Exegese 11 Cap3
Exegese 11 Cap3
Exegese 11 Cap3
Em diversas ocasiões Jesus procurou transmitir seus ensinamentos aos seres humanos
por meio de parábolas. Nessas singelas histórias, que abrangem cerca de um terço do
material contido nos Evangelhos sinóticos, estavam embutidos o modo de atuação das leis
da Criação e o caminho que o ser humano deve trilhar dentro dela. As parábolas
transmitiam a Verdade de Deus numa forma que os ouvintes podiam assimilar com
facilidade, caso abrissem seu coração para elas.
É justamente por isso que os fariseus não entendiam nada do que Jesus falava, pois
procuravam dissecar suas palavras com o raciocínio, ao invés de hauri-las com a intuição.
Seus outros ouvintes, ao contrário, compreendiam perfeitamente o que ele procurava
transmitir: “Jesus lhes anunciava a Palavra usando muitas parábolas como estas, de acordo
com o que podiam compreender. Nada lhes falava sem usar parábolas” (Mc4:33).
Jesus elevou a prática de falar por parábolas, já utilizada na Antiguidade por Platão e
Aristóteles, e presença constante na literatura rabínica antiga, a uma arte tão sublime, que
suas narrativas são capazes de conduzir o espírito humano para o caminho da salvação,
desde que este se dê ao trabalho de compreendê-las com acerto.
Essa característica do Salvador despontou quando ele ainda era bem jovem e vivia
com sua família terrena. O livro Jesus, o Amor de Deus, da Editora Ordem do Graal na
Terra, mostra que naquela época ele costumava contar estórias edificantes para seus irmãos.
Estes ouviam enlevados as narrativas do irmão mais velho, e assim se lhes despertava o
anseio de agir sempre de maneira correta em tudo. Maria, sua mãe, também ouvia com
satisfação essas prédicas cativantes do filho, que contribuíam bastante para manter a
harmonia no lar.
Vamos então procurar vislumbrar o que Jesus quis transmitir aos seres humanos com
essas maravilhosas lições de vida que são as suas parábolas.
O Semeador
“Eis que o semeador saiu a semear. E, ao semear, uma parte caiu à beira do
caminho, e vindo as aves a comeram. Outra parte caiu em solo rochoso, onde a terra
era pouca, e logo nasceu visto não ser profunda a terra. Saindo, porém, o sol, a
queimou, e porque não tinha raiz, secou-se. Outra caiu entre os espinhos, e os
espinhos cresceram e a sufocaram. Outra, enfim, caiu em terra boa, e deu fruto: a
cem, a sessenta e a trinta por um.”
(Mt13:3-8; Mc4:3-8; Lc8:5-8)
Jesus concede uma explicação para essa parábola logo depois de tê-la proferido. Em
relação às sementes que caem à beira do caminho, o esclarecimento é o seguinte:
“A todos que ouvem a Palavra do reino e não a compreendem, vem o maligno e
arrebata o que lhes foi semeado no coração. Este é o que foi semeado no caminho.”
(Mt13:19)
1
A expressão “semeado no coração” mostra bem a profundidade com que a Palavra,
que traz os esclarecimentos sobre as leis da Criação, deve ser assimilada. Conforme já
visto, coração tem o mesmo sentido de âmago mais profundo, o íntimo do ser humano. A
Palavra é nutrição para o espírito, não para o corpo. Somente o espírito pode assimilar a
Palavra e compreendê-la realmente. A Palavra não pode frutificar no solo árido do
raciocínio humano, mas apenas no seu espírito, no seu coração. A respeito do estado
lastimável do coração do povo em geral, Jesus já tinha avisado pouco antes:
“O coração deste povo está endurecido, de mau grado ouviram com os seus ouvidos e
fecharam os seus olhos; para não suceder que vejam com os olhos, ouçam com os
ouvidos, entendam com o coração, se convertam e sejam por mim curados.”
(Mt13:15)
Com essa parábola da sementeira, Jesus mostra como os seres humanos deviam
assimilar a própria Palavra de que ele era portador. Entender a Palavra com o coração
significa apropriar-se integralmente dela, o que só é possível quando se a coloca em prática
pela movimentação do espírito, em obediência à Lei do Movimento.
Com maligno deve-se entender aqui o princípio mau, errado, inserido na matéria por
Lúcifer, a fim de desviar os que não são suficientemente firmes em si mesmos. É o
chamado “princípio das tentações”. Daí a advertência de Pedro: “Sede sóbrios e vigilantes.
O diabo, vosso adversário, anda em derredor, como um leão que ruge, procurando a quem
devorar” (1Pe5:8). A palavra hebraica para tentação é nasah, que significa também pôr à
prova ou examinar, indicando um preceito errado, incompatível com o Amor e a bondade
do Onipotente.
Daí a advertência de Jesus: “Vigiai e orai, para não cairdes em tentação” (Mt26:41).
Essa exortação não indica que se uma pessoa velar e orar ela não será tentada, mas sim que
se fizer isso ela não cairá em poder da tentação. 1 Aliás, cada pessoa aqui na matéria
grosseira se acha de tal modo protegida, que é uma vergonha enorme deixar-se engodar por
uma tentação, cuja força é muito menor que a dela própria. Foi exatamente isso que Paulo
disse aos Coríntios: “Não vos sobreveio tentação alguma que ultrapassasse as forças
humanas” (1Co10:13). A resistência à tentação não deveria ser uma miraculosa exceção
entre os seres humanos, mas uma regra geral com um final feliz: “Feliz o homem que
resiste à tentação” (Tg1:12).
A exortação do Mestre para se conservar a máxima vigilância espiritual, para com
isso não se cair em tentação, foi dirigida não apenas aos discípulos, mas a todos os homens:
“O que vos digo, digo a todos: vigiai!” (Mc13:37). E o “orai” teria de ser legítimo, fruto da
intuição espiritual, e não uma reza mecânica qualquer, mesquinha: “Não sejas mesquinho
na tua oração” (Eclo7:10). Não há valor numa oração sem coração. De nada adianta a um
indivíduo orar se, ao mesmo tempo, não estiver comprometido em cumprir a Lei de Deus,
pois orações desse tipo não passam de hipocrisia condenável: “Quem desvia os ouvidos
para não ouvir a Lei, até a sua oração será execrável” (Pv28:9). Esse tipo de oração não se
eleva a nenhuma região luminosa, não consegue ultrapassar nem o teto que abriga o
hipócrita rezador. Somente quem coloca a Palavra em prática em todos os aspectos da vida
pode manter a vigilância espiritual e orar com a alma aberta. Este é o único modo de
permanecer protegido contra as tentações das trevas e livrar-se do mal aderido a si.
1
Ver, a respeito, a dissertação “Não Caiais em Tentação!” no terceiro volume da obra Na Luz da Verdade, de
Abdruschin.
2
A Palavra dada pelo Filho de Deus, que era ele próprio encarnado, protege e guarda
aquele que procura não pecar mais, porque este renasceu em si mesmo, passando a viver
segundo o sentido dessa Palavra. É também este o significado do “nascer de novo” (Jo3:3)
ou “nascer de Deus” que aparece na primeira Epístola de João:
“Nós bem sabemos que todo aquele que nasceu de Deus não peca, mas o Filho de
Deus o guarda, e o maligno não o apanha. E bem sabemos que somos de Deus, ao
passo que o mundo inteiro está sob poder do maligno.”
(1Jo5:18,19)
A semente que cai à beira do caminho indica aquela pessoa que não põe a Palavra em
prática em sua vida. Desse modo, ela não é capaz de assimilá-la, não se lhe torna algo
próprio e acabará por perdê-la nas armadilhas postas à sua frente pelos acólitos luciferianos.
Vejamos a explicação de Jesus para as sementes que caem em solo rochoso:
“O que foi semeado em solo rochoso, esse é o que ouve a Palavra e a recebe logo
com alegria, mas não tem raiz em si mesmo, sendo antes de pouca duração; em lhe
chegando a angústia ou a perseguição por causa da Palavra, logo se escandaliza.”
(Mt13:20,21)
Estes são os entusiastas volúveis, o fogo de palha. Reconhecem o valor da Palavra,
posto que a ouvem com alegria, mas devido à sua superficialidade não a ancoram
firmemente dentro de si, não a enraízam em seus espíritos. São as sementes que brotam
rapidamente e logo secam. Assim como os primeiros, eles não se animam a colocar a
Palavra efetivamente em prática em suas vidas, porque isto demanda perseverança e se
choca inevitavelmente com os conceitos e hábitos que predominam no mundo – “os raios
do sol já os fazem secar, porque não tinham raiz”.
A explicação dada por Jesus para as sementes que caem em meio aos espinhos é a
seguinte:
“O que foi semeado entre os espinhos é o que ouve a Palavra, porém os cuidados do
mundo e a fascinação das riquezas sufocam a Palavra, e fica infrutífera.”
(Mt13:22)
Como a Palavra é dirigida ao espírito, ela é um guia para a existência inteira do ser
humano, e não apenas para os poucos anos de uma curta vida terrena. As pessoas que
colocam o intelecto acima do espírito, o raciocínio acima da intuição, acabam por colocar
também – como conseqüência natural – a vida material e seus prazeres acima da vida
espiritual, o efêmero sobre o valioso.
Jesus não condena a posse de riquezas, mas sim o deixar-se envolver por elas. Para os
fracos de espírito, a comodidade proporcionada pelos bens materiais pode facilmente abafar
neles a Palavra recebida, tal como um espinheiral.
Foi para evitar essa situação que Jesus deu àquele jovem rico o conselho para que se
desfizesse de seus bens e o seguisse (cf. Lc18:18-23). O conselho referia-se exclusivamente
àquele jovem e aos de sua igual espécie, que se deixam enlevar pela posse de riquezas em
detrimento do progresso espiritual. Não se referia, absolutamente, a uma diretriz geral para
toda a humanidade. Para esses tais, que se deixam literalmente absorver pelas riquezas
3
deste mundo, será realmente mais fácil “um camelo passar pelo fundo de uma agulha”2
(Mt19:24) do que entrarem eles no reino dos céus, pois não é possível ao mesmo tempo
“servir a Deus e às riquezas” (Mt6:24).
Jesus dá a seguinte explicação para o último lote de sementes, o quarto, que cai em
boa terra:
“Mas o que foi semeado em boa terra é o que ouve a Palavra e a compreende; este
frutifica, e produz a cem, a sessenta e a trinta por um.”
(Mt13:23)
Vemos então que somente a quarta parte dos que ouviram a Palavra de fato a
compreenderam e deixaram que frutificasse dentro de si. E Jesus nem menciona aqueles
que nada quiseram saber da Palavra de Deus, e que constituem a imensa maioria dos seres
humanos.
Ouvir a Palavra e compreendê-la realmente outra coisa não é senão assimilar a
Palavra dentro de si e colocá-la em prática. Quem procede assim passa a viver de tal modo
que se torna, ele próprio, uma bênção para a Criação em que vive. Das capacitações que
desperta em si mesmo pelo modo correto de viver, ele retribui em abundância para o mundo
em redor. Alguns mais (cem e sessenta por um), outros menos (trinta por um), segundo o
nível de desenvolvimento espiritual de cada um, mas todos sempre em absoluta
conformidade com a lei do equilíbrio contínuo: o dar e o receber. O trecho correspondente
no Evangelho de Lucas é um pouco diferente, mas a característica da boa semente –
frutificar com perseverança – permanece:
“A que caiu em boa terra são os que, tendo ouvido de bom e reto coração, retêm a
Palavra; estes frutificam com perseverança.”
(Lc8:15)
Infelizmente, a boa terra – as almas purificadas e aneladas pela Luz, tão necessária
para o perfeito plantio e plena frutificação da Palavra, é cada vez mais escassa no mundo.
Só o que se vê hoje em dia são pequenas ilhotas de boa terra aqui e acolá, cercadas de
vastidões de solo rochoso e espinheirais cerrados…
A possibilidade outorgada aos seres humanos de produzirem frutos em abundância,
pelo desenvolvimento certo e aplicação perseverante de suas capacitações, é igualmente
retratada nas parábolas dos talentos e das minas, que veremos mais à frente.
O Joio e o Trigo
“O reino dos céus é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu campo;
mas enquanto os homens dormiam veio o inimigo dele, semeou joio no meio do trigo e
retirou-se. E quando a erva cresceu e produziu fruto, apareceu também o joio. Então,
vindo os servos do dono da casa, lhe disseram: Senhor, não semeaste boa semente no
teu campo? Donde vem, pois, o joio? Ele, porém, lhes respondeu: Um inimigo fez
isso. Mas os servos lhe perguntaram: Queres que vamos e arranquemos o joio? Não!
2
Alguns pesquisadores afirmam que o termo correto é “corda trançada” e não “camelo”, mas o sentido
permanece o mesmo.
4
replicou ele, para que ao separar o joio não arranqueis também com ele o trigo.
Deixai-os crescer juntos até a colheita, e no tempo da colheita direi aos ceifeiros:
Ajuntai primeiro o joio, atai-o em feixes para ser queimado, mas o trigo recolhei-o ao
meu celeiro.”
(Mt13:24-30)
Em seguida, Jesus procura explicar aos seus discípulos o significado da parábola:
“O que semeia a boa semente é o Filho do Homem, o campo é o mundo, a boa
semente são os filhos do reino, o joio são os filhos do maligno; o inimigo que o
semeou é o diabo, a ceifa é a consumação do século, e os ceifeiros são os anjos.”
(Mt13:37-39)
O sentido amplo dessa parábola, em conjunto com a explicação de Jesus, é o
seguinte:
O Filho do Homem espalhou sementes de seres humanos na matéria. É dessa atuação,
aliás, que advém a denominação “Filho do Homem”, significando que a humanidade inteira
se originou dessa sua semeadura, em consonância com a Vontade do Criador, que é ele
próprio. Com efeito, a expressão hebraica que traduz Filho do Homem: ben ’adhám,
significa em essência “Filho da humanidade”, ou seja, o Filho do Altíssimo para a
humanidade.
Corroborando essa notícia da atuação criadora do Filho do Homem, o chamado Livro
das Parábolas (incluído no apócrifo Livro de Enoch), informa que a denominação Filho do
Homem foi pronunciada antes da Criação, indicando com isso que esse título não está
relacionado a Jesus. A versão etíope desse livro diz o seguinte: “E nessa hora o Filho do
Homem recebeu um nome na presença do Senhor dos Espíritos. E antes de o Sol e os dois
signos serem criados, antes de serem criadas as estrelas do céu, ele recebeu um nome
perante o Senhor dos Espíritos.”
Essa imagem de seres humanos se desenvolvendo a partir de germes espirituais indica
um fenômeno da Criação que se repete regularmente. O ser humano, de fato, se desenvolve
de “sementes espirituais”, provenientes do Paraíso, e para lá retorna depois de plenamente
amadurecido. As influências que determinam o processo de germinação dessas sementes
podem realmente ser vistas como um hálito de vida proveniente do Criador, a Origem de
toda a vida: “Ele insuflou em suas narinas o hálito da vida, e o homem se tornou um ser
vivo” (Gn2:7). Depois de criado pela Vontade de Deus, o Espírito Santo, o homem é
vivificado pelo sopro do Criador, que o anima com Seu alento. Nesse sentido, está certo o
depoimento de Eliú, amigo de Jó: “O Espírito de Deus me criou, e o sopro do Todo-
Poderoso me deu a vida” (Jó33:4).
Sobre o evento de retorno dessas sementes ao Paraíso, já então como espíritos
autoconscientes plenamente maduros, é bastante significativa a seguinte passagem do
Evangelho apócrifo de Tomé: “Bem-aventurados vós, os solitários e escolhidos, porque
encontrareis o reino; vós provindes dele, e conseqüentemente voltareis novamente para
lá.”3
3
Ao leitor que desejar conhecer o processo da semeadura de germes espirituais, e de seu desenvolvimento nas
materialidades até a autoconsciência da criatura plenamente amadurecida, indicam-se as seguintes
dissertações da obra Na Luz da Verdade, a Mensagem do Graal de Abdruschin:
5
O ser humano terreno desenvolvido de um germe espiritual, que mediante múltiplas
vivências na matéria adquire lentamente, paulatinamente, a autoconsciência, tornando-se
uma individualidade completa, não representa de maneira alguma o quadro, acalentado por
tantos, do homem criado diretamente à imagem e semelhança de Deus. Como seria possível
isso? Será que alguém nessa Terra acredita mesmo, no fundo do seu coração, que ele, um
mero ser humano terreno em desenvolvimento, é a própria imagem e semelhança do
Onipotente? Olhe bem para dentro de si mesmo e responda com honestidade... A criatura
humana terrena como imagem e semelhança do Todo-Poderoso Criador... Semelhante a
Ele, mas não a ponto de cumprir Seus Mandamentos e viver segundo Sua Vontade! Nesse
ponto os seres humanos abrem mão prontamente de qualquer semelhança com Ele, e
decretam que o Senhor teve de enviar Seu Filho Unigênito à Terra, para resgatar a culpa
deles, Suas criaturas, feitas à Sua imagem e semelhança... Não existem palavras para
descrever uma tal prepotência. Só mesmo depois da morte os partidários desse despautério
reconhecerão o tamanho de sua arrogância. E então desejarão não haver nascido.
A descrição no Gênesis do homem feito “à imagem e semelhança de Deus” (Gn1:26)
– imago Dei – não se refere ao ser humano terreno, e sim ao surgimento, em sentido
amplo, do espiritual masculino e feminino na obra da Criação, no ponto de saída da esfera
divina.4 Convenhamos… Justos sejamos. É impossível que dissesse respeito a uma criatura
tão limitada, a um ser que acabou se degenerando por vontade própria, que negligenciou
por completo sua missão espiritual e que se afastou, da forma mais vil, de seu próprio
Criador. Os seres efetivamente criados à imagem e semelhança de Deus são espíritos
primordiais, isentos de erro e pecado, cuja origem encontra-se muito acima do alvo máximo
a que um espírito humano pode almejar: o reino espiritual denominado Paraíso. Se um dia o
ser humano conseguir chegar até o Paraíso, sua Pátria verdadeira, por haver se tornado um
espírito completo e perfeito, então poderá ser considerado uma “cópia” daquelas eternas
imagens de Deus primordialmente criadas. Uma cópia! Isso, se ele conseguir chegar até
lá… E mesmo lá continuará sendo sempre “menor do que os seres celestiais” (Sl8:6), que
vivem na esfera divina.
Adão e Eva foram pontos de partida do espiritual humano. Foram criados no reino
espiritual, mas nunca estiveram encarnados na Terra ou em qualquer outra parte da matéria.
O fato de terem surgido já desenvolvidos, sem terem sido crianças, demonstra que isso se
deu num plano muito acima do Paraíso, onde os seres que lá vivem foram efetivamente
criados pela vontade divina, tornado-se imediatamente autoconscientes, sem precisar antes
se desenvolver de uma semente. O nome “Eva” significa simplesmente “vivente”. Na
língua sumeriana, o ideograma que representa o termo “vivente” é o mesmo que indica
“costela”.
6
Tão-somente os espíritos humanos que já se encontram no Paraíso podem ser
chamados de “imagem e semelhança de Adão” (Gn5:3), isto é, cópias de uma imagem
primordial de Deus. São esses espíritos humanos perfeitos que se assemelham aos espíritos
primordiais, os quais foram criados por primeiro, na parte mais excelsa da Criação.
Contudo, nós, seres humanos terrenos, estamos inimaginavelmente longe de tudo isso.
O Criador não precisa de ninguém, não depende de nada, ao passo que todos os seres
surgidos, criados ou desenvolvidos, são inteiramente dependentes Dele. O teólogo e
filósofo alemão Schleiermacher (1768 – 1834) intuiu muito bem o significado disso, ao
afirmar que “Deus é o Ser de quem todas as criaturas são dependentes, ao passo que Ele
não depende de nada”. O grande Arquiteto do Universo muito menos ainda precisa da
criatura ser humano: “O Deus que fez o mundo e tudo que nele existe, o Senhor do céu e da
Terra, (…) não é servido por mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa”
(At17:24,25). Sobre o Aquém e o Além, ele disse: “Quem faz uma distinção entre este
mundo e o além-mundo ilude a si mesmo.”
Schleiermacher foi “acusado” de gnosticismo e semipelagianismo, dísticos na
verdade honrosos, identificando alguém capaz de refletir por si mesmo e que procura dar
forma às próprias intuições. Ele se opôs ao Iluminismo ao afirmar que o que determina o
valor do ser humano não é o lúmen da razão, e sim o do coração, como matriz fundamental
da vida espiritual. De Friedrich Ernst Schleiermacher são também essas palavras: “O que
comumente se chama crer, ou seja, aceitar o que outrem fez, querer ponderar e imitar no
sentimento o que outrem pensou e sentiu, é um serviço duro e indigno, e em vez de ser o
que há de superior na religião, como se imagina, é exatamente aquilo a que se deve
renunciar aquele que pretende penetrar em seu santuário. (...) Vocês conseguiram tornar a
vida terrena tão rica e variada que já não necessitam da eternidade e, depois de haver criado
um universo para vocês mesmos, estão dispensados de pensar Naquele que os criou.”
Retornemos à parábola. “Mas enquanto os homens dormiam, veio o inimigo dele.”
Enquanto os seres humanos se encontravam nos estágios iniciais do seu percurso na
matéria, ainda não totalmente desenvolvidos em sua autoconsciência, portanto não
inteiramente despertos, numa fase que poderíamos chamar de pré-adolescência espiritual,
Lúcifer chegou com a missão de cuidar das sementes humanas em via de crescimento.
Contudo, ao invés de cumprir essa sua incumbência no sentido da Vontade do Criador, ele
atuou de modo diferente, fazendo de tudo para exterminá-las. Agindo assim, ele se tornou
um “inimigo” declarado do semeador.
O princípio das tentações implantado por Lúcifer na matéria é absolutamente
contrário ao preceito do amor prestimoso desejado pelo Criador, pois “Deus mesmo a
ninguém tenta” (Tg1:13). Os que sucumbem ao maligno, isto é, a esse princípio errôneo,
desenvolvem-se como joio no campo de cultivo da matéria, portanto de maneira errada.5
Em contraste a eles estão os que se desenvolvem de maneira certa, em conformidade com a
5
O joio é um tipo de gramínea que se mistura aos cereais. É uma erva daninha, também conhecida como
“cizânia” (do grego zizanion), cujo significado é: desarmonia, rixa, discórdia. Até meados do século XVI o
joio era conhecido na Europa pelo nome usual de cizânia, de modo que semear joio era o mesmo que semear
cizânia. O joio é difícil de ser extirpado e se parece muito com o trigo, diferenciando-se deste somente quando
plenamente amadurecido, por suas sementes pretas e menores, as quais conservam por muito tempo o poder
germinativo. O joio não serve de alimento porque não contém propriedades nutricionais, ao contrário, suas
sementes, freqüentemente cobertas com uma espécie de mofo embriagador, causam tonturas se ingeridas e
podem até mesmo levar à morte. Outro diferencial importante é que o joio é menos denso e, por isso, mais
leve que o trigo.
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Vontade do Criador, sem se deixar engodar pelas armadilhas das trevas: são estes os “filhos
do reino”, o trigo. Que não deveria haver nenhum joio no campo de trigo do Filho do
Homem fica claro pela perplexidade dos servos pouco antes da colheita: “Senhor, não
semeaste boa semente no teu campo? Donde vem, pois, o joio?”
Lúcifer então “retirou-se” depois de disseminar seu princípio errado na matéria, isto
é, ele não permaneceu na Criação material, mas sim afundou em profundezas abissais,
devido à atuação da Lei da Gravidade, que puxa para baixo tudo quanto se torna pesado e
trevoso. No Livro de Isaías há, inclusive, um poema que retrata essa queda de Lúcifer,
chamado ali de “estrela da manhã” e “clarão da madrugada” (e simplesmente Lúcifer na
versão latina Vulgata). Nos panteões mitológicos da Antiguidade, a estrela da manhã ou
estrela-d’alva, isto é, o planeta Vênus, representava o anjo caído. O sentido básico do texto
de Isaías é o de um ser originalmente luminoso, brilhante, que é vencido e cai nas
profundezas: “Como despencaste das alturas do céu, tu, estrela da manhã, clarão da
madrugada? Estás derrubado por terra, tu que derrubavas as nações! E, no entanto, dizias
no teu coração: ‘Hei de subir até o céu; acima das estrelas de Deus colocarei o meu trono,
estabelecer-me-ei na montanha da Assembléia, nos confins do norte. Subirei acima das
nuvens, tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo.’ Foste, porém, precipitado à Mansão dos
Mortos, chegaste ao fundo do Abismo!” (Is14:12-15).
A expressão “montanha da Assembléia” ou “monte da Congregação”, que aparece
nesse poema, é a tradução corrente do original hebraico Saphon, o monte Saphon. De
acordo com poemas mitológicos datados de 1400 a 1200 a.C., gravados em escrita
cuneiforme em tábuas de argila, descobertos a partir de 1929 em escavações na
antiqüíssima cidade síria de Ugarit (atual Ras Shamra), Saphon é o nome da montanha onde
reside Baal, o grande servo de Lúcifer, chamado nesses escritos de “senhor da Terra”.
Sobre esse monte Saphon, a escritora Roselis von Sass diz o seguinte em sua obra O Livro
do Juízo Final:
8
Baal, o mais poderoso servo de Lúcifer, é citado numerosas vezes na Bíblia, desde os
primeiros livros. Seu culto foi introduzido na Samaria durante o reinado do rei Acab de
Israel (874 – 853 a.C.), quando os fiéis de Yahweh foram perseguidos. A despeito de um e
outro rei um pouco mais empenhado em cumprir os antigos Mandamentos, a Bíblia mostra
que a situação só piorou desde aquela época, tanto no reino do norte – Israel, como no reino
do sul – Judá. Mais de duzentos anos depois da morte desse Acab, o profeta Jeremias
transmitia a seguinte mensagem do Senhor: “Abandonaram a Lei que lhes dei, não ouviram
a Minha voz, nem a seguiram; foram atrás da obstinação do seu coração, atrás dos ídolos de
Baal” (Jr9:12). Do nome Baal, que significa senhor, originou-se a palavra Belzebu, forma
condensada de Baal-zebul – “Senhor Principesco”, de onde adveio por sua vez a designação
“Príncipe dos Demônios” (cf. Mt9:34).
A cidade de Ugarit estava na pujança de sua história pouco antes da época do Êxodo,
e parece que era mesmo um celeiro de Baal na região. Outras tabuinhas grafadas em escrita
cuneiforme dizem que o Ser Supremo, El (que já vimos ser um dos antigos nomes referidos
ao Criador), conhecido pelo povo de lá como “Pai da humanidade”, teve seu posto ocupado
por Baal. As escritas dizem que Baal se apoiava em sua irmã Anate, cuja atuação era de dar
inveja no próprio Baal, conforme se constata desses extratos em que ela esmaga os
habitantes de duas cidades: “Eis que Anate combateu no vale e açoitou as multidões do
litoral. Sob seus pés as cabeças eram como bolas. Ela pendurou as cabeças na cintura,
afundou até os joelhos no sangue dos heróis. Anate golpeava e ria, o coração pleno de
alegria.” O relato diz que após terminada a luta, Anate forçou El a permitir que Baal
edificasse um palácio onde ele pudesse reinar. As instruções gravadas nas tabuinhas
indicam que essas estórias eram lidas em voz alta... Essa Anate é provavelmente Baalat, a
primeira serva feminina de Lúcifer, que Roselis von Sass descreve em O Livro do Juízo
Final, no tópico “O Culto de Baal”.
Como os seres humanos dispõem do livre-arbítrio, cabe a eles decidir se querem se
desenvolver como joio ou como trigo. Enquanto apenas se inclinarem para o lado errado,
ainda têm possibilidades de retomar o caminho certo do desenvolvimento de seus espíritos.
Os ensinamentos dos Precursores, as advertências dos profetas dos tempos antigos e
posteriormente a doutrina do próprio Filho de Deus, Jesus, tiveram essa finalidade
primordial. Também o incansável apóstolo Paulo se ocupou com isso em várias
oportunidades, como nessa exortação aos Efésios: “Procedei como filhos da Luz” (Ef5:9).
Somente após o término do prazo concedido ao desenvolvimento de cada germe espiritual,
é que se pode afirmar com segurança quem se desenvolveu como trigo e quem preferiu
tornar-se joio na Criação. Então é chegada a hora da ceifa.
Que essa ceifa, a consumação do Juízo Final, está estreitamente ligada ao Filho do
Homem, o responsável pela semeadura, fica claro na explicação subseqüente de Jesus:
“Pois assim como o joio é colhido e lançado ao fogo, assim será na consumação do
século. Mandará o Filho do Homem os seus anjos, que ajuntarão de seu reino todos
os escândalos e os que praticam a iniqüidade, e os lançarão na fornalha acesa; ali
haverá choro e ranger de dentes.”
(Mt13:40-42)
Nós nos encontramos exatamente nesta época, em que o joio está sendo separado do
trigo. A separação é automática, porque agora cada qual é forçado a se mostrar como
realmente é, como se desenvolveu desde a semeadura, se como joio ou como trigo. Isso tem
de se evidenciar bem nitidamente no presente, a época da colheita. O ser humano que ainda
9
ouve sua intuição, que ainda não está totalmente obliterado pelo raciocínio materialista, tem
agora de se movimentar muito energicamente no sentido da ascensão espiritual, para não
acontecer de ser achado demasiado leve nessa separação entre joio e trigo: “Foste pesado na
balança e considerado leve demais” (Dn5:27).
Estamos vivendo a plena efetivação do Juízo Final, o proclamado Dia do Senhor ou
Dia do Juízo, vaticinado com tanta ênfase nas antigas Escrituras: “Deus pedirá contas, no
Dia do Juízo, de tudo o que está oculto, quer seja bom, quer seja mau” (Ecl12:14); é o “Dia
em que o Senhor debulhará o seu cereal desde o Eufrates até o ribeiro do Egito; e vós, ó
filhos de Israel, sereis colhidos um a um” (Is27:12).
Colhidos um a um… O prazo concedido para o desenvolvimento do ser humano
expirou, “o tempo está cumprido e o reino de Deus está próximo” (Mc1:15). Ou ele
desperta agora, retomando o caminho certo, estreito, há muito abandonado, ou se perderá
no Juízo, perecendo espiritualmente como joio imprestável, quando então reconhecerá, com
o maior horror e desespero, que efetivamente “há caminho que ao homem parece direito,
mas ao cabo dá em caminhos de morte” (Pv14:12). Neste último caso seu destino será tal
que ele perderá a autoconsciência adquirida até aqui, sofrendo então, entre os maiores
tormentos (choro e ranger de dentes) a morte espiritual, a segunda morte, que é o “salário
do pecado” (Rm6:23).
Por fim, Jesus explica que, após a limpeza de todo o mal no Juízo, virá o Reino de
paz:
“Então os justos brilharão como o Sol no Reino de seu Pai. Quem tem ouvidos,
ouça.”
(Mt13:43)
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visto eles mesmos já haverem percorrido antes todas as partes e assim
chegado a pleno conhecimento delas.”
O Tesouro e a Pérola
“O reino dos céus é semelhante a um tesouro oculto no campo, o qual certo homem,
tendo-o achado, escondeu. E transbordante de alegria vai, vende tudo o que tem e
compra aquele campo. O reino dos céus é também semelhante a um que negocia e
procura boas pérolas, e tendo achado uma pérola de grande valor, vendeu tudo o que
possuía e a comprou.”
(Mt13:44-46)
Nessas duas parábolas encadeadas Jesus mostra que o reino dos céus é
incomparavelmente mais valioso do que os reinos terrenos. Mostra também qual deve ser a
disposição do ser humano que quiser alcançá-lo. Nenhum esforço pode ser demasiado para
tanto, pois os reinos do nosso mundo terreno não são nada comparados com a vida eterna
no reino espiritual do Paraíso.
O ser humano deve colocar como alvo máximo de sua existência alcançar um dia esse
reino celeste. Deve mostrar, através de todo seu ser, a seriedade com que encara sua própria
salvação, esforçando-se permanentemente em viver em conformidade com as leis de Deus.
Novamente fica implícito aqui o erro de se apegar a coisas de pouco valor, como os
efêmeros bens materiais. E se tais bens se tornarem mesmo um pendor para quem os
possui, como no caso daquele jovem rico, então é melhor mesmo se desfazer deles para
manter aberta a possibilidade de atingir o reino dos céus. Jesus, inclusive, já havia
advertido para não se amontoar tesouros aqui na Terra, e sim no céu:
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“Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a Terra, onde a traça e a ferrugem
corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesouros no
céu, onde nem traça nem ferrugem corroem, e onde ladrões não escavam nem
roubam.”
(Mt6:19,20; Lc12:33)
Paulo expressou o mesmo sentido com as palavras: “Miramos às coisas invisíveis e
não às visíveis; pois o que é visível é passageiro, mas o que é invisível é eterno” (2Co4:18).
O convívio com os gregos e sua filosofia de vida espiritualista parece ter feito muito bem
ao grande apóstolo...
O repositório do ser humano será formado lá onde apontar seu coração, isto é, sua
vontade intuitiva. Por isso, ele deve direcioná-la para o alto, no sentido do aperfeiçoamento
espiritual, e assim juntar tesouros no céu. Tesouros terrenos não poderão salvar ninguém no
Juízo Final: “Nem sua prata nem seu ouro poderão salvá-los. No Dia da Ira do Senhor, toda
a Terra será devorada pelo fogo do Seu zelo” (Sf1:18). Somente aquele que orientou sua
vida segundo as leis de Deus na Criação receberá auxílio, e não quem pôs sua esperança em
bens terrenos ou no dinheiro: “Emprega o teu tesouro segundo os preceitos do Altíssimo, e
isto te aproveitará mais do que o ouro” (Eclo29:14).
Às pessoas que agem diferentemente, isto é, que só pensam em acumular tesouros na
Terra, cabe ainda essa duríssima advertência de Tiago: “O vosso ouro e a vossa prata
enferrujaram-se; sua ferrugem servirá de testemunho contra vós e devorará a vossa carne
como fogo. Entesourastes, afinal, para os vossos últimos dias!” (Tg5:3).
A Rede
“O reino dos céus é ainda semelhante a uma rede, que lançada ao mar recolhe peixes
de toda espécie. E quando já está cheia, os pescadores recolhem-na para a praia e,
assentados, escolhem os bons para os cestos, e os ruins deitam fora. Assim será na
consumação do século: Sairão os anjos e separarão os maus dentre os justos, e o
lançarão na fornalha ardente; ali haverá choro e ranger de dentes.”
(Mt13:47-50)
Nessa parábola, Jesus fornece uma outra imagem para o processo do Juízo Final. Ao
invés da colheita mencionada na parábola do joio e do trigo, a analogia é com uma rede de
pesca. Mas aqui também se alude à coexistência de maus e bons até o fim dos tempos,
salientando o destino terrível reservado a quem se tornou imprestável. Jesus sempre
procurava deixar claro que no final do período concedido para o desenvolvimento da
humanidade haveria uma rigorosa seleção entre bons e maus, entre os que se tornaram úteis
e os que se mostraram nocivos na vinha do Senhor.
Contudo, o cerne desses ensinamentos é o de que sempre esteve nas mãos do próprio
ser humano – mediante seu livre-arbítrio – desenvolver-se para cima ou para baixo, em
direção à Luz ou às trevas. Não há meio-termo. Vamos lembrar que essa Luz primordial é o
próprio Deus, e que as trevas são totalmente estranhas à Luz: “Deus é Luz, e não há Nele
treva alguma” (1Jo1:5). Os ensinamentos também estabelecem que, conforme a resolução
tomada, o ser humano teria então de arcar com as respectivas conseqüências. Ele poderia
escolher, mas depois teria de colher.
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Uma análise um pouco mais atenta dessas parábolas já bastaria para demonstrar que a
salvação, absolutamente, não pode ser conseguida sem um empenho pessoal do interessado.
Unicamente aquilo que o ser humano assimila dentro de si, por convicção própria,
tem valor. Unicamente aquilo que ele realmente pode “ver”, isto é, compreender, lhe tem
serventia e pode auxiliá-lo na escalada para o reino luminoso do espírito. O resto é debulho,
que faz as vezes de liturgia para os cegos espirituais e de púlpito para os doutrinadores,
seus guias igualmente cegos.
Os fariseus, que com sua conduta hipócrita corporificavam a antítese dos
ensinamentos de Cristo, visto se aferrarem aos dogmas de sua doutrina artificial, na ilusão
de estarem assim vivendo também de modo agradável a Deus, foram por Jesus mui
apropriadamente denominados de guias cegos:
“Guias cegos! que coais o mosquito e engolis o camelo. (…) Deixai-os, são cegos,
guias cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, cairão ambos no barranco.”
(Mt23:24;15:14)
“O reino dos céus é semelhante a um rei, que resolveu ajustar contas com os seus
servos. E passando a fazê-lo, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. Não
tendo ele, porém, com que pagar, ordenou o senhor que fosse vendido ele, a mulher,
os filhos e tudo quanto possuía, e que a dívida fosse paga. Então o servo, prostrando-
se reverente, rogou: Sê paciente comigo e tudo te pagarei. E o senhor daquele servo,
compadecendo-se, mandou-o embora, e perdoou-lhe a dívida. Saindo, porém, aquele
servo, encontrou um dos seus conservos que lhe devia cem denários, e agarrando-o o
sufocava, dizendo: Paga-me o que me deves. Então o seu conservo, caindo-lhe aos
pés, lhe implorou: Sê paciente comigo e te pagarei. Ele, entretanto, não quis; antes,
indo-se, o lançou na prisão até que saldasse a dívida. Vendo os seus companheiros o
que se havia passado entristeceram-se muito, e foram relatar ao seu senhor tudo o
que acontecera. Então o seu senhor, chamando-o, lhe disse: Servo malvado, perdoei-
te aquela dívida toda porque me suplicaste; não devias tu igualmente compadecer-se
do teu conservo, como também eu me compadeci de ti? E, indignando-se, o seu senhor
o entregou aos verdugos até que lhe pagasse toda a dívida. Assim também meu Pai
celeste vos fará, se do íntimo não perdoardes cada um a seu irmão.”
(Mt18:23-35)
Essa parábola mostra o doloroso contraste entre o perdão divino e o “perdão”
humano. É quase uma afronta dar o mesmo nome para essas duas situações, tão díspares
que são entre si.
Para saldar sua enorme dívida, o primeiro servo teria de vender tudo quanto possuía,
e ele próprio também teria de ser vendido junto com sua família. Essa situação mostra que a
gravidade dos efeitos cármicos é proporcional ao tamanho da falta cometida. Isso, porém,
não exclui a possibilidade de perdão, pela atuação da mesma Lei da Reciprocidade, desde
que o respectivo ser humano se integre realmente dentro das leis divinas. Não foi o que
aconteceu com o servo que, devido à sua humildade inicial teve saldada a dívida de dez mil
talentos, equivalente a uns 60 milhões de denários (renda de um rei por dez anos
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aproximadamente), mas que depois não foi capaz de perdoar uma dívida ínfima de apenas
100 denários. Com essa atitude, sua culpa ficou ainda muito maior do que antes, e
conseqüentemente também o mau efeito retroativo que se formou a partir daí.
O perdão divino não tem nenhuma semelhança com o perdão humano. Uma criatura
perdoada através das leis naturais da Criação encontra-se novamente tão pura e limpa
quanto uma outra que nunca tenha errado. Não existe mais nenhuma diferença entre elas.
Mais ainda: não é nem mesmo possível distinguir qual delas errou!…
Imagine-se por exemplo dois irmãos gêmeos, absolutamente idênticos, vestidos
também de maneira igual. Suponhamos que um deles sempre tenha cuidado de sua
vestimenta, mantendo-a limpa, impecável, evitando principalmente passar por lugares onde
pudesse se sujar. O outro, ao contrário, negligenciou isso, não deu importância à sujeira que
ia se acumulando em suas vestes e tampouco evitou passar por caminhos pouco limpos.
Dessa forma sua vestimenta tornou-se imunda com o tempo, não tendo mais nenhuma
semelhança com a do seu irmão. Um dia, então, esse segundo irmão se deu conta de toda
aquela sujeira aderida à sua roupa e decidiu limpá-la a todo custo. Depois de muito
trabalho, proporcional ao tamanho da sua própria indolência e negligência, ele conseguiu
limpar totalmente sua vestimenta, de forma que ela ficou novamente igual a do seu irmão
gêmeo, que jamais se havia sujado. Pois bem, se esses dois irmãos se colocarem agora à
nossa frente, ninguém poderá dizer qual deles havia deixado sujar a sua roupa. E não só: a
rigor, isso não tem mais a mínima importância! Com o trabalho que teve para limpar sua
roupa, o segundo irmão expiou o erro cometido e encontra-se agora novamente tão limpo e
puro como o primeiro irmão.
Assim também atua a Justiça divina, que perdoa realmente uma criatura que pecou, se
esta reconhece o seu erro e se esforça diligentemente em repará-lo. Depois de perdoada é
impossível dizer se uma tal criatura pecou, pois seu erro foi de tal forma extinto que
nenhum sinal dele permaneceu dentro da obra da Criação. Isso é realmente perdoar! Uma
tal pessoa encontra-se agora efetivamente perdoada, porque de fato “o Senhor não se
lembrará mais dos seus pecados” (Hb8:12). Ela poderá retomar o caminho ascensional do
espírito, sem precisar temer mais nenhuma condenação. O ímpio que se arrepende e
redireciona sua vida em base nova não conhecerá a morte espiritual, e seus crimes não
serão mais lembrados: “Quanto ao ímpio, se ele se converter de todos os pecados que
cometeu e passar a guardar os Meus estatutos e a praticar o direito e a justiça, certamente
viverá, ele não morrerá; nenhum dos crimes que praticou será lembrado” (Ez18:21,22),
porque “a justiça livra da morte” (Pv10:2). O perdão divino, portanto, só depende dele, de
seu comportamento: “Se ele caminhar segundo as leis da vida, evitando cometer a
iniqüidade, certamente viverá e não morrerá; nenhum dos pecados que cometeu será
lembrado contra ele” (Ez33:15,16).
Bem ao contrário ocorre com o ser humano em relação ao seu próximo.
Freqüentemente, com ares de magnanimidade, ele o faz saber que lhe perdoa por uma
pequena falta cometida, mas nunca deixará de exclamar aos quatro ventos: “Ah! Aquele lá
é fulano, que me fez isso e aquilo outro; eu, porém, já o perdoei!…” Hipocrisia. Somente
hipocrisia reside no falso perdão humano. Interiormente ele continua agarrando e
sufocando seu semelhante, gritando continuamente para ele: Paga-me o que me deves!...
Se o ser humano ouvisse mais a voz de seu coração, então sua maneira de ser seria
completamente diferente. Muito mais altruísta, interessado no bem-estar do próximo e
agindo sempre nesse sentido, o que só poderia redundar em bênçãos para si através da
reciprocidade. Em sua carta a Tito, Paulo alude a isso quando lhe pede que exorte os
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membros da comunidade a “serem prontos para toda boa obra, não injuriar ninguém, serem
pessoas de paz, benevolentes, dando provas de mansidão para com todos” (Tt3:1,2).
Tudo seria completamente diferente se o ser humano realmente “atentasse ao
conselho de seu coração, visto que nada lhe pode ser mais fiel do que ele” (Eclo37:17).
Mas, infelizmente, seu raciocínio, sempre voltado apenas para si mesmo, encontra
rapidamente todo tipo de argumentação egoística para abafar a fraca e já quase inaudível
voz conselheira do coração, a intuição do seu espírito, que ainda se manifesta por vezes
aqui e acolá através de dúvidas exortadoras.
O espírito vivo reconhece rapidamente o falso em tudo, e através da intuição procura
fazer valer sua vontade. Todavia, como ele, o espírito, está muito enfraquecido pelo
domínio do intelecto, numa tibieza que vem já de milênios, suas tímidas exortações quase
nunca são páreo para as violentas rebatidas do raciocínio.
E assim o ser humano aceita como verdadeiras coisas que não existem, como é o caso
da esperança num perdão divino fácil, convenientemente adaptado à sua inércia espiritual.
Ninguém consegue obter perdão para seus pecados através de penitências, contribuições
monetárias, jejuns, número de orações proferidas e outras tarifas eclesiásticas. Ao contrário
do que é ensinado pela Igreja, não é a quantidade de orações que garante seu atendimento.
Sobre isso, o Senhor já advertira por meio do profeta Isaías: “Ainda que multipliqueis as
orações, de forma alguma atenderei” (Is1:15). Sem esforço próprio, esforço interior
perseverante em melhorar, não se avança um milímetro sequer no desenvolvimento
espiritual e, conseqüentemente, não se pode remir coisa alguma. De nada adianta se o ser
humano pensa ou acredita que as coisas sejam diferentes. De nada vale se ele crê na
existência de um perdão arbitrário, só porque essa idéia lhe foi incutida por algum guia
cego, hábil em coar mosquitos e engolir camelos. Sua ignorância a tal respeito é apenas
uma culpa a mais, pois conforme já dito ele nunca ficou sem auxílio para poder
compreender corretamente as leis das Criação. “Se disseres: ‘Mas, não o sabia!’ Aquele que
pesa os corações não o verá? Aquele que vigia tua alma não o saberá? E não retribuirá a
cada um segundo o seu procedimento?” (Pv24:12).
Sobre a prática de jejum e outras penitências e mortificações, é oportuno dizer que
não passam de graves transgressões às leis da natureza, e da forma mais vil. Só mesmo
alguém muito mesquinho, e sobretudo muito vaidoso, pode sentir-se engrandecido em
maltratar o corpo, o bem mais precioso de que dispõe aqui na Terra, a ferramenta
indispensável para o amadurecimento de seu espírito. A este, pois, cabe a sentença do livro
de Eclesiástico: “Não há ninguém pior do que aquele que maltrata a si mesmo” (Eclo14:6).
Embora não maltratasse a si mesmo, o papa Clemente VI não dava muita trela a esse livro
de Eclesiástico, pois em 1384 ele patrocinou pessoalmente uma flagelação pública na
cidade de Avignon…
Um corpo voluntariamente macerado é o sinal visível de que o respectivo espírito já
se encontra na mesma condição. Como um tal “piedoso” penitente não é mais capaz de dar
uma contrapartida espiritual de valor pela graça da vida, em razão do estado deplorável de
seu espírito e da sujeira impregnada em sua alma, ele só consegue tecer com seu raciocínio
um mísero sucedâneo material, uma “compensação” grotesca, canhestra, na forma de um
sofrimento qualquer infligido ao corpo. Com essa prática, porém, ele se torna duplamente
culpado: por lesar seu corpo e por acreditar que isso possa ser do agrado do Senhor.
A crença num Amor divino que tudo perdoa arbitrariamente, sem levar em conta a
indesviável Justiça, contribuiu ainda mais para a queda do ser humano. Ele pôde assim
entregar-se a toda sorte de vícios e paixões, pôde maltratar seu próximo tanto quanto quis,
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pôde, enfim, fazer tudo quanto julgasse necessário para satisfazer suas cobiças e ambições
terrenas, pois no final bastava fazer um leve aceno em direção ao Alto e cumprir alguma
penitência para recuperar sua posição de fiel exemplar. “Por não terem reconhecido a
Justiça que vem de Deus, e terem procurado estabelecer a sua própria justiça, não se
submeteram à Justiça de Deus” (Rm10:3).
Cumpriu-se assim entre a humanidade a instrução luciferiana básica do “viver até
exaurir-se”, princípio hedonista em vigor na Terra há sete mil anos, imiscuído sem
disfarces em algumas frases bíblicas: “Nada existe de bom para o ser humano debaixo do
Sol, a não ser comer, beber e divertir-se” (Ecl8:15). Um princípio que o autor do livro da
Sabedoria e Isaías já haviam denunciado corajosamente em suas épocas, com uma forte
dose de ironia nas palavras: “Nosso nome será esquecido com o tempo, e ninguém se
lembrará de nossas obras. (...) Vamos, pois, desfrutemos as coisas boas do presente,
embriaguemo-nos com os melhores vinhos e perfumes. (…) Ninguém de nós falte à nossa
orgia; deixemos em toda parte as marcas de nossa alegria; afinal, é essa a nossa parte, o
quinhão que nos toca” (Sb2:4,6,7,9); “Eis o júbilo e a alegria: matam-se bois, degolam-se
carneiros, come-se carne, bebe-se vinho, comer, beber… pois amanhã haveremos de
morrer!” (Is22:13), “Ai dos que são valentes para beber vinho, e fortes para misturar
licores” (Is5:22). Isaías era mesmo bastante irônico em suas admoestações, e não
economizou motejos ferinos na descrição que fez da idolatria (cf. Is44:13-20).
A propósito, convém interpor aqui que mais de dois séculos depois dessas tiradas
irônicas de Isaías, o grande filósofo grego Sócrates elevava a figura da ironia à condição de
arte em Atenas, a ponto de receber um nome especial: a ironia socrática, estudada até hoje
nos cursos de filosofia. É preciso, porém, não confundir a fina e competente ironia do tipo
socrático, que com poucas palavras põe abaixo as mais rijas elucubrações do raciocínio e as
mais delirantes fantasias do sentimento, com uma ofensa irônica qualquer, direcionada a
uma pessoa em particular, com o único fito de lhe causar sofrimento. O resultado da
primeira é salutar, ao sacudir a alma humana enrijecida por dogmas de múltiplas espécies,
enquanto que o da segunda é danoso, ao infligir dores profundas no íntimo de uma pessoa.
O segundo caso é mais apropriadamente denominado de sarcasmo ou escárnio, do qual
lançavam mão os sacerdotes e escribas contra Jesus, sempre que podiam: “A outros salvou,
a si mesmo não pode salvar!” (Mt27:42).
Da legítima ironia o próprio Jesus fez uso em algumas ocasiões. Por exemplo, quando
chamou os fariseus de “justos” (cf. Mt23:28), ou quando, depois de ter sido acusado de agir
pelo “poder de Belzebu”, disse que nesse caso então Satanás estaria “dividido contra si
mesmo”, já que ele estava ali justamente destruindo as influências demoníacas
(cf. Lc11:17,18). Paulo também foi bastante irônico, cáustico até, ao fazer uma comparação
entre os complicados Coríntios e os apóstolos, dos quais ele era o mais destacado: “Já estais
saciados! Já sois ricos! Sem nós, já vos tornastes reis! (…) Nós somos loucos por causa de
Cristo, e vós, sábios em Cristo! Nós somos fracos, e vós, fortes! Vós, honrados, e nós,
desprezados” (1Co4:8,10). Também não foi menos irônico quando chamou de
“superapóstolos” (2Co11:5) os falsos doutrinadores que estavam desviando os membros
dessa comunidade. E não podemos deixar de lado a contundente Epístola de Tiago, quase
toda moldada em farpas vigorosas e ironias desconcertantes. No Antigo Testamento, o
profeta Amós desfere uma ironia cortante aos seus ouvintes pecadores e hipócritas: “Ide em
peregrinação a Betel para pecar! A Guilgal para pecar ainda mais! Então, levai, de manhã,
os sacrifícios de comunhão, ao terceiro dia, vossos dízimos! Queimai com pão a oferenda
de louvor!” (Am4:4,5). Outro exemplo no Antigo Testamento de incisiva ironia, e bastante
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divertida, foi dada por Elias ao comentar o fracasso dos profetas de Baal em invocar sua
divindade: “Gritai mais alto, pois sendo deus pode estar ocupado; porventura ausentou-se
ou está de viagem, ou talvez esteja dormindo e seja preciso acordá-lo” (1Rs18:27).
Em relação à citada ironia de Isaías, sobre o desregramento de conduta do povo, o
historiador grego Tucídides, que viveu de 465 a 395 a.C., praticamente repetiu as palavras
do grande profeta ao descrever em sua obra Histórias da Guerra do Peloponeso os costumes
promíscuos que vigoravam na Grécia antiga: “Buscavam-se os proveitos e os prazeres
rápidos, já que a vida e as riquezas eram igualmente efêmeras (…). O prazer e todos os
meios para alcançá-lo, eis aí o que se julgava belo e útil. Ninguém era detido nem pelo
temor dos deuses, nem pelas leis humanas (…); além disso, não se pensava viver tempo
bastante para ter de prestar contas de suas faltas.”
Profunda verdade reside nessas palavras de Tucídides. O ser humano terreno tem
vivido sempre assim, dissolutamente, inescrupulosamente, “seguro do perdão, acumulando
pecado sobre pecado” (Eclo5:5). No entanto, não só nenhuma de suas faltas lhe foi
perdoada dessa maneira, como também se sobrecarregou com mais uma culpa colossal, ao
acreditar na concepção de uma benevolência arbitrária e injusta do Criador. Uma blasfêmia
do mais baixo tipo.
Os poucos que vez ou outra se perguntam se essa estória de perdão complacente
estaria certa, infelizmente afastam logo de si tais pensamentos exortadores, seja por temor
de tocar em algo “sagrado”, seja por atribuir esse tipo de questionamento a uma
incumbência específica dos teólogos de sua religião. Se existe gente encarregada de estudar
essas coisas e fornecer as devidas respostas, por que se incomodar? E se tantas pessoas
aceitam uma tal concepção, por que questioná-la?… Mas se tal concepção constituir um
pilar central, uma coluna mestra de sua fé, um dogma, então seria pecado até mesmo pensar
que poderia não estar certo!
Com essa preguiça de refletir o ser humano afunda mais e mais espiritualmente. E
quanto mais afunda, mais erros comete e menos capaz se torna de reconhecer sua própria
queda, bem como os derradeiros auxílios que ainda chegam para ele na Criação. Essa
situação prossegue até o ponto em que fica totalmente excluído de qualquer auxílio
espiritual, quando será inexoravelmente entregue aos verdugos até pagar toda a dívida.
Terá se tornado então um inimigo consumado de Deus, sem possibilidades de voltar atrás,
mesmo que julgue ser uma pessoa boa e um fiel legítimo, cumpridor exemplar dos deveres
estabelecidos por sua religião. Como os fariseus no tempo de Cristo.
Os Trabalhadores na Vinha
“O reino dos céus é semelhante a um dono de casa que saiu de madrugada para
assalariar trabalhadores para a sua vinha. Saindo pela terceira hora viu, na praça,
outros que estavam desocupados e disse-lhes: Ide vós também para a vinha e vos
darei o que for justo. Eles foram. Tendo saído outra vez perto da hora sexta e da nona
procedeu da mesma forma, e saindo por volta da hora undécima encontrou outros que
estavam desocupados e perguntou-lhes: Por que estivestes aqui desocupados o dia
todo? Responderam-lhe: Porque ninguém nos contratou. Então lhes disse ele: Ide
também vós para a vinha. Ao cair da tarde disse o senhor da vinha ao seu
administrador: Chama os trabalhadores e paga-lhes o salário, começando pelos
últimos indo até os primeiros. Vindo os da hora undécima recebeu cada um deles um
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denário. Ao chegarem os primeiros pensaram que receberiam mais, porém também
estes receberam um denário cada um. Mas, tendo-o recebido, murmuravam contra o
dono da casa, dizendo: Estes últimos trabalharam apenas uma hora, contudo os
igualastes a nós, que suportamos a fadiga e o calor do dia. Mas o proprietário,
respondendo, disse a um deles: Amigo, não te faço injustiça; não combinaste comigo
um denário? Toma o que é teu e vai-te, pois quero dar a este último tanto quanto a ti.
Porventura não me é lícito fazer o que quero do que é meu? Ou são maus os teus
olhos porque eu sou bom? Assim, os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão
os últimos.”
(Mt20:1-16)
Ao longo de milênios os seres humanos foram instados a se modificarem, a
cumprirem a Vontade do Criador e com isso a se tornarem servos úteis em Sua vinha, a
obra da Criação.
Até um certo limite do prazo concedido para o desenvolvimento da humanidade (a
hora undécima), ainda será possível ao ser humano desvencilhar-se de seus erros aderidos,
sobrepujar sua indolência interior e empreender o caminho da ascensão espiritual. Esta
ascensão, porém, requer sua colaboração consciente no aperfeiçoamento da obra da
Criação, isto é, um servir. Quem ascende espiritualmente já colabora automaticamente no
aperfeiçoamento da obra, pois tudo quanto dele emana é naturalmente belo e construtivo.
Suas intuições e pensamentos só poderão gerar ainda novas configurações benfazejas.
Observe-se que o dono da casa foi especialmente severo para com os trabalhadores
que encontrou na hora undécima: “Por que estivestes aqui desocupados o dia todo?”,
perguntou. Esse “dia” abrange aqui a existência pregressa do ser humano, que remonta a
muitos milênios, ao longo de várias vidas terrenas. O sentido é: “Por que não aproveitastes
o tempo de que dispusestes até agora, em vossa existência, para vos tornardes úteis na
Criação?”
A resposta dos trabalhadores: “Porque ninguém nos contratou”, mostra que o ser
humano mui dificilmente se anima a empreender voluntariamente sua escalada espiritual.
Como isso exige esforço pessoal, na maior parte das vezes ele prefere recostar-se
comodamente no conforto de alguma fé cega, que não exige dele nenhuma movimentação.
Só quando é atingido por algum impulso externo (o chamado para a contratação), na forma
de uma vivência marcante, seja de dor ou de alegria, é que desperta nele, por vezes, o
anseio de iniciar a ascensão espiritual (o trabalho na vinha).
Outro ensinamento contido nessa parábola diz respeito ao tempo necessário para o
desenvolvimento do espírito, o qual é diferente para cada um. Essa contingência, porém,
não deve suscitar qualquer tipo de incompreensão ou mesmo de inveja, como a manifestada
pelos trabalhadores que laboraram mais tempo, do contrário eles só prejudicarão a si
mesmos, pois “onde há inveja e sentimento faccioso, aí há confusão e toda espécie de
coisas ruins” (Tg3:16).
Não é relevante se os que começam a se desenvolver mais tarde acabam por atingir o
mesmo nível espiritual dos demais. Os seres humanos não são iguais; cada um de nós se
encontra num determinado degrau de evolução, resultado da maneira como tem aplicado as
faculdades que lhe foram outorgadas: os “talentos” da outra parábola. Uns ascendem mais
rápido, outros mais lentamente. O que realmente importa é iniciar a ascensão e perseverar
na escalada (Lei do Movimento), para poder então obter o galardão da vida eterna
(cf. 1Co3:8), o qual, naturalmente, tem o mesmo valor – um denário – para todos quanto
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fizerem jus a ele. O dono da casa mostrou-se generoso para com os últimos trabalhadores,
sem no entanto ser injusto para com os primeiros, a quem pagou conforme combinado e no
tempo certo. Ninguém, portanto, tem o direito de se queixar por ter despendido mais tempo
na ascensão espiritual do que seu próximo, porque isso é uma decorrência do ritmo pessoal
de cada um, do modo como ele mesmo se esforça em viver de acordo com as leis da
Criação. Uma queixa ou inconformismo nesse sentido é um tipo de mesquinharia que o
dono da vinha condena severamente: “São maus os teus olhos porque eu sou bom?”
Há quem tome essa parábola como sendo a prova de que a entrada no reino dos céus
ocorre por privilégio e não por mérito. Mas é exatamente o contrário! Nesta, como em
todas suas outras parábolas, Jesus exorta os seres humanos a se movimentarem
continuamente, a em tudo agir de acordo com sua Palavra, pois somente assim, através do
próprio esforço, lhes será facultado ingressar um dia no Paraíso. Não foi sem razão que o
Mestre falou tanto desse esforço pessoal como condição prévia para se adentrar no reino de
Deus: “A lei e os profetas vigoraram até João; desde esse tempo vem sendo anunciado o
Evangelho do reino de Deus, e todo homem se esforça por entrar nele” (Lc16:16).
Quem cumpre os ensinamentos contidos na Palavra salvadora ascende com
segurança, passo a passo, ao reino dos céus, mesmo que aqui na Terra seja desprezado por
seus concidadãos por se recusar a manietar-se com algemas dogmáticas, que só puderam
ser forjadas pelo raciocínio torcido de líderes religiosos. Por outro lado, todos os fariseus
modernos que já se julgam salvos, que se têm na conta de especialmente benquistos pelos
céus porque cumprem diligentemente as regras de sua religião, instituídas por outros seres
humanos da mesma espécie deles, jamais lograrão entrar no reino dos bem-aventurados.
Ficarão para trás, enquanto que os de espírito livre que hoje são por eles desprezados, os
que atualmente são os últimos, se tornarão então os primeiros, e com isso, finalmente,
“nada continuará como era; o que é baixo será elevado e o que é elevado será abaixado”
(Ez21:31).
Os Dois Filhos
“Um homem tinha dois filhos. Chegando-se ao primeiro, disse: filho, vai hoje
trabalhar na vinha. Ele respondeu: Sim senhor, porém não foi. Dirigindo-se ao
segundo disse-lhe a mesma coisa. Mas este respondeu: Não quero; depois,
arrependido, foi. Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram: o segundo. Declarou-
lhes Jesus: Em verdade vos digo que publicanos e meretrizes vos precedem no Reino
de Deus.”
(Mt21:28-31)
Essa parábola complementa a anterior, dos trabalhadores na vinha.
O que realmente tem valor na vida de uma pessoa é o marco a partir do qual ela se
decide a viver de acordo com as leis da Criação, isto é, a cumprir a Vontade do seu Criador.
A sua possível recusa de até então, qualquer que seja o motivo, não é mais decisiva para o
seu destino, já que ela mesma lhe deu uma outra direção, como se tivesse mudado a chave
de desvio de uma ferrovia. Bem diverso daquela outra que sabe, que sente nitidamente que
deve mudar sua maneira de ser, que chega até a se propor a isso vez por outra, mas que
nunca se anima a movimentar-se permanentemente nessa direção.
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Mais uma vez fica clara a necessidade de transformar em ação a boa intenção prévia
manifestada pelo ser humano. A boa intenção prévia não tem nenhum valor se, no íntimo, o
ser humano não agir de modo correspondente. O que vale é sempre a atuação, e não
palavras ocas: “Não amemos só com palavras e de boca, mas com ações e de verdade!”
(1Jo3:18), já alertava João sua comunidade. De nada adianta prometer algo e não fazer. Tal
atitude é típica dos fariseus, que “dizem e não fazem” (Mt23:3), de onde, aliás, se originou
o ditado notório: “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.
Mas quando a vontade intuitiva se ancora firmemente no bem, então também os
pensamentos, as palavras e os atos da respectiva pessoa se moldarão de acordo. É este o
filho que efetivamente foi trabalhar na vinha do Pai, que, portanto, mesmo em hora tardia,
cumpriu a Sua Vontade.
Os Lavradores Maus
“Havia um homem, dono de casa, que plantou uma vinha. Cercou-a de uma sebe,
construiu nela um lagar, edificou-lhe uma torre e arrendou-a a uns lavradores.
Depois ausentou-se do país. Ao tempo da colheita, enviou os seus servos aos
lavradores, para receber os frutos que lhe tocavam. E os lavradores, agarrando os
servos, espancaram um, mataram outro e a outro apedrejaram. Enviou ainda outros
servos em maior número, e trataram-nos da mesma sorte. E por último enviou o seu
próprio filho, dizendo: A meu filho respeitarão. Mas os lavradores, vendo o filho,
disseram entre si: Este é o herdeiro; ora, vamos, matemo-lo e apoderemo-nos da sua
herança. E, agarrando-o, lançaram-no fora da vinha e o mataram.”
(Mt21:33-39; Mc12:1-8; Lc20:9-15)
O sentido dessa parábola já foi esclarecido no capítulo 1 – tópico A Necessidade da
Vinda do Messias. Trata-se da vinda à Terra dos profetas dos tempos antigos e, por fim, do
próprio Filho de Deus.
A imagem do dono de casa que planta a vinha e, com todo o cuidado, a cerca de
tantas facilidades, mostra o imenso Amor do Criador para com Suas criaturas, ao lhes
oferecer tudo quanto necessitam em seu labor nas materialidades, que ao mesmo tempo
constitui para elas o caminho para o amadurecimento espiritual.
Na seqüência fica claro que essas criaturas, os seres humanos, não se comportaram
como administradores leais do maravilhoso mundo posto à disposição deles. Rejeitaram os
Precursores e os profetas dos tempos antigos e, por último, assassinaram o próprio Filho de
Deus. Fazendo uso errado da prerrogativa de que foram presenteados, o livre-arbítrio,
agiram de modo contrário ao desejado pelo dono da vinha. O assassínio do Filho de Deus
era uma possibilidade conhecida pela Luz, em vista da profundidade espiritual em que já se
encontrava a humanidade, uma possibilidade que de modo algum se teria efetivado se os
homens tivessem acolhido a Mensagem de Jesus no coração.
Para quem ainda mantém seu espírito aberto há de causar espanto, ao ler essa
parábola, que as interpretações atuais sejam unânimes em condenar os assassinatos dos
profetas dos tempos antigos, como crimes brutais que realmente foram, mas não o praticado
contra Jesus. Contudo, a parábola não faz nenhuma distinção entre os dois casos, ao
contrário, deixa claro que a morte do filho do dono da casa foi um ato mau, perverso, não
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previsto e muito menos ainda desejado, tendo constituído uma circunstância agravante dos
crimes praticados anteriormente. Os lavradores, pois, não respeitaram nem mesmo o filho
do dono da casa, como este esperava, e sim o mataram.
Que a morte do filho foi um crime bárbaro, fica claro logo após o término da
parábola, quando Jesus pede aos que o ouviam que expressassem sua opinião, recebendo
então uma resposta absolutamente lógica e inequívoca:
“Quando, pois, vier o senhor da vinha, que fará àqueles lavradores? Responderam-
lhe: Fará perecer horrivelmente a estes malvados, e arrendará a vinha a outros
lavradores que lhe remetam os frutos nos seus devidos tempos.”
(Mt21:40,41)
Realmente, não seria de se esperar um desfecho diferente. Em seguida, Jesus
esclarece as conseqüências da atitude errada dos lavradores maus:
“Perguntou-lhe Jesus: Nunca lestes nas Escrituras: a pedra que os construtores
rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular; isto procede do Senhor e é
maravilhoso aos nossos olhos?6 Portanto, vos digo que o Reino de Deus vos será
tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos. Todo o que
cair sobre esta pedra ficará em pedaços, e aquele sobre quem ela cair ficará reduzido
a pó.”
(Mt21:42-44)
O Reino de Deus só será alcançado por aquele que produzir bons frutos, que,
portanto, se ajustar às leis da Criação. Agir contra essas leis equivale a cair sobre a pedra
angular7, representada pela Palavra encarnada que foi Jesus (cf. At4:11), sendo, portanto,
“ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular” (Ef2:20), oriundo de Deus para ensinar os
homens como cumprir essas leis. Se não cumpri-las, a respectiva pessoa só conseguirá se
machucar e até mesmo ser despedaçada, pois a pedra não será com isso de modo algum
abalada. E sobre quem a pedra cair, este será reduzido a pó, isto é, quem agir contra essas
leis receberá infalivelmente sobre si o retorno de sua má ação, através da reciprocidade.
Para estes, a pedra angular, a lei viva, se torna então uma “pedra de tropeço”, em que
“muitos tropeçarão e cairão, serão quebrantados, enlaçados e presos” (Is8:15). Daí também
as palavras de Jesus: “Bem-aventurado aquele que não achar em mim motivo de tropeço”
(Lc7:23).
Por outro lado, o efeito inverso, reservado a quem cumpre as leis da Criação, também
já havia sido descrito pelo profeta Isaías: “Será uma pedra preciosa, angular, bem firme.
Aquele que confiar nela não tropeçará. Usarei o direito como cordel de medir e a justiça
como nível” (Is28:16,17). Confiar na justiça da lei é o mesmo que confiar no Senhor, de
todo o coração, deixando de se apoiar no raciocínio cismador: “Confia no Senhor de todo o
coração e não te estribes no teu próprio entendimento” (Pv3:5).
6
Jesus faz menção aqui ao salmo 118, versículos 22 e 23.
7
A pedra angular, principalmente a da base, mantinha unidas duas paredes de uma construção. Era empregada
como guia para as outras pedras, de modo que todas elas tinham de se ajustar à pedra angular do alicerce, para
que o prédio pudesse ser construído.
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As Bodas
“O reino dos céus é semelhante a um rei que celebrou as bodas de seu filho. Então
enviou os seus servos a chamar os convidados para as bodas, mas estes não quiseram
vir. Enviou ainda outros servos com este recado: Dizei aos convidados: eis que já
preparei o meu banquete: os meus bois e cevados já foram abatidos e tudo está
pronto, vinde para as bodas. Eles, porém, não se importaram, e se foram, um para o
seu campo, outro para o seu negócio; e os outros, agarrando os servos, os
maltrataram e mataram. O rei ficou irado, e enviando as suas tropas exterminou
aqueles assassinos e lhes incendiou a cidade. Então disse aos seus servos: Está pronta
a festa, mas os convidados não eram dignos. Ide, pois, para as encruzilhadas dos
caminhos e convidai para as bodas a quantos encontrardes. E saindo aqueles servos
pelas estradas reuniram todos os que encontraram, maus e bons, e a sala do banquete
ficou repleta de convidados. Entrando, porém, o rei para ver os que estavam à mesa,
notou ali um homem que não trazia veste nupcial, e perguntou-lhe: Amigo, como
entraste aqui sem veste nupcial? E ele emudeceu. Então ordenou o rei aos serventes:
Amarrai-o de pés e mãos e lançai-o para fora, nas trevas; ali haverá choro e ranger
de dentes. Porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos.”
(Mt22:2-14)
Muitos são chamados... Chamados são os que trazem em si determinadas
capacitações. Poucos são escolhidos... Escolhidos são os chamados que efetivamente
transformam em atos as suas capacitações.
A história descrita nessa parábola é praticamente idêntica à narrada na parábola da
grande ceia, que aparece no Evangelho segundo Lucas (cf. Lc14:16-24), onde os
convidados dão várias desculpas esfarrapadas para não comparecer. Em vista disso, vamos
nos ater apenas a esta, já que o ensinamento central vale para ambas.
O reino dos céus, o Paraíso, aguarda que os espíritos humanos cheguem até lá. Todos
foram convidados pelo Senhor, contudo a maioria não quis ir. Eles mesmos não quiseram
ir! Ao fazerem uso errado de sua liberdade de resolução, seu livre-arbítrio, eles decidiram
não ascender até lá…
Apesar dos imensos esforços despendidos pela Luz, através da dedicação e amor dos
servos enviados, para que tomassem o caminho da ascensão espiritual e assim pudessem
chegar até o reino do espírito, onde então poderiam usufruir as alegrias eternas que lhes
estavam reservadas (as festas das bodas), eles resolveram não ir, e por motivos pífios,
meramente terrenais. Aferraram-se a preocupações e interesses terrenais, em detrimento do
espiritual. Os Precursores e profetas (os servos do rei) procuraram indicar novamente aos
seres humanos o caminho para alcançar a meta que lhes estava destinada, ou seja, participar
do banquete celeste. Para esse acontecimento tudo já fora, pois, preparado no reino do
espírito – “os bois e cevados (porcos engordados) já haviam sido abatidos” – faltando
apenas a chegada dos convidados.
Mas os seres humanos terrenos recusaram o convite, “não se importaram”, e cada
qual preferiu cuidar de seus interesses, tendo “um ido para o seu campo e outro para o seu
negócio”. Essa atitude indica que eles estavam muito mais interessados nos aspectos
terreno-materiais de suas existências do que na vida espiritual. Devido ao predomínio do
raciocínio sobre o espírito, achavam muito mais razoável se ocupar com as coisas desse
mundo do que com as espirituais, procurando antes de mais nada juntar tesouros aqui na
Terra.
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Essa conduta errada, contrária à determinação do Criador, só poderia mesmo acarretar
conseqüências nefastas pela atuação da Lei da Reciprocidade. O tamanho dessa culpa, que
mostra um total descaso pela Vontade do Senhor, pode ser avaliado pela tragédia que se
abateu sobre eles na reciprocidade, depois de terem sido considerados assassinos: “sua
cidade foi incendiada e eles exterminados”. Em outras palavras: todos sucumbiram junto
com suas obras falsas e seus tesouros terrenos. Vê-se aí que ninguém pode recusar
impunemente o convite, sob pena de uma exclusão definitiva de participação no banquete.
Tudo quanto age de modo contrário à Vontade do Criador, toda e qualquer construção
falsa criada pela mão do homem, não tem possibilidade de subsistir indefinidamente. Dura
um certo tempo, de acordo com a atuação das engrenagens universais, o qual poderá até
parecer longo pela cronologia humana, mas em seguida desmorona, soterrando os que
ajudaram a edificar a construção e aqueles que, confiantes, procuraram se abrigar dentro
dela. Isso vale para tudo, quer se trate de modos errados de vida, doutrinas econômicas,
sistemas religiosos, filosofias ou regimes políticos.
“A festa está pronta, mas os convidados não eram dignos”, diz o rei. Significa que os
seres humanos, por culpa própria, não se tornaram habilitados a participar da festa,
mostrando-se indignos dela. E assim é. Serão excluídos da Ceia do Senhor todos aqueles
que se mostraram demasiado indolentes, demasiado indiferentes.
O rei deixa claro que o convite é válido para todos os seres humanos, e muitos então
se apresentam para participar do banquete. Contudo, o que não trazia veste nupcial, isto é,
que não estava adequadamente trajado para a festa das bodas, é lançado fora, nas trevas.
Esta passagem mostra que o ingresso na festa só será facultado àqueles que cuidaram de
manter impecáveis as vestes de seus espíritos, ou seja, suas almas. Somente estes poderão
um dia ingressar no reino dos céus, onde seus nomes permanecerão registrados no Livro da
Vida. Diz o Filho do Homem no livro do Apocalipse: “O vencedor se trajará com vestes
brancas; não apagarei seu nome do Livro da Vida” (Ap3:5). Já os outros, os indiferentes,
cujas vestes são inapropriadas, serão repelidos por parte da Luz: “Da Luz é repelido para as
trevas, ele é banido do Universo” (Jó18:18).
Esses últimos, que portam vestes sujas e pesadas, serão automaticamente separados
dos demais pela atuação da Lei da Gravidade Espiritual, que os faz afundar nas profundezas
trevosas a que pertencem, onde há “choro e ranger de dentes”.
As Virgens
“Então o reino dos céus será semelhante a dez virgens que, tomando as suas
lâmpadas, saíram a encontrar-se com o noivo. Cinco dentre elas eram néscias, e
cinco prudentes. As néscias, ao tomarem as suas lâmpadas, não levaram azeite
consigo; no entanto as prudentes, além das lâmpadas, levaram azeite nas vasilhas. E,
tardando o noivo, foram todas tomadas de sono, e adormeceram. Mas à meia-noite
ouviu-se um grito: Eis o noivo! Saí ao seu encontro. Então se levantaram todas
aquelas virgens e prepararam as suas lâmpadas. E as néscias disseram às prudentes:
Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas lâmpadas estão se apagando. Mas as
prudentes responderam: Não! Para que não nos falte a nós e a vós outras; ide antes
aos que o vendem e comprai-o. E saindo elas para comprar chegou o noivo, e as que
estavam apercebidas entraram com ele para as bodas, e fechou-se a porta. Mais tarde
chegaram as virgens néscias, clamando: Senhor, senhor, abre-nos a porta! Mas ele
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respondeu: Em verdade vos digo que não vos conheço. Vigiai, pois, porque não sabeis
o dia nem a hora.”
(Mt25:1-13)
Essa parábola mostra qual é a característica fundamental de quem realmente observa
a Lei do Movimento na Criação: a vigilância espiritual! Só quem permanece vigilante no
espírito consegue preservar a vivacidade de sua faculdade intuitiva, o “azeite da lâmpada”.
Essa vivacidade não pode ser transferida de uma pessoa para outra, mas sim cada qual tem
de adquirir e conservar a sua, através do próprio empenho. Essa impossibilidade de
transferência está indicada no pedido negado para se passar o azeite de uma lâmpada para
outra. É justamente essa vivacidade pessoal que permite ao ser humano vigilante distinguir
imediatamente qualquer indício referente à chegada do “noivo”, alegoria utilizada por Jesus
para indicar a vinda do Filho do Homem, o Portador da Palavra da Verdade.
Todas as virgens acabaram ficando sonolentas com o atraso do noivo, tornando-se de
algum modo indolentes; no entanto, aquelas que preservaram sua capacidade intuitiva ainda
puderam ir ter com ele a tempo. O noivo chegou numa hora totalmente inesperada: “à meia-
noite”, o que não impediu de ser reconhecido pelas virgens prudentes, porque elas se
portavam como a mulher exemplar “cuja lâmpada não se apaga durante a noite” (Pv31:18).
Só muito mais tarde é que as virgens néscias procuraram pelo noivo, porém não foram
sequer consideradas por este, visto terem perdido sua faculdade intuitiva, justamente aquilo
que faz de um ser humano efetivamente um ser humano. Passado um determinado prazo do
desenvolvimento humano, é impossível recuperar essa faculdade perdida… Não será mais
possível adquirir azeite suficiente na última hora.
Assim como a escravização de Judá pelos babilônios foi uma conseqüência da apatia
espiritual do povo eleito, que não se animou em cumprir as determinações divinas, a
escravização dos cristãos de hoje aos dogmas de suas crenças cegas é igualmente resultado
da desobediência a essa exortação de Cristo para se conservar o azeite da vigilância
espiritual. Em ambos os casos a escravidão é o efeito inevitável da indolência espiritual. Na
Antiguidade, a Babilônia foi o instrumento da reciprocidade para a escravização; hoje, esse
papel é desempenhado pelas múltiplas agremiações cristãs, que dificultam aos fiéis
assimilar qualquer coisa que soe de modo diferente dos dogmas aprendidos. Esses cristãos
podem até escutar, mas não compreendem; podem até olhar, mas não vêem. Seu
comportamento é idêntico ao daqueles judeus de Roma e seus ancestrais, sobre quem Paulo
igualmente já havia declarado:
“Bem falou o Espírito Santo a vossos pais, por meio do profeta Isaías, quando disse:
Vai ter com esse povo e dize-lhe: em vão escutareis, pois não compreendereis; em vão
olhareis, pois não vereis.”
(At28:26)
Todos os que desde épocas remotas procuraram abafar a voz de seus espíritos, a
intuição, não estarão aptos a reconhecer o Filho do Homem quando este se lhes apresentar.
Escutarão as palavras e não compreenderão, olharão tudo e não verão nada. Com isso
provam que também outrora não haviam assimilado em seu coração a Palavra exortadora
do Filho de Deus. Ao contrário dos que se encontram hoje despertos e conscientes, nesse
tempo do Juízo, eles passarão pelo Filho do Homem e por sua Palavra sem perceberem,
sem nada entenderem: “Os maus nada entenderão, só os conscientes entenderão”
(Dn12:10). Esses maus fiéis “têm olhos para ver e não vêem, ouvidos para ouvir e não
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ouvem, pois são uma corja de rebeldes” (Ez12:2). É nessa rebeldia contra a vivacidade
espiritual que se cumpre, pois, a profecia feita por Isaías, avalizada posteriormente pelo
Mestre aos seus discípulos:
“É neles que se cumpre a profecia de Isaías, que diz: Certamente haveis de ouvir, e
jamais entendereis. Certamente haveis de enxergar, e jamais vereis.”
(Mt13:14)
O sentido é o de que suas lâmpadas de vigília estariam totalmente apagadas na época
em que a Palavra do Filho do Homem estivesse agindo na Terra, porque não haveria mais
nada que as pudesse alumiar, visto que não conservaram azeite consigo, isto é, a capacidade
intuitiva. Ao contrário do que supõem as virgens néscias de hoje, os dogmas religiosos e as
interpretações cômodas das palavras de Cristo não são nenhum azeite, mas apenas água
turva.
Os Talentos
“Um homem, ausentando-se do país, chamou os seus servos e lhes confiou os seus
bens. A um deu cinco talentos, a outro dois e a outro um, a cada um segundo a sua
própria capacidade, e então partiu. O que recebera cinco talentos saiu imediatamente
a negociar com eles e ganhou outros cinco. Do mesmo modo o que recebera dois
ganhou outros dois. Mas o que recebera um, saindo, abriu uma cova e escondeu o
dinheiro do seu senhor. Depois de muito tempo, voltou o senhor daqueles servos e
ajustou contas com eles. Então, aproximando-se o que recebera cinco talentos,
entregou outros cinco, dizendo: Senhor, confiaste-me cinco talentos, eis aqui outros
cinco talentos que ganhei. Disse-lhe o senhor: Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel
no pouco, sobre o muito te colocarei: entra no gozo de teu senhor. E aproximando-se
também o que recebera dois talentos, disse: Senhor, dois talentos me confiaste, aqui
tens outros dois que ganhei. Disse-lhe o senhor: Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel
no pouco, sobre o muito te colocarei: entra no gozo de teu senhor. Chegando por fim
o que recebera um talento, disse: Senhor, sabendo que és homem severo, que ceifas
onde não semeastes e ajuntas onde não espalhastes, receoso, escondi na terra o teu
talento, aqui tens o que é teu. Respondeu-lhe, porém, o senhor: Servo mau e
negligente, sabias que ceifo onde não semeei e ajunto onde não espalhei? Cumpria,
portanto, que entregasses meu dinheiro aos banqueiros, e eu ao voltar receberia com
juros o que é meu. Tirai-lhe, pois, o talento, e dai-o ao que tem dez. Porque a todo o
que tem se lhe dará, e terá em abundância, mas ao que não tem até o que tem lhe será
tirado. E o servo inútil lançai-o para fora, nas trevas. Ali haverá choro e ranger de
dentes.”
(Mt25:14-30)
Esta é uma das parábolas mais significativas de Jesus. Mostra, de maneira inequívoca,
o que se espera da atuação do ser humano na Criação. O homem que ao ausentar-se do país
confia seus bens aos servos, é a imagem do Criador depositando nas mãos dos seres
humanos a administração da parte material da Criação.
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Cada servo recebe então uma determinada quantidade de talentos8, cada um segundo
a sua própria capacidade. Qual o significado desse quadro? Primeiramente que, conforme
já mencionado, os níveis de desenvolvimento espiritual dos seres humanos são em geral
bem distintos uns dos outros. Assim, cada um dos três servos encontrava-se num
determinado degrau de evolução. Em segundo lugar, indica que quanto mais elevado
espiritualmente se encontrar uma pessoa, tanto mais dons ela estará apta a receber, para que
fazendo uso certo deles possa então gerar obras ainda maiores e mais belas, contribuindo
mais incisivamente ainda para o desenvolvimento e aperfeiçoamento da Criação. Os dons,
portanto, não são dádivas arbitrárias distribuídas ao acaso a este ou aquele. É necessário,
antes de tudo, ter se tornado merecedor deles.
A pessoa que realmente se movimenta espiritualmente não deixará permanecerem
estagnados esses dons que recebeu, ao contrário, fará uso deles com todo o afinco de que
for capaz, de modo a produzir frutos em abundância. Tanto o servo que recebeu cinco
talentos como o que recebeu dois saíram imediatamente a negociar com eles; não perderam
tempo para produzir os frutos correspondentes. A quantidade e a magnificência desses
frutos constituem então seu agradecimento vivo Àquele que lhe outorgou dádivas assim tão
preciosas, formando a expressão mais legítima de seu louvor e adoração a Deus, conforme
atesta essa sentença do Mestre: “O que glorifica meu Pai é que produzais fruto em
abundância” (Jo15:8).
O senhor veio ajustar contas com os seus servos depois de “muito tempo”. Esse
longo tempo corresponde ao período concedido para o desenvolvimento espiritual do ser
humano. Tal período foi, de fato, muito longo, da ordem de milhões de anos. Na época
atual, da prestação de contas, cada qual já poderia e deveria estar plenamente desenvolvido,
pronto a entregar ao seu Senhor o produto da aplicação certa dos talentos a ele doados, os
dons que lhe foram confiados outrora, portanto o retorno do investimento nele feito pela
Luz.
Tanto o servo que recebeu cinco talentos como o que recebeu dois fizeram uso
acertado de seus dons, e entregaram orgulhosos ao seu senhor o produto multiplicado da
aplicação diligente deles. Já o servo que recebeu um talento deixou adormecer dentro de si
o único dom que recebeu, não gerou nenhum benefício com ele, e por esse motivo até
mesmo esse seu dom unitário lhe foi tomado. Voltou para o dono do mesmo modo como
lhe foi entregue, sem ter gerado nada de útil nas mãos do servo indolente. Retornou ao
ponto de partida, tal como uma semente que não vinga, ou tal como um germe espiritual
que não se desenvolve da maneira certa. O servo preguiçoso atuou contra a vontade do seu
senhor, o qual esperava de seu subordinado um mínimo grau de desenvolvimento espiritual.
A imagem do talento do servo negligente sendo dado ao que já tinha dez indica,
conforme já esclarecido, a efetivação autônoma da Lei de Atração da Igual Espécie, que faz
refluir automaticamente força intensificada a quem faz uso certo das dádivas recebidas, de
modo a reforçar ainda mais a disposição deste em fazer o bem e gerar boas obras. Assim,
“a todo o que tem se lhe dará, e terá em abundância, mas ao que não tem até o que tem lhe
será tirado”.
“E o servo inútil lançai-o para fora, nas trevas.” É de se perguntar aqui como é
possível, depois de uma frase dessas, que ainda haja quem afirme que basta “aceitar” Jesus
8
O talento era uma unidade de peso e monetária correspondendo a 60 minas. Havia o de ouro e o de prata,
cada um podendo ser “forte” ou “fraco”, de acordo com o peso. O peso do talento podia variar de 20 a 27
quilos.
26
como Salvador para ser içado confortavelmente aos céus, em meio a cânticos angélicos de
júbilo, libertado de todos os pecados… Sem esforço pessoal no sentido da própria
evolução, sem uma movimentação contínua e muito enérgica rumo ao alto, ninguém sobe
um milímetro sequer no caminho que conduz ao Paraíso. E também pode estar certo que o
reino dos céus não será forçado, devido ao seu comodismo, a descer até ele, o servo inútil.
As Minas
“Certo homem nobre partiu para uma terra distante, com o fim de tomar posse de um
reino, e voltar. Chamou dez servos seus, confiou-lhes dez minas e disse-lhes: Negociai
até que eu volte. Mas os seus concidadãos o odiavam, e enviaram após ele uma
embaixada, dizendo: Não queremos que este reine sobre nós. Quando ele voltou,
depois de tomar posse do reino, mandou chamar os servos a quem dera o dinheiro, a
fim de saber que negócio cada um teria conseguido. Compareceu o primeiro e disse:
Senhor, a tua mina rendeu dez. Respondeu-lhe o senhor: Muito bem, servo bom,
porque foste fiel no pouco terás autoridade sobre dez cidades. Veio o segundo,
dizendo: Senhor, a tua mina rendeu cinco. A este disse: Terás autoridade sobre cinco
cidades. Veio então outro dizendo: Eis aqui, senhor, a tua mina, que eu guardei
embrulhada num lenço. Pois tive medo de ti, que és homem rigoroso, tiras o que não
pusestes e ceifas o que não semeaste. Respondeu-lhe: Servo mau, por tua própria
boca te condenarei. Sabias que eu sou homem rigoroso, que tiro o que não pus e ceifo
o que não semeei; por que não puseste o meu dinheiro no banco? E então, na minha
vinda, o receberia com juros. E disse aos que o assistiam: Tirai-lhe a mina e dai-a ao
que tem as dez. Eles responderam: Senhor, ele já tem dez. Pois eu vos declaro: A todo
que tem se lhe dará, mas ao que não tem, o que tem lhe será tirado. Quanto, porém, a
esses inimigos que não quiseram que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui e executai-
os na minha presença.”
(Lc19:12-27)
Essa parábola é quase uma repetição da anterior, dos talentos. A principal diferença
aqui é que cada servo recebeu uma única mina, a qual rendeu quantidades diferentes nas
mãos de cada um deles. Isso demonstra que mesmo pessoas de nível espiritual semelhante
podem produzir frutos distintos, segundo a maneira como aplicam os dons que receberam.
Podem, até mesmo, não produzir nada, como aconteceu com o servo mau, o que indica um
retrocesso no desenvolvimento espiritual alcançado, portanto uma involução. O servo
indolente foi “condenado pela sua própria boca”, o que indica que cada um terá de se
julgar na época do Juízo, segundo a Vontade da Luz.
Quanto mais acertadamente um ser humano aplicar suas dádivas, quanto maior for o
empenho que ele despender nisso, tanto maiores serão os frutos correspondentes, e
conseqüentemente tanto mais valiosas serão também as bênçãos que lhe advirão por efeito
da Lei da Reciprocidade – a “autoridade sobre dez ou cinco cidades”.
Mais uma vez se constata que tudo, mas tudo mesmo, está nas mãos do próprio ser
humano. De acordo com a seriedade e tenacidade com que aplica os dons que recebeu, em
cumprimento à Vontade do Criador, assim se formarão os frutos correspondentes. Mas os
que não quiserem cumprir as leis de Deus na Criação, os que não quiserem que a Vontade
Dele reine sobre eles, estes serão exterminados.
27
O Bom Samaritano
“Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores,
os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos, retiraram-
se, deixando-o semimorto. Casualmente descia um sacerdote por aquele mesmo
caminho e, vendo-o, passou de largo. Semelhantemente um levita descia por aquele
lugar e, vendo-o, também passou de largo. Certo samaritano, que seguia o seu
caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele. E, chegando-se, pensou-
lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho, e colocando-o sobre o seu próprio
animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele. No dia seguinte tirou dois
denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem, e se alguma
coisa gastares a mais eu to indenizarei quando voltar.”
(Lc10:30-35)
Novamente Jesus aponta para as diferenças marcantes entre as exterioridades e o
íntimo dos seres humanos.
Naquela época, Jericó era uma vila que hospedava os sacerdotes e levitas que
voltavam para casa após o turno semanal de serviço no Templo. O sacerdote, que deveria
ser um exemplo de amor ao próximo, passa ao largo do homem atacado. O mesmo faz o
levita, que assim como o sacerdote detinha uma posição respeitada, sendo muito bem
considerado entre o povo.9 Em nenhum dos dois brotou o menor sentimento de compaixão
pelo semimorto, pois a intuição de ambos estava obliterada pelo raciocínio calculista,
fomentado pela sua religião rígida, que afirmava que o sangue derramado era um “líquido
impuro”. O único que se compadeceu daquele infeliz foi justamente o samaritano.
Samaritanos eram os habitantes da Samaria, nome derivado de seu antigo
proprietário, Semer. Na época de Cristo denominava-se Samaria a região situada entre a
Galiléia ao norte e a Judéia ao sul. Em 880 a.C., o rei Onri de Israel fundou uma cidade
com esse mesmo nome, Samaria, atual Sabastya, situada a 56 km de Jerusalém.
Os samaritanos eram desprezados pelos judeus porque professavam uma religião
paralela – um amálgama de crenças israelitas e pagãs – e não reconheciam o local legítimo
de culto, o Templo de Jerusalém, tendo construído seu próprio templo num monte chamado
Garizim, por volta de 400 a.C., o qual foi posteriormente destruído pelos judeus. Além
disso, eles tinham o sangue “meio-gentio”, devido a cruzamentos com os estrangeiros que
chegaram à sua terra trazidos pelos antigos conquistadores assírios, e por isso os judeus
evitavam todo contato com eles: “os judeus não se relacionam com os samaritanos” (Jo4:9).
Os samaritanos eram considerados “o povo estúpido que habita em Siquém, que nem
sequer é uma nação” (Eclo50:25,26). A cidade de Siquém (atual Nablus) era a capital do
reino do norte, onde ficava a Samaria. Quando os fariseus quiseram ofender Jesus, o
xingaram de samaritano: “Não temos nós razão ao dizer que és um samaritano e que tens
demônio?” (Jo8:48). Para os judeus daquela época não existia injúria pior do que ser
comparado a um samaritano, e a própria idéia de um “bom samaritano” seria para eles algo
inconcebível. Quando precisavam se deslocar para o norte, preferiam fazer uma volta
imensa a ter de passar pelos territórios dos samaritanos.
9
Levitas eram os membros da “tribo de Levi”, descendentes de Levi, um dos doze filhos do patriarca Jacó
(cf. Gn29:34). Eram tradicionalmente encarregados do serviço no Templo, onde assistiam a classe sacerdotal
dos saduceus no exercício de suas funções. Eles tinham direito a receber um dízimo próprio e habitavam as
cidades levíticas.
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Contudo, exterioridades e preconceitos inventados pelos homens não têm nenhum
significado, nenhum peso diante das leis da Criação. O que dá a medida do valor ou
desvalor de uma criatura é tão-somente o seu íntimo, sua vontade intuitiva ou espiritual,
única e exclusivamente. Dessa contingência o próprio Jesus já havia dado exemplos vários,
como quando se dirigiu normalmente a uma samaritana e lhe pediu um pouco de água
(cf. Jo4:7), e também quando curou dez leprosos e notou que apenas um deles, justamente
um samaritano, voltou para agradecer-lhe (cf. Lc17:15-18).
Ao ver a situação em que se encontrava o homem que fora atacado, o samaritano
sofreu junto com ele, “como se tivesse sido ele mesmo, em pessoa, o maltratado” (Hb13:3).
Vendo-o, compadeceu-se dele, ou conforme diz literalmente o trecho no original grego:
“comoveu-se até as entranhas”.
O samaritano compreendeu perfeitamente o sofrimento do seu próximo, tudo fazendo
então para minorá-lo. Não o acudiu para ter a consciência tranqüila ou para vir a ser bem
falado entre as demais pessoas de seu círculo, não, tampouco porque alimentava a
esperança de que sua boa ação lhe fosse creditada no céu. Nada disso. Ajudou
desinteressadamente, apenas para que aquele homem não continuasse a sofrer. Nem se
preocupou se acaso ele também era samaritano ou não, se era um judeu ou mesmo um
romano. Cumpriu assim, da maneira mais natural a Lei do amor, o “amarás teu próximo
como a ti mesmo” (Mt22:39; Lc10:27), pois “quem ama o próximo cumpre plenamente a
Lei” (Rm13:8), visto que “o amor é o cumprimento perfeito da Lei” (Rm13:10). O conjunto
dos Mandamentos do Senhor Deus são automaticamente cumpridos por aquele ser humano
que ama seu semelhante como a si mesmo.
Num acontecimento terrenal, aparentemente secundário e desprovido de significado
espiritual, o samaritano mostrou toda a grandeza do seu coração, porque é nas coisas
mínimas que se refletem as máximas: “quem é fiel nas coisas mínimas, é fiel também no
muito” (Lc16:10). Dessa maneira o samaritano, justamente ele, tido como herege e fora da
lei por seus conterrâneos, foi o único que pôs em marcha a Lei da Reciprocidade no sentido
desejado pelo Alto, ou seja, a seu favor.
O Amigo Necessitado
“Quem dentre vós, se tiver um amigo e for procurá-lo no meio da noite dizendo: ‘Meu
amigo, empresta-me três pães, porque chegou de viagem um dos meus amigos e nada
tenho para lhe oferecer’, e ele responder de dentro: ‘Não me importunes; a porta já
está fechada, e meu filho e eu estamos na cama; não posso me levantar para dá-los a
ti’; digo-vos, mesmo que não se levante para dá-los por ser amigo, levantar-se-á ao
menos por causa da sua insistência, e lhe dará tudo aquilo de que precisa.”
(Lc11:5-8)
Nessa parábola, a insistência destacada equivale à perseverança. O ensinamento é de
que o ser humano tem de perseverar na busca do que almeja, mesmo se as condições
terrenas lhe forem momentaneamente desfavoráveis. Não deve desanimar se encontrar
portas fechadas aqui e ali, quando se deparar com negativas sucessivas daqueles que hoje
dispõem do poder terrenal. Se sua reivindicação for justa e sobretudo útil para o seu
desenvolvimento, acabará obtendo o que deseja por efeito da Lei do Movimento.
29
A Criação oferece aos seres humanos sempre uma mesa fartamente posta, da qual
eles podem se servir quando se movimentam de maneira certa dentro das leis que a sustém.
Essa maneira certa não é o exigir egoístico, mas sim o tomar agradecido, como hóspedes
benquistos, fazendo uso das faculdades do espírito. Quem persevera nessa maneira correta
de agir sempre acabará obtendo tudo o que deseja, porque os seus próprios anseios serão
legítimos, provenientes do íntimo, e as leis auto-atuantes cuidarão de atendê-los.
Essas dádivas assim conquistadas sempre trarão consigo possibilidades de gerar ainda
novas e benfazejas dádivas, porque não foram adquiridas para deleite egoístico, como
requer o raciocínio, mas sim para bênçãos de outros seres humanos, portanto com uma
finalidade altruística, como é natural nos anelos de um espírito não atrofiado.
O Rico Insensato
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trabalham para ela familiarizarem-se corretamente com a Lei da Reciprocidade, através do
trabalho. Os empregados dão à empresa seu trabalho, para que ela cresça e se desenvolva, e
em troca recebem uma retribuição em forma de dinheiro, um instrumento transitório que
lhes possibilita obter o necessário para suas vidas terrenas. O dinheiro nada mais é do que
um meio para facilitar o dar e o receber na matéria grosseira.
Assim, tão simples, deveriam ser as relações de trabalho entre as pessoas que vivem
na Terra. Cada qual dando sua contribuição de acordo com suas próprias capacitações,
obtidas segundo o caminho de desenvolvimento trilhado durante a existência. Todas elas,
porém, tendo como objetivo máximo de vida o aperfeiçoamento espiritual, através do pleno
reconhecimento das leis da Criação e a sábia sujeição voluntária a estas, para o que a vida
terrena se constitui numa escola imprescindível. Sim, porque o verdadeiro lucro advindo de
um trabalho, assim como em tudo o mais, são as vivências proporcionadas ao espírito
humano durante sua realização, visto que unicamente estas o fazem amadurecer e ascender.
A remuneração pelo trabalho executado só é de utilidade aqui na Terra, mas as vivências
adquiridas por uma pessoa durante sua consecução seguem junto com ela para o Além,
como verdadeiro substrato de sua existência.
Além disso, a satisfação obtida pelo trabalho executado com presteza preenche o
espírito humano, fazendo com que ele se sinta, com todo o direito, uma peça útil e
necessária na engrenagem que movimenta a Criação. Pouco importa aí o ramo de atividade.
O que realmente tem valor é a maneira como o trabalho é executado. A atividade assim
executada passa a ter vida, torna-se realmente viva, espiritualizada, uma fonte de alegria
constante para o executante e seu ambiente, pois “alegrar-se no seu trabalho é dom de
Deus” (Ecl5:18). Seu “permanente regozijo” (1Ts5:16) nisso é como um hino contínuo de
gratidão ao Criador, pois a gratidão acha-se estreitamente ligada à alegria. A criatura grata
sente uma alegria legítima e também uma paz legítima. Essa alegria e essa paz impelem-na
a executar seu trabalho com aplicação redobrada, como maneira de expressar, através da
ação, seu agradecimento ao Senhor.
Sobre isso, Paulo já exortara os Colossences: “Tudo o que fizerdes, fazei-o de
coração, como para o Senhor e não para os homens” (Cl3:23). Cito aqui, mais uma vez,
uma passagem da obra Na Luz da Verdade de Abdruschin, dissertação “Natal”:
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dizem então para si mesmas que “venceram na vida”, versão moderna do “regala-te minha
alma”. Não se incomodam de terem desperdiçado assim seu preciosíssimo tempo terreno, o
que, nesta época do Juízo Final, significa a possibilidade de poder ou não continuar
existindo espiritualmente. O tempo perdido não é mais recuperado.
Lucro e lucro… E lucro! Acima de tudo! Nunca, em tempo algum da História, o
“primeiro e maior dos Mandamentos” (Mt22:38) foi tão criminosamente desobedecido, tão
acintosamente menosprezado, tão desdenhosamente escarnecido por uma criatura como o
foi pelo ser humano contemporâneo: “Tu não tens olhos nem coração, senão para o teu
lucro” (Jr22:17). O lucro como fim em si mesmo não gera prosperidade, não traz
movimentação benfazeja, ao contrário, provoca somente estagnação ao gerar apenas mais
lucro ainda, numa absurda espiral ilusória de riqueza, em tudo semelhante a uma Torre de
Babel financeira, cujo fim também não será menos catastrófico.
Um tal esforço convulsivo na obtenção do lucro pelo lucro é, no entanto, apenas uma
decorrência natural do domínio irrestrito do intelecto na vida humana, em detrimento do
espírito. Como o raciocínio é um produto do cérebro, que nada mais é do que um órgão do
corpo material, ele só está apto a tratar da matéria e das coisas a ela relacionadas, devido à
sua própria constituição. Jamais poderá servir como guia infalível para o ser humano, que é
propriamente espírito, e que por isso mesmo possui incumbências e objetivos muito mais
elevados, não podendo desperdiçar sua vida unicamente à cata de valores terrenos,
invariavelmente perecíveis e efêmeros.
Essa inclinação por valores materiais nada mais é do que uma espécie de idolatria. A
respeito dos males gerados com o pendor pelo dinheiro, é bastante significativa essa
passagem do livro apócrifo Testamento dos Doze Patriarcas: “O amor ao dinheiro conduz à
idolatria, porque quando desviados pelo dinheiro os homens invocam como divindade o
que não é divindade, e isso faz cair na demência aquele que possui.” O apóstolo Paulo
também já advertira os Colossences de que “a ânsia de posse é uma espécie de idolatria”
(Cl3:5). Essa idolatria não servirá a ninguém depois da morte. O ser humano não poderá
comprar sua salvação com dinheiro, antes a perderá, visto ter gasto seu tempo terreno
unicamente para acumular riquezas. Quando finalmente acordar, e reconhecer que “mais
vale um pobre que caminha na integridade do que um rico de conduta perversa” (Pv28:6), o
arrependimento mais plangente e a súplica mais lacrimosa já não lhe servirão de nada, pois
terão vindo tarde demais…
De que vale uma pessoa despender seu valioso tempo terreno para fazer crescer o
saldo bancário e usufruir egoisticamente efêmeros bens terrenos, obtidos no mais das vezes
pela astúcia do raciocínio, se após a morte tiver de verificar, com o mais profundo horror e
desespero, que jogou fora levianamente o último prazo para sua salvação? “De que
aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder sua alma?” (Mc8:36). De que lhe terá
servido então alguns poucos anos de enriquecimento material forçado, em comparação com
a vida eterna que lhe é denegada? De que lhe valerá naquela hora os grandes celeiros que
possuíra nesta vida? Ou, na única linguagem que entende bem: terá feito um “bom
negócio”?…
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O Servo Vigilante
“Sede vós semelhantes a homens que esperam pelo seu senhor, ao voltar ele das
festas de casamento, para que quando vier e bater à porta, logo lha abram. Bem-
aventurados aqueles servos a quem o senhor, quando vier, os encontre vigilantes; em
verdade vos afirmo que ele há de cingir-se, dar-lhes lugar à mesa e, aproximando-se,
os servirá. Quer ele venha na segunda vigília, quer na terceira, bem-aventurados
serão eles se assim os achar. Sabei, porém, isto: que se o pai de família soubesse a
que hora havia de vir o ladrão, vigiaria e não deixaria arrombar a sua casa. Ficai
também vós apercebidos, porque à hora que não cuidais o Filho do Homem virá.”
(Lc12:36-40)
Jesus faz menção aqui à época da vinda do Filho do Homem, que traria o Julgamento
para a humanidade. Ele adverte aquelas pessoas de sua época para estarem vigilantes, a fim
de que quando “este vier e bater à porta, logo a abram”. É a mesma vigilância requerida
das virgens que aguardavam pela chegada do noivo.
Como Jesus fala àquelas pessoas para se prepararem para um acontecimento futuro,
isso indica que elas estariam presentes quando esse acontecimento se realizasse, ou seja,
estariam novamente encarnadas na Terra na época em que o Filho do Homem viesse. O ato
de bater à porta significa que, assim como aconteceu com a Palavra do Filho de Deus, a
Palavra do Filho do Homem também bateria à porta daquelas almas humanas, exigindo
entrada. A respectiva pessoa deverá, portanto, abrir a porta de sua alma para a entrada da
Palavra de Deus, e deverá ter preparada dentro de si a mesa para isso. Este acontecimento
também aparece descrito no livro do Apocalipse:
“Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei
em sua casa e cearei com ele e ele comigo.”
(Ap3:20)
Em outras palavras: quem der guarida à Palavra do Filho do Homem, portanto quem
assimilá-la em seu íntimo e colocá-la em prática, estará participando da Ceia do Senhor. Na
parábola, ele lhes dá lugar à mesa e também lhes serve, pois quem cumpre sua Palavra é
por ele “servido” através dos efeitos das leis da Criação, conforme disposto pela Vontade
de Deus, que é ele mesmo.
Jesus exorta os seres humanos a permanecerem vigilantes, porque não conhecem a
época da vinda do Filho do Homem. Se a conhecessem, certamente se preparariam um
pouco antes, como o pai de família que vigiaria a casa e colocaria grades na janela se
soubesse a que horas viria o ladrão. Mas sabemos pelas palavras de Jesus que a vinda do
Filho do Homem é uma certeza.
Se as pessoas que ouviram as palavras de Jesus naquela época passassem a viver de
acordo com elas, então permaneceriam vigilantes num tempo futuro, e se tornariam aptas a
reconhecer o Filho do Homem quando este lhes batesse à porta por meio de sua Palavra. Na
parábola das virgens, Jesus já havia feito essa mesma exortação.
As palavras de Jesus, proferidas há dois mil anos, se cumpriram integralmente em
nossa época. Os que as assimilaram outrora, ao ouvi-las dele próprio ou de seus apóstolos,
puderam conservar-se vigilantes até a época atual, porque essas palavras foram cunhadas
indelevelmente em suas almas. Estes não encontraram nenhuma dificuldade em reconhecer
agora o Filho do Homem e sua Palavra, e abriram alegremente para ele o portal de suas
33
almas. São estes os que “permaneceram firmes e guardaram as tradições que lhes foram
ensinadas, seja por Palavra seja por epístola” (2Ts2:15). São estes também, portanto, as
virgens prudentes a que Jesus se referiu.
A Figueira Estéril
“Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha, e vindo procurar fruto nela
não achou. Pelo que disse ao viticultor: Há três anos venho procurar fruto nesta
figueira e não acho; pode cortá-la; para que está ela ainda ocupando inutilmente a
terra? Ele, porém, respondeu: Senhor, deixa-a ainda este ano, até que eu escave ao
redor dela e lhe ponha estrume. Se vier a dar fruto bem está, se não, mandarás cortá-
la.”
(Lc13:6-9)
Essa parábola fala das contingências que acarretaram a vinda de Jesus à Terra.
A figueira plantada na vinha indica a humanidade dentro da obra da Criação. Os seres
humanos não estavam dando os frutos deles esperados, como seres espirituais que são. Não
estavam colaborando com sua parte para o embelezamento e o desenvolvimento do imenso
pomar de Deus. Ao contrário, tinham se tornado nocivos dentro dele.
Essa situação insana teria de acarretar, como conseqüência inevitável das leis da
Criação que, tal qual uma figueira estéril, a humanidade inteira acabaria por ser extirpada
automaticamente. Por que deveria continuar dentro do pomar?…
A solicitação do servo ao dono da figueira para que este fizesse uma última tentativa
indica um ato especial de graça do Criador, não previsto inicialmente, com o objetivo de
tentar salvar pelo menos uma parte da humanidade do aniquilamento, do qual ela se
aproximava rapidamente pela sua conduta errada. Este ato de Amor do Criador consistiu
em enviar Seu Filho, uma parte Dele mesmo, até o lugar onde estava plantada a figueira,
com a finalidade de adubá-la, para que pudesse dar os frutos correspondentes dentro do
prazo previsto.
As poucas pessoas que assimilaram em seu coração os ensinamentos de Jesus
passaram efetivamente a produzir os frutos que delas se esperavam, enquanto que as demais
continuaram apenas dependuradas na gigantesca figueira estéril da humanidade, que agora,
no término do prazo concedido, será efetivamente cortada.
A Porta Estreita
“Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, pois eu vos digo que muitos procurarão
entrar e não poderão. Quando o dono da casa se tiver levantado e fechado a porta, e
vós do lado de fora começardes a bater, dizendo: Senhor, abre-nos a porta, ele vos
responderá: Não sei de onde sois. Então direis: Comíamos e bebíamos na tua
presença, e ensinavas em nossas ruas. Mas ele vos dirá: Não sei de onde sois,
apartai-vos de mim vós todos que praticais iniqüidades. Ali haverá choro e ranger de
dentes, quando virdes no Reino de Deus Abraão, Isaque, Jacó e todos os profetas, mas
vós lançados fora. Muitos virão do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, e
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tomarão lugares à mesa do Reino de Deus. Contudo, há últimos que virão a ser
primeiros e primeiros que serão últimos.”
(Lc13:24-30)
Essa parábola complementa a indicação anterior de Jesus sobre as diferenças
existentes entre o caminho que conduz à vida eterna e o que leva à perdição:
“Entrai pela porta estreita; larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à
perdição, e são muitos os que entram por ela; porque estreita é a porta e apertado o
caminho que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela.”
(Mt7:13,14)
Observe-se que são muitos os que entram pela porta larga… Se são muitos, isso
indica a maior parte dos seres humanos. Dessa imensa maioria fazem parte principalmente
todos os fiéis das múltiplas religiões, cuja fé se resume no apego a uma crença cega e à
submissão a dogmas rígidos. Todos eles juntos são esses muitos! Aproximadamente um
terço da população mundial – cerca de dois bilhões de pessoas – é cristã. O leitor supõe que
toda essa massa gigantesca está entrando pela porta estreita e seguindo pelo apertado
caminho para cima?...
Na parábola, Jesus também diz que haverá muitos que procurarão entrar pela porta
estreita mas não poderão. Só aquele que vive de acordo com a Verdade, que efetivamente
cumpre sua Palavra, estará apto a transpor a porta estreita e seguir pelo caminho
ascendente, apertado, que conduz à vida eterna. Os outros não, mesmo que estejam
convencidos do contrário.
Os que estão do lado de fora da porta estreita fechada não se conformam com sua
situação, a seu ver injusta. O argumento que eles apresentam, de que comiam e bebiam na
presença do Senhor, ou de que este ensinava nas ruas deles, mostra que se julgam aptos a
passar pela porta porque sempre cumpriram os preceitos de suas crenças religiosas, e que,
portanto, segundo sua concepção, estavam ao mesmo tempo cumprindo a Vontade de Deus.
Contudo, do outro lado o Senhor lhes responde secamente: “Não sei de onde sois!”
Mais uma vez fica claro que não são as exterioridades humanas que contam, mas tão-
somente o íntimo de cada um. Em que medida a pessoa realmente põe em prática, em toda
a sua vida, os ensinamentos contidos nas Mensagens provenientes do Alto, e não apenas
dentro dos recintos de seus templos. Os preceitos de Deus não foram dados aos seres
humanos para serem cumpridos apenas no domingo, no sábado ou na sexta-feira, mas sim
durante todos os dias de sua vida: “Amarás o Senhor teu Deus e guardarás Suas
observâncias, Suas leis, Seus costumes e Seus Mandamentos, todos os dias” (Dt11:1). Só
quem observa os Mandamentos de Deus durante todos os momentos da sua vida pode dizer
que O ama de fato, “pois amar a Deus consiste nisto: que observemos os Seus
Mandamentos” (1Jo5:3), os quais, na reciprocidade, nos guardarão: “Se quiseres observar
os Mandamentos, eles te guardarão” (Eclo15:16). João repete a exortação do Deuteronômio
em sua segunda epístola, e ainda reitera que “viver conforme Seus Mandamentos é o
mandamento que ouvistes desde o princípio, para que o pratiqueis” (2Jo6).
Quem pratica os Mandamentos com todo o seu ser angaria de modo natural a coroa
da vida eterna, o resto é ilusão. De que adianta a uma pessoa seguir rigorosamente os
rígidos preceitos de sua religião se seu coração está cheio de iniqüidade? De que valem as
belas aparências se o que move suas intuições e pensamentos são o ódio, a inveja e a
cobiça? Pensa ela que pode cometer todas essas abominações e depois entrar calmamente
35
na Casa do Senhor, para exclamar em conjunto com os de sua igual espécie: “Estamos
salvos!” (Jr7:10)? Imagina ela que poderá, com um sentimento de bem-aventurança, clamar
em coro com seus pares: “O Senhor está no meio de nós, nada de mau nos poderá
acontecer!” (Mq3:11)? Será, pois, apartada e lançada ao abismo onde só existem choro e
ranger de dentes, a condenação eterna.
Condenação eterna!... O destino final dos que se perderam na vida, dos que perderam
a vida. Esses condenados constituem uma espécie de criaturas que durante milênios e
milênios atuaram sistematicamente contra as determinações de seu Criador, a despeito de
todas as advertências que receberam e dos próprios efeitos retroativos que continuamente as
atingiram. Em virtude dessa hostilidade permanente a Deus, elas chegaram a um ponto em
que se desligaram totalmente do reino do espírito. As fracas ligações que ainda possuíam
com o plano espiritual da Criação acabaram se dissolvendo, todas. Para elas nunca mais
será possível um retorno ao Paraíso, visto terem-se apartado totalmente de lá. São elas
“mortos no Hades, cujo espírito foi retirado de suas entranhas” (Br2:17), e “cuja memória
caiu no esquecimento” (Ecl19:5).
Sobre esses mortos espirituais, Jesus já instruíra a deixar que se aniquilassem
mutuamente em sua má vontade:
“Deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos.”
(Mt8:22)
Não são preceitos religiosos que podem livrar o ser humano de um destino assim tão
pavoroso, mas unicamente a mudança de sintonia interior, o redirecionamento espiritual,
enquanto isso ainda for possível.
Que somente aquilo que vive no íntimo do ser humano tem real valor, e não a religião
moldada por outros membros da mesma espécie humana, fica ainda ratificado no trecho
seguinte dessa parábola, onde é dito que “muitos do Oriente e do Ocidente tomarão lugar à
mesa do Reino de Deus.” Não importa, portanto, o lugar em que a pessoa vive nem a
religião que professa; entrará no reino dos céus quem cumprir o que dela é exigido pelo
Criador. Posteriormente, o apóstolo Pedro ainda reiterou essa contingência, ao afirmar que
“Deus não faz acepção de pessoas, pelo contrário, em qualquer nação aquele que o teme e
faz o que é justo lhe é aceitável” (At10:34,35).
Essa declaração de Pedro, aliás, também mostra que ele próprio não se considerava,
de maneira alguma, alguém especialmente distinguido entre os demais apóstolos. Jamais
lhe passou pela cabeça que poderia ser um “papa” primordial. Inclusive, quando o centurião
Cornélio quis prostrar-se aos seus pés, ele imediatamente o ergueu e disse: “Levanta-te, eu
também sou apenas um homem” (At10:26).
Lutero, por sua vez, quando começou a se inteirar melhor dos decretos pontifícios, só
ficou em dúvida se o papa era o próprio Anticristo ou apenas seu apóstolo. Dúvida que lhe
deve ter sido sanada quando o cardeal Cajetano, cognominado “lâmpada da Igreja” por
Clemente VII, fez o obséquio de lhe esclarecer que o papa estava acima das Escrituras.
Lutero, que não era diplomata, denominou os papas e cardeais de “ralé da Sodoma
romana”. Lutero falava de papas sem papas na língua, para quem quisesse ouvir, com uma
coragem assombrosa num tempo em que a Igreja fazia e acontecia no mundo todo.
É importante esclarecer aqui que as palavras de Jesus dirigidas a Pedro referentes a
“rochedo” e “chaves do Reino” (cf. Mt16:18,19) não têm, absolutamente, o significado que
a Igreja Católica lhes emprestou, querendo ver nisso a fundação de uma comunidade
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religiosa por parte de Jesus e a instituição do papado.10 Pedro teria ficado estarrecido se
soubesse que no futuro seria tido como primeiro guardião do “ministério das chaves”,
incumbido disso pelo próprio Cristo, que seria considerado o primeiro papa de uma Igreja
poderosa e que um dia seus alegados sucessores seriam até infalíveis. Pedro teria ficado
mesmo petrificado com essas idéias…
Jesus não disse nada parecido com “Sobre ti, Pedro,…”. Ele, pois, não aludia de
maneira alguma à pessoa de Pedro, como se este fosse uma pedra fundamental, mas sim à
sua convicção pétrea, da qual dera mostras ao expressar seu reconhecimento perante o
Filho de Deus: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!” (Mt16:16). Esta convicção, que
Pedro expressou textualmente por primeiro, era “petra”, um rochedo inabalável, e não a
pessoa de Pedro, o “Petros” (Kephas em aramaico). Jesus não se enganou na qualificação
que deu à confissão de Pedro, pois em sua época havia até uma cidade ao sul do Mar Morto
chamada “Petra”, nome devido justamente do fato de ter sido edificada num vale formado
por penhascos de arenito avermelhado.
Com seus rompantes recorrentes, Pedro teria sido uma pedra muito instável para se
poder edificar qualquer coisa sobre si. Seu temperamento estava mais para um sismo
ambulante do que para uma rocha serenamente imperturbável. Os Evangelhos registram
dele mais declarações impetuosas e atos intempestivos do que de qualquer outro apóstolo,
culminando com a atitude atabalhoada de se vestir para lançar-se ao mar quando viu Jesus
ao longe, na praia (cf. Jo21:7). Como era o mais falante e impetuoso do grupo, Pedro
sempre foi também o mais repreendido, advertido e censurado.
Segundo o teólogo católico Giuseppe Barbaglio, a concepção de uma prioridade
petrina junto aos demais apóstolos não passa de uma criação teológica da Igreja primitiva,
interessada na posição de Pedro no seio da comunidade cristã. O teólogo tem razão, claro,
porém mesmo nos primórdios da Igreja essa posição nunca foi a predominante. Mais de três
quartos dos primeiros Padres da Igreja que comentaram esse trecho de Mateus rejeitaram, já
naquela época antiga, a futura falácia vaticana do estabelecimento de uma linhagem papal
através de Pedro. Um desses escritores mais famosos, o teólogo grego Orígenes, do século
III, afirmou com propriedade: “Se nós dissermos também: ‘Tu és o Cristo, Filho de Deus
Vivo’, então tornamo-nos também Pedro, porque quem quer que seja que se una a Cristo
torna-se pedra.” Jesus Cristo era a Palavra de Deus encarnada, a verdadeira rocha espiritual
para apoio da humanidade: “essa rocha era o Cristo” (1Co10:4).
Bem fez o apóstolo Paulo, ao deixar claro que sua investidura não viera “da parte de
homens, nem por intermédio de homem algum” (Gl1:1). Aliás, é sintomático que nas
saudações que Paulo envia a 26 pessoas na sua Epístola aos Romanos (cf. Rm16:3-16), não
apareça nenhuma menção ao “papa Pedro”, que naquela altura já deveria estar em pleno
exercício de seu pontificado inaugural em Roma… Uma falta de consideração inexplicável.
Sobre a concepção da fundação de uma Igreja por Cristo, cabe notar que dos quatro
Evangelhos canônicos, a palavra traduzida como Igreja – ekklêsia em grego – só aparece
em duas passagens do Evangelho de Mateus (cf. Mt16:18;18:17), que é o evangelista que
mais procura interpretar, a seu modo, as palavras de Jesus, de modo a adequá-las às 29
citações que faz, de maneira bem livre, do Antigo Testamento, de onde retirou também
outras 79 alusões indiretas. Conforme atesta corretamente a Tradução Ecumênica da Bíblia,
“Mateus pouco se importa em reproduzir ao pé da letra a linguagem do tempo de Jesus.”
10
Para esclarecimento do real significado dessas palavras de Jesus dirigidas a Pedro, ver a dissertação “Cristo
Falou…!”, no terceiro volume da obra Na Luz da Verdade, de Abdruschin.
37
De fato, Mateus se preocupa o tempo todo em mostrar várias passagens da vida de Jesus
como previstas em todas as nuances no Antigo Testamento, mesmo tendo de dar um
“jeitinho” para as coisas se encaixarem. Exemplo disso é a conhecida passagem do livro do
profeta Zacarias sobre a entrada de Jesus em Jerusalém, montado num jumento: “Eis que o
teu rei vem a ti: ele é justo e vitorioso, humilde, montado sobre um jumento, sobre um
jumentinho, filho da jumenta” (Zc9:9). Marcos, Lucas e João entendem corretamente que
há apenas um animal na cena, e nos seus Evangelhos Jesus aparece solicitando apenas um
jumentinho aos discípulos (cf. Mc11:2; Lc19:30; Jo12:14). Mateus, porém, faz questão do
cumprimento integral da profecia, a qual ele cita na seqüência (cf Mt21:5), antecedida do
seu bordão recorrente: “para que se cumprisse”, e põe na boca de Jesus a solicitação de uma
jumenta e de um jumentinho (cf. Mt21:2).
Outro exemplo é a matança de meninos de até dois anos, que teria sido ordenada por
Herodes “em Belém e todo seu território” (Mt2:16). Mateus faz uso aqui de tradições
rabínicas sobre a vida de Moisés, segundo as quais tão logo o nascimento da criança foi
anunciado por meio de visões e anúncios dos magos, o faraó teria mandado chacinar
crianças recém-nascidas do sexo masculino.11 Também se observa um paralelo com o livro
do Êxodo, quando o rei do Egito manda as parteiras assistentes do povo hebreu assassinar
todo recém-nascido menino e poupar a vida das meninas. Vimos no início deste volume
que Jesus nasceu em 12 a.C. Nessa época, Herodes não estava preocupado com o
nascimento de nenhum Messias, mas sim com dois de seus filhos que, segundo imaginava,
tramavam a sua morte. Nesse ano ele foi com os filhos até Roma para que o imperador
Augusto decidisse a questão, o qual não viu indícios de nenhuma rebelião e reconciliou pai
e filhos. Ainda nesse ano de 12 a.C., Herodes presidiu a edição dos Jogos Olímpicos e até
deu dinheiro do próprio bolso para garantir o sucesso do empreendimento. De
preocupações com o Messias nascido, nem sinal.
Voltando ao termo ekklêsia, observa-se seu uso já desde o século V a.C., sempre
apenas com o sentido de “assembléia”, tal como aparece por exemplo nos escritos de
gregos famosos, como Heródoto, Platão, Eurípedes e Xenofontes. A palavra era usada na
Grécia para indicar a reunião dos cidadãos livres, particularmente em Atenas. O sentido é,
portanto, o de uma assembléia, e não o de uma Igreja fundada como instituição religiosa. É
nesse sentido de “assembléia” que o termo aparece nos textos do Antigo Testamento (qahal
em hebraico). Também é com esse significado que o evangelista Lucas designa, em Atos
dos Apóstolos, a reunião dos cidadãos no teatro de Éfeso (cf. At19:32) e a “assembléia
regular” que delibera sobre questões públicas (cf. At19:39). Em sua epístola, Tiago usa esse
mesmo termo com o sentido de “sinagoga”, para designar a reunião da comunidade a que se
dirige (cf. Tg2:2).
Jesus, portanto, não fundou nenhuma Igreja. De vez em quando, é verdade, ainda
aparece pelos tempos algum clérigo corajoso para dizer isso com todas as letras, como fez o
Padre da Igreja, Basílio de Cesaréia, no longínquo século IV. Em seu tratado Sobre o
Espírito, São Basílio deixou registrado o seguinte: “Quem ensinou por escrito a fazer o
sinal da cruz àqueles que acreditavam em nosso Senhor Jesus Cristo? Qual dos santos nos
11
O faraó de fato tencionava matar os hebreus recém-nascidos do sexo masculino, mas não para se ver livre
de uma criança chamada Moisés, e sim porque achava que o povo escravizado estava se tornando muito
numeroso, o que poderia ser perigoso para o país. Ao leitor que desejar conhecer detalhes dessa história
indicam-se as obras Aspectos do Antigo Egito ou Moisés, ambas publicadas pela Editora Ordem do Graal na
Terra.
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deixou por escrito as palavras da invocação ao erguer o pão da eucaristia e o cálice da
bênção? Abençoamos a água do batismo e o óleo da crisma… Com base em que autoridade
escrita fazemos isso? Por meio de qual palavra escrita a própria unção com óleo foi
ensinada?” Mais recentemente, em 1903, o destemido abade Allain deu o seguinte
depoimento no jornal católico L’Univers, vendido nas portas das igrejas francesas aos
domingos: “Quando se nos descreve a Igreja unicamente segundo o Evangelho, não nos é
dada toda a verdade; não merece crédito nem confiança. Onde estão, no Evangelho, as
instruções que Nosso Senhor, que fundava uma nova religião, seguramente teve que dar,
vez ou outra, a seus apóstolos sobre os sacramentos, a liturgia, o culto aos santos e à sua
Santíssima Mãe?” Não se sabe que fim teve o bom abade Allain, mas não deve ter sido
muito tranqüilo. Talvez ele não soubesse, mas seu inconformismo intuitivo é respaldado
por uma sentença atribuída a Jesus no apócrifo Evangelho de Maria Madalena: “Eu não
deixei nenhuma ordem senão o que eu lhe ordenei.”
Também a declaração de Jesus aos seus discípulos: “A quem perdoardes os pecados
ser-lhes-ão perdoados” (Jo20:23), não se referia, absolutamente, a um direito de perdão
geral e arbitrário a ser concedido por futuros prelados. Com isso ele apenas queria salientar
que uma pessoa pode perdoar a uma outra aquilo que de mal lhe tenha sido feito por ela
pessoalmente. Só isso. Nada diferente! Nada a ver com a concepção eclesiástica de que “o
poder de perdoar pecados é confiado aos membros do colégio apostólico”, como imaginam
e propalam as tradições católica e ortodoxa.
Retornando finalmente à parábola, a passagem sobre “tomar lugar à mesa do reino”
tem íntima relação com aquele trecho da parábola das bodas, onde se diz que “a sala do
banquete ficou repleta de convidados” depois de o convite ter sido recusado pelos primeiros
que o receberam, isto é, aqueles que tiveram a graça de ouvir a Palavra do Senhor. Daí
então a indicação final de que “há últimos que virão a ser primeiros e primeiros que serão
últimos.” Uma profecia que começou a se cumprir já no tempo dos apóstolos, conforme se
constata nessa reposta de Paulo e Barnabé aos judeus que, tomados de inveja, blasfemavam
e contradiziam o que Paulo dizia: “Cumpria que a vós outros em primeiro lugar fosse
pregada a Palavra de Deus, mas posto que a rejeitais e a vós mesmos vos julgais indignos
da vida eterna, eis aí que nos volvemos para os gentios” (At13:46). Observamos nessa
frase, mais uma vez, a ironia ferina do apóstolo.
No outro lado da vida, no assim chamado Além, simplesmente não há mais nenhuma
distinção nem separação de credos de qualquer espécie, nenhuma diferenciação engendrada
pelo raciocínio terreno. Lá não há mais ideologias nem filosofias, não há mais hinos nem
bandeiras, não há mais dinheiro nem honrarias, não há mais diplomas nem históricos
escolares. Lá não há crentes nem pagãos. Não há mais cristãos, judeus, muçulmanos,
espíritas, hinduístas, budistas ou xintoístas, mas tão-somente almas humanas, simples almas
humanas que têm de prestar contas de como utilizaram o tempo a elas outorgado aqui na
Terra.
Todas essas almas estarão lá alegoricamente diante de um tribunal, para prestar
contas de seus atos: “todos compareceremos perante o tribunal de Deus” (Rm14:10), “a fim
de que cada um receba conforme aquilo que fez de bem ou de mal, enquanto estava no
corpo” (2Co5:10), pois “cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus” (Rm14:12).
Nesse tribunal da Justiça divina não existem manobras protelatórias nem agravos judiciais,
nenhuma apelação nem habeas corpus. Lá é irrelevante se o ser humano na Terra se
consagrava a um culto na sexta-feira, no sábado ou no domingo, importando apenas o
quanto ele procurava consagrar sua própria vida na direção certa, em todos os momentos e
39
situações. Lá não vale mais nenhuma forma exterior de crença cega, mecanicamente
aprendida, mas apenas a verdadeira crença interior, pessoal, e na medida exata em que esta
era realmente viva no espírito, o quão pura ela se achava no íntimo do ser humano. É o
conteúdo, e não a forma, que conta.
Se uma pessoa, de qualquer etnia ou religião, deixa tornar vivos dentro de si os
legítimos ensinamentos de uma Mensagem proveniente do Alto, de tal forma que se lhe
torne uma naturalidade no pensar e no atuar, então ela também vivifica o espírito de Cristo
dentro de si. A paz de alma que alguns cristãos bons dizem experimentar é legítima porque
são bons, não porque são cristãos. Um muçulmano bom, um espírita bom e um budista bom
sentirão também a mesma paz. Todos eles terão cumprido, de maneira natural, a simples
exortação: “Evita o mal e faze o bem, busca a paz sem desistir” (Sl34:15).
Tão-somente quem se esforça pela Verdade, independentemente de sua religião, tem
realmente acesso ao espírito de Cristo, o Amor do Pai, e tão-somente este pode vivificar o
espírito de Cristo dentro de si, condição indispensável para poder reconhecer Seu poderoso
Pai. Por isso, ele disse: “Ninguém vem ao Pai a não ser por mim” (Jo14:6). Todos os
demais não lhe pertencem: “Se alguém não tem o espírito de Cristo, não lhe pertence”
(Rm8:9). Cito aqui um trecho da dissertação “O Salvador”, no segundo volume da obra Na
Luz da Verdade de Abdruschin:
Os Convidados
“Quando por alguém fores convidado para um casamento, não procures o primeiro
lugar, para não suceder que havendo um convidado mais digno que tu, vindo aquele
que te convidou e também a ele, te diga: Dá o lugar a este. Então irás, envergonhado,
ocupar o último lugar. Pelo contrário, quando fores convidado vai tomar o último
lugar, para que quando vier o que o convidou, te diga: Amigo, senta-te mais para
cima. Ser-te-á isto uma honra diante de todos os demais convivas. Pois todo o que se
exalta será humilhado, e o que se humilha será exaltado.”
(Lc14:8-11)
O ensinamento central dessa parábola é, evidentemente, o da humildade. Jesus já
havia dado indicações claras a esse respeito pouco antes, quando os discípulos tinham
começado uma discussão sobre qual deles seria o maior. Ele havia tomado um menino,
pusera-o no meio deles e dissera: “Aquele que entre vós for o menor de todos, este é que é
grande” (Lc9:48). E depois lhe propôs essa parábola, dando um colorido todo especial ao
mesmo quadro já apresentado no livro de Provérbios: “Não te mostres enfatuado diante do
rei nem te ponhas no lugar dos grandes. É melhor que te digam: ‘Sobe para aqui!’, do que
seres humilhado diante do príncipe” (Pv25:6,7).
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Humildade não é uma característica que possa ser obtida à força. Ao contrário, ela
advém naturalmente, quando uma pessoa passa a compreender o verdadeiro papel que
desempenha na Criação em que vive. Quanto mais ciente ela ficar da atuação das leis
naturais, tanto mais nítido lhe parecerá o funcionamento do gigantesco mecanismo da
engrenagem universal e, também, sua real função dentro dela. Verá então que não é mais do
que uma pequena peça, como tantas outras, a qual traz consigo a incumbência de se manter
bem ajustada e lubrificada, funcionando com perfeição. A partir daí, nunca mais “pensará
de si mesma além do que convém” (Rm12:3), para não iludir a si própria, “porque se
alguém julga ser alguma coisa não sendo nada, a si mesmo se engana” (Gl6:3).
Alguém que tenha adquirido esse reconhecimento jamais procurará se exaltar. Não
apenas não sente nenhuma necessidade disso, como uma tal atitude lhe parecerá por demais
ridícula, a qual só pode mesmo florescer no terreno da ignorância, do mais absoluto
desconhecimento do verdadeiro papel que um ser humano representa na incomensurável
obra da Criação. Munido de verdadeira humildade, aquela humildade que brota do coração
e não para consumo externo, é possível ao ser humano conseguir muita coisa de valor, em
vários aspectos da vida. Sem humildade não se consegue nada. Nada mesmo.
A vinda de Jesus à Terra não é a prova, como tantos supõem, de que a humanidade é
tão importante para Deus que Ele prontamente enviou Seu próprio Filho para o meio dela, a
fim de resgatá-la do pecado e conservá-la junto de Si. Não. A vinda de Jesus à Terra é a
prova, sim, da imensidão do Amor do Todo-Poderoso, o qual está muito acima da
capacidade de compreensão de uma criatura humana. Só mesmo um Amor tão imenso
como esse poderia enviar uma parte de Si mesmo para auxiliar seres que estavam em via de
se perder, criaturas que se mostraram incapazes de cumprir sua incumbência, ainda que
mínima, no gigantesco conjunto da obra.
A grande maioria dos fiéis atuais é tão presunçosa como os fariseus de outrora, que
gostavam “da primeira cadeira nas sinagogas e das saudações nas praças” (Lc11:43).
Também eles correm hoje a assentar-se nos primeiros lugares da festa, por acreditarem ser
muito mais do que são. Por isso, estão sendo forçados agora a se acomodar nos últimos
lugares, e a maior parte deles será até mesmo posta para fora, por terem-se mostrados
indignos do convite. “Aquele que se exaltar será humilhado...” (Mt23:12), disse o Mestre.
Só uma parte mínima dos convidados tornar-se-ão os “bem-aventurados que foram
chamados à ceia das bodas do Cordeiro” (Ap19:9).
O Filho Pródigo
“Certo homem tinha dois filhos; o mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte
que me cabe dos bens. E ele lhes repartiu os haveres. Passados não muitos dias, o
filho mais moço, ajuntando tudo o que era seu, partiu para uma terra distante e lá
dissipou todos os seus bens, vivendo dissolutamente. Depois de ter consumido tudo,
sobreveio àquele país uma grande fome, e ele começou a passar necessidade. Então
ele foi e se agregou a um dos cidadãos daquela terra, e este o mandou para os seus
campos a guardar porcos. Ali desejava ele fartar-se das alfarrobas que os porcos
comiam, mas ninguém lhe dava nada. Então, caindo em si, disse: Quantos
trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui morro de fome! Levantar-
me-ei e irei ter com meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e diante de ti, já não
sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores. E,
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levantando-se, foi para seu pai. Vinha ele ainda longe quando seu pai o avistou e,
compadecido dele, correndo, o abraçou e beijou. E o filho lhe disse: Pai, pequei
contra o céu e diante de ti, já não sou digno de ser chamado teu filho. O pai, porém,
disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa; vesti-o, ponde-lhe um anel no
dedo e sandálias nos pés; trazei também e matai o novilho cevado. Comamos e
regozijemo-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi
achado. E começaram a regozijar-se.”
(Lc15:11-24)
Essa parábola sintetiza toda a saga humana. Mostra o início do desenvolvimento do
ser humano, inicialmente sem mácula, depois quando peca e, por fim, a possibilidade de
sua redenção.
O filho mais moço requisita os bens que lhe cabem e parte para longe. Essa imagem
mostra a saída do germe espiritual humano do Paraíso, que traz consigo todas as dádivas
para vicejar na materialidade – “uma terra distante”, com a finalidade de obter a
autoconsciência através de vivências e retornar ao Paraíso, como espírito plenamente
amadurecido.
No Paraíso há seres espirituais criados, que sempre puderam permanecer lá, sem
precisar antes descer até os mundos da materialidade a fim de amadurecer e se desenvolver.
Estes seres criados são simbolizados pelo outro filho, o mais velho, que sempre viveu na
Casa do Pai.
O filho mais moço representa os germes espirituais humanos, que tal como as
sementes precisam crescer e se desenvolver mediante estímulos exteriores, só encontrados
no grande campo de cultivo da matéria. As vivências na Terra atuam sobre esses germes
como o Sol e a chuva atuam sobre as sementes das plantas. Assim como uma pequena
semente traz em si a capacidade de se transformar numa árvore frondosa, mediante as
influências climáticas que atuam continuamente sobre ela, também o germe espiritual
humano, mediante as vivências angariadas em múltiplas vidas terrenas, tem ensejo de se
transformar num ser espiritual completo, autoconsciente, pronto a dar frutos em abundância
lá na pátria espiritual de onde saíra, o Paraíso. Para tanto, ele precisa aproveitar as muitas
vivências no sentido do seu próprio aperfeiçoamento, corajosamente, tal como um tijolo de
barro que se fortalece cada vez mais sob os raios solares, e não como um pedaço de cera
qualquer, que se derrete desconsolado sob o mesmo sol da reciprocidade.
A perspectiva de que o processo ocorra dessa maneira normal é dada pelas faculdades
inerentes ao germe espiritual – “os bens que lhe cabem” mencionados na parábola.
Contudo, o relato mostra que o germe espiritual plantado aqui na matéria não aproveitou
essas suas capacidades inerentes, não se desenvolveu espiritualmente. Pelo contrário, ele
“dissipou todos os seus bens”, preferindo “viver dissolutamente”, isto é, não desenvolveu
as faculdades espirituais que trazia consigo, antes deu valor apenas às coisas materiais,
perecíveis.
Por causa dessa negligência, desse pecado, ele teve de experimentar grandes penúrias,
efeitos retroativos do seu mau proceder e de outros como ele – “a grande fome” que se
abateu no país. Ele então passou a “guardar os porcos”, uma atividade ínfima comparada à
missão destinada ao espírito humano na Criação. Nesse ponto, o filho nada mais desejava
senão se saciar com as “alfarrobas (vagens da alfarrobeira) que os porcos comiam”.
Todavia, todo esse sofrimento acabou despertando nele a saudade da Casa do Pai,
onde mesmo os trabalhadores “têm pão com fartura”. No reino espiritual só existe alegria,
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permanentemente usufruída pelos servidores que lá se encontram, num permanente dar e
receber. Todos desfrutam de abundância, pois a miséria é decorrência unicamente do
pecado, e este não pode medrar lá. Só em regiões muito afastadas do reino espiritual, como
é o caso do plano material da Criação, é possível a ocorrência de uma falha consciente de
uma criatura, o pecado, que traz como conseqüência inevitável a dor e o sofrimento.
Os instrumentos que provocam esse sofrimento podem apresentar-se de múltiplas
formas, mas a culpa real é sempre do próprio atingido por ele. Vamos intercalar aqui o
relato do reconhecimento do pecado, como única fonte de sofrimento humano, feito pelos
irmãos condenados pelo rei Antíoco IV Epífanes, no momento em que estavam sendo
torturados por ele. Disseram-lhe os irmãos: “Não te entregues a vãs ilusões, porque é por
causa de nós mesmos que suportamos estes padecimentos, tendo pecado contra o nosso
Deus. Sobrevieram-nos por isso estranhas calamidades. Nós, se sofremos, é por causa de
nossos próprios pecados” (2Mc7:18,32).
Estranhas calamidades... advindas do pecado. Como dor, miséria, fome, doenças...
O filho mais moço então “caiu em si”, ou como diz muito apropriadamente o original
grego da parábola: “entrou em si mesmo”. Reconhecendo seu erro – “pequei conta o céu e
diante de ti”, ele pede perdão ao pai e se diz indigno de ainda ser considerado seu filho.
Todavia, nesse reconhecimento está implícita a firme resolução de não mais atuar daquela
maneira errada, de esforçar-se em agir direito dali por diante, segundo a vontade do pai.
Por isso, o pai lhe perdoa e o cobre de graças, pois seu filho “estava morto e reviveu”,
“estava perdido e foi achado”. Em outras palavras, o filho estava prestes a sofrer a morte
espiritual, mas ressuscitou a tempo para a vida eterna. Sua roupa nova, o anel e as
sandálias, indicam que a sua alma (a veste do espírito) já terá sido completamente
purificada quando estiver prestes a entrar no reino espiritual. Com isso o filho comprovou,
por experiência própria, que “só se entra no Reino de Deus superando muitas tribulações”
(At14:22).
O pertinaz e perspicaz Pelágio, nosso nobre amigo do século V, observou muito bem
que se o filho pródigo pôde se arrepender e voltar sozinho para o pai, sem auxílio de
nenhum mediador, então isso significa que nós também não precisamos de nenhum
mediador para nossa redenção, leia-se “igrejas”. Mais um ponto para o audaz Pelágio, assaz
sagaz e por vezes mordaz, mas sempre veraz!
A segunda parte da parábola, não reproduzida acima, mostra um presumido
descontentamento do filho mais velho pela recepção que o mais moço teve por parte do pai
(cf. Lc15:25-32). Como é impossível qualquer tipo de descontentamento no Paraíso, onde
reina apenas a alegria mais pura, esse relato serve apenas para mostrar que, após seu
retorno, o filho mais moço será tão valioso quanto o mais velho, não havendo mais
nenhuma distinção de vulto entre os dois. Após o desenvolvimento necessário dos dons de
cada filho, um no reino do espírito e outro no da matéria, ambos terão as mesmas
capacitações e mesmo valor, fato indicado já no início da parábola, quando o pai repartiu
seus haveres igualmente entre os dois.
O ser humano que está a ponto de se perder na matéria, devido aos erros nele
aderidos, mas que num determinado momento redireciona sua sintonização interior para um
alvo elevado, equivale ao filho que toma a resolução de voltar para a Casa do Pai. Vê-se
assim que o sofrimento também pode ser uma bênção, se consegue levar a pessoa atingida
por ele a modificar seu modo errado de vida de até então. De fato, muitas vezes só nas
agruras, decorrentes da reciprocidade, é que o ser humano redireciona seu íntimo no sentido
certo.
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E depois de ele mesmo ter ascendido até a Casa do Pai, sua chegada será então motivo
de grande regozijo entre os habitantes do reino dos céus, o Paraíso. É uma alegria que se
renova a cada filho pródigo que encontra o caminho de volta para casa.
A Torre e o Rei
“Quem dente vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro para calcular
a despesa e ver se tem com que a concluir? Não suceda que, depois de assentar os
alicerces, não a podendo acabar, todos os que virem comecem a troçar dele, dizendo:
‘Eis um homem que começou a construir e não pôde terminar!’ Ou qual é o rei que
parte para a guerra contra outro rei e não se senta primeiro para examinar se lhe é
possível com dez mil homens opor-se àquele que vem contra ele com vinte mil? Se não
pode, estando o outro ainda longe, manda-lhe embaixadores a pedir a paz.”
(Lc14:28-32)
Nessas duas estórias superpostas, os protagonistas procuram agir com grande senso
de responsabilidade, para que o resultado de suas empreitadas não lhes seja desfavorável.
Um faz as contas com cuidado para ver se pode terminar a torre, e o outro avalia com zelo
se pode mesmo entrar numa guerra com o vizinho.
Nos dois casos transparece a seriedade com que as missões terrenas são encaradas,
para se poder levá-las a bom termo. Vemos uma situação semelhante, por exemplo, quanto
temos de assinar um contrato qualquer. Certamente nenhum de nós assinaria um contrato
terreno sem antes examinar detalhadamente o texto, e refletir se podemos mesmo cumprir
tudo o que ali está assentado.
Por que será então que não temos o mesmo cuidado em relação a temas espirituais?
Por que as pessoas se entregam irrefletidamente a uma crença qualquer, sem antes analisar
meticulosamente, com a intuição, se o que é proposto a elas tem de fato ressonância em seu
íntimo? Um contrato terreno não cumprido traz danosas conseqüências terrenais ao ser
humano, mas o entregar-se irrefletidamente a uma fé pode lhe custar a vida eterna. Se
usamos de responsabilidade em nossos misteres terrenos, com muito mais razão ainda
devemos fazer uso dela em assuntos que digam respeito à nossa vida espiritual. Isso não é
nenhum pecado, mas uma necessidade de máxima importância. De nada vale alegar aí que
a respectiva fé é de “família”, e que portanto uma posição de independência traria
inquietações e desarmonias. Isso é mais uma vez apenas indolência do espírito, justamente
o que as crenças atuais, em sua quase totalidade, procuram disseminar entre os adeptos.
Uma intuição aguçada em contínua vigilância e uma movimentação espiritual
permanente constituem a única garantia para se poder obter frutos espirituais de
empreendimentos espirituais.
“Qual dentre vós é o homem que, possuindo cem ovelhas e perdendo uma delas, não
deixa no deserto as noventa e nove e vai em busca da que se perdeu, até encontrá-la?
Achando-a, põe-na sobre os ombros, cheio de júbilo. E indo para casa reúne os
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amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Alegrai-vos comigo, porque já achei a minha ovelha
perdida. Digo-vos que assim haverá maior júbilo no céu por um pecador que se
arrepende, do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento.
Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas, se perder uma não acende a candeia,
varre a casa e a procura diligentemente até encontrá-la? E, tendo-a achado, reúne as
amigas e vizinhas dizendo: Alegrai-vos comigo, porque achei a dracma que eu tinha
perdido. Eu vos afirmo que de igual modo há júbilo diante dos anjos de Deus por um
pecador que se arrepende.”
(Lc15:4-10)
Essas duas parábolas reforçam a idéia central contida na narrativa do filho pródigo.
Em ambas transparece nítida a imagem do ser humano que errava mas que corrigiu o seu
erro, que, portanto, estava perdido e foi encontrado.
A maior alegria do pastor foi ter encontrado e salvo uma única ovelha perdida dentre
as cem que tinha. Do mesmo modo, a grande alegria da mulher não consistiu em ter
conservado suas nove dracmas, mas sim em ter encontrado a décima desaparecida. Grande
é o júbilo no céu para cada pecador que se arrepende. Mesmo que seja um entre milhões, é
motivo de alegria no reino do céu. Por isso, nenhum esforço pode ser demasiado para
conceder auxílio verdadeiro a um nosso semelhante que sofre, e que se mostra digno dessa
ajuda. O sofrimento cuida de aplainar o caminho para que o socorro eficaz possa adentrar
na alma.
Note-se, como sempre, a indicação de que o próprio pecador se arrepende, o que
pressupõe uma mudança radical em seu modo de ser, até então sintonizado erradamente.
Essa contingência está muito longe da idéia de uma obtenção fácil do perdão dos pecados,
através da apática aceitação de uma fé cega ou do cumprimento compulsório de penitências
inventadas.
O Juiz Iníquo
“Havia em certa cidade um juiz que não temia a Deus nem respeitava homem algum.
Havia também naquela mesma cidade uma viúva que vinha ter com ele, dizendo:
Julga a minha causa contra o meu adversário. Ele por algum tempo não a quis
atender, mas depois disse consigo: Bem que eu não temo a Deus nem respeito homem
algum, todavia como essa viúva me importuna julgarei a sua causa, para não suceder
que, por fim, venha a molestar-me.”
(Lc18:2-5)
Logo após proferir essa parábola, Jesus dá aos seus ouvintes a explicação:
“Considerai o que diz este juiz iníquo. Não fará Deus justiça aos seus escolhidos, que
a ele clamam dia e noite, embora pareça demorado em defendê-los?”
(Lc18:6,7)
A parábola, em conjunto com a subseqüente explicação de Jesus, mostra a diferença
abismal existente entre a justiça humana e a divina.
Os homens praticam a sua “justiça” segundo as ponderações de seu raciocínio,
quando querem e como querem, pois a justiça humana apresenta-se cheia de lacunas e
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eivada de atos arbitrários. No entanto, para os juízes terrenos que colocam de lado o senso
humanitário, na ilusão de estarem assim cumprindo seu dever, teria sido melhor mesmo que
nunca tivessem nascido…
A Justiça divina é completamente distinta da humana. É imutável e intangível. Jamais
falha, mesmo que não seja reconhecida pelos homens na época do seu desencadeamento.
Jamais falha porque está inserida nos efeitos das auto-atuantes e perfeitas leis da Criação.
Ela se destina ao espírito humano propriamente, e por isso atinge a respectiva pessoa em
qualquer lugar ou época em que se encontre. Não está limitada pelo tempo e o espaço.
Para os seres humanos terrenos, a Justiça divina pode às vezes parecer demorada,
porque eles a medem dentro do exíguo espaço de tempo de uma única vida terrena.
Contudo, ela se cumpre inexoravelmente, no fechamento do ciclo da reciprocidade,
conforme já bem diz a voz do povo: “Os moinhos de Deus moem devagar, mas com
segurança.” E a Bíblia faz coro a essa sabedoria popular: “O Senhor é paciente e grande em
poder, mas a ninguém deixa impune” (Na1:3).
O Bom Pastor
“Em verdade, em verdade vos digo: O que não entra pela porta no aprisco das
ovelhas, mas sobe por outra parte, este é ladrão e salteador. Aquele, porém, que entra
pela porta, este é pastor de ovelhas. Para este o porteiro abre, as ovelhas ouvem a
sua voz, ele chama pelos nomes as suas próprias ovelhas e as conduz para fora.
Depois de fazer sair todas as que lhe pertencem vai adiante delas, e elas o seguem
porque lhe reconhecem a voz; mas de modo algum seguirão o estranho, antes fugirão
dele porque não conhecem a voz dos estranhos.”
(Jo10:1-5)
Jesus foi a Palavra da Verdade encarnada. Por isso, todas as pessoas que ainda
traziam algum vislumbre de Verdade dentro de si, uma centelha que fosse, experimentavam
uma ressonância imediata com a Palavra trazida por Jesus. Claramente audível em seu
íntimo. E seguiam-no, tal qual ovelhas que seguem confiantes seu pastor.
Com isso, aquele pequeno vislumbre de Verdade que possuíam em seu íntimo se
fortalecia, ao haurirem da Fonte da Verdade que falava para elas, assim como uma chama
bruxuleante num pedaço de lenha é reavivada por uma rajada de vento. Foi por isso,
também, que Jesus disse: “Todo aquele que é da Verdade ouve a minha voz” (Jo18:37). Já
os que não possuem mais essa centelha de Verdade em seu íntimo não são mais capazes de
reconhecer a voz do pastor, e facilmente se deixarão iludir pelo ladrão e salteador.
O bom pastor chama suas ovelhas pelo nome e as conduz para fora. Os que
transpõem a porta aberta para a vida, isto é, os que assimilaram de tal modo a Palavra de
Jesus que passaram a viver inteiramente de acordo com ela, são conduzidos
automaticamente para fora do labirinto em que se achavam e encontrarão a vida eterna.
Jesus esclarece as diferenças entre o bom pastor e o ladrão um pouco mais à frente:
“O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e
a tenham em abundância. Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida pelas
ovelhas.”
(Jo10:10,11)
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E mostra que os que vivem segundo a sua Palavra alcançarão a vida eterna:
“As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço e elas me seguem. Eu lhes dou
a vida eterna; jamais perecerão eternamente, e ninguém as arrebatará da minha
mão.”
(Jo10:27,28)
Com sua Palavra Jesus indicou o caminho para que as suas ovelhas alcançassem a
vida eterna. Quando ele diz que “o bom pastor dá a vida pelas ovelhas”, então isso significa
que este bom pastor está disposto até mesmo a dar a vida para que suas ovelhas não saiam
do caminho certo mostrado a elas, fazendo-as compreender a profunda seriedade sobre a
necessidade de viverem estritamente segundo suas indicações, portanto para que não se
desviem de maneira nenhuma do caminho indicado pela Palavra e assim possam
efetivamente encontrar sua salvação. É este também o sentido da frase: “Ninguém tem
maior amor do que aquele que dá a própria vida em favor de seus amigos” (Jo15:13). A
morte do pastor, por si mesma, jamais salvará ovelha alguma. Pelo contrário, se elas não
estiverem bem firmes no caminho a elas mostrado pelo pastor que morreu, aí sim é que se
perderão de vez, deixando-se levar pelos falsos pastores, os ladrões que vêm somente para
roubar, matar e destruir.
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