Cidade Inacabada
Cidade Inacabada
Cidade Inacabada
Evandro Fiorin
Djonathan Freitas
IN-
Guilherme do Carmo Gomes Dias
Heber Macel Tenório Vasconcelos
Kellen Melo Dorileo Louzich
Laís da Silva Rodrigues
Lucas do Nascimento Souza
ACA-
Matheus Alcântara Silva Chaparim
cidade
1
AUTORES:
Evandro Fiorin
Djonathan Freitas
Guilherme do Carmo Gomes Dias
Heber Macel Tenório Vasconcelos
Kellen Melo Dorileo Louzich
Laís da Silva Rodrigues
Lucas do Nascimento Souza
Matheus Alcântara Silva Chaparim
Paula Gabbi Polli
a cidade INACABADA
1ª Edição
2021
2
EDITORA ANAP
Associação Amigos da Natureza da Alta Paulista
Pessoa de Direito Privado Sem Fins Lucrativos, fundada em 14 de setembro de 2003.
Rua Bolívia, nº.88, Jardim América, Cidade de Tupã, São Paulo. CEP 17.605-310.
Contato: (14)99808-5947 e 99102-2522
www.editoraanap.org.br
www.amigosdanatureza.org.br
[email protected]
Ficha Catalográfica
F521a Fiorin, Evandro
A cidade inacabada / Evandro Fiorin, Djonathan Freitas, Guilherme do Carmo
Gomes Dias, Heber Macel Tenório Vasconcelos, Kellen Melo Dorileo Louzich,
Laís da Silva Rodrigues, Lucas do Nascimento Souza, Matheus Alcântara Silva
Chaparim, Paula Gabbi Polli – Tupã-SP, ANAP; Florianópolis-SC, Arquitetura &
Urbanismo/UFSC Publicações: 2021.
194 p.
ISBN 978-65-86753-51-6
1. Urbanismo. 2. Planejamento Urbano. 3. Cidade. I. Título.
CDD: 710
CDU: 710/49
3
CONSELHO EDITORIAL ANAP
COMISSÃO CIENTÍFICA
Prof. Dr. César Gustavo da Rocha Lima – UNESP - Câmpus de Ilha Solteira
5
Profa. Dra. Eloisa Carvalho de Araujo – PPGAU/ EAU/UFF
Profa. Dra. Eva Faustino da Fonseca de Moura Barbosa – UEMS – Câmpus de Campo
Grande
Prof. Dr. José Mariano Caccia Gouveia – FCT- Câmpus de Presidente Prudente
Profa. Dra. Josinês Barbosa Rabelo - Centro Universitário Tabosa de Almeida (ASCES
-UNITA)
6
Profa. Dra. Leda Correia Pedro Miyazaki – UFU
Profa. Dra. Leonice Domingos dos Santos Cintra Lima – Universidade Brasil
Prof. Dr. Paulo Cesar Rocha – Professor – FCT/UNESP – Câmpus de Presidente Prudente
7
Profa. Dra. Rita Denize de Oliveira – UFPA
Profa. Dra. Sandra Mara Alves da Silva Neves – UNEMAT – Câmpus de Cáceres
Profa. Dra. Vera Lúcia Freitas Marinho – UEMS – Câmpus de Campo Grande
8
DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO - UFSC
CHEFE:
Prof. Dr. Ricardo Socas Wiese
SUB-CHEFE:
Profa. Msc. Letícia Mattana
SUPERVISOR:
Prof. Dr. Raphael Grazziano
COORDENADOR:
Prof. Dr. Paolo Colosso
SUB-COORDENADORA:
Profa. Dra. Maíra Longhinotti Felippe
LÍDER:
Prof. Dr. Evandro Fiorin
VICE-LÍDER:
Prof. Dr. João Paulo Schwerz
9
apresentação
11
01./ Guilherme do Carmo Gomes Dias
Matheus Alcântara Silva Chaparim
Por uma
‘Outra
Arquitetura’.
12
Resumo./
Neste capítulo são reunidas algumas reflexões sobre perspec-
tivas de atuação do arquiteto-urbanista nas cidades contemporâneas.
Diante de um contexto marcado pelo urbanismo funcionalista, pensa-se
ser de interesse refletir sobre como os desejos dos cidadãos e a pos-
sibilidade de encontro com o ‘outro’ podem ainda ser respeitados. O
desafio se torna ainda maior frente às mudanças e avanços tecnológicos
acentuados pelas adaptações exigidas com a chegada da pandemia de
covid-19. Desta forma, o objetivo deste trabalho é pensar sobre como
esses planejadores podem impulsionar uma “outra arquitetura”, entendi-
da como aquela que permite que transformações espaciais espontâneas
ocorram através das ações dos próprios usuários no espaço urbano. Uti-
lizaram-se como referenciais teóricos diversos autores como Solà-Mo-
rales (2002), de Certeau (1999), Queiroga (2001), Besse (2014) e Careri
(2013). As considerações finais sugerem que na busca de promover uma
“outra arquitetura” os arquitetos devem se preocupar em proporcionar o
ambiente no qual as pessoas sigam participando dos processos de for-
mação, transformação e desconstrução da cidade.
15
A cidade como território de
transgressão./
18
Figura 2 - Sobreposição de Imagens que Ilustram a Ideia de Terrain-Vague./
Os terrain-vagues, lugares obsoletos, estranhos, assumem um papel de vulnerabilidade por
estarem fora das estruturas produtivas e por serem formados por vazios que já não cum-
prem com as suas finalidades iniciais.
19
Figura 3 - Sobreposição de Imagens que Ilustram o vazio sobre o Elevado Manoel
Goulart (Minhocão) na cidade de São Paulo./
Os terrain-vagues, lugares obsoletos, estranhos, assumem um papel de vulnerabilidade
por estarem fora das estruturas produtivas e por serem formados por vazios que já não
cumprem com as suas finalidades iniciais.
20
Casos de terrain-vague também podem ser encontrados nas
atuais cidades (médias) do centro-oeste paulista, como Bauru e Presi-
dente Prudente, em que se tem um contexto onde a ferrovia foi o motor
para a busca de novas terras, especialmente para o plantio de café. Com
a diminuição do transporte de passageiros e a prioridade que se deu
historicamente ao modal rodoviário, grande parte do antigo legado ferro-
viário caiu em desuso (Figura 4). Constituem-se hoje de estruturas que
carecem de sensibilidade e que, por ocuparem grandes áreas urbanas,
também sofrem com pressões políticas e econômicas (KÜHL, 2008). Es-
ses locais retêm uma força potencial para impulsionar experimentações;
espaços que ganham um novo sentido democrático pela interferência de
seus usuários (FIORIN, 2020) e que devem ser preenchidos de significa-
dos antes de serem preenchidos de coisas (CARERI, 2013).
28
Figura 7 - Edição de Fotografia que demonstra a busca pelo espaço público ainda
possível./
A imobilidade produzida pelo estado de quarentena por conta da Covid-19 fez com que
muitos terraços e sacadas se convertessem em espaços de encontro com o 'outro'.
"O mundo é uma totalidade inacabável, mas também um meio no qual vi-
vemos. [...] Projetar é, portanto, primeiramente querer esse inacabamento,
e a responsabilidade do projetista, [...] talvez resida nisto: é o portador do
inacabamento, isto é, das significações em reserva, dos horizontes espaciais e
temporais dentro mesmo da localização dos futuros. Um mundo sem horizon-
tes, [...] simplesmente deixou de ser um mundo."
(BESSE, 2014, p.66).
"Uma prática espacial própria da esfera de vida pública, que pode se esta-
belecer em determinados momentos, para diferentes sistemas de objetos
integrantes do espaço urbano, envolvendo desde ações comunicativas do
cotidiano da vida pública, até momentos da vita activa harendtiana, da ação
política e suas representações simbólicas. A pracialidade é, como categoria,
uma abstração, mas voltada à interpretação de concretudes, existências que
se situam no tempoespaço, participando da construção e matamorfose da
esfera de vida pública".
(QUEIROGA, 2001).
32
quando são transformados em lugares de manifestação pública e de
encontro (como o MASP na Avenida Paulista em São Paulo) (QUEIROGA,
2012).
No entanto, a esfera pública contemporânea não possuiria como
suporte apenas os espaços físicos públicos, visto que através dos meios
midiáticos e telecomunicacionais é possível realizar interações entre es-
ses meios:
37
02./ Laís da Silva Rodrigues
A cidade
esvaziada.
38
Resumo./
A proposta deste capítulo reside na construção de uma breve re-
flexão entre o comportamento das ações políticas-sanitárias no combate
a febre amarela que acometeu a sociedade de Araraquara, cidade situada
no interior paulista, no período de 1895 até 1898, e as medidas tomadas
no combate a COVID-19 (2020-2021). Para isto, é traçado um panorama
do desenvolvimento das doenças, incluindo os efeitos do lockdown e um
comparativo estatístico da duração das moléstias em relação ao número
de vidas perdidas. É importante ressaltar que os estudos problematizam
sobre a vinculação do processo de urbanização aliado ao saneamento
básico e sua contribuição no controle das doenças. A evidência dessa
correlação é conseguida a partir da revisão histórica e documental da
cidade, por meio de bibliografia e registros oficiais disponibilizados pela
Prefeitura Municipal de Araraquara. As considerações finais não seguem
de encontro a um ponto final, mas sim... reticencias de um longo proces-
so evolutivo das cidades em conjunto com a sociedade.
43
Araraquara não sepultava mais os corpos dentro do templo, mas
continuaria com os sepultamentos em terreno adjacente a Matriz de
São Bento, encravada no meio da cidade, até que pudessem custear a
construção de um novo local. Não nos cabe debater aqui os possíveis
problemas resultantes da localização do cemitério até então existente,
mas vale ressaltar que no pátio da Matriz corria um córrego denomina-
do “Córrego da Servidão” e o mesmo forneceu água à população por 45
anos (figura 2).
44
Em 1885, a Companhia Paulista chega a Araraquara e traz consi-
go o desenvolvimento da região, até então considerada “boca do sertão”,
através da exportação do café para várias outras localidades do país e,
com isso, importa a febre amarela para a cidade.
Onze anos mais tarde, em 1896, a situação sanitária foi agrava-
da com a inauguração da Companhia Estrada de Ferro Araraquara (EFA),
com sua primeira locomotiva circulando em 1898 (BERGAMIM, 2015).
Com a implantação da ferrovia km 0, uma grande rede de apoio foi
instalada ao seu redor aumentando o fluxo de pessoas (nativos e es-
trangeiros) e o fluxo econômico, culminando na expansão urbana com
a inserção de novas vilas e cortiços. A nova dinâmica social facilitou a
disseminação de doenças, antes endêmicas, através dos trilhos.
A febre amarela já assolava o interior paulista antes de chegar a
Araraquara. Tendo isso em vista, a seção técnica da Câmara Municipal,
em 28 de março de 1893, aprovou a criação do Código de Posturas ou Lei
Orgânica do Poder Executivo Municipal para combater as epidemias que
por ventura viessem atingir a cidade. O projeto não teve continuidade,
pois em 1895 a epidemia alcançou Araraquara e o governo municipal o
substituiu por uma Comissão Sanitária para restabelecer a salubridade
da cidade (TELAROLLI JUNIOR, 1993).
Assim como todas as grandes moléstias, a febre amarela aco-
meteu a sociedade araraquarense em vários níveis estruturais. Devido
a sua alta taxa de letalidade, foi responsável pela desestruturação de
todo o sistema político, social, administrativo e econômico da cidade. O
governo, regido pelo coronelismo, minimizava a propagação da notícia e
não incentivava a imprensa a divulgar os casos relatados com o intuito
de não causar pânico na população. Somente após a morte de figuras
importantes da sociedade araraquarense, as autoridades não puderam
mais esconder a calamidade dos casos e soaram o alarme para o êxodo
da cidade (ALMEIDA, 1948).
Com o êxodo em massa da população de Araraquara, a doença
foi transportada para outras localidades através de pacientes infectados,
colaborando para a disseminação pelo planalto do oeste paulista. Aos
poucos Araraquara transfigurou-se em uma cidade praticamente aban-
donada com o fechamento de todas as casas de comércio e o êxodo de
grande parte da população, deixando seus animais para morrerem por
inanição (agravando a situação de higiene pública), lixo acumulado no
quintas, o que favorecia na proliferação dos mosquitos em recipientes
com água parada. Perante esses fatores a sede administrativa foi transfe-
rida para Américo Brasilense.
45
A Comissão Sanitária adotou diversas medidas de saneamento
urbano no decorrer dos anos da epidemia (1895-1898). Entre elas cita-
mos as mais significativas: construção do sistema de abastecimento
de água potável; coleta de lixo; desinfecção das ruas e casas de forma
compulsória; isolamento compulsório da população infectada no antigo
lazareto de variolosos – reaberto para atender as necessidades da epide-
mia; plantio de mil eucaliptos nas ruas da cidade para purificação do ar;
construção do novo cemitério em 18961 (um destinado à febre amarela
e outro às mortes de outras procedências); tamponamento das foças
sanitárias compreendidas como contaminadas - foças perto de focos da
doença; aplicação de cal virgem nas vias públicas, nos quintais e hortas,
e caiação compulsória de casas e muros (TELAROLLI JUNIOR, 1993). O
melhoramento urbano se torna um aliado na contenção da epidemia,
além da ampla fiscalização praticada pela Comissão de Saneamento na
cidade de Araraquara através da busca ativa dos infectados ocultos.
1 A situação era caótica, não muito diferente da pandemia hoje enfrentada. Telarolli
Junior(1993) aponta em sua tese as dificuldades enfrentadas para o sepultamento e a
implantação de especificações técnicas sobre o translado dos corpos, especificações
dos ataúdes e dimensões das covas – onde, por sua vez, eram enterrados mais de um
corpo em um só caixão.
46
Araraquara após Febre Amarela./
[...] proibição de cães soltos pelas ruas da cidade, sob pena de sacrifício do ani-
mal por um fiscal municipal. No ano seguinte fora nomeado um médico municipal
para cuidar da vacinação no município e da fiscalização da higiene em geral, e
prover os pobres de assistência médica.
(TELAROLLI JUNIOR, 1993, p.415).
JANEIRO - 70 - -
FEVEREIRO - 25 - -
MARÇO - 35 - 5
ABRIL 14 34 - 20
MAIO 24 26 4 59
JUNHO 42 7 22 10
JULHO 4 1 - 2
AGOSTO 2 - - -
SETEMBRO 4 - - -
OUTUBRO 14 1 - -
NOVEMBRO 48 - - -
DEZEMBRO 80 - - -
TOTAL 228 199 26 96
48
Em 49 anos, o crescimento populacional de Araraquara foi de
apenas 4.364 habitantes, entre livres e escravos. Um salto na linha
temporal para o ano de 1886, um ano após a chegada da Cia. Paulista à
cidade, o município soma 2.385 habitantes a mais em apenas 12 anos,
crescimento que representa 54,65% do aumento populacional de 49
anos, números que evidenciam a importância da ferrovia no crescimento
e desenvolvimento de Araraquara. De 1886 até 1900, França (1915) apon-
ta um crescimento de 19.400 habitantes. Porém, precisamos levar em
consideração o número de habitantes residentes na sede municipal, que
é de apenas 5.780 moradores contra 23.120 residentes nas fazendas e
núcleos urbanos vizinhos. Nesse período a área rural, somada aos vilare-
jos adjacentes, obteve maior crescimento populacional devido ao êxodo
da seda municipal.
De acordo com os registros encontrados, os surtos da doença fo-
ram classificados por períodos e não por anos. De abril a junho de 1985,
Araraquara enfrentava a primeira onda da doença, contabilizando, oficial-
mente, 80 mortes. O segundo teve início em outubro de 1895 até junho
de 1896, classificada como a pior onda da doença, ceifando 339 vidas. O
terceiro, e mais leve dos surtos, contabilizou 26 mortes decorrentes da
febre amarela. Por último, e não menos alarmante, o quarto surto re-
gistrou 93 vidas perdidas para a febre amarela. A última vítima fatal da
doença na cidade foi registrada em 1899. Foram 549 vidas perdidas, o
que representa 2,37% dos habitantes de Araraquara.
Entre adultos e crianças, registrou-se 152 óbitos do sexo feminino
(27,6%) e 381 do sexo masculino (69,6%), aqui identificados como a po-
pulação mais vulnerável por motivos sociais pertinentes à época. Confor-
me apresentado na tabela 2, que identifica a população mais vulnerável,
a faixa etária com maior número de óbitos foi a da população ativa, dos
20 anos aos 40 anos, com 234 óbitos (42,9%).
% DE ÓBITOS POR FEBRE AMARELA EM ARARAQUARA (1895-1898): POR SEXO E FAIXA ETÁRIA
Aqueles que não aprendem com o passado estão condenados a repetir seus
erros […]. Em poucas áreas esta assertiva é tão verdadeira quanto na saúde
pública. Quem quer que se tenha dedicado a esta tão ingrata quanto fascinan-
te atividade vive sob a permanente impressão do déjà vu; e pior, aquilo que foi
visto, e que é visto, não é agradável. A cíclica volta das pestilências ao Brasil,
ainda que em circunstâncias sempre variáveis, é uma prova disto.
(SCLIAR,1993 in RIBEIRO, 2017).
50
tensa circulação e segue se alastrar por toda cidade. O sistema doença-
transportes, antes citado, ganha um novo agente: o adensamento urbano
das cidades contemporâneas.
51
pacientes infectados em tratamento domiciliar; envolvimento e auxilio da
guarda municipal para a conscientização da população para permanece-
rem em suas residências.
Com um histórico de combate a moléstias vivo na memória, Ara-
raquara promove um resgate às posturas públicas utilizadas no combate
à epidemia de febre amarela de 1895. As ações foram reformuladas e
aplicadas em conjunto com estratégias atuais à nova ambiência urbana.
O lockdown, no entanto, foi inevitável. Após a confirmação de uma nova
variante e o aumento massivo de casos confirmados da doença, Arara-
quara decreta o lockdown total em 21 de fevereiro de 2021 com duração
de 10 dias. O município foi o primeiro a adotar o confinamento com me-
didas restritivas severas, que incluíam a suspenção do transporte público
e o fechamento dos supermercados por uma semana.
Figura 5 - Você é feliz e nem sabe, margem do leito férreo da EFA em Araraquara. Fonte:
acervo dos autores e editada pela mesma (2021)./
ARARAQUAR
A
8.327 92 35,27 1,10% 6.527 125 27,38 1,91%
BAURU 20.724 299 54,63 1,44% 7.722 120 20,35 1,55%
IDADE 2020
CONFIRMADOS ÓBITOS
FEM. MASC. FEM. MASC.
Tabela 5 - Tabela de óbitos e contágio por COVID-19 em Araraquara (2021) – por sexo e
faixa etária./
Fonte: Boletim Completo do Coronavírus do Estado de São Paulo - editada pela autora
(2021)
56
Urbanismo na prevenção de epidemias:
um olhar para a cidade./
[...] o modelo carrocêntrico está nos matanto, matando nos acidentes de trân-
sito e na poluição.
(ROLNIK, 2021 in HAILER, 2021).
Que cidade queremos e quais são os desafios de curto, médio e longo prazos
para Araraquara? Quais as dificuldades que persistem e os obstáculos ainda a
serem superados para o alcance de um desenvolvimento sustentável? Como
enfrentar os passivos existentes? Como avançar na inclusão social? Como criar
ambientes ainda mais propícios para o desenvolvimento, onde crescimen-
to econômico, justiça social e proteção do meio ambiente sejam fios que se
entrelaçam no tecido de um futuro comum, com maior coesão social? Como
transformar espaços públicos em espaços vivos da cidade?
(ARARAQUARA, 2018).
58
Algumas considerações./
61
03./ Heber Macel Tenório Vasconcelos
Um bairro que
desliza: vazios
inconclusos.
62
Resumo./
Este capítulo está organizado em três momentos: Estrias de
Jaraguá; o Jaraguá que Desliza; e, Inconclusões. Foi escrito sob len-
tes pós-críticas e abordagem qualitativa, com objetivo de propor uma
reflexão crítica dirigida à importância da existência de inconclusões em
nossa escrita acadêmica, em nosso modo de ler, interpretar e pensar
Arquitetura e Urbanismo. Para tanto, foi realizada revisão bibliográfica e
aplicado o método da cartografia depreendido de Deleuze e Guattari e de
Eduardo Passos, Virgínia Kastrup e Liliana da Escóssia (2009). O capítulo
conclui deixando os seguintes questionamentos: quando aprenderemos
a amar o que não concluímos? Quando amaremos nossas inconclusões?
Quando aprenderemos com o processo e não com o fim?
Não poderia falar sobre o Jaraguá que desliza sem antes falar
sobre o Jaraguá estriado. Este tópico foi desenvolvido a partir da história
dita como oficial sobre o bairro de Jaraguá em Maceió – AL, encontrada
em livros de história, em dissertações, teses e em publicações científi-
cas. Jaraguá é reconhecido por diversos pesquisadores, e pela sociedade
em geral, como centro histórico. Diversas referências bibliográficas de-
monstram seu papel e sua importância na formação e na consolidação
de Maceió como entreposto comercial e, posteriormente, como capi-
tal do estado de Alagoas (ALTAVILA, 1988; PEDROSA, 1998; ANDRADE,
2005; ATAÍDE, 2015; ARAÚJO, 2017, FORTES, 2018). Aqui observaremos
como a o Jaraguá foi preenchido e capturado a partir de diferentes auto-
res.
O nome “Jaraguá” tem origem indígena, podendo ter mais de um
sentido, como, por exemplo, ser reconhecido por “Enseada das Canoas”
(SANTOS, 1986). Sua provável origem, ocorreu no início do século XVI, a
mando da Coroa Portuguesa. No local, foi instalada uma pequena vila de
pescadores, com o objetivo de ocupar a enseada e evitar o contrabando
de pau-brasil e outras mercadorias. Posteriormente, tal vila de pesca-
dores veio a se tornar a Vila de Maceió (ATAÍDE, 2015). Segundo Altavila
65
(1988), entre o século XVIII e o século XX foram construídas e executadas
a grande maioria das edificações hoje consideradas históricas. O primeiro
armazém construído no bairro, também foi nomeado de “Jaraguá” (ATAÍ-
DE, 2015). Além dos grandes armazéns, outras construções compuseram
a paisagem durante grande parte do século XX, como os trapiches. Os
trapiches eram pontes construídas em terra firme que se estendiam até
o mar. Sua estrutura era portada por palafitas e se caracterizavam por
suas longas extensões. Tais estruturas tinham a finalidade de facilitar o
transporte das mercadorias importadas e exportadas até as embarca-
ções, que não podiam chegar até a praia.
Entre o século XVIII e meados do século XX, Jaraguá passou por
um grande processo de ascensão econômica. Em 9 de dezembro de
1839, devido ao reconhecimento de Maceió como importante entreposto
comercial, político e cultural, o então Presidente da Província, Dr. Silva
Neves, em Assembleia, altera a capital da Província da antiga cidade das
Alagoas, atual município de Marechal Deodoro, para Maceió (ALTAVILA,
1988). A transferência da capital da província para a então Vila de Maceió
contribuiu para implementação de uma maior infraestrutura no bairro
(ALTAVILA, 1988). Foi a partir dessa mudança que se intensificaram as
construções de prédios, além dos que tinham finalidade comercial. Am-
pliou-se a quantidade de moradias, armazéns, pensões, bares e cabarés
(ALTAVILA, 1988).
No começo do século XIX, a paisagem do bairro de Jaraguá
apresentava características reminiscentes de sua implantação (SANTOS,
1986). Diversos historiadores relataram a existência de um areal (du-
nas) e de casas construídas com a técnica de pau-a-pique. Essas casas,
correspondiam, provavelmente, ao conjunto que formava a antiga vila
dos pescadores. A geografia, além de compor a paisagem e a identidade
do lugar, foi um ponto determinante para a consolidação do local como
entreposto comercial e como ancoradouro, graças aos arrecifes que ser-
viam como barreira e como proteção natural para as embarcações que
atracavam nos trapiches (SANTOS, 1986).
Segundo Santos (1986), foi a partir da década de 1820 que so-
brados, casas e prédios mais estruturados começaram a ser constru-
ídos. Ainda durante esse mesmo século, famílias abastadas, bancos,
comércios, trapiches e companhias de navegação se fixaram no bairro.
O desenvolvimento de Jaraguá aconteceu devido às atividades relacio-
nadas aos ancoradouros. Graças a elas ocorriam todas as importações e
exportações da Capitania. Durante o século XIX, os produtos e mercado-
rias exportados, em sua grande maioria, foram: açúcar, cereais, algodão,
fumo e madeira.
Os edifícios comerciais se concentraram em volta do engenho
Maçayó, atualmente, o centro da capital, separado de Jaraguá pelo riacho
Salgadinho. A travessia de pessoas e de mercadorias ocorriam através de
jangadas. Entre o começo de 1800 até 1871, o cruzamento entre os bair-
66
ros deu-se com a construção de uma ponte de madeira e, mais tarde,
uma outra construída em ferro e concreto (SANTOS, 1986). A nova ponte
ficou conhecida como “a ponte dos Fonsecas”, em homenagem ao Ma-
rechal Deodoro da Fonseca e seus irmãos. Com dimensão de 120 metros
de comprimento e 4 metros de largura, contava também com passeios
laterais e grandes lampiões. Esta ponte foi substituída após o ano de
1924, devido a uma tromba d’água ter comprometido sua estrutura. A
ponte que lá existe atualmente não possui as dimensões originais, pois
o leito do riacho foi desviado e aterrado (SANTOS, 1986; ALTAVILA,1988).
Além da ponte, outra interligação importante com o centro de Maceió foi
o ramal ferroviário inaugurado no ano de 1868 (SANTOS, 1986; PEDROSA,
1998). Ambas as construções foram decorrentes da visão e das políti-
cas ocorridas nos anos de 1820, implementadas pelo governador Melo e
Póvoas (ALTAVILA, 1988; PEDROSA, 1998).
Segundo a literatura consultada, o governador Melo e Póvoas foi
o governante que mais se preocupou em implementar obras de infraes-
trutura no bairro de Jaraguá. Além disso, Póvoas foi o primeiro político
a solicitar o mapeamento da região em 1820 (ALTAVILA,1988). O mapa
foi atualizado em 1841, a partir desse novo mapeamento pode-se visu-
alizar o surgimento de novas ruas e a consolidação das principais vias
do bairro, como a atual Rua Sá e Albuquerque (SANTOS, 1986). Santos
(1986) relata que, de acordo com o levantamento realizado pelo histo-
riador Moacyr Santana, registros datados de 1866 mostram que todas as
vias principais do bairro Jaraguá já estavam constituídas. Eram elas as
antigas ruas do Amorim, rua do Oitizeiro e rua do Bom Retiro, atualmente
conhecidas, respectivamente, por rua Coronel Pedro Lima, Av. Maceió e
rua Melo e Póvoas. Além delas, já havia também a primeira avenida criada
perpendicularmente à orla marítima, inicialmente chamada de “estrada
nova”, atual Avenida Comendador Leão (SANTOS, 1986).
As características das primeiras construções seguiam um estilo
colonial. Tratavam-se de sobrados baixos, porém com biqueiras largas
e grades em madeira (SANTOS, 1986). Na década de 1840, a arquitetura
influenciada por Portugal e aclimatada à colônia passou a ser substituída
pelo greco-romano. As duas tipologias de construção ainda podem ser
observadas na rua Sá e Albuquerque; algumas das fachadas foram mo-
dificadas ao longo do tempo, mas a grande maioria preserva seu estilo
original (SANTOS, 1986).
Pedrosa (1998) buscou transmitir a história e as relações que
existiram em Jaraguá. Conta que a Praça Rayol foi palco de grandes
festas e de folguedos. Relembra o percurso realizado pelo bonde que
parava na Avenida Comendador Leão e que todas as casas dessa avenida
eram de uso residencial. O texto de Santos (1986) relata que no bairro já
existiu uma fábrica de sabão, uma fábrica de mosaicos, sítios, compa-
nhias de navegação e até uma vacaria. As relações sociais no bairro se
deram, a princípio, entre comerciantes, famílias abastadas, marinheiros
67
e trabalhadores. Por sua importância como um entreposto, também
houve o aparecimento de prostíbulos e meretrícios. Com o passar do
tempo, revelou-se que os bares e pensões funcionavam como fachada
para abrigar esses estabelecimentos. As meretrizes atendiam aos ho-
mens de maior poder aquisitivo e, em geral, ocupavam o primeiro an-
dar dos prédios localizados na rua Sá e Albuquerque. Os marinheiros e
trabalhadores frequentavam os prostíbulos que se localizavam em ruas
menos importantes. Essa atividade teria contribuído para a construção
da imagem do bairro como lugar boêmio e promíscuo. Tais estereótipos
teria provocado a gradativa evasão das famílias e de algumas instituições
existentes no bairro (SANTOS, 1986; ALTAVILA, 1988; PEDROSA, 1998).
Nascimento (2018) destaca que durante duas décadas, entre 1970
e 1990, o “vazio” predominou em Jaraguá. No bairro restaram a “favela”
de Jaraguá, também conhecida como “Vila dos Pescadores”, bares, casas
de prostituição e algumas instituições reminiscentes (NASCIMENTO,
2018). Nos anos de 1990, seguindo a tendência de outros centros histó-
ricos, Jaraguá passou por um processo de “revitalização”. As fachadas
ganharam cores, a favela foi parcialmente removida e a vida noturna
ganhou novos bares e boates. A princípio, a população da capital teria
tornado a frequentar o bairro durante os finais de semana em busca
de festas e de diversão. Porém, a imagem marginalizada teria pesado e,
poucos anos depois da execução do projeto de reforma, o bairro voltou a
passar por novo esvaziamento. As fachadas pintadas sofreram interven-
ções (pichações e grafites), a favela (Vila dos Pescadores) que havia sido
relocada para a periferia ressurgiu e bares e casas noturnas alternativas
e dedicadas ao público LGBTQIA+ se mantiveram (NASCIMENTO, 2018).
Como pudemos observar, Jaraguá possui uma história formal
que se perpetua ao longo do tempo. Tal história, como discurso insti-
tuído, acaba por, genericamente, reduzi-lo, de forma romântica, a um
bairro histórico, mas ao mesmo tempo “vazio”, promíscuo e boêmio. A
história, contada e reproduzida dessa forma, acaba por preenche o bairro
com discursos tendenciosos e pejorativos. Muito se fala, por exemplo,
da “fama”, da boemia, das festas, dos bares e dos prostíbulos, como
responsáveis por seu esvaziamento, no entanto, pouco se menciona a
construção do cais do porto como um possível motivo que contribuiu
para tal evasão. Nos cabe então questionar: por que a criação do cais do
porto não aparece corriqueiramente nos livros de história como possível
responsável pela decadência de Jaraguá? A quem interessou apresentar
o Cais como “progresso”, mesmo representando a eliminação de mi-
lhares de postos de trabalho diante de sua automação? Duas simples
perguntas que nitidamente nos permite enxergar que aquilo que se
conta sobre um bairro é atravessado por vários agentes e interesses. Por
isso, o Jaraguá dos livros de história é estriado, em tal Jaraguá há pouco
espaço para multiplicidade e para o novo. O “novo” que falo aqui não se
trata de novas intervenções, restaurações ou mesmo revitalizações, visto
68
que todas essas opções já foram consideradas e aplicadas. O “novo” ao
qual me refiro trata daquilo que se apresenta como devir, como liso (que
permite deslizar), ou como inconcluso, como veremos a seguir.
Figura 1 "Velhas estrias" - Estas são imagens que contribuem e reforçam o discurso de
bairro vazio, perigoso e acabado./
69
O Jaraguá que desliza – vazios
inconclusos./
Queridos amigos,
Primeiramente gostaria de dizer que venho me tornando gago na
minha própria linguagem, graças a vocês. Lhes escrevo esta carta para
compartilhar como tenho desaprendido com Jaraguá, pois vocês me
ensinaram a pensar. Durante minhas caminhadas atravessei ruas, obser-
vei encontros, parei, perdi tempo e ganhei espaços, como, certa vez, um
outro amigo chamado Careri recomendou.
As histórias que trago nesta carta começaram nas encruzilhadas
onde tudo se cruza, onde cruzou uma mãe puxando seu filho pelo braço,
onde cruzou um grupo de bancários que se despediam ao terminar o
expediente, onde cruzaram, pessoas, cruzaram carros, cruzaram bichos.
Nas encruzilhadas onde tudo pode atravessar, atravessou um vendedor
de frutas que empurrava um carrinho, que empurrava frutas, que gritava:
“olha o carro da fruta passando na sua rua!” e empurrando atravessou,
foi e seguiu. Nas encruzilhadas encontrei fluxos e, para mim, fluxos são
multiplicidades intensivas, já que:
70
“[...] multiplicidade intensiva é que constitui a novidade tipicamente deleuzia-
na: a multiplicidade intensiva é feita de forças, de vetores, de relações dife-
renciais. Ela é não-numérica, espacio-temporal, qualitativa, contínua, hetero-
gênea, ordinal, não-métrica, riemanniana, feita de partes que se fundem, se
interpenetram, composta de linhas de força”
(SILVA, 2004, p.18)
Quando tudo surge de uma raiz, passei a desejar que ela se faça
rizoma. Enquanto atravessava o bairro, vi árvores, abracei árvores. Ob-
servei que muitas ruas não têm árvores e outras tantas têm. Observei
que ruas que não têm árvores, muitas vezes, as têm. As árvores das ruas
“sem” árvores brotam dentro de prédios em ruína. E enquanto o cérebro
tende a pensar “não faça árvore” a árvore desliza e faz rizoma, faz um
devir minoritário e transforma-se numa máquina de guerra, sobrevive,
resiste, faz repetição e isso faz gaguejar. Afinal:
“Gaguejar é fácil, mas ser gago da própria linguagem é outra coisa, que coloca
em variação todos os elementos linguísticos, e mesmo os elementos não-lin-
guísticos [...]. É aí que o estilo cria a língua” (DELEUZE e GUATTARI, 2011b, p.42,
grifos meus). “Desestratificar, se abrir para uma nova função, diagramática. [...]
Fazer da consciência uma experimentação de vida [...]. [...] Ser gago de lingua-
gem, estrangeiro em sua própria língua”
(DELEUZE e GUATTARI, 2011b, p.90)
71
Já em outro dia, na contramão do que considero devir minori-
tário, do que considero também como aquilo que me possibilita devir
monstro, encontrei o recém-inaugurado “Centro Pesqueiro”. Bem perto
habita uma escultura que clama por liberdade. Esse novo lugar ocupou o
espaço onde vivia a antiga Vila dos Pescadores, também conhecida, por
parte da sociedade, como “favela” de Jaraguá. A vila-favela foi realocada
sob um discurso higienista/salvador. Então a palavra de ordem foi cum-
prida. O aparelho de estado ganhou poder. As linhas de fuga deslizaram
e se transformaram em puras estratificações homogêneas e atuais. A
marisqueira que perguntou: “vai querer camarão hoje?”, depois de pou-
cos minutos de conversa, também confessou: “aqui é mais limpo, mais
organizado, mas não é como era lá” com a voz embargada. E aquele
“mas” afetou-me como nunca antes na vida. Sobre afetação, Deleuze e
Guattari (2011d) nos falam que:
“Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data têm uma indivi-
dualidade perfeita, à qual não falta nada, embora ela não se confunda com a
individualidade de uma coisa ou de um sujeito. São hecceidades, no sentido de
que tudo aí é relação de movimento e repouso entre moléculas ou partículas,
poder de afetar e ser afetado”
(DELEUZE e GUATTARI, 2011d, p.43)
72
senhas: “existem senhas sob as palavras de ordem. [...] A mesma coisa,
a mesma palavra, tem sem dúvida essa dupla natureza: é preciso extrair
uma da outra – transformar as composições de ordem em compo-
sições de passagem” (DELEUZE e GUATTARI, 2011b, p.58-59, grifos
meus).
Peixe fresco e peles frescas à beira-mar. No meio do bairro de
Jaraguá me “caiu a ficha” que a pele que habitava o trapiche não habita
mais. Que a pele que habitava o armazém não habita mais. Que a pele
que habitava o casarão não habita mais. Os trapiches, os armazéns e
os casarões viraram bancos, casas de festas, boates, órgãos públicos,
instituições... viraram, viraram, viraram... Atravessaram tantas coisas que
agora viraram histórias. No entanto, agora, voltam a ser devires minoritá-
rios. Pois podem ser outra coisa, afinal já “foram” e não “são” mais. O que
antes era institucionalizado liquefez-se, desmanchou-se, desintegrou-
se. O molar foi desestabilizado deslizando até o molecular. Agora, o que
ainda está de pé, é tudo o que eu não sei que possa ser. Agora, é tudo o
que pode ser. São corpos sem órgãos em forma de bairro. Isso significa
dizer que:
Com saudades,
Heber Macel
75
O.b.s.: Não deixem de admirar os lindos postais anexados a esta carta!
Em tais postais poderão encontrar os incríveis lugares que me atraves-
sam em Jaraguá. Cada um, como dito nesta carta, único e singular a sua
maneira.
76
Postal 2 – Árvores, Senhas e Grafite./
77
Postal 3 – Afrocaeté./
78
Inconclusões./
ATAÍDE, Débora Lucena de. Jaraguá ontem e hoje: um lugar sob a ótica
dos idosos. Dissertação final de Mestrado. (Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo) – Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2015.
81
04./ Kellen Melo Dorileo Louzich
A construção
da cidade
inanimada.
82
Resumo./
Cuiabá é uma cidade do século XVIII, em que era dividida entre
o centro e o porto. O porto era o segundo distrito da cidade, nele todos
os olhos se concentravam para a chegada e partida de entes queri-
dos, mercadorias, informações e outros. Estes espaços ainda apresen-
tam mais permanências do que transformações urbanas. Mas as suas
transformações, que foram realizadas no último século, criaram uma
arquitetura hiper-real, resultando em espetáculos urbanos. Uma arqui-
tetura sem vida, sem história, sem memória, sem alma, uma arquitetura
inanimada. Este trabalho tem como objetivo identificar algumas dessas
transformações, realizadas no Porto de Cuiabá, buscando dar relevo para
o momento presente em que as novas fachadas do da orla do porto
constroem uma cidade acabada, e que não existe de fato, criada como
cenário para o turismo.
4 A região do Mato Grosso era composta pelos Estados de Mato Grosso, Mato Grosso
do Sul e Rondônia. A separação destes estados se deu nos anos de 1979 e 1981, respec-
tivamente.
86
No porto, ancoravam canoas vindas de fazendas próximas a Cuia-
bá que traziam “[...] farinha, verduras, frutas, galinhas e tudo o mais para
abastecer um lugar em crescimento” (COSTA; DIENER, 2000, p.20), mas,
também, “diversos tipos de navios, todos a vapor e movidos a lenha”
(COSTA; DIENER, 2000, p.18). Com isso, a cidade passa por novas trans-
formações, para atender às novas necessidades. “[...] antigos prédios são
demolidos, e se constroem um novo cais em pedra canga5 e uma praça
ajardinada para receber os que ali desembarcavam” (COSTA; DIENER,
2000, p.20). Luiz D´Alincourt, que foi sargento-mor, descreve o Porto Ge-
ral:
[...] junto a este porto acha-se um largo retangular ornado de casas, e vizinho
ao barranco, da parte direita, olhando para o rio, um armazém pertencente à
fazenda pública, que serve de deposito geral de viveres, para dali se fornece-
rem a legião de linha, pedestres, hospitais e presídios da fronteira do Paraguai;
[...] a uma curta distância deste sitio, em terreno algum tanto elevado, está
uma capela dedicada a S. Gonçalo, e em frente a ela, do lado oposto da estra-
da, acha-se a casa de pólvora. Além do porto, na margem direita do rio (cidade
de Várzea Grande), estão algumas casas, e daí segue a estrada para Vila Maria,
S. Pedro del Rei e Mato Grosso.
(COSTA; DIENER, 2000, p.14)
5 Pedra Canga é uma rocha muito resistente, que era encontrada na região e utilizada
para barragens e fundações das residências na Vila do Cuiabá.
87
Porém todo esta atividade e comunicação com a Coroa foi in-
terrompida, por causa da Guerra do Paraguai, ou também chamada de
Guerra da Tríplice Aliança, que durou seis anos e durante este tempo um
sentimento de medo e desespero tomou conta dos cuiabanos, seja pelo
motivo de não terem informações da Corte e do desenrolar da guerra
ou por imaginarem a possibilidade do inimigo subir o rio e tomar Cuiabá,
assim como fez com o Forte de Coimbra, ou pior, pois a maior parte dos
soldados cuiabanos haviam ido para a guerra e próximo da cidade não
havia forte6, desta forma a cidade estava indefesa. Após o fim da guer-
ra, em 1870, a navegação retoma o transporte entre as cidades e Cuiabá
volta às atividades e o abastecimento normalmente.
Mas a navegação pela Bacia do Prata só dura até 1915 (somando-
se 53 anos de viagens, aproximadamente), quando é inaugurada a Estra-
da de Ferro Noroeste do Brasil, que ligava Corumbá a São Paulo. Devido a
este novo trajeto até o litoral ou a corte diminui o tempo de viagem em
oito a dez dias.
[...] indo-se pela via fluvial até Corumbá; dali em outro barco, em mais uma
noite de viagem, até Porto Esperança, ponto terminal da E. F. Noroeste, à
margem esquerda do rio Paraguai; deste ponto seguia-se pela via férrea, com
várias baldeações, até o Rio de Janeiro, com paradas em Campo Grande, Três
Lagoas, Araçatuba, Bauru e São Paulo. Com a conclusão de todas as obras da
ferrovia, principalmente da imponente ponte sobre o Rio Paraná, a viagem pas-
sou a ser feita sem baldeações desde o Porto Esperança até Bauru.
(PÓVOAS, 1980, p.25 e 26)
6 O próximo forte, subindo o rio até chegar no Vale do Guaporé, é o Forte Real
Príncipe da Beira, localizado no estado de Rondônia, próximo a cidade de Costa Mar-
ques.
88
Nesta mesma época, foi construída a ponte Júlio Muller que liga
a duas cidades vizinhas (Cuiabá e Várzea Grande), separadas pelo rio
Cuiabá. A ponte foi construída sob um dos portos (rampas que descar-
regavam os navios), que ficava em frente à rua 15 de Novembro (primeira
rua do Porto).
Antes da construção desta ponte o acesso à cidade vizinha se
dava pela barca pêndulo, “que a partir do ano de 1870, passou também a
compor a paisagem do Porto Geral, fazendo a travessia para o já tercei-
ro distrito, Várzea Grande” (COSTA; DIENER, 2000, p.20) facilitando as
viagens para as cidades vizinhas, como Cáceres e Poconé, ambas no
estado do Mato Grosso. No final do século passado, antes da construção
da Ponte, a barca pendulo apresentava uma estrutura mais robusta que
transportava até automóveis.
O final do século XX, foi marcado por muitos percalços no Porto,
principalmente no ano de 1974, que ocorreu a maior cheia do Rio Cuia-
bá, causando uma inundação de boa parte da cidade, inclusive no porto
(figura 1). “O poder público considerou a área como de risco e promoveu
a retirada da população, levando-a para conjuntos habitacionais finan-
ciados pelo Banco Nacional de Habitações (BNH), como o Novo Terceiro
e o Grande Terceiro” (ROMANCINI, 2005. p.113). Essas realocações dos
desalojados ocorreu em três etapas, porem os moradores relatam que
tiveram que abandonar suas casas, alguns sem terem para onde ir (os
que não tinham como pagar o financiamento) e que acabaram ocupando
as proximidades do rio (figura 1), tentando manter o seu trabalho (a pes-
ca) e suas ‘raízes’ no bairro. Mas “[...] os moradores que foram retirados,
contra a sua vontade, até hoje lamentam o fato de terrem sido forçados
a abandonar seu espaço de vivencia” (ROMANCINI, 2005. p.113).
89
Depois da retirada dos moradores, o porto “passou por um pro-
cesso de urbanização” (ROMANCINI, 2005. p.113), seguido pela higieni-
zação e congelamento dos espaços que eram um ‘símbolo’ da história
de Cuiabá. Usando como desculpa o fim da navegação no rio Cuiabá,
que se extinguiu por volta de 1970, devido a implementação das rodo-
vias no Brasil, o porto é deixado de lado. Cuiabá passa “a se integrar
com os importantes centros do país através de rodovias” (ROMANCINI,
2005, p.112). Com essa mudança no transporte e, consequentemente,
no deslocamento de toda a população pela cidade, a região passa a ser
modernizada. Algumas ruas que não eram pavimentadas ou que eram de
paralelepípedo, foram asfaltadas. O mercado do peixe (figura 1) é trans-
formado em Museu do Rio (figura 2). A beira do rio é aterrada, dificultan-
do o acesso e a visão ao mesmo. O esgoto é canalizado e despejado no
rio inviabilizando o lazer e os banhos nas praias. As transformações não
foram realizadas somente nos espaços físicos, mas, também, nos hábi-
tos, fazeres e viveres, tudo para se adequar a uma cidade mais “moder-
na”.
É importante ressaltar aqui, portanto que, o porto é uma das regiões de
Cuiabá que apresenta uma das mais ricas tradições da cultura popular,
seja pela pesca, lendas e ou costumes de viver. Assim, “coube à comuni-
dade nativa do Porto a preservação da riqueza cultural da capital de Mato
Grosso” (LACERDA, 2018, p.82), ou o que restou dela.
Em 1996 foi solicitado o tombamento de Cuiabá e neste documento es-
tava incluso a região do centro e do Porto. “Após vinte e quatro anos con-
tados a partir da solicitação, finalmente, foi homologado o tombamento
de todo o conjunto, integrando os aspectos: Arquitetônico, Urbanístico e
Paisagístico, proibindo, assim, a demolição das edificações” (LOUZICH;
FIORIN, 2020, p.110). Porém, o Porto foi retirado do processo de tombo
sem nenhuma explicação nos autos, mesmo sendo “[...] possível identifi-
car que as configurações acerca da importância da região do Porto se di-
luem e os mapas que a princípio indicavam esta região passam a enfocar
apenas no centro da cidade” (LACERDA, 2018, p.86).
90
A cidade inanimada./
91
O espetáculo urbano que deveria ser permanente, durou apenas
quatro anos (figura 2). A estrutura construída em madeira foi destruída
pelas chuvas. A representação das fachadas é tentativa de recriação dos
“monumentos da memória numas tantas figuras de retorica esvaziada e
resfriada” (ARANTES, 1995, p.33), uma arquitetura simulada, pois algu-
mas fachadas foram simplesmente inventadas; outras imitam o patrimô-
nio arquitetônico cuiabano de uma forma mais simplificada, retirada de
contexto, miniaturizada, reduzido à superfície de uma cidade inanimada.
Tudo isso para compor o cenário em torno do tricentenário de
Cuiabá, que completaria três séculos de fundação em 2022. Entretanto,
para a validação do espetáculo urbano usou-se a data de fundação do
Arraial da Forquilha e quase tudo ficou pronto para as festividades em
2019, faltando ser terminado o Aquário Municipal que ainda não foi entre-
gue. Para este, foi elaborado um projeto de requalificação com um anexo
(figura 2).
Atualmente, a cidade inanimada está sendo reconstruída de
concreto e tijolo, no mesmo lugar (na área de preservação permanente
(APP) do Rio Cuiabá). Neste projeto serão gastos mais 1,2 milhões, aproxi-
madamente. O preço para manterem essa vitrine exposta para sempre e
juntamente com ela todo um espetáculo urbano, que aproxima o turista
e afasta os moradores, os ribeirinhos e os que não pertencem a uma
determinada classe social ou um a um padrão estabelecido.
A cidade inanimada e o Aquário Municipal fazem parte do proje-
to de revitalização da Orla do Porto, que está sendo elaborada em duas
etapas. Na primeira etapa, o projeto contemplava a revitalização de 1,3
quilômetros da orla, sendo inaugurada em 2016, mas algumas partes não
foram finalizadas, mesmo tendo desmatado boa parte da APP, para a
ampliação calçadão da orla, da abertura e visão do Rio e da Ponte Júlio
Muller e a implementação de bares e restaurante ao longo de toda a orla,
além da cidade inanimada.
93
A CIDADE
NÃO PODE
TER
CONCLUSÃO.../
94
As cidades sofrem silenciamentos e a desvalorização das suas
tradições e de seus espaços prenhes de cultural. O porto era a porta de
entrada da cidade na época das navegações, mas ainda poderia conti-
nuar sendo. Isto porque é preciso atravessar a Ponte Júlio Muller para se
chegar a Cuiabá. Entretanto, agora, de uma outra maneira, a Orla do Rio
Cuiabá passa a ser a principal chegada à cidade por meio da construção
de uma arquitetura inanimada.
No entanto, nesse processo de ressignificação, não valorizaram
ou incentivaram o comercio local, ou consultaram a comunidade. Os
espaços transformados ficam vazios a maior parte do tempo, pois não
foram elaborados projetos que pudessem dar sentido à cultura do lugar,
ou que tivessem a possibilidade de uma participação dos que ali peram-
bulam em uma continua construção da identidade.
Sendo assim, talvez, isso apenas beneficie poucas pessoas em
um curto espaço de tempo, pois a novidade está sujeita a obsolescência,
tendo um curto prazo de validade. Fatalmente, essa estratégia prejudica
as tradições, apaga os sentidos da cidade tradicional, abre caminho para
sessar os ruídos urbanos. Uma cidade acabada, construída para dar cer-
to, render benefícios e vender uma imagem, já deu errado em seu princí-
pio. Uma cidade não pode ter conclusão...
95
Referências Bibliográficas./
COSTA, Maria de Fátima; DIENER, Pablo. Cuiabá: Rio, Porto, Cidade. Cuia-
bá: Secretaria Municipal de Cultura. 2000.
97
05./ Lucas do Nascimento Souza
O caminhar
como uma
modalidade de
pesquisa.
98
Resumo./
Como analisar áreas urbanas na cidade contemporânea diante
da pluralidade das formas de apropriação dos espaços públicos? Este
trabalho busca contribuir com os estudos qualitativos sobre percepção
urbana por meio do método da cartografia. Assim, este escrito não trata
da busca de informações ou levantamento de dados, mas sim da imer-
são na processualidade em curso presente no território do antigo leito
férreo da cidade de Bauru-SP. O texto evidencia uma prática de pesqui-
sa pouco explorada neste recorte espacial, que tende a contribuir com
as discussões sobre percepção urbana e as futuras intervenções nesta
área, uma vez que revolvidas as camadas sócio-espaciais decantadas e
acessado um imaginário urbano pouco explorado por meio do caminhar
como modalidade de pesquisa.
1 “Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que
não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico
definirá um não-lugar”. (Augé, 2002, p. 73.
100
ficado cada vez pior, desse jeito que vocês estão vendo aí”2. A série de
vagões abandonados em meio ao entulho e ao mato alto representa hoje
a paisagem de muitos moradores do Jardim Santana, bairro cortado pela
linha férrea. Mais à frente, à oeste, tem-se o patrimônio industrial re-
manescente da Companhia Antarctica Paulista, uma chaminé de tijolos.
Seguindo, chega-se ao trecho ao qual este trabalho se debruça, o re-
corte espacial do leito férreo no centro da cidade. A área abriga edifícios
patrimoniais remanescentes da atividade ferroviária na cidade, que hoje
pouco importa ao transporte de cargas, servindo, principalmente, para
transportar combustíveis.
Mais do que produto da percepção do espaço, as paisagens do
leito ferroviário são testemunhos da tecitura social na qual o homem
intervém continuamente.
Esta pesquisa parte do pressuposto da indissociabilidade do pes-
quisar e intervir, tendo como base que toda pesquisa é intervenção, con-
forme anunciado por Passos e Barros (2009). Neste sentido, atribuímos o
caminhar como ferramenta estética de interpretação da paisagem, onde
a partir disso, seja possível descrever e modificar espaços que revelam a
necessidade de serem compreendidos e atribuídos significados, confor-
me defende Careri (2013).
2 Trecho de diálogo informal com moradora do Jd. Santana, em meio a um dos percur-
sos realizados pelo leito férreo
3 Caim e Abel, o primeiro homicídio da humanidade, tratado na obra Walkscapes: O
caminhar como prática estética (CARERI, 2013).
101
dado o contexto urbano em que se está inserido.
Deste modo, nosso ponto de partida tem como pressuposto
essas experiências, mas não tem diretrizes específicas ou fórmulas pré-
concebidas, pois o método cartográfico não traça planos de trabalho, o
mesmo constitui-se no momento em que se inicia a ideia do pesquisar.
Tal direcionamento é composto por pistas, rastros a serem seguidos,
frestas entreabertas que aguçam nosso olhar e nossos sentidos e nos
levam a uma possibilidade de perceber e interagir com o espaço como
uma forma de interpretação singular.
Conforme formulado por Deleuze e Guattari (1995), a cartografia
não trata da representação dos objetos, mas do acompanhamento de
processos, portanto, meio não definitivo. Os procedimentos de pesquisa
aqui adotados estão diretamente ligados à ativação de diversos dispo-
sitivos sensoriais humanos: a visão, o olfato, o tato e principalmente a
audição, sendo este o mais sensível: aquele ao qual estamos mais vulne-
ráveis e, talvez, seja o mais importante ao ziguezaguearmos por entre os
trilhos do trem.
De tal forma, a modalidade de pesquisa a qual este escrito busca
dar visibilidade, vai de encontro com a necessidade de olhares mais
atentos às configurações a serem implementadas nos nossos espaços
urbanos, muitas vezes emergidas por incentivo dos agentes produtores
do espaço urbano, como o poder público, o setor privado e os interesses
do mercado, que, a partir da especulação imobiliária, arruínam o ou colo-
cam em dúvida o caráter humano dos espaços abandonados.
O modelo urbanístico de planejamento moderno, influenciado
pelo CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), a partir da
Carta de Atenas, vai na contramão de alguns aspectos presentes no leito
férreo de Bauru, como a série de conexões e entrelaçamento de forças
que emergem do espaço e revelam uma estrutura rizomática – ou que
não se fecha em si. Deleuze e Guattari (2007) expõem o conceito de
rizoma em oposição à estrutura hierárquica, que não conforma pontos
ou posições, somente linhas – uma percepção pelo meio, por entre os
trilhos. Os rastros destes espaços, grafites, pichações, lugares à mercê
do tempo, e outros tantos aspectos observados evidenciam a existência
de múltiplas conexões, que devem ser interpretadas em sua potência e
multiplicidade.
Nos limites da área de estudo aqui tratada temos o exemplo
da Avenida Rodrigues Alves, Bauru-SP, como tantas outras, trazidas do
ideário urbanístico do século XX. Um grande canal criado para escoar
a produção e as cargas trazidas pela ferrovia. Brasília, o exemplo mais
lapidado do racionalismo modernista também elucida o panorama de
eixos viários em detrimento dos espaços na escala das pessoas. De tal
sorte, este escrito perpassa pela crítica ao modelo moderno de urbanis-
mo por estar em sentido oposto às necessidades e anseios percebidos
nos espaços públicos das nossas cidades, sobretudo, àqueles lugares às
102
Perceber pelo meio./
margens do antigo leito férreo de Bauru.
“Não é fácil perceber as coisas pelo meio, e não de cima para
baixo, da esquerda para direita ou inversamente: tentem e verão que
tudo muda” (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 35). O nomadismo é rizo-
mático. Não se apreende o campo nômade com o estabelecimento de
começo, meio e fim. A apreensão nômade acontece. Tal sentido é pre-
sente no rizoma:
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre
as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança,
unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como
tecido a conjunção “e... e... e...”. Há nessa conjunção força suficiente para sacu-
dir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai você? De onde você vem? Aonde
quer chegar? São questões inúteis. Fazer tábula rasa, partir ou repartir do zero,
buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção de
viagem e do movimento (metódico, pedagógico, iniciático, simbólico...).
(DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 37)
Ruptura.
Buraco!
104
A presença física do homem num espaço não mapeado – e o variar das per-
cepções que daí ele recebe ao atravessá-lo – é uma forma de transformação
da paisagem, que, embora não deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o
significado do espaço, e consequentemente, o espaço em si, transformando-o
em lugar. O caminhar produz lugares.
(CARERI, 2013, p. 51)
106
O caminhar./
115
06./ Paula Gabbi Polli
Uma
narrativa de
descobertas,
(re)
construções e
deciframentos
do arquiteto na
cidade.
116
Resumo./
Este capítulo trata da relação sujeito|cidade como processo
aberto, múltiplo e relacional, adotando uma investigação sobre o ato de
(re)descobrir espaços urbanos enquanto meio para uma (re)descoberta e
(re)definição do sujeito. A trajetória de descobrimento é investigada com
foco sobre o modo como as emoções permeiam as experiências cotidia-
nas e como estas se relacionam com a concepção da auto identidade.
Considerando a intenção do estudo, adota-se uma abordagem qualitativa
através do método fenomenológico. Por meio da narrativa de três mo-
mentos que marcaram o percurso de descoberta de um novo espaço
urbano, foi possível evidenciar que o processo de construção permanen-
te do sujeito se interliga, conecta e perpassa o processo também per-
manente de construção do lugar. Neste entendimento, o estudo aferiu
que falar sobre o presente das cidades, também significa olhar para os
aspectos do passado e do futuro do sujeito.
1 “Você não pode voltar para casa” (PROSHANSKY et al, 1983, tradução nossa).
118
característico da relação sujeito e cidade retrata, ao mesmo tempo, o
processo de construção permanente do sujeito, que se interliga, conec-
ta e perpassa o processo também permanente de construção do lugar.
Logo, entende-se que olhar a cidade por meio de suas diversas possi-
bilidades, caminhos, elementos e pessoas, significa também olhar para
a auto identificação do sujeito, onde aspectos do presente do lugar, se
inter-relacionam com o passado e o futuro de cada indivíduo.
119
A cidade como jogo de
acontecimentos./
121
O cotidiano como
enfrentamento/descobrimento./
125
O contraponto como experiência./
128
O espaço como convite à
experimentação./
129
Em outras circunstâncias de perambulações pela cidade, per-
cebo novamente como o contato com esses espaços encobertos pelo
mistério e pela surpresa de não revelar o todo surgem como um convite
à fantasia. Diversas sacadas localizadas nos andares superiores dos pré-
dios, as janelas que se abrem ao exterior por meio de suas esquadrias
tão diversas. Que mundos habitam dentro de cada um desses aparta-
mentos? Ao passar em frente aos portões das casas mais antigas busco
sempre enxergar por entre as frestas, os rasgos nas grades, que outro
novo mundo se localiza nos jardins centrais desses velhos casarões? De
certo modo acredito que nunca irei descobrir, mas tais acontecimentos
me instigam a seguir caminhando, seguir imaginando e seguir descobrin-
do (diário de campo, Março de 2021).
As narrativas apresentadas remetem às diversas possibilidades
que os diferentes espaços urbanos apresentam no imaginário daque-
les que se permitem viver (n)as cidades. As emoções, que caracterizam
esse processo de descobrimento, repletas de expectativas, excitação e
possibilidades, retratam novamente a presença da questão temporal que
perpassa as vivências do sujeito. Ao habitar o hoje, como já menciona-
do, não o fazemos unicamente no presente, somado aos aspectos do
passado que nos acometem durante a experiência do cotidiano. O futuro
também está presente nas nossas experimentações da cidade.
Viver o espaço por meio das emoções que se relacionam as
antecipações, as diversas possibilidades e a fantasia que o desconheci-
do e o mistério são capazes de despertar, conduzem a um questiona-
mento sobre o papel da afetividade que não se relaciona unicamente a
concretude do presente. Ela pode antecipar um acontecimento e assim
misturar-se ao imaginário ou às fantasias, os quais igualmente produzem
emoções reais (LE BRETON, 2019).
O contexto temporal que perpassa a experiência cotidiana pode
ser expressado por meio das lembranças e memórias que constituem o
passado, as ambiências e os acontecimentos que registram e marcam o
presente e, por fim, as fantasias, possibilidades e expectativas que retra-
tam a influência do futuro. Tal fato aponta para o tempo, quer seja visto
como abstrato ou intangível, quer em termos de memória, significados e
sentimentos, é indiscutivelmente uma propriedade importante do lugar
(SPELLER, 2005).
Apesar do espaço remeter a uma série de sensações que se
relacionam à excitação do novo, o medo do desconhecido surge nova-
mente por meio das narrativas da insegurança quanto ao deslocar-se por
tal espaço. Evidencia-se, neste momento, a ambiguidade da situação, a
qual é característica das percepção individual daquele sujeito que sente
e que vive o espaço por meio de todos os aspectos temporais, sociais e
espaciais que consolidam a sua existência. Mediante a narrativa de cada
um dos momentos retratados neste trabalho, é possível, assim, perceber
como o espaço fenomenológico e eu como habitante mantemos uma
130
relação de extremo comprometimento ativo com o meio físico (DOS
SANTOS, 2011).
Tal comprometimento retrata o processo de construção perma-
nente do sujeito, que se interliga, conecta e perpassa o processo tam-
bém permanente de construção do lugar. Nesse momento, a história do
sujeito se interliga com a história do lugar e tais aspectos não podem
mais ser apagados, por fazerem parte da sua existência. Talvez diversas
outras camadas venham a modificar quase em sua totalidade os aspec-
tos de tal espaço|sujeito, mas os momentos que marcaram, carregados
de vivências, emoções, sensações, ambiências e acontecimentos, se-
guem inscritos e marcados na memória, revividos por experiências ainda
nem imaginadas.
131
À guisa de conclusão./
132
Ao considerar a influência dos aspectos temporais sobre a rela-
ção sujeito e cidade, evidencia-se que ao vivenciar o hoje por meio dos
acontecimentos não o fazemos unicamente centrados no presente. Essa
experiência diária é perpassada constantemente pela influência do nosso
passado ambiental, repleto de memórias e lembranças, assim como
pelas expectativas e antecipações, relacionadas a possibilidades futu-
ras de usos e significações nesse mesmo espaço do hoje. Ao assumir
tal entendimento, compreendo que apreender a cidade contemporânea
e falar sobre seu presente demanda um olhar crítico sobre o passado e
também sobre o futuro do sujeito.
Por fim, reconheço que olhar a cidade por meio de suas diver-
sas possibilidades, caminhos, elementos e pessoas, significa também
olhar para o meu eu interior. Enquanto descubro novos lugares por meio
do um corpo que se torna presente ao se movimentar, se apropriar e
transformar tais espaços, vou me descobrindo e (re)inventando enquan-
to indivíduo. Por esse entendimento, parece-me possível afirmar que
cada pequeno momento, que somados compõem uma nova camada de
vivências que constroem a parede da minha existência, é somente mais
uma pequena parte que compõe a vastidão de possibilidades e de repre-
sentações dessa mesma cidade. Por esse entendimento, pode-se afirmar
que a cidade, assim como o sujeito, é múltipla, é movimento, é inacaba-
mento.
133
Referências Bibliográficas./
135
07./ Evandro Fiorin
colaborador: Igor Augusto de March
Sólidos,
planos, vazios;
espaços de
encontro,
escadas e
esquinas...
136
Resumo./
Este capítulo é resultado de um trabalho de iniciação científica
que reforça o viés da percepção ambiental como instrumental que con-
duz para uma leitura dinâmica das narrativas dos lugares. Por meio do
caminhar como prática estética, construímos olhares diversos, lidos pela
fenomenologia, pela semiótica e acionados pelo método da cartografia,
os quais possam produzir informação urbana sobre alguns contextos
peculiares e espaços emblemáticos no Centro Histórico de Florianópolis,
diante das principais transformações nas suas paisagens, decorrentes
dos seus modos de uso e ocupação. Logo, por meio de incursões às
imediações da Praça XV de Novembro e adentrando nos setores leste
e oeste da região histórica e imediações produzimos cartogramas em
aberto, traduções dos trajetos sobre os territórios, por meio de croquis,
textos e imagens. Estes elementos de leitura e análise se produzem
como interpretações transitórias, já que estas áreas mudam o tempo
todo. Sólidos, Planos, Vazios, Espaços de Encontro, Escadas e Esquinas
se descortinam pelo caminhar atento e perspicaz. Nessa jornada, car-
tografias da cidade se processam como forma de leitura dos lugares
transitórios, sempre como uma leitura inacabada.
138
Em meados do século XVIII (CABRAL, 1951, p. 6), com o surgi-
mento de diversas moradias rudimentares e o iminente adensamento
populacional da região, o espaço teve sua expansão acelerada. Observa-
va-se já uma distinção entre o antigo bucolismo e o processo de gra-
dativa urbanização. Os primeiros conflitos de classe se mostravam na
divisão entre os barracos de madeira do “baixo centro” e das grandes
chácaras do “alto centro” – afastadas do que conhecemos hoje como
Centro Histórico. Aos poucos, o comércio foi abarcando as ruas centrais
(VEIGA, op. cit., p. 178), fazendo com que diversos moradores de baixa
renda – em sua maioria pescadores – tivessem de ocupar regiões mais
periféricas e ou morros próximos da região geograficamente acidentada
do centro (VEIGA, op. cit., p.62).
Já na primeira metade do século XX, vemos um crescimento
exponencial com a conclusão de grandes obras públicas, com destaque
ao Mercado Público em 1905 e a construção da Ponte Hercílio Luz em
1924 – o início do processo de modernização da construção civil na re-
gião. Neste período, começava – ainda que lentamente – a verticalização
da região (VERA e SILVEIRA, 2019, p. 263). Estes fatos foram de crucial
importância, dando ao Centro Histórico um novo caráter dicotômico –
uma área rodeada de projetos residenciais precários e, ao mesmo tempo,
pontuada por grandes obras voltadas para o fortalecimento do setor de
serviços e de projeção econômica da cidade. Assim, um novo plano so-
cioespacial começava a se desenhar na região.
Deste momento em diante, Florianópolis deixava de ser uma vila
e tornava-se um importante centro urbano. Nesse âmbito, o Centro His-
tórico se tornou espaço de intensa especulação imobiliária. Multiplica-
ram-se os comércios e os edifícios do terceiro setor. Os moradores que
ali residiam, foram aos poucos compelidos a desocupar estes espaços
e se apropriarem de outas regiões. Grandes obras de cunho urbanístico1
tornaram a região o coração do deslocamento viário de produtos e de
pessoas.
Aos poucos, moldou-se a partir das antigas casas de olaria o
cenário que se vislumbra hoje: um espaço de volátil apropriação, de um
uso sazonal e imprevisível, de territorialidade hostil à habitação. Suas an-
tigas construções foram aos poucos modificadas, abandonadas e demo-
lidas; o perímetro central começava a ganhar uma nova face. O fluxo de
pessoas durante o dia se tornou intenso e foi perdendo, aos poucos, seu
caráter de permanência, sobretudo à noite; assim, um espaço de passa-
gem se configurou pelo reforço das atividades comerciais.
A partir de 1974, haja vista a preocupação com a preservação
patrimonial e com a homologação da Lei Municipal 1202, diversos con-
juntos e projetos isolados do Centro Histórico foram tombados como
1 Destacamos a construção dos aterros da prainha e da Baía Sul em 1943 e 1975, res-
pectivamente. (VERA & SILVEIRA, 2015).
139
patrimônio. Como resultado imediato, estabeleceu-se um processo de
manutenção imagética. Hodiernamente, entretanto, a potência desse
casario emblemático foi reduzida à conservação da fachada; uma espé-
cie de cenografia urbana que oscila entre o agito da ocupação comercial
durante o dia e o marasmo noturno. Uma terra de ninguém. A despeito
da manutenção e restauração patrimonial, o processo de abandono da
vivência coletiva expõe a fragilidade urbana, diante do predatório movi-
mento da especulação imobiliária e da construção civil (CRUZ, 2012).
Mesmo assim, o Centro Histórico segue sendo um lugar de efer-
vescência. Seja ela política, social e cultural; seja no embate de classes
entre os mais ricos que retroalimentam o mercado imobiliário, os traba-
lhadores da região comercial e os moradores de rua e camadas rejeita-
das que se encontram no dimorfismo da apropriação desse espaço. No
Centro Histórico se situaram ataques à ditadura, o nascimento e a morte
de ídolos da cultura local e a resistência da arte enquanto meio de ex-
pressão do anseio popular. É palco do carnaval e da expressão do direito
à cidade. É, ao mesmo tempo, ponto fora da curva e a própria linha do
projeto de cidade que se cultiva – é um lugar controverso, plural.
Há, neste espaço, uma reconhecida potência de apropriação
e absorção popular. É, mais do que o desvelamento de sua produção
histórica, é a redescoberta de sua hospitalidade comunal, de seu acolhi-
mento social e de seu reencontro com cidade livre. Assim, este trabalho
busca captar essa potência espacial, tendo a errância como método de
pesquisa sobre da região do Centro Histórico. Essa modalidade de inves-
tigação se justifica para compreendê-lo como local de fluidez, indo em
busca do inesperado, dando relevo à surpresa e ao conflito, à história e à
experiência do lugar.
Deste modo, temos como objetivo compreender o Centro Histó-
rico por meio de um caminhar estético experiencial, na busca por uma
quebra do sentido cartesiano e racional do entendimento da cidade,
para promover novas significações desse contexto ímpar. Entender suas
especificidades, multiplicidades e sua potencialidade transformadora
e de transformação, rompendo com os clichês na sua representação e
abrindo espaço para uma pesquisa que se produz pela vivência e pela
subjetividade humana. Assim, por meio das vivências, da experimenta-
ção espacial e da valorização sensível do lugar que se pretende buscar o
entendimento do Centro Histórico de Florianópolis produzindo algumas
cartografias urbanas.
140
Procedimentos./
O rumo dos becos e das vielas, ou mesmo das ruas e avenidas, se enviesa, se
reconcilia com a topografia caprichosa, abandonando a regularidade pretendi-
da.
(MARX, 1980, p. 25)
145
Os Sólidos, os Planos e os Vazios./
150
Os Espaços de encontro, as escadarias
e as esquinas./
DUARTE, Carla & ANDRÉ, Paula. Deixar-se perder na cidade: teorias ur-
banas a partir do século XIX. In Paula André (Ed.), Antologia de ensaios:
Laboratório Colaborativo. Dinâmicas urbanas, património e artes. Investi-
gação, ensino e difusão. (pp. 8-27). Lisboa: DINÂMIA'CET-IUL, 2017.
FRIAS, Aníbal & PEIXOTO, Paulo. Esthétique urbaine et jeux d’échelles: ex-
pressions graphiques et images du patrimoine au sein du monde univer-
sitaire de Coimbra. Oficina do Centro de Estudos Socais, 2001.
LYNCH, Kevin. A Imagem da Cidade. São Paulo: WMF Martins Fontes. 2006
MARX, Murillo. Cidade Brasileira. São Paulo, Melhoramentos/ed. de Uni-
versidade de São Paulo, 1980.
157
08./ Evandro Fiorin
colaborador: Arthur Fracaro Gonçalves
Trans-cidade.
158
Resumo./
Este capítulo é resultado de um trabalho de iniciação científica e
reforça o viés da percepção ambiental, como instrumental que conduz
para uma leitura dinâmica das narrativas dos lugares. Por meio do cami-
nhar como prática estética, os estudantes constroem olhares diversos,
lidos pela fenomenologia, pela semiótica e acionados pelo método da
cartografia, os quais possam produzir informação urbana sobre alguns
contextos peculiares e espaços emblemáticos no centro da cidade de
Florianópolis, diante das principais transformações nas suas paisagens,
decorrentes dos seus modos de uso e ocupação. Desta maneira, os
futuros arquitetos saem à deriva pelas áreas centrais, revelando alguns
traços do seu processo de deterioração, identificando espaços em de-
suso, grafites e pichações e os usos e as ocupações marginais, de modo
a abrir portas para a construção de um novo entendimento sobre estes
lugares. Assim, apontamos alguns espaços capazes de revelar a constru-
ção histórica da urbe e os seus elementos de permanência e alteração,
seja do ponto de vista evolutivo, mas, também, dos marcados retroces-
sos. Logo, por meio de incursões às imediações do Parque da Luz, do
Maciço do Morro da Cruz e da rua Frei Caneca e redondezas produzimos
cartogramas em aberto, traduções dos trajetos sobre os territórios, por
meio de croquis, textos e imagens. De tal forma, estes se constroem
como uma maneira de fazer-ver o patrimônio arquitetônico e urbano
em áreas emblemáticas e o seu processo de deterioração. De um modo
lúdico-construtivo, alimentam formas de reconhecimento urbano, que
podem ser úteis para a elaboração de projetos plurais e que evidenciem
a cultura dos espaços, porque cartografamos sob um enfoque qualitati-
vo. Nesse sentido, as cartografias contemporâneas revelam as surpresas
e as descobertas sobre o lugar, de modo a contribuir sobre os proces-
sos de deterioração urbana para os gestores municipais e o ministério
público, mas sobretudo, para o empoderamento da sua população, em
compasso de efetivas ações de mudança.
“Em 1840 foi fundado o cemitério nos terrenos do cidadão José Vieira de
Castro no caminho do Estreito. A chacra de Vieria de Castro foi desapropriada,
cercada, e ali edificou-se uma pequena capela [...] foi verificando-se a incon-
veniência da escolha do local para o cemitério, já que não só apresentava um
visual depreciativo como também impedia a expansão urbana”
(VEIGA, 2010, p.283)
“Em 1887 já cogitava-se remover a necrópole, pois ela ocupava o ponto mais
pitoresco da cidade [...] o mais saudável por sua situação e elevação. [...] A
questão da transferência do cemitério prolongou-se durante anos, sendo
objeto de preocupações municipais até 1912[...] Após a aquisição do terreno,
no lugar chamado Três Pontas (bairro do Itacurubi), a questão ainda perdurou,
até que, em janeiro de 1925, foi aberta concorrência pública para realização de
uma parte da obra.[...] A partir de 1925, com a transferência do cemitério do
Estreito para o das Três Pontas, no bairro do Itacurubi, e com a implantação
dos eixos viários que deram acesso à Ponte Hercílio Luz, a área da ponta mais
ocidental da Ilha passou a integrar-se ao sistema viário e ao contexto urbano
como um todo. No século XX, parte do terreno foi confirmado como de inte-
resse público, configurando-se ali o chamado Parque da Luz.”
(VEIGA,2010, p. 283-285)
163
O Bairro Monte Serrat no Maciço do
Morro da Cruz./
167
Transitando e tropeçando./
169
O terceiro tipo de ocupação é a moradia de andarilhos, que se
configura na entrada sudeste, na parte mais adensada por árvores e sem
qualquer trilha de ligação com o parque. Nessa região é possível encon-
trar muitos vestígios de quem ocupa a área como: embalagens de be-
bidas alcóolicas vazias, carcaças de celulares, possivelmente roubados,
roupas sujas e alguns preservativos usados, além de antigas estruturas
improvisadas de folhas de bananeira que servem como abrigo.
Um dos maiores atrativos de pessoas para esta região são as
boates 1007 e Fields, que nas noites de sexta-feira e finais de sema-
na geram um alto fluxo nos entornos do parque e filas para entrar nos
referidos clubes noturnos. Assim, tornou-se recorrente a utilização do
parque como lugar para externar desejos sexuais em meio às árvores do
local. Muitos já presenciaram cenas de sexo explícito no local.
Sobre os grafites encontrados existe uma grande variedade deles
e em locais diversos. Desde paredes, até nas pedras do parque, sendo
algumas mais expressivas e outras mais relacionadas a quem as fez,
como as tag’s. Desse modo vemos um local muito rico do ponto de vista
artístico.
2 1
170
O antigo Estaleiro Arataca é um local de complicado acesso, de-
vido a vedação presente para evitar a entrada de moradores em situação
de rua. Assim, descemos a Rua Almirante Lamego e fomos nos informar
sobre o espaço no Comando Geral-Corpo de Bombeiros, que fica ao
lado do lote do Estaleiro. Lá falamos com um Sargento dos bombeiros
que nos contou sobre as várias ocorrências de uso de drogas e de um
assassinato que ocorreu no ano de 2011. Depois disso, demos a volta no
quarteirão e tentamos acessar a antiga edificação pela parte da frente,
que fica na Avenida Osvaldo Rodrigues Cabral.
Quando chegamos nas imediações da ruína nos deparamos com
uma parte do muro de arrimo da casa e vários itens jogados no chão,
logo percebemos uma voz nos chamando de dentro da ruína: um mo-
rador em situação de rua que estava sentado em meio ao lixo. Ali era,
provavelmente um espaço utilizado por ele para se abrigar do sol e da
chuva.
Dentro da edificação havia muito lixo jogado no chão, como rou-
pas, garrafas, sapatos amontoados de modo que não era possível mais
ver o piso. Subimos para o segundo andar e saímos numa área já sem
combertura e cheia de mato, onde restava apenas uma parte da parede
da fachada e o resto da construção sem telhado. Nos restos da fachada
havia um grafite que nos chamou muito a atenção que dizia “ Sem teto
é nois“, uma clara tentativa de identificar o espaço como habitado. Desse
modo, o antigo Estaleiro Arataca apresentava uma deterioração avança-
da, porém, continua desempenhando função de morada, que, de certo
modo, mantêm o local vivo, já que contempla a função de abrigo para
desamparados e espaço para realização de atos transgressores.
171
1
2 - Fachada antigo
Estaleiro Arataca
3 - Cama improvisa-
da antigo Estaleiro
Arataca
172
O antigo Forno Incinerador de Lixo nos arredores do antigo es-
taleiro se mantém austero no meio da paisagem que compõe a região.
Sua chaminé ainda resiste ao processo de verticalização acelerado. No
passado a edificação possuía grande importância:
A Fábrica de Pontas Rita Maria, inaugurada em 1896, foi uma das primeiras in-
dústrias de vulto em Florianópolis. Sua instalação, divulgada entusiasticamen-
te pelos jornais da época como uma das iniciativas mais relevantes do campo
industrial da Capital, repercutiu o cenário político, econômico e social de todo
o Estado de Santa Catarina. Aliada à fábrica de bordados do mesmo empre-
sário, Carl Hoepcke, ela veio a incrementar a produção industrial da cidade,
movimentando as atividades portuárias e criando uma empresa de navegação
local. O prédio foi construído com apenas um pavimento e nele utilizou-se
tecnologia importada, rompendo com os cânones arquitetônicos da região. [...],
foi efetivamente uma das mais importantes indústrias de Santa Catarina.
(VEIGA, 2010, p 265, 267)
173
Nos dias de hoje, a construção de um centro empresarial con-
trasta com o entorno e, consequentemente, com a antiga fábrica. As
novas edificações compostas por cortinas de vidro é parte do projeto de
restauração dos antigos galpões que irão compor o Centro Empresarial
Carl Hoepcke.
Além disso, nas imediações há um novo empreendimento, o
edifício Top Vision composto por três torres que vão abrigar moradias,
serviços, escritórios e lazer. Disposto na antiga Fábrica de Renda e Bor-
dados da Cia. Hoepcke, localizada na Rua Felipe Schmidt esquina com a
Rua Hoepcke e Conselheiro Mafra:
1
3
177
Após terminar o percurso no Monte Serrat e seus arredores nos
direcionamos à Rua Frei Caneca com continuação a Rua Bocaiúva e suas
imediações. Como já conheciamos a região, sabiamos da existência de
um casarão abandonado na Rua Frei Caneca, um local conhecido como
antiga Chácara Gonzaga.
Quando chegamos lá nos deparamos com uma casa muito de-
gradada devido ao uso por moradores em situação de rua, com destaque
para o gratide do camaleão em sua fachada, uma marca do artista Rodri-
go Rizo. A casa localizada no número 610 e 626 da Rua Frei Caneca já foi
morada da família Ramos, a qual muitos de seus integrantes já tiveram
papéis políticos importantes no cenário catarinense como o governador
Celso Ramos.
Ela também já foi ocupada pelo Colégio Autonomia no final do
século XX e início do século XXI. Entretanto, hoje, está entregue à ocupa-
ção de moradores em situação de rua, viciados e perambulantes. Acredi-
tamos que a casa foi deixada à merce do tempo para que, paulatinamen-
te, fosse sendo destruída e chegasse ao ponto em que fosse permitido
pelo IPHAN sua demolição, apesar do seu tombamento.
Referente as ocupações transgressivas praticadas nas imedia-
ções, a parte que abrange a Frei Caneca tem a casa que ocupa o terreno
da antiga Chácara Gonzaga apropriada para utilização de drogas como
o crack e algumas marquizes ocupadas por moradores em situação de
rua como forma de abrigo, enquanto na Rua Bocaiúva tem uma série de
grafites e, ao longo dela, suas praças são principalmente, utilizadas para
consumo de canabis durante à noite, já que os moradores dos prédios
da região, em maior parte adolescentes, enxergam esses espaços como
local seguro para utilização dessa substância.
1 - Grafite contra todo o timismo
civilizatório.
2 - Morador de rua sob marquise.
2 1
3 - Casa localizada na antiga
Chácara Gonzaga.
5
Figura 7 – Transurbanograma da Rua Frei Caneca em continuação com a Rua Bocaiúva,
fonte: autores, 2021./
178
Transclusão./
180
181
09./ Djonathan Freitas
Sinal
vermelho.
182
Resumo./
O percurso construído nesse capítulo trata das relações entre
fotografia e a cidade, tendo o foco na narrativa das pessoas que expe-
rienciam as ruas como espaços de existência e resistência, enquanto
modo de ocupação e criação de territórios na cidade de Florianópolis.
No intuito de pensar uma estratégia para “fazer-ver” as mudanças e
adaptações exigidas com a chegada da pandemia de Covid-19 buscamos
registrar aqueles que são marginalizados, carregando em seus corpos as
marcas da desigualdade social e da luta pela sobrevivência. Este outro
olhar tem como pressuposto uma abordagem transversal que se ajusta a
cada realidade, à procura dos índices sócios espaciais, que acometem à
invisibilidade em seus espaços existenciais. Conduzindo esse pensamen-
to ao ato do caminhar, como prática estética, queremos pensar sobre
algumas complexidades da cidade, tendo no exercício fotográfico, uma
possibilidade de experimentação crítica e cartografia acerca da política
da esmola nas sinaleiras, diante de todas as suas contradições e con-
trastes sociais.
184
Uma cidade revelada./
[...] explorar a pé a cidade e penetrar em seus significados é uma arte tal como
a escultura, a pintura, a arquitetura, mas também como a fotografia, o cinema,
a poesia que nos contam muitas vezes com mais eficácia do que os urbanis-
tas, os fenômenos mais dificilmente legíveis da cidade atual (CARERI, 2017,
p.101).
(CARERI, 2017, p.101)
PARE!
OLHE E
SIGA...
187
Figura 1 - Imagem que ilustra a vida nas sinaleiras das ruas de Florianópolis;
Fonte: acervo dos autores (2021)./
188
Figura 2- Imagem que ilustra um abrigo improvizado nas ruas de Florianópolis durante a
eclosão da pandemia de Covid-19.
Fonte: acervo dos autores (2021)./
189
Figura 3 – Imagem que ilustra uma placa de pedido “por favor peço ajuda p/ adquirir
par de muletas”.
Fonte: acervo dos autores (2021)./
190
Figura 4 – Imagem que ilustra uma placa de pedido “Vivo da arte/Fome ajuda”.
Fonte: acervo dos autores (2021)./
191
Figura 5 – Imagem que ilustra uma placa “Não sustente a miseria. Não dê esmolas.”
Fonte: acervo dos autores (2021)./
192
Referências Bibliográficas./
193
Título: A cidade inacabada
Autores:
Evandro Fiorin
Djonathan Freitas
Guilherme do Carmo Gomes Dias
Heber Macel Tenório Vasconcelos
Kellen Melo Dorileo Louzich
Laís da Silva Rodrigues
Lucas do Nascimento Souza
Matheus Alcântara Silva Chaparim
Paula Gabbi Polli
Coordenação editorial:
Evandro Fiorin
Projeto gráfico:
Revisão:
Autores
Colaboração:
194
Evandro Fiorin:
Coordenador do Laboratório de Percepção Urbana / UFSC
Líder do Grupo de Pesquisa de Projeto, Patrimônio, Percepção e Paisagem / CNPq
Docente dos Programas de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo / UFSC / UNESP
Djonathan Freitas:
Arquiteto e Urbanista formado pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC,
campus CERES/Laguna. Graduando no curso das Artes Visuais UDESC, campus CEART/Flo-
rianópolis e mestrando com Bolsa CAPES em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade
Federal de Santa Catarina.
195
a cidade INACABADA 1ª edição
196