Segundo a doutrina dominante, o ressarcimento da perda de chance
depende de algumas condições cujo preenchimento se relaciona, em
primeiro lugar, com a determinação prévia da probabilidade de
concretização da chance e, em segundo lugar, da determinação da situação
final do lesado na eventualidade da sua efetiva concretização. Uma vez
apurado o resultado destas duas operações, deve contabilizar-se o produto
entre o valor da probabilidade e o valor do dano final.
No que respeita à contratação pública, a jurisprudência francesa entende,
de forma praticamente unânime, que o ressarcimento dos danos causados
pela prática de atos procedimentais contrários às regras de formação dos
contratos públicos depende do preenchimento de três condições: a
ilegalidade do ato, a produção de um dano e o nexo de causalidade; pela
mão da aplicação da teoria da perda de chance, a segunda e a terceira
condições são, por via de regra, apuradas num só momento. Neste contexto,
apresentam-se três resultados possíveis: se o particular demonstrar que, não
fora a ilegalidade cometida, teria tido uma chance séria de ser o
adjudicatário do contrato, então ele será ressarcido dos lucros cessantes
associados à execução do contrato – o que designamos como interesse
contratual positivo; se o particular demonstrar que, não fora a ilegalidade
cometida, não seria desprovido de qualquer chance de obter a adjudicação
de contrato, então ele será ressarcido dos custos em que incorreu com a
proposta; se o particular não conseguir demonstrar nenhuma das duas
premissas anteriores, então, pura e simplesmente, não será ressarcido5.
5
O primeiro caso em que este princípio indemnizatório ficou estabelecido foi o Acórdão do
Conseil d'État de 1970-05-13, proc. n.º 74601, "Monti". Por força da análise da jurisprudência que
se seguiu a este acórdão, alguma doutrina entende ser necessário realizar uma distinção entre

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 53

Em França, os custos da proposta correspondem ao montante da


indemnização que o lesado auferirá quando demonstre que as suas chances
de ser o adjudicatário do contrato não seriam nulas. Neste caso, um operador
económico não é considerado desprovido de qualquer chance de
adjudicação se apresentar uma proposta que respeita as exigências do
caderno de encargos6. O lucro cessante que resultaria da execução do
contrato que é objeto do concurso é indemnizado na íntegra) nos casos em
que o operador económico demonstre que a ilegalidade cometida lhe retirou
uma hipótese séria de ser o adjudicatário do contrato.
Em jeito de balanço final, diga-se apenas que o cenário que se descreveu é
usualmente reconhecido como traduzindo uma solução justa para o litígio.
A dificuldade da aplicação do princípio da perda de chance em França –
e considerando agora tão-só a aplicação à contratação pública – resulta,
portanto, da necessidade de o operador económico lesado demonstrar a
chance séria de adjudicação. Neste ponto em particular, os tribunais
franceses analisam as características do operador económico, as garantias
por ele fornecidas quanto à integral execução do contrato, as circunstâncias
que determinaram a sua exclusão, o número de concorrentes e as diferenças
de preços das diferentes propostas apresentadas7.
A demonstração da chance séria de adjudicação depende também da
efetiva adjudicação do contrato a um terceiro. O operador económico
lesado terá ainda uma chance séria quando a proposta selecionada deveria

os casos em que existe uma chance séria de adjudicação e uma chance muito séria de
adjudicação. Esta distinção seria relevante em sede de cômputo da indemnização ― assim, S.
TROCOL, "Note sous CAA Douai, 21 Mai, 2002, Stá. Jean Behotas", in AJDA, 2003, p. 232. Todavia,
esta distinção não tem merecido relevância na jurisprudência mais recente do Conseil d’État.
Com efeito, o tribunal tem atribuído indemnizações que incluem os lucros cessantes associados
à execução do contrato que é objecto do procedimento quando o operador económico
lesado demonstra que, não fora a ilegalidade cometida, teria tido uma chance séria de ser o
adjudicatário do contrato. Deve notar-se ainda que a indemnização é, nestes casos, generosa,
porquanto os tribunais têm entendido que o lucro cessante deve ser indemnizado, não obstante
fique demonstrado que o lesado celebrou e executou contratos alternativos que não teria
celebrado nem executado se tivesse sido o adjudicatário do contrato. Nestes casos, o operador
económico é pago duas vezes pelo trabalho que realizou apenas uma vez. Cfr. F RANÇOIS LICHÈRE,
"Damages for Violation of the EC Public Procurement Rules in France", in Public Procurement Law
Review, 4, 2006, p. 177.
6
Neste sentido, com dados jurisprudenciais relevantes, FRÉDÉRIC DIEU, "L'indemnisation d'une
chance sérieuse de remporter un marché", in AJDA, 62, 16, 2006, p. 879.
7
Mesmo quando o critério da adjudicação é o da proposta economicamente mais favorável,
se o lesado apresentar o preço mais baixo, existe uma espécie de presunção no sentido da
adjudicação do contrato. Não obstante, esta presunção é elidível Veja-se, neste sentido,
FRANÇOIS LICHÈRE, "Damages for Violation of the EC Public Procurement Rules in France", in Public
Procurement Law Review, 4, 2006, p. 174.

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ter sido excluída e quando a proposta apresentada pelo lesado se


apresentava como a única proposta que preenchia os requisitos da
adjudicação.
A jurisprudência francesa admite, portanto, a ressarcibilidade da chance
séria da adjudicação. O ressarcimento devido depende, porém, do grau de
concretização possível do resultado final querido – no caso, a adjudicação do
contrato.

1.1.2. Itália

No ordenamento jurídico italiano, a configuração dogmática da perda de


chance é, conforme foi já sublinhado, caótica 8. Ainda assim pode dizer-se,
com alguma certeza, – considerando, em especial, as decisões dos tribunais –
que a orientação dominante é a que reconduz a perda de chance à
indemnização de um dano patrimonial autónomo9.
No que respeita a questões de contratação pública – de ilícitos que se
subsumem à violação de regras de natureza procedimental e incluídas em
procedimentos concursais – a jurisprudência italiana dominante é a de que a
perda de chance se reconduz a um dano autónomo, cuja indemnizabilidade
depende de uma densidade suficiente que justifique a respetiva tutela 10.
Neste enquadramento, a jurisprudência dominante entende que, quando o
autor não consiga demonstrar que, não fora a ilegalidade praticada, teria sido
ele o adjudicatário do contrato mas, ainda assim, consiga demonstrar uma
11
“concreta possibilidade de sucesso” , terá direito a uma indemnização
calculada, por regra, ponderando conjuntamente o valor do contrato e o
número de participantes que demonstraram esta “definitiva probabilidade de
vitória” de adjudicação do contrato.
8
Rui CARDONA FERREIRA escreve, a este respeito, que o tratamento doutrinário e
jurisprudencial da perda de chance em Itália se revela um “cenário de alguma forma caótico e
difícil de enquadrar racionalmente” ― Indemnização do Interesse Positivo e Perda de Chance
na Contratação Pública (em especial, na contratação pública), 2011, p. 199.
9
Veja-se, neste sentido, os acórdãos marco na matéria: Acórdão da Corte di Cassazione de 19
de novembro de 1983, n.º 6906 e de 19 de dezembro de 1985, n.º 6506.
10
Assim, Acórdão da Corte di Cassazione de 2009-01-29, proc. n.º 1850. A densidade suficiente
implica, por via de regra, uma probabilidade de sucesso superior a 50% ou que a probabilidade
de não verificação do evento final favorável seja inferior a 50%. Assim, Ac órdão da Corte di
Cassazione de 1985-12-19, proc. n.º 6506 e Acórdão do Consiglio di Stato de 2003-04-15, proc. n.º
1945.
11
Assim, Acórdão do Consiglio di Stato de 2007-10-23, proc. n.º 5592, em que se refere a
necessidade de, para indemnizar a designada perda de chance, ser demonstrada uma
“concrete possibilità di successo”.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 55

Trata-se, portanto, de indemnizar a perda de chance de obter o contrato; o


valor da indemnização não é calculado, nestes casos, em função dos custos
da proposta ou do procedimento, mas sim do valor do contrato ou, mais
precisamente, do preço proposto pelo operador económico. Nestes casos,
prescinde-se, em última análise, do pressuposto chave da responsabilidade
civil: o nexo de causalidade.
A figura da «perda de chance» não é usada exclusivamente nos
ordenamentos jurídicos francês e italiano. No Reino Unido, na Alemanha, em
Espanha e, claro, em Portugal (para não me alongar pois a enunciação não
esgota, naturalmente, os ordenamentos onde o tema vem sendo trabalhado)
doutrina e jurisprudência recorrem por diversas vezes a esta figura, de
contornos indeterminados e flexíveis, e que apresenta – sempre e justificada
por argumentos de índole pragmática e funcional – esta inevitável
capacidade de abalar as fundações da responsabilidade civil (o dano e o
nexo de causalidade) como um sismo, de magnitude elevada.

1.2. Os juízes administrativos e a perda de chance

A figura da perda de chance apresenta inegáveis vantagens para a solução


do caso concreto. Com efeito, uma das suas maiores potencialidades é,
precisamente, a de poder proporcionar – pelo menos aos olhos de alguns –
uma solução justa que não seria alcançável através da aplicação rigorosa dos
tradicionais pressupostos da responsabilidade civil1.
A perda de chance serve, portanto, para resolver problemas e, por isso
mesmo, não causará espanto detetar, na nossa jurisprudência administrativa,
diversas decisões que aplicam uma figura (nem sempre de contornos bem
delimitados) a que os tribunais designam de perda de chance.
Com efeito, são já vários os acórdãos dos tribunais administrativos superiores
em que, de uma forma ou de outra, é abordada a figura da «perda de
chance» (ou figuras próximas que, considerando o conceito complexo e
inseguro da «perda de chance», nela se podem integrar). Na impossibilidade
de abordar todas as decisões em detalhe, deixarei apenas uma descrição

1
Deve notar-se que há quem sustente que a aplicação de um princípio da perda de chance
não se afigura contrária às condições e pressupostos da responsabilidade civil. Veja-se, neste
sentido e para além dos demais, Cfr. RUI CARDONA FERREIRA, Indemnização do Interesse
Positivo e Perda de Chance na Contratação Pública, 2011, passim.

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impressionista das principais linhas que delas decorrem. Para tanto, optei por
sistematizar as decisões em dois diferentes grupos: o primeiro, que se ocupa
sobretudo da problemática da determinação da indemnização por
inexecução de sentença; o segundo, que se ocupa do tema da
indemnização em ambiente concursal.

1.2.1. A perda de chance e inexecução de sentença

Por estranho que possa parecer, o tema da «perda da chance» assumiu algum
lugar de destaque na jurisprudência administrativa não tanto a propósito da
aplicação do instituto da responsabilidade civil, mas sobretudo a propósito da
aplicação das normas de processo administrativo que atribuem aos autores
uma indemnização em caso de causa legítima de inexecução de sentença.
Neste contexto, o primeiro grupo de decisões relevantes para estudar a
«perda de chance» no Direito Administrativo prende-se com a aplicação dos
artigos do CPTA relevantes para o regime da inexecução legítima da sentença
(seja no processo declarativo seja no processo executivo).
A propósito da aplicação destes normativos, gostava de chamar a vossa
atenção para dois acórdãos que me parecem marcar decisivamente a
jurisprudência dos nossos tribunais administrativos superiores sobre esta
temática.

1.2.1.1. Acórdão do STA, de 29 de novembro de 2005

O primeiro, é o Acórdão do STA de 29 de Novembro de 2005 onde o tribunal,


pela primeira vez, afirma com clareza que a «perda da execução de
sentença» de uma decisão anulatória de um ato de adjudicação de um
concurso público consubstancia um dano autónomo.
O dano, seguindo o juízo do tribunal, é real mas de difícil liquidação. E,
portanto, o seu cálculo só pode ser efetuado através da aplicação dos
critérios referidos no n.º 3 do artigo 566.º do CC – a equidade.
O tribunal afasta desde logo a possibilidade de serem indemnizados,
diretamente, os gastos que o autor teve na preparação do concurso. Pois,
esclarece o tribunal, “é precisamente porque esteve no concurso (para cuja
presença teve gastos), e obteve a anulação do ato, que se coloca o

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 57

problema da indemnização em discussão” e, na aplicação do juízo equitativo,


o tribunal pondera o circunstancialismo do caso. Mais concretamente, o
tribunal pondera:

“a) O número de concorrentes que chegaram à fase final de apreciação,


por isso, todos com a possibilidade abstractamente considerada de terem
podido vencer;
b) O pouco relevo do posicionamento obtido na graduação que precedeu o
acto anulado, exactamente porque, tendo havido anulação do acto por razões
formais, a execução, a ter sido possível, tanto poderia ter conduzido à subida da
requerente na classificação como à descida;
c) O valor da proposta apresentada pela requerente, mais que o valor da
proposta vencedora e do que o valor da obra. Em função desse valor, uma
estimativa de benefício na ordem de 17,68%;
d) O tempo decorrido”.

Considerando todos aqueles elementos conjugadamente, e voltando a


sublinhar que não se está, in casu, a proceder a qualquer decisão sobre lucros
cessantes em razão do ato anulado, nem à determinação de danos
emergentes do mesmo ato, mas, simplesmente, a uma fixação, através de um
juízo que se entende equitativo, da indemnização devida pela não execução
de sentença, nos termos do artigo 178.º, n.º 1, do CPTA, o tribunal considerou
equilibrado computar aquela indemnização no valor de €11.700,00 euros.

1.2.1.2. Acórdão do STA de 30 de Setembro de 2009

A segunda decisão selecionada é um aresto datado de setembro de 2009


onde o STA veio, novamente, sublinhar a ideia que havia já firmado em 2005 e
que é a seguinte:

“o afastamento ilegal de um concurso, com perda de uma


oportunidade de nele poder obter um resultado favorável, com
repercussão remuneratória, é um bem cuja perda é indemnizável e que
não podendo ser efectuada com exactidão a quantificação desta
perda, é de fixar a indemnização através de um juízo de equidade, em
sintonia com o preceituado no n.º 3 do artigo 566.º do C. Civil”2.

2
Cfr. Acórdão do STA de 2009-09-30, proc. n.º 634/09 e, no mesmo sentido, Acórdão do STA de
2009-02-25, proc. n.º 047472A.

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A este decisão seguiram-se outras 3, no mesmo sentido e, neste grupo de


arestos, a «perda de chance» ou melhor a «perda de oportunidade» é
antevista pelo STA como um dano autónomo, que não é um dano provocado
pelo ato inicialmente ilícito sendo sim um dano que resulta da inexecução
legítima da sentença, cuja liquidação é feita recorrendo a uma ponderação
à luz de um juízo de equidade.
Ponderando em conjunto as decisões citadas verifica-se que os nossos
tribunais administrativos vêm aplicando uma figura próxima à da «perda de
chance» fora dos quadros dogmáticos da responsabilidade civil (mais
concretamente da responsabilidade civil pré-contratual), aproximando-o do
regime da «expropriação» e dizendo claramente que não se trata, nestes
casos, de indemnizar o interesse contratual negativo ou positivo. Trata-se,
segundo a leitura dos juízes administrativos, de atribuir ao autor uma
indemnização pela «perda de oportunidade» de obter um resultado favorável
no procedimento (por via de regra, um concurso) cujo valor deverá ser
determinado segundo a equidade.
O quantum indemnizatório não corresponde, nestes casos, apenas aos
custos da proposta ou do procedimento. Com efeito, e para cálculo da
indemnização, pode considerar-se relevante – à luz desta nova forma de ver a
«perda de chance», pelo menos – as despesas incorridas para participação no
concurso, o valor dos lucros cessantes, o número de concorrentes admitidos a
concurso, o tempo entretanto decorrido.
A análise destas decisões indicia ainda que os nossos juízes, confrontados
com o caso concreto e com a ausência de respaldo normativo certo e seguro
para atribuírem indemnizações em casos de dano incerto, decidem quase
que empiricamente4, fundados na necessidade de aplicar a equidade
enquanto justiça do caso concreto.

Deve porém notar-se que, mesmo aceitando a figura da «expropriação da


sentença», os nossos juízes administrativos não afastam a possibilidade de,
quando fique demonstrada a certeza da adjudicação, a indemnização
devida (ou a justa indemnização) ser, no fundo, equivalente ao designado

3
Veja-se, mais recentemente, o Acórdão do TCA Norte de 13 de janeiro de 2012, P. 0073/05.0
e o Acórdão do STA de 20 de novembro de 2012 que seguiu de perto a decisão de 30 de
setembro de 2009 citada no texto e com voto de vencido do Conselheiro Rosendo Dias José.
4
Usando por vezes expressões como “não nos parece mal atribuir uma indemnização (…)” .

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 59

interesse contratual positivo porque, no dito do TCA Norte, a perda da


sentença – quando demonstrada a certeza da adjudicação – equivale à
expropriação do direito à execução do contrato e não a uma mera chance
ou perda de oportunidade5.

1.2.2.A «perda de chance» e os procedimentos concursais. A alegada


aplicação da «perda de chance» em resposta a exigências comunitárias

A jurisdição administrativa lançou ainda mão da figura da «perda de chance»


para resolver outro tipo de casos, agora já mais diretamente relacionados com
a temática da responsabilidade civil.
Neste contexto, torna-se relevante identificar e analisar um acórdão do
Tribunal Central Administrativo Norte no qual, à primeira vista, se ensaiou a
aplicação de um princípio de «perda de chance» enquadrado na
responsabilidade civil e, mais particularmente, que resultaria da aplicação do
RRCEEPCP. Trata-se do acórdão do TCA Norte de 4 de novembro de 2011,
tirado numa ação administrativa comum proposta na sequência da anulação
de um ato de adjudicação de um contrato de fornecimento.
Um aspeto interessante deste acórdão é, desde logo, a circunstância de o
autor não ter peticionado, em sede de execução de sentença, o pagamento
de uma indemnização por causa legítima de inexecução. Considerando que
o contrato, à data da anulação do ato, já havia sido integralmente
executado, o autor poderia ter optado pela via da execução do julgado
anulatório para receber a indemnização que referimos no ponto anterior.
Ao invés, o autor entendeu propor ação administrativa comum onde
peticiona um indemnização não dos dados que sofreu por força da
inexecução do julgado anulatório mas sim dos danos que sofreu por força do
ato inicialmente ilícito (a saber, a sua exclusão ilegal do procedimento).
Apesar de o tribunal central lançar mão das regras de direito da União para
resolver este problema (de forma pioneira entre nós e merecedora de aplauso,
diga-se) denota-se bem em toda a decisão a dificuldade em trabalhar em
particular o regime das Diretivas Recursos 6 de forma a atingir os resultados
queridos pelo legislador europeu.
5
Veja-se, neste sentido, o Acórdão do TCA Norte de 9 de novembro de 2012.

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Não é esta a sede para tratar de forma desenvolvida a decisão mas,


apenas em jeito de referência, não posso deixar de mencionar que, neste
aresto, o TCA entendeu que a regra do artigo 2/7 da diretiva 92/13/CE
consubstancia, no fundo, uma regra sobre o nexo de causalidade vigente na
contratação pública comunitária – o qual se bastaria, para garantir o
designado interesse contratual positivo – com a mera hipótese real da
adjudicação.
Apesar de o tribunal não usar a expressão «perda de chance» ou «perda de
oportunidade», a verdade é que considera que, em contratação pública, as
Diretivas Recursos impõem uma nova forma de ponderar o nexo de
causalidade que se basta com a existência de uma possibilidade real de ser
atribuído o contrato ao autor.
Esta especial forma de ponderar o nexo facilita o caminho, no
entendimento do tribunal, para o lesado ser indemnizado no designado
interesse contratual positivo.
No caso, o tribunal entendeu ser relevante a circunstância de o ato ilícito se
identificar com a adjudicação ilegal e, portanto, a posição do autor no
procedimento estava claramente definida: sendo o segundo classificado (e
não podendo a entidade adjudicante revogar a decisão de contratar) ele
teria uma possibilidade real de ser o adjudicatário do contrato.
O tribunal entendeu ainda que o autor tinha o direito a ser indemnizado
pela quantia peticionada e referente ao benefício económico que lhe adviria
da adjudicação e execução do contrato.
Esta jurisprudência ainda não está consolidada, tendo o TCA Sul, em
acórdão de 28 de junho de 2012, decidido em sentido contrário. A saber, no
sentido de que as Diretivas Recursos – mais concretamente a diretiva
89/665/CE não estabelece qualquer princípio relativo à forma de ponderar o
dano e o nexo de causalidade e que, portanto, deve prevalecer o
entendimento de que nos casos de violação de regra procedimental incluída
no procedimento de formação de um contrato público se aplica um regime
paralelo ao do que resulta da aplicação do artigo 227.º do CC o qual, no
entendimento do tribunal, impõe que a indemnização se destine tão só a

6
A saber, a Diretiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro, e a diretiva 92/13/CEE do
Conselho, de 25 de Fevereiro (na sua versão alterada).

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 61

cobrir o designado interesse contratual negativo e, mais concretamente, os


custos da proposta e do procedimento.
A parte essencial do julgamento do tribunal é a seguinte:

“Embora a recorrente defenda o primado e aplicação do direito


comunitário, a verdade é que a citada Directiva 86/665/CEE, de
21.12.1989, no mencionado artigo 2º/C, não concretiza qual deva ser o
entendimento jurisprudencial em relação à natureza e extensão dos
danos indemnizáveis, em face de cada extensão.
Na verdade, nesta matéria, a norma referida apenas reconhece aos
lesados, genericamente, o direito à indemnização aos lesados por uma
violação.

Acresce, nos casos de responsabilidade civil por violação das regras


de um concurso para a celebração de um contrato se verifica uma
situação paralela aos casos de ruptura de negociações prevista no
artigo 227º nº1 do Código Civil, sob a epigrafe “Culpa na formação dos
contratos”, designadamente quanto às despesas de participação no
concurso (cfr. por todos, Paulo de Mota Pinto, “Interesse Contratual
Positivo”, vol.II, Coimbra Editora, 2008, p.1125 e ss e 1350 e ss).

E, como também refere o Digno Magistrado do Ministério Público (fls. 4


do Parecer), “ ao anular-se todo o procedimento e ordenar-se a
repetição do processo, sanando-se os vícios encontrados, não estamos
noutra fase que não a pré-contratual e, por conseguinte, a
responsabilidade civil emergente de actos praticados nesta fase deverá
ser regida pelas regras aplicáveis neste quadro. Nestes termos, não sendo
o caso absolutamente idêntico, impõe-se à evidência a doutrina do
Acórdão do STA supra citado, indemnizáveis neste âmbito, em que nos
situamos, da responsabilidade pré-contratual”.

Pode ainda dizer-se, no caso concreto, quanto ao pedido formulado


pela recorrente, que não vem alegado pela mesma, que tenha ficado
impossibilitada de concorrer a outros fornecimentos públicos, e que daí
tenha ocorrido a não obtenção de lucro, não estando, portanto,
verificado o nexo de causalidade entre a ilicitude cometida e os danos
invocados.

Finalmente, quanto ao pretendido reenvio prejudicial nos termos do


artigo 234º do TJCE, o mesmo improcede por manifesta inexistência de
qualquer dúvida sobre a aplicação de uma norma comunitária.

1.3. Qual o lugar da «perda de chance» no RRCEEPCP?

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Chegou agora o momento de perceber – ou pelo menos tentar identificar – o


lugar da «perda de chance» no novo RRCEEPCP. Fazendo um balanço da
jurisprudência que elenquei, pode desde já avançar-se que, em bom rigor, os
casos citados não aplicam um tradicional princípio da «perda de chance»
conforme desenvolvido nos ordenamentos jurídicos francês e italiano.
Não obstante, não podemos deixar de reconhecer o património genético
comum entre as decisões dos tribunais e a designada «perda de chance».
Com efeito, as decisões identificadas traduzem situações que são resolvidas
pelos nossos tribunais à luz de uma especial motivação funcional: a de garantir
algum tipo de tutela indemnizatória a casos em que é certo o ilícito mas não é
certo o nexo e, como tal, não é certo o dano.
São, todavia, casos em que não está propriamente em causa a aplicação
do instituto da responsabilidade civil ou a aplicação de um princípio de
«perda de chance» que atribui um valor autónomo à «chance», valor este que
é calculado em função da probabilidade de ocorrência do dano final.
Com efeito, no primeiro grupo de casos identificados, o tribunal atribui uma
indemnização por causa legítima de inexecução de sentença – que se
aproxima aos casos de indemnização por facto expropriativo. Nestas
situações, o tribunal deve, portanto, atribuir ao autor da ação uma
indemnização justa e não se trata aqui, portanto, de aplicar o disposto no n.º 3
do artigo 566.º do CC.
Não obstante o enquadramento dogmático adequado ser distinto daquele
usualmente reclamado pela figura da «perda de chance» – o da
responsabilidade civil – a verdade é que o resultado final (em termos de
contabilização do montante de indemnização a arbitrar) pode não ser
diferente do resultado a que se chegaria se fosse aplicado um princípio da
«perda de chance». Com efeito, os critérios de justiça a que o juiz deve lançar
mão para cálculo do montante de justa indemnização não são muito
distantes dos critérios de equidade que a aplicação do n.º 3 do artigo 566.º do
CC reclama.
Sublinhando a este propósito o que vem já sendo de há muito referido na
nossa doutrina, sobretudo na doutrina civilista, julgar segundo a equidade não
se confunde com o arbítrio. A equidade passa, portanto, por alcançar uma
solução justa para o litígio e, em meu entender, existem alguns critérios de

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 63

justiça que, neste domínio, o julgador poderá utilizar e que, numa palavra,
permitirão que o tribunal não venha a arbitrar indemnizações meramente
simbólicas. Neste contexto, o tribunal poderá basear-se nos custos em que o
autor incorreu para participar no procedimento e para propor a ação (no
caso em que o ilícito seja a violação de regra contida nas diretivas de
contratação pública, este quantum indemnizatório afigura-se um quantum
mínimo à luz do regime das Diretivas Recursos) e poderá ainda tomar-se em
consideração a probabilidade de ocorrência do dano final (mas não deve
fundar-se apenas nisso porque esta probabilidade é sobretudo relevante em
sede de responsabilidade civil), pode ainda atender-se ao tempo entretanto
decorrido ou mesmo ao lucro máximo espectável com a execução do
contrato (enquanto limite máximo de indemnização a arbitrar).
No segundo caso a que fiz referência o tribunal entendeu que as Diretivas
Recursos impõem uma nova forma de antever o nexo de causalidade, o qual
se bastará com a possibilidade real de ser o adjudicatário do contrato.
É certo que, em contratação pública, o princípio da perda de chance é
potencialmente útil para resolver os casos – muito comuns e frequentes – em
que existe a probabilidade ou a chance de, na ausência da decisão ilegal da
entidade adjudicante, o operador económico preterido vir a ser o
adjudicatário do contrato, mas em que essa chance ou probabilidade não
apresenta um grau de certeza suficiente para a não adjudicação ser
considerada um efetivo dano à luz das tradicionais regras de nexo de
causalidade. Este perfeito habitat para a aplicação da teoria da perda de
chance alia-se à redação das Diretivas Recursos (mais concretamente da
diretiva 92/13/CEE) onde se faz referência à «possibilidade real» de vencimento
do concurso.
Sucede que este normativo não se limita a referir que o nexo de
causalidade se basta, em contratação pública, pela existência de uma
probabilidade real de ser o adjudicatário do contrato. A letra da norma
acrescenta ainda que para o lesado ser ressarcido dos custos da proposta e
do procedimento, terá apenas que demonstrar que teria uma hipótese real de
ser o adjudicatário do contrato não fora a violação da norma cometida. A ser
uma regra inovadora no que respeita o nexo, esta norma terá de ser
considerada também uma regra inovadora a respeito do dano – limitado aos

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custos da proposta e do procedimento. Não me parece, portanto, que a


decisão do TCA Norte que referi aponte no sentido acertado quando sustenta
que a regra referida permite ultrapassar as dificuldades de prova da
adjudicação. Conforme já sustentei noutro lugar, tenho para mim que a regra
mencionada e, por maioria de razão, a norma ínsita no n.º 2 do artigo 7.º do
RRCEEPCP, faz depender uma especial indemnização – nos custos da
proposta e do procedimento – da prova desta possibilidade real. Por outras
palavras, o legislador comunitário não impõe o ressarcimento do interesse
contratual positivo quando fique apenas demonstrada a possibilidade real de
ter obtido o contrato7.
Quero com isto dizer que os grupos de casos que deixei identificados são,
sem dúvida, casos dignos de marca e que importa analisar e enquadrar mas
não considero que estas decisões sejam a amostra perfeita daquele que é (ou
será) o lugar da perda de chance no RRCEEPCP.
Da minha perspetiva, o princípio da «perda de chance» aplicável na
responsabilidade civil pode ser realmente relevante, considerando o âmbito
de aplicação objetivo e subjetivo do RRCEEPCP, nalgumas situações que não
foram, até hoje, decididas pelos tribunais administrativos superiores (pelo
menos tanto quanto é do meu conhecimento e considerando as decisões que
foram já publicadas) como sejam a responsabilidade civil por violação de
regra pré-contratual, quando o lesado pretenda ser ressarcido de todo o dano
sofrido – e não apenas dos custos da proposta e do procedimento; a
responsabilidade pela violação de regra relativa aos procedimentos
concursais para acesso a emprego público ou progressão na carreira, mais
uma vez quando o lesado pretenda ser ressarcido de todo o dano sofrido.
Aproveito para acrescentar que, nestes domínios, o direito público não
fornece muitos mais dados para além dos que já resultam do direito civil. Quer
isto dizer que, ao contrário dos casos de «expropriação de sentença» e de
aplicação das Diretivas Recursos, que claramente reclamam um regime
próprio de direito público, a problemática da aplicação da «perda de
chance» no RRCEEPC mantém-se a mesma que é discutida entre os civilistas.
Por isso, e apesar da publicação e entrada em vigor do RRCEEPCP, a magna

7
Sobre este tema veja-se o nosso A obrigação de indemnizar das entidades adjudicantes.
Fundamento e pressupostos, no prelo.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 65

questão permanece: será que o ordenamento jurídico português permite a


aplicação de um princípio de «perda de chance»?
Não tendo já tempo suficiente para detalhar e responder a esta questão,
resta-me deixar-vos algumas pistas sobre o que já tem sido defendido entre
nós a propósito desta matéria. Considerando em particular a posição que vem
sido assumida pela nossa doutrina, deve desde já dizer-se que a resposta
dada a esta questão tem sido maioritariamente negativa.
Veja-se, a título de exemplo, a posição já manifestada por Júlio Vieira
Gomes no sentido de que

“a doutrina da perda de chance não representa uma mera revisão do


conceito de dano e uma ampliação deste, mas constitui antes uma rutura, mais
ou menos “camuflada”, com a conceção clássica da causalidade. E mesmo
que porventura se deva, de jure condendo, questionar sobre a suficiência da
teoria da causalidade adequada, não se pode esquecer que a mesma foi
consagrada entre nós no artigo 563.º do Código Civil. Não se nos afigura
adequado introduzir, entre nós, de maneira tão dissimulada, um
reconhecimento da causalidade probabilística” 8.

Este foi também o sentido da opinião manifestada por Paulo Mota Pinto na
sua dissertação de doutoramento 9. Mais recentemente, e a propósito do
RRCEEPCP, o Conselheiro Cadilha adianta igualmente que não existe
“qualquer referência no direito positivo português à indemnização por perda
de chance”.
É certo que alguma doutrina parece aceitar que os pressupostos da
responsabilidade civil se moldem ou adaptem à figura da perda de chance
(seja considerando que da mesma resulta a elevação da chance a um dano
autónomo, seja propugnado que a mesma se adequa ao critério de
causalidade com respaldo no nosso atual enquadramento legislativo) 10. E que
8
Júlio VIEIRA GOMES, Sobre o dano da perda de chance in Direito e Justiça, vol. XIX, 2005 (mas
2007), tomo II (9-47), p. 38.
9
Paulo MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, II, Coimbra,
2009, p. 1106.
10
Veja-se, entre os primeiros, António CARNEIRO DA FRADA, Direito Civil –
Responsabilidade Civil – O método do caso, Almedina, 2ª Reimpressão, 2011, pp. 104-105; Rute
TEIXEIRA PEDRO, A Responsabilidade Civil do Médico – Reflexões Sobre a Noção da perda de
chance e a tutela do doente lesado, Coimbra, 2008, pp. 179 e ss, max. 383-386 e 446. Entre os
segundos, Rui CARDONA, Indemnização do interesse contratual positivo e perda de chance
(em especial na contratação pública), Coimbra, 2011, p. 360 e 320 (note-se que, em estudo
mais recente, o autor parece mitigar a posição anteriormente assumida e não rejeita a
possibilidade de a aplicação da perda de chance enquanto ponderação do nexo causal ser
mais do que a identificação de um destino a que se tenha chegado no nosso ordenamento, e

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 66

a jurisprudência dos nossos tribunais comuns já se inclinou no sentido de que,


em resposta a alguns problemas que resolvidos à luz do instituto da
responsabilidade civil afiguram-se de solução injusta, o princípio da “perda de
chance” ou “perda de oportunidade” “cabe claramente, dentro dos
princípios orientadores do nosso ordenamento jurídico-civil”11.
Todavia, e da minha parte, parece-me claro que a letra do RRCEEPCP não
permite alcançar conclusão diferente daquela que vem sendo sustentada
pela maioria da doutrina civilista e daquela que parece resultar da tendência
maioritária da nossa jurisprudência nos tribunais comuns12.
Não posso, porém, olvidar que a matéria da responsabilidade civil
extracontratual do Estado e das demais pessoas coletivas públicas é
tradicionalmente campo fértil para algum ativismo judicial. Pense-se no que
sucedeu, ainda no âmbito da aplicação do velhinho DL 48051, a propósito do
pressuposto da culpa e do desenvolvimento, através do labor jurisprudencial,
da designada culpa do serviço (pensado para os casos em que não se
revelava viável demonstrar a existência de um comportamento culposo
individualmente determinado) ou até no desenvolvimento, também de origem
jurisprudencial, de uma verdadeira presunção de culpa aplicável em geral
aos casos de responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Não me parece, pois, que será de afastar por completo a possibilidade de
os nossos juízes virem a desenvolver a aplicação de um princípio de «perda de
chance à portuguesa» aplicável aos casos em que não seja viável preencher
cabalmente as exigências do nexo de causalidade, considerando-se,
nalgumas situações, suficiente a existência de uma probabilidade razoável.
Este ativismo judicial pode, porém, tornar-se perigoso e ariscado.

configure a proposta de um caminho que se pode vir a percorrer ― A perda de chance –


Análise comparativa e perspectivas de ordenação sistemática, in O Direito, ano 144, 2012, pp.
56 e 57).
11
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19 de junho de 2012, P. 4765/10.
Também parecendo aceitar este princípio orientador, Acórdão do Tribunal da Relação do
Porto, de 10 de setembro de 2012, P. 275/09.0
12
A jurisprudência civilista não tem apresentado uma visão unânime sobre o tema.
Atualmente parece prevalecer a posição que encontrou vencimento no Acórdão do STJ de 29
de abril de 2010, segundo a qual “(…) a mera perda de chance irreleva para efeitos
indemnizatórios por, só por si, não se enquadrar no princípio da causalidade adequada, e a
indemnização não ter, como regra, função punitiva”. Também no sentido de que a mera perda
de chance não tem a virtualidade para fundamentar uma pretensão indemnizatória, Acórdão
do STJ de 26 de outubro de 2010, P. 1410/04.0. Dando conta da divergência na jurisprudência
civilista sobre o tema veja-se Cfr. Rui CARDONA, A perda de chance…, cit., p. 30.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 67

Os perigos que antevejo relacionam-se sobretudo com um excessivo


esbatimento das condições do nexo de causalidade e do dano, ao ponto de
o instituto da responsabilidade civil «deixar de ser quem é» e o sismo de que
falei há pouco apresentar-se de magnitude superior a 8 na escala de Richter.

Termino a minha exposição com uma nota. É sempre um gosto vir a esta
casa. Sinto como um enorme privilégio poder ter estado aqui hoje a partilhar
algumas das minhas conclusões sobre este tema. Agradeço portanto aos
professores responsáveis pela organização desta conferência (nas pessoas da
Profª. Doutora Carla Amado Gomes e do Prof. Doutor Miguel Assis Raimundo)
pelo convite que me foi formulado e pela oportunidade que me têm dado –
por tantas e tão variadas vezes – para discutir estes e outros temas de Direito
Administrativo.

Agradeço ainda a todos vós, pela presença e, sobretudo, pelo interesse no


tema.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 69

O EXERCÍCIO OBRIGATÓRIO DO DIREITO DE REGRESSO 1

Diana Ettner

Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa


Advogada

I. O tema: apresentação e enquadramento; II. O significado das alterações


introduzidas pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro; III. Âmbito pessoal; IV. A obrigação
de indemnizar do agente público e o direito de regresso do Estado; IV.1. O conteúdo
da obrigação de regresso; IV.2. O exercício do direito de regresso pelo funcionário
contra o Estado; V. A efetivação judicial do direito de regresso; VI. Reflexões finais

I. O tema: apresentação e enquadramento

1. Sob o título “Exercício obrigatório do direito de regresso”, o tema a tratar


nesta intervenção destina-se a analisar e debater o significado de duas das
alterações mais significativas introduzidas pela Lei n.º 67/2007, de 31 de
Dezembro, que aprova o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do
Estado e das Demais Entidades Públicas (RRCEE), no regime da
responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários e
agentes públicos por danos decorrentes de ações ou omissões adotadas no
exercício da função administrativa e por causa desse exercício. São elas, (i) o
alargamento da responsabilidade solidária do Estado aos casos de culpa
grave e (ii) a consagração da obrigatoriedade do exercício do direito de
regresso pelo Estado sobre os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes.

1
A presente intervenção tem por base a dissertação de Mestrado apresentada em Janeiro de
2012 na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, intitulada “A
responsabilidade civil dos titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos por danos
decorrentes do exercício da função administrativa”, aqui se enunciando apenas algumas das
suas ideias principais, de forma necessariamente breve e sumária.

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Para a abordagem desta matéria, tomamos como ponto de partida a


afirmação de VIEIRA DE ANDRADE, segundo a qual uma das matérias mais
relevantes e controvertidas para a caracterização dos regimes de
responsabilidade “é a da repartição da responsabilidade entre o Estado (ou
outras instituições públicas) e as pessoas através das quais actua nas situações
concretas da vida”2.
Com efeito, a forma como em cada momento é resolvida a questão da
repartição de responsabilidade entre as entidades públicas e os seus agentes
por danos causados a terceiros no exercício de funções públicas, assume uma
importância fundamental no estudo do regime da responsabilidade civil
extracontratual do Estado, quer determinando o sentido da evolução desse
instituto, quer conformando a função do mesmo dentro do quadro
constitucional e legal em que está inserido.

2. No que respeita ao sentido da evolução do regime da responsabilidade civil


extracontratual do Estado pelo exercício da função administrativa, o que
constatamos é que as linhas fundamentais dessa evolução no direito europeu
e, também, no direito português, correspondem, justamente, a
desenvolvimentos do esquema de repartição de responsabilidade entre o
Estado e os seus agentes quando estejam em causa danos causados no
exercício de funções públicas.
Neste sentido, identificamos três fases essenciais nessa evolução que, não
sendo estanques entre si, coexistem e concretizam diferentes funções
prosseguidas hoje por aquele instituto.

 Desde logo, uma primeira fase em que a responsabilidade subjetiva do


funcionário releva para efeitos de determinar a responsabilidade do Estado.
Correspondendo verdadeiramente ao surgimento de regimes de
responsabilidade do Estado (em Portugal, na segunda metade do séc. XIX,
com o Código Civil de 1867), a responsabilidade dos agentes públicos
individualmente considerados que atuam ao serviço do Estado serve, acima
de tudo, como forma de imputar a responsabilidade à pessoa coletiva

2
VIEIRA DE ANDRADE, A Responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função
administrativa na nova lei da responsabilidade civil extracontratual do Estado, in
Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 137, n.º 3951, Julho-Agosto 2008, p. 362.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 71

pública e não tanto como fundadora de um dever de indemnizar próprio


daqueles.
 Depois, uma segunda fase em que a responsabilidade do Estado passa
também a fundar-se em circunstâncias objetivas, para a determinação das
quais irreleva a responsabilidade do titular do órgão, funcionário ou agente
individualmente considerado. Está em causa o surgimento das teorias da
responsabilidade pelo risco e por atos lícitos, no âmbito das quais as
entidades públicas passam a responder, também, com base na
responsabilidade dita administrativa.
 Por fim, uma terceira fase em que a responsabilidade subjetiva do
funcionário releva não apenas para determinar a responsabilidade da
entidade pública, mas também para fundar um princípio de
responsabilidade civil pessoal do agente público. Trata-se de uma etapa
mais recente, ditada por novas e diferentes preocupações e destinada a
garantir a responsabilização pessoal dos funcionários, entendida esta como a
repercussão na sua esfera patrimonial das consequências das atuações que,
praticadas de forma mais censurável no exercício de funções públicas,
provocaram danos a particulares. É da autonomização desta terceira fase
no direito português que cuidará a nossa intervenção.

3. No que respeita à função desempenhada pelo instituto da responsabilidade


civil extracontratual do Estado dentro do quadro constitucional e legal em que
se insere, o que cabe assinalar é que a solução adotada por cada sistema
jurídico quanto à repartição de responsabilidade entre o Estado e o agente
público fornece a pista essencial para caracterizar essa função, de tal modo
que daí pode resultar uma função mais garantística do pagamento de
indemnizações aos particulares lesados – como é exemplo o sistema espanhol
– ou mais responsabilizadora da atuação dos servidores públicos em nome da
promoção da eficiência administrativa.
É precisamente o reforço da feição mais penalizadora das atuações ilícitas
e culposas dos servidores públicos que se verifica na evolução do Decreto-Lei
n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, para o RRCEE de 2007, e que nos leva
a dizer que o regime assume hoje uma função clara de promoção da

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 72

eficiência administrativa através do reforço da diligência e cuidado dos


servidores públicos, cuja concretização serve de base a este tema.

II. O significado das alterações introduzidas pela Lei 67/2007, de 31 de


Dezembro

4. Como referimos no enquadramento do nosso tema, o mesmo tem por base


as duas inovações maiores introduzidas pela Lei n.º 67/2007, de 31 de
Dezembro, no regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelo
exercício da função administrativa regulado no RRCEE, que são, como já foi
identificado, a extensão da regra da responsabilidade solidária do Estado aos
casos de atuações ilícitas dos titulares de órgãos, funcionários e agentes
praticadas com culpa grave, consagrada no art. 8.º do RRCEE, e a previsão
expressa da obrigatoriedade do exercício do direito de regresso pela entidade
pública contra aqueles, estabelecida no art. 6.º do RRCEE.
Assim formuladas, correspondem ambas a concretizações de regras
constitucionais que decorrem da articulação entre o disposto no art. 22.º e nos
n.ºs 1 e 4 do art. 271.º da CRP: o princípio da responsabilidade solidária do
Estado com o titular de órgão, funcionário e agente e a regra do direito de
regresso do Estado contra o funcionário público.
No que respeita à respetiva consagração no RRCEE, aquilo que
pretendemos demonstrar é que, em ambos os casos, as novas regras vêm
acentuar e contribuir para a autonomização de um princípio de
responsabilidade civil pessoal dos titulares de órgãos, funcionários e agentes
públicos.

5. Quanto ao alargamento da responsabilidade solidária do Estado aos casos


de culpa grave, esta constatação, porventura óbvia, decorre da
circunstância de, por esta via, reforçar-se a dimensão da regra da
solidariedade que visa reforçar a eficiência e eficácia do aparelho
administrativo, através do alargamento das situações em que a lei permite ao
lesado demandar diretamente o agente público causador do dano.
Com efeito, da articulação entre o disposto no art. 22.º e no n.º 1 do art.
271.º da CRP, entendemos serem dois os fundamentos maiores da

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 73

consagração constitucional da regra da responsabilidade solidária: em


primeiro lugar, a salvaguarda do direito ao efetivo ressarcimento dos
particulares lesados; em segundo lugar, a promoção da eficiência
administrativa.
Quanto à salvaguarda do direito ao efetivo ressarcimento dos lesados,
decorre do efeito de extensão à pessoa coletiva pública da responsabilidade
pela atuação ilícita e culposa do agente público que subjaz à aplicação do
regime da solidariedade, do qual deriva que a entidade pública pode ser
demandada por uma atuação ilícita e culposa de um funcionário seu, sozinha
ou conjuntamente com este e que, nessa medida, o lesado pode optar por
acionar um ou outro, ou ambos, consoante o que se lhe afigurar mais
vantajoso.
No que respeita à promoção da eficiência administrativa, valor decorrente
do princípio da prossecução do interesse público, consagrado no n.º 1 do art.
266.º da CRP, manifesta-se sob duas ideias fundamentais.
Desde logo – e por contraposição a um regime de responsabilidade
exclusiva do Estado –, uma ideia de estímulo à diligência dos servidores
públicos. Nesta dimensão, decorrendo do regime da solidariedade a
atribuição da responsabilidade por factos ilícitos não só ao Estado, como
também à pessoa física causadora do dano, daí resulta uma sempre possível
individualização externa3 do funcionário causador do dano, com uma clara
função pedagógico-educativa e de incentivo a uma atuação correta e
diligente daquele.
Depois – agora por contraposição a um regime de responsabilidade
exclusiva do agente público – uma ideia de criação de condições para a
existência de um corpo de servidores públicos eficiente e produtivo, que evite
o perfil do “administrador timorato” ou “formalista-burocrata”4. Com efeito, se
em lugar da regra da responsabilidade solidária do Estado estivesse
consagrada a responsabilidade exclusiva do agente público por atos ilícitos
praticados no exercício da função administrativa, daí poderia decorrer que,
na sua atuação ao serviço do Estado, este assumisse uma contenção na sua

3
E não apenas interna, dentro do serviço público, para efeitos de responsabilização disciplinar.
4
Expressões de VIEIRA DE ANDRADE (Panorama Geral do Direito da Responsabilidade “Civil” da
Administração Pública em Portugal”, in La Responsabilidad Patrimonial de los Poderes Públicos, III
Coloquio Hispano-Luso de Derecho Administrativo, Valladolid, Marcial Pons, 1999, p. 44).

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 74

capacidade de iniciativa ou de decisão, de modo a reter em margens de


risco suportáveis a possibilidade de uma responsabilização futura. Não sendo
esta uma conduta desejável para uma Administração Pública que se
pretende eficiente e produtiva, a consagração da regra da solidariedade visa
justamente acautelar esse resultado.
Nesta medida, entendemos que a dimensão da regra da solidariedade que
sai reforçada com a alteração introduzida no RRCEE é aquela que visa conferir
maior eficácia e diligência do aparelho administrativo. Isto na medida em que,
enquanto garantia do direito ao efetivo ressarcimento dos particulares lesados,
a nova regra do RRCEE apenas em certa medida confere uma maior
proteção ao particular lesado do que a que já era concedida pelo DL 48051,
ao abrigo do qual, em casos de atos ilícitos praticados com culpa grave pelo
funcionário, seria o Estado a responder exclusivamente perante o lesado (sem
prejuízo do direito de regresso que poderia exercer posteriormente), o que já
conferia ao particular a possibilidade de demandar o património
teoricamente menos sujeito a risco de insolvência.

6. No que se refere à consagração da obrigatoriedade do exercício de direito


de regresso, o mesmo tipo de raciocínio pode ser levado a cabo, para o que
cabe antecipar uma posição de princípio quanto a este ponto, que é a de
que, em nosso entender, a obrigatoriedade do exercício do direito de regresso
neste âmbito decorre, desde logo, do n.º 4 do art. 271.º da CRP.

Com efeito, aderindo-se neste ponto ao entendimento de JORGE MIRANDA e


RUI MEDEIROS sobre a questão5, a posição defendida assenta na ideia de que o
princípio da responsabilidade dos funcionários e agentes públicos é um
princípio autónomo, consagrado no n.º 1 do art. 271.º da CRP, que como tal
cabe ser efetivado.
Ora, se assim é, então admitir que o direito de regresso possa não ter um
caráter obrigatório, equivaleria a admitir que a responsabilidade dos titulares
de órgãos, funcionários e agentes pudesse não ser efetivada, contrariando o
princípio geral contido no n.º 1 do art. 271.º da CRP, nos casos em que fosse o
Estado a suportar o valor da indemnização. É que se a responsabilidade do
5
Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p.
648.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 75

Estado é sempre solidária com os funcionários públicos, nos termos do art. 22.º
CRP, a única forma de a efetivar nos casos em que seja o Estado a suportar
esse pagamento, é através do direito de regresso, razão pela qual este terá de
ser encarado como de exercício obrigatório.
Deste modo, é o direito de regresso previsto no n.º 4 do art. 271.º da CRP,
que garante a efetivação, no quadro de um regime de responsabilidade
solidária do Estado com os seus agentes, do princípio da responsabilidade dos
servidores públicos consagrado no n.º 1 daquele mesmo preceito, de onde
resulta que o mesmo tenha necessariamente de ser de exercício obrigatório.
Assim sendo, a consagração legal da obrigatoriedade do exercício do
direito de regresso no RRCEE, releva na medida em que indiscutivelmente
eleva à categoria de dever a efetivação da responsabilidade do titular de
órgão, funcionário e agente pelos atos ilícitos e culposos praticados,
garantindo, pela necessidade de acionar mecanismos legais destinados a
suprir o seu não exercício, a concretização do princípio da responsabilidade
pessoal dos funcionários públicos.

7. Portanto, as novas regras quanto à repartição da responsabilidade entre o


Estado e os seus funcionários introduzidas no RRCEE vieram significar, mais do
que o reforço da proteção dos cidadãos lesados quanto à garantia do
pagamento das suas indemnizações, a evolução no sentido de um sistema
que visa tornar mais efetiva a responsabilidade dos agentes individuais que
exercem funções ao serviço do Estado quando causam danos a cidadãos, em
nome de uma Administração Pública mais eficiente e diligente, bem como de
uma mais justa e equitativa distribuição dos encargos públicos, nos casos de
danos causados de forma especialmente censurável pelos servidores públicos.
Sendo este o princípio, não é possível ficar alheio às suas possíveis
consequências. Com efeito, como reconhece CARLA AMADO GOMES6, a nova
solução do RRCEE pode provocar “uma certa convulsão no âmbito da
estrutura administrativa”, seja por força da maior exposição a que os servidores
públicos passam a estar sujeitos, seja em face da consagração expressa da
obrigatoriedade do direito de regresso.

6
A responsabilidade pessoal e institucional do dirigente da Administração Pública no quadro
da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, in Textos Dispersos sobre Direito da Responsabilidade Civil
Extracontratual das Entidades Públicas, AAFDL, Lisboa, 2010, p. 181-182.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 76

Ora, é justamente numa tentativa de encontrar um sistema equilibrado,


justo e eficiente de responsabilidade civil pública que este tema prossegue,
procurando defender uma concretização deste princípio da responsabilidade
civil dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que, na sua aplicação, seja
capaz de integrar os diversos interesses em presença.
Para procedermos a este exercício, analisaremos três pontos diferenciados:
 Em primeiro lugar, com um intuito, acima de tudo, de clarificação,
veremos quem são, hoje, os “funcionários e agentes” abrangidos por estas
novas determinações legais;
 Em segundo lugar, procuramos analisar qual deve ser o conteúdo da
obrigação de regresso dos titulares de órgão, funcionários e agentes;
 Em terceiro lugar, colocaremos algumas questões a propósito da
efetivação judicial da responsabilidade dos titulares de órgãos, funcionários
e agentes.

III. Âmbito pessoal

8. Neste ponto, são duas as questões que colocamos: a primeira, a de saber


quem são à luz das alterações legais recentemente introduzidas em matéria
de vínculos e remunerações na Administração Pública, os “titulares de órgãos,
funcionários e agentes”; a segunda, a de concretizar a medida da extensão
do respetivo regime aos trabalhadores, titulares de órgãos sociais,
representantes legais e auxiliares de pessoas colectivas de direito privado,
determinada pelo n.º 5 do artigo 1.º do RRCEE.

9. Quanto à primeira das questões colocadas, o tema assume relevância em


face da entrada em vigor da nova legislação aplicável aos regimes de
vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem
funções públicas, aprovada pela Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro
(“LVCR”), que revogou o anterior Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de Dezembro.
Com efeito, pondo de lado os titulares de órgãos, relativamente a cuja
caracterização o novo regime não tem qualquer implicação, a distinção entre
funcionários e agentes públicos, que para todos os efeitos é aquela que, nesta
matéria, é acolhida na Constituição e no RRCEE e que tinha plena

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 77

equivalência no regime legal definido pelo Decreto-Lei n.º 427/89, de 7 de


Dezembro, deixou de valer no âmbito da LVCR.
Assim, atualmente a LVCR não alude às categorias de funcionário e
agente administrativo, antes passando a consagrar como modalidades da
constituição da relação jurídica de emprego público, nos termos do seu artigo
9.º, a nomeação, o contrato de trabalho em funções públicas e, em casos
delimitados, a comissão de serviço, pelo que impõe-se um esforço de
adequação entre os dois regimes e a formulação de uma proposta quanto ao
entendimento da questão.
A proposta que fazemos, que difere da que já foi apresentada por CARLOS
CADILHA7, assenta nas seguintes ideias essenciais:

Em primeiro lugar, parece-nos que a utilização da expressão “titulares


de órgãos, funcionários e agentes” como uma fórmula genérica, empregue
na Constituição e em diversos preceitos do RRCEE, tem a potencialidade de
reportar-se às situações mais comuns de relação funcional com o Estado,
pelo que, transpondo este argumento para o domínio de aplicação da
LVCR, isto significa que as categorias de funcionário e agente devem
corresponder às modalidades mais frequentes de constituição de relações
jurídicas de emprego público ao abrigo daquele regime jurídico, que são a
nomeação e o contrato de trabalho para o exercício de funções públicas;
 Em segundo lugar, tendo agora por base as características subjacentes
às noções de funcionário e agente administrativo, explicitadas no Parecer
da Procuradoria-Geral da República n.º 28/1999 8, a verdade é que as
mesmas continuam a encontrar-se no âmbito das modalidades de relação
jurídica de emprego público estabelecidas na LVCR.
Nesta perspetiva, todos os elementos imputados à noção de funcionário
são detetados nas situações de relação jurídica de emprego público
constituídas por tempo indeterminado, ou seja, por nomeação definitiva ou
por contrato por tempo indeterminado: a permanência, reportada agora à
integração em carreira, nos termos do artigo 40.º da LVCR; a
profissionalidade, patente, por exemplo, no regime de garantias de

7
Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas
Anotado, Coimbra Editora, 2008, pág. 44.
8
Publicado na 2.ª série do Diário da República, n.º 28, de 2 de Fevereiro de 2001, pp. 2304 e ss.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 78

imparcialidade consagrado nos artigos 25.º a 30.º da LVCR; a subordinação


a um regime específico de direito público, revelado por um conjunto de
direitos e deveres predefinidos estatutariamente.
Quanto à noção de agente, parece-nos poder ser reconduzida às
situações de nomeação provisória, contrato a termo resolutivo, certo ou
incerto e comissão de serviço, atenta a ausência, nestes três casos, da
característica da permanência.
No que respeita aos “demais trabalhadores ao serviço das entidades
abrangidas”, aí poderão caber as situações em que é admissível a
celebração de contratos individuais de trabalho.

10. Passando agora para a segunda questão colocada neste ponto,


relacionada com o n.º 5 do art. 1.º do RRCEE, está em causa um preceito que
estende a aplicação do regime da responsabilidade por danos decorrentes
do exercício da função administrativa à responsabilidade civil de pessoas
coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, titulares de órgãos
sociais, representantes legais ou auxiliares, por ações ou omissões que adotem
no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por
disposições de direito administrativo, relativamente ao qual cabe colocar a
questão de saber se fica abrangida por essa extensão a regra da
obrigatoriedade do exercício do direito de regresso.
Dando resposta negativa a esta questão, VIERA DE ANDRADE defende que a
obrigatoriedade do exercício do direito de regresso não vale para as pessoas
coletivas privadas9, pelo menos para as que não sejam entidades
administrativas. Também GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA realçam que é
questionável o alargamento do âmbito subjetivo dos titulares de direito de
regresso a entidades privadas que não revistam a natureza de entidades
administrativas10.
Reconhecendo os argumentos usados em abono da posição contrária,
manifestamo-nos, nesta matéria, em favor da posição que defende que o
regime da obrigatoriedade do exercício do direito de regresso deve aplicar-se

9
Cfr., quanto aos argumentos utilizados pelo Autor, A Responsabilidade por danos decorrentes
do exercício da função administrativa na nova lei da responsabilidade civil extracontratual do
Estado, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 137, n.º 3951, Julho-Agosto 2008, p. 365.
10
Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição revista, Coimbra Editora,
Coimbra, 2010, p. 855.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 79

às pessoas coletivas de direito privado 11 quando adotem ações ou omissões


no exercício de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de
direito administrativo, o que sustentamos com base nas razões que passamos a
expor.
Em primeiro lugar, é apenas uma parte da atividade destas entidades
privadas que está sujeita à aplicação desta regra, justamente aquela em que
se manifesta o exercício de poderes públicos ou a aplicação de princípios e
normas de direito administrativo, pelo que não estará em causa uma restrição
desproporcionada da autonomia e gestão patrimonial dos particulares.
Estamos perante o exercício de funções suscetíveis de afetar os particulares da
mesma forma que atuações das entidades públicas com a mesma natureza 12
e, nessa medida, merecedoras do mesmo tipo de tratamento ao nível do
regime de responsabilidade.
Em segundo lugar, é o próprio RRCEE que determina esta equiparação de
regimes quanto às ações ou omissões adotadas por pessoas colectivas de
direito privado e seus trabalhadores no exercício de prerrogativas de poder
público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo,
sem estabelecer qualquer distinção quanto às regras que devem valer para
efeitos dessa equiparação.
Refere-se ainda o ponto de vista de CARLA AMADO GOMES e MIGUEL ASSIS
RAIMUNDO a este propósito, quando justificam a extensão da regra do exercício
obrigatório do direito de regresso às entidades privadas com base, entre
outros, em argumentos de ordem financeira, na medida em que, estando em
causa o exercício, por uma entidade privada, da função administrativa, a
mesma receberá dinheiros públicos ou de origem pública, que justificarão a
aplicação daquela regra à situação em apreço13.

11
Igualmente neste sentido, CARLA AMADO GOMES, em razão da idêntica valência do argumento
que aponta para o incremento da diligência e cuidado que advém da consagração do direito
de regresso obrigatório (A Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração por Facto
Ilícito, in Textos Dispersos sobre Direito da Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades
Públicas, AAFDL, Lisboa, 2010, p. 55).
12
Neste sentido, vale a ideia de que um dos princípios constitucionais em que se ancora o
princípio da responsabilidade subjetiva dos funcionários ou agentes do Estado é o da proteção
jusfundamental do cidadão (GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição…., II, p. 852).
13
Topicamente – e a quatro mãos… - sobre o novo Regime da Responsabilidade Civil
Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, in Textos Dispersos sobre Direito da
Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas, AAFDL, Lisboa, 2010, p. 263.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 80

IV. A obrigação de indemnizar do agente público e o direito de regresso do


Estado

11. Como anunciado, a questão seguinte a tratar respeita a determinar o


conteúdo da obrigação de indemnizar do agente público, quando exercido o
direito de regresso do Estado contra ele. Associada a esta questão e
diretamente ligada à resposta que lhe dermos, abordaremos o problema de
saber se pode haver direito de regresso do agente público contra o Estado.

Vejamos cada um destes problemas separadamente.

IV.1. O conteúdo da obrigação de regresso

12. Considerando o tema da nossa intervenção, a questão que se coloca


respeita a saber se o direito de regresso do Estado contra o funcionário deve
corresponder a um reembolso integral do montante pago pela entidade
pública ao lesado ou se, de outro modo, Estado e servidor público devem
repartir entre si o montante da indemnização.
Sobre o problema da repartição da dívida em casos de solidariedade
passiva, estabelece o art. 516.º do Código Civil (CC) que, na falta de
disposição em contrário presume-se que os co-devedores participam em
partes iguais na dívida; o afastamento desta presunção deve decorrer da
específica relação jurídica existente entre os obrigados, da qual pode resultar
que essas partes não sejam iguais ou até que apenas um deles deva suportar
a integralidade da obrigação. No que especificamente concerne ao direito
de regresso no caso de responsabilidade civil com pluralidade de
responsáveis, o n.º 2 do artigo 497.º do CC (responsabilidade por factos ilíctos)
e o n.º 2 do artigo 507.º do CC (responsabilidade pelo risco) estipulam regras
específicas, no primeiro caso estabelecendo que o direito de regresso existe
na medida das culpas de cada um dos responsáveis, que se presumem iguais
e no segundo determinando que, não havendo culpa de nenhum dos
responsáveis, a obrigação de indemnização reparte-se 14, devendo apenas os
culpados responder, no caso contrário.

14
Referindo-se a uma situação muito específica, o n.º 2 do artigo 507.º do CC estabelece que
a obrigação de indemnização se reparte “de acordo com o interesse de cada um na utilização
do veículo”.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 81

Assim, a questão de saber de que modo se reparte a obrigação de


indemnizar entre o Estado e os titulares de órgãos, funcionários e agentes, no
âmbito da responsabilidade pelo exercício da função administrativa, tem três
respostas teoricamente possíveis: a primeira, a de caber ao Estado a
integralidade do pagamento da indemnização devida; a segunda, a de
responder o funcionário pela totalidade dessa obrigação; a terceira, a de
ambos os responsáveis responderem pelo montante em causa.

13. Antecipando desde já a nossa resposta quanto a esta questão,


entendemos que a melhor solução passa por defender que ao funcionário
não cabe, necessariamente e em todas as situações, responder pela
totalidade da indemnização devida ao lesado15, o que passamos já a justificar.

Em primeiro lugar, porque quanto a nós, esse é o entendimento mais


consentâneo com a natureza de princípio de responsabilidade subjetiva dos
funcionários ou agentes do Estado que o art. 271.º da CRP desempenha, de
forma autónoma face ao princípio da responsabilidade direta do Estado
consagrado no artigo 22.º da CRP.
Em segundo lugar, porque a defesa de uma posição favorável à
responsabilidade do funcionário pela totalidade da obrigação de indemnizar,
nos casos em que este responde conjuntamente com o Estado, não se afigura
adequada a resolver, do ponto de vista dos valores constitucionais
subjacentes, o confronto entre a regra da responsabilidade solidária, resultante
do art. 22.º da CRP, e o princípio da prossecução do interesse público,
consagrado no art. 266.º da CRP. Com efeito, como é assente na doutrina e
jurisprudência, designadamente em resultado da discussão travada durante
longo tempo em torno da admissibilidade da restrição da responsabilidade
dos funcionários públicos em casos de culpa leve, a consagração do princípio
solidariedade que resulta do art. 22.º da CRP não se impõe de forma absoluta
ou acima de qualquer outro valor constitucionalmente consagrado.
Na realidade, em conformidade com o regime associado à natureza de
direito fundamental análogo a um direito, liberdade e garantia do art. 22.º da
CRP, é justamente tendo em consideração a necessidade de conjugação

15
Entendimento diverso é sufragado, designadamente, por Carlos CADILHA (Regime…, p. 139).

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 82

desse princípio com outros valores constitucionalmente tutelados 16 que é


genericamente admitida a legitimidade da restrição do conteúdo da
responsabilidade solidária, num sentido, até, de desresponsabilização total dos
funcionários públicos em casos de actuações menos censuráveis.
Apesar de datados e circunscritos, os pressupostos deste debate devem ser
chamados a aplicar-se na situação em apreço, no âmbito da qual as
preocupações em confronto não deixam de partilhar da mesma natureza.
Com efeito, as mesmas razões que fundamentam a legitimidade da solução
que isenta de responsabilidade o agente público quanto a atuações
causadas com culpa leve, devem impor-se quando se trata de definir o
conteúdo da obrigação de indemnizar que cabe ao funcionário nos termos
da articulação entre o art. 22.º e o art. 271.º da CRP.
Não estando em causa, in casu, afastar a responsabilidade dos
funcionários, do que se trata, contudo, é de defender que a medida da
indemnização devida ao lesado, que lhes caiba suportar, deve ser
determinada no quadro da necessária conjugação entre os fundamentos que
estão na base da consagração do princípio da solidariedade e as
preocupações decorrentes do princípio da prossecução da eficácia e
eficiência do interesse público, concretizados à luz dos valores subjacentes ao
princípio da proporcionalidade
E neste plano, afigura-se que uma solução que afirme, em todos os casos, a
responsabilidade dos funcionários pela totalidade da indemnização, não
responde à necessidade de articulação daqueles princípios, na medida em
que desconsidera as circunstâncias específicas da atuação do funcionário
público. Concretizando esta ideia, afigura-se, pois, que um entendimento em
favor da responsabilidade integral do funcionário pelo dano causado, é
apenas defensável por quem tome por relevante um único fundamento para
a regra da solidariedade – a garantia do pagamento da indemnização –, já
não para quem, como nós, associe a esse outro fundamento, de igual
relevância – a promoção da eficiência do aparelho administrativo.

16
JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra Editora, Coimbra,
2005, p. 215. Também GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA referem que a responsabilidade se
conexiona com “outros princípios jurídico-constitucionalmente estruturantes”, como o princípio
do Estado-de-direito, o princípio da constitucionalidade e legalidade e da ação do Estado e o
princípio da igualdade (Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição
revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 425).

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 83

De resto, acrescente-se ainda que a analogia com a regra do n.º 2 do


artigo 507.º do CC para determinar a atribuição da quota-parte de
responsabilidade a cada um dos obrigados solidários por atuações cometidas
no exercício da função administrativa, sempre poderia ser questionada, na
medida em que tal preceito corresponde a um aspeto do regime civilístico da
responsabilidade solidária que disciplina as relações internas entre os co-
obrigados nos casos em que a situação de responsabilidade que recai sobre
várias pessoas se funda no risco, sendo que, neste caso, pelo menos a
responsabilidade do agente público será exclusivamente subjetiva.

14. Aqui chegados, cabe então perguntar como se determina a quota-parte


da indemnização que deve ser reclamada pelo Estado dos seus agentes
públicos em sede de ação de regresso.
Neste ponto, entendemos que não existe uma proporção única, passível de
ser aplicada como regra em todos os casos em que se verifique uma situação
de responsabilidade conjunta do Estado e do funcionário por danos causados
em resultado da prática de factos ilícitos no exercício da função
administrativa. Essa proporção deve ser aferida caso a caso, ao abrigo de
uma ideia de equidade e em função das circunstâncias que geraram a
situação de responsabilidade civil.
Cite-se, a este propósito, a solução espanhola, que não só prevê no
Régimen Juridico de las Administraciónes Públicas y del Procedimento
Administrativo Común (RJAPPAC) um procedimento administrativo específico
para efetivar o direito de regresso contra o funcionário, como estabelece
expressamente no n.º 2 do artigo 145.º, que sejam ponderados diversos critérios
para determinar o montante a reembolsar pelo funcionário.
Dito isto, resta-nos avançar alguns critérios que a ponderação do montante
da obrigação de indemnizar dos funcionários deve levar em conta, seja
através da sua expressa consagração legal, seja no quadro da concretização
de uma ideia de equidade17:

17
Também MARGARIDA CORTEZ se pronunciou sobre este tema, num sentido semelhante ao que
vimos defendendo. Com efeito, após defender a tese da obrigatoriedade do exercício do
direito de regresso, escreve a Autora que “discricionariedade existirá apenas quanto à
determinação do valor a reclamar, que deverá resultar de uma ponderação de vários factores,
a saber: o resultado danoso produzido, a existência ou não de intencionalidade, a
responsabilidade profissional do agente ao serviço da Administração e a sua relação com a
produção do resultado danoso” (Contributo para uma reforma da lei da responsabilidade civil

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 84

Em primeiro lugar, o grau de censurabilidade da atuação ilícita e


danosa do funcionário, num critério que se traduz em atribuir relevância ao
grau de culpa com que actuou o agente causador de dano, valorando
diferentemente o dolo ou a culpa grave. Saliente-se que, no quadro da
legislação geral aplicável à responsabilidade civil por factos ilícitos, o art.
494.º do Código Civil manda atender, na determinação da indemnização
devida, a circunstâncias específicas relacionadas com a situação da
pessoa individual causadora do dano, como o grau de culpa da atuação
ilícita, habilitando, em casos de mera culpa, à sua fixação com recurso à
equidade.
Em segundo lugar, o conteúdo funcional do cargo desempenhado
pelo titular de órgão, funcionário ou agente causador do dano. Com efeito,
das funções legalmente atribuídas ao funcionário causador do dano pode
decorrer uma maior ou menor extensão da sua responsabilidade pessoal,
seja em vista do tipo de interesses que lhe caiba assegurar, seja em vista dos
danos potencialmente causáveis pelo tipo de actividade que prossegue ou
pelos meios que tem ao seu dispor para a executar.
Em terceiro lugar, a eventual contribuição de outras pessoas para a
actuação danosa. Neste campo, assume relevância determinar, por
exemplo, em que medida uma determinada atuação resulta da falha de
toda uma unidade orgânica pela qual apenas um funcionário concreto
responde18.
Em quarto lugar, a conduta profissional do funcionário causador do
dano, designadamente ponderando-se o número de anos ao serviço da
Administração, o seu desempenho e eventuais situações de reincidência.
Em quinto lugar, o valor do dano causado a situação económica do
agente responsável. Estando em causa o exercício da função
administrativa do Estado, que exige a tomada de decisões relativamente a
interesses de avultado valor económico, é razoável que se pondere, na
determinação da parte da responsabilidade pela qual o funcionário deve
responder, a medida em que esse valor é passível de ser coberto pelo
da Administração, in Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado – Trabalhos preparatórios
da reforma, Ministério da Justiça, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 260).
18
Esta situação distingue-se da designada falta de serviço, no âmbito da qual não é possível
imputar a nenhum funcionário em concreto a responsabilidade pela atuação danosa.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 85

património de uma pessoa individual que atua ao serviço da pessoa


colectiva pública.

15. A ultimar este ponto, deixa-se uma referência final indispensável a um


acontecimento que espelha bem a importância e centralidade deste tema
para a configuração de um regime justo, equilibrado e eficiente de
responsabilidade civil extracontratual do Estado pelo exercício da função
administrativa. Trata-se do veto presidencial à Proposta de Lei n.º 56/X,
relativamente ao qual esta problemática fundamentou uma das mais fortes
objeções colocadas pelo Presidente da República ao referido diploma.

Com efeito, pode ler-se na declaração presidencial, referindo-se aos atos


praticados no exercício da função administrativa com dolo ou culpa grave,
que “os actos em causa podem corresponder a vultuosos interesses violados,
sem que o funcionário ou dirigente possa, de alguma forma, eximir-se à sua
participação na decisão, sob pena de violar os seus deveres, sendo que não
há qualquer controlo sobre a proporcionalidade entre os interesses que o
funcionário representa – os interesses do Estado – e a sua capacidade
financeira para ressarcir os particulares lesados.”
Ora, é justamente a defesa acesa da aplicação do princípio da
proporcionalidade a esta matéria que está na base da argumentação que
defendemos, aplicação essa que não nos parece carecer, contudo, de
expressa determinação legal para a sua efetivação, na medida em que
corresponde à concretização de imperativos constitucionais do nosso sistema
de responsabilidade, que devem prevalecer também nesta sede.

IV.2. O exercício do direito de regresso pelo funcionário contra o Estado

16. Diretamente relacionada com a questão de saber se o funcionário deve,


em todos os casos, reembolsar integralmente a indemnização paga pelo
Estado ou se são admissíveis critérios nessa equação, está a questão de saber
se o funcionário pode exercer direito de regresso contra a Administração. É
que se se entender que ao funcionário não cabe necessariamente responder
pelo todo da indemnização, deve daí decorrer que, nos casos em que tenha

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suportado uma indemnização num montante superior ao devido, cabe ser


reembolsado.
Uma vez mais, a doutrina assume posicionamentos diversos quanto a este
tema.

Assim, sem ligar expressamente aqueles dois problemas, entende PAULO


OTERO que pode existir direito de regresso tanto da Administração contra os
agentes público como destes em relação à entidade pública 19. Discordando
deste entendimento, escreve PAULO VEIGA E MOURA que tal posição “além de
não autorizada constitucionalmente nem prevista legalmente, esquece que o
fundamento da solidariedade da responsabilidade dos actos ilícitos e culposos
praticados pelos funcionários e agentes não é a protecção destes, mas sim a
salvaguarda do direito ao efectivo ressarcimento dos lesados e a promoção
da eficácia do aparelho administrativo”20. Neste sentido, entende o Autor,
referindo-se ao direito de regresso consagrado no n.º 4 do artigo 271.º da CRP,
que “literalmente ali se consagra a existência desse direito”.21
Temos para nós que a melhor posição é aquela que admite o direito de
regresso nos dois sentidos, como passamos a explicar.

17. Com PAULO VEIGA E MOURA, concordamos que, entre os fundamentos da


solidariedade da responsabilidade dos atos ilícitos e culposos praticados pelos
funcionários e agentes, estão a salvaguarda do direito ao efectivo
ressarcimento dos lesados e a promoção da eficácia do aparelho
administrativo.
Mais. Com PAULO VEIGA E MOURA concordamos que se no artigo 22.º da CRP
se afirmara a solidariedade da responsabilidade entre o Estado e os
funcionários, nenhuma razão justificaria a necessidade de se prever o regresso
por parte de quem ressarciu o lesado, uma vez que esse direito é co-natural à
responsabilidade, nos termos dos artigos 497.º e 524.º do CC22.

19
Cf. Responsabilidade Civil …, p. 501. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS aderem a esta posição de
PAULO OTERO (A Constituição…, Tomo III, p. 648
20
A Privatização…, p. 191.
21
A Privatização…, p. 190.
22
Também GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA sustentam que “Ao estatuir, no ar. 22.º, uma
responsabilidade solidária do Estado e dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes,
pressupõe-se, nos termos gerais das obrigações solidárias, a possibilidade de direito de regresso
(art. 271.º-4) do Estado e demais entidades públicas” (Constituição…, Volume I, p. 435).

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 87

Onde já não concordamos com aquele Autor é quando justifica a previsão


autónoma do direito de regresso do Estado contra o funcionário, que consta
do n.º 4 do artigo 271.º da CRP, com a opção do legislador por um sistema em
que apenas há direito de regresso nesse caso.
É que, embora a letra do preceito constitucional apenas se refira ao direito
de regresso a exercer pelo Estado, não nos parece que o faça no sentido de
atribuir esse direito apenas à pessoa coletiva pública, de tal modo que, não
fora esta norma, esse direito não lhe assistiria. Pelo contrário, o n.º 4 do artigo
271.º da CRP parece partir do reconhecimento da existência do direito de
regresso como “co-natural à responsabilidade solidária” para, a partir daí,
dirigir um comando ao legislador no sentido de o regular, de molde a garantir
que o princípio da responsabilidade dos funcionários que decorre do n.º 1 do
artigo 271.º da CRP é cumprido.
Ou seja, na nossa perspetiva, não é o n.º 4 do artigo 271.º da CRP a fundar o
direito de regresso do Estado contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e
agentes mas sim o próprio regime de solidariedade, que rege a
responsabilidade conjunta daqueles dois entes por atuações praticadas no
exercício das suas funções administrativas, nos termos do disposto no art. 22.º e
no n.º 1 do art. 271.º da CRP, e que tem como um dos traços do respetivo
regime, o direito de regresso em favor do co-devedor que satisfaça
integralmente a prestação devida. Desde modo, o direito de regresso decorre
do regime da solidariedade da responsabilidade que a Constituição e a lei
invocam e que, nessa medida, pressupõem.
Assim sendo, deve daqui resultar que o direito de regresso também pode ser
exercido pelo agente público contra o Estado, de acordo com o regime da
solidariedade da respetiva responsabilidade, sempre que aquele tenha
satisfeito uma indemnização em valor superior ao que é por si devido.

V. A efetivação judicial do direito de regresso

18. Chegamos assim ao último ponto da nossa intervenção, dedicado a


colocar algumas questões em torno das implicações processuais da
consagração da obrigatoriedade do exercício do direito de regresso,
especialmente no que respeita ao disposto no n.º 4 do art. 8.º do RRCEE.

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Para esse efeito, partimos do cenário relevante para a análise da


efetivação judicial do direito de regresso pelo Estado, que é o da
condenação da entidade pública em ação de responsabilidade intentada
pelo particular lesado contra o Estado com fundamento em responsabilidade
por ato ilícito praticado no exercício de funções administrativas, para dizer que
a mesma pode terminar de duas formas quanto à demonstração do grau de
culpa da atuação ou omissão ilícita do titular de órgão, funcionário ou agente
que esteja na base dessa condenação: pode terminar com a demonstração
do dolo ou culpa grave da atuação do agente público, caso em que, nos
termos do disposto nos n.ºs 1 a 3 do art. 8.º do RRCEE, o Estado goza de direito
de regresso contra os titulares de órgãos, funcionários e agentes; ou pode
terminar sem a demonstração desse dolo ou culpa grave, aplicando-se a
presunção de culpa consagrada no n.º 2 do art. 10.º, caso em que a ação
deve prosseguir nos termos do disposto no n.º 4 do art. 8.º do RRCEE.
Ou seja, apenas podendo haver lugar ao exercício do direito de regresso
pelo Estado contra os titulares de órgãos, funcionários e agentes no caso de
atuações ou omissões ilícitas destes praticadas com dolo ou culpa grave, o
que se verifica é que a forma como o Estado pode exercer esse direito de
regresso e assim fazer repercutir sobre o agente a indemnização paga, está
dependente da concreta configuração da causa de pedir pelo lesado, autor
na competente ação judicial e do fundamento da decisão de condenação
do Estado no pagamento da indemnização.
A nossa análise procura levantar algumas questões circunscritas ao disposto
no n.º 4 do art. 8.º do RRCEE, que constitui uma solução nova neste âmbito,
apenas introduzida em sede de discussão na especialidade na Assembleia da
República da Proposta de Lei n.º 56/X, que veio a dar origem à Lei n.º 67/2007,
de 31 de Dezembro. Tratando-se de uma norma de cariz eminentemente
processual integrada num diploma de dimensão substantiva, a análise que
pretendemos fazer visa abordar em que medida a sua consagração
representa a tentativa de garantir a efetivação do princípio da
responsabilidade civil dos titulares de órgãos, funcionários e agentes.

19. Assim, começando pelos pressupostos de aplicação do regime


consagrado no n.º 4 do art. 8.º do RRCEE, entendemos que está em causa um

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regime de aplicabilidade delimitada aos casos em que, na sentença de


condenação do Estado, não tenha sido apurado o concreto grau de culpa
com que atuou o titular de órgão, funcionário ou agente causador dos danos.
Daí decorre, consequentemente, o seguinte:
Em termos de situação típica, o n.º 4 do art. 8.º do RRCEE tem em vista
os casos em que o fundamento da condenação do Estado reside numa
atuação ou omissão ilícita do agente público que, no que respeita ao
requisito da culpa, assenta na presunção estabelecida no n.º 2 do art. 10.º
do RRCEE23, para as quais, aliás, o próprio preceito remete. Relevante será,
portanto, a presunção de culpa e não o facto de se tratar de culpa leve,
de tal modo que, podendo haver culpa leve demonstrada e não
presumida, essa situação afastará irremediavelmente o exercício do direito
de regresso pelo Estado ou outra entidade pública.
Sendo esta a situação típica, deve afastar-se do âmbito de aplicação
do n.º 4 do art. 8.º do RRCEE uma outra hipótese de condenação do Estado
com fundamento em culpa leve presumida do titular de órgão, funcionário
ou agente, resultante das situações em que, não se logrando demonstrar
em juízo o dolo ou culpa grave da atuação de um funcionário público mas
apenas a sua ilicitude, há ainda assim lugar à aplicação da presunção de
culpa leve, nos termos do n.º 2 do artigo 10.º do RRCEE. Ora, nos casos em
que a presunção de culpa se aplique por afastamento do dolo ou culpa
grave, estes já terão sido apurados judicialmente (concluindo-se pela sua
inexistência no caso concreto), não devendo mais colocar-se a questão do
direito de regresso.

20. Passando agora para a aplicação do preceito, trata-se de ponto


relativamente ao qual têm sido apontadas diversas críticas à norma, no
sentido de colocar em causa a sua operacionalização.
Com efeito, começando por destacar a proximidade entre a solução
contida no n.º 4 do art. 8.º do RRCEE e o regime consagrado no art. 329.º do
CPC, CARLOS CADILHA24 e CARLA AMADO GOMES25 apontam para dificuldades na
aplicação deste preceito, essencialmente relacionadas com a ausência de
23
Manifestando-se contra a opção de restringir o n.º 4 do artigo 8.º do RRCEE às situações de
presunção de culpa do n.º 2 do artigo 10.º do RRCEE, cf. MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO
DE MATOS (“Responsabilidade Civil Administrativa – Direito Administrativo Geral, Tomo III”, Dom
Quixote, Maio de 2008, p. 37).

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previsão de chamamento do funcionário, no n.º 4 do art. 8.º do RRCEE, e as


implicações do alcance do caso julgado, que impediriam aplicação da
norma do RRCEE.
Tratando-se, sem dúvida, de críticas significativas, as mesmas não devem,
contudo, deixar de merecer alguma ponderação de outra ordem, estruturada
em torno de duas ideias essenciais: a primeira, a de que o funcionamento
deste regime não deve ser lido à luz dos pressupostos de aplicação de
mecanismos de intervenção de terceiros previstos no CPC, que podem sempre
aplicar-se enquanto tal; a segunda, a de que, em qualquer caso, não seria o
mecanismo previsto no artigo 329.º do CPC a estar na base deste preceito:
Quanto à primeira ideia, considerando que o regime processual que rege a
tramitação de uma ação de indemnização contra o Estado decorre do
próprio CPC, no caso de uma acção administração comum (art. 42.º do
CPTA), ou do CPTA, no caso de uma ação administrativa especial 26, a que é
aplicável supletivamente o disposto na lei de processo civil (art. 1.º do CPTA),
sempre poderão ser usados os mecanismos processuais previstos no CPC,
designadamente quanto à intervenção de terceiros. Daqui decorre, pois, que
a aplicabilidade do disposto no n.º 4 do art. 8.º do RRCEE não deve ficar
dependente da previsão dos pressupostos de aplicação de outros regimes do
CPC, os quais, na medida em que sempre poderão aplicar-se enquanto tal,
não devem ser encarados como fundamento desta regra do RRCEE.
Isto visto, também não nos parece isenta de dúvidas a afirmação da
alegada inspiração do n.º 4 do art. 8.º do RRCEE pelo n.º 3 do art. 329.º do
CPC.
Com efeito, entende-se que só aparentemente existe similitude entre as
duas normas, já que a situação que despoleta o regime subjacente a cada
uma é substancialmente diferente: o preceito do CPC regula uma situação de
intervenção principal provocada de um terceiro e destina a aplicar-se aos
casos em que existe uma obrigação solidária entre dois devedores e a
prestação é exigida na totalidade apenas a um deles; já o disposto no n.º 4 do
24
Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas
Anotado, Coimbra Editora, 2008, p. 104 e 105 e 144 ss.
25
A responsabilidade pessoal e institucional do dirigente da Administração Pública no quadro
da Lei 67/2007, de 31de Dezembro, in Textos Dispersos sobre Direito da Responsabilidade Civil
Extracontratual das Entidades Públicas, AAFDL, Lisboa, 2010.
26
No caso de uma cumulação de pedidos com um pedido de impugnação do ato, por
exemplo.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 91

art. 8.º do RRCEE destina a aplicar-se numa situação em que, pelo contrário,
não existe (ainda) uma obrigação solidária entre dois devedores, na medida
em que a responsabilidade do Estado fundada em ações ou omissões ilícitas
cometidas com culpa leve pelos agentes públicos, que constitui a situação
típica subjacente à sua aplicação, pressupõe a responsabilidade exclusiva da
entidade pública.
Neste sentido, o regime de intervenção de terceiros mais adequado a
aplicar-se à situação prevista pelo n.º 4 do art. 8.º do RRCEE – e que, repita-se,
não é afastado pelo referido preceito – sempre pareceria ser o da intervenção
acessória provocada, consagrado nos artigos 330.º a 333.º do CPC, que
pressupõe duas relações jurídicas materiais distintas: a que é discutida entre o
autor e o réu e a que decorre da acção de regresso ou “ulterior acção de
indemnização” (cfr. parte final do n.º 4 do artigo 332.º do CPC), que

fundamenta o chamamento do terceiro27/28.

21. Finalmente, refira-se ainda que, ao prever a prossecução da ação para


efeitos de apuramento do grau de culpa do titular de órgão, funcionário ou
agente e “em função disso, do eventual exercício de regresso” por parte da
entidade pública, a parte final do n.º 4 do art. 8.º do RRCEE não parece
dispensar a necessidade de a ação de regresso ser proposta autonomamente,
após o decurso desta fase processual entre o Estado e o agente público.
Apesar de se reconhecerem as vantagens, em termos de economia
processual, de um entendimento em sentido diferente, parece-nos, contudo,
que o que esta fase processual visa é apenas o apuramento do grau de culpa
da atuação do agente público responsável, para efeitos de poder ser
intentada ação de regresso contra ele, num paralelismo com o regime que

27
Assim o refere SALVADOR DA COSTA (Os Incidentes da Instância, 5.ª edição Actualizada e
Ampliada, Almedina, Coimbra, Setembro de 2008, p. 138).
28
Com relação a este aspecto escreveu LEBRE DE FREITAS que deve existir uma relação de
prejudicialidade entre a ação em que o chamamento tem lugar e a ação em que,
posteriormente, o réu faz valer o seu direito à indemnização contra o terceiro, de tal modo que
naquela segunda ação estarão apenas em discussão os restantes pressupostos substantivos do
direito à indemnização, que não constituíram objecto da primeira (Chamamento…p. 770). No
mesmo sentido, SALVADOR COSTA refere que entre a relação jurídica da titularidade do autor e do
réu e do terceiro basta existir uma conexão de “relativa dependência consubstanciada no
facto de a pretensão de regresso do réu contra o chamado se apoiar no prejuízo decorrente
da perda da demanda” (Os Incidentes…, p. 141).

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 92

decorreria se estivesse em causa a situação prevista no n.º 3 do art. 8.º do


RRCEE.
Entendimento diferente resultaria se o regime atual tivesse previsto, como
alguns Autores reclamam, a obrigatoriedade de demanda da entidade
pública e do agente causador do dano sempre que se verificassem os
pressupostos da solidariedade, consagrando o litisconsórcio necessário passivo
nestas situações29. Não sendo essa a opção, daí decorre que o agente público
não tenha necessariamente de estar presente no processo que determinou a
condenação do Estado para poder ser exercido o direito de regresso contra
ele.

22. Portanto, e tendo em consideração o que acabamos de dizer, cabe


assentar em que o regime consagrado no n.º 4 do art. 8.º do RRCEE pretende ir
mais além do que o regime processual aplicável já hoje permite, sob pena de
se revelar desnecessária a sua consagração num diploma de cariz substantivo
como este.
Nesse sentido, o que o regime subjacente ao n.º 4 do art. 8.º do RRCEE
parece procurar é o equilíbrio entre a regra que faz presumir a culpa leve na
prática de actos jurídicos ilícitos – ou, dito de outro modo, a regra que
determina a desnecessidade de demonstrar o concreto grau de culpa com
que atuou um dado servidor público para haver lugar a condenação do
Estado – e a determinação da obrigatoriedade do exercício do direito de
regresso, de modo a que a entidade pública não fique impedida de exercer
esse direito de regresso quando seja condenada nos termos do n.º 1 do art. 7.º
do RRCEE, por efeito da aplicação da presunção de culpa leve estabelecida
no n.º 2 do art. 10.º do RRCEE30.
Aparentemente linear nos seus pressupostos, reconhecemos, contudo, que
a experiência futura de aplicação deste regime, ou uma eventual clarificação

29
Neste sentido, PAULO VEIGA E MOURA, A Privatização…, cit., pág. 198.
30
CARLA AMADO GOMES refere-se deste modo ao regime do n.º 4 do artigo 8.º do RRCEE,
destacando a sua dimensão predominantemente garantística: “para efeitos de ressarcimento
do particular, vale a presunção de culpa leve; para efeitos de regresso fica em aberto a
possibilidade de apuramento de um grau de superior de responsabilidade do agente…” (A
Responsabilidade Civil Extracontratual da Administração por Facto Ilícito, in Textos Dispersos
sobre Direito da Responsabilidade Civil Extracontratual das Entidades Públicas, AAFDL, Lisboa,
2010, p. 73).

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 93

legislativa, poderão ser de grande utilidade para garantir o respetivo


funcionamento com clareza.

VI. Reflexões finais

Em jeito de conclusão, deixamos as seguintes reflexões finais.

Primeira: o RRCEE veio concretizar uma função autónoma de


responsabilização pessoal dos titulares de órgãos, funcionários e agentes por
atuações funcionais ilícitas e culposas destes, patente no alargamento da
responsabilidade solidária aos casos de culpa grave e na consagração da
regra da obrigatoriedade do exercício do direito de regresso, procurando
garantir que estes respondem pessoalmente pelas acuações mais censuráveis
praticadas no exercício de funções públicas.
Segunda: a concretização desta função deve, contudo, ter em linha de
conta as exigências do princípio de proporcionalidade, bem como uma ideia
de prossecução do interesse público assente em duas dimensões: a do
incremento da diligência e cuidado dos agentes públicos tendo em vista
autuações ponderadas e refletidas dos agentes públicos mas também a da
promoção da eficiência e eficácia da máquina administrativa, mediante o
incentivo à capacidade de iniciativa, ação e inovação desses mesmos
agentes públicos.
Terceira: o trabalho a desenvolver daqui para a frente deve ser o de
contribuir para um sistema justo, adequado e eficiente, que alie estas duas
vertentes, aceitando aquele que é destacado por VIEIRA DE ANDRADE como o
grande desafio dos juristas nesta matéria: assegurar um regime geral coerente
das relações de responsabilidade entre os poderes públicos, os privados que
realizam tarefas públicas e os particulares lesados31.

voltar ao início do texto

31
Panorama Geral do Direito da Responsabilidade «Civil» da Administração Pública em
Portugal, in La Responsabilidad Patrimonial de los Poderes Públicos, III Colóquio Hispano-Luso de
Direito Administrativo, Valladolid, 1997, pág. 57.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 95

A responsabilidade dos estabelecimentos hospitalares integrados no


Serviço Nacional de Saúde por atos de prestação
de cuidados de saúde

Cláudia Monge
Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Advogada

I. Responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual? 1. Enquadramento;


2. A prestação de cuidados de saúde como relação obrigacional complexa: i) o
direito a prestações de saúde e o artigo 64.º da Constituição; a obrigação principal; ii)
deveres específicos e deveres de proteção; II. A natureza pública e a natureza
privada da relação de prestação de cuidados de saúde: dualidade de regimes?
Responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual: concurso de títulos
de imputação? III. Fundamentos de responsabilidade objetiva?

I. Responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual?

1. Enquadramento

Como é consabido, a prestação de cuidados de saúde pode gerar


responsabilidade civil, penal, profissional e deontológica, sendo os mesmos
factos suscetíveis de determinar a aplicação de diferentes regimes e de
diferentes sanções, que coexistem entre si. A presente perspetiva de análise,
integrada na conferência dedicada aos Novos temas da responsabilidade
civil extracontratual das entidades públicas, incidirá naturalmente sobre a
responsabilidade civil.
Não obstante assim enquadrada, no âmbito desta conferência, a matéria a
versar, não gostaríamos de deixar de apresentar algumas considerações, a
título de reflexões, sobre a natureza, extracontratual ou contratual, da
responsabilidade civil dos estabelecimentos hospitalares.
Na verdade, temos vindo a questionar e por em crise a natureza
extracontratual da responsabilidade civil dos estabelecimentos hospitalares
pela prestação de cuidados de saúde.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 96

A discussão doutrinária sobre a aplicação do regime da responsabilidade


civil contratual ou do regime da responsabilidade civil extracontratual é uma
questão que tem vindo a ser colocada também, e aliás em primeira instância,
no âmbito de relações jurídicas de direito privado1.
Esta discussão aplicada à responsabilidade médica assume pertinência,
pois os danos que possam resultam da prestação de cuidados de saúde
podem traduzir-se: i) em violação de direitos de personalidade, como o direito
à vida, o direito à integridade física, o direito à saúde, o direito à integridade
moral e o direito à reserva da intimidade da vida privada, violação essa que
conduz à aplicação do regime de responsabilidade civil extracontratual; ii)
mas simultaneamente em violação de obrigações e deveres contratuais,
como a violação da obrigação principal de prestação de cuidados de saúde
adequados, de acordo com as legis artis e em tempo útil, ou a violação de
deveres como o dever de prestar informação, de obter consentimento prévio
e esclarecido ou o dever de sigilo, o que significa aplicar o regime da
responsabilidade civil contratual, por violação de um contrato, celebrado
com o médico ou com o estabelecimento de saúde.
A prestação de cuidados de saúde traduz uma relação obrigacional
complexa2 e nela incidem deveres que são deveres legais e que são
igualmente deveres contratuais.
Assim, é admissível considerar que há responsabilidade civil contratual, por
violação de um contrato, celebrado com o médico ou com o
estabelecimento de saúde e que ocorrerá responsabilidade civil
extracontratual ou delitual por violação de direitos de personalidade (violação
do direito à vida, à integridade física, à integridade moral, à saúde, à reserva
da intimidade da vida privada).

1
Sobre a natureza da responsabilidade civil dos médicos no regime jurídico-privado, vide
Carlos Ferreira de Almeida, Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico, in Direito da
Saúde e Bioética, Lisboa, 1996, pp. 75-120.
2
Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Coimbra, 2011, p. 74,
quando descreve que: «numa compreensão globalizante da situação jurídica creditícia,
apontam-se, ao lado dos deveres de prestação – tanto deveres principais de prestação, como
deveres secundários –, os deveres laterais («Nebenpflichten»), além de direitos potestativos,
sujeições, ónus jurídicos, expectativas jurídicas (…)», sendo certo que «todos os referidos
elementos se coligam em atenção a uma identidade de fim e constituem o conteúdo de uma
relação de carácter unitário e funcional: a relação obrigacional complexa, ainda designada
relação obrigacional em sentido amplo ou, nos contratos, relação contratual». Sobre o
enquadramento e efeitos dos deveres de proteção, vide Manuel António de Castro Portugal
Carneiro da Frada, Contrato e deveres de protecção, 1994.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 97

No quadro de uma relação obrigacional complexa como a de prestação


de cuidados de saúde, teremos simultaneamente violação de deveres
contratuais e violação de deveres legais. A prestação de cuidados de saúde
que não seja pronta, em tempo útil ou de acordo com as leges artis, implica
violação de uma obrigação contratual e simultaneamente determinará a
violação do direito à integridade física, do direito à saúde e, em situações mais
gravosas, do direito à vida. Assim, como outras situações jurídicas que
entendemos que devem ser reconhecidas no contexto da relação jurídica de
prestação de cuidados de saúde como uma relação obrigacional complexa,
entendamos a sua fonte como a lei ou o contrato, como o dever de sigilo, ou
o dever de informação, ou o dever de obter um consentimento prévio, livre e
esclarecido, todos esses deveres traduzem-se também na proteção de direitos
de personalidade e direitos fundamentais. No caso do dever de sigilo, a
proteção do direito à reserva da intimidade da vida privada; o consentimento,
a proteção do direito à integridade moral, na expressão da sua autonomia e o
dever de informação como acessório, quer, por um lado, ao consentimento
prévio, quer, por outro, naquilo que é designado na doutrina alemã por
esclarecimento terapêutico3 na própria adequação da prestação principal,
na continuidade dos cuidados, na prescrição médica e medicamentosa.
Há, assim, um conjunto de situações jurídicas ativas e passivas que
entendemos que devem ser apontadas como tendo um conteúdo
obrigacional, como gerando deveres específicos e a violação de deveres
específicos e não genéricos. Tal conduz à afirmação de que se trata de
responsabilidade contratual e à aplicação do regime de responsabilidade
contratual e não da responsabilidade extracontratual4.

3
Cfr. Klaus Ulsenheimer, Arztstrafrecht in der Praxis, 4. ed., Heidelberg, 2008, p. 101. Sustenta
Ulsenheimer que devem ser compreendidas, no esclarecimento médico, três espécies: a) o
esclarecimento terapêutico (“esclarecimento garantia”); b) o esclarecimento sobre o
diagnóstico; c) o esclarecimento sobre o risco (esclarecimento sobre a intervenção e o
percurso) (ibid.). O esclarecimento sobre o diagnóstico e esclarecimento sobre o risco são duas
formas de designado esclarecimento da autodeterminação, ao passo que o esclarecimento
terapêutico, ou “esclarecimento garantia” como explica o Autor, integra o próprio tratamento
médico, através da «comunicação de regras terapêuticas de comportamento» (ibid.). Assim, o
esclarecimento terapêutico realiza ou executa a prestação principal, de cuidados de saúde.
4
A propósito de relações jurídicas privadas e no sentido da afirmação da responsabilidade
civil por o ato ou omissão do médico como obrigacional em virtude da incidência de deveres
específicos, vide Pedro Romano Martinez, Responsabilidade Civil Por Acto ou Omissão do
Médico - Responsabilidade Civil Médica e Seguro de Responsabilidade Civil Profissional, in
Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Vol. II, Coimbra, 2011,
p. 479.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 98

Esta discussão tem sido feita também na jurisdição comum, perante


relações jurídicas de direito privado, atenta também a referida violação de
direitos de personalidade5 6.
Esta reflexão e a pré-compreensão de que a responsabilidade deve ser tida
como contratual são assim deixadas malogradamente quando somos
chamados a versar sobre um tema de responsabilidade civil extracontratual.
O que nos parece suceder, como aliás sucede no direito privado, no Direito
Civil, é, na verdade, um concurso de títulos de imputação ou um concurso de
pretensões e essa é também uma matéria que tem trazido muito controvérsia
ao Direito Civil e que deve ser chamada ao âmbito de responsabilidade civil,

5
A propósito da ponderação da natureza contratual ou extracontratual, vide os seguintes
acórdãos, a título meramente exemplificativo, com destaque para a jurisprudência do Supremo
Tribunal de Justiça:
acórdão de 22 de maio de 2003, Processo n.º 03P912, disponível em
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7aa8c2208c52660080256d42003
7cef6?OpenDocument&Highlight=0,03P912,
acórdão de 11 de julho de 2006, Processo n.º 06A1503, disponível em

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/dbd3ebb5d9e32a82802571b200
4da5d5?OpenDocument,
acórdão de 18 de setembro de 2007, Processo n.º 07A2334, disponível em
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2050c89d5f01d87e802573610033
8009?OpenDocument,
acórdão de 4 de março de 2008, Processo n.º 08A183, in

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/46ae68362fd8d614802574020042
4479?OpenDocument,
acórdão de 17 de dezembro de 2009, Processo n.º 544/09.9YFLSB, in

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d206ad6794706b18802576a1003
8d4ec?OpenDocument,
acórdão de 1 de julho de 2010, Processo n.º 398/1999.E1.S1, disponível em

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/815d40917ade315080257753005
a9a93?OpenDocument,
acórdão de 15 de dezembro de 2011, Processo n.º 209/06.3TVPRT.P1.S1, disponível em

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/63396cb57f4db6948025797d0037
3f36?OpenDocument,
acórdão de 17 de dezembro de 2012, Processo n.º 02A4057, disponível em

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ee9e0243560de02380256d33006
38b1d?OpenDocument.
6
Analisada a jurisprudência da jurisdição comum em matéria de responsabilidade médica,
cumpre notar que subsiste jurisprudência que, mesmo nas situações em que nos autos se conclui
pela inequívoca existência de um contrato de prestação de serviços médicos, parece
pretender aplicar o regime da responsabilidade civil extracontratual de modo a assim afastar o
regime da presunção da culpa (que é, na verdade, presunção da ilicitude e da culpa, como
bem explica o Professor António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito
das Obrigações, Tomo III, Coimbra, 2010, pp. 378-379) do artigo 799.º do Código Civil.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 99

pois não nos esqueçamos que a responsabilidade civil é um instituto jurídico 7,


não tem ramo, tem tido o seu desenvolvimento no Direito Civil e tem sido
empregue noutros ramos do Direito e aqui, por excelência, num diploma de
Direito Público.
Chegando à conclusão de que há um concurso de títulos, a opinião
doutrinária que entendemos de seguir é a que sustenta que o próprio lesado
pode escolher o título a empregar e escolherá o título que seja mais favorável 8.
No caso de regime público, quando a relação é uma relação jurídico-
administrativa, temos hoje, como quadro do título de imputação por
responsabilidade extracontratual, o regime da Lei n.º 67/2007, de 31 de
dezembro, que é um diploma muito evoluído em vários aspetos e que veio
resolver alguns problemas que a responsabilidade médica em
estabelecimentos hospitalares vinha a colocar (não resolveu todos, mas
minimiza alguns, em benefício daquela que é a tutela do lesado).
Esta dualidade tem de ser analisada e questionada, quer no plano do
Direito Público, quer no âmbito do Direito Civil e assume, no plano dogmático,
com progressiva pertinência a dúvida quando à necessidade e adequação
da solução legislativa de dualidade dos títulos de imputação por
7
Como descreve Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil, I, Introdução, Fontes do Direito,
Interpretação da lei, Aplicação das leis no tempo, Doutrina geral, 4.ª ed., Coimbra, 2012, p. 924,
um instituto civil é um «conjunto concatenado de normas e de princípios que permite a
formação típica de modelos de decisão».
8
Cf. António Silva Henriques Gaspar, A responsabilidade civil do médico, Colectânea de
Jurisprudência, Ano III, 1.º volume, 1978, quando, a páginas 345, descreve: «a conduta do
médico que se traduz na violação de um contrato que o liga ao doente, pode, ao mesmo
tempo, ofender direitos absolutos deste; em tais casos há uma coincidência entre as duas
formas de responsabilidade, podendo o lesado optar por uma ou outra, conforme os seus
interesses, demandando o médico com base nos princípios que lhe forem mais favoráveis – em
matéria de prescrição (artigo 498º e 309º), de prova da culpa (art. 487º, n.º 1 e 799º, n.° 1), de
actos praticados por pessoas que o médico utilizou como auxiliares (artigo 500º, n.º 2 e 800º, n.º1,
todos do Código Civil)».
Não pode ser aceite a interposição de duas ações, «não parece de aceitar a existência
de duas ações», como afirmam Jorge Figueiredo Dias/Jorge Sinde Monteiro, Responsabilidade
Médica em Portugal, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 332, 1984, p. 40.
Como descreve ÁLVARO DIAS «importa clarificar que do que se trata não é de um
concurso de acções gozando de uma total autonomia, mas de “uma única acção, a que
corresponde no plano material um único direito, que tem como objectivo unitário o
ressarcimento do dano, mas que pode, isso sim, ser fundamentada em diversas normas”...» (cfr.
João Álvaro Dias, Procriação assistida e responsabilidade médica, Boletim da Faculdade de
Direito, Studia Iuridica, 21, Coimbra, 1996, página 233). Sem desconsiderar que, como descreve
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, que «sob a perspectiva da posição relativa das partes processuais, o
concurso de pretensões conforma-se para o autor como uma alternatividade entre várias
pretensões, pois que basta a fundamentação de uma dessas pretensões para assegurar a
procedência da acção, e para o réu como uma cumulação de fundamentos de
improcedência, pois a acção só é improcedente se o forem todas as pretensões concorrentes»
(Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, O concurso de títulos de aquisição da prestação, Estudo sobre a
dogmática da pretensão e do concurso de pretensões, Coimbra, 1988, p. 347).

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 100

responsabilidade civil por facto ilícito, contratual e extracontratual 9, uma vez


que o regime da obrigação da indemnização é um regime comum, nos
termos dos artigos 562.º e seguintes do Código Civil. Não temos por certo que,
uma reforma do Código Civil, se incidisse sobre o instituto da responsabilidade
civil, manteria a solução da dualidade entre responsabilidade civil contratual e
responsabilidade civil extracontratual.
A segunda perplexidade a confessar ou reflexão a fazer é a de que,
entendida a prestação de cuidados de saúde como uma relação
obrigacional complexa, na obrigação principal de cuidados de saúde e num
conjunto de deveres acessórios e de deveres de proteção, ela vai conduzir-
nos a um lugar-comum, porquanto a adequação dos cuidados de acordo
com as leges artis, o dever de informação, o dever de consentimento, o dever
de sigilo, os deveres de segurança, o dever de correção na escolha
terapêutica,…, todos os deveres que integram o conteúdo substantivo da
prestação de cuidados de saúde são iguais, quer a relação jurídica seja uma
relação privada ou uma relação jurídico-administrativa. Tal constatação
conduz à afirmação de que as situações jurídicas ativas e passivas no seio de
uma relação de prestação de cuidados de saúde, os deveres correspetivos
das Partes, são, na sua substância, iguais. E depois o que é que temos? Dois
regimes substantivos de responsabilidade civil distintos, público e privado, e
regimes adjetivos e jurisdições distintos.
O feixe comum de situações jurídicas ativas e passivas gera este paradoxo:
temos direitos e deveres comuns e regimes substantivos e regimes adjetivos
distintos, com jurisdições distintas, comum e administrativa.
A circunstância de hoje o modelo de prestação de cuidados de saúde
pública ser, cada vez mais, assente numa lógica contratual, agudiza este
paradoxo.

9
Veja-se Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume I, Introdução.
Da constituição das obrigações, 9.ª ed., Coimbra, 2010, p. 292, quando descreve que: «o nosso
Código tratou separadamente estas duas categorias de responsabilidade nos arts. 483.º e ss. e
798.º e ss., ainda que tenha sujeitado a obrigação de indemnização delas resultante a um
regime unitário (arts. 562.º e ss.)». Certo é que «há elementos de unidade entre uma e outra,
entre a responsabilidade contratual e a aquiliana: em ambas, o dano e a necessidade da sua
reparação constituem factores de unidade; em ambas, é sempre um dever que é inobservado,
seja um dever de prestar seja um dever geral de não interferir com o direito alheio; enfim, em
ambas, a censurabilidade da conduta lesiva justifica a obrigação de indemnizar», Cfr. E. Santos
Júnior, Da responsabilidade civil do terceiro por lesão do direito de crédito, Coimbra, 2003, p.
206.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 101

Sabemos que, nos termos da Constituição da República Portuguesa, o


direito à (proteção) da saúde é uma tarefa fundamental do Estado,
articulando o artigo 64.º com o artigo 9.º, alínea d), da Constituição, há uma
reserva administrativa na prestação pública de cuidados de saúde, há um
direito a prestações por parte dos cidadãos, direito esse que tem de ser
realizado através do Serviço Nacional de Saúde e hoje a prestação de atos de
saúde no contexto do Serviço Nacional de Saúde está toda ela assente em
contratos: ou o Estado (ou melhor dizendo, hoje, as administrações regionais
de saúde territorialmente competentes) celebra(m) contratos-programa com
as entidades públicas ou celebra contratos de gestão com parceiros privados
na sequência de concurso ou adota outras técnicas concessórias ou celebra
contratos de convenção (cfr. artigo 2.º do Regime Jurídico da Gestão
Hospitalar, aprovado, como anexo, pela Lei n.º 27/2002, de 8 de novembro).
Em suma, o que temos é sempre um modelo contratual, no qual o Estado,
pagador, contrata uma outra entidade, pública ou privada, para ser o
prestador.
É possível afirmar, na explicação do modelo (e consequentemente no
regime de responsabilidade civil) como contratual, a existência de um
contrato a favor de terceiros, sendo esses terceiros os beneficiários do Serviço
Nacional de Saúde.
Deste modo, há, paulatinamente, um reforço do modelo contratual para
explicarmos a prestação de cuidados de saúde no quadro do Serviço
Nacional de Saúde e, portanto, na ambiência de uma relação jurídico-
administrativa.
Como sinal de que este caminho se agudiza, basta pensarmos, em termos
muito práticos, que, por exemplo, somos, enquanto funcionários públicos
somos beneficiários da ADSE e que hoje a responsabilidade financeira primeira
por cuidados assistenciais prestados aos beneficiários da ADSE em
estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde pertence ao Serviço
Nacional de Saúde, e assim ao Ministério da Saúde, e já não ao Ministério das
Finanças, através da ADSE10 - ora, isto significa que, se tivermos uma qualquer

10
Vide Circular informativa n.º15/2010, de 12.10.2012, da Administração Central do
Sistema de Saúde, I.P. (ACSS), a propósito do novo relacionamento financeiro entre o Serviço
Nacional de Saúde e os subsistemas públicos, disponível em www.acss.min-saude.pt. Vide ainda
Circular Normativa n.º 1/2010, de 26.01.2010 e a Circular Normativa n.º 8/2010, de 28.07.2010,
também da ACSS e igualmente disponíveis no endereço assinalado.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 102

sintomatologia que nos determine ir a um hospital, se decidirmos, por mero


exemplo, irmos ao Centro Hospitalar de Lisboa Norte, EPE, enquanto
beneficiários da ADSE e cidadãos portugueses, e se sofrermos, porventura,
algum dano decorrente de um facto ilícito em resultado dessa prestação de
cuidados de saúde, a responsabilidade civil será administrativa; mas se formos,
também enquanto beneficiários da ADSE, ao abrigo de um acordo que o
Hospital da Luz tem com a ADSE, o pagador é o mesmo, pois ainda será o
Estado, e da prestação emergir um dano causado ilícita e culposamente, a
relação e responsabilidade civil parecem ser de direito privado, quando o
conjunto de situações jurídicas, ativas e passivas, (e neste caso até o pagador)
é o mesmo.
Ora, tal conclusão parece paradoxal – qual o fundamento, em face de
uma situação materialmente idêntica e nos seus aspetos substantivos, de
conteúdo, idênticos, para que o regime substantivo, de responsabilidade, e o
regime adjetivo, processual, sejam, pois, distintos? Os bens jurídicos a tutelar
são os mesmos, é a mesma vida, a mesma saúde, a mesma integridade física,
a mesma integridade moral, a mesma reserva da intimidade da vida
privada…O contexto e a ambiência são de deveres específicos.
No plano do Direito Civil, não temos dúvidas em dizer 11 que o regime é de
responsabilidade civil contratual. Embora haja violação de direitos de
personalidade, há violação de deveres específicos e a violação de deveres
específicos apela à aplicação da responsabilidade contratual.
Cumpre, pois, de seguida procurar caraterizar a relação, identificar o seu
conteúdo sobre o qual incidem deveres legais e deveres contratuais, aferir do
título de imputação e dirimir qual o título de imputação e o regime a fazer
operar concluindo-se que há um concurso de títulos de imputação ou um
concurso de pretensões, matéria também controvertida.

11
Seguindo Pedro Romano Martinez, Responsabilidade Civil Por Acto ou Omissão do
Médico - Responsabilidade Civil Médica e Seguro de Responsabilidade Civil Profissional, cit. , p.
464, e Nuno Manuel Pinto Oliveira, Responsabilidade civil em instituições privadas de saúde:
problemas de ilicitude e de culpa, in Responsabilidade civil dos médicos, Centro de Direito
Biomédico, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, n.º 11, Coimbra, 2005, p. 155, este
último em especial quando afirma que «o critério de distinção entre os dois “tipos” tradicionais
de responsabilidade civil deve enunciar-se nos seguintes termos: a responsabilidade contratual
provém da violação de um dever especial; a responsabilidade extra contratual provém da
violação de um dever geral».

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 103

Ainda em sede de enquadramento deve ser discutida da qualificação e da


natureza da relação jurídica da prestação de cuidados de saúde em
estabelecimentos de saúde integrados no Serviço Nacional de Saúde.
Nos termos que são determinados na Base XXV da Lei de Bases da Saúde,
aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, alterada pela Lei n.º 27/2002, de
8 de novembro, os utentes são beneficiários do Serviço Nacional de Saúde e
recebem prestações de cuidados em estabelecimentos integrados no Serviço
Nacional de Saúde.
Como referido, o Regime Jurídico da Gestão Hospitalar, aprovado pela Lei
n.º 27/2002, de 8 de novembro, mas também a alteração do modelo de
financiamento, com o financiamento pelo ato de prestação, nos termos da
Base XXXIII, n.º 1, da Lei de Bases da Saúde na redação que lhe foi dada pela
Lei n.º 27/2002, de 8 de novembro, reforçam a afirmação do modelo
contratual.
Entendemos que, mesmo num quadro de quadro de qualificação da
relação jurídica como administrativa, é possível afirmar a perspetiva
contratual.
Nesse sentido, FIGUEIREDO DIAS e SINDE MONTEIRO analisam, de iure
condendo, a responsabilidade contratual dos hospitais públicos e vêm concluir
que «o quadro do contrato parece-nos o mais apropriado para vazar a
relação, caracterizada por uma ideia de confiança, entre o doente e a
entidade prestadora dos serviços de saúde» e aludem às “relações contratuais
de facto” («faktische Schuldverhältnisse») e às “relações de massas”
(Massenverkehr), resultantes de um comportamento social típico
(Sozialtypisches Verhalten)»; considerando que «o tratamento em hospitais
públicos transformou-se num fenómeno de massas» e que a «nota do contrato,
relação especial entre duas partes, fará sobressair que, para efeitos jurídicos, a
relação social estabelecida tem um carácter pessoal», isto é, «a aceitação de
uma relação do tipo contratual ajuda a personalizar uma espécie de relações
sociais que, no plano sociológico, se apresenta como um fenómeno de
massas»12.
FIGUEIREDO DIAS e SINDE MONTEIRO, referindo-se à prestação de cuidados
em estabelecimentos integrados no Serviço Nacional de Saúde, afirmam que
12
Cfr. Jorge Figueiredo Dias/Jorge Sinde Monteiro, Responsabilidade Médica em
Portugal, cit., pp. 48-49.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 104

a «qualificação daquele quadro de direitos e deveres, fixado genericamente,


mas individualizável e individualizado em relação a cada doente em
concreto, como integrando um contrato, parece-nos assim fazer presa na
realidade, não sendo uma pura ficção», o que «aliás (…) explica que outros
países, dentro de parâmetros legais muito próximos dos nossos, seja de há
muito pacificamente aceite a tese (salvo excepções contadas) da
responsabilidade contratual (é o caso da Alemanha Federal)» 13. O que os
Ilustres Professores vieram, pois, afirmar é que existem deveres específicos dos
estabelecimentos integrados no Serviço Nacional de Saúde, e dos que em
nome deste agem, que fazem aproximar o modelo contratual.
A situação em que um médico fatalmente, no exercício da sua atividade
no Serviço Nacional de Saúde, tira a vida ao doente em resultado de uma
prática grave de incorreção na assistência, com violação da leges artis, não
pode ser apreciado e juridicamente valorado do mesmo modo que a
situação em que alguém, sem qualquer contato prévio anterior, sem qualquer
relação jurídica preexistente, lesa direito de outrem - há deveres específicos,
há uma ambiência de confiança, há uma relação de confiança, que faz
gerar no utente uma expetativa de que essa proteção será salvaguardada,
daí o apelo a um modelo contratual.
Assim, quer se empregue o conceito e tratamento dogmático do contrato
de adesão ou da relação contratual de facto, quer, acrescentamos, se adote
e desenvolva a explicação do quadro fático com recurso à figura do contrato
a favor de terceiro (o utente beneficiário do Serviço Nacional de Saúde), é
possível explicar a relação jurídica administrativa entre pacientes num
estabelecimento de saúde integrado no Serviço Nacional de Saúde e o
estabelecimento prestador de cuidados de saúde como contratual. Na

13
Ibid. p. 49. Veja-se ainda João Álvaro Dias, Procriação assistida e responsabilidade
médica, cit. , pp. 240-241, quando afirma que: «a fim de enquadrar tal responsabilidade poderá
fazer-se apelo quer ao instituto dos contratos de adesão quer à figura das relações contratuais
de facto («faktische Schuldverhältnisse») e mais especificamente às “relações de massas”
(«Massenverkehr») resultantes de um comportamento social típico (Sozialtypisches Verhalten)»,
«sendo inegável um fenómeno de massificação no acesso aos serviços médicos das instituições
e serviços públicos de saúde, qualquer das soluções – contrato de adesão ou relação
contratual fáctica – tem potencialidades para retratar com fidelidade e rigor técnico a relação
que se estabelece entre o doente e a instituição ou serviço público de saúde» e prossegue para
afirmar que «estando em causa a tutela de direitos tão essenciais como o direito à saúde, à
integridade física e à vida, bem se compreende que, nos limites do juridicamente admissível, a
qualificação das relações contratuais poderá contribuir para a sua personalização e, porque
não dizê-lo, para um sentido de responsabilidade acrescida por parte dos médicos que aí
desempenham funções».

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 105

verdade, como afirma MOITINHO DE ALMEIDA que «quando o particular se


dirige ao hospital público, solicitando observação ou tratamento médico, não
vemos porque não configurar entre ambos a existência de um contrato»14.
A assistência de doente beneficiário do Serviço Nacional de Saúde num
estabelecimento integrado no Serviço Nacional de Saúde corresponde à
utilização de um serviço público. Ora, recorde-se que FREITAS DO AMARAL, a
propósito da «natureza jurídica do acto criador da relação de utilização do
serviço público pelo particular», vem enunciar que: «a doutrina acha-se muito
dividida sobre esta matéria, podendo dizer-se que a tendência geral é no
sentido de os administrativistas verem nesse acto ou um simples facto jurídico
privado do particular ou, então, um acto administrativo de admissão,
enquanto os civilistas se inclinam para o considerarem como um contrato civil
de prestação de serviços ou como actuações geradoras de relações
contratuais de facto»15.
Desta forma, afirma-se que o «acto criador da relação de utilização dos
serviços públicos pelos particulares tem, regra geral, a natureza de contrato
administrativo - contrato, porque entendemos que a fonte dessa relação
jurídica é um acordo de vontades, um ato jurídico bilateral; e administrativo,
porque o seu objecto é a utilização de um serviço público e o seu principal
efeito é a criação de uma relação jurídica administrativa»16.
Em suma, mesmo no quadro de estabelecimentos públicos, integrados no
Serviço Nacional de Saúde, na prestação de cuidados de saúde, se é certo
que está em causa também a proteção de direitos de personalidade, não
podemos, porém, deixar de afirmar a existência de deveres específicos, cuja
violação gera (verificados que sejam os demais pressupostos de
responsabilidade civil) responsabilidade civil contratual. Não parece
adequado considerar que na prestação de cuidados de saúde em
estabelecimentos de saúde integrados no Serviço Nacional de Saúde estamos
perante apenas um dever geral de abstenção da lesão de direitos de
personalidade. Há, pois, deveres específicos a observar cujo incumprimento ou

14
Cf. Moitinho de Almeida, A Responsabilidade civil do médico e o seu seguro, Scientia
Iuridica, Tomo XXI, 1972 (Maio/Agosto), Braga, p. 352.
15
Cf. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume I, (com a
colaboração de Luís Fábrica, Carla Amado Gomes e Jorge Pereira da Silva), 3.ª ed., Coimbra,
2007, p. 804.
16
Ibid.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 106

cumprimento defeituoso deve ser juridicamente censurado com um regime


mais “enérgico” 17.
A prestação de cuidados de saúde deve ser estudada numa perspetiva
obrigacional, de direitos e obrigações, de situações jurídicas ativas e passivas,
cujo incumprimento ou cumprimento defeituoso gera responsabilidade civil
contratual e a consequente obrigação de indemnizar.

2. A prestação de cuidados de saúde como relação obrigacional complexa:

i) o direito a prestações de saúde e o artigo 64.º da Constituição; a obrigação


principal

O direito à proteção da saúde, nos termos do artigo 64.º da Constituição,


constitui um direito a prestações sociais18. Um direito subjetivo a prestações
consiste no «direito do particular a obter algo através do Estado (saúde,
educação, segurança social»19.
O artigo 64.º da Constituição é uma das «normas consagradoras de direitos
sociais, económicos e culturais da Constituição Portuguesa de 1976» e que
enquanto tal individualiza «políticas públicas socialmente activas»20.
Ora, no quadro dos estabelecimentos hospitalares integrados no Serviço
Nacional de Saúde, a obrigação principal de prestação de cuidados de
saúde, prontos, adequados, em tempo útil, eficazes e de acordo com as leis
da arte, deve ser, assim, considerada como uma prestação pública.
O artigo 64.º, n.º2, alínea a), confia expressa e diretamente ao Estado o
exercício de certas atividades em matéria de proteção da saúde, o que
reforça a existência de um sector público, espelho de uma “reserva” de

17
A responsabilidade civil contratual é «marcada, entre outros aspectos, por uma
presunção de culpa (e de ilicitude, artigo 799.º/1) que faz dela, um instituto enérgico» (António
Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo I, Coimbra,
2009, p.371).
18
Sobre o direito à saúde, vide Cláudia Monge, "Contributo para o estudo do Direito da
Saúde: a prestação de cuidados de saúde" (Tese de Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas,
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa 2002).
19
Cfr. José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª
ed., Coimbra, 2003, p. 408.
20
Ibid., pp. 408-409.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 107

intervenção social a favor do Estado, sem excluir, todavia, a atividade das


entidades privadas ou da mesma natureza21.
Não obstante a verdadeira reserva administrativa, o Sistema de Saúde, em
conformidade com a Base XII da Lei de Bases da Saúde, integra vários
modelos contratuais e estabelecimentos de diferente natureza jurídica e o
Serviço Nacional de Saúde realiza a sua atuação pública através de
estabelecimentos, públicos e privados (cfr. ainda o artigo 2.º do Regime
Jurídico da Gestão Hospitalar, aprovado, como anexo, pela a Lei n.º 27/2002,
de 8 de novembro).
O regime hospitalar assenta num modelo de contratação de atos, de
prestações de cuidados de saúde, no quadro do Serviço Nacional de Saúde,
nos termos do qual o sujeito passivo do direito a prestações, por força da
Constituição, é eminentemente hoje o pagador. O Estado criou, em expressão
do fenómeno de administração estadual indireta, institutos públicos, criou
entidades públicas empresariais, para a prossecução da sua finalidade, da
sua tarefa fundamental, nos termos dos referidos artigos 9.º, alínea d), e 64.º da
Constituição, de prestação de cuidados de saúde, ou contratou com entes
privados esses cuidados para forma a auxiliar a realização do direito positivo a
prestações.
Entendemos, pois, que a circunstância de a proteção da saúde constituir
uma tarefa fundamental do Estado, nos termos do artigo 9.º, alínea d), em
articulação com o artigo 64.º, n.º 2, ambos da Constituição, não afasta a
caraterização da relação jurídica administrativa como contratual.
Na obrigação principal de prestação de cuidados de saúde,
independentemente da natureza do vínculo, devemos afirmar a assistência do
doente com recurso aos meios adequados, o tratamento com correção e
com cumprimento das leges artis, em tempo clinicamente aceitável, o
esclarecimento terapêutico adequado e a continuidade dos cuidados. Estão
os estabelecimentos integrados no Serviço Nacional de Saúde adstritos à
qualidade e à segurança na execução da prestação principal.
Na Base XIV, dedicada ao Estatuto dos utentes, da Lei de Bases da Saúde,
aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, e alterada pela Lei n.º 27/2002,

21
Vide Cláudia Monge, "Contributo para o estudo do Direito da Saúde: a prestação de
cuidados de saúde"., p. 106. Cf. Paulo Otero, Vinculação e Liberdade de Conformação Jurídica
do Sector Empresarial do Estado, Coimbra, 1998, pp 42-43.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 108

de 8 de novembro, determinou o legislador, no n.º 1, que os utentes têm direito


a (…) c) ser tratados pelos meios adequados, humanamente e com
prontidão, correcção, técnica, privacidade e respeito.
Na execução da prestação principal devem ser empregues os meios
adequados e o tratamento deve ser realizado com correção e com
cumprimento das leges artis. Conforme descreve ÁLVARO DA CUNHA GOMES
RODRIGUES, por leges artis entende-se o conjunto de regras da arte médica,
isto é, das regras reconhecidas pela ciência médica em geral como as
apropriadas à abordagem de um determinado caso clínico, na concreta
situação em que tal abordagem ocorre22.
A propósito do tempo clinicamente aceitável e da acessibilidade aos
cuidados de saúde, cumpre fazer referência ao disposto na Carta dos Direitos
de Acesso aos Cuidados de Saúde pelos utentes do Serviço Nacional de
Saúde, que fixa tempos máximos de resposta garantidos. Comos estabelece o
artigo 2.º da referida Lei, a Carta de visa garantir a prestação dos cuidados de
saúde pelo Serviço Nacional de Saúde e pelas entidades convencionadas em
tempo considerado clinicamente aceitável para a condição de saúde de
cada utente, nos termos da presente lei (cfr. n.º 1) e define: a) Os tempos
máximos de resposta garantidos; b) O direito dos utentes à informação sobre
esses tempos (cfr. n.º 2).
No que respeita à continuidade dos cuidados importa invocar o n.º 3 da
Base XIII da Lei de Bases da Saúde que impõe o dever de promoção de
intensa articulação entre os vários níveis de cuidados de saúde.

ii) deveres específicos e deveres de proteção

No seio da relação obrigacional complexa devemos reconhecer, para além


da prestação principal, deveres acessórios, específicos e de proteção 23.
22
Vide Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, Reflexões em torno da responsabilidade civil
dos médicos, Direito e Justiça, Volume XIV, 2000, Tomo 3, p. 301.
23
Cfr. Pedro Romano Martinez, Responsabilidade Civil Por Acto ou Omissão do Médico -
Responsabilidade Civil Médica e Seguro de Responsabilidade Civil Profissional, cit. , pp. 464-465:
«Assim, se o hospital se obriga contratualmente a prestar cuidados de saúde (…) controlando a
realização dessa prestação complexa que seria efectuada por terceiros (tanto enfermeiros e
demais pessoal afecto ao hospital, como médicos independentemente do vínculo com estes
estabelecido), sobre o hospital impendem deveres específicos em relação àquele paciente.
Neste caso, o hospital não se pode desresponsabilizar pelas más práticas médicas ocorridas no
seu estabelecimento relativamente a pacientes que com ele contrataram. As partes no
contrato de prestação de serviços ajustado com o paciente – seja o hospital ou o médico são
devedores obrigados a cumprir deveres específicos para com a contratante (paciente) e é

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 109

A afirmação de que, a par da obrigação principal de prestação de


cuidados, temos deveres específicos de proteção faz estender o campo da
ilicitude. Este é um efeito de “trabalharmos” o conceito de relação
obrigacional complexa: é que, quer a violação da obrigação principal, quer a
violação ou o cumprimento defeituoso dos deveres acessórios de proteção,
vão determinar a existência de um facto ilícito, seja por violação da lei, seja
por violação do contrato. As situações jurídicas passivas identificadas, como o
dever de informação, o dever de consentimento, o dever de sigilo ou o dever
de segurança, têm também consagração legal. O que acontece é que são
deveres legais que são contratualmente determinados, ou seja, conheço o
sujeito a quem imputar aquele dever legal em razão da relação (subjetiva e)
contratualmente estabelecida.
Quer em atos normativos da União Europeia, quer em tratados de Direito
Internacional e convenções de Direito Internacional de que Portugal é Parte,
como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Biomedicina 24, os
direitos dos pacientes têm vindo a ser progressivamente afirmados. No quadro
da União Europeia há, inclusivamente, declarações comuns reconhecendo,
uniformemente, estes direitos25, que preveem deveres de cuidado, deveres de
segurança, deveres de informação, de sigilo,…, independentemente do
modelo de saúde de cada um dos Estados-membros (e sabemos que os
modelos de saúde dos Estados-membros da União Europeia são muitos
distintos). O reconhecimento dos direitos dos pacientes é feito
independentemente do modelo de saúde de cada Estado, quer tenhamos
um sistema assente eminentemente em relações privadas, como os Países

sobre aquelas que impende o risco de má prática médica. De facto, é o devedor,


especialmente quando conhecedor da actividade, que domina o cumprimento da prestação
e que melhor pode demonstrar se realizou bem ou mal o seu dever ». Entendemos que esta
afirmação deve igualmente ser proferida quando o estabelecimento é um estabelecimento
integrado no Serviço Nacional de Saúde, no exercício de uma prestação pública de cuidados.
24
A Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano
face às aplicações da Biologia e da Medicina (Convenção sobre os Direitos do Homem e a
Biomedicina), do Conselho da Europa, foi aprovada pela Resolução da Assembleia da
República n.º 1/2001, de 3 de Janeiro de 2001, e ratificada por Decreto do Presidente da
Assembleia da República n.º 1/2001, de 3 de Janeiro de 2001.
25
Cf. Declaração sobre os valores e princípios comuns, tomada pelos Ministros da Saúde
da União Europeia na sessão do Conselho de Ministros da Saúde, de 1 e 2 de Junho de 2006,
disponível em
http://www.consilium.europa.eu/uedocs/cms_data/docs/pressdata/pt/lsa/90048.pdf
Comunicado de Imprensa, 2733.ª Sessão do Conselho Emprego, Política Social, Saúde e
Consumidores, pp. 33-38.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 110

Baixos, quer tenhamos um sistema de Serviço Nacional de Saúde, como


Portugal, Espanha ou o Reino Unido. Estes direitos têm, pois, esta
transversalidade, independentemente do modelo adotado à luz do texto
constituinte de cada Estado.
A doutrina de Direito Civil tem-se socorrido do princípio da boa-fé, instituto
civil, para dele fazer decorrer deveres acessórios que são deveres específicos.
Com abrigo na consagração da boa-fé objetiva na execução dos contratos,
imposta pelo artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil, são afirmados deveres
específicos que integram a relação obrigacional.
O princípio da boa-fé é um instituto civil, no sentido adotado nos termos
supra expostos, e um princípio geral de Direito e importa não esquecer que foi
chamado para o âmbito das relações jurídicas administrativas, conforme dita
o artigo 266.º da Constituição e, na sua senda, o artigo 6.º-A do Código do
Procedimento Administrativo.
Os deveres acessórios resultam de deveres específicos de boa-fé, princípio
que deve nortear toda a atividade administrativa, nos termos do artigo 266.º,
n.º 2, da Constituição e do artigo 6.º-A do Código do Procedimento
Administrativo. Entre os deveres acessórios, podemos reconhecer o dever de
informação, o dever de obter consentimento, prévio e esclarecido, o dever de
sigilo, o dever de segurança, o dever de documentação.
Nos termos da Base V da Lei de Bases, «os cidadãos têm direito a que os
serviços públicos de saúde se constituam e funcionem de acordo com os seus
legítimos interesses».
A propósito do dever de segurança, refira-se ainda que a obrigação in
vigilando adstringe os prestadores públicos e privados. O artigo 491.º do
Código Civil26 preceitua que as pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem
obrigadas a vigiar outras, por virtude da incapacidade natural destas, são
responsáveis pelos danos que elas causem a terceiro, salvo se mostrarem que
cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido
ainda que o tivessem cumprido.
O reconhecimento destes deveres tem um impacto importante no campo
da ilicitude, conforme referido.
26
A propósito do artigo 491.º do Código Civil é possível referir que é um exemplo de
“delito específico” e «estes denominados “delitos específicos” são, de facto, obrigações legais
ou negociais» (Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das
Obrigações, Tomo III, cit. , p. 395.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 111

Quanto melhor compreendermos as situações jurídicas passivas que


integram a esfera jurídica do estabelecimento, melhor, por um lado,
reforçamos a tutela do doente e, por outro, melhor salvaguardamos a
segurança jurídica do ente que assim conhece os deveres a que está adstrito
e a cominação que da sua violação pode para si decorrer.
Trata-se de deveres específicos, pelo que a sua violação deve igualmente
determinar a aplicação do regime de responsabilidade civil contratual 27. Estes
deveres incidem, quer a relação jurídica seja de direito privado, quer seja de
direito público.
Temos de reconhecer os direitos dos pacientes e identificar as correlativas
obrigações ou deveres dos estabelecimentos de saúde integrados no Serviço
Nacional de Saúde (emblematicamente, e a título exemplificativo, ao direito à
reserva da intimidade da vida privada e confidencialidade dos dados de
saúde corresponde, do lado passivo, o dever de sigilo, garantia do
cumprimento daquele direito).
O estudo jurídico-dogmático da relação jurídica de prestação de cuidados
de saúde assenta, desde logo, na tríade informação, confidencialidade e
consentimento28. A intervenção ou tratamento médico deve ser precedido de
consentimento (princípio do consentimento prévio) e esse consentimento tem
de ser esclarecido (princípio do consentimento esclarecido). O consentimento
é expressão da autonomia e realização do direito de personalidade e

27
Estamos em crer que, se reconhecido o dever de segurança como um dever específico
de boa-fé, por força do artigo 266.º da Constituição e do artigo 6.º-A do Código do
Procedimento Administrativo, teria sido outro, face ao caso sub judice, o sentido da decisão do
acórdão de 21.06.2012, no âmbito do processo n.º 08532/12, do Tribunal Central Administrativo
do Sul, (disponível em

http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/289b7d7b99f0bf6580257a2900
5194d3?OpenDocument), pois o reconhecimento de um dever específico, legal e contratual,
permitiria afirmar a inobservância do dever de segurança como um facto ilícito, isto sem prejuízo
dos elementos fáticos que, em concreto, seria necessário atender para aferir da procedência
da afirmação de ilicitude. Se o caso fosse julgado já à luz do regime aprovado pela Lei n.º
67/2007, de 31 de dezembro, o não sucedeu atento o regime aplicável em razão da data dos
factos, ter-se-ia, porventura, invocado a inobservância dos deveres de vigilância e encontrado
apoio no artigo 10.º, n.º 3, desta Lei, mas não parece que, pela circunstância de estarmos ainda
ao abrigo da aplicação do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de novembro de 1967, não se pudesse
afirmar (confirmando-se que os factos em concreto assim o permitiam) que o estabelecimento
hospitalar estava adstrito a um dever legal de segurança e de vigilância. O utente estava à
guarda do Hospital e, nos termos da Base V da Lei de Bases da Saúde, os estabelecimentos
hospitalares integrados no SNS devem funcionar de modo a salvaguardar os direitos dos utentes
– há aqui um dever de segurança que decorreria da boa-fé, nos termos do artigo 266.º da
Constituição e do artigo 6.º-A do Código do Procedimento Administrativo.
28
Cláudia Monge, "Contributo para o estudo do Direito da Saúde: a prestação de
cuidados de saúde"., p. 145.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 112

fundamental à integridade moral29. Para que o consentimento seja livre e


esclarecido ele deve ser precedido de informação leal, clara e precisa. Uma
vez prestada essa informação e havendo troca recíproca de informação,
sobre toda essa informação incidirá o dever de sigilo.

Em síntese, duas ideias: i) quer a violação da obrigação principal, quer a


violação de deveres acessórios vai gerar responsabilidade civil30; ii) o efeito da
adoção do conceito da relação obrigacional complexa é a extensão do
campo da ilicitude31, extensão do princípio da culpa, extensão da incidência
da responsabilidade civil por facto ilícito.

II. A natureza pública e a natureza privada da relação de prestação de


cuidados de saúde: dualidade de regimes? Responsabilidade contratual e
responsabilidade extracontratual: concurso de títulos de imputação?

Em conformidade com o supra exposto, há, pois, duas grandes reflexões a


fazer: por um lado, a de saber se deve ser mantida a dualidade de regimes,
público e privado, se há um feixe comum de situações jurídicas e passivas no
seio da relação de prestação de cuidados de saúde; por outro, a de saber se
o regime de responsabilidade civil deve ser contratual ou extracontratual.
Julgamos correto afirmar que «o estudo da responsabilidade civil imputável
à Administração de Saúde por danos sofridos pelos utentes dos
estabelecimentos que integram o Serviço Nacional de Saúde pressupõe a
compreensão da relação médico-estabelecimento, doente-estabelecimento

29
Como refere José Manuel Sérvulo Correia, As relações jurídicas de prestação de
cuidados pelas unidades de saúde do Serviço Nacional de Saúde, in Direito da Saúde e
Bioética, Lisboa, 1996, p. 53, referindo-se à inviolabilidade moral e física das pessoas, nos termos
do artigo 25.º, n.º 1, da Constituição: «Este direito fundamental – que é simultaneamente um
direito de personalidade – desdobra-se em dois direitos reconhecidos aos utentes pela Lei de
Bases: os direitos de “decidir receber ou recusar a prestação de cuidados que lhes é proposta,
salvo disposição especial da lei” (princípio do consentimento necessário) (Base XIV, n.º 1, alínea
b)) e de “ser informados sobre a sua situação, as alternativas possíveis de tratamento e a
evolução provável do seu estado” (princípio do consentimento informado) (Base XIV, n.º 1,
alínea e)).
30
Como refere ANTUNES VARELA «o cumprimento defeituoso abrange, não só as
deficiências da prestação principal ou de qualquer dever secundário de prestação, como
também a violação deveres acessórios de conduta que, por força da lei (por via de regra,
através das normas dispositivas), se integram na relação creditícia, em geral, e na relação
contratual em especial» (vide, João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral,
Volume II, 7.ª ed., Coimbra, 2001, p. 130).
31
A extensão da ilicitude, igualmente para abarcar deveres de cuidados, é feita também
no artigo 9.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 113

e médico-doente e nos direitos que são conferidos e nas obrigações a que


fica adstrita cada uma das partes nas diferentes relações jurídicas» 32. No
regime jurídico-privado, é possível apreender a existência de um contrato de
prestação de serviços que liga o médico ao doente e explica este vértice de
uma relação triangular, a existência de um contrato de hospitalização ou um
contrato de serviços hospitalares, contrato misto que traduz a relação entre
doente e estabelecimento de saúde privado33. Entre o médico e o
estabelecimento pode existir um contrato de trabalho ou um contrato de
prestação de serviços, o que pode influir na configuração do primeiro dos
contratos ora enunciados, pois, nessa circunstância, o médico tenderá a ser
auxiliar no cumprimento ou representante, e a responsabilidade a ser
apreciada à luz do artigo 500.º ou do artigo 800.º do Código Civil 34. No regime
jurídico-público, o enquadramento jurídico substantivo proposto é o da
relação jurídica administrativa.
Como procurámos expor, parece-nos que estamos perante um verdadeiro
paradoxo, pois, quer seja um contrato de prestação de cuidados de saúde
com um estabelecimento de saúde privado, quer respeite à prestação de
cuidados de saúde num estabelecimento de saúde público, há um feixe
comum de situações jurídicas ativas e passivas e estas últimas constituem
deveres específicos.
Na verdade, pensamos que há um feixe comum e que é útil, como
elemento que pode contribuir para a superação do paradoxo, a noção de
estabelecimento hospitalar. Há traços comuns «que permitem arrogar um
conjunto de direitos dos utentes dos estabelecimentos de saúde, como sejam
os que materializam os princípios do consentimento necessário e do
consentimento informado, o direito à informação sobre o seu estado de saúde
e evolução, o dever do estabelecimento de organizar a documentação
clínica e de garantir a confidencialidade dos dados de saúde» 35. Esses traços
comuns compõem o conteúdo essencial do direito à saúde e concretizam-se

32
Cfr. Cláudia Monge, "Contributo para o estudo do Direito da Saúde: a prestação de
cuidados de saúde"., p. 159.
33
Vide Carlos Ferreira de Almeida, Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico, in
Direito da Saúde e Bioética, cit. , pp. 89-94.
34
Cfr. Cláudia Monge, "Contributo para o estudo do Direito da Saúde: a prestação de
cuidados de saúde"., pp. 159-160.
35
Ibid., pp. 8-9.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 114

na relação de prestação de cuidados de saúde, independentemente da sua


natureza pública ou privada.
O estabelecimento de saúde deve ser compreendido como uma realidade
jurídica autónoma, na qual são prestados os cuidados de saúde necessários
em obediência ao direito à saúde, que vincula entes públicos e privados.
Existe um conjunto de normas que decorrem da qualificação
«estabelecimento de saúde» e são independentes do seu estatuto público ou
privado. Há finalidades comuns cometidas ao «estabelecimento de saúde»
como estrutura de cuidados, submetida a regras cada vez mais numerosas
cuja aplicação é indiferente ao seu estatuto público ou privado. Estas regras
conferem ao estabelecimento de saúde uma densidade jurídica crescente e
operam a aproximação dos sectores público e privado36 37.
Assim, «com fundamento no conceito de estabelecimento de saúde, como
realidade jurídica autónoma, na qual se comprova a “comunhão” de direitos,
a existência de um feixe de direitos e obrigações comuns que caracterizam a
relação jurídica de prestação de cuidados de saúde e de que são paradigma
os já invocados, não podemos deixar de considerar paradoxal a dualidade de
regimes – público e privado, quer no plano do direito substantivo, quer
logicamente no plano do direito adjetivo ou processual»38.
A superação desse paradoxo apenas será conseguida pela afirmação de
um mesmo regime de responsabilidade civil e pela ponderação de também
um regime adjetivo comum. Neste último campo, e atenta a dualidade de
jurisdições, é importante não olvidar o sentido e alcance do artigo 4.º do
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais vigente.
No plano de iure condendo seria interessante a reflexão séria sobre a
pertinência da criação de tribunais especializados.
Quanto à segunda reflexão, em conformidade com o enunciado,
sustentamos que o regime de responsabilidade civil deve ser um regime
contratual.
Como salientam FIGUEIREDO DIAS e SINDE MONTEIRO, no domínio do
tratamento médico em estabelecimentos hospitalares do Serviço Nacional de
36
Ibid., p. 142.
37
Sobre essa aproximação, vide Jacques Moreau/Didier Truchet, Droit de la santé publique,
Paris, 2000.
38
Cfr. Cláudia Monge, "Contributo para o estudo do Direito da Saúde: a prestação de
cuidados de saúde"., p. 248.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 115

Saúde, não se visa «regular relações entre estranhos, que só o dano, no


antagonismo, aproxima»39, como sucede na responsabilidade civil
extracontratual. Visa-se antes reagir civilmente perante a violação de um
dever específico, individualizado, e não «tão-só o genérico dever de não violar
os direitos de outrem» 40. Parece-nos claro que nos estabelecimentos de saúde
integrados no Serviço Nacional de Saúde «existe um quadro preciso de direitos
e deveres» e «o doente, internado ou em tratamento num hospital público,
não é (em relação à entidade hospitalar) um estranho a quem apenas
compita o genérico direito a não ver violada a sua integridade física ou moral;
é alguém que tem positivamente direito a um certo número (e qualidade) de
cuidados»41.
O paradoxo surge, pois, «o carácter público ou privado da relação e a
proeminência do critério orgânico sobre o critério funcional vai determinar a
repartição de competência entre a jurisdição administrativa e a jurisdição
comum»42. Se identificamos um feixe comum de direitos subjetivos dos
destinatários da prestação de cuidados de saúde, independentemente do
estatuto público ou privado do estabelecimento onde são prestados os
cuidados de saúde, torna-se paradoxal a existência de dois regimes distintos e
de um contencioso de responsabilidade civil dual43.
Em suma, pensamos que o caminho deverá ser o da unicidade do regime
da responsabilidade civil e que esse regime deve ser contratual.
Ainda em síntese, e na sequência do exposto em sede de enquadramento,
no panorama legislativo atual, concluindo-se por um concurso de títulos de

39
Vide Jorge Figueiredo Dias/Jorge Sinde Monteiro, Responsabilidade Médica em Portugal, cit.,
p. 49.
40
Ibid., p. 49.
41
Ibid. p. 49. Sobre esta matéria, vide ainda Nuno Manuel Pinto Oliveira, Responsabilidade civil
em instituições privadas de saúde: problemas de ilicitude e de culpa, cit. , p. 135.
42
Vide Cláudia Monge, "Contributo para o estudo do Direito da Saúde: a prestação de
cuidados de saúde". p. 137. Cfr. A este propósito, cfr., Jean-Michel de Forges, Le Droit de la
Santé, 7. eme ed., Paris, 2010, p. 13, e Jean Penneau, La responsabilité du médecin, 2e ed., Paris,
1996, p. 48.
43
Continua, porém, a reconhecer-se que «no regime jurídico-público, no entanto, o
enquadramento jurídico complexifica-se, dado que a par da possível existência de contornos
ou aspetos contratuais, existe uma regulamentação legal ou estatuária que impõe direitos e
deveres próprios para a parte, pelo que, ainda que se considere a presença de um contrato, ou
de um contrato dividido (em rigor dois contratos, um com o profissional de saúde e outro com o
estabelecimento de saúde público), sempre se verificará a prática de operações materiais e de
actos administrativos, como sejam o da emissão ou a transferência para outro estabelecimento
de acordo com as regras de organização administrativa a que se refere a alínea a) do n.º 1 da
Base V da Lei de Bases da Saúde, Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto» (cfr. Cláudia Monge,
"Contributo para o estudo do Direito da Saúde: a prestação de cuidados de saúde". p. 139).

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 116

imputação ou por um concurso de pretensões, deve o lesado escolher o


regime mais favorável e intentar apenas uma ação em consonância com o
regime arguido. No Direito Civil, há claras vantagens na adoção do regime da
responsabilidade civil contratual. No Direito Público, e atento o regime da Lei
n.º 67/2007, de 31 de dezembro, é de salientar como vantagem e regime
favorável a previsão da ilicitude em razão do funcionamento anormal do
serviço (artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, e artigo 9.º) e as presunções de culpa
estabelecidas no seu artigo 10.º.

III. Fundamentos de responsabilidade objetiva?

O legislador nacional já veio afirmar, em matérias que integram o objeto do


Direito da Saúde, e consagrar situações de responsabilidade objetiva.
Cumpre, porém, ainda analisar se, a par das situações já vertidas em lei,
devem, na perspetiva de direito a constituir, consideradas e legalmente
consagradas outras.
Salientam-se, por exemplo, as seguintes soluções nacionais já adotadas que
apontam a consagração de mecanismos de responsabilidade objetiva: a
existência de seguro é condição mínima à participação num ensaio clínico,
nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 46/2004, de 19 de
agosto, na sua atual redação; é legalmente exigido um contrato de seguro a
favor do dador, em conformidade com o artigo 9.º, n.º 4, da Lei n.º 12/93, de
22 de abril, na sua atual redação; é legalmente consagrado um regime de
responsabilidade civil pelos danos causados a pessoas expostas a radiações
ionizantes, nos termos do Decreto-Lei n.º 180/2002, de 08 de agosto, com a
redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 215/2008, de 10 de
novembro, e pelo Decreto-Lei n.º 72/2011, de 16 de Junho.
Há, porém, no espaço europeu, mecanismos mais abrangentes na
consagração de soluções de responsabilidade objetiva, de que são exemplos
paradigmáticos, o modelo escocês de fundo de proteção em caso de danos,
os sistemas escandinavos de seguros, adotados na Finlândia, Dinamarca,
Islândia e Noruega.
Cumpre, porém, notar que a proteção conferida através da relação
obrigacional complexa já estende a ilicitude, tornando consequentemente a
responsabilidade subjetiva mais abrangente, pelo que a responsabilidade

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 117

objetiva pelo risco deve ser reservada para situações de especial


perigosidade ou de especial danosidade. O code de la santé publique
expressa o exemplo francês de uma resposta que faz apelo à socialização do
risco, por exemplo em matéria de contaminação do VIH em razão de sangue
contaminado em estabelecimentos hospitalares, com a criação de uma
comissão arbitral e um regime de ressarcimento das vítimas mais protetor e
mais expedito.
Estes são, pois, alguns elementos que propomos à reflexão atenta.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 119

A responsabilidade civil dos árbitros e o regime aprovado pela Lei


67/2007, de 31 de Dezembro:
Entre a responsabilidade e a imunidade

Ricardo Pedro
Mestre e doutorando em Direito Público
pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

I. Quadro genérico da responsabilidade civil dos árbitros; II. Responsabilidade civil dos
árbitros por decisões danosas; II.a Limites Substantivos; II.b Limites Processuais

I. Quadro genérico da responsabilidade civil dos árbitros

1. O tema da responsabilidade civil dos árbitros apesar de não ser inédito


entre nós, desde logo do ponto de vista legislativo, revela-se,
nomeadamente, à luz da LAV1 num assunto que não fica encerrado
com a mera hermenêutica deste diploma. O carácter lacunoso da LAV
pode encontrar justificação no fato do tema não se encontrar
devidamente consolidado na doutrina nacional e, como se verá, de
estar longe da unanimidade na doutrina estrangeira. Neste breve texto,
pretendemos apenas apresentar algumas notas para a compreensão
da responsabilidade civil a que devem estar sujeitos os árbitros-juízes
quer pela consideração do disposto na LAV, quer do previsto em
matéria de responsabilidade civil dos juízes por fato jurisdicional
presente no regime aprovado pela Lei 67/2007.
Uma das principais características da responsabilidade civil dos árbitros é a
sua consideração como uma garantia dos cidadãos que recorrem à
administração da justiça levada a cabo por meio da arbitragem. A não

1
Sempre que não se faça referência expressa a um diploma deve entender-se feita para a ,
adiante designada de LAV. Cf., no que toca a arbitragem necessária, o disposto no art. 1527.º/2
do CPC.

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admissão de um regime de responsabilidade civil dos árbitros geraria


desconfiança da figura da arbitragem e contrariaria o princípio da legalidade
e da segurança jurídica, deixando, por um lado, os árbitros numa situação de
privilégio inexplicável face a outros atores da administração da justiça e, por
outro, em clara discordância com o princípio neminem laedere, ficando os
lesados com a obrigação de suportar um dano provocado por outro agente
(ironicamente, obrigado a “prestar” um serviço de justiça).
O direito estrangeiro sobre a responsabilidade civil dos árbitros revela uma
grande variedade de regimes que oscilam entre o modelo que afirma a
imunidade absoluta dos árbitros (e.g. Reino Unido e EUA)2 e o modelo que
admite a responsabilidade por atos negligentes ou violação de certos deveres
(e.g. Qatar, Tunísia e Líbia)3. Entre estes dois modelos puros e radicais situa-se o
modelo adotado pelo legislador nacional. Isto é, admite-se que os árbitros
possam responder por certos deveres perante as partes, mas, no que toca à
responsabilidade civil pelo conteúdo das suas decisões, deve valer um regime
análogo ao dos juízes.
O modelo adotado pelo legislador nacional apresenta a particularidade de
o regime de responsabilidade civil dos árbitros se afastar do regime de
responsabilidade civil prevista para os restantes particulares,
independentemente de tal responsabilidade ter origem contratual ou
extracontratual. A justificação para tal autonomia está no fato de os árbitros se
encontrarem no exercício da função jurisdicional, isto é, de ius dicere;
atividade esta apenas atribuída aos juízes e aos árbitros.
Como se disse, o regime da responsabilidade civil dos árbitros está
sobretudo previsto na LAV, remetendo este diploma implicitamente para o
regime previsto para a atuação dos magistrados. O regime sediado na LAV e,
em parte, no regime aprovado pela Lei 67/2007 prossegue o entendimento da
doutrina nacional maioritária de, por um lado, os árbitros ainda deverem
responder segundo um regime de responsabilidade contratual quando está
em causa a violação de algumas obrigações e, por outro, se admitir uma

2
Cf. DENNIS NOLAN e ROGER ABRAMS, “Arbitral Immunity”, Industrial Relations Law Journal, Vol. 11, n.º
2 (1989), 228-266, p. 238-266; SUSAN D. FRANCK, “The Liability of International Arbitrators: A
Comparative Analysis and Proposal for Qualified Immunity”, New York Law School (2000), 1-59, p.
11; e JOSÉ FERNANDO MERINO MERCHÁN, Estatuto y responsabilidad del árbitro: Ley 60/2003, de
Arbitraje, Navarra, Aranzadi, 2004, pp. 151-152.
3
Cf. SUSAN D. FRANCK, “The Liability…”, p. 15.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 121

equiparação do regime de responsabilidade civil dos árbitros à dos juízes


quando se trata do ressarcimento de danos causados pelo conteúdo (errado)
da decisão arbitral4.
Este regime deve ser entendido como um mínimo imperativo, que as partes
podem convencionalmente ampliar, desde que haja aceitação dos árbitros.
Portanto, um regime mais amplo pode resultar da convenção de arbitragem,
do regulamento ou dos estatutos das instituições arbitrais.

2. O legislador previu ao longo do articulado da LAV vários tipos legais ou


situações de imputação de responsabilidade civil dos árbitros.
Para começar, destaca-se o abandono ou escusa injustificada da função
arbitral (art. 12.º/3). Dito de outro modo, impende sobre os árbitros o dever de
exercer a função arbitral logo que aceite 5. Embora, por ontologicamente
assim ser, o legislador da LAV preveja a possibilidade de escusa no caso de
impossibilidade superveniente ou na falta de acordo quanto a honorários e
despesas dos árbitros. Neste tipo legal, deve incluir-se, nomeadamente, a
interrupção deliberada das atuações arbitrais adotadas pelo julgador que
impliquem uma quebra de deveres inerentes à função arbitral e que atinge o
limite máximo quando se trate de non liquet.
Para além daquele tipo legal gerador de responsabilidade civil dos árbitros,
o legislador admite a responsabilidade daqueles no caso de dilações
temporais indevidas quer se trate de dilações resultantes da violação da
decisão em prazo razoável (art. 15.º/2), quer se trate da violação do direito à
decisão no prazo fixado legal ou contratualmente (art. 43.º/4). Na primeira
situação, aliás, muito pouco frequente no direito estrangeiro, o legislador
refere-se ao dever de o árbitro “se desincumbir, em tempo razoável, das
funções que lhe foram cometidas”. E na segunda, refere-se à responsabilidade

4
Cf. ADRIANO PAES DA SILVA VAZ SERRA, “Responsabilidade civil do Estado e dos seus órgãos ou
agentes”, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 85 (1959), p. 494; HENRIQUE MESQUITA, “Arbitragem:
competência do tribunal arbitral e responsabilidade civil do árbitro”, in Ab Uno Ad Omnes - 75
anos da Coimbra Editora, 1381-1392, p. 1392; PEDRO ROMANO MARTINEZ, “Análise do Vínculo Jurídico
do Árbitro em Arbitragem Voluntária Ad Hoc”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
António Marques dos Santos, Vol. I, 827-841, 840; JOÃO AVEIRO PEREIRA, A responsabilidade civil por
actos jurisdicionais, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p. 170; e DÁRIO MOURA VICENTE, ARMINDO RIBEIRO
MENDES, PEDRO METELLO DE NÁPOLES, PEDRO SIZA VIEIRA, MIGUEL JÚDICE e JOSÉ ROBIN DE ANDRADE, Lei da
Arbitragem Voluntária - Anotada, Lisboa, Almedina, 2012, p. 26.
5
Cf. JOSÉ FERNANDO MERINO MERCHÁN, Estatuto…, p. 125 e ss.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 122

civil pelos danos causados pelos árbitros “que injustificadamente obstarem a


que a decisão seja proferida dentro do prazo fixado”.
As preocupações do legislador da LAV com o tempo no procedimento arbitral
são óbvias ao fixar um prazo para a decisão do litígio. Assim, sempre que não
haja prazo fixado pelas partes, a sentença deve ser notificada às partes
dentro do prazo de doze meses a contar da data da aceitação do último
árbitro (art. 43.º/1). Este prazo de doze meses pode ser prorrogado por acordo
das partes ou por decisão do tribunal arbitral, podendo, neste último caso, as
partes, de comum acordo, opor-se à prorrogação. A haver prorrogação,
poderá ter lugar uma ou mais vezes, por períodos sucessivos de doze meses,
devendo tais prorrogações ser devidamente fundamentadas. A preocupação
do legislador com o tempo do procedimento arbitral confirma-se ainda na
imposição do dever de decidir prontamente sobre qualquer objeção contra
ordem preliminar (art. 23.º/3).
A importância das normas relativas ao tempo do procedimento arbitral
revela-se, desde logo, por um lado, por o prazo surgir como uma regra de
proteção das partes perante o tribunal arbitral6 e, por outro, por ser típico o uso
de manobras dilatórias pelas partes com vista ao decurso do prazo. Perante
este cenário, os árbitros emergem como destinatários da obrigação de se
desincumbirem de decidir dentro de prazo e como garantes do prazo
adequado na resolução do litígio. Todavia, apesar do prazo fixado (contratual
ou legalmente) deve procurar-se alguma razoabilidade à luz da casuística,
pois o incumprimento do prazo em um ou dois dias poderá não ser justificativo
de consequências indemnizatórias.
Para terminar esta breve referência à relação do tempo arbitral com a
responsabilidade civil dos árbitros não podemos deixar de mencionar que a
determinação do conceito de prazo razoável na administração da justiça
arbitral muito beneficia se tiver em conta a doutrina da determinação do
prazo razoável desenvolvida, sobretudo, pela jurisprudência do TEDH. Não se
trata aqui de uma obrigação internacional que os tribunais arbitrais voluntários
deverão cumprir, mas antes de beneficiar de uma técnica bastante
sedimentada na jurisprudência7 sobre o apuramento daquele conceito.
Devendo ser considerada, enquanto elemento extrajurídico auxiliar na
6
Cf. MARIANA FRANÇA GOUVEIA, Curso de resolução alternativa de litígios, 2.ª edição, Lisboa,
Almedina, 2012, p. 241.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 123

concretização do conceito de prazo razoável da administração da justiça


arbitral. O prazo razoável deve ser aferido em concreto, nomeadamente,
tendo por base a complexidade da causa, o comportamento de cada uma
das partes e o comportamento dos árbitros.
Outro dos tipos legais que pode gerar responsabilidade civil dos árbitros
refere-se à quebra de confidencialidade (art. 30.º/5). Ao contrário do que
acontece com as situações de imputação referidas anteriormente, esta não
surge expressamente identificada como geradora da obrigação de
indemnizar8. No entanto, impondo-se o dever de sigilo dos árbitros sobre todas
as informações e documentos que obtenham através do processo arbitral
(tanto mais que o sigilo da arbitragem tem sido apontado como uma das suas
características9), caso se verifique que o não respeito daquele dever gera
danos imputáveis aos árbitros, não se vê como se possa sustentar a sua
imunidade.
Por fim, o legislador da LAV refere que os árbitros são irresponsáveis por
danos decorrentes das suas decisões, salvo nos casos em que os magistrados
judiciais o possam ser (art. 9.º/4). Esclarecendo ainda que este tipo de
responsabilidade só tem lugar perante as partes (art. 9.º/5).

3. Antes de se avançar para a análise da responsabilidade civil dos árbitros


pelo conteúdo das suas decisões danosas, importa referir que, para efeitos de
responsabilidade civil pela administração da justiça, é comum distinguirem-se
duas realidades, às quais se referem regimes distintos. Sem grandes
preocupações de rigor sistemático, pode dizer-se, por um lado, que se admite
um regime de responsabilidade civil pelos danos que provoca uma decisão

7
Sobre esta jurisprudência, cf., o nosso, Contributo para o estudo da responsabilidade civil
extracontratual do Estado por violação do direito a uma decisão em prazo razoável ou sem
dilações indevidas, Lisboa, AAFDL, 2011, pp. 105-112.
8
O que, desde logo, revela que os tipos legais identificados pelo legislador da LAV não devem
ser entendidos como taxativos. A mobilizar-se o critério da positivação dos comportamentos
socialmente típicos merecedores de enquadramento legal para efeitos indemnizatórios, não
será de desconsiderar que certos princípios, como seja a independência do tribunal arbitral,
devem estar assegurados. Emergindo este como um dos mais importantes princípios que deve
informar a arbitragem - como aliás, toda a administração da justiça. Para além da
descredibilização da arbitragem, a necessidade de reparação de danos poderá tornar-se
premente se a realidade confirmar o evidenciado por alguns estudos recentes, ao terem
concluído que uma das preocupações dos cidadãos no recurso à arbitragem é justamente a
falta de independência de alguns árbitros, cf. AAVV, Justiça Económica, Síntese e Propostas,
Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2012, p. 33.
9
AAVV, Le nouveau droit français de l`arbitrage, Paris, Lextenso éditions, 2011, p. 100.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 124

jurisdicional errada e, por outro, subsidariamente, outro regime que incide


sobre toda a restante atuação danosa que não encontra ali uma garantia
reparatória adequada.
À responsabilidade civil pelos danos provocados por uma decisão danosa
associa-se, em regra, um regime mais restrito, próximo da imunidade. Já
quanto à restante atuação judicial danosa admite-se um regime mais
garantístico de reparação dos danos. Este raciocínio bastante justificado e
evidente na administração da justiça estadual 10, onde a atividade em causa é
de natureza variada - oscilando entre a natureza administrativa, processual ou
jurisdicional (em sentido estrito) -, não deixa de se rever na administração da
justiça arbitral. Na arbitragem, a danosidade objeto de reparação, tal como
na administração da justiça estadual, acaba por receber dois regimes
distintos, consoante estejam em causa os danos causados pelo conteúdo de
uma decisão ou pela restante atuação. Uma nota diferenciadora revela-se no
fato de o legislador da LAV, ao contrário do legislador do regime aprovado
pela Lei 67/2007, não admitir uma cláusula geral de responsabilidade pelos
danos causados pela atuação ilícita do árbitro e dos seus auxiliares, antes
indicando apenas algumas situações de administração da justiça arbitral
ilegal abstratamente merecedoras de reparação.
De entre essas causas, admite-se a morosidade indevida. Esta causa de
imputação de responsabilidade civil está prevista no artigo 12.º do regime
aprovado pela Lei 67/2007 e assume um significado especial em matéria de
responsabilidade civil do Estado, nomeadamente pela sua definição a partir
das obrigações internacionais assumidas pelo Estado português no
cumprimento da CEDH. No entanto, como se deixou expresso mais acima,
também aquela causa de imputação é admitida pelo legislador da LAV,
devendo a determinação do conceito de prazo razoável fazer-se por apelo à
jurisprudência desenvolvida pelo TEDH.
A aproximação entre regimes não fica por aqui, pois, se para a
responsabilidade civil pela morosidade indevida na administração da justiça
estadual se admite um regime em que compete ao Estado e, caso haja direito
de regresso sobre juiz, a este provar que a morosidade não lhe é imputável, o

10
Cf., entre outros, MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA, “Âmbito e pressupostos da
responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional”, Revista do CEJ (2009),
pp. 265-291, 275.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 125

mesmo parece ocorrer no âmbito da administração da justiça arbitral onde,


de acordo com doutrina maioritária, incumbe ao árbitro provar que a falta de
cumprimento da justiça arbitral não resulta de culpa sua 11. Esta presunção de
culpa, na nossa opinião, parece já resultar, para estas situações, da própria
dogmática da responsabilidade civil pela administração da justiça.

II. Responsabilidade civil dos árbitros por decisões danosas

4. Já lá atrás se referiu que, de acordo com a LAV (art. 9.º/4), os árbitros são
irresponsáveis por danos decorrentes das suas decisões, salvo nos casos em
que os magistrados o possam ser. A pergunta que emerge face àquele
enunciado é qual o sentido a dar ao previsto naquele inciso legal?
A resposta imediata é que se deve aplicar o regime previsto no artigo 14.º/1
do regime aprovado pela Lei 67/2007 12. Antes de mais, o disposto naquele
artigo parece dar guarida à interpretação que, como já se referiu, alguma
doutrina defende ao aceitar uma aplicação extensiva do regime de
responsabilidade civil dos juízes ao dos árbitros. As razões para aplicação
daquele regime previsto para os juízes aos árbitros, justifica-se pela
necessidade de preservação das garantias de independência e
imparcialidade do julgador; pelo fato do laudo arbitral apresentar os mesmos
efeitos da sentença jurisdicional; e pela idêntica dificuldade em identificar os
danos resultantes de erro de julgamento. Estas razões derivam, sobretudo, de
se estar perante o exercício da função jurisdicional (ainda que privada) e de o
erro ser inerente à atividade jurisdicional, independentemente da atividade
jurisdicional ser pública ou privada.

II.a Limites Substantivos

11
Cf., entre outros, HENRIQUE MESQUITA, “Arbitragem…”, p. 1392; e PEDRO ROMANO MARTINEZ,
“Análise…”, p. 841.
12
Este dispõe que: “Sem prejuízo da responsabilidade criminal em que possam incorrer, os
magistrados judiciais e do Ministério Público não podem ser directamente responsabilizados
pelos danos decorrentes dos actos que pratiquem no exercício das respectivas funções, mas,
quando tenham agido com dolo ou culpa grave, o Estado goza de direito de regresso contra
eles.” (sublinhado nosso).

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5. Apesar da resposta a reter ser a de que a interpretação do artigo 9.º/4 da


LAV remete para o disposto no artigo 14.º/1 13 do regime aprovado pela Lei
67/2007, que se refere à responsabilidade civil dos juízes, deve ter-se presente
que este regime deve ser aplicado com as necessárias adaptações, pois a
responsabilidade dos juízes é indireta14 enquanto a dos árbitros é direta; o
Estado responde pela atuação dos juízes, mas não pela atuação dos árbitros;
e os juízes respondem perante os danos causados às partes e terceiros,
enquanto, de acordo com o disposto no artigo 9.º/5 da LAV, os árbitros
apenas respondem perante os danos causados às partes.
O regime previsto no artigo 14.º/1 apenas se aplica aos árbitros quando
haja culpa destes, exigindo este dispositivo dolo ou culpa grave. Esta asserção
torna claro, por um lado, a identificação do regime de responsabilidade civil
dos juízes com a dos árbitros e, por outro, que tal responsabilidade se distingue
da responsabilidade civil dos particulares em geral, em que se admite culpa
leve como requisito suficiente.

6. Fica por perceber se, para além do requisito culpa, a exigência do nível
ilicitude deve ser análogo ao previsto para a responsabilidade civil do Estado.
Dito de outra forma, deve aplicar-se também o regime do erro judiciário
previsto no artigo 13.º/1 do regime aprovado pela Lei 67/2007 15, enquanto
elemento obrigatório para o apuramento da responsabilidade civil dos
árbitros?
Antes de se responder a esta questão deve esclarecer-se que o legislador
do regime aprovado pela Lei 67/2007 e a jurisprudência (unânime 16) exigem
um ilícito qualificado, ou seja, não é qualquer erro que pode gerar obrigação
de indemnizar, mas apenas o erro grosseiro, manifesto, palmar, etc. referindo-

13
Norma replicada nos estatutos dos magistrados judiciais e do Ministério Público.
14
Sobre este regime, por todos, CARLA AMADO GOMES, “ABC da (ir)responsabilidade dos
juízes no quadro da lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro”, Scientia Ivridica, n. 322 (2010), pp. 261-
277, 261 e ss.
15
Este artigo dispõe que: “Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença
penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente
responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais
ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de
facto”.
16
Cf., por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-02-2012, proc.
825/06.3TVLSB.L1.S1, Nuno Cameira.

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se a lei a “danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente


inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação
dos respectivos pressupostos de facto”.
Para este efeito, releva qualquer tipo de erro: seja erro de direito (processual
e substantivo), seja de facto (apreciação dos meios de prova ou decisão
contra os factos provados). No entanto, estão obviamente excluídos erros
materiais que devem ser objeto de retificação nos termos previstos no artigo
45.º da LAV. Podendo ainda as partes requerer a eliminação dos erros que
possam eventualmente ser corrigidos por via da retificação do vício da
omissão de pronúncia (arts. 45.º/2/5 e 46.º/7).
A resposta à última questão alinhavada deve ter em conta que o regime
previsto no artigo 13.º/1 do regime aprovado pela Lei 67/2007 se refere à
responsabilidade civil direta do Estado (e não dos juízes) e que só depois de
ultrapassado este primeiro filtro é que os juízes podem responder em sede de
direito de regresso. Erro e culpa são, com efeito, conceitos distintos. Embora
esta conclusão não seja unânime na doutrina17, em sede de responsabilidade
civil do Estado, o erro pode não ser culposo, o que tem por consequência que
o Estado pode responder, em primeira linha, por erro judiciário, apesar de,
posteriormente, em segunda linha, isto é, em sede de ação de regresso se
concluir que a atuação dos juízes não foi dolosa ou culposamente grave, não
gerando responsabilidade para os juízes, apesar de ter gerado obrigação de
indemnização ao Estado.
O erro judiciário para efeitos de responsabilidade civil do Estado é um
conceito mais amplo do que para efeitos de responsabilidade dos juízes. A
amplitude do regime de responsabilidade civil do Estado não deve valer para
os árbitros que apenas respondem nos casos de dolo ou culpa grave, como
resulta da aplicação do disposto no artigo 14.º/1 do regime aprovado pela Lei
67/2007. Deve ficar assente que o conceito de erro da decisão arbitral para
efeitos de responsabilidade civil dos árbitros é mais restrito que o erro da
decisão jurisdicional pública quando está em causa apurar a responsabilidade

17
Em sentido afirmativo, JUAN MONTERO AROCA, Responsabilidad civil del Juez y del Estado
por la actuación del Poder Judicial, Madrid, Tecnos, 1988, p. 112; e VICENTE C. GUZMÁN FLUJA, El
derecho de indemnización por el funcionamiento de la administración de justicia, Valencia,
Tirant lo Blanch, 1994, p. 152. Contra, ELIZABETH FERNANDEZ, “Responsabilidade do Estado por erro
judiciário: perplexidades e interrogações”, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 88 (2011), pp.
14-22, 19.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 128

civil do Estado. Para além disso, deve ter-se presente a não identificação de
ilegalidade com ilicitude e que o direito à reparação apenas tem lugar
mediante a verificação de ilicitude.
Sintetizando, por um lado, a responsabilidade civil dos árbitros apenas
poderá ocorrer nos casos de dolo ou culpa grave, aqui se distinguido da
responsabilidade civil do Estado, que também poderá ter lugar nos casos em
que não se identifique a culpa dos juízes. E, por outro, não se vê razão para
não aplicar extensivamente o requisito do erro judiciário aos árbitros, no
entanto, como a jurisprudência tem notado, a distinção destes dois elementos
(erro e culpa) será muito difícil de fazer na prática, havendo uma confusão
entre ilicitude e culpa, sendo apenas admitida a responsabilidade civil por erro
culposo, resultante, nomeadamente, de um desconhecimento do Direito 18 ou
de conduta manifestamente ilegal do juiz19.

II.b Limites processuais

7. Uma outra questão que deve ser respondida prende-se com a eventual
exigência da prévia revogação da decisão danosa, prevista no artigo 13.º/2
do regime aprovado pela Lei 67/2007 20, ou seja, deve procurar-se uma
resposta que clarifique se o referido regime deve ou não aplicar-se à
responsabilidade civil dos árbitros por decisões danosas. As razões para aquela
exigência são: a garantia da idoneidade do juízo arbitral; a salvaguarda da
intangibilidade do caso julgado e a independência do julgador. A sua função
desta exigência centra-se no aferir da ilegalidade, ainda que não se vise a sua
qualificação, de modo a determinar a ilicitude.
A exigência da prévia revogação da decisão danosa enfrenta graves
entraves jurídicos quando, por alguma razão, o ordenamento jurídico não
permite que a mesma tenha lugar seja por razões de sucumbência, seja em
18
Cf., por exemplo, acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 03-07-2003, proc.
0333155, Oliveira de Vasconcelos.
19
Cf. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10-10-2009, proc. 173/2001.P1, José
Carvalho.
20
Este artigo impõe que: ”O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação
da decisão danosa pela jurisdição competente”. Considerando esta exigência um pressuposto
processual, cf. PAULA COSTA E SILVA, “A ideia de Estado de direito e a responsabilidade do Estado
por erro judiciário: The king can do [no] wrong”, O Direito, Ano 142, n. 1 (2010), pp. 39-80, 75, e
ELIZABETH FERNANDEZ, “Responsabilidade…”, p. 20. Em sentido contrário, considerando que se trata
de um facto constitutivo do direito à reparação, cf. CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas: anotado, 2.ª
edição, Lisboa, Coimbra Editora, 2011, p. 276.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 129

razão do valor da causa, seja por outra razão qualquer. Destarte, não
podendo tal revogação ter lugar por alguma daquelas razões e aplicando
literalmente o disposto no artigo 13.º/2 a consequência óbvia será a exclusão
automática do dever de indemnizar.
Este tema tem sido objeto da atenção da doutrina nacional, a propósito da
responsabilidade civil do Estado, variando as posições entre: a) os que
defendem que se a decisão já não admite ser revogada não poderá ter lugar
ação de responsabilidade civil, precludindo-se deste modo o direito à
reparação21; b) outros que, tratando-se da aplicação de direito da UE,
defendem que aquela exigência deve ter-se por não escrita, pois tal
exigência não resulta da jurisprudência do TJ em matéria de responsabilidade
civil dos EM por violação do direito da UE 22; c) outra doutrina que defende que
se tal exigência não pode ter lugar por razões ligadas ao funcionamento de
recursos, privando, desse modo, o lesado de intentar a ação de
responsabilidade civil, o disposto no artigo 13.º/2 deve ter-se por
inconstitucional (não só por violar o direito à reparação dos danos sofridos,
mas também por violação do direito à tutela jurisdicional efetiva 23); d) e, por
fim, aqueles autores que, procurando salvaguardar a utilidade daquela
exigência, defendem uma interpretação generosa da admissão do recurso de
revisão previsto nas alíneas a) e b) do artigo 771.º do CPC 24, aí incluindo as
decisões intoleravelmente injustas.

8. Centrando agora a atenção nas possibilidades de cumprimento


daquela exigência de revogação da decisão danosa em matéria
de responsabilidade civil dos árbitros torna-se indispensável, antes de
mais, identificar os meios processuais postos à disposição das partes,
pelo legislador da LAV, para atacar a decisão arbitral. Tratando-se

21
Cf. JOSÉ MANUEL M. CARDOSO DA COSTA, “Sobre o novo regime da responsabilidade do
Estado por actos da função judicial”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 138, n.º 3954
(2009), pp. 156-168, 165.
22
Cf., entre outros, CARLA AMADO GOMES, “O livro das ilusões: a responsabilidade do Estado
por violação do Direito Comunitário, apesar da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro”, Revista do
CEJ, n.º 11 (2009), pp. 291-315; MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA, O regime de responsabilidade civil
extracontratual do Estado e demais entidades públicas e o Direito da União Europeia, Sl,
Almedina, 2009, p. 56; e NUNO PIÇARRA, “As incidências do direito da União Europeia sobre a
organização e o exercício da função jurisdicional nos Estados-Membros”, disponível na internet,
pesquisa confrontável a partir do título, consultado em 2.12.12.
23
Cf. ELIZABETH FERNANDEZ, “Responsabilidade…”, p. 22.
24
Cf. PAULA COSTA E SILVA, “A ideia de Estado…”, p. 72 e 74.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 130

de arbitragem, as possibilidades legais de impugnar a decisão


arbitral centram-se no recurso, na oposição à execução e na
impugnação do laudo arbitral.
O recurso apenas terá lugar se for convencionado pelas partes, ou seja,
este meio de anulação surge com carácter excecional e limitado às decisões
de direito (art. 39.º/4).
A oposição à execução do laudo arbitral admite, grosso modo, os mesmo
fundamentos de anulação que a impugnação do laudo arbitral, para além
dos fundamentos de impugnação admitidos no processo executivo cível (art.
48.º).
Por fim, a impugnação do laudo arbitral. Esta ação de anulação está
limitada às hipóteses taxativamente previstas no artigo 46.º/3 da LAV. Apesar
de se tratar de um elenco variado, os fundamentos que se referem ao mérito
da decisão acabam por se circunscrever à violação do princípio da
igualdade, do contraditório e à ofensa dos princípios de ordem pública
internacional do Estado português25.
Depois de expostos, ainda que muito sucintamente, os meios processuais
possíveis de impugnação da decisão arbitral admitidos pela LAV, importa
retomar a pergunta deixada acima em suspenso - deve exigir-se a prévia
revogação da decisão danosa em matéria de responsabilidade civil dos
árbitros. A resposta a esta pergunta revela os mesmos limites em que se
movimenta a responsabilidade civil do Estado ao que se somam as
especificidades da arbitragem, que, por natureza, constitui uma alternativa à
administração da justiça estadual e que, enquanto alternativa, apresenta,
nomeadamente, um modo de impugnação das decisões arbitrais distinto,
rectius muito mais reduzido, do que o admitido para as decisões jurisdicionais
públicas.
Mesmo que se entenda que, caso a sentença já não possa ser revogada, se
exclui o acesso à ação para efetivar a responsabilidade civil dos árbitros
sempre se terá de perscrutar em que medida é possível cumprir a exigência
de revogação.

25
Sobre a compreensão deste fundamento de anulação, recentemente, ANTÓNIO PEDRO
PINTO MONTEIRO, “Da ordem pública no processo arbitral”, disponível na internet, pesquisa
confortável a partir do título, consultado em 2.12.12.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 131

Começando pelo recurso ordinário, deve desde já afirmar-se que o seu


carácter excecional impõe o seu abandono, enquanto meio impugnatório, na
medida em que se revela pouco adequado para a revogação de todas as
decisões danosas. A mesma conclusão deve ser repetida para a oposição à
execução, pois trata-se de um meio que está dependente da interposição de
uma ação de execução, ou seja, de uma ação cujo fim principal é a
execução e não um outro fim distinto, como é a revogação da decisão
danosa.
Mais prometedor poderia ser o instituto de impugnação do laudo arbitral,
desde logo, por ser este o instituto admitido em Itália para cumprir aquela
função (art. 813-ter do Codice di Procedura Civile). À luz do disposto na LAV, a
primeira conclusão que se retira da análise dos fundamentos de impugnação
do laudo arbitral aí previstos é a da inexistência de qualquer referência ao
fundamento erro da decisão arbitral. Se assim é, à luz da letra da lei, não se
deve, todavia, desconsiderar que alguns dos fundamentos de anulação aí
previstos podem ainda dar cobertura ao erro de direito. No entanto, torna-se
muito difícil estes oferecerem suporte à revogação da decisão por erro de
facto.
Os limites da revogação da decisão arbitral verificam-se ainda que se lance
mão de uma interpretação generosa do fundamento ordem pública (art.
46.º/3-b)-ii)), pois o tribunal que anule a sentença arbitral não pode conhecer
do mérito da questão ou questões por aquela decididas (art. 46.º/9). Se, por
um lado, o cumprimento da exigência da revogação prévia através do meio
de impugnação do laudo arbitral parece ser uma solução conforme com a
lógica da arbitragem, isto é, de ser alternativa à administração da justiça
pública, por outro, revela-se uma solução bastante limitadora da garantia
indemnizatória26.
Para além dos meios de revogação do laudo arbitral admitidos pela LAV,
poderia ainda equacionar-se lançar mão, tendo em conta a doutrina sobre a
revogação prévia de uma decisão jurisdicional estadual danosa, do recurso
de revisão previsto nas alíneas a) e b) do artigo 771.º do CPC 27. Todavia, esta

26
Cf. AAVV, Commentario breve al diritto dell’arbitrato nazionale ed internazionale,
Padova, CEDAM, 2010, p. 142.

27
Cf. MANUEL PEREIRA BARROCAS, Manual de arbitragem, Lisboa, Almedina, 2010, p. 373.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 132

via exigia uma interpretação extensiva dos fundamentos de um recurso que é


por natureza extraordinário28 e cujos fundamentos obedecem ao princípio da
taxatividade29. Acresce que este recurso revela-se pouco conforme com ideia
da arbitragem que se quer, por regra, cingida à impugnação da decisão por
via da anulação. Ainda assim, esta via persegue o valor Justiça, enquanto
valor que não pode, de todo, ser desconsiderado no momento de aferir da
possibilidade legal de cumprir o direito à reparação dos danos causados pela
administração da justiça arbitral30.

9. Por fim, face às limitações que resultam no cumprimento legal da


revogação da decisão danosa e, consequentemente, do direito à
reparação dos danos causados pelos árbitros, a outra solução que
salta à vista é a não exigência da revogação prévia da decisão
danosa. A principal justificação desta solução pode encontrar-se na
inconstitucionalidade de tal exigência, logo que o legislador não
providencie ao lesado um meio de revogação da decisão, desta
maneira, privando em abstrato o lesado do direito à reparação dos
danos causados (por legalmente não lhe ser possível o cumprimento
daquela condição).
Esta última hipótese parece ser a solução mais conforme com a ideia de
arbitragem. Não só por, em regra, na arbitragem não ter lugar recurso da
decisão final, como por não se admitir recurso das providências cautelares e
de ordem preliminar (art. 27.º/4)31. Além disso, esta parece ser a solução que
mais favorece a proteção dos direitos fundamentais: tutela jurisdicional efetiva
e reparação de danos.
28
JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil anotado, Vol. VI, 3.ª edição, Reimpressão,
Sl, Coimbra Editora, 2012, p. 339 e ss, referia-se, em anterior legislação, a vício processual, a dolo
do juiz, a falsidade de provas ou de atos judiciais e a superveniência de elementos decisivos.
29
Cf., entre outros, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14.07.2010, proc.
169/06.0TBAGN-A.C1, Regina Rosa; e LUÍS CORREIA DE MENDONÇA e HENRIQUE ANTUNES, Dos recursos:
regime do Decreto-Lei nº 303/2007, Lisboa, Quid Juris, 2009, p. 339.
30
Outra possibilidade admitida noutros países em matéria de responsabilidade civil do
Estado por erro judiciário passa pela admissão de um meio processual autónomo para revogar
a decisão danosa. Cf., no ordenamento jurídico espanhol, o disposto no artigo 293.º da Ley
Orgánica 6/1985, de 1 de julio, del Poder Judicial.
31
Cf. SUZANA SANTI CREMASCO, “A responsabilidade pelo exercício da função jurisdicional do
árbitro: uma leitura do enunciado do art. 9º, n.º 4 e n.º 5, da nova Lei de Arbitragem Voluntária
Portuguesa (Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro) a partir dos preceitos da Lei n.º 67/2007, de 31
de dezembro”, Revista Brasileira de Arbitragem, n.º 34 (2012), 1-33, p. 26.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 133

Outro dado que favorece a não exigência da prévia revogação danosa


resulta do facto de a LAV apenas referir o tribunal competente para a ação
tendente a efetivar a responsabilidade civil dos árbitros (art. 59.º/10), nada
dizendo sobre o tribunal competente para a revogação prévia da decisão
danosa. A exigência do disposto no artigo 13.º/2 do regime aprovado pela Lei
67/2007 está pensada para um sistema onde a admissão do recurso é a regra,
o que não acontece com a LAV. A possibilidade da indemnização não pode
estar condicionada pelo carácter restrito da impugnação do laudo. Fazer
depender o direito à reparação de um mecanismo de âmbito restrito e
controvertido, como é o caso da ação de anulação, é fazer repousar um
problema sobre outro problema.
A irrecorribilidade como regra é uma consequência da opção por um meio
alternativo de resolução de litígios, enquanto manifestação da renúncia
parcial à administração da justiça estadual. O facto de as garantias da
impugnação da sentença arbitral serem inferiores às previstas para a sentença
jurisdicional não poderá querer dizer que a responsabilidade civil da
arbitragem também deva ser inferior à da administração da justiça estadual.
Na verdade, uma coisa é a garantia primária de impugnação e outra é a
garantia secundária de reparação. Aliás, exigir um meio revogatório que, por
razões legais, não cobre todas as situações potencialmente geradoras de
danos, assim privando o lesado da garantia reparatória devida, reduz a
arbitragem a um meio muito menos garantístico do que os tribunais estaduais,
degradando-o num meio de administração da justiça pouco compatível com
a ideia de Estado de Direito.
Em suma, nenhuma das soluções adiantadas é plenamente satisfatória. Em
todas elas se terá de sacrificar parcialmente algum dos valores tutelados pela
ordem jurídica. Se na primeira solução, por um lado, se dá prevalência à
segurança jurídica32 e à congruência do sistema jurídico, por outro, pouco se
adequa ao valor justiça, quando os limites processuais que impendem sobre a
possibilidade de revogação da decisão danosa restringem de forma

32
No sentido de o caso julgado “(…) não poder prevalecer sobre outros valores tutelados
pelo ordenamento jurídico”, cf. PAULA COSTA E SILVA, “A ideia de Estado…”, p. 74. E esclarecendo
que “pode dar-se o caso de os inconvenientes e as perturbações resultantes da quebra do
caso julgado serem muito inferiores aos que derivariam da intangibilidade da sentença”, veja-se
JOSÉ ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil anotado, Vol. VI, 3.ª edição, Reimpressão, Sl,
Coimbra Editora, 2012, p. 336 e ss.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 134

desproporcionada o acesso à reparação dos danos. Já na segunda solução


adiantada, apesar do valor segurança poder sair beliscado, é o valor justiça
que ganha fôlego, dignificando o meio alternativo de resolução de litígios
arbitragem e colocando-o mais próximo do standard de reparação de danos
previsto pelo regime da responsabilidade civil da administração da justiça
estadual.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 135

Risco(s) de civilização, responsabilidades comunicacionais


e irresponsabilidades residuais*

Carla Amado Gomes


Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Professora Convidada da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

0. Introdução; 1. Risco de civilização, risco residual e risco intolerável: ecos da decisão


Kalkar; 2. Risco de civilização - I: a inindemnizabilidade do desconhecido; 2.1. Notas
sobre a responsabilidade da função administrativa por informações difundidas em
cenários de incerteza; 3. Risco de civilização - II: a inindemnizabilidade do residual

0. A entrada em vigor do regime aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de


Dezembro (que acolhe o regime da responsabilidade civil extracontratual do
Estado e demais entidades públicas = RRCEE), antecedida da polémica em
torno do veto político do Presidente da República ― por a considerar uma
“inimiga” do erário público ― e sucedida pela descoberta de soluções (pelo
menos aparentemente) muito generosas para os lesados (desde logo, em
razão da clarificação da questão da imputação de responsabilidade do
Estado por facto de qualquer uma das suas funções1), incute uma sensação
de alteração de paradigma no sentido de uma maior cobertura pública de
riscos sociais. É, em determinados casos, uma falsa impressão, em razão das
dificuldades que o RRCEE vai plantando pelos caminhos normativos, sobretudo
nos planos da responsabilização das funções jurisdicional e legislativa 2. Mas é
*
Agradeço ao Dr. José Manuel Ribeiro de Almeida a leitura de uma primeira versão deste
texto. Quaisquer erros ou imprecisões, bem como as opiniões expressas, são-me inteira e
exclusivamente imputáveis.
1
Embora dubitativamente quanto à função política ― cfr. Carla AMADO GOMES e Miguel
ASSIS RAIMUNDO, Topicamente ─ e a quatro mãos… - sobre o novo regime de responsabilidade
civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, in Textos dispersos de Direito da
Responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas, Lisboa, 2010, pp. 235 segs, 244-
248.
2
Cfr., entre outros: para a função jurisdicional: Carla AMADO GOMES, ABC da
(ir)responsabilidade dos juízes, in SI, nº 322, 2010, pp. 261 segs (também publicado nos Estudos
em homenagem a J. L. Saldanha Sanches, I, Coimbra, 2011, pp. 77 segs); Carlos CADILHA,
Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, 2ª ed.,
Coimbra, 2011, pp. 249 segs (anotação ao artigo 13º do RRCEE); para a função legislativa,
Carlos CADILHA, idem, pp. 294 segs (anotação ao artigo 15º do RRCEE); Jorge MIRANDA, A

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 136

uma certeza em hipóteses como a responsabilidade administrativa, por facto


ilícito (falta leve) e pelo risco.
Em reflexões anteriores, tivemos oportunidade de ressaltar estes aspectos e
de nos posicionar contra o que pensamos ser uma excessiva abertura que o
RRCEE propicia em sede de cobertura de danos decorrentes de
actuações/omissões da função administrativa3-4. Neste texto e continuando no
pensamento em “contra-corrente”, a nossa intenção é explorar (outras)
hipóteses de irreparabilidade de danos decorrentes de actuações/omissões
dos poderes públicos a partir da figura do “risco de civilização” ― noção
textualmente ausente do RRCEE mas, pensamos, presente, nos seus
desdobramentos, na teleologia do instituto da responsabilidade civil em que o
RRCEE se filia.
Antes de iniciar esta reflexão, convém fazer uma precisão sobre o conceito
operativo de risco de civilização com que vamos lidar, mormente em relação
à noção-mãe de “risco tecnológico”. O risco de civilização é um risco do
progresso ou, pelo menos, do desenvolvimento tecnológico, um risco
introduzido pelo engenho humano com vista à geração de maior segurança
e/ou bem estar, que pode estar identificado e avaliado ― e, por isso, ser
gerido ―, ou ser (ainda) desconhecido, o que exonera entidades públicas e
privadas da sua gestão e reparação. Cumpre também ter em mente que o
risco tecnológico está normalmente associado a actividades ou produtos
introduzidos no mercado por privados, cabendo aos poderes públicos

fiscalização da inconstitucionalidade por omissão, in Estudos em homenagem a Miguel Galvão


Teles, I, Coimbra, 2012, pp. 687 segs, 711-712; Mário AROSO DE ALMEIDA, Regime jurídico da
criação de municípios e recurso para o Tribunal Constitucional no âmbito das acções de
responsabilidade do Estado por ilícito legislativo: a propósito do acórdão do Tribunal
Constitucional nº 134/2010, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, II, Lisboa,
2012, pp. 755 segs, 762-765.
3
Cfr. Carla AMADO GOMES, A responsabilidade civil extracontratual da Administração por
facto ilícito: reflexões avulsas sobre o novo regime da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, in Textos
dispersos de Direito da Responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas, Lisboa,
2010, pp. 49 segs, max. 60-61; A responsabilidade civil extracontratual da Administração pelo
risco: uma solução arriscada?, in Textos dispersos de Direito da Responsabilidade civil
extracontratual das entidades públicas, Lisboa, 2010, pp. 85 segs, max. 103-108.
4
Chamando identicamente a atenção para alguma “liberalidade” do legislador do RRCEE,
Paulo OTERO, Causas de exclusão da responsabilidade civil extracontratual da Administração
Pública por facto ilícito, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Manuel Sérvulo Correia,
II, Lisboa, 2010, pp. 965 segs, e José Carlos VIEIRA DE ANDRADE, A responsabilidade
indemnizatória dos poderes públicos em 3d: Estado de Direito, Estado fiscal, Estado social, in
Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, I, Coimbra, 2012, pp.
55 segs

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 137

competências de enquadramento legislativo e controlo administrativo, ex


ante e ex post ― o que pode interferir tanto no se, quanto no como, da
responsabilidade das entidades públicas.

1. Desde a publicação da obra de Ulrich Beck sobre a sociedade de risco


(Risikogesellschaft: um der Weg nach anderes Moderne, 1986), a percepção
de que o progresso traz consigo tanto bem-estar quanto inquietação instalou-
se definitivamente. Os avanços técnico-científicos sucedem-se ao ritmo da
pulsão humana para a criatividade e para o lucro, perturbando os equilíbrios
naturais e desestabilizando as relações de causalidade até então conhecidas,
mas também introduzindo novos padrões de conforto e segurança. Cidadãos
e governos foram-se habituando a conviver com a nova realidade do risco
tecnológico, convívio esse nem sempre pautado pela transparência nem pela
objectividade5.
O risco tecnológico acarreta novos níveis de responsabilização, tanto para
os cidadãos ― que dele beneficiam e devem sobre ele informar-se ―, como
para o Estado, que deve impedi-lo, preveni-lo, ou limitar-se a tolerá-lo. A
responsabilidade pública tem aqui um sentido alargado, preventivo, na
vertente dos deveres de protecção ― de informação, de minimização, de
fiscalização, de desmantelamento ― mas também reparatório, em caso de
défice de protecção, quer directa quer indirectamente (no âmbito do
exercício de competências autorizativas de actividades cujo impacto para a
saúde, segurança e ambiente seja significativo).
O risco tecnológico, enquanto facto futuro e incerto, cuja eclosão é
susceptível de causar danos a pessoas, património e ambiente constitui, desde
a decisão Kalkar do Tribunal Constitucional alemão, de 1978 6, objecto de uma
análise tridimensional, em função de um critério de intensidade ou de grau:
enquanto risco residual, enquanto risco (simples), e enquanto risco intolerável.
O primeiro equivale ao risco ineliminável numa sociedade tecnológica, cuja
população aprecia o progresso e o acréscimo de bem-estar que a tecnologia
acarreta (no caso Kalkar, o risco de acidente numa central nuclear em
contraponto à disponibilidade de energia barata). Trata-se de uma grandeza

5
Carla AMADO GOMES, Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de
protecção do ambiente, Coimbra, 2007, pp. 234-236 (e doutrina aí citada).
6
Sobre a decisão Kalkar, Carla AMADO GOMES, Risco e modificação…, cit., pp. 395-399.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 138

com uma dimensão negativa, mas cujo benefício ― imediato e certo ―


suplanta o malefício ― remoto e eventual.
Já o risco intolerável traduz-se numa possibilidade de ocorrência de danos
que uma dada sociedade temporalmente situada rejeita, por contrário a um
sentimento comum de segurança ou de ética (v.g., uso de armas químicas;
clonagem de seres humanos). Cabe desde logo ao legislador democrático
excluir este tipo de hipóteses do elenco de riscos geríveis pela Administração ―
ainda que esse “legislador democrático” se situe numa esfera decisional
externa (nomeadamente, no plano supraestadual da União Europeia)
relativamente às instituições estatais7.
Finalmente, o risco tout court, corresponde a toda a margem de incerteza
relacionada com a utilização da técnica pela sociedade, que traz benefícios
gerais mas pode importar em danos globais, graves e irreversíveis; donde,
deve ser avaliado e gerido pelas entidades administrativas competentes.
Em bom rigor, estamos perante uma divisão bipartida, pois o que releva
para legislador e administrador é a separação entre risco aceitável e risco
inaceitável ― risco residual e risco intolerável. O risco tout court, enquanto
realidade de contornos incertos quanto ao se e/ou quanto ao como, constitui
o elo de ligação entre os dois níveis referidos ― essencialmente políticos e
praticamente técnicos ―, podendo um risco inicialmente intolerável tornar-se
residual (por avanço técnico que permita reduzir a potencialidade de eclosão
ou a intensidade desta; por alteração das concepções ético-sociais) e, em
contrapartida, podendo um risco inicialmente residual transformar-se em
intolerável (por aumento da possibilidade de eclosão; em face da descoberta
de substitutos que tornem inaceitável a manutenção do índice de risco
anterior).
Além destas categorias, introduziríamos uma quarta, aquela que mais
directamente nos convoca esta reflexão: a do risco do desenvolvimento
tecnológico ou risco de civilização em sentido estrito (development risk; risque
du développement; risco de desarrollo). Trata-se de uma hipótese paradoxal,
dado que só quando um risco de civilização deixa de o ser ― para se
degradar em risco (residual), evitável ou minimizável, ou para se agigantar a
risco intolerável ―, se torna relevante para o Direito. Ou seja, o risco de

7
Cfr. Carla AMADO GOMES, Risco e modificação…, cit., pp. 434-435.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 139

civilização é um risco de avaliação técnica pretérita mas de valoração


jurídica presente ― caso perca a sua natureza de risco totalmente
desconhecido para se tornar conhecido. E é na “transição” da ignorância
para a incerteza que os problemas se colocam, tanto para quem introduz o
factor de risco que se revela, como para quem o deverá (passar a) controlar.

2. Numa primeira acepção, o risco de civilização corresponde a um risco


totalmente desconhecido, ou seja, um risco associado a um efeito adverso
que o seu criador ou produtor ignorava por completo no momento em que o
introduziu na esfera pública, sendo essa ignorância plenamente legítima à luz
das melhores informações relevantes disponíveis8. Na fórmula utilizada pelo
Tribunal de Justiça da União Europeia, a propósito da cláusula de isenção de
responsabilidade do produtor constante da directiva 85/374/CEE, do
Conselho, de 25 de Julho de 1985 (relativa à aproximação das disposições
legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros em matéria
de responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos)9,

“…para se poder exonerar da sua responsabilidade, nos termos do


artigo 7°, alínea e), da directiva, o produtor de um produto defeituoso
terá de demonstrar que o estado objectivo dos conhecimentos técnicos
e científicos, incluindo o seu nível mais adiantado, no momento da
colocação em circulação do produto em causa, não permitia detectar
a existência do defeito. Importa, para que possam validamente ser
opostos ao produtor, que os conhecimentos científicos e técnicos
pertinentes tenham sido acessíveis no momento da colocação em
circulação do produto em causa” (itálico nosso).

8
Cfr. a definição de «produto seguro» constante do artigo 3º/b) do DL 69/2005, de 17 de
Março (sobre segurança geral dos produtos): “qualquer bem que, em condições de utilização
normais ou razoavelmente previsíveis, incluindo a duração, se aplicável, a instalação ou
entrada em serviço e a necessidade de conservação, não apresente quaisquer riscos ou
apresente apenas riscos reduzidos compatíveis com a sua utilização e considerados
conciliáveis com um elevado nível de protecção da saúde e segurança dos consumidores,
tendo em conta, nomeadamente:
i) As características do produto, designadamente a sua composição;
ii) A apresentação, a embalagem, a rotulagem e as instruções de montagem, de
utilização, de conservação e de eliminação, bem como eventuais advertências ou outra
indicação de informação relativa ao produto;
iii) Os efeitos sobre outros produtos quando seja previsível a sua utilização conjunta;
iv) As categorias de consumidores que se encontrarem em condições de maior risco ao
utilizar o produto, especialmente crianças e os idosos”.
9
Caso C-300/95, de 29 de Maio de 1997, considerando 29.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 140

O risco desconhecido não deve ser encarado como passível de accionar os


mecanismos da responsabilidade civil, nem por facto ilícito ― pois o seu criador
não tem condição ou obrigação de o conhecer ou de o imaginar; logo, não
lhe pode ser assacada qualquer culpa ―, nem pelo risco ― porque o risco não
é típico, donde não existir ilicitude. Mesmo se invocarmos o princípio da
precaução ― ou a lógica de antecipação da prevenção que lhe subjaz,
como preferimos10 ―, este tipo de riscos não será passível de imputação no
plano da responsabilidade civil, nem das entidades privadas autorizadas nem
das entidades públicas autorizantes, pois não existia, no momento da emissão
da autorização, o mais ínfimo indício de que se poderia vir a registar.

Assinale-se a redacção do artigo 5º /e) do DL 383/89, de 6 de Novembro (que


transpôs a directiva 85/374/CEE, supra citada), que reza:

“O produtor não é responsável se provar: (…) e) Que o estado dos


conhecimentos científicos e técnicos, no momento em que pôs o produto em
circulação, não permitia detectar a existência do defeito;”

bem assim como a subalínea ii) da alínea b) do nº 3 do artigo 20º do DL


147/2008, de 29 de Julho, onde se lê que

“3. O operador não está ainda obrigado ao pagamento dos custos das
medidas de prevenção ou de reparação adoptadas nos termos do presente
decreto-lei se demonstrar, cumulativamente, que:
a) Não houve dolo ou negligência da sua parte;
b) O dano ambiental foi causado por: (…) ii) Uma emissão, actividade ou
qualquer forma de utilização de um produto no decurso de uma actividade que
não sejam consideradas susceptíveis de causar danos ambientais de acordo
com o estado do conhecimento científico e técnico no momento em que se
produziu a emissão ou se realizou a actividade”.

Imputar danos neste cenário não é, pois, admissível. Como explica Aude
ROUYÈRE, a imputação seria, neste caso, retroactiva e extravasaria mesmo os
parâmetros lassos e pouco definidos da precaução, que admite a tomada de
medidas em cenários de incerteza: “Já não se trata apenas de raciocinar com
base numa hipótese de risco cuja probabilidade de pertinência é indefinida
mas antes de uma ausência de incerteza devido ao facto de o risco não ser
sequer imaginável”11 (itálico nosso). Insiste-se em que configurar a hipótese da
10
Carla AMADO GOMES, Risco e modificação…, cit., pp. 414-421.
11
Aude ROUYÈRE, Responsabilité et principe de précaution, in Actes du colloque: vers de
nouvelles normes en droit de la responsabilité publique, Palais du Luxembourg, 11/12 mai 2001, II.
B) ― disponível em

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 141

responsabilidade civil neste contexto é questionável, não só do ponto de vista


da filosofia do instituto ― promover a reparação de um dano que dolosa ou
negligentemente se propiciou ou em cuja álea de actividade era susceptível
de ocorrer ―, como também na perspectiva da articulação com algumas
liberdades jusfundamentais, como as de iniciativa económica privada, de
investigação científica, enfim, de desenvolvimento da personalidade ― que
ficariam gravemente tolhidas em face de um cálculo de risco que assenta na
impossibilidade de exclusão teórica de ocorrência.
Autores há, todavia, que defendem ser o produtor/criador/empresário
sempre responsável pelos danos gerados por produtos/invenções/actividades
decorrentes de riscos totalmente desconhecidos à data da introdução no
mercado/início de funcionamento, uma vez que, estando criador do risco e
consumidor em pé de igualdade face ao desconhecido, será mais justo
onerar o operador económico ― mesmo que através de uma técnica diversa
da responsabilidade civil (v.g., recorrendo-se a fundos de garantia
12
alimentados por sectores de determinadas empresas) . Julgamos, salvo o
devido respeito, que esta posição vitimiza excessivamente o consumidor, que
utiliza o produto/pratica a actividade para incrementar uma necessidade mais
ou menos essencial e que, tendo em consideração os controlos de segurança
que os produtos sofrem, estará exposto a um risco altamente residual. Em
contrapartida, a canalização de verbas para fundos de garantia de cobertura
de danos provocados por riscos desconhecidos constituirá um factor inibitório
da actividade económica/de investigação que desacelera o progresso
técnico-científico e acaba por onerar aleatoriamente os consumidores (em
razão da repercussão desses custos no preço dos produtos/actividades)13.
Acresce a esta problemática a questão da dificuldade de imputação de
danos muito desfasados da utilização/consumo/prática da actividade que se

http://www.senat.fr/colloques/colloque_responsabilite_publique/colloque_responsabilite_publiq
ue13.html
12
É a posição sustentada por Lidia GARRIDO CORDOBERA, El «riesgo de desarrollo» - un
punto de tensión en la aplicación de los princípios del Derecho de daños, in Revista General de
legislación y Jurisprudencia, 2009/2, pp. 299 segs, max. 306. No mesmo sentido, mas com outros
argumentos, José ESTEVE PARDO, La adaptación de las licencias a la mejor tecnologia
disponible, in Revista de Administración Pública, nº 149, 1999, pp. 37 segs ― Autor que considera
que exonerar os operadores de responder pelos riscos de desenvolvimento viola o princípio da
precaução e demite-os de prosseguirem o objectivo continuado de incremento do nível de
segurança dos produtos.
13
Sobre este ponto, Vera Lúcia RAPOSO, A responsabilidade do produtor por danos
causados por dispositivos médicos, in Revista do IDB, 2013/5, pp. 4275 segs, 4322-4323.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 142

veio a revelar lesiva, em face de normas prescricionais (cfr. o artigo 309º do


Código Civil: 20 anos; o artigo 33º do DL 147/2008, de 29 de Julho: 30 anos).
Esta dificuldade é mais patente relativamente a danos instantâneos
(tratamento realizado na infância que provoca uma lesão só detectável na
maioridade) do que a danos cumulativos ou decorrentes da utilização
quotidiana de determinado produto (medicamento de toma diária cujo
potencial cardíaco se descobre; implante no qual se desvenda risco
cancerígeno), dado que, na transição de risco desconhecido para risco
suspeitado e eventualmente confirmado, o potencial lesado mantém
contacto com a fonte de risco. Tal diferença pode ter implicações para o
agente que introduziu o factor de risco no mercado e também para quem o
controla, mormente no plano dos deveres de informação.
Com efeito, a partir do momento em que o risco se torne conhecido ― leia-
se: pelo menos pressentido a partir de opiniões credíveis ―, a via da
responsabilidade começa a abrir-se. Pode ser, no entanto, difícil estabelecer o
momento a partir do qual o dever de prevenção, no máximo, ou o dever de
informação, no mínimo, desponta, caso a descoberta do risco não seja
assinalada: ou através de uma alteração legislativa14; ou na sequência da
ocorrência de um conjunto de factos lesivos que demonstrem nexo de
causalidade plausível com a actividade/produto em questão com
repercussão assinalável15; ou ainda perante a emergência de uma tendência
clara de reconhecimento do risco no seio da comunidade científica16.

14
Cfr. Aude ROUYÈRE, Responsabilité…, cit., II. A).
15
Recorde-se a “crise das vacas loucas”, que eclodiu no Reino Unido em meados da
década de 1980 e se prolongou pelo início do século XXI, que começou por provocar a morte a
milhares de vacas, tendo ficado paulatinamente provado ser causa de morte de pessoas, em
virtude de a ingestão de carne bovina gerar uma variante da doença de Creutzfeldt-Jakob nos
seres humanos.
16
Veja-se, por exemplo, o acórdão do TJUE (Caso 221/10, de 19 de Abril de 2012), sobre a
decisão de proibição de um tratamento de obesidade à base de uma substância
(afepramona), cujos efeitos se revelaram pouco eficazes e mesmo nocivos ao final de alguns
anos de aplicação. O TJUE considerou a decisão de revogação da autorização válida,
argumentando assim:

“103. A este respeito, a existência de um consenso no seio da comunidade médica


sobre a evolução dos critérios de apreciação do efeito terapêutico de um medicamento e o
facto de, no seio dessa comunidade e após essa evolução, a eficácia terapêutica desse
medicamento ser posta em causa constituem, nos mesmos termos que a identificação de
dados científicos ou de novas informações, elementos concretos e objetivos suscetíveis de
servir de fundamento à constatação do saldo benefícios/riscos negativo do referido
medicamento”.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 143

Assinale-se, por ilustrativa e actual, a questão do amianto. A inalação


de fibras de amianto começou a ser estudada no princípio do século XX
e foi caracterizada em 1930 como susceptível de provocar efeitos
cancerígenos. Em meados dos anos 1950, o potencial cancerígeno foi
atestado no Reino Unido, passando o risco da zona do desconhecimento
para a do risco conhecido pela comunidade científica. Na directiva
83/477/CE, de 19 de Setembro (relativa à aproximação das disposições
legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros
quanto à protecção sanitária dos trabalhadores expostos ao amianto
durante o trabalho), ficou definitivamente reconhecido, ao nível da
União Europeia, que a exposição a determinados níveis de amianto pode
constituir risco de contrair cancro, tendo a directiva 76/769/CEE, do
Conselho, de 27 de Julho (relativa à aproximação das disposições
legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros
respeitantes à limitação da colocação no mercado e da utilização de
algumas substâncias e preparações perigosas) fixado em 1 de Janeiro de
2005 a data de término da extracção e utilização de amianto na União
Europeia.
Em França, a justiça já condenou o Estado em acções de
responsabilidade interpostas por vítimas de exposição ao amianto
servindo-se deste ponto de viragem temporal, que “atesta uma
obrigação de prevenção decorrente de uma informação incontestada”
e que se firma num princípio de que “a emissão de directivas
comunitárias não permite ao Estado invocar a incerteza científica para
justificar um alheamento de deveres de antecipação do risco”17.
Em Portugal, apenas em 2011 se tomaram medidas legislativas, através
da Lei 2/2011, de 9 de Fevereiro, para prevenir este risco
emergentemente estabelecido. Este diploma concede ao Governo o
prazo de um ano para proceder ao levantamento dos edifícios e
equipamentos públicos que contenham amianto na sua estrutura (artigo
3º/1) e, uma vez identificados, o prazo de 90 dias para o retirar e substituir
(artigo 4º/2). Até agora, o inventário dos cerca de quatro mil edifícios
públicos que se estima conterem amianto ainda está muito longe de ser
concluído. Já houve casos de mortes de funcionários públicos cuja
relação com a inalação de amianto é admissível 18, podendo o atraso do
Estado na remoção deste material constituir causa de imputação de
responsabilidade por omissão ilícita, nos termos do artigo 9º/1 do RRCEE.

Complexo pode ser também, na ausência de previsão legislativa


habilitante, exigir da Administração (e impor ao operador autorizado) medidas
preventivas que extravasem a álea de risco previamente definida, dado que
17
Aude ROUYÈRE, Responsabilité…, cit., ponto I.A).
18
Cfr. O mistério do amianto – Revista Visão, 15 de Novembro de 2012, disponível em
http://visao.sapo.pt/o-misterio-do-amianto=f697629

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 144

se trata de ingerências na esfera jurídica do operador/titular da autorização


que se configuram como totalmente imprevistas e podem constituir um ónus
económico insuportável19. Certo é que, quer perante riscos totalmente
desconhecidos que subitamente se denunciam, quer face a novos riscos
associados a produtos/actividades já identificadas como susceptíveis de
interferir negativamente com a saúde ou o ambiente, as autoridades de
saúde e de vigilância económico-sanitária deverão ordenar a suspensão
temporária da actividade ou da comercialização do produto num cenário de
lesão iminente da saúde pública/ambiente ― mormente no caso de bens
alimentares ou medicamentosos, de consumo universal ―, ou pelo menos e
dependendo da análise de risco perfunctoriamente efectuada (em face da
urgência e da incerteza), difundir avisos sobre a suspeita de risco emergente.

2.1. Perante um risco emergente mas inesperado, os utilizadores dos


produtos/praticantes da actividade, consumidores em geral, devem ser
informados e/ou prevenidos sobre (continuar a) contactar com a fonte de
risco. A dimensão informativa envolve particulares dificuldades, pois a
ingerência recomendatória pode ser tão ou mais lesiva para o operador
económico do que a suspensão da comercialização (ou a imposição de
medidas de prevenção adicionais, que o princípio da reserva de lei pode não
comportar)20. É manifesto, todavia, que perante situações de alarme social
generalizado, com danos reais conhecidos, os poderes públicos têm um dever
de pacificação que passa pela transmissão de informação o mais objectiva e
precisa possível ― cuja comprovação do nexo de causalidade risco/lesão
ficará, em cenários de urgência, tanto mais aligeirada quanto maior se
afigurar a ameaça para bens jurídicos essenciais.
Não estamos aqui, decerto, perante a ordem de objectividade para que
nos remete o artigo 7º/2 do CPA, que imputa à Administração
responsabilidade por informações prestadas, a requerimento dos particulares,
por escrito. Notamos, neste particular contexto, uma especial concretização
19
Cfr. Carla AMADO GOMES, Risco e modificação…, cit., pp. 585-595. Frisando a
vinculação desta competência ao princípio da legalidade da competência, no plano do poder
cautelar de emissão de alertas sobre o risco sanitário e ambiental de determinados produtos,
cfr. Pedro GONÇALVES, Advertências da Administração Pública, in Estudos em homenagem ao
Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra, 2002, pp. 723 segs, 774 segs.
20
Sobre esta questão, desenvolvidamente, Pedro GONÇALVES, Advertências…, cit.,
passim.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 145

do princípio da boa-fé21, na vertente de não criação de expectativas


infundadas aos destinatários da informação, num quadro de tendencial
recato (entre a Administração e o requerente) 22; já relativamente às
informações/avisos difundidos em cenários de incerteza e clima emergencial,
a questão da responsabilidade torna-se, de uma banda, mais fluida,
nomeadamente quanto à avaliação do risco e quanto à plena comprovação
do nexo de causalidade; e, de outra banda, mais pública, em virtude do
aproveitamento que os meios de comunicação geralmente fazem de
situações de risco sanitário e ambiental. A complexidade agudiza-se em razão
da intermediação, no plano da saúde pública, das autoridades europeias 23,
podendo gerar-se situações de eventual responsabilidade das autoridades da
União Europeia, por difusão de alertas emitidos por um determinado Estado-
membro relativamente a produtos em circulação no espaço eurocomunitário.
Um exemplo pode ilustrar-se através do acórdão Malagutti-Vezinhet,
prolatado pelo Tribunal Geral em 10 de Março de 2004 (Caso T-144/02) 24.
Estava em causa um pedido de indemnização por danos causados à empresa
que dá nome ao aresto, em virtude de um alerta sanitário lançado pela
Comissão no âmbito do sistema de alerta rápido (actual RAPEX: directiva
2001/95/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Dezembro, sobre
21
Sintoma da contaminação do Direito Administrativo pelo Direito Civil, onde a boa fé
tem insuflado novos desdobramentos dos deveres de informação no plano contratual e levado
à correcção da aplicação literal do artigo 485º do CC ― sobre este ponto veja-se Jorge SINDE
MONTEIRO, Responsabilidade por informações, Anotação ao Acórdão do STA de 3 de Junho de 1998,
in CJA, nº 36, 2002, pp. 21 segs.
22
O sentido do preceito deve ser, tal como esclarecem os autores da lei procedimental
anotada (Mário ESTEVES DE OLIVEIRA, Pedro COSTA GONÇALVES e João PACHECO AMORIM,
Código do Procedimento Administrativo, Comentado, 2ª ed, Coimbra, 1997, pp. 119-120), o de
que “a Administração responde civilmente pelas informações prestadas aos particulares,
mesmo que não estivesse obrigada a fazê-lo, constituindo-se na obrigação de ressarcir os
prejuízos daí derivados. (…) É provável que uma investigação mais aprofundada venha a
revelar existirem, quanto à responsabilidade civil da Administração (por acto de gestão pública)
nesta matéria, algumas distinções a fazer, algumas particularidades a estabelecer: é que se, em
relação à informação errónea se aplicam aqui os requisitos gerais dessa responsabilidade ―
como o são o da negligência e o da causalidade ―, já quanto às informações não vinculadas
que (não sendo erróneas) foram contrariadas na decisão, se dispensará a verificação do
requisito da culpa (da negligência) ou, então, considerar-se-á estar ela ínsita no facto de a
Administração não ter realizado, logo de início, a ponderação que levou à decisão final
contrária”.
23
Num fenómeno de multiplicação dos parâmetros de normatividade (direito multinível) e
de refracção procedimental que por vezes convoca também o Direito da OMC,
nomeadamente o Codex Alimentarius. Alertando para esta complexidade, Suzana TAVARES DA
SILVA, Acto administrativo de faca e garfo, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José
Joaquim Gomes Canotilho, IV, Coimbra, 2012, pp. 617 segs, 627 segs.
24
Cfr. Luis GONZÁLEZ VAQUÉ, La sentencia «Malagutti-Vezinhet»: quién es responsable de
la información facilitada por el sistema comunitario de alerta en el ámbito de la seguridad de los
produtos?, in Revista de Derecho Comunitario Europeo, nº 19, 2004, pp. 917 segs.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 146

segurança geral dos produtos25), na sequência da detecção de um lote de


maçãs exportado para a Islândia, que alegadamente continha resíduos de
dicofol em quantidade muito superior à admitida. No processo ficou provado
que a Comissão e os seus serviços técnicos não haviam realizado qualquer
análise dos vários lotes de maçãs comercializados pela empresa em França e
Holanda, para além da Islândia, facto que determinaria a ilicitude do aviso.
Ainda assim, o Tribunal entendeu que as autoridades da União Europeia não
eram responsáveis pelos prejuízos causados à Malagutti-Vezinhet, porquanto
se comportaram como meros retransmissores (e amplificadores,
acrescentaríamos nós) da informação veiculada pelas autoridades de saúde
islandesas e agiram num quadro de urgência que as eximia de tomar a
iniciativa de promover testes a outros lotes eventualmente afectados.
Esta decisão da justiça da União Europeia é perfeitamente compreensível
quanto à protecção dos interesses das instituições europeias ― na perspectiva
da prevenção de riscos para a saúde pública e apesar do princípio da
liberdade de trocas comerciais ―, mas deixa dúvidas quanto à dimensão da
protecção dos operadores económicos em cenários de incerteza. Certo, a
empresa sempre poderia accionar as autoridades islandesas, mas estas
haviam efectivamente inspeccionado os lotes exportados para a Islândia e
detectaram dicofol em excesso; poderia ter accionado as autoridades
francesas e holandesas no sentido de apurar se efectivamente os lotes para aí
exportados continham igualmente dicofol em excesso ― ou propor-se ela
própria fazer tais medições de toxicidade… Certo é que o alerta já fora
lançado e a suspeita de risco instalara-se, o que tornaria qualquer medida
inibitória tendencialmente ineficaz. Donde, a via indemnizatória ser a única
exequível e a responsabilidade por facto lícito poder ser equacionada (v. infra,
3.).
Quando estão em jogo o ambiente e, sobretudo, a saúde pública ― contra
a iniciativa económica ―, a Administração pauta-se pelo lema de que é
melhor pecar por excesso do que por defeito 26. A culpa pela inacção é mais
25
O Decreto-Lei 69/2005, de 17 de Março, elege o Instituto do Consumidor (actual
Direcção-Geral do Consumidor, integrada no Ministério da Economia e Emprego) como
interlocutor nacional neste quadro, no âmbito do sistema de troca rápida de informações sobre
riscos de produtos alimentares, cabendo-lhe retransmitir as informações às autoridades de
controlo de mercado, conforme prevê o artigo 20º.
26
Esta tendência é, de resto, sancionada pela jurisprudência da União Europeia ― cfr.,
entre outros, o despacho de medidas provisórias do Tribunal Geral de 28 de Setembro de 2007,

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 147

facilmente caracterizável e socialmente muito mais censurável numa


ponderação preventiva que balanceie entre a segurança e a propriedade,
do que a culpa pela acção de salvaguarda de bens passíveis de sofrer lesões
irreversíveis contra prejuízo de interesses de natureza económica ― isto, claro,
perante a existência de indícios de risco, iminente, minimamente credíveis.
Foi este o posicionamento do STA, em Acórdão de 20 de Junho de 1989 27,
num caso em que se discutia a questão da eventual responsabilização do
Ministro da Agricultura, por facto ilícito, por ter difundido uma nota oficiosa
alertando a população para a actuação de um elenco de industriais e
comerciantes de carne de porco, numa época em que um surto de peste
suína africana grassava no país. O Supremo descartou o pedido de uma das
empresas incluídas na lista, que alegava ter sofrido danos ao seu bom nome
comercial, por entender que, naquelas circunstâncias e em virtude de notícias
vindas a lume na imprensa escrita onde se denunciava a actuação dessa
empresa (bem como de outras), cabia ao Ministro o dever de prevenir
atentados à saúde pública, pelo que não havia qualquer ilicitude na sua
conduta.
Residirá porventura nesta ideia ― de que, na dúvida perante um risco
iminente para vida e integridade física, o poder público se encontra
legitimado a recorrer a um balanceamento de interesses (mais) desequilibrado
em favor dos bens mais valiosos, porque tendencialmente infungíveis ―, a
principal justificação da sentença proferida por um tribunal italiano, em
Outubro de 2012, no caso do sismo de Aquila, ocorrido em 2009. Como é de
conhecimento geral, o colectivo de juízes considerou que os cientistas
membros da Comissão Grandi Rischi incutiram na população uma “falsa
sensação de segurança”, a qual desincentivou os comportamentos habituais
perante manifestações sísmicas (sair de casa e dormir na rua ou em carros até
a terra acalmar), provocando assim um aumento considerável do número de
proc. T-257/07 R, em cujo considerando 141 se pode ler o seguinte:

“Deve recordar-se, a este propósito, que, incontestavelmente, as exigências


relacionadas com a protecção da saúde pública devem prevalecer, em princípio, sobre as
considerações económicas (v. despacho do presidente do Tribunal de Primeira Instância de 30
de Junho de 1999, Alpharma/Conselho, T-70/99 R…). Decorre daí que, quando for invocado um
risco sério para a saúde pública, o juiz das medidas provisórias, não obstante a sua soberania
formal na ponderação dos interesses, penderá quase inevitavelmente a favor daquela (v., nesse
sentido, despacho do presidente do Tribunal de Primeira Instância de 11 de Abril de 2003, Solvay
Pharmaceuticals/Conselho, T-392/02 R …)”.
27
In Apêndice ao DR, de 15 de Novembro de 1994, pp. 4384 segs.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 148

mortes28. Certo, não estamos aqui perante um risco tecnológico, mas natural ―
porém, a questão da adequação da informação, em função da ponderação
dos bens a salvaguardar e da intensidade do risco a considerar, é também
convocada e pode envolver responsabilidade (civil e criminal) para os
poderes públicos e para quem os representa.

Refira-se neste ponto o Memorandum on scientific integrity emanado do


Gabinete do Assessor do Presidente Barack Obama para a Ciência e
Tecnologia, de 17 de Dezembro de 2010. Deste documento de aplicação
administrativa interna consta um ponto (II) dedicado à comunicação do risco
pelas agências governamentais, onde se destacam os imperativos de
exaustividade e transparência na comunicação de informação técnico-
científica (ressalvados os domínios protegidos). A comunicação enfatiza a
necessidade de os porta-vozes das alocuções serem claros e conhecedores das
matérias, de modo a transmitir a informação de forma completa e imparcial.
Refere-se também que, caso sejam cientistas ao serviço do Governo a realizar as
comunicações directamente ao público, as opiniões daqueles não serão
objecto de qualquer censura ou correcção. O ponto anterior já fizera, de resto,
menção aos princípios de integridade científica que regem a actividade de
investigação e comunicação científica por agências e cientistas no seio do
Executivo, sublinhando a necessidade de clareza na exposição das premissas,
de precisa contextualização das incertezas e de descrição das probabilidades,
para o melhor e pior cenários, se relevante.

Um outro caso conhecido, em que estava em jogo o dever de informação


num sentido amplo de dever de protecção, foi levado ao Tribunal de
Estrasburgo. No caso Öneryildiz contra a Turquia (2002)29, o Estado turco foi
condenado por défice de protecção da vida, integridade física e
propriedade de uma família da qual todos os membros faleceram (salvo o pai)
em virtude de uma explosão de gás metano numa lixeira nos arredores de
Istambul (Ümraniye), onde residiam clandestinamente, numa barraca. O
interesse do caso para a temática que nos ocupa prende-se com o facto de o
Estado turco se ter defendido alegando que cumprira o seu dever de alerta
28
Sobre o défice comunicacional que se verificou neste caso, Steven SHORE, “ But since
the affairs of men rest still uncertain, let’s reason with the worst that may befall”. Probability, risk,
and the 2009 L’Aquila Earthquake, disponível na Cornell University Library,
http://arxiv.org/abs/1211.3175v1 - acesso em Março de 2013.
29
Acórdão de 18 de Junho de 2002, proc. 48939/99. Desta decisão houve recurso para o
Pleno do Tribunal , que confirmou a posição tomada pela 1ª Secção por Acórdão de 30 de
Novembro de 2004. Para mais desenvolvimentos sobre este caso, Carla AMADO GOMES,
Escrever verde por linhas tortas: o direito ao ambiente na jurisprudência da Corte Europeia dos
Direitos do Homem, in Textos dispersos de Direito do Ambiente, III, Lisboa, 2010, pp. 165 segs, 186
segs.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 149

sobre risco de explosão; todavia, sendo o risco grave e iminente e estando


vidas em jogo, a informação deveria ter sido especialmente clara e proactiva,
não se bastando com a mera transmissão de uma possibilidade de risco mas
antes devendo caracterizá-lo como grave e iminente e acompanhando esse
aviso de actuações positivas que vencessem a natural resistência de pessoas
de baixa condição em abandonar o seu desolado lar.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou o Estado turco a
indemnizar o sobrevivente da família Öneryildiz nos termos sintetizados no
parágrafo que ora se transcreve:

"87. The Court therefore arrives at the conclusion that in the present case the
administrative authorities knew or ought to have known that the inhabitants of
certain slum areas of Ümraniye were faced with a real and immediate risk both to
their physical integrity and their lives on account of the deficiencies of the
municipal rubbish tip. The authorities failed to remedy those deficiencies and
cannot, moreover, be deemed to have done everything that could reasonably
be expected of them within the scope of their powers under the regulations in
force to prevent those risks materialising.
Furthermore, they failed to comply with their duty to inform the inhabitants of
the Kazım Karabekir area of those risks, which might have enabled the applicant
– without diverting State resources to an unrealistic degree – to assess the serious
dangers for himself and his family in continuing to live in the vicinity of the
Hekimbaşı rubbish tip".

A questão do quantum de informação na sociedade de risco é um ponto


crítico. Deve ser suficiente sem ser alarmista, deve ser objectivo sem ser
redutor. A vulnerabilidade que a sociedade de risco induz provoca muitas
vezes um agigantar pouco objectivo do sentimento de risco, levando o
consumidor/cidadão a fazer exigências excessivas face aos poderes públicos.
CIERCO SEIRA pontua este aspecto através do relato de um caso que ocupou
a justiça espanhola e que envolveu a difusão de informação sobre a
composição de determinados implantes mamários preenchidos com óleo de
soja em vez de silicone30. Gerou-se a dado passo uma suspeita, nunca
confirmada ― nem na prática nem por análise científica ―, de que tal material
poderia envolver risco para a saúde, e a empresa comercializadora
comunicou essa suspeita às autoridades de saúde espanholas, que

30
César CIERCO SEIRA, Las medidas preventivas de choque adoptadas por la
Administración frente a los productos insalubres, in Revista de Administración Pública, nº 175,
2008, pp. 55 segs, 101-104.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 150

recomendaram a substituição de tais implantes com base na informação


veiculada. Algumas mulheres portadoras dos implantes, além de os retirarem
(a suas expensas), accionaram a Administração por danos morais, por ter
autorizado a comercialização de produto cuja utilização pretérita lhes
causava ansiedade por eventuais lesões futuras.
Os tribunais não acolheram os pedidos pois consideraram que, para além
de a competência autorizativa não ter cabido às autoridades espanholas mas
sim às alemãs, nada havia a recriminar àquelas, pois haviam cumprido com
diligência o seu dever de informação na sequência da comunicação do
comercializador. Mais acrescentaríamos que tal demanda dificilmente teria
sustentação perante a ausência total de qualquer caso de risco confirmado
que pudesse caracterizar negligência no cumprimento do dever de informar.
Ponto é afirmar que a responsabilidade (contratual) de primeira linha cabe
ao operador, na medida em que detém a informação sobre o risco e porque
retira lucro da sua actividade económica, facto que lhe acarreta
31
responsabilidade perante o público . Havendo risco para a saúde pública, tal
responsabilidade amplifica-se em deveres de protecção partilhados com as
entidades públicas, traduzindo-se na suspensão de comercialização/cessação
da actividade, e eventual retirada dos produtos de risco do mercado tão
pronto quanto tenha informações credíveis sobre a superveniência do risco
até aí desconhecido. Uma das questões difíceis que se podem colocar é,
todavia, a de saber se perante um cenário de descoberta de um risco
associado a um produto fornecido há algum tempo mas cuja utilização se
mantém (por exemplo, um implante mamário), o produtor tem algum dever
de o retirar (se for essa a vontade do utilizador), arcando com as despesas da
remoção. Trata-se de um problema de responsabilidade civil contratual, entre
privados, que foge ao âmbito deste texto 32; para a responsabilidade pública

31
É, de resto, o que dispõe a legislação portuguesa, na sequência do quadro legal
europeu sobre segurança geral dos produtos. Vejam-se os artigos 5º, 6º e 8º do DL 69/2005, de 17
de Março, que estabelece as obrigações, gerais e especiais, do produtor (para o distribuidor,
veja-se o artigo 7º), entre as quais as de comunicação do risco, aos consumidores e à
Administração, bem como de suspensão de comercialização e retirada do mercado em
situações de risco iminente e grave para a saúde pública.
Sobre os limites do dever de informação do vendedor, cfr. o recente Acórdão do STJ, de
20 de Janeiro de 2013 (proc. 3097/06.6TBVCT.G1.S1).
32
Especificamente sobre a questão da responsabilidade por introdução no mercado de
implantes mamários fabricados com substâncias ilícitas (aqui, um problema de produto
defeituoso, diverso do que levantamos no texto), Vera Lúcia RAPOSO, A responsabilidade…, cit.,
pp. 4336-4338.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 151

releva tão somente o dever de informação, partilhado entre entidades


públicas autorizantes e operador económico, sobre os riscos de continuação
de utilização do produto.

Enfim, quando o risco sai da zona de sombra ― desconhecido, portanto, da


Administração autorizante e livre de cobertura habilitante de poderes de
ingerência (na medida em que completamente dissociado de riscos
anteriormente identificados e associados ao produto/actividade) ―, e entra na
zona de luz, a sua emergência gera deveres de informação, mas não suporta
ingerências mais intensas, salvo iminência de lesão para bens jurídicos
essenciais. A informação veiculada em quadros de urgência sanitária ou
ambiental deve ser o mais objectiva e precisa possível, mas sempre acarretará
uma margem de falibilidade superior à prestação de informações fora de
cenários emergenciais. Tal margem de falibilidade caracterizada afasta,
tendencialmente, a responsabilização por facto ilícito. Em contrapartida, o
recurso à melhor informação disponível, mesmo que não única e ainda que
não plenamente comprovada, sempre que redunde em dano para algum(ns)
dos actores económicos em jogo, poderá eventualmente gerar
responsabilidade por facto lícito, caso se verifiquem os apertados requisitos da
figura (cfr. artigos 3º e 16º do RRCEE)33.
Se o princípio da reserva de lei impede a responsabilização por omissão
ilícita de introdução de medidas de ingerência de controlo dos novos riscos
(salvo risco grave e iminente), em sede de função administrativa ― pois a
33
Manifestando-se contrariamente a uma solução que imponha aos Estados-membros a
compensação por facto lícito em casos de incorrecta ponderação do risco por parte da
cadeia decisória multinível, Suzana TAVARES DA SILVA(Acto administrativo de faca e garfo, cit.,
p. 638-639), por a considerar penalizadora do erário público e susceptível de transferir riscos dos
operadores económicos para os contribuintes (sendo certo que a autora se pronuncia
especificamente em sede de actos de reconhecimento de qualidades de produtos no
mercado).
Julgamos que, para situações epidémicas, de danos em massa a determinadas
categorias de operadores económicos, a melhor solução parece ser a de recurso a fundos
comparticipados pela União e pelos Estados-membros, podendo dar-se como exemplo a
solução da directiva 424/90, do Conselho, de 26 de Junho (com alterações introduzidas pela
Decisão do Conselho 2006/965/CE, de 19 de Dezembro), segundo a qual, em caso de abate de
animais por razões sanitárias, a União suportará 50% dos custos para os proprietários. Já para
casos isolados como o que descrevemos no texto, a solução da compensação por facto lícito
afigura-se-nos a mais adequada, sendo certo que a sua operacionalização se revela
especialmente árdua em actos resultantes de procedimentos multinível, em razão da
pulverização de responsabilidades por vários actores da cadeia decisória, que nem sequer se
reúnem num mesmo plano (orgânico) de imputação. Facto que gera, efectivamente, o risco de
oneração desproporcionada do erário público nacional em face da necessidade de repartição
de responsabilidades entre a União e os Estados-membros, que não cremos que a acção
prevista no artigo 340, §2º do TFUE, seja susceptível de veicular.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 152

gestão dinâmica de riscos inimagináveis não é enquadrável nos pressupostos


da competência autorizativa anterior ao surgimento/percepção do risco ―,
diferente se afigura a resposta, como se salientou a propósito do amianto, no
tocante à responsabilidade do legislador. Na verdade, a omissão de
enquadramento normativo habilitando a Administração a intervir na
prevenção e minimização ― ou mesmo na proibição ―, configurada a partir
do momento em que a suspeita de risco ganhe densidade suficiente para
dever ser minimizada nos termos do tecnicamente possível, constitui tarefa
primeira do Legislativo.
Esta omissão legislativa é, porém, árdua de activar no plano da
responsabilidade, por força dos constrangimentos impostos pelo artigo 15º do
RRCEE (anormalidade do prejuízo; prévia declaração de inconstitucionalidade
por omissão; recurso à equidade em caso de pulverização de danos por um
universo alargado)34. E pode tornar-se especialmente complexa caso haja
regulação eurocomunitária contendo normas claras, precisas e incondicionais
das quais decorram obrigações inequívocas para os poderes públicos
(nomeadamente, para as Administrações nacionais), que os cidadãos possam
invocar, mormente para defender posições jusfundamentais essenciais (como
tal reconhecidas no catálogo tridimensional que hoje envolve a União
Europeia: CEDH, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e as
tradições constitucionais dos Estados membros). Poderá aqui verificar-se um
concurso de imputações, ao Legislativo e ao Executivo o qual, no quadro do
RRCEE, apresenta bem maiores possibilidades de sucesso frente ao segundo
do que face ao primeiro35.

3. Embora não constituindo um risco desconhecido, há uma outra dimensão


do risco de civilização que integramos nesta nossa reflexão, que se traduz no
risco introduzido pelas inovações tecnológicas na prática administrativa. Trata-
se de um risco com a mesma origem ― a técnica ― e, em certas
circunstâncias, com o mesmo resultado ― a inindemnizabilidade ―, mas aqui
plenamente em sede de risco público, e com soluções a procurar

34
Cfr. supra, nota 1 (2ª parte).
35
Sobre este particular problema incidiu a intervenção de Miguel ASSIS RAIMUNDO no
colóquio no qual autora proferiu esta alocução ― Cumulação de responsabilidades de várias
funções do Estado.Sobre este particular problema incidiu a intervenção de Miguel ASSIS
RAIMUNDO neste colóquio ― Cumulação de responsabilidades de várias funções do Estado.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 153

exclusivamente sob a égide do RRCEE. Por outras palavras, este risco de


civilização que exploramos agora já se não prende com risco desconhecido
mas com risco decorrente da complexificação tecnológica das relações
administrativas, podendo gerar questões similares ― embora com diferentes
pressupostos ― quanto à reparabilidade dos danos causados.
Deixamos algumas concretizações do que pode ser esta outra versão do
risco de civilização/do desenvolvimento tecnológico, sublinhando que o
fazemos sem nenhuma pretensão de exaustividade:

i) um risco ineliminável de um sistema tecnológico ― exemplo poderiam ser


os erros cometidos pela Administração telemática, em virtude de lapsos do
programa informático ou problemas de funcionamento das plataformas
electrónicas (v.g., paralisia ou lentidão por sobrecarga), ou da existência de
falhas no sistema de semáforos de tráfego urbano (v.g., desligamento por
falha de energia ou por reprogramação). No primeiro caso, estaremos perante
actos administrativos; no segundo, é discutível se se tratará de actos ou
regulamentos imediatamente exequíveis ― mas sempre traduzirão actividade
jurídica.
Nos termos do RRCEE, os danos decorrentes de actos telemáticos
praticados em erro de facto (v.g., notificações a pessoas que não são os
destinatários do acto) ou de direito (v.g., actos que fazem incorrecta
subsunção dos factos declarados às normas que invocam) serão, na grande
maioria, imputáveis através da culpa do serviço (cfr. o artigo 7º/4). Do mesmo
passo, o RRCEE também caracteriza a ilicitude do acto em virtude da
inobservância de regras técnicas (artigo 9º/1), dimensão que releva sobretudo
para o caso das falhas na sinalização. Porque se trata de actos jurídicos ―
ainda que desmaterializados ―, presume-se a falta leve (artigo 10º/2) a qual,
na ausência de elisão (difícil, salvo força maior) da presunção, gera
imputação de responsabilidade à pessoa colectiva na qual se insere o serviço.
Já noutro local nos manifestámos contrariamente a esta imputação aberta,
propiciada pela falta leve, que julgamos dever ser limitada aos danos
anormais36. Neste particular contexto, de actos em massa, esta limitação
36
Carla AMADO GOMES, A responsabilidade civil extracontratual…, cit., pp. 60-61; antes
pelo contrário, defendendo a objectivização desta solução através da supressão da
possibilidade de elisão da presunção pela Administração, Alexandra LEITÃO, Ilicitude e
presunções de culpa na responsabilidade pelo exercício da função administrativa, neste livro

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 154

acaba por ir ao encontro da lógica que preside ao artigo 15º/6 do RRCEE (aí
em sede de função legislativa) e corresponde a um intuito de repartição de
um risco inevitável ― do funcionamento massificado da máquina
administrativa por todos os usuários ―, só devendo gerar imputação quando
houver oneração anormal;

ii) um risco inerente à industrialização, com que a população convive desde


há muito, que as autoridades previnem na medida do tecnicamente possível.
Um exemplo é a poluição do ar, que não pode ser totalmente erradicada mas
deve conter-se dentro de limites sanitária e ecologicamente aceitáveis.
Tratando-se de emissões de alta volatilidade e de enorme difusão, torna-se
muito difícil responsabilizar operadores em concreto ― de resto, o DL 147/2008
exclui o ar dos componentes ambientais passíveis de sofrer dano ecológico 37;
porém, pensamos que não será de todo descabido responsabilizar os poderes
públicos (por facto ilícito? lícito?) por dano resultante da emissão excessiva (ou
seja, para além de um limiar de criação de um risco residual) de autorizações
de instalações industriais quando estas provocarem a formação de hot spots
(locais particularmente saturados) que degradem intoleravelmente a
qualidade de vida/saúde de uma categoria/conjunto de pessoas, sobretudo
quando não for possível, em razão da pulverização de fontes de emissões
poluentes, responsabilizar individualmente um ou alguns emissores.

Isto sem embargo do cumprimento dos deveres de elaboração de


planos de redução de emissões lesivas da qualidade do ar, decorrentes
da directiva 96/62/CE do Conselho, de 27 de Setembro, relativa à
avaliação e gestão da qualidade do ar ambiente. O TJUE deixou claro,
no processo C-237/07, com decisão de 25 de Julho de 2008, que o
Estado-membro tem o dever de elaborar planos de redução de emissões
em zonas em que estas ultrapassem os valores-limite e que o cidadão
residente tem o direito de exigir da Administração a aprovação e
implementação destes planos, valendo-se do efeito directo vertical
dessas normas38. Nas palavras do Tribunal do Luxemburgo:

digital, ponto 2.

37
Exclusão que não impede a interpretação do DL 147/2008, de 29 de Julho,
conformemente à LBA, que é a sua matriz, abrangendo assim também o ar, o solo e o subsolo.
Sobre este ponto ver Carla AMADO GOMES, Introdução ao Direito do Ambiente, Lisboa, 2012,
pp. 192-193.
38
Decisão similar, em sede de zoneamento de instalações industriais perigosas [no âmbito
da directiva Seveso II, que será plenamente revogada pela nova directiva (Seveso III)

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 155

“39. As pessoas singulares ou colectivas directamente afectadas


por um risco de ultrapassagem dos valores-limite ou dos limiares de
alerta devem poder obter, das autoridades competentes e se for
caso disso com recurso aos órgãos jurisdicionais competentes, a
elaboração de um plano de acção, a partir do momento em que
se verifique esse risco.”

A imputação, nestes casos, reclama (novamente) a figura da culpa do


serviço (artigo 7º/3 do RRCEE), pois dificilmente se conseguirá identificar um
único responsável pela emissão de todos os actos que, apenas pelo facto da
acumulação, acabam por resultar num prejuízo social intolerável para um
determinado grupo de pessoas. Configura-se, em casos como este, não tanto
uma diluição da culpa por vários participantes num mesmo procedimento,
mas antes uma sucessão de actuações que, a partir de um determinado limiar
e por alheamento de deveres de protecção, redunda em ofensa ilícita a uma
categoria de pessoas anormalmente afectadas por um risco o qual, se tivesse
sido adequadamente gerido, não ultrapassaria um limiar de lesividade
residual;

iii) um risco inerente a análises de risco sismológico, vulcanológico,


meteorológico que se revelam desacertadas ― paradigmáticos são os alertas
de maremoto nos mares asiáticos, que se tornaram habituais desde 2004 e, na
maior parte das vezes, se revelaram desnecessários. Ou seja, na maior parte
das situações, a Administração, perante um risco de carácter
meteorológico/sismológico ou idêntico, de alta magnitude lesiva, tenderá a
tomar medidas preventivas que assegurem a salvaguarda dos bens pessoais
essenciais. Porém, haverá lugar a responsabilidade por excesso de cuidado,
em hipóteses em que a Administração, com base em dados incertos,
sobrevalorizou o risco? Pensamos em evacuações maciças, com
deslocamentos populacionais em massa, envolvendo alterações radicais do
modus vivendi por períodos de vários dias, com toda a perturbação social e
económica inerente.

2012/18/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho de 4 de Julho, em 1 de Junho de 2015),


proferiu o TJUE no Acórdão de 15 de Setembro de 2011, caso C-53/10, vincando a
obrigatoriedade de ponderação de aspectos de risco no exercício da competência de
licenciamento urbanístico, mesmo na ausência de diploma nacional de transposição da
directiva, e o direito dos particulares a exigir da Administração tal ponderação.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 156

As previsões em cenários de incerteza, a não se concretizarem, não


correspondem, em regra, a erros. Acreditando-se na melhor informação
disponível e seguindo-se a melhor metodologia de análise, não se pode,
retroactivamente, afirmar que houve uma falsa representação da realidade,
mas apenas a confirmação de um dos cenários possíveis ― não o worst case
scenario, mas o best, ou pelo menos o not so worse after all... Ou seja, não se
pode caracterizar um acto ilícito na ordem de evacuação sob ameaça de
tufão, ou no aviso meteorológico que recomenda a permanência na
habitação caso o risco de nevão não ecloda, desde que se prove que a
Administração se socorreu de análises credíveis. Pode, eventualmente, tentar-
se a caracterização como acto lícito ― mas aí a compensação deverá
basear-se na demonstração de um prejuízo especial e anormal, nos termos do
artigo 16º do RRCEE 39, o que, num contexto de perturbação generalizada do
modus vivendi, se afigura muito difícil40.
Em contexto diverso mas ainda revelando alguma continuidade com este
último tipo de situações, a descaracterização da ilicitude de um juízo de
prognose que baseia um alerta sanitário ou securitário em razão da margem
de incerteza que o envolve pode, no entanto e em situações muito
circunscritas, conferir fundamento a pedidos indemnizatórios dirigidos a
entidades públicas. Tratar-se-á de um curioso “deslizamento” para o âmbito
da compensação por facto lícito (descrita no artigo 16º do RRCEE), que se
verifica por razões de igualdade na repartição dos encargos públicos, no
plano dos resultados, mas também e sobretudo, no plano das causas ― em
virtude da “fuga” do comportamento da Administração às baias quer da
responsabilidade por facto ilícito, quer pelo risco (não há ilicitude porque não
há negligente caracterização dos pressupostos de facto de exercício da

39
Sobre a compensação por factos lícitos, que este dispositivo sedia, vejam-se Carla
AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de
jurisprudência, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, IV, Lisboa, 2012, pp.
151 segs (também publicado na RMP, nº 129, 2012, pp. 9 segs), e José Carlos VIEIRA DE
ANDRADE, A responsabilidade indemnizatória dos poderes públicos em 3d:…, cit., max. 67 segs.
40
Mas já há exemplos: se os poderes públicos decidem encerrar um parque de
campismo numa zona em risco de inundação, cuja instalação haviam anteriormente viabilizado
na sequência de obras de contenção custeadas pelo proprietário, por recearem a eclosão de
enxurradas mas sem que o risco esteja claramente estabelecido, é devida compensação por
facto lícito, segundo o Conseil d'État francês, na sua decisão SCI Moulin du roc (2008). Isto
porque o risco de encerramento, tendo em conta o contexto de intensa incerteza, extravasa a
álea normal do negócio, devendo repercutir-se no erário público ─ cfr. Loïc VATNA, La
responsabilité des communes du fait des mesures de police visant la prévention des
catastrophes naturelles, in AJDA, 2009/12, pp. 628 segs.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 157

competência; não há responsabilidade pelo risco porque estamos perante


uma actividade de avaliação técnico-científica, não abrangida pelos
parâmetros do instituto).
Residirá, porventura, num raciocínio deste tipo a condenação da
Administração por facto lícito na sequência da apreensão de cerca de 23
toneladas de pernas de porco importadas da Bélgica por suspeita de
contaminação com dioxinas. O STA, em Acórdão de 16 de Maio de 2002
(proc. 0509/02), entendeu que, na ausência de comprovação da
contaminação da carne de porco mas perante a probabilidade séria dessa
contaminação, a ordem de apreensão não fora ilícita, não se detectando
negligência que justificasse a indemnização do comerciante lesado com base
no instituto da responsabilidade aquiliana. A álea de incerteza não deve tolher
a Administração de tomar as medidas de prevenção, nos limites da
necessidade, mas tão pouco impede a reposição da justiça material
relativamente a um cidadão que, a bem da salvaguarda da segurança
colectiva ― mesmo que incertamente posta em causa ―, vê sacrificado,
especial e anormalmente, o seu interesse comercial41.

voltar ao início do texto

41
Um caso muito semelhante ― desta feita envolvendo frangos alegadamente
contaminados com nitrofuranos ― foi apreciado pelo TCA-Sul, confirmando-se a condenação
do Estado por facto lícito prolatada na primeira instância, na medida em que se provou que o
operador sofrera um prejuízo de cerca de 25.000,00 em virtude da proibição de
comercialização e consequente destruição de várias toneladas de frangos importados da
Bélgica, ainda que a prova da contaminação não tenha sido produzida pelas autoridades de
saúde.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 158

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 159

Um seguro de responsabilidade civil para os magistrados?

Margarida Lima Rego


Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
Advogada

Ao contrário do que o título desta comunicação possa dar a entender, não


falarei, nesta ocasião, sobre todos os seguros de responsabilidade civil
suscetíveis de cobrir riscos de constituição de um dever de indemnizar fundado
em responsabilidade civil extracontratual do Estado ou demais entidades
públicas, em conformidade com o disposto na Lei nº 67/2007, de 31 de
dezembro («adiante «LRE»)1. O meu tema restringe-se ao seguro de
responsabilidade civil dos magistrados judiciais. Naturalmente, não me
pronunciarei sobre um ou mais contratos que todos ou alguns dos magistrados
hajam concretamente celebrado para este efeito, mas apenas sobre a
possibilidade abstrata da sua celebração.
A este propósito, propunha-me analisar três questões, mas, atendendo ao
adiantado da hora, decidi limitar a minha intervenção às duas primeiras:

a) será este um seguro de responsabilidade civil?


b) será este um seguro válido, i.e., o risco em causa reunirá condições de
segurabilidade jurídica?

A LRE regula separadamente: (i) a responsabilidade civil por danos


decorrentes do exercício da função administrativa; (ii) a responsabilidade civil
por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional; e (iii) a

1
O título «oficial» desta comunicação era «A Lei 67/2007 e os seguros de responsabilidade
civil». A versão atualmente vigente da LRE resulta das alterações operadas pela Lei n.º 31/2008,
de 31 de julho.

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Instituto de Ciências Jurídico-Políticas 160

responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função político-


legislativa.
A que nos interessa é a segunda, especialmente regulada no Capítulo III.
Dentro deste, o preceito regulador da responsabilidade civil dos magistrados
judiciais é o art. 14.º. Atente-se no disposto no n.º 1:

Sem prejuízo da responsabilidade criminal em que possam incorrer,


os magistrados judiciais e do Ministério Público não podem ser
diretamente responsabilizados pelos danos decorrentes dos atos que
pratiquem no exercício das respetivas funções, mas, quando tenham
agido com dolo ou culpa grave, o Estado goza de direito de regresso
contra eles.

A abertura para a responsabilização dos magistrados judiciais por danos


decorrentes do exercício da função jurisdicional é menor do que a relativa ao
exercício da função administrativa, não tendo aqueles, designadamente,
legitimidade passiva na relação que se estabelece com os lesados. A sua
razão de ser reside na prerrogativa de irresponsabilidade de que gozam os
magistrados judiciais2.
Atente-se agora no teor do n.º 2 do mesmo art. 14.º:

A decisão de exercer o direito de regresso sobre os magistrados


cabe ao órgão competente para o exercício do poder disciplinar, a
título oficioso ou por iniciativa do Ministério da Justiça.

A decisão de exercer o direito de regresso cabe ao Conselho Superior de


Magistratura, órgão competente para o exercício do poder disciplinar sobre os
magistrados judiciais3. Contudo, há que interpretar o preceito em conjunto
com o disposto no n.º 1 do art. 6.º LRE, que nos diz que «[o] exercício do direito
de regresso, nos casos em que este se encontra previsto na presente lei, é
obrigatório», o que significa, inequivocamente, que também no caso dos
magistrados judiciais, como nos restantes, a decisão será uma decisão
vinculada e não uma decisão livre: sendo o Estado condenado com base em

2
Cfr. os arts. 203.º e 216.º/2, bem como, mais genericamente, também o art. 20.º/4, todos da
CRP.
3
Cfr. o artigo 217.º/1 CRP.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 161

dolo ou culpa grave de um magistrado judicial, é obrigatório o exercício do


direito de regresso que assiste ao Estado.

Com este enquadramento, põe-se a hipótese de celebração, por um ou


mais magistrados, ou por outrem que atue por sua conta, de um contrato de
seguro, individual ou coletivo, que cubra o risco de constituição, na sua esfera,
de um dever de regresso em virtude da condenação do Estado no
pagamento de uma indemnização a eventuais lesados, com fundamento em
responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício, por tais
magistrados, da função jurisdicional.

Primeira questão: será este um seguro de responsabilidade civil?

Os seguros de responsabilidade civil são um tipo contratual especialmente


regulado nos arts. 137.º a 148.º da Lei do Contrato de Seguro, aprovada pelo
DL n.º 72/2008, de 16 de abril (adiante «LCS»). Nestes seguros, o segurador
«cobre o risco de constituição, na esfera do segurado, de uma obrigação de
indemnizar terceiros»4. Na verdade, nem sempre serão «terceiros». A referência
da lei aos «terceiros» só se afigura correta se se aferir essa qualidade apenas
em relação ao segurado, e não em relação às partes no contrato de seguro.
Em todo o caso, a figura em apreço não se enquadra, literalmente, nesta
definição. O regime de responsabilidade civil dos magistrados inclui uma
especialidade, de que já se deu nota: estes não são diretamente responsáveis
perante os lesados, não se constituindo na sua esfera nenhuma obrigação de
indemnizá-los. Os magistrados serão apenas indiretamente responsáveis pelos
danos causados, sendo o Estado o único responsável direito perante os
lesados.
O Estado, ao satisfazer o direito de um lesado, constituir-se-á, por sua vez, na
titularidade de um direito de regresso sobre o magistrado causador dos danos.
É um direito de regresso sui generis, pois o direito de regresso em sentido estrito
surge no contexto das obrigações solidárias, sempre que, no caso da
solidariedade passiva, existam dois ou mais devedores e um deles satisfaça o
direito do credor além da parte que internamente lhe competia.

4
Art. 137.º LCS.

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No caso em análise há um direito de regresso sem haver solidariedade, pois


só o Estado responde perante os lesados, limitando-se a responsabilidade dos
magistrados ao domínio das relações internas, i.e. das suas relações com o
Estado.
Não é exemplo único de um desvio à regra da solidariedade, pois também
há direito de regresso sem a aplicação das demais regras próprias de um
regime de solidariedade passiva no seguro obrigatório de responsabilidade
civil automóvel, em que apenas ao segurador se reconhece legitimidade
processual passiva, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital
mínimo do seguro obrigatório5. Contudo, nesse caso a restrição é de origem
estritamente processual, podendo afirmar-se que ainda existe, numa
perspetiva de direito substantivo, responsabilidade civil do segurado perante o
lesado.
Já na situação em apreço parece haver mesmo um afastamento da
responsabilidade civil, ou seja há um desvio de cariz substantivo, e não apenas
adjetivo, ao regime geral da responsabilidade civil por factos ilícitos: os
magistrados não respondem civilmente perante os lesados.
Em todo o caso, julgo ser de qualificar a obrigação de regresso como uma
obrigação de indemnizar, não tanto por ser essa a qualificação da obrigação
principal, mas sim porque ao satisfazer este direito do Estado o magistrado
estará a ressarcir o dano que aquele sofreu quando viu constituir-se na sua
esfera uma obrigação de indemnizar os lesados. Esta é uma obrigação de
indemnizar fundada em responsabilidade civil dos magistrados, por danos que
lhes são pessoalmente imputáveis, muito embora essa responsabilidade civil
pressuponha a interposição, entre os lesados e os responsáveis, da pessoa
jurídica Estado.
Por conseguinte, concluo que a resposta à primeira questão é sim: parece
que, apesar das dificuldades, podemos qualificar este seguro como um
verdadeiro e próprio seguro de responsabilidade civil.

Segunda questão: será este um seguro válido, i.e., o risco em causa reunirá
condições de segurabilidade jurídica?
5
Cfr. o art. 64.º/1/a) do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto. O diploma foi já alterado, embora
sem impacto no preceito em causa, pelo DL n.º 153/2008, de 6 de agosto.

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Novos temas da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas 163

Esta questão é mais delicada. Está em causa determinar se e em que medida


um hipotético seguro de responsabilidade civil dos magistrados judiciais se
compatibilizaria com a ordem pública6.
Nos seguros de responsabilidade civil, há que ter em conta a distinção entre
os seguros obrigatórios e os seguros voluntários. Na prática a fronteira nem
sempre é muito nítida, mas nesse aspeto a situação em análise não é
problemática, não havendo dúvida de que sobre os magistrados enquanto
tais não impende, na nossa ordem jurídica, nenhum dever legal de segurar.
Assim, o seguro em apreço contar-se-ia entre os voluntários.
Há uma importante diferença de regime entre os seguros obrigatórios e os
seguros voluntários: aos seguros voluntários aplica-se uma regra geral de
exclusão da cobertura de danos dolosamente causados pelo segurado 7. A
sua natureza meramente supletiva permitiria, em teoria, o afastamento pelas
partes. No entanto, não é usual as partes darem uso a essa faculdade. Aos
seguros obrigatórios aplica-se antes a regra geral de cobertura dos danos
dolosamente causados pelo segurado, apenas se ressalvando a possibilidade
de disposição legal ou regulamentar em sentido distinto. A sua natureza
injuntiva abre ainda assim a porta a uma intervenção do legislador ou mesmo
do regulador – o Instituto de Seguros de Portugal – mas não se atribui às partes
a liberdade de afastarem essa regra8.
A ratio da cobertura injuntiva dos danos dolosamente causados em todos
os seguros obrigatórios está em que, se estes seguros são obrigatórios, são-no
para proteção dos lesados. O mesmo é dizer que estes seguros não existem
para proteger o segurado, e que portanto, em última análise, deverá ser este
a sofrer as consequências da sua própria conduta dolosa. Nestes seguros
prevalece a proteção do lesado, que assim será ressarcido pelo segurador,
embora este seja também secundariamente tutelado mediante a estatuição
genérica de um direito de regresso contra o segurado 9. É da existência deste
direito de regresso que se retira a conclusão de que, no que respeita aos atos
dolosos, estes seguros não tutelam, de todo, o património do segurado. O

6
Art. 280.º/2 CC.
7
Cfr. o art. 46.º e a primeira parte do art. 141.º, ambos da LCS.
8
Art. 148.º/2 LCS.
9
Art. 144.º LCS.

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efeito económico visado com a obrigatoriedade do seguro é o de transferir


dos potenciais lesados para o segurador o risco de insolvência do segurado.
Aqui reside a razão de ser – e a justificação da admissibilidade – da
consagração da cobertura do dolo.
No caso em apreço, temos um seguro voluntário, pelo que sempre se
aplicaria a regra supletiva da exclusão do dolo, se as partes não estipulassem
outra coisa. Em todo o caso, para não darem azo a dúvidas, sempre que
podem os seguradores excluem de forma expressa a sua cobertura. Desde
logo, porque a cobertura do dolo foge um pouco à lógica subjacente a um
seguro: dificilmente se consegue falar na cobertura de um risco quando a
conduta em causa está única e exclusivamente dependente do arbítrio do
próprio segurado. A indústria seguradora é avessa à cobertura do dolo, e,
sempre que se veem ante a necessidade de o fazerem, os nossos seguradores
enfrentam sérias dificuldades em ressegurar tais riscos. É uma questão que não
cabe aqui aprofundar.
No exemplo em apreço, partamos do pressuposto de que o seguro apenas
garantiria as quantias que o segurado se veja no dever de pagar ao Estado,
em virtude do exercício do seu direito de regresso, por danos causados a
terceiros decorrentes de culpa grave do segurado no exercício da sua função
jurisdicional.
Afastado o dolo, resta-nos a culpa grave. Note-se, no entanto, que, sendo
este um seguro voluntário, a lei apenas permitiria a estipulação da cobertura
do dolo se esta não fosse ofensiva da ordem pública 10, embora, por outro
lado, venha determinar que a proibição da celebração de contratos de
seguro para cobertura dos riscos de responsabilidade criminal,
contraordenacional e disciplinar não se estende à responsabilidade civil
associada aos mesmos factos, que a lei admite genericamente, sem distinguir
as condutas dolosas das condutas meramente negligentes11.
Nos seguros obrigatórios, em que a cobertura se destina a proteger os
lesados, existindo depois um direito de regresso do segurador contra o
segurado, a questão da ofensa à ordem pública tem uma resposta clara e
definitiva: a proteção dos lesados nunca seria contrária à ordem pública.
Resta saber o que fazer naqueles casos em que não existe um direito de
10
Art. 46.º LCS.
11
Art. 14.º/1/a) e 2 LCS.

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regresso, ou em que, como na situação em apreço, o seguro se destina a


cobrir precisamente o risco de exercício de um direito de regresso, destinando-
se, em tais casos, o seguro a proteger o próprio segurado e já não, ou apenas
reflexamente, o lesado.
A verdade é que quem o pergunta em relação ao dolo do segurado
também poderia estender a pergunta à sua culpa grave, que é a que neste
momento mais nos interessa, e cuja equiparação ao dolo tem no direito civil
uma tradição que remonta ao direito romano, justificada pela elevada
censurabilidade de ambos, que mereceriam um grau de reprovação ética e
social muito semelhante. Em jeito de ilustração, pense-se na proibição
absoluta de algumas cláusulas de exclusão ou limitação da responsabilidade
civil em caso de dolo ou culpa grave12.
Não parece, contudo, que para este efeito devamos proceder a uma
equiparação entre ambos os graus de culpa, na medida em que, mais do que
a sua censurabilidade, está aqui em causa o tipo de intencionalidade que lhes
subjaz, já que, no domínio dos seguros, a natureza deliberada de uma
conduta dolosa permitir-nos-ia concluir que há, nesses casos, um total
afastamento da própria ideia de risco, o mesmo não sucedendo quanto à
mera negligência, ainda que grave e plenamente consciente.
A questão de saber se o risco em apreço reúne condições de
segurabilidade jurídica ou se, pelo contrário, um seguro que se arrogue cobri-lo
estará ferido de nulidade, por contrariedade à ordem pública, depende,
essencialmente, da conceção que se adote sobre a função desempenhada
pelo instituto da responsabilidade civil dos magistrados. 13 Se se entender que a
única função deste instituto é uma função reparadora, a transferência deste
risco para uma esfera alheia não parece ser contrária à ordem pública. Para
fundar essa conclusão recorrer-se-á nesse caso, sem mais, à regra da
admissibilidade de cobertura da responsabilidade civil decorrente da prática
de atos de natureza criminal, contraordenacional ou disciplinar14.

12
Art. 18.º/1/c) e d) da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (DL n.º 446/85, de 25 de
outubro, republicado pelo DL n.º 220/95, de 31 de agosto, e alterado pelo DL n.º 249/99, de 7 de
julho, e pelo DL n.º 323/2001, de 17 de dezembro).
13
A questão já foi aqui tratada pela Dr.ª Diana Ettner (para cujo texto, publicado neste
livro digital, remeto).
14
Art. 14.º/1/a) e 2 LCS.

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Se, ao invés, se entender que além da função reparadora, que não é posta
em causa, o instituto desempenha ainda uma função preventiva, ou punitivo-
preventiva, a transferência deste risco resultaria na frustração desta função,
que, parece, seria contrária à ordem pública.
Há uma tendência crescente, mesmo em direito privado, para a defesa da
tese de que além da função reparadora a responsabilidade civil também
desempenharia uma função preventiva, ou punitivo-preventiva. Não adiro, de
todo, a essa tendência. No entanto, quando se fala na responsabilidade civil
dos magistrados, está-se já a entrar num tema de direito público e eu não faço
tenções de meter a minha foice em seara alheia, por assim dizer. Nessa
medida, sem concluir pela natureza x ou y desta modalidade de
responsabilidade civil, que já vimos corresponder a uma modalidade sui
generis, limito-me a observar que a questão apresenta, neste contexto,
contornos muito particulares, atendendo à consagração legal da
obrigatoriedade de exercício do direito de regresso do Estado.
Se a obrigatoriedade de exercício do direito de regresso fosse um exclusivo
da responsabilidade civil decorrente do exercício da função jurisdicional,
poder-se-ia pensar que, ainda numa lógica estritamente reparadora, o
mecanismo apenas visaria permitir a responsabilização dos magistrados sem
no entanto dar lugar a uma relação direta entre eles e os lesados, o que
estaria vedado pela sua prerrogativa de irresponsabilidade. No entanto, a
obrigatoriedade de exercício do direito de regresso é comum a todas as
modalidades de responsabilidade civil consagradas na LRE15.
Este é um indício forte de que o que está aqui em causa é, na verdade, a
criação de um incentivo jurídico que assegure um mínimo de esforço e de
diligência no cumprimento de deveres, entre os quais os deveres acessórios
decorrentes do principio da boa fé, no desempenho, quer da função
administrativa, quer da função jurisdicional.
Caso se entenda que a responsabilização civil dos magistrados pelas
consequências dos atos ou omissões que pratiquem com dolo ou culpa grave
constituiria um incentivo jurídico tendente a assegurar um mínimo de esforço e
de diligência na atuação dos magistrados judiciais, necessário seria concluir,
parece, que a contratação de um seguro que transferisse esse peso para a

15
Cfr. o n.º 1 do art. 6.º LRE.

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esfera do segurador, assim neutralizando os efeitos do incentivo, seria por esse


motivo contrária à ordem pública. Assim sendo, um contrato de seguro que se
arrogasse operar semelhante transferência de risco estaria ferido de
nulidade16.
Em suma, embora não chegue a concluir que o instituto da
responsabilidade civil dos magistrados desempenhe uma função preventiva,
ou punitivo-preventiva, pois essa é matéria que deixo à doutrina de direito
público, concluo que, caso seja essa a conclusão a que deva chegar-se,
resulta necessariamente dessa conclusão a de que um seguro que se arrogue
cobrir este risco estará ferido de nulidade, por contrariedade à ordem pública.

Muito obrigada.

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16
Por aplicação do disposto no art. 280.º/2 CC.

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Organização de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes
Com o patrocínio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento
Organização de Carla Amado Gomes e Tiago Antunes
Com o patrocínio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento
A Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, em vigor desde 30 de
Janeiro de 2008, e cedo cirurgicamente alterada pela Lei
31/2008, de 17 de Julho, aprovou o novo regime da
responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais
entidades públicas (e equiparadas). Em cinco anos de vigência,
muitas têm sido as dúvidas levantadas a propósito das três (ou
quatro?) vertentes responsabilizantes que cobre:
administrativa, judicial, legislativa (e política?). A
jurisprudência não é, por ora, significativa, em virtude de os
novos casos ainda não terem passado da primeira instância,
cabendo portanto, aos especialistas, académicos e práticos,
sugerir e ensaiar soluções.

O colóquio do ICJP cujas Actas ora se publicam constituiu um


momento de reflexão particularmente rico sobre um amplo
leque de temáticas relativas à responsabilidade civil
extracontratual pública.

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