Cidade Inacabada

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a

Evandro Fiorin
Djonathan Freitas
IN-
Guilherme do Carmo Gomes Dias
Heber Macel Tenório Vasconcelos
Kellen Melo Dorileo Louzich
Laís da Silva Rodrigues
Lucas do Nascimento Souza
ACA-
Matheus Alcântara Silva Chaparim
cidade

Paula Gabbi Polli BADA

1
AUTORES:
Evandro Fiorin
Djonathan Freitas
Guilherme do Carmo Gomes Dias
Heber Macel Tenório Vasconcelos
Kellen Melo Dorileo Louzich
Laís da Silva Rodrigues
Lucas do Nascimento Souza
Matheus Alcântara Silva Chaparim
Paula Gabbi Polli

a cidade INACABADA

1ª Edição

2021

2
EDITORA ANAP
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Foto de Capa - Evandro Fiorin


Revisão final - Autores
Editoração e Diagramação - Guilherme do Carmo Gomes Dias

Ficha Catalográfica
F521a Fiorin, Evandro
A cidade inacabada / Evandro Fiorin, Djonathan Freitas, Guilherme do Carmo
Gomes Dias, Heber Macel Tenório Vasconcelos, Kellen Melo Dorileo Louzich,
Laís da Silva Rodrigues, Lucas do Nascimento Souza, Matheus Alcântara Silva
Chaparim, Paula Gabbi Polli – Tupã-SP, ANAP; Florianópolis-SC, Arquitetura &
Urbanismo/UFSC Publicações: 2021.

194 p.

Requisitos do Sistema: Adobe Acrobat Reader

ISBN 978-65-86753-51-6
1. Urbanismo. 2. Planejamento Urbano. 3. Cidade. I. Título.

CDD: 710
CDU: 710/49

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Brasil: Planejamento urbano e paisagismo

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LÍDER:
Prof. Dr. Evandro Fiorin

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LABORATÓRIO DE PERCEPÇÃO URBANA


RESPONSÁVEL:
Prof. Dr. Evandro Fiorin

9
apresentação

Este e-book é resultado de um esforço conjunto dos integrantes


do Laboratório de Percepção Urbana, vinculado ao Grupo de Pesquisa de
Projeto, Patrimônio, Percepção e Paisagem da Universidade Federal de
Santa Catarina, para fazer-ver algumas mudanças acontecidas no pano-
rama atual das conformações urbanas contemporâneas, principalmen-
te, depois da pandemia de Covid-19 (causada pelo vírus SARS-CoV-2).
Integram este volume, estudantes de pós-graduação de dois diferentes
programas de Arquitetura e Urbanismo. Além disso, colaboram com es-
ses estudos, alunos do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo,
com bolsa de iniciação científica, da mesma instituição citada acima.
Um trabalho que se pretende aberto, como um projeto em
construção que se abre à crítica e ao debate acadêmico. Também serve
para trazer ao grande público, as questões relevantes sobre as transfor-
mações da cidade e a impossibilidade de manter um discurso atrelado
ao sentido de planejamento da primeira metade do século passado.
Pretende-se, portanto, lançar novo olhar sobre os espaços, sem mode-
los apriorísticos, agasalhando a ruptura, a resistência, a resiliência e tudo
aquilo que escapa ao desenho do arquiteto; uma chance para reconectar
nosso ofício com a complexa teia urbana que habitamos e com os que
nela habitam.
Um reconhecimento que busca por uma outra arquitetura, es-
pecialmente depois dos sucessivos fechamentos que impactaram os
espaços urbanos com a pandemia. É por conta disso que, neste com-
pendio, os lugares inconclusos ganham destaque, frente àqueles que são
planejados para o consumo conspícuo. Uma percepção que apenas foi
possível diante de uma modalidade de pesquisa aberta, rizomática, onde
as narrativas de descobertas, de re-construções e deciframentos do ar-
quiteto na cidade ganharam peso. Nessa busca, os espaços de encontro
das conformações urbanas contemporâneas são alçados à condição de
postos-chave para compreender os desejos dos Outros, bem como, toda
a capacidade de transcorrer pela e sobre a cidade, tal como aquele que a
vê pela primeira vez.
Nessa trajetória não há parada. E cada semáforo no sinal ver-
melho, comumente revelará uma cidade inacabada: cheia de discrepân-
cias, desatinos e desalentados. Nosso papel é revelar essas agruras para
buscar reconectar a tarefa do arquiteto com algum senso de humanida-
de, não para tentar consertar os erros do passado, mas para seguir em
frente, porque agora sabemos que a experiência do lugar e a imersão na
sua cultura pode ser uma saída hábil para fazer qualquer projeto – sem-
pre em processo.

Prof. Dr. Evandro Fiorin


10
Sumário

01./ Por uma ‘outra arquitetura’. P.12


/Guilherme do Carmo Gomes Dias
/Matheus Alcântara Silva Chaparim

02./ A cidade esvaziada. P.38


/Laís da Silva Rodrigues

03./ Um bairro que desliza: vazios inconclusos. P.62


/Heber Macel Tenório Vasconcelos

04./ A construção da cidade inanimada. P.82


/Kellen Melo Dorileo Louzich

05./ O caminhar como uma modalidade de pesquisa. P.98


/Lucas do Nascimento Souza

06./ Uma narrativa de descobertas, (re) construções e deciframentos


do arquiteto na cidade. P.116
/Paula Gabbi Polli

07./ Sólidos, planos, vazios; espaços de encontro, escadas


e esquinas... P.136
/Evandro Fiorin
/Igor Augusto de March

08./ Trans-cidade. P.158


/ Evandro Fiorin
/Arthur Fracaro Gonçalves

09./ Sinal vermelho. P.182


/ Djonathan Freitas

11
01./ Guilherme do Carmo Gomes Dias
Matheus Alcântara Silva Chaparim

Por uma
‘Outra
Arquitetura’.
12
Resumo./
Neste capítulo são reunidas algumas reflexões sobre perspec-
tivas de atuação do arquiteto-urbanista nas cidades contemporâneas.
Diante de um contexto marcado pelo urbanismo funcionalista, pensa-se
ser de interesse refletir sobre como os desejos dos cidadãos e a pos-
sibilidade de encontro com o ‘outro’ podem ainda ser respeitados. O
desafio se torna ainda maior frente às mudanças e avanços tecnológicos
acentuados pelas adaptações exigidas com a chegada da pandemia de
covid-19. Desta forma, o objetivo deste trabalho é pensar sobre como
esses planejadores podem impulsionar uma “outra arquitetura”, entendi-
da como aquela que permite que transformações espaciais espontâneas
ocorram através das ações dos próprios usuários no espaço urbano. Uti-
lizaram-se como referenciais teóricos diversos autores como Solà-Mo-
rales (2002), de Certeau (1999), Queiroga (2001), Besse (2014) e Careri
(2013). As considerações finais sugerem que na busca de promover uma
“outra arquitetura” os arquitetos devem se preocupar em proporcionar o
ambiente no qual as pessoas sigam participando dos processos de for-
mação, transformação e desconstrução da cidade.

Palavras-chave: Outra arquitetura, Pracialidade, Cidade Inacabada, Práti-


cas Culturais, Espaço Público.
13
Introdução./
Neste capítulo são reunidas algumas reflexões que apresentam
perspectivas de atuação do arquiteto-urbanista no contexto das cidades
contemporâneas. Em um período marcado, sobretudo, pelos vícios de
um urbanismo funcionalista, que prioriza os automóveis e se expande
com base no consumo, pensa-se ser de interesse refletir sobre como
os desejos e necessidades dos cidadãos, assim como a possibilidade
de encontro com o “outro”, possam ainda ser respeitados. Tal desafio se
tornou ainda maior frente às mudanças e aos avanços tecnológicos de-
correntes de medidas, cuidados e adaptações exigidas pela chegada da
pandemia de covid-19.
Deste modo, o objetivo do presente trabalho é propor uma re-
flexão sobre como arquitetos-urbanistas podem impulsionar uma “outra
arquitetura”, entendida como aquela que permite que transformações
espaciais espontâneas ocorram através das ações dos próprios usuários
no espaço urbano. Espera-se criar subsídios para auxiliar na prática
profissional a partir do relato dos casos apontados, com destaque para o
Minhocão de São Paulo, assim como das discussões apresentadas.
Para elaborar a reflexão, utilizou-se como referenciais teóricos concei-
tos de diversos autores como: Terrain Vague de Ignasi de Solà-Morales
(2002); Práticas Culturais de Michel de Certeau (1999); Paisagem como
projeto de Jean-Marc Besse (2014); Projeto Indeterminado de Francesco
Careri (2013); e Pracialidade de Eugênio Queiroga (2001).
O trabalho está dividido em três seções. Na primeira, ressalta-se
que a “cidade inacabada” se revela nos usos e apropriações dos transe-
untes e que espaços públicos mais exitosos são aqueles nos quais os
usuários possuem a liberdade de executar intervenções e atribuir novos
significados através de suas práticas culturais. Na segunda parte, des-
taca-se que com a chegada da pandemia de covid-19 e as medidas de
distanciamento social, as práticas culturais passaram a ocorrer de ma-
neira limitada, mas isso também demonstrou o quão forte era o desejo
das pessoas em compartilhar lugares e desempenhar atividades coleti-
vas. Diante disso, pensa-se que o planejador deve oferecer um modo de
a comunidade ampliar sua liberdade de adaptar os espaços conforme
as próprias necessidades e desejo. Para tanto, defende-se a ideia que o
arquiteto deve buscar reafirmar uma “outra arquitetura”. A terceira parte,
por sua vez, inicia-se recordando que historicamente a ‘Praça’ é um dos
mais importantes espaços de encontro da vida pública, local em que
se desempenha uma série de ações que compõem o cotidiano e que
constituem a ideia de “pracialidade”, ou “estado de praça” (QUEIROGA,
2001). Destaca-se que a esfera pública contemporânea não possui como
suporte apenas os espaços físicos públicos, visto que o mundo cyber
permite que se compreendam hábitos, maneiras de fazer e habitar de
cada um, de modo que é possível encontrar uma infinidade de relatos
14
cotidianos nas redes sociais e, a partir deles, fazer leituras de “práticas
culturais” e entendimentos espaciais sobre os espaços reais.
Por fim, nas considerações finais, sugere-se que na busca de
promover uma “outra arquitetura” os arquitetos se preocupariam em dar
condições de “pracialidade”, ou seja, em proporcionar um ambiente no
qual as pessoas se sintam aptas em seguir participando dos processos
de formação, transformação e desconstrução da cidade.

15
A cidade como território de
transgressão./

Fundamentada numa constante renovação da crença na razão,


que por sua vez está objetivada tanto na promoção dos avanços ‘técni-
co-produtivos’ como também na fé sobre o desenvolvimento do in-
telecto humano, a modernidade, que também é fruto dos processos
desencadeados pela industrialização, vem oferecendo como método de
produção das cidades um modelo urbano baseado no funcionalismo
de sua estrutura, como bem nos recorda Henri Lefebvre em “O Direito à
Cidade” (LEFEBVRE, 2009).
Tal modelo funcionalista, que parte da busca por gerar o bem-es-
tar através do que seria a “racionalização das necessidades dos cida-
dãos”, ainda que tenha sido concebido através das ideias e do pensa-
mento de importantes planejadores, a exemplo de Haussmann e mais
tarde Le Corbusier entre outros, dificilmente chegou a ser capaz de con-
templar os verdadeiros desejos das pessoas. Pelo contrário, sua forma
operacional conduziu (e ainda vem conduzindo), um crescimento rígido
em que interesses de poucos se impõe sobre as reais necessidades dos
indivíduos, proporcionando assim grandes desequilíbrios na estrutura
urbana. Isso acaba por provocar uma expansão urbana “descontrolada”,
além de impactos ambientais que afetam diretamente a qualidade de
vida das pessoas e impossibilitam que espaços urbanos públicos sejam
resultado de processos de decisões coletivas (Figura 1).
16
Figura 1 - Sobreposição de Imagens utilizando recortes de “la ville radieuse” (1924) que
Ilustram a Ideia de Cidade Funcionalista./
A cidade funcionalista, marcada pela racionalização das necessidades dos cidadãos,
enaltece os automóveis e deixa os desejos em segundo plano, provocando uma expansão
urbana “descontrolada” com base no consumo.

Nessa cidade, em que o automóvel acaba sendo o protagonista,


a relação com o ‘outro’ vai se tornando cada vez mais impossibilitada,
de tal modo que o contato do citadino com os espaços públicos ocorre,
muitas vezes, de forma pouco pessoal. Somado a isso, o rápido avanço
tecnológico, principalmente àquele referente aos novos meios de co-
municação, vem impondo no decorrer das últimas décadas uma forte
alteração no modo de vida das pessoas e, consequentemente, uma série
de mudanças em suas formas de habitar. Diante disso, essa condição
pode favorecer que as pessoas procurem em outros meios o que Quei-
roga (2001) define como “pracialidade”, ou o “estado de praça”. Logo, ao
tratar dessa problemática, não é possível desconsiderar o impacto que o
mundo virtual proporciona sobre a vida urbana.
17
Por essa razão, essa sociedade cada vez mais encapsulada, fe-
chada em seus próprios dispositivos de vigilância e incapaz de controlar
seus tempos já não é compatível ao modelo convencional de cidade en-
tregue a certos formalismos persistentes, onde tudo, ou quase tudo, está
programado para aceitar apenas um estilo de vida rígido, sedentário, de
limites marcados e completamente avesso ao nomadismo, fazendo de
alguns espaços urbanos verdadeiros “Terrain Vague” que tanto definem a
modernidade.
Segundo Ignasi de Solà-Morales, os terrain-vague:

“Son lugares obsoletos en los que sólo ciertos valores residuales


parecen mantenerse, a pesar de su completa desafección de la actividad de la
ciudad. Son en definitiva lugares externos, extraños, que quedan fuera de los
circuitos, de las estructuras productivas. Desde un punto de vista económi-
co, áreas industriales, estaciones de ferrocarril, puertos, áreas residenciales
inseguras, lugares contaminados, se han convertido en áreas de las que puede
decirse que la ciudad ya no se encuentra allí”
(DE SOLÀ-MORALES, 2002).

O surgimento dessas áreas de conflito dentro da cidade, muitas


vezes marcadas por zonas antes produtivas que passaram a representar
um cenário de abandono e crescente deterioração, acabou por se tornar
um contexto recorrente, principalmente nos grandes centros urbanos;
tornando possível considerar as grandes cidades um antro de ‘ruínas
pós-industriais’. Tais espaços, que também são consequência do pro-
cesso de desindustrialização metropolitana iniciado no final do século
XX, são formados, quase sempre, por vazios que já não cumprem com
suas finalidades e que assumem um papel de vulnerabilidade.
Sendo assim, tornam-se vulneráveis, muitas vezes, por estarem
sujeitos à especulação imobiliária e possível destruição: desde ferrovias
desativadas, passando por antigas instalações de fábricas abandonadas
e até os baixios de viadutos, entre muitos outros espaços que nos reme-
tem a uma imagem que poderia ilustrar praticamente qualquer cidade
do mundo. (Figura 2).
Muitos casos poderiam ser citados para ilustrar esse fenômeno
nas cidades brasileiras. Em São Paulo, o Minhocão, que consiste num
elemento fruto da euforia automobilística e do autoritarismo da ditadura
militar vividos entre os anos de 1964 e 1984, é em realidade um longo
viaduto de 3,4km de extensão construído no final da década de 1960,
como um símbolo de “progresso” que facilitaria ao transporte individual o
acesso à Zona Oeste da cidade atuando com uma alternativa que teori-
camente evitaria congestionamentos nas ruas do centro, algo que jamais
chegou a ser uma verdade. Muito pelo contrário, o elevado desde o início
representou um trauma à estrutura já consolidada, não apenas pelo fato

18
Figura 2 - Sobreposição de Imagens que Ilustram a Ideia de Terrain-Vague./
Os terrain-vagues, lugares obsoletos, estranhos, assumem um papel de vulnerabilidade por
estarem fora das estruturas produtivas e por serem formados por vazios que já não cum-
prem com as suas finalidades iniciais.

de ter causado mais congestionamentos, mas também por outros as-


pectos que caracterizam sua violência contra a vida urbana impondo um
agressivo processo de deterioração do seu entorno.
Sendo assim, por conta do alto índice de contaminação do ar,
além do forte ruído causado pelos veículos que passam sobre o Min-
hocão, a parte superior começa a ser bloqueada em certas horas como
forma de reduzir seus impactos sobre a vida doméstica dos edifícios
adjacentes. Essa medida acaba por transformar o minhocão num es-
paço que carrega o conceito de “terrain-vague”, mesmo que apenas em
horários determinados (Figura 3).

19
Figura 3 - Sobreposição de Imagens que Ilustram o vazio sobre o Elevado Manoel
Goulart (Minhocão) na cidade de São Paulo./
Os terrain-vagues, lugares obsoletos, estranhos, assumem um papel de vulnerabilidade
por estarem fora das estruturas produtivas e por serem formados por vazios que já não
cumprem com as suas finalidades iniciais.
20
Casos de terrain-vague também podem ser encontrados nas
atuais cidades (médias) do centro-oeste paulista, como Bauru e Presi-
dente Prudente, em que se tem um contexto onde a ferrovia foi o motor
para a busca de novas terras, especialmente para o plantio de café. Com
a diminuição do transporte de passageiros e a prioridade que se deu
historicamente ao modal rodoviário, grande parte do antigo legado ferro-
viário caiu em desuso (Figura 4). Constituem-se hoje de estruturas que
carecem de sensibilidade e que, por ocuparem grandes áreas urbanas,
também sofrem com pressões políticas e econômicas (KÜHL, 2008). Es-
ses locais retêm uma força potencial para impulsionar experimentações;
espaços que ganham um novo sentido democrático pela interferência de
seus usuários (FIORIN, 2020) e que devem ser preenchidos de significa-
dos antes de serem preenchidos de coisas (CARERI, 2013).

Figura 4 - Sobreposição de Imagens que Ilustram o Desuso e Degradação do Legado


Ferroviário./
Grande parte do legado ferroviário caiu em desuso com a diminuição do transporte de
passageiros e a prioridade que se deu historicamente ao modal rodoviário. Constituem-se
hoje de estruturas que carecem de sensibilidade e que sofrem com pressões políticas e
econômicas.
21
Diante disso, como o arquiteto-urbanista pode atuar nesse
contexto? Cabe ao planejador aceitar sua incapacidade de determinar
os rumos da cidade e da vida sobre ela? Qual o paradigma de espaço
público a se considerar? É muito comum observar um certo pessimismo
com relação a essas questões. Para muitos a sociedade caminha para
um isolamento gradativo que, em outras palavras, significa uma cidade
onde os espaços comuns sejam exponencialmente nulos ou carentes de
qualquer interação. Por outro lado, há uma grande vertente que ainda
crê de forma tão romântica como inocente, para não dizer mal inten-
cionada, na construção de espaços públicos seguindo os moldes que
vêm sendo empregados desde a elaboração da ‘Carta de Atenas’ (1933),
espaços fruto de uma arquitetura de dominação, algo que não cumpre
outro papel senão aquele de atuar como um mecanismo de especulação
imobiliária e gentrificação, que acabam por produzir outros novos vazios.
Embora haja muita razão na primeira hipótese, talvez seja mais
prudente adotar um pouco de cautela, já que muitos processos aos
quais estamos submetidos, indiquem tendência no aumento do distan-
ciamento social, não se pode negar a necessidade humana de ocupar
lugares, de intervir e de interagir em seus espaços como parte do exer-
cício da “prática cultural”, conforme definição utilizada por Michel de
Certeau. Para explicar o que são “práticas culturais” – atividades reali-
zadas por cidadãos em um espaço de seu bairro –, Michel de Certeau
elabora uma reflexão sobre o “modo de habitar a cidade” a partir de duas
séries lógicas: a primeira baseia-se na “sociologia urbana do bairro”, que
se caracteriza por avaliar “dados quantitativos relativos aos espaços e à
arquitetura” avaliando os condicionantes materiais e administrativos que
definem o bairro; a segunda tem a ver com as "análises socioetnográficas
do cotidiano", aquelas relacionadas aos estudos mais eruditos dos "fol-
cloristas e historiadores" da "cultura popular". (DE CERTEAU, 1999, p.5).
Essas duas lógicas permitem reconhecer “bairro” como território
onde se pode exercer “compromisso social”, estimulado e protegido pela
“arte de conviver” com “o outro”, que nesse caso se insere num contexto
comum (Figura 5). Portanto, os interlocutores são aqueles que compõem
o bairro e o seu cotidiano: o comerciante que passa vendendo objetos; a
senhora que caminha com o cachorro; e o garçom que o cumprimenta e
faz um comentário engraçado; enfim, são todos aquele que manifestam
o que Certeau chama de "prática cultural", entendendo que a “'prática' é
um elemento decisivo para a identidade de um usuário ou de um gru-
po, pois pela identidade o usuário pode ocupar seu lugar no tecido de
relações sociais inscritas no seu entorno” . (DE CERTEAU, 1999, p.8).1

1 Lê-se no original: Es "práctica" lo que es decisivo para la identidad de un usuario o


de un grupo, ya que esta identidad le permite ocupar su sitio en el tejido de relaciones
sociales inscritas en el entorno (DE CERTEAU, 1999, p.8).
22
Figura 5 - Sobreposição de Imagens que Relatam Momentos de Práticas Culturais./
As práticas culturais são atividades realizadas por cidadãos no cotidiano de seu bairro,
território onde se pode exercer o seu “compromisso social”, estimulado e protegido pela
“arte de conviver” com o outro.

O bairro ainda é uma "organização coletiva" composta por ações


e interesses individuais que se cruzam, por isso, o bairro exerce uma
"função" de "lugares de proximidade", que permitem atender facilmente
às necessidades do cotidiano, mas que, de uma forma ou de outra, aca-
ba abrigando contatos interpessoais, que se dão por meio de contatos
inesperados, frutos do acaso possibilitado por deslocamentos “coti-
dianos”. Para exemplificar, podemos retomar o caso do Minhocão, pois
à medida que a sua parte superior se conforma em um terrain-vague
“momentâneo”, devido aos bloqueios periódicos para o acesso dos au-
tomóveis, surge imediatamente nesse vazio uma oportunidade de trans-
formar aquela via em um “outro lugar”. O fato de ele estar localizado
23
em uma zona de grande adensamento da cidade de São Paulo permite,
possivelmente, que pessoas passem a ocupá-lo de forma espontânea,
carregando em suas ações a ideia de um compromisso de bairro. Assim,
práticas culturais exercidas por seus usuários acabam por atribuir novos
significados ao Minhocão, na medida em que passam a promover peque-
nas transformações urbanas sobre esse espaço “obsoleto”, que alteram a
sua relação com o entorno.
Quem constrói a cidade é quem vive no ambiente urbano. Nesse
sentido, é preciso assumir que a cidade seja um processo em constante
construção, independente do desejo de um projetista. A expressão das
práticas culturais ocorre no horizonte de transformação da cidade inaca-
bada. Em outras palavras, a cidade inacabada se revela em seus usos e
apropriações e a comprovação disso se dá justamente pela possibilidade
de sua transgressão.
Portanto, embora urbanistas acreditem ter o poder de definir e
de prescrever os usos para o espaço projetado, serão seus usuários coti-
dianos, àqueles que o experimentarão e que o utilizarão de fato, os quais
terão o poder de lhe modificar e de lhe ressignificar constantemente
(BERENSTEIN JACQUES, 2008).

"Os praticantes ordinários das cidades atualizam os projetos urbanos e o


próprio urbanismo, através da prática, vivência ou experiência dos espaços
urbanos. Os urbanistas indicam usos possíveis para o espaço projetado, mas
são aqueles que o experimentam no cotidiano que os atualizam. São as apro-
priações e improvisações dos espaços que legitimam ou não aquilo que foi
projetado, ou seja, são essas experiências do espaço pelos habitantes, passan-
tes ou errantes que reinventam esses espaços no seu cotidiano."
(BERENSTEIN JACQUES, 2008).

Devido a essas constatações, é bastante improvável que chegue-


mos ao ponto de que os espaços públicos percam o seu valioso papel
frente à sociedade; porém, não apenas isso, trata-se de um valor que
revela que esses espaços determinados através do perfumado desenho
elaborado pelas mãos de um planificador, atendendo um programa pre-
estabelecido, já não sejam capazes de cumprir ou atender às verdadeiras
necessidades das pessoas por um simples motivo: nenhum programa,
por mais amplo que seja, consegue prever e abarcar as mudanças im-
postas pelo tempo. Os espaços públicos mais exitosos muitas vezes são
aqueles que não passaram pelo crivo de um projetista, mas sim aqueles
espaços nos quais os usuários obtiveram a liberdade de executar inter-
venções e transformações que deslocam seus significados e que inclusi-
ve transbordam sua própria ordem inicial (Figura 6).
24
Figura 6 - Sobreposição de Imagens que Expressam Atividades Realizadas pelos
Usuários nos Espaços Públicos./
Quem constrói a cidade é quem vive no ambiente urbano. Os espaços públicos mais
exitosos são aqueles nos quais os usuários obtiveram a liberdade de executar intervenções
e transformações que deslocam seus significados e que transbordam a sua ordem inicial.
25
O lockdown e o encontro com o
'outro'./

O novo coronavírus (Sars-CoV-2) que foi detectado inicialmen-


te em meados de 2019, alcançou uma escala mundial em muito pouco
tempo, chegando a ser considerado uma pandemia pela OMS poucos
meses após seu surgimento. Doença que até o presente momento gera
inúmeras incertezas e instabilidade; porém, todos aqueles que aposta-
ram que a pandemia fosse uma espécie de evento passageiro, que não
duraria mais do que alguns meses, acabou, de um modo ou de outro,
quebrando as suas expectativas. Ainda hoje, no transcorrer de 2021, con-
tando com milhares de mortes diárias, além de todo o colapso, tanto no
campo da saúde quanto na vida cotidiana e econômica, cresce a certeza
de que essa será uma realidade persistente em nossas vidas, seja pelo
fato de não sabermos exatamente a extensão da eficácia das vacinas
como também por estarmos sempre sob a constante ameaça do surgi-
mento de uma nova variante do vírus ainda mais agressiva.
De toda forma, as mudanças impostas à dinâmica da cidade al-
teraram definitivamente a vida urbana em diversos aspectos, abrangendo
desde o âmbito privado até a coletividade, sobretudo, e como dito ante-
riormente, pela potencialização de uma sociedade cada vez mais virtual
imposta pelo avanço das tecnologias de comunicação, o que promove
uma latente alteração na dinâmica da vida urbana.
A intensidade das medidas de prevenção à propagação da
doença e de seus efeitos (sociais, econômicos, sanitários, etc.), imedia-
tos e futuros, também levaram uma grande quantidade de pensadores
26
a exporem ideias e a fazerem um convite à reflexão sobre as mudanças
em curso. Destaca-se, por sua iniciativa e amplitude, o e-book “Sopa de
Wuhan: pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemias”, com-
posto por uma coletânea de textos publicados entre fevereiro e meados
de março de 2020, de autores de diversas nacionalidades.
No que se refere ao espaço urbano, as consequências da pande-
mia em questão podem ser estudadas e refletidas por diversas entradas:
o evidente caráter de saneamento básico e de saúde pública (que re-
monta às questões das pestes na idade média); a salubridade e a escas-
sez habitacional (que dificulta uma eficaz e concreta medida de isola-
mento “social/físico”); o impacto econômico em diversos setores (com
destaque para o do turismo); dentre muitas outras.
Paul Preciado (2020) em seu texto “Aprendiendo del vírus”, pu-
blicado em meados de março, expõe questões muito pertinentes que
ajudam a pensar as modificações em curso com a chegada da pandemia
de Covid-19. Para o autor, muito antes da aparição da Covid-19, já nos
encontrávamos em um processo de mutação planetária, atravessando
mudanças sociais e políticas. Uma ideia que perpassa todo o seu texto é
a relação entre os corpos e a chamada biopolítica - termo que a filósofa
Judith Butler (2020) esclarece como sendo as operações de poder que
buscam gerenciar as populações.
Com a gestão política da Covid-19 uma nova subjetividade tam-
bém é desenhada. O corpo e a subjetividade contemporâneos já não são
regulados unicamente pela passagem de instituições disciplinares, mas,
principalmente, por um conjunto de tecnologias biomoleculares, digitais
e de transmissão de informação. Devido ao apelo ao estado de exceção
e pela imposição inflexível de medidas extremas, epidemias também
podem servir como oportunidade de reconfiguração das técnicas de do-
minação dos corpos e das tecnologias de relações de poder em grande
escala. No caso da Covid-19, legitimam-se práticas estatais de biovigilân-
cia e de controle digital, normalizando-as e tornando o controle ciberné-
tico estatal e corporativo aceitável e tolerável pelos cidadãos (PRECIADO,
2020).
Referente ao aspecto da força de trabalho, colocado em pau-
ta por David Harvey (2020), a Covid-19 exibe todas as características de
uma pandemia de classe, gênero e raça, visto quem são as pessoas “na
primeira fila” – principalmente classe média baixa ou baixa, mulheres
e negras, ou seja, as que acabam ficando responsáveis por cuidarem
dos doentes na maior parte do mundo, quem correu maiores riscos de
contrair o vírus ou de serem demitidas pela contenção econômica. Além
disso, a divisão social foi acentuada entre aqueles que conseguiam ou
não trabalhar em casa ou foi permitido se isolar (com ou sem salário),
em caso de contato ou contágio (HARVEY, 2020).
Se por um lado o acesso à moradia mais ampla e versátil será
um desafio para vida privada a fim de atender à nova rotina imposta pelo
27
trabalho remoto e o ‘home office’, por outro lado caberá repensar um
modelo de cidade mais capaz de se adaptar às adversidades e diversida-
des que possam ocorrer no futuro com relação inclusive ao surgimento
de novas doenças.
As regras de distanciamento social podem levar também a
mudanças culturais, dependendo de quanto tempo durar a emergência
sanitária. No entanto, a única forma de consumismo que, quase cer-
tamente, se beneficiará destas condições é aquela chamada “’Netflix’
economy”, que fornece serviço aos “observadores compulsivos” (binge
watchers) (HARVEY, 2020).
As políticas de “lockdown” adotadas em muitos países como me-
dida para conter o contágio da Covid-19 põe em evidência a necessidade
das pessoas de se expressarem por meio de pequenas transformações
nos espaços que ocupam, adaptando suas funções para diferentes fina-
lidades e usos, conforme cada demanda, fazendo com que um mesmo
espaço adquira diferente caráter de acordo com cada momento. Além
disso, outro ponto muito importante consiste no desejo das pessoas em
compartilhar lugares e desempenhar atividades coletivas uma vez que
passaram a encontrar meios de realizar, muitas vezes de forma clandes-
tina, pequenas agrupações e ocupações de lugares e espaços difíceis
de vigilar como maneira de romper com o distanciamento que lhes foi
imposto.
Segundo Preciado (2020) a clausura e o teletrabalho também po-
dem levar à descoletivização e ao telecontrole. Por conta disso, o autor
sugere que se busque reapropriar criticamente técnicas biopolíticas e
que se altere a relação dos corpos com as máquinas de biovigilância e
biocontrole. Por outro lado, Michel Maffesoli (2020) observa uma busca
pelo “estar-junto”, seja através do uso da tecnologia, como por ações de
compartilhamento e voluntarismo, que chegam até as ressignificações
de elementos arquitetônicos, como as janelas - muito usadas em di-
versos tipos de manifestações (seja musical, como visto na Europa, seja
com os “panelaços”, no Brasil).
A imobilidade produzida pelo estado de quarentena imposto por
muitos países no mundo, por conta da Covid-19, fez com que a realidade
das ruas de diversas cidades fosse completamente alterada, lugares que
antes contavam com um cotidiano muito frequentado se converteram
em verdadeiras ‘terras baldias’ remetendo à ideia de cidades fantasmas
dos filmes de “western”. Diante desta condição, os relatos passaram a
ocorrer em muitos casos por meio de interações limitadas. Em cidades
europeias, por exemplo, os terraços e as sacadas se converteram em
espaços físicos de encontro com o ‘outro’, nelas as pessoas passaram
a manifestar seu desejo de coletividade e “comunitarismo” acenando e
aplaudindo seus vizinhos, mostrando que muito embora haja a internet
ela não chega a ser suficiente para suprir demandas sociais (Figura 7).

28
Figura 7 - Edição de Fotografia que demonstra a busca pelo espaço público ainda
possível./
A imobilidade produzida pelo estado de quarentena por conta da Covid-19 fez com que
muitos terraços e sacadas se convertessem em espaços de encontro com o 'outro'.

Já no Brasil, as medidas de prevenção à covid-19, por diversas


razões, ao menos no início, não tiveram muita adesão. Como exemplo,
podem-se citar os diversos casos e denúncias em que determinados co-
mércios, não essenciais, funcionavam promovendo aglomeração1 . Além
disso, o próprio distanciamento “social/físico” poucas vezes superou o
índice de 50% da população até março de 20212 . No entanto, mesmo
que a adesão não tenha sido como o esperado, o isolamento causou
consequências na experiência urbana, especialmente sobre o uso do

1 Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/07/03/interna_na-


cional,1162364/bares-lotados-no-leblon-em-plena-pandemia-geram-criticas-nas-re-
des-soc.shtml. Acesso em out. de 2021.
2 Disponível em: https://mapabrasileirodacovid.inloco.com.br/pt/. Acesso 27 de jun. de
2021.
29
espaço público - a primeira “vítima fatal” da pandemia, segundo Giselle
Beiguelman (2020).
Ao mesmo tempo, a redução dos fluxos de veículos proporciona
um novo olhar sobre outras oportunidades já presentes nas ruas. Cabe,
portanto, saber como aproveitá-las fazendo delas espaços de coope-
ração, de exercício do compromisso de bairro, mas também que se-
jam lugares de inclusão com habilidade de desbloquear barreiras que
impedem às pessoas adquirirem o pleno direito à cidade. Se as pessoas
têm autonomia de interferir e de determinar as melhores condições dos
seus espaços comuns, talvez o mais importante, para o planejador, seria
entender de que forma as pessoas estão realizando e exercendo suas
“práticas culturais”, pois a partir daí, eventualmente, o arquiteto pode-
ria oferecer, através de suas ferramentas e linguagem, um modo que a
comunidade amplie suas formas de exercer sua liberdade de adaptar os
espaços conforme seus entendimentos próprios.
As ideias aqui apresentadas possuem certa aproximação com a
visão de Jean-Marc Besse sobre “a paisagem como projeto”. Para o autor
(2014), projetar a paisagem é, de forma ambígua, representar o real (pro-
jeção) enquanto se imagina o que ele poderia ser ou vir a ser (projetação).
Em outras palavras, trata-se de testemunhar, por um lado, e modificar,
por outro. Em síntese, o projeto seria o ato de “criar algo que já estava aí”
(BESSE, 2014, p.61), deixando ainda algo de “inacabado”:

"O mundo é uma totalidade inacabável, mas também um meio no qual vi-
vemos. [...] Projetar é, portanto, primeiramente querer esse inacabamento,
e a responsabilidade do projetista, [...] talvez resida nisto: é o portador do
inacabamento, isto é, das significações em reserva, dos horizontes espaciais e
temporais dentro mesmo da localização dos futuros. Um mundo sem horizon-
tes, [...] simplesmente deixou de ser um mundo."
(BESSE, 2014, p.66).

As aproximações também se dão com a ideia de Projeto Indeter-


minado de Francesco Careri (2013), que nasce do encontro com o Outro
urbano. Para o autor (2017) há que se destacar que, muitas vezes, é difícil
“ativar” processos que durem e, nesses casos, que pode ser ainda mais
interessante procurar entender qual o projeto que os outros já ativa-
ram. Para Francesco Careri (2017), parece ser mais honesto e projetual
colocar-se como explorador de projetos em curso e alimentá-los com
energia. Pensando dessa forma, há mais esperanças de que as práticas
espaciais continuem mesmo depois de sua saída do “campo de jogo”,
visto que os processos já estavam acontecendo.
Talvez caiba ao arquiteto reafirmar uma espécie de “outra ar-
30
quitetura”, desde o ponto de vista que seu principal interesse não seja
apenas escorado nas definições de um projeto ou um programa pré-es-
tabelecido, até porque se entende que a obra pode jamais chegar a ser
efetivada; pelo contrário, a intervenção, se ela ocorrer, deve ser sutil, algo
que parece não estar ali, suscetível a uma eterna desconstrução e à sua
provável desaparição.
Essa “outra arquitetura” não consta de uma aversão à Arquitetu-
ra ou à técnica e linguagem, sua diferença se dá, sobretudo, pelo fato de
ocorrer frequentemente na ausência de um projeto profissional, consiste
em um ato, em um lapso, em um momento que se expande, se frag-
menta e se desdobra de acordo com aquilo que sucede devido a cada
situação. Nesse caso, a ‘outra arquitetura’ consiste muitas vezes em
um simples “relato” do cotidiano que promove transformações espaciais
espontâneas sob o olhar despretensioso que provoca entendimentos
múltiplos de determinado lugar (Figura 8).

Figura 8 - Sobreposição de Imagens de Intervenções que Remetem à Ideia de uma


“Outra Arquitetura”./
A outra arquitetura ocorre frequentemente num ato, num lapso, num momento que se
expande, se fragmenta e se desdobra de acordo com aquilo que sucede devido a cada
situação. Consiste muitas vezes em um simples “relato” do cotidiano que promove
transformações espaciais espontâneas e entendimentos múltiplos de determinado lugar.
31
Pracialidade e espaços virtuais - algu-
mas pistas para uma
'outra arquitetura'./

Historicamente a praça é um dos mais importantes espaços


simbólicos de encontro da vida pública, o qual se considera não apenas
como um palco para as ações humanas, mas um espaço onde se des-
empenha uma série de ações e intervenções que formam parte do coti-
diano (AMARAL, 2010), constituindo o que Queiroga (2001) define como
“pracialidade” ou “estado de praça”:

"Uma prática espacial própria da esfera de vida pública, que pode se esta-
belecer em determinados momentos, para diferentes sistemas de objetos
integrantes do espaço urbano, envolvendo desde ações comunicativas do
cotidiano da vida pública, até momentos da vita activa harendtiana, da ação
política e suas representações simbólicas. A pracialidade é, como categoria,
uma abstração, mas voltada à interpretação de concretudes, existências que
se situam no tempoespaço, participando da construção e matamorfose da
esfera de vida pública".
(QUEIROGA, 2001).

Importante ressaltar que essa “pracialidade” não se encontra


exclusivamente nas “praças” das cidades, mas também em diversos
outros espaços. Alguns exemplos seriam as manifestações políticas em
avenidas importantes de grandes e de médias cidades, campinhos de
futebol que ocorrem em periferias, praias urbanas lindeiras a bairros de
elite com forte poder imagético, além de também ocorrer em edifícios,

32
quando são transformados em lugares de manifestação pública e de
encontro (como o MASP na Avenida Paulista em São Paulo) (QUEIROGA,
2012).
No entanto, a esfera pública contemporânea não possuiria como
suporte apenas os espaços físicos públicos, visto que através dos meios
midiáticos e telecomunicacionais é possível realizar interações entre es-
ses meios:

"Não se trata de um meio destruindo outro, as telecomunicações e


redes informacionais não anulam a importância do espaço concreto, o virtual
não substitui o real; pelo contrário, novas e interessantes relações sociais, in-
clusive da esfera pública política contemporânea, vêm demonstrar que ambas
se potencializam. Um evento num espaço público se transmite pela internet
a partir de um pequeno telefone celular ou por câmera digital interna a um
tablet, por exemplo, dando a ele uma dimensão pública que pode alcançar o
planeta em tempo real".
(QUEIROGA, 2012).

Muito embora esse ambiente virtual ilustre, em sua essência, algo


muito semelhante ao que representam os shoppings centers - espaços
que se colocam como simulações da vida urbana, mas que não são mais
que falsas representações da realidade - ainda é possível reconhecer no
mundo cyber uma série de evidências que nos permitem compreender
hábitos, maneiras de fazer e de habitar de cada um, os quais acabam
conformando esse “estado de praça” ou “pracialidade” virtual.
Deste modo, é possível encontrar uma infinidade desses relatos
cotidianos nas redes sociais, mesmo que frios e repletos de banalidades,
mas que ainda assim nos permitem fazer leituras de “práticas culturais”
e, inclusive, de entendimentos espaciais.
Um exemplo que ilustra esse pensamento se encontra no per-
fil “@unicosobrevivente”1 que permite imaginar uma condição única da
cidade de Valência, na Espanha. Partindo de sua narrativa de um outro
espaço e de um outro tempo, o autor das publicações demonstra a
experiência de uma cidade que se torna também o testemunho de um
impacto da pandemia. A partir de fragmentos de relatos e vídeos, nos é
mostrado momentos da cidade de Valência convertida em um território
baldio, consolidado com as medidas de lockdown quando as ruas esta-
vam “vazias”. E, para além disso, desperta um imaginário da cidade em
um futuro distópico.
Poderíamos dizer que, conscientemente ou não, o autor das pos-

1 O código QR Code direciona para o perfil no Instagram do “@unicosobrevivente”, en-


tretanto não se sabe até quando ele estará ativo.
33
tagens evoca nos seguidores uma inquietação sobre o que fazer nessa
situação, e isso pode ser uma pista de como despertar interesse pelo
espaço público.
O Minhocão também é um outro exemplo de como a ‘pracia-
lidade’ que ocorre no mundo virtual pode acontecer de forma similar
no mundo real, pois consegue adquirir de algum modo a condição que
permite aos usuários a liberdade de se expressarem tal como fazem na
rede social; porém, a principal diferença se dá pelo fato de que no ele-
mento real existe a possibilidade de intervenção espacial que nos remete
à ideia de uma ‘outra arquitetura’, aquela cujo os próprios usuários são os
responsáveis por praticá-la.
Conforme afirma Lilian Amaral:

"Num mundo em que cresce o poder da imagem e de práticas vir-


tualizadas e intermediadas por telas, em que cresce a desigualdade social, a
praça torna-se ainda mais importante caso se deseje construir uma sociedade
mais consciente de si. A praça, como lugar simbólico e como lugar de inte-
ração pública marcado pela diversidade e liberdade, permite aos que dela se
apropriam ao menos a visão e a co-presença diante das diferenças dos que
co-habitam a megalópole. Reconhecer a alteridade é já um passo para a desa-
lienação".
(AMARAL, 2007, p.1436).

Portanto, esses reconhecimentos espaciais, a partir da expressão


das práticas culturais nos ambientes virtuais, podem servir para de-
monstrar quais dinâmicas são possíveis de suceder no espaço real.
34
Uma conclusão em aberto./

Conforme apresentado ao longo do capítulo, entende-se que a


busca por uma cidade mais inclusiva passa por valorizar usos e apro-
priações do espaço público, dando condições aos cidadãos de coexis-
tirem para que juntos possam intervir e ressignificar os locais onde
vivem como bem entenderem. A reflexão desenvolvida busca, portanto,
demonstrar que a “cidade inacabada”, que se revela na concretização de
práticas culturais dos citadinos e que se desdobra também em outros
meios como o virtual, escapa do controle dos projetistas, mas é sempre
atualizada por quem se lança à sua experiência.
Assim, na busca por promover essa “outra arquitetura”, os arqui-
tetos devem se incumbir de dar, primeiramente, condições de “pracia-
lidade”, ou seja, devem se preocupar em proporcionar ambientes nos
quais as pessoas se sintam aptas em seguirem participando dos proces-
sos de formação, transformação e desconstrução da cidade.
35
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36
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37
02./ Laís da Silva Rodrigues

A cidade
esvaziada.
38
Resumo./
A proposta deste capítulo reside na construção de uma breve re-
flexão entre o comportamento das ações políticas-sanitárias no combate
a febre amarela que acometeu a sociedade de Araraquara, cidade situada
no interior paulista, no período de 1895 até 1898, e as medidas tomadas
no combate a COVID-19 (2020-2021). Para isto, é traçado um panorama
do desenvolvimento das doenças, incluindo os efeitos do lockdown e um
comparativo estatístico da duração das moléstias em relação ao número
de vidas perdidas. É importante ressaltar que os estudos problematizam
sobre a vinculação do processo de urbanização aliado ao saneamento
básico e sua contribuição no controle das doenças. A evidência dessa
correlação é conseguida a partir da revisão histórica e documental da
cidade, por meio de bibliografia e registros oficiais disponibilizados pela
Prefeitura Municipal de Araraquara. As considerações finais não seguem
de encontro a um ponto final, mas sim... reticencias de um longo proces-
so evolutivo das cidades em conjunto com a sociedade.

Palavras-chave: Lockdown; Araraquara-SP; COVID-19; Urbanismo; Cidade.


39
Introdução./
Compreender a disseminação de uma epidemia demanda tem-
po e suporte em várias áreas do conhecimento. O combate a processos
epidemiológicos é uma questão importante que figura em destaque
na última década, visto as várias moléstias que acometem a sociedade
como um todo, antes de toda pandemia há uma epidemia. Basta um ca-
minhar pela história para encontrar ciclos repetidos de ações sanitárias e
urbanas (urbanismo sanitário) no enfretamento de doenças como: varío-
la, malária, febre amarela, influenza A (H1N1), SARS e, atualmente, CO-
VID-19. Precisamos aprender com o passado para alcançarmos o futuro.
A sociedade pós-pandêmica não existe, o que existe é uma sociedade
permanentemente pandêmica, cíclica, que de tempos em tempos ganha
fôlego para caminhar até iniciar novamente todo o processo em busca
de uma nova “cura”.
A proposta deste capítulo reside na construção de uma breve
reflexão entre o comportamento das ações políticas no combate a febre
amarela que acometeu a sociedade de Araraquara, cidade situada no
interior paulista, e as medidas tomadas no combate a COVID-19, assim
como seus efeitos perante a sociedade de cada época através do lock-
down.
Mas o que seria o lockdown como medida protetiva? A expressão,
de origem inglesa, significa “confinamento”. Porém, pode ser interpretada
de muitas formas dependendo do contexto utilizado. Em época de pan-
demia, o termo foi adotado como referência as medidas mais restritivas
tomadas por governos como forma de combate aos avanços dos núme-
ros de contaminados. Em resumo, é o fechamento dos estabelecimentos
não essenciais à sociedade e, em alguns casos, inclui o fechamento de
alguns serviços essenciais, exceto saúde e segurança pública.
O objetivo dessa medida extrema é restringir a circulação de
pessoas para garantir o devido distanciamento social e reduzir o número
de contaminação e mortes decorrentes da doença. Porém, toda medida
extrema possui certo tipo de efeito dominó nos vários níveis estruturais
da sociedade, afetando desde a economia até a saúde mental da popu-
lação.
Em 1895 Araraquara tornou-se uma cidade praticamente deser-
ta durante o enfretamento da febre amarela. Agora, em 2021, presen-
ciamos um comportamento parecido no combate a COVID-19. O que
levou os governos das épocas a tomarem essa decisão? Quais medidas
sanitaristas foram tomadas? O curso da epidemia de febre amarela foi
estudado e catalogado por pesquisadores, ele serve de auxílio ao com-
bate da COVID-19? Mais uma vez o passado ensina o presente e, quem
sabe, o futuro? Como Bauru, cidade do interior paulista que não aplicou
o lockdown, está em comparação a Araraquara? Essas são questões
que pretendemos levantar para o entendimento da importância de uma
40
ação consciente no combate as doenças que assolam a sociedade. Para
tal tarefa, nos apoiares em bibliografias (artigos, dissertações e teses),
documentos oficias (nacionais e municipais) e memórias registradas em
álbuns organizados por memorialistas.
Segue o glossário dos termos que serão utilizados:

SURTO: aumento inesperado do número de casos de determina-


da doença em uma região específica.
ENDEMIA: são aquelas doenças que se manifestam apenas numa
determinada região, não se espalha por outras comunidades,
mesmo com duração contínua. No Brasil, a febre amarela, hoje,
é considerada uma doença endêmica, sendo comum na Amazô-
nia. Por esse motivo, que no período de infestação da doença, as
pessoas que viajam para essa região precisam de vacina.
EPIDEMIA: caracterizada por uma doença infecciosa e transmissí-
vel que ocorre numa comunidade ou região, podendo ser de nível
municipal, estadual e nacional. Ela pode se espelhar rapidamente
entre as pessoas, originando vários surtos, em decorrência de
mutações do agente transmissor da doença ou pelo surgimento
de um novo agente (desconhecido). A gripe aviária é um exemplo
de doença que se iniciou com um surto epidêmico.
PANDEMIA: a pandemia é uma epidemia que atinge nível mun-
dial, ou seja, um ou mais continentes, causando inúmeras mortes
ou assolando cidades. De acordo com a Organização Mundial da
Saúde (OMS) a pandemia pode ter início através do surgimento
de uma nova doença. Alguns exemplos são: AIDS, tuberculose,
peste, gripe asiática, gripe espanhola, tifo, etc.
(HOSPITAL E MATERNIDADE SANTA TEREZA, 2020)1

Figura 1 - Sobreposição de imagens utilizando a base de dados da internet (2021) que


ilustram o combate à evolução epidemiológica./

1 Citação direta da redação Santa Tereza, disponível em < https://hospitalsantatereza.


com.br/surto-endemia-epidemia-e-pandemia-saiba-a-diferenca/>. Acesso em 21 de
maio de 2021.
41
A febre amarela sobe a serra: 1º lock-
down?./

[...] no desenvolvimento da civilização (...) o preço que pagamos por nosso


avanço em termos de civilização é uma perda da felicidade pela intensificação
do sentimento de culpa”
(FREUD, 2006: 137, in COSTA, 2016, p. 15).

O pensamento freudiano indica que para ganhar algo é necessá-


rio perder algo em troca. Simbiose gravada na história do desenvolvimen-
to das cidades, onde há necessidade de algum tipo de sobressalto e, às
vezes, as mudanças são decorrentes do progresso de expansão à custa
do bem estar social.
No caso de Araraquara, do início do século XX, não foi diferente.
Com a instalação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro (1885) a
disputa de poder do sistema coronelista atenuou e a febre amarela al-
cançou o planalto do interior paulista.
Segundo Telarolli Junior (1993), em análise ao registro de óbitos,
fornecido pela Prefeitura de Araraquara, a epidemia de febre amarela
perdurou 4 anos e ceifou 548 vidas, com a última morte pela doença
registrada em 1899. O número exato de vidas perdidas durante a epide-
mia é incerto, pois, inicialmente, a doença não era diagnostica de forma
correta e, em muitos casos, as mortes eram eclipsadas pelo governo
municipal.
Nos primeiros anos da década de 1890 a febre amarela não se
manifestou em Araraquara e a primeira morte importada pela doença foi
registrada em 1893, um caso entendido como aleatório. A doença rea-
pareceu em 1894 e, novamente, importada de outra localidade. Após o
segundo óbito, um ano se passou sem notícias da moléstia; até que, em
abril de 1895, a doença eclodiu e foram registrados 14 óbitos no mesmo
mês.
Telarolli Junior (1993) ressalta que antes da febre amarela ser
uma doença epidêmica, disseminada pelos trilhos do trem, ela já era
uma doença endêmica nos portos brasileiros. Dentro dessa correlação
doença-transportes, as autoridades sanitárias executaram medidas pro-
filáticas que iam desde a instalação de estufas para desinfecção de rou-
pas e bagagens dos passageiros, até o isolamento e vigilância dos passa-
geiros vindos dos locais de epidemia. Medidas resultantes dos esforços
para conter a moléstia que assolava principalmente o interior do estado
de São Paulo, detentor de grande concentração da produção cafeeira do
42
país. Ainda de acordo com o autor, os anos entre 1880-1890 foram os de
“maior crescimento da malha ferroviária paulista”, esse fato colaborou
com a redução do isolamento do interior do estado e proporcionou uma
troca de informações mais rápida com a capital.
A relação do ciclo de disseminação da doença, café-ferrovias-i-
migrantes-febre amarela, foi descoberta pelo engenheiro sanitarista
Theodoro Sampaio, que observou que onde o café não era cultivado não
havia registro da doença, pois a concentração e a circulação de imigran-
tes era baixa ou inexistente.
Cabe ressaltar que as vertentes higienistas são de grande influên-
cia na reestruturação das cidades ao longo dos séculos. A preocupação
com medidas sanitárias que abrandassem a disseminação de doenças e
outros males remonta há anos anteriores ao Código Sanitário do Estado
de São Paulo de 1894. A Lei do Governo Geral de 1º de outubro de 1828,
intitulada “Lei da estruturação dos Municípios” e assinada por D. Pedro I,
determina que, entre outros saberes e deveres, a limpeza e a iluminação
das ruas devem ser realizadas, assim como os reparos das calçadas e
postes, e quaisquer outras construções que tragam benefícios e bem
estar aos habitantes (BRASIL, 1828). Com a nova lei de 1828, as preocu-
pações com a salubridade pública são afloradas e passam a ter maior
discussão em torno de novos locais de sepultamento dos habitantes,
que até então eram realizados no interior das igrejas sob seus assoalhos
e após a lei foram proibidos.
De acordo com o observado, tais vertentes vão além de simples
medidas de embelezamento das cidades, elas perpassam pelas infra-
estruturas físicas, econômicas e sociais de todo o sistema já instaurado.
Aqui, devemos lembrar a importância que essas leis possuem nas no-
ções de ordem, higiene, urbanidade, civilidade e saneamento nos alicer-
ces para a construção e reestruturação das cidades.
Em Araraquara, o cumprimento da lei de 1828, a respeito do
cemitério, foi adiado até o ano de 1835, quando finalmente foi escolhido
um novo local para sepultamento dos habitantes. A postergação da es-
colha do novo local de sepultamos foi devido ao desgosto da população
com a construção do cemitério fora dos limites do município e a falta de
verba municipal, que culminou em uma carta resposta ao oficio recebido
do Presidente da Província:

[...] respondendo ao Exmo. Presidente, que nêste município não há fundos, e


que os rendimentos desta Câmara apenas chegam para os seus empregados;
e diga-se mais que se passa a marcar o lugar; aqui, por enquanto se continua
a sepultar os corpos no cemitério existente fora do recinto do templo, porém,
unido à Matriz, até se poder preparar no outro lugar.
(ALMEIDA, 1948, p. 16).

43
Araraquara não sepultava mais os corpos dentro do templo, mas
continuaria com os sepultamentos em terreno adjacente a Matriz de
São Bento, encravada no meio da cidade, até que pudessem custear a
construção de um novo local. Não nos cabe debater aqui os possíveis
problemas resultantes da localização do cemitério até então existente,
mas vale ressaltar que no pátio da Matriz corria um córrego denomina-
do “Córrego da Servidão” e o mesmo forneceu água à população por 45
anos (figura 2).

Figura 2 - Fotografia pertencente ao acervo do Museu de Araraquara, onde se vê a ter-


ceira Matriz de São Bento e o Córrego d’água, ano de 1885./

Figura 3 - Montagem com


gravura publicada em Londres,
em 1866, representa o risco do
consumo de água fornecida por
uma fonte contaminada./

44
Em 1885, a Companhia Paulista chega a Araraquara e traz consi-
go o desenvolvimento da região, até então considerada “boca do sertão”,
através da exportação do café para várias outras localidades do país e,
com isso, importa a febre amarela para a cidade.
Onze anos mais tarde, em 1896, a situação sanitária foi agrava-
da com a inauguração da Companhia Estrada de Ferro Araraquara (EFA),
com sua primeira locomotiva circulando em 1898 (BERGAMIM, 2015).
Com a implantação da ferrovia km 0, uma grande rede de apoio foi
instalada ao seu redor aumentando o fluxo de pessoas (nativos e es-
trangeiros) e o fluxo econômico, culminando na expansão urbana com
a inserção de novas vilas e cortiços. A nova dinâmica social facilitou a
disseminação de doenças, antes endêmicas, através dos trilhos.
A febre amarela já assolava o interior paulista antes de chegar a
Araraquara. Tendo isso em vista, a seção técnica da Câmara Municipal,
em 28 de março de 1893, aprovou a criação do Código de Posturas ou Lei
Orgânica do Poder Executivo Municipal para combater as epidemias que
por ventura viessem atingir a cidade. O projeto não teve continuidade,
pois em 1895 a epidemia alcançou Araraquara e o governo municipal o
substituiu por uma Comissão Sanitária para restabelecer a salubridade
da cidade (TELAROLLI JUNIOR, 1993).
Assim como todas as grandes moléstias, a febre amarela aco-
meteu a sociedade araraquarense em vários níveis estruturais. Devido
a sua alta taxa de letalidade, foi responsável pela desestruturação de
todo o sistema político, social, administrativo e econômico da cidade. O
governo, regido pelo coronelismo, minimizava a propagação da notícia e
não incentivava a imprensa a divulgar os casos relatados com o intuito
de não causar pânico na população. Somente após a morte de figuras
importantes da sociedade araraquarense, as autoridades não puderam
mais esconder a calamidade dos casos e soaram o alarme para o êxodo
da cidade (ALMEIDA, 1948).
Com o êxodo em massa da população de Araraquara, a doença
foi transportada para outras localidades através de pacientes infectados,
colaborando para a disseminação pelo planalto do oeste paulista. Aos
poucos Araraquara transfigurou-se em uma cidade praticamente aban-
donada com o fechamento de todas as casas de comércio e o êxodo de
grande parte da população, deixando seus animais para morrerem por
inanição (agravando a situação de higiene pública), lixo acumulado no
quintas, o que favorecia na proliferação dos mosquitos em recipientes
com água parada. Perante esses fatores a sede administrativa foi transfe-
rida para Américo Brasilense.

O ano de 1895 chega ao fim contabilizando 228 mortes


registradas por febre amarela.

45
A Comissão Sanitária adotou diversas medidas de saneamento
urbano no decorrer dos anos da epidemia (1895-1898). Entre elas cita-
mos as mais significativas: construção do sistema de abastecimento
de água potável; coleta de lixo; desinfecção das ruas e casas de forma
compulsória; isolamento compulsório da população infectada no antigo
lazareto de variolosos – reaberto para atender as necessidades da epide-
mia; plantio de mil eucaliptos nas ruas da cidade para purificação do ar;
construção do novo cemitério em 18961 (um destinado à febre amarela
e outro às mortes de outras procedências); tamponamento das foças
sanitárias compreendidas como contaminadas - foças perto de focos da
doença; aplicação de cal virgem nas vias públicas, nos quintais e hortas,
e caiação compulsória de casas e muros (TELAROLLI JUNIOR, 1993). O
melhoramento urbano se torna um aliado na contenção da epidemia,
além da ampla fiscalização praticada pela Comissão de Saneamento na
cidade de Araraquara através da busca ativa dos infectados ocultos.

1 A situação era caótica, não muito diferente da pandemia hoje enfrentada. Telarolli
Junior(1993) aponta em sua tese as dificuldades enfrentadas para o sepultamento e a
implantação de especificações técnicas sobre o translado dos corpos, especificações
dos ataúdes e dimensões das covas – onde, por sua vez, eram enterrados mais de um
corpo em um só caixão.
46
Araraquara após Febre Amarela./

Após o término da epidemia, a cidade passou por mais uma


remodelação com o objetivo de subtrair da memória dos habitantes os
anos suprimidos pela febre amarela embates políticos e sociais de ex-
trema violência2 . A remodelação teve como foco principal a parte central
da cidade, que recebeu luz elétrica em 1908, as ruas principais foram
calçadas com paralelepípedo e a arborização das calçadas foi realizada.
Além da remodelação para o embelezamento, a cidade recebeu melho-
rias nos equipamentos de serviços à população: através da expansão da
rede de abastecimento de água (1911), prolongamento da estrada de ferro
(1908); construção do Banco de Araraquara (1911); do Teatro Municipal e a
Beneficência Portuguesa (1914), do Hotel Municipal (1916), da Maternidade
e Gota de Leite (1916), do Asilo de Mendicidade (1917), do Ginásio Munici-
pal (1920), da Escola de Farmácia e Odontologia e a Fábrica de Laticínios
(1923); o Colégio Progresso (1924); a sede social do Clube Araraquarense
(1925), entre tantos outros. Na economia, foram suspensas as taxas e ju-
ros para incentivar os comerciantes a retomada de seus estabelecimen-
tos.
O cemitério central, lacrado até então, foi reaberto em 1906. En-
quanto o cemitério de isolamento foi abandonado e fechou seus portões
em 1908.
A economia baseada na produção do café continuou sendo a
principal fonte de renda, movimento e expandindo a vida urbana para
atender as necessidades de uma população que contava com 37.000
habitantes em 1910, em grande maioria estrangeira ou filhos de estran-
geiros – mesmo com a suspensão da imigração apoiada pelo Governo do
Estado.
As medidas de higiene pública foram mantidas e outras implan-
tadas por dispositivos de leis municipais com o passar dos anos, tais
como:

[...] proibição de cães soltos pelas ruas da cidade, sob pena de sacrifício do ani-
mal por um fiscal municipal. No ano seguinte fora nomeado um médico municipal
para cuidar da vacinação no município e da fiscalização da higiene em geral, e
prover os pobres de assistência médica.
(TELAROLLI JUNIOR, 1993, p.415).

2 Os Álbuns de 1915 e 1948 relatam acontecimentos sociais e políticos violentos na


cidade de Araraquara no mesmo período que a febre amarela assolava a comunidade.
47
Em 1902, o Código de Posturas foi retomado e publicado.

Além da febre amarela outra epidemia assolou Araraquara, porém


com menor violência que sua antecessora. A varíola atingiu a cidade em
três surtos, em 1905, 1911 e em 1913, contabilizando menos de 20 mortos
em cada um.
O saldo de mortes pela doença durante os quatro surtos consecutivos
de febre amarela (tabela 1), somam números elevados visto à população
estimada da época:
• População em 1837: 2.764 habitantes (antes da epidemia);
• População em 1874: 7.128 habitantes, sendo 5.711 livres e 1.417 es-
cravos (antes da epidemia);
• População em 1886: 9.500 habitantes, sem registro de livres e
escravos (ferrovia);
• População em 1900: 28.900 habitantes, sendo 5.780 residentes na
sede municipal e 23.120 nas fazendas ou núcleos urbanos vizinhos (ferro-
via e pós-febre amarela);
• População em 1902: auge da produção cafeeira, a população da
sede municipal era de apenas 4.046 habitantes.

TOTAL DE ÓBITOS POR FEBRE AMARELA EM ARARAQUARA (1895-1898)


ANO
MÊS
1895 1896 1897 1898

JANEIRO - 70 - -
FEVEREIRO - 25 - -
MARÇO - 35 - 5
ABRIL 14 34 - 20
MAIO 24 26 4 59
JUNHO 42 7 22 10
JULHO 4 1 - 2
AGOSTO 2 - - -
SETEMBRO 4 - - -
OUTUBRO 14 1 - -
NOVEMBRO 48 - - -
DEZEMBRO 80 - - -
TOTAL 228 199 26 96

TOTAL GERAL 549

Tabela 1 - Tabela de óbitos por febre amarela no município de Araraquara – 1895/1899./


Fonte: TELAROLLI JUNIOR, 1993, editada pela autora (2021)

48
Em 49 anos, o crescimento populacional de Araraquara foi de
apenas 4.364 habitantes, entre livres e escravos. Um salto na linha
temporal para o ano de 1886, um ano após a chegada da Cia. Paulista à
cidade, o município soma 2.385 habitantes a mais em apenas 12 anos,
crescimento que representa 54,65% do aumento populacional de 49
anos, números que evidenciam a importância da ferrovia no crescimento
e desenvolvimento de Araraquara. De 1886 até 1900, França (1915) apon-
ta um crescimento de 19.400 habitantes. Porém, precisamos levar em
consideração o número de habitantes residentes na sede municipal, que
é de apenas 5.780 moradores contra 23.120 residentes nas fazendas e
núcleos urbanos vizinhos. Nesse período a área rural, somada aos vilare-
jos adjacentes, obteve maior crescimento populacional devido ao êxodo
da seda municipal.
De acordo com os registros encontrados, os surtos da doença fo-
ram classificados por períodos e não por anos. De abril a junho de 1985,
Araraquara enfrentava a primeira onda da doença, contabilizando, oficial-
mente, 80 mortes. O segundo teve início em outubro de 1895 até junho
de 1896, classificada como a pior onda da doença, ceifando 339 vidas. O
terceiro, e mais leve dos surtos, contabilizou 26 mortes decorrentes da
febre amarela. Por último, e não menos alarmante, o quarto surto re-
gistrou 93 vidas perdidas para a febre amarela. A última vítima fatal da
doença na cidade foi registrada em 1899. Foram 549 vidas perdidas, o
que representa 2,37% dos habitantes de Araraquara.
Entre adultos e crianças, registrou-se 152 óbitos do sexo feminino
(27,6%) e 381 do sexo masculino (69,6%), aqui identificados como a po-
pulação mais vulnerável por motivos sociais pertinentes à época. Confor-
me apresentado na tabela 2, que identifica a população mais vulnerável,
a faixa etária com maior número de óbitos foi a da população ativa, dos
20 anos aos 40 anos, com 234 óbitos (42,9%).

% DE ÓBITOS POR FEBRE AMARELA EM ARARAQUARA (1895-1898): POR SEXO E FAIXA ETÁRIA

SEXO % FAIXAS ETÁRIAS %

FEMININO 27,9 < 1 ANO -


MASCULINO 69,6 1 A < 5 ANOS 2,3
IGNORADO 2,5 5 A < 10 ANOS 1,3
10 A < 20 ANOS 10,7
20 A < 30 ANOS 23,9
30 A < 40 ANOS 19,0
Número total de óbitos 549 40 A < 50 ANOS 16,8
50 A < 60 ANOS 8,3
60 ANOS E + 6,5
IGNORADO 11,2

Tabela 2 - Tabela de óbitos por febre amarela no município de Araraquara – 1895/1899


(sexo e faixa etária)./
Fonte: TELAROLLI JUNIOR, 1993 - editada pela autora (2021)
49
COVID-19: 2º e 3º lockdowns./

Aqueles que não aprendem com o passado estão condenados a repetir seus
erros […]. Em poucas áreas esta assertiva é tão verdadeira quanto na saúde
pública. Quem quer que se tenha dedicado a esta tão ingrata quanto fascinan-
te atividade vive sob a permanente impressão do déjà vu; e pior, aquilo que foi
visto, e que é visto, não é agradável. A cíclica volta das pestilências ao Brasil,
ainda que em circunstâncias sempre variáveis, é uma prova disto.
(SCLIAR,1993 in RIBEIRO, 2017).

135 anos se passaram desde o primeiro caso registrado de febre


amarela na cidade de Araraquara até a nova crise do sistema de saúde,
agora com proporções avassaladoras, assim como Scliar (1993) relata: “o
que aconteceu e continua acontecendo não é agradável, a volta é cíclica,
e a sensação de déjà vu constante para aquelas que possuem a memória
resguardada é uma sombra que não se dissipa”. Muito além de uma epi-
demia, a nova doença atinge todos os continentes, caracterizando uma
pandemia ainda em curso.
A Araraquara de 1895 e a atual Araraquara, possuem cenários
diferentes e outras tecnologias, onde tudo pode intensificar a velocidade
de propagação e mutações de doenças tão distintas. Uma está ligada
diretamente ao acúmulo de água e dejetos em recipientes que viabiliza a
criação do vetor Aedes aegypti, responsável por propagar o vírus quando
estão infectados; a outra uma doença infecciosa causada por um coro-
navírus (SARS-CoV-2) onde os seres humanos são os vetores da disse-
minação por contato direto, indireto (através de superfícies contamina-
das) ou próximo (gotículas respiratórias). Assim como a febre amarela, a
COVID-19 será mais um capítulo de uma longa história de doenças que
correram o mundo, a exemplo da Peste Negra (1347-1351) e da Gripe Es-
panhola (1918).
Entre tantas diferenças, há semelhanças. Assim como a febre
amarela alcançou o planalto paulista pelos trilhos da ferrovia, a COVID-19
foi disseminada entre os continentes pelos meios de transportes, por-
tos, aeroportos, rodovias e muitos outros. Em Araraquara, a febre ama-
rela eclodiu nas áreas envoltórias da EFA e Vila Xavier; a COVID-19, pela
amostra de concentração de casos fornecida pela prefeitura municipal
(figura 3), guarda maior número de infectados na área central da cidade,
proximidades da estação e Vila Xavier, com respectivamente 1.729 e 1.442
casos confirmados em agosto de 2021. A COVID-19 segue o mesmo rumo
de propagação que a febre amarela em Araraquara: propagação em áreas
próximas a meios de transporte de grande fluxo, áreas comerciais de in-

50
tensa circulação e segue se alastrar por toda cidade. O sistema doença-
transportes, antes citado, ganha um novo agente: o adensamento urbano
das cidades contemporâneas.

Figura 4 - Mapa de distribuição dos casos de COVID-19 pela cidade de Araraquara.


Fonte: Boletim Completo do Coronavírus do Estado de São Paulo - editada pela autora
(2021)./

A COVID-19 alcançou Araraquara em 31 de março de 2020 e logo


no primeiro dia foram 28 suspeitas de infecção, 3 casos confirmados e
1 morte registrada, um idoso de 84 anos. Diferente da febre amarela, a
infecção por COVID-19 foi amplamente divulgada pela imprensa e muitas
vezes usada como munição política nas relações entre município e fede-
ração. Nicolas de Condocert, filósofo iluminista que viveu entre os anos
de 1743 a 1794, afirmava que em situações propensas às disputas e ten-
sões “são os lobos que nos falam” (LIMA, p.37, 1898). Um pensamento
com mais de 227 anos que não perde a essencialidade e atualidade da
questão: em momentos de crise a verdadeira natureza é revelada pelas
ações.
Entre disputas políticas que não nos cabe aqui debater, o gover-
no de Araraquara estrutura um plano de posturas públicas coordenadas,
com o apoio instituições públicas e privadas, para conter o avanço da
doença que antecederam o segundo lockdown, primeiro da COVID-19.
Entre tais medidas de contenção, podemos citar o hospital de campa-
nha em parceria com a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos
Dias, localizada ao lado da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Vila
Xavier; a formação de equipes de bloqueio para busca ativa dos infecta-
dos e testagem, enviando pacientes e familiares para quarentena; distri-
buição de kits de higiene para a população vulnerável; monitoramento de

51
pacientes infectados em tratamento domiciliar; envolvimento e auxilio da
guarda municipal para a conscientização da população para permanece-
rem em suas residências.
Com um histórico de combate a moléstias vivo na memória, Ara-
raquara promove um resgate às posturas públicas utilizadas no combate
à epidemia de febre amarela de 1895. As ações foram reformuladas e
aplicadas em conjunto com estratégias atuais à nova ambiência urbana.
O lockdown, no entanto, foi inevitável. Após a confirmação de uma nova
variante e o aumento massivo de casos confirmados da doença, Arara-
quara decreta o lockdown total em 21 de fevereiro de 2021 com duração
de 10 dias. O município foi o primeiro a adotar o confinamento com me-
didas restritivas severas, que incluíam a suspenção do transporte público
e o fechamento dos supermercados por uma semana.

Figura 5 - Você é feliz e nem sabe, margem do leito férreo da EFA em Araraquara. Fonte:
acervo dos autores e editada pela mesma (2021)./

De acordo com dados apresentados pela Vigilância Epidemiológi-


ca de Araraquara em parceria com o Urbie - Grupo de Inovação e Exten-
são em Engenharia Urbana (2021), o cenário epidemiológico até a data
de fechamento contabilizava 171 óbitos, 13.454 casos confirmados, com
ocupação de 98% dos leitos de UTI e 97% da enfermaria.
O ano de 2021, em apenas 2 meses, vitimou 78% do total de óbitos do
ano anterior (tabela 3) e com a superlotação do sistema de saúde, o
lockdown foi uma medida emergencial para conter uma nova variante
altamente contagiosa.
Com o fechamento mais restritivo da cidade, ajustes foram rea-
52
lizados para evitar o esgotamento de recursos dos habitantes, entre eles
a liberação do sistema de retirava nos supermercados. Já o transporte
público voltou ao funcionamento após 12 dias do decreto com lotação
reduzida.
Para uma breve comparação entre posturas municipais adotadas,
destacamos Bauru, que assim como Araraquara é classificada como uma
cidade de médio porte, distante 131 km da cidade estudada. A adoção de
medidas restritivas diferentes reflete no quantitativo de casos confirma-
dos, óbitos e letalidade em ambos os municípios.
Em 1 ano de pandemia (2020), Araraquara registrou 8.327 casos confir-
mados e 92 mortes, que representam respectivamente 35,27 infectados
a cada 1.000 habitantes e uma taxa de letalidade de 1,10%. De acordo
com o senso realizado em 2020 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), a população estimada de Araraquara era de 238.339
habitantes, ou seja, 3,49% da população testaram positivo para COVID-19
e 0,03% da população veio a óbito.
O lado oposto do comparativo, ainda analisando o ano de 2020,
temos Bauru que registrou 20.724 casos confirmados e 299 óbitos; 54,63
infectados a cada 1.000 habitantes e a taxa de letalidade foi de 1,44%.
Segundo o IBGE (2020), Bauru possuía uma população estimada de
379.297 habitantes (140.958 habitantes a mais que Araraquara), sendo
5,46% infectados e 0,07% de vítimas. Deve-se lembrar que a densidade
demográfica de Bauru é de 515,12 hab/km ², contra 207,90 hab/km ² de
Araraquara.
Os números de casos confirmados em Bauru no período de
01/01/21 a 02/03/21 representam 4,5 meses dos 12 meses de contágio do
ano de 2020, ou seja, a pandemia avançou 4 meses em 2 com conse-
quente aumento da letalidade, porém, não ultrapassando o número de
óbitos. A análise do mesmo período em Araraquara apresenta um cená-
rio alarmante, a pandemia avançou 9,5 meses em apenas 2 meses com
relação ao ano de 2020; a porcentagem da letalidade da doença aumen-
to e o número de óbitos ultrapassou o número apresentado em 2020,
tabela 3.
COMPARAÇÃO EPIDEMILÓGICA
INÍCIO ATÉ 31/12/2020

ESFERA CASOS POR


CASOS
ÓBITOS 1.000 LETALIDADE
CONFIRMADOS
HABITANTES

GLOBAL 82.676.050 1.806.072 10,63 2,18%


BRASIL 7.675.781 194.976 36,32 2,54% 01/01/2021 a 02/03/2021
CASOS POR
SÃO PAULO CASOS
(ESTADO)
1.462.297 46.717 33,21 3,19% CONFIRMADOS
ÓBITOS 1.000 LETALIDADE
HABITANTES

ARARAQUAR
A
8.327 92 35,27 1,10% 6.527 125 27,38 1,91%
BAURU 20.724 299 54,63 1,44% 7.722 120 20,35 1,55%

Tabela 3 - Tabela de comparação Epidemiológica – Início até 02/03/2021./


Fonte: Boletim Completo do Coronavírus do Estado de São Paulo - editada pela autora
(2021)
53
Passados os 15 dias do término do lockdown, a média móvel de
contágios por COVID-19 registrou uma queda de 74% nos casos, 21% nas
internações e 42% nos óbitos. Os números em declive, consequentes do
fechamento mais restritivo, estabilizaram os casos de novas infecções
por aproximadamente 3 meses. No dia 20 de junho de 2021 um novo
lockdown foi decretado em decorrência do aumento de casos devido a
flexibilização, conforme gráfico 1.

Gráfico 1 - Curva de contágio após o segundo lockdown./


Fonte: Boletim Completo do Coronavírus do Estado de São Paulo - editada pela autora
(2021).

Os efeitos do fechamento total de uma cidade são sentidos em


várias escalas sociais. No caso de Araraquara, que possui sua economia
voltada à agroindústria, o cenário é resiliente, tal como um elástico leva-
do ao ponto de ruptura, sofre deformidades, porém consegue se adaptar
conforme a deformação regride.
De acordo com os registros encontrados, é possível identificar a
população mais vulnerável à contaminação e óbito pelo novo coronavírus
em Araraquara. Foram 92 vidas perdidas e 8.327 casos confirmados no
ano de 2020; entre adultos e idosos, 35 do sexo feminino e 57 do sexo
masculino vieram a óbito, sendo a faixa etária dos acima de 70 anos com
maior índice de óbitos registrados (28 homens e 21 mulheres). Por outro
lado, a população mais vulnerável ao contágio foi a população ativa de 2
faixas etárias, dos 20 aos 29 e dos 30 aos 39 anos, com foco na popula-
ção do sexo feminino, conforme tabela 4. É importante ressaltar que não
houve registro de mortes nas faixas etárias iniciais em nenhum sexo no
ano de 2020.
54
% DE ÓBITOS E CONTÁGIO POR COVID-19 EM ARARAQUARA:
POR SEXO E FAIXA ETÁRIA

IDADE 2020
CONFIRMADOS ÓBITOS
FEM. MASC. FEM. MASC.

< 1 ANO 7 0,08% 15 0,18% - - - -


1 A < 4 ANOS 48 0,58% 67 0,80% - - - -
5 A < 9 ANOS 49 0,59% 41 0,49% - - - -
10 A < 19 ANOS 269 3,23% 191 2,29% - - - -
20 A < 29 ANOS 1.012 12,15% 782 9,39% - - - -
30 A < 39 ANOS 1.055 12,67% 938 11,26% 2 2,17% - -
40 A < 49 ANOS 868 10,42% 750 9,01% 2 2,17% 5 5,43%
50 A < 59 ANOS 581 6,98% 535 6,42% 2 2,17% 6 6,52%
60 A < 69 ANOS 371 4,46% 302 3,63% 8 8,70% 18 19,57%
> 70 ANOS 271 3,25% 175 2,10% 21 22,83% 28
30,43%
TOTAL 1 4.531 54,41% 3.796 45,59% 35 38,04% 57 61,96
TOTAL 2 8.327 - 100% 92 100%

Tabela 4 - Tabela de óbitos e contágio COVID-19 no ano de 2020 no município de


Araraquara./
Fonte: Boletim Completo do Coronavírus do Estado de São Paulo - editada pela autora
(2021)

A amostra do ano de 2021 não é conclusiva, mas é possível iden-


tificar que o comportamento do contágio e o registro de óbitos seguem a
mesma linha do ano anterior. A população com maior letalidade continua
com foco no sexo masculino, porém há uma inversão na faixa etária dos
70 acima, antes os homens registravam maior número de óbitos, ago-
ra as mulheres ultrapassaram a contagem. Já nos contágios não houve
inversão em nenhum dos parâmetros da população alvo com maior vul-
nerabilidade (tabela 5).
55
% DE ÓBITOS E CONTÁGIO POR COVID-19 EM ARARAQUARA (2021):
POR SEXO E FAIXA ETÁRIA

2021 (ATÉ 19/08)


CONFIRMADOS ÓBITOS
IDADE FEM. MASC. FEM. MASC.

< 1 ANO 17 0,06% 23 0,08% 0 0,00% 0 0,00%


1 A < 4 ANOS 179 0,61% 218 0,75% 0 0,00% 0 0,00%
5 A < 9 ANOS 226 0,77% 245 0,84% 0 0,00% 0 0,00%
10 A < 19 ANOS 1193 4,09% 1.107 3,79% 1 0,18% 0 0,00%
20 A < 29 ANOS 2.925 10,02% 2.694 9,23% 7 1,23% 2 0,35%
30 A < 39 ANOS 3.317 11,36% 3.140 10,76% 18 3,16% 20 3,51%
40 A < 49 ANOS 2.835 9,71% 2.615 8,96% 27 4,75% 45 7,91%
50 A < 59 ANOS 2.026 6,94% 1.930 6,61% 37 6,50% 74 13,01%
60 A < 69 ANOS 1.354 4,64% 1.268 4,34% 54 9,49% 84 14,76%
> 70 ANOS 1.057 3,62% 825 2,83% 111 19,51% 89 15,64%

TOTAL 1 15.129 51,82% 14.065 48,18% 255 44,82% 314 55,18%


TOTAL 2 29.194 100% 569 100%

Tabela 5 - Tabela de óbitos e contágio por COVID-19 em Araraquara (2021) – por sexo e
faixa etária./
Fonte: Boletim Completo do Coronavírus do Estado de São Paulo - editada pela autora
(2021)

O cenário pós-febre amarela em Araraquara é o possível reflexo


de uma sociedade baseada no patriarcado, o homem como provedor
do sustento familiar e da vida economicamente ativa da cidade; deste
modo, os óbitos registrados pela doença foram concentrados na po-
pulação ativa do sexo masculino. Porém, a Araraquara que enfrenta a
COVID-19, possui parâmetros indicativos da mudança do comportamento
social no decorrer do último século, onde a mulher passa a integrar a
vida econômica ativa da cidade e figura no maior número de contágio da
população economicamente.

56
Urbanismo na prevenção de epidemias:
um olhar para a cidade./

O desafio ao repensar a cidade e suas práticas urbanas está


enraizado no dia-a-dia da população, uma sociedade voltada ao mo-
delo “carrocêntrico”, agravado ainda mais pela pandemia da COVID-19,
se mostrou insustentável em longo prazo. Para Rolnik, em entrevista a
Hailer (2021), o espaço público pertence a todos, porém não pode ser
capturado em grande parte pelos automóveis, caminhões e todo tipo de
veículo motorizado. Observamos as reformas urbanas do século passa-
do, com suas grandes avenidas rasgadas para acolher o desenvolvimento
acelerado proporcionado pela industrialização, não se trata apenas de
uma demanda por mobilidade, é principalmente uma demanda por saú-
de. A análise de Rolnik segue a vertente urbanística em defesa da vida, da
vida consciente e compatível da cidade com a sociedade e com o meio
ambiente, existimos porque coexistimos em simbiose. Mas até quando a
equação de equivalências irá conseguir fechar um resultado? Até quan-
do resistiremos em condições incompatíveis com o desenvolvimento
sustentável? A sociedade está adoecendo lentamente, com ciclos cada
vez mais diminutos entre epidemias e pandemias. Respostas para essas
questões formaria um livro à parte, não nos prolongaremos.

[...] o modelo carrocêntrico está nos matanto, matando nos acidentes de trân-
sito e na poluição.
(ROLNIK, 2021 in HAILER, 2021).

Uma morte agonizante, lenta e evitável. A chamada utopia urba-


nística de Da Vinci sobre cidades caminháveis e conectadas com todos
os espaços urbanos não é mais uma utopia e sim uma realidade a ser
empregada de forma progressiva, munida por planos de ações, diretrizes,
prazos e envolvimento da comunidade. O que nos faz retomar a cidade
objeto deste trabalho, Araraquara, e o Projeto de Lei nº 247/2018, “Arara-
quara 2050”.
O plano Araraquara 2050, escrito em setembro de 2018, possui
o objetivo de “promover um macroplanejamento estratégico do desen-
volvimento do município, de curto, médio e longo prazo, respaldado no
potencial econômico, ambiental e social”, com o envolvimento de insti-
tuições de ensino, entre elas a Universidade Estadual Paulista – UNESP,
no intuito de promover um planejamento organizado e participativo de
um modelo de “cidade compacta, integrada e policêntrica” sem aban-
donar suas raízes fincadas no passado ferroviário, porém com uma nova
57
frente à economia sem deixar de lado questões sociais e ambientais que
envolvem o planejamento e construção de uma cidade funcional, que
visa a “redução das desigualdades”. Ressaltamos que o plano foi escri-
to antes do início da pandemia por COVID-19, mas pode ser entendido
como um plano de ação mitigatório para os possíveis efeitos estruturais
que a doença pode vir a deixar como passivos existentes.

Que cidade queremos e quais são os desafios de curto, médio e longo prazos
para Araraquara? Quais as dificuldades que persistem e os obstáculos ainda a
serem superados para o alcance de um desenvolvimento sustentável? Como
enfrentar os passivos existentes? Como avançar na inclusão social? Como criar
ambientes ainda mais propícios para o desenvolvimento, onde crescimen-
to econômico, justiça social e proteção do meio ambiente sejam fios que se
entrelaçam no tecido de um futuro comum, com maior coesão social? Como
transformar espaços públicos em espaços vivos da cidade?
(ARARAQUARA, 2018).

Estas são as indagações que o plano nos traz, seguindo os


preceitos da Agenda de 2030 que estabelece 17 objetivos de Desenvol-
vimento Sustentável (ODS), a fim de suprir as necessidades da geração
atual, sem comprometer os recursos da geração futura com o uso
sustentável do ecossistema aliado a infraestrutura, saúde e economia
inclusivas.

58
Algumas considerações./

A relação urbanismo e doenças remontando a era do renasci-


mento e seus grandes idealizadores, a exemplo de Leonardo Da Vinci
com o esboço da “cidade ideal” ou “utopia urbanística” e o projeto de ca-
nais dedicados à navegação e saneamento para combater a peste negra
na Itália do século XV. Seis séculos adiante e o tema permanece, pois
a cidade como organismo vivo cria novos desenhos e redesenha suas
formas antigas almejando o melhor desdobramento para a mobilidade e
saneamento. A busca por espaços urbanos limpos e pela melhor camin-
habilidade, entre tantas outras possibilidades, é constante e infindável.
Como arquitetos e, acima de tudo, urbanistas, devemos nos preocupar
com o bem estar da sociedade, não somente de um determinado grupo
social. É preciso repensar o modelo de gestão, dos projetos desenvol-
vidos, conhecer e fazer conhecer a cidade para que esta se projete em
longo prazo através de um outro olhar. O planejamento urbano deve ser
plural e policêntrico, não uma constaste medida mitigatória em contra-
partida de uma epidemia ou pandemia. A chamada utopia urbanística de
Da Vinci sobre cidades caminháveis, salubres e conectadas com todos
os espaços urbanos não é mais uma utopia e sim uma realidade a ser
empregada de forma progressiva, munida por planos de ações, diretrizes,
prazos e envolvimento da comunidade.
59
Referências Bibliográficas./

ALMEIDA, Nelson Martins de. Álbum de Araraquara: 1948. Araraquara:


Prefeitura Municipal de Araraquara. 1915. Disponível em: <https://www.
camara-arq.sp.gov.br/noticias/album-de-araraquara-1948,02-09-2016>.
Acesso em 05 abr. 2021.

ARARAQUARA. Projeto de Lei Nº 247/2018, de 14 de setembro de 2018.


Institui o Programa Araraquara 2050 e dá outras providências. Disponível
em: <http://consulta.camara-arq.sp.gov.br/ProjetosLei/247-2018>. Acesso
em set. 2021.

BERGAMIM, Francisco de Assis. E era assim... Abrindo as cortinas de ferro


das memórias dos trabalhadores das oficinas da E.F.A. Dissertação (Mes-
trado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente) - Centro Univer-
sitário de Araraquara - UNIARA, Araraquara - SP, 2015. 267 p. Disponível
em: <https://m.uniara.com.br/arquivos/file/ppg/desenvolvimento-terri-
torial-meio-ambiente/producao-intelectual/dissertacoes/2015/francis-
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BRASIL. Lei de 1º de outubro de 1828. Dá nova fórma ás Camaras Muni-


cipaes, marca suas attribuições, e o processo para a sua eleição, e dos
Juizes de Paz. Brasília. Presidência da República do Brasil, 1828. Dispo-
nível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-1-10-1828.
htm#:~:text=LEI%20DE%201%C2%BA%20DE%20OUTUBRO,e%20dos%20
Juizes%20de%20Paz.&text=Art.,sete%2C%20e%20de%20um%20Secreta-
rio.>. Acesso em 05 abr. 2021.

COSTA, Luiz Augusto Maia. Theodoro Sampaio, o Código Sanitário do


Estado de São Paulo de 1894 e as exigências da modernidade. Risco
Revista De Pesquisa Em Arquitetura E Urbanismo (Online), vol. 14, num.
2, 2016, p. 15-22. Disponível em:<https://doi.org/10.11606/issn.1984-4506.
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FRANÇA, Antônio M. Álbum de Araraquara: 1915. Araraquara: Prefeitu-


ra Municipal de Araraquara. 1915. Disponível em: <https://www.dropbox.
com/s/hwba1v8eyzewrk4/ALBUM-1915.PDF?dl=0>. Acesso em 05 abr.
2020.

LIMA, Olympio. O Crime de Araraquara. Reedição: Tito de Abreu Casso-


ni; revisão de Amanda Carneiro; capa Manoela Cazzoni. 1 ed. Araraquara:
[s.n.], 2020.
60
RIBEIRO, Maria Alice Rosa. Febre Amarela... Uma das histórias sem fim.
Com Ciência Revista Eletrônica de Jornalismo (Online), vol. 189, 2017.
Disponível em:<https://www.comciencia.br/febre-amarela-uma-das-his-
torias-sem-fim/>. Acesso em 20 jun. 2021.

HAILER, Marcelo. Raquel Rolnik: O modelo carrocêntrico da cidade está


nos matando. Fórum, 2021. Disponível em: < https://revistaforum.com.br/
noticias/raquel-rolnik-cidade-modelo/#>. Acesso em 25 set. 2021.

TELAROLLI JUNIOR, Rodolpho. Poder e Saúde: A república, a Febre Ama-


rela e a Formação dos Serviços Sanitários no Estado de São Paulo. Tese
(Doutorado em Medicina Preventiva) – Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade de Campinas - Unicamp, Campinas - SP, 1993. 467 p. Dispo-
nível em: < http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/313818?mode=-
full>. Acesso em 15 mar. 2020.

JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. Tradução: Carlos S.


Mendes Rosa; revisão da tradução Maria Estela Heider Cavalheiro; revisão
técnica Cheila Aparecida Gomes Bailão. 3 ed. São Paulo: Editora WMF
Martins Fontes, 2011.

61
03./ Heber Macel Tenório Vasconcelos

Um bairro que
desliza: vazios
inconclusos.
62
Resumo./
Este capítulo está organizado em três momentos: Estrias de
Jaraguá; o Jaraguá que Desliza; e, Inconclusões. Foi escrito sob len-
tes pós-críticas e abordagem qualitativa, com objetivo de propor uma
reflexão crítica dirigida à importância da existência de inconclusões em
nossa escrita acadêmica, em nosso modo de ler, interpretar e pensar
Arquitetura e Urbanismo. Para tanto, foi realizada revisão bibliográfica e
aplicado o método da cartografia depreendido de Deleuze e Guattari e de
Eduardo Passos, Virgínia Kastrup e Liliana da Escóssia (2009). O capítulo
conclui deixando os seguintes questionamentos: quando aprenderemos
a amar o que não concluímos? Quando amaremos nossas inconclusões?
Quando aprenderemos com o processo e não com o fim?

Palavras-chave: Jaraguá, Liso e Estriado, Inconclusões, Maceió, Cartogra-


fia.
63
Introdução./
Este capítulo está organizado em três momentos: Estrias de Ja-
raguá; o Jaraguá que Desliza; e, Inconclusões. As ideias de deslizamento
e de estriagem que serão abordadas foram derivadas de “O liso e o es-
triado” contido no livro Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia de Deleuze
e Guattari (2011). Em Estrias de Jaraguá – Conclusões e Preenchimentos,
buscarei evidenciar como a história tida como oficial pode reduzir es-
paços, produzir estriamentos e ser entendida com efeito de verdade. Já
no segundo momento, em O Jaraguá que Desliza – Vazios Inconclusos,
apresentarei o resultado de minha cartografia no Bairro. A referida car-
tografia foi construída em forma de carta e postais e contém o que me
atravessou como espaço liso, molecular e não estratificado. Tal cartogra-
fia foi desenvolvida com base em Deleuze e Guattari e no livro Pistas do
método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetivida-
de, organizado por Eduardo Passos, Virgínia Kastrup e Liliana da Escóssia
(2009). Por fim, em Inconclusões, proponho um exercício crítico dirigido à
importância da existência de inconclusões em nossa escrita acadêmica,
no modo de pensarmos projeto e de lermos, interpretarmos e pensar-
mos Arquitetura e Urbanismo.1

1 Arquiteto e Urbanista formado Universidade Federal de Alagoas – UFAL, Mestre em


Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e Dou-
torando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais -
UFMG
64
Estrias de Jaraguá – Conclusões
e Preenchimentos./

“[...] Espaço estriado, – [....] espaço sedentário, – onde se desenvolve [...] o


espaço instituído pelo aparelho de Estado [...]”
(DELEUZE e GUATTARI, 2011e, p. 179)

Não poderia falar sobre o Jaraguá que desliza sem antes falar
sobre o Jaraguá estriado. Este tópico foi desenvolvido a partir da história
dita como oficial sobre o bairro de Jaraguá em Maceió – AL, encontrada
em livros de história, em dissertações, teses e em publicações científi-
cas. Jaraguá é reconhecido por diversos pesquisadores, e pela sociedade
em geral, como centro histórico. Diversas referências bibliográficas de-
monstram seu papel e sua importância na formação e na consolidação
de Maceió como entreposto comercial e, posteriormente, como capi-
tal do estado de Alagoas (ALTAVILA, 1988; PEDROSA, 1998; ANDRADE,
2005; ATAÍDE, 2015; ARAÚJO, 2017, FORTES, 2018). Aqui observaremos
como a o Jaraguá foi preenchido e capturado a partir de diferentes auto-
res.
O nome “Jaraguá” tem origem indígena, podendo ter mais de um
sentido, como, por exemplo, ser reconhecido por “Enseada das Canoas”
(SANTOS, 1986). Sua provável origem, ocorreu no início do século XVI, a
mando da Coroa Portuguesa. No local, foi instalada uma pequena vila de
pescadores, com o objetivo de ocupar a enseada e evitar o contrabando
de pau-brasil e outras mercadorias. Posteriormente, tal vila de pesca-
dores veio a se tornar a Vila de Maceió (ATAÍDE, 2015). Segundo Altavila
65
(1988), entre o século XVIII e o século XX foram construídas e executadas
a grande maioria das edificações hoje consideradas históricas. O primeiro
armazém construído no bairro, também foi nomeado de “Jaraguá” (ATAÍ-
DE, 2015). Além dos grandes armazéns, outras construções compuseram
a paisagem durante grande parte do século XX, como os trapiches. Os
trapiches eram pontes construídas em terra firme que se estendiam até
o mar. Sua estrutura era portada por palafitas e se caracterizavam por
suas longas extensões. Tais estruturas tinham a finalidade de facilitar o
transporte das mercadorias importadas e exportadas até as embarca-
ções, que não podiam chegar até a praia.
Entre o século XVIII e meados do século XX, Jaraguá passou por
um grande processo de ascensão econômica. Em 9 de dezembro de
1839, devido ao reconhecimento de Maceió como importante entreposto
comercial, político e cultural, o então Presidente da Província, Dr. Silva
Neves, em Assembleia, altera a capital da Província da antiga cidade das
Alagoas, atual município de Marechal Deodoro, para Maceió (ALTAVILA,
1988). A transferência da capital da província para a então Vila de Maceió
contribuiu para implementação de uma maior infraestrutura no bairro
(ALTAVILA, 1988). Foi a partir dessa mudança que se intensificaram as
construções de prédios, além dos que tinham finalidade comercial. Am-
pliou-se a quantidade de moradias, armazéns, pensões, bares e cabarés
(ALTAVILA, 1988).
No começo do século XIX, a paisagem do bairro de Jaraguá
apresentava características reminiscentes de sua implantação (SANTOS,
1986). Diversos historiadores relataram a existência de um areal (du-
nas) e de casas construídas com a técnica de pau-a-pique. Essas casas,
correspondiam, provavelmente, ao conjunto que formava a antiga vila
dos pescadores. A geografia, além de compor a paisagem e a identidade
do lugar, foi um ponto determinante para a consolidação do local como
entreposto comercial e como ancoradouro, graças aos arrecifes que ser-
viam como barreira e como proteção natural para as embarcações que
atracavam nos trapiches (SANTOS, 1986).
Segundo Santos (1986), foi a partir da década de 1820 que so-
brados, casas e prédios mais estruturados começaram a ser constru-
ídos. Ainda durante esse mesmo século, famílias abastadas, bancos,
comércios, trapiches e companhias de navegação se fixaram no bairro.
O desenvolvimento de Jaraguá aconteceu devido às atividades relacio-
nadas aos ancoradouros. Graças a elas ocorriam todas as importações e
exportações da Capitania. Durante o século XIX, os produtos e mercado-
rias exportados, em sua grande maioria, foram: açúcar, cereais, algodão,
fumo e madeira.
Os edifícios comerciais se concentraram em volta do engenho
Maçayó, atualmente, o centro da capital, separado de Jaraguá pelo riacho
Salgadinho. A travessia de pessoas e de mercadorias ocorriam através de
jangadas. Entre o começo de 1800 até 1871, o cruzamento entre os bair-
66
ros deu-se com a construção de uma ponte de madeira e, mais tarde,
uma outra construída em ferro e concreto (SANTOS, 1986). A nova ponte
ficou conhecida como “a ponte dos Fonsecas”, em homenagem ao Ma-
rechal Deodoro da Fonseca e seus irmãos. Com dimensão de 120 metros
de comprimento e 4 metros de largura, contava também com passeios
laterais e grandes lampiões. Esta ponte foi substituída após o ano de
1924, devido a uma tromba d’água ter comprometido sua estrutura. A
ponte que lá existe atualmente não possui as dimensões originais, pois
o leito do riacho foi desviado e aterrado (SANTOS, 1986; ALTAVILA,1988).
Além da ponte, outra interligação importante com o centro de Maceió foi
o ramal ferroviário inaugurado no ano de 1868 (SANTOS, 1986; PEDROSA,
1998). Ambas as construções foram decorrentes da visão e das políti-
cas ocorridas nos anos de 1820, implementadas pelo governador Melo e
Póvoas (ALTAVILA, 1988; PEDROSA, 1998).
Segundo a literatura consultada, o governador Melo e Póvoas foi
o governante que mais se preocupou em implementar obras de infraes-
trutura no bairro de Jaraguá. Além disso, Póvoas foi o primeiro político
a solicitar o mapeamento da região em 1820 (ALTAVILA,1988). O mapa
foi atualizado em 1841, a partir desse novo mapeamento pode-se visu-
alizar o surgimento de novas ruas e a consolidação das principais vias
do bairro, como a atual Rua Sá e Albuquerque (SANTOS, 1986). Santos
(1986) relata que, de acordo com o levantamento realizado pelo histo-
riador Moacyr Santana, registros datados de 1866 mostram que todas as
vias principais do bairro Jaraguá já estavam constituídas. Eram elas as
antigas ruas do Amorim, rua do Oitizeiro e rua do Bom Retiro, atualmente
conhecidas, respectivamente, por rua Coronel Pedro Lima, Av. Maceió e
rua Melo e Póvoas. Além delas, já havia também a primeira avenida criada
perpendicularmente à orla marítima, inicialmente chamada de “estrada
nova”, atual Avenida Comendador Leão (SANTOS, 1986).
As características das primeiras construções seguiam um estilo
colonial. Tratavam-se de sobrados baixos, porém com biqueiras largas
e grades em madeira (SANTOS, 1986). Na década de 1840, a arquitetura
influenciada por Portugal e aclimatada à colônia passou a ser substituída
pelo greco-romano. As duas tipologias de construção ainda podem ser
observadas na rua Sá e Albuquerque; algumas das fachadas foram mo-
dificadas ao longo do tempo, mas a grande maioria preserva seu estilo
original (SANTOS, 1986).
Pedrosa (1998) buscou transmitir a história e as relações que
existiram em Jaraguá. Conta que a Praça Rayol foi palco de grandes
festas e de folguedos. Relembra o percurso realizado pelo bonde que
parava na Avenida Comendador Leão e que todas as casas dessa avenida
eram de uso residencial. O texto de Santos (1986) relata que no bairro já
existiu uma fábrica de sabão, uma fábrica de mosaicos, sítios, compa-
nhias de navegação e até uma vacaria. As relações sociais no bairro se
deram, a princípio, entre comerciantes, famílias abastadas, marinheiros
67
e trabalhadores. Por sua importância como um entreposto, também
houve o aparecimento de prostíbulos e meretrícios. Com o passar do
tempo, revelou-se que os bares e pensões funcionavam como fachada
para abrigar esses estabelecimentos. As meretrizes atendiam aos ho-
mens de maior poder aquisitivo e, em geral, ocupavam o primeiro an-
dar dos prédios localizados na rua Sá e Albuquerque. Os marinheiros e
trabalhadores frequentavam os prostíbulos que se localizavam em ruas
menos importantes. Essa atividade teria contribuído para a construção
da imagem do bairro como lugar boêmio e promíscuo. Tais estereótipos
teria provocado a gradativa evasão das famílias e de algumas instituições
existentes no bairro (SANTOS, 1986; ALTAVILA, 1988; PEDROSA, 1998).
Nascimento (2018) destaca que durante duas décadas, entre 1970
e 1990, o “vazio” predominou em Jaraguá. No bairro restaram a “favela”
de Jaraguá, também conhecida como “Vila dos Pescadores”, bares, casas
de prostituição e algumas instituições reminiscentes (NASCIMENTO,
2018). Nos anos de 1990, seguindo a tendência de outros centros histó-
ricos, Jaraguá passou por um processo de “revitalização”. As fachadas
ganharam cores, a favela foi parcialmente removida e a vida noturna
ganhou novos bares e boates. A princípio, a população da capital teria
tornado a frequentar o bairro durante os finais de semana em busca
de festas e de diversão. Porém, a imagem marginalizada teria pesado e,
poucos anos depois da execução do projeto de reforma, o bairro voltou a
passar por novo esvaziamento. As fachadas pintadas sofreram interven-
ções (pichações e grafites), a favela (Vila dos Pescadores) que havia sido
relocada para a periferia ressurgiu e bares e casas noturnas alternativas
e dedicadas ao público LGBTQIA+ se mantiveram (NASCIMENTO, 2018).
Como pudemos observar, Jaraguá possui uma história formal
que se perpetua ao longo do tempo. Tal história, como discurso insti-
tuído, acaba por, genericamente, reduzi-lo, de forma romântica, a um
bairro histórico, mas ao mesmo tempo “vazio”, promíscuo e boêmio. A
história, contada e reproduzida dessa forma, acaba por preenche o bairro
com discursos tendenciosos e pejorativos. Muito se fala, por exemplo,
da “fama”, da boemia, das festas, dos bares e dos prostíbulos, como
responsáveis por seu esvaziamento, no entanto, pouco se menciona a
construção do cais do porto como um possível motivo que contribuiu
para tal evasão. Nos cabe então questionar: por que a criação do cais do
porto não aparece corriqueiramente nos livros de história como possível
responsável pela decadência de Jaraguá? A quem interessou apresentar
o Cais como “progresso”, mesmo representando a eliminação de mi-
lhares de postos de trabalho diante de sua automação? Duas simples
perguntas que nitidamente nos permite enxergar que aquilo que se
conta sobre um bairro é atravessado por vários agentes e interesses. Por
isso, o Jaraguá dos livros de história é estriado, em tal Jaraguá há pouco
espaço para multiplicidade e para o novo. O “novo” que falo aqui não se
trata de novas intervenções, restaurações ou mesmo revitalizações, visto
68
que todas essas opções já foram consideradas e aplicadas. O “novo” ao
qual me refiro trata daquilo que se apresenta como devir, como liso (que
permite deslizar), ou como inconcluso, como veremos a seguir.

Figura 1 "Velhas estrias" - Estas são imagens que contribuem e reforçam o discurso de
bairro vazio, perigoso e acabado./

69
O Jaraguá que desliza – vazios
inconclusos./

“[...] Espaço liso, – [....] espaço nômade, – o espaço onde se


desenvolve a máquina de guerra [...]”
(DELEUZE e GUATTARI, 2011e, p. 179)

Deslizar um bairro, para mim, significar trazer à tona aquilo que


o discurso instituído pelo aparelho de estado domina, oculta e apaga.
Encontraremos mais adiante uma cartografia em forma de carta, que foi
dirigida a Foucault, Deleuze e Guattari. Juntamente com a referida carta
segue em anexo cartões postais de minha incursão em Jaraguá. A título
de esclarecimento, destaco que para realização desta cartografia segui
três pistas cartográficas: a cartografia como método de acompanhar
processos; a cartografia como pesquisa/análise-intervenção; e a carto-
grafia como política de uma narratividade (VASCONCELOS, 2020). Con-
vido neste momento a todos e todas a observarem tudo que, para mim,
tem potência de deslizar em Jaraguá.

Carta a Foucault, Deleuze e Guattari

Queridos amigos,
Primeiramente gostaria de dizer que venho me tornando gago na
minha própria linguagem, graças a vocês. Lhes escrevo esta carta para
compartilhar como tenho desaprendido com Jaraguá, pois vocês me
ensinaram a pensar. Durante minhas caminhadas atravessei ruas, obser-
vei encontros, parei, perdi tempo e ganhei espaços, como, certa vez, um
outro amigo chamado Careri recomendou.
As histórias que trago nesta carta começaram nas encruzilhadas
onde tudo se cruza, onde cruzou uma mãe puxando seu filho pelo braço,
onde cruzou um grupo de bancários que se despediam ao terminar o
expediente, onde cruzaram, pessoas, cruzaram carros, cruzaram bichos.
Nas encruzilhadas onde tudo pode atravessar, atravessou um vendedor
de frutas que empurrava um carrinho, que empurrava frutas, que gritava:
“olha o carro da fruta passando na sua rua!” e empurrando atravessou,
foi e seguiu. Nas encruzilhadas encontrei fluxos e, para mim, fluxos são
multiplicidades intensivas, já que:
70
“[...] multiplicidade intensiva é que constitui a novidade tipicamente deleuzia-
na: a multiplicidade intensiva é feita de forças, de vetores, de relações dife-
renciais. Ela é não-numérica, espacio-temporal, qualitativa, contínua, hetero-
gênea, ordinal, não-métrica, riemanniana, feita de partes que se fundem, se
interpenetram, composta de linhas de força”
(SILVA, 2004, p.18)

Quando tudo surge de uma raiz, passei a desejar que ela se faça
rizoma. Enquanto atravessava o bairro, vi árvores, abracei árvores. Ob-
servei que muitas ruas não têm árvores e outras tantas têm. Observei
que ruas que não têm árvores, muitas vezes, as têm. As árvores das ruas
“sem” árvores brotam dentro de prédios em ruína. E enquanto o cérebro
tende a pensar “não faça árvore” a árvore desliza e faz rizoma, faz um
devir minoritário e transforma-se numa máquina de guerra, sobrevive,
resiste, faz repetição e isso faz gaguejar. Afinal:

“Gaguejar é fácil, mas ser gago da própria linguagem é outra coisa, que coloca
em variação todos os elementos linguísticos, e mesmo os elementos não-lin-
guísticos [...]. É aí que o estilo cria a língua” (DELEUZE e GUATTARI, 2011b, p.42,
grifos meus). “Desestratificar, se abrir para uma nova função, diagramática. [...]
Fazer da consciência uma experimentação de vida [...]. [...] Ser gago de lingua-
gem, estrangeiro em sua própria língua”
(DELEUZE e GUATTARI, 2011b, p.90)

Seguindo os fluxos observei que durante o pré-carnaval, na fa-


mosa Rua Sá e Albuquerque, não passavam carros, passavam pessoas. O
único carro que atravessou, nesse dia, foi um carrinho de supermercado
de um catador de latinhas, que, enquanto, catava também pulava o frevo
no ritmo dos tambores. O bairro que é banhado pelo mar da Praia da
Avenida, fez multiplicidade intensiva, fez ENERGIA – Axé –, fez repetição
(da forma como desejamos), e um mar de gente banhou as ruas, pene-
trou as ruas. Muitas dimensões sobrepostas. Um grande devir minoritá-
rio:

“Há uma figura universal da consciência minoritária, como devir de todo


mundo, e é esse devir que é criação. [...] Essa figura é precisamente a variação
contínua, como uma amplitude que não para de transpor, por excesso e por
falta, o limiar representativo do padrão majoritário”
(DELEUZE e GUATTARI, 2011b, p.53)

71
Já em outro dia, na contramão do que considero devir minori-
tário, do que considero também como aquilo que me possibilita devir
monstro, encontrei o recém-inaugurado “Centro Pesqueiro”. Bem perto
habita uma escultura que clama por liberdade. Esse novo lugar ocupou o
espaço onde vivia a antiga Vila dos Pescadores, também conhecida, por
parte da sociedade, como “favela” de Jaraguá. A vila-favela foi realocada
sob um discurso higienista/salvador. Então a palavra de ordem foi cum-
prida. O aparelho de estado ganhou poder. As linhas de fuga deslizaram
e se transformaram em puras estratificações homogêneas e atuais. A
marisqueira que perguntou: “vai querer camarão hoje?”, depois de pou-
cos minutos de conversa, também confessou: “aqui é mais limpo, mais
organizado, mas não é como era lá” com a voz embargada. E aquele
“mas” afetou-me como nunca antes na vida. Sobre afetação, Deleuze e
Guattari (2011d) nos falam que:

“Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data têm uma indivi-
dualidade perfeita, à qual não falta nada, embora ela não se confunda com a
individualidade de uma coisa ou de um sujeito. São hecceidades, no sentido de
que tudo aí é relação de movimento e repouso entre moléculas ou partículas,
poder de afetar e ser afetado”
(DELEUZE e GUATTARI, 2011d, p.43)

Observei os balanços, assisti à dança e entrei na dança. Bem


atento, vi o barco voltando do mar e, as pessoas se aglomerarem, as
garças esperando por sobras. Enquanto parte dos pescadores desem-
baraçava a rede, outra parte vendia os peixes. Acompanhei os processos
e tudo foi acontecendo. Eu fui chegando devagar e, ali na beira do mar,
vi multiplicidades intensivas, vi o molecular, vi linhas de fuga, vi virtual, vi
repetição, vi revolução. Surgiu outro centro pesqueiro: sem paredes, sem
galpões, sem regras, “sem” higiene, sem organização, fez um devir mino-
ritário e me afetou. “O senhor vai querer peixe hoje? Aqui é fresquinho”.
Caros amigos, meus olhos viraram, meu cérebro rachou quando
busquei entender de onde vocês vieram. Confesso que fiquei impres-
sionado. Confesso que não sou o mesmo desde então. A partir do que
se entendeu/entendi como “virada linguística”, que aconteceu em mea-
dos do século XX, foi possível compreender o papel da linguagem como
construtora da realidade (SILVA, 2010) e isso me iluminou. Sendo a
linguagem construtora da realidade, enquanto acompanhava os proces-
sos pixados/grafitados nas paredes, me questionei: como decifrar esses
códigos? Me autorrespondi: impossível! Afinal, esses códigos não obede-
cem à máquina de estado, esses códigos não oprimem, não controlam,
são códigos não-fascistas, são rizomas, são linhas de fuga, são máquinas
de guerra, são virtuais, moleculares, são multiplicidades intensivas, são

72
senhas: “existem senhas sob as palavras de ordem. [...] A mesma coisa,
a mesma palavra, tem sem dúvida essa dupla natureza: é preciso extrair
uma da outra – transformar as composições de ordem em compo-
sições de passagem” (DELEUZE e GUATTARI, 2011b, p.58-59, grifos
meus).
Peixe fresco e peles frescas à beira-mar. No meio do bairro de
Jaraguá me “caiu a ficha” que a pele que habitava o trapiche não habita
mais. Que a pele que habitava o armazém não habita mais. Que a pele
que habitava o casarão não habita mais. Os trapiches, os armazéns e
os casarões viraram bancos, casas de festas, boates, órgãos públicos,
instituições... viraram, viraram, viraram... Atravessaram tantas coisas que
agora viraram histórias. No entanto, agora, voltam a ser devires minoritá-
rios. Pois podem ser outra coisa, afinal já “foram” e não “são” mais. O que
antes era institucionalizado liquefez-se, desmanchou-se, desintegrou-
se. O molar foi desestabilizado deslizando até o molecular. Agora, o que
ainda está de pé, é tudo o que eu não sei que possa ser. Agora, é tudo o
que pode ser. São corpos sem órgãos em forma de bairro. Isso significa
dizer que:

“a uma transformação de substâncias e a uma dissolução das formas, pas-


sagem ao limite ou fuga dos contornos, em benefício das forças fluidas, dos
fluxos, do ar, da matéria, que fazem com que um corpo ou uma palavra não
se detenham em qualquer ponto preciso. Potência incorpórea dessa matéria
imensa, potência material dessa língua. Uma matéria mais imediata, mais flui-
da e ardente do que corpos e as palavras”
(DELEUZE e GUATTARI, 2011b, p. 57)

Segui caminhando e na esquina do antigo e famoso beco das


putas ou das raparigas, agora, o que se consome são “cachorros”. Sr. M.
não quis ser gravado. Então, em uma conversa informal, descobri que o
que já foi um bar se transformou em uma lanchonete há pouco mais de
quarenta anos. As paredes guardam registros desse passado ainda vivo
em Sr. M... O Caldilar recebe a todos - moradores, flanelinhas, pescado-
res, executivos, etc.,. Para mim, esse lugar se fez/faz rizoma e, por isso,
me atravessou. Me chamou atenção o molecular “trans” presente em seu
nome: “Caldilar”, por não ser “caldo, nem ser “lar”, mas ser algo “entre”.
A dica que eu dou é que quando visitarem o Caldilar não peçam
um cachorro quente ou um passaporte (como habitualmente é conheci-
do cachorro quente em Alagoas), no Caldilar simplesmente se pede: “Sr.
M. me vê um ‘cachorro’!”. Entendo que o Sr. M., mesmo sem saber, tenha
obedecido à seguinte orientação: “Faça rizoma e não raiz, nunca plante!
Não seja uno nem múltiplo, seja multiplicidade! Faça a linha e nunca o
73
ponto. Seja rápido, mesmo parado! Nunca suscite um General em você!
Nunca ideias justas, justo uma ideia. Tenha ideias curtas” (DELEUZE e
GUATTARI, 2011a, p.36, com supressões, grifos meus).
E quando eu pensava que já havia visto de tudo nesse bairro,
encontrei um Kubo. Mas esse Kubo, de cubo não tinha nada, parecia
algo monstruoso, assim como ocorre quando monstros não têm nada
de monstruoso. Esse lugar localizado na rua Barão de Jaraguá poucas
pessoas conhecem, mas já está lá há mais de vinte anos, segundo relato
da simpática gerente. Apesar de parecer “gourmet”, esse kubo, para mim,
representou muito mais que uma loja de plantas, flores, árvores e terrá-
rios, significou uma máquina de guerra. O Kubo é lindo, o Kubo é vivo, o
Kubo faz gaguejar a linguagem que estratifica o bairro de Jaraguá a um
lugar “morto”. O kubo guerreia contra o aparelho de estado que impõe
o discurso de bairro “vazio”. Ao questionar a simpática gerente: “Por que
a loja havia escolhido se instalar em Jaraguá?” Ela respondeu; “O dono
comentou comigo que gostava daqui e do movimento, naquela época o
bairro tinha passado por uma reforma e ele acreditou que daria certo”.
Penso que deu e vem dando “certo”, afinal quem iria pensar em encon-
trar um Kubo com “K” recheado de plantas e de cristais em Jaraguá?
Ainda mais inesperadamente, também encontrei outro lugar
“despercebido” em Jaraguá. Contra a palavra de ordem, que tende a re-
duzir Jaraguá, que promove os estereótipos e suposições de bairro “pe-
rigoso”, “vazio” e “sem” vida, existe ali uma loja cheia de detalhes, cheia
de arte, cheia de intensidades. Essa loja se chama “Gravatá” em home-
nagem à terra natal de seu dono, que fica em Pernambuco. Então, perdi
bastante tempo observando esse espaço. Me dei conta de que uma loja
“importada” que vende artesanatos feitos à mão cria rizoma, multiplici-
dades intensivas e devires minoritários. Porque faz verdadeira profusão
de expressões, de possibilidades e de indefinições. A Gravatá de Jaraguá
não segue padrões, não é homogênea, pois nela a palavra de ordem é
não ter ordem! Tudo apenas vai chegando encontrando seu lugar e sain-
do, numa repetição de renovação.
Porém, amados amigos, como esta carta não trata de abstrações,
trata de processos que foram sendo acompanhados... Em 05 de março
de 2020 assisti ao “fim” da balança de Jaraguá e à demolição do resto
dos barracos que ainda resistiam da Vila de Pescadores. Enquanto ob-
servava me faltou ar, me afastei, busquei o mar, meus olhos marejaram,
minhas mãos tremiam...
Em meio aos gritos e ao barulho das retroescavadeiras, encontrei
um pescador que remendava sua rede. Ele parecia não se importar com
toda aquela agitação. Mas foi ele quem me falou, após alguns minutos
de conversa: “a gente que nasce pobre, nasce para sofrer”. Me dei conta,
que na realidade ele estava desolado, busquei respeitar seu momento e
o deixei com seus pensamentos. Então, como quem apaga um caderno
escrito à lápis, a Balança foi “apagada”, o lugar foi “apagado”, as pessoas
74
foram “apagadas”. Tudo em nome de “organização”, de “higiene”, de “or-
dem”, de um discurso que busca criar um lugar “melhor”. Nesse dia nada
fez mais sentido do que aquilo que se fala do poder da linguagem. Nesse
dia, tive um entendimento profundo do que vocês quiseram dizer quan-
do escreveram “a linguagem não é mesmo feita para que se acredite
nela, mas para obedecer e fazer obedecer” (DELEUZE e GUATTARI,
2011b, p.12).
Ainda seguindo o fluxo daquilo que me afetou/atravessou duran-
te minhas imersões no bairro, também é necessário compartilhar com
vocês como foram meus encontros com o hiato Salgadinho. Me lembrei
que foi a partir de leituras que me encontrei pela primeira vez com o
Riacho dos livros de história. Não sabia, por exemplo, que no começo do
século XX ele havia sido desviado e aterrado. Não sabia que ele havia sido
canalizado e reduzido. Ao observá-lo, não me contive, não pude conter
minha imaginação, fechei os olhos e tentei imaginá-lo com 121 metros de
largura. Tentei imaginar como seria atravessá-lo à canoa e à barca. Mas o
principal pensamento ao encontrar esse riacho atual foi: como intervir?
como desestabilizá-lo? como fazê-lo deslizar desse estado molar? Cada
dia fico mais convicto que uma possível resposta para todas essas inda-
gações pode começar a partir desta cartografia.
Como vocês puderam ver, meus amigos, foram muitas caminha-
das, foram muitas paradas, foram muitas intervenções, muitas reflexões
e muitos atravessamentos. Mas ainda gostaria de compartilhar com vo-
cês mais um lugar molecular no Jaraguá. Foi numa noite de Pré-Carnaval
em Jaraguá que conheci o coletivo Afrocaeté. Ele me atravessou. Seu
maracatu, seus tambores, seus ganzás. Suas misturas se fazem afectos.
Sua sede fica localizada na Rua Barão de Jaraguá. Ela foi gentilmente
aberta por uma de suas representantes, especialmente para minha visita.
Graças a essa gentileza pude conhecer o que está dentro, pude sentir a
forte energia desse lugar. O Afrocaeté não se define. Segundo a mesma
representante ele “é um lugar de passagem, onde amigos se encontram,
onde batucam, dançam, brincam, celebram seus ancestrais e depois
seguem”. Na Jaraguá dos cartões postais ou do discurso instituído esse
lugar não existe, ou não se enxerga. Mas nesta carta esse lugar está pre-
sente. Pois se faz corpos sem órgãos, se faz rizoma, se faz multiplicida-
des intensivas.
E, assim, como prometido a todos os que encontrassem a lâm-
pada, realizo aqui meus três desejos:
Desejo que essa carta chegue de algum modo a vocês.
Desejo que ela tenha feito multiplicidades intensivas.
Desejo que ela os tenha feito pensar.

Com saudades,

Heber Macel
75
O.b.s.: Não deixem de admirar os lindos postais anexados a esta carta!
Em tais postais poderão encontrar os incríveis lugares que me atraves-
sam em Jaraguá. Cada um, como dito nesta carta, único e singular a sua
maneira.

Postal 1 – “Velho” Centro Pesqueiro./

76
Postal 2 – Árvores, Senhas e Grafite./

77
Postal 3 – Afrocaeté./

78
Inconclusões./

O liso e o estriado serviram como plano de fundo para produção


deste capítulo. No primeiro momento pudemos constatar que discursos
históricos escritos, reproduzidos e difundidos tem o poder de instituir
e de definir o curso e/ou a vida de um bairro. Que a história tida como
oficial pode conter enviesamentos atravessados por jogos de poder e de
interesses. A história oficial de um bairro, repetida e conservada sem o
mínimo de reflexão crítica, representa um espaço estriado, onde há pou-
co espaço para o inesperado, ou, até mesmo, para o livre devir bairro.
Em Jaraguá que Desliza trouxe um exemplo possível de como
falar, de forma não ortodoxa, sobre aspectos, lugares, sujeitos, aconteci-
mentos e relações sociais. Busquei “jogar óleo” para tentar promover, ao
menos na imaginação, momentos deslizantes. Para tanto, compartilhei
conhecimentos e informações que nunca haviam sido considerados por
outros pesquisadores e historiadores. Tentei escrever tais conhecimentos
como uma história não concluída ou que não se fecha. Assim, Jaraguá,
em minha carta e em meus postais, além do que já se é amplamente
difundido, representa uma composição de devires que simplesmente
acontecem e que acabam por constituírem o Bairro. Ou seja, o bairro
histórico e protegido não tem conclusões, não está concluído! Seja por
tudo que já aconteceu, seja por tudo que já aconteceu e ainda aconte-
ce ou seja pelo que acontece e ainda acontecerá. Dessa forma, finalizo
deixando as seguintes reflexões: quando aprenderemos a amar o que
não concluímos? Quando amaremos nossas inconclusões? Quando
aprenderemos com o processo e não com o fim?
79
Referências Bibliográficas./

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por Moacir Medeiros de Sant’Ana. EDUFAL, Maceió, 1988.

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80
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- Universidade Federal de Santa Catarina, Centro Tecnológico, Programa
de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Florianópolis, 2020.

81
04./ Kellen Melo Dorileo Louzich

A construção
da cidade
inanimada.
82
Resumo./
Cuiabá é uma cidade do século XVIII, em que era dividida entre
o centro e o porto. O porto era o segundo distrito da cidade, nele todos
os olhos se concentravam para a chegada e partida de entes queri-
dos, mercadorias, informações e outros. Estes espaços ainda apresen-
tam mais permanências do que transformações urbanas. Mas as suas
transformações, que foram realizadas no último século, criaram uma
arquitetura hiper-real, resultando em espetáculos urbanos. Uma arqui-
tetura sem vida, sem história, sem memória, sem alma, uma arquitetura
inanimada. Este trabalho tem como objetivo identificar algumas dessas
transformações, realizadas no Porto de Cuiabá, buscando dar relevo para
o momento presente em que as novas fachadas do da orla do porto
constroem uma cidade acabada, e que não existe de fato, criada como
cenário para o turismo.

Palavras-chave: Arquitetura, Espetáculo Urbano, Porto, Cidade, Cuiabá.


83
Introdução./

Este texto trata de três momentos. Inicialmente fala sobre a for-


mação da cidade de Cuiabá, a importância do antigo porto para a cidade,
as tradições do lugar e os traços culturais que davam sentido a sua con-
formação e vida urbanas. Logo depois, discute as transformações acon-
tecidas com os processos de modernização que ditaram o que chama-
mos aqui de construção da cidade inanimada. No final, apontamos para
uma cidade que não deveria ter como sentido uma imagem acabada,
suscitando discussões acerca da imprevisibilidade dos acontecimentos
urbanos. O percurso metodológico adotado passa pela revisão dos textos
históricos e por levantamentos no local, no sentido de apontar algumas
permanências e transformações acontecidas. Nesse sentido o objetivo
é apontar para um processo de espetacularização urbana que está em
curso para ter como resultado o debate e a discussão.
84
A vida no porto./

A cidade de Cuiabá, era denominada de Vila Real do Senhor Bom


Jesus do Cuiabá, foi fundada por Rodrigo César de Meneses em 1727,
sobre um arraial minerador. Estas minas foram descobertas em 1722
e, desde então, aquela localidade foi alvo de uma expressiva migração,
tanto de bandeirantes paulistas quanto de outros arraiais que ficavam
próximos as minas do Cuiabá, por exemplo, o Arraial da Forquilha.1
Monções que embarcavam no Rio Tietê (SP) com destino as
minas do Cuiabá enfrentaram um longo percurso: ora subindo o rio, ora
por terra, tendo que carregar as canoas, escalar morros, desviar das
cachoeiras e correntezas, quando “chegavam ao Cuiabá2 tinham no porto
[...] o ponto final da longa viagem” (SIQUEIRA et.al., 2006, p.155) e um
sentimento de “alívio de ter sobrevivido ao rigor da larga e difícil viagem”
(COSTA; DIENER, 2000, p.13). Este trajeto até Cuiabá e região, perdurou
cerca de 134 anos.
Foi no Porto Geral “que se fixaram as residências de antigos mon-
çoeiros3. Ali surgiram as primeiras pensões e hotéis, acolhida aos exaus-
tos viajantes” (SIQUEIRA et.al., 2006, p.155), que não tinham forças para
percorrer cerca de dois quilômetros até o centro da Vila do Cuiabá. Os
viajantes descreviam este local como “um lugar simpático e pitoresco”
(COSTA; DIENER, 2000, p.14).
Em 1856, com o Tratado Especial de Navegação, firmado en-
tre Brasil e Paraguai, que as viagens até Cuiabá passaram a se dar pe-
las águas da Bacia do Prata. O que facilitou não só as viagens até Mato
Grosso, mas também, “as relações entre a Província de Mato Grosso e os
grandes centros do Prata” (GOMES, 2005, p.16). A viagem dava-se com
pequenos navios (chalanas) tendo no máximo capacidade para quinze a
vinte pessoas.
1 Em 1719, foi descoberto ouro nas proximidades do Coxipó-Mirim (próximo ao rio Co-
xipó em Cuiabá), que foi denominado de Arraial da Forquilha. In.: SIQUEIRA et.al., 2006,
p.155.
2 O Rio Cuiabá é um dos muitos rios pertencentes à Bacia do Alto Paraguai e do Pan-
tanal Mato-grossense, que deságua no Rio Paraguai e que este porventura irá desaguar
no Oceano Atlântico.
3 Quem viajava nas monções eram chamados de monçoeiros. As monções (ou expe-
dições bandeiristas) eram as expedições que desciam ou subiam rios da Capitania de
São Paulo e Mato Grosso nos séculos XVIII e XIX.
85
[...] levavam de três a quatro dias, de águas abaixo, até à cidade de Corumbá;
daí em outros barcos, mais três dias até à capital da República do Paraguai,
Assunção, e mais quatro a seis dias até Buenos Aires. Desta metrópole do
Prata é que se tomava outro navio para se chegar à “Corte”, no Rio de Janei-
ro, com escala em Montevidéu, Rio Grande e Florianópolis. De águas acima,
ou seja, de Buenos Aires a Assunção e desta a Corumbá e Cuiabá o tempo de
viagem era quase o dobro.
(PÓVOAS, 1980, p.25)

Com este novo meio (de transporte e de comunicação), Cuiabá


e toda a região do Mato Grosso4 passa a receber muitas mercadorias e
forasteiros de diferentes nacionalidades, como “italianos, franceses, em
menor número, uruguaio e argentinos, que em geral de Buenos Aires se
decidem a navegar rio acima, até Corumbá, Cáceres, ou Cuiabá, onde se
fixam” (GOMES, 2005, p.16). Uma atividade que movimentava a economia
Mato-grossense e que era vista pelos forasteiros como uma boa oportu-
nidade de enriquecer.

[...] baseada na atividade mercantil de importação e exportação, serviu como


elemento de atração e fixação dos mesmos. [...] as largas perspectivas de lu-
cro em vista dessa extensa área carente de meios para seu auto-abastecimen-
to, justificavam o afluxo de estrangeiros e aventureiros ligados às atividades
mercantis.
(GOMES, 2005, p.17)

Os viajantes, que aqui chegaram, se depararam com uma recep-


ção calorosa com muita alegria. “[...] um tiro de canhão e a corneta do
quartel anunciava a presença do vapor, ancorado no porto. Mas a demora
era pouca, o vapor permanecia menos de 24 horas” (COSTA; DIENER,
2000, p.19).

Quando os navios aportavam, a população se apinhava no cais do Porto, seja


para recepcionar os filhos, parentes e visitantes, mas também para receber a
correspondência acondicionada em malotes. Era uma ocasião de alegria e de
esperança por boas novas, embaladas pelo som da boa música orquestrada
por uma banda.
(SIQUEIRA et.al., 2006, p.157)

4 A região do Mato Grosso era composta pelos Estados de Mato Grosso, Mato Grosso
do Sul e Rondônia. A separação destes estados se deu nos anos de 1979 e 1981, respec-
tivamente.
86
No porto, ancoravam canoas vindas de fazendas próximas a Cuia-
bá que traziam “[...] farinha, verduras, frutas, galinhas e tudo o mais para
abastecer um lugar em crescimento” (COSTA; DIENER, 2000, p.20), mas,
também, “diversos tipos de navios, todos a vapor e movidos a lenha”
(COSTA; DIENER, 2000, p.18). Com isso, a cidade passa por novas trans-
formações, para atender às novas necessidades. “[...] antigos prédios são
demolidos, e se constroem um novo cais em pedra canga5 e uma praça
ajardinada para receber os que ali desembarcavam” (COSTA; DIENER,
2000, p.20). Luiz D´Alincourt, que foi sargento-mor, descreve o Porto Ge-
ral:

[...] junto a este porto acha-se um largo retangular ornado de casas, e vizinho
ao barranco, da parte direita, olhando para o rio, um armazém pertencente à
fazenda pública, que serve de deposito geral de viveres, para dali se fornece-
rem a legião de linha, pedestres, hospitais e presídios da fronteira do Paraguai;
[...] a uma curta distância deste sitio, em terreno algum tanto elevado, está
uma capela dedicada a S. Gonçalo, e em frente a ela, do lado oposto da estra-
da, acha-se a casa de pólvora. Além do porto, na margem direita do rio (cidade
de Várzea Grande), estão algumas casas, e daí segue a estrada para Vila Maria,
S. Pedro del Rei e Mato Grosso.
(COSTA; DIENER, 2000, p.14)

Outro viajante, Castelnau que estava à espera de sua partida


observa “alguns homens em pequenas canoas tangiam a uma boiada,
fazendo-a atravessar o rio a nado. [...] uma cena comum para os mora-
dores da cidade, porém inusitada para um estrangeiro” (COSTA; DIENER,
2000, p.18).
Além das trocas das embarcações que eram feitas e das difi-
culdades da viagem até Corumbá e, posteriormente, à Corte, as viagens
eram descritas pelos viajantes, como pitorescas e divertidas.

O pitoresco das viagens de lanchas eram as margens do rio povoadas de ja-


carés e bicharada do Pantanal. As paradas para provisão de lenha, consumida
pela maquinaria do navio, propiciava periódicas descidas em fazendas e usinas
ribeirinhas, compra de rapadura de leite e queijo. Apesar das delongas, dos
mosquitos e das bolachas duras, substituindo o pão fresco, as viagens eram
muito divertidas, com passageiros se transformando em velhos amigos, pela
excelente camaradagem.
(SIQUEIRA et.al., 2006, p.169)

5 Pedra Canga é uma rocha muito resistente, que era encontrada na região e utilizada
para barragens e fundações das residências na Vila do Cuiabá.
87
Porém todo esta atividade e comunicação com a Coroa foi in-
terrompida, por causa da Guerra do Paraguai, ou também chamada de
Guerra da Tríplice Aliança, que durou seis anos e durante este tempo um
sentimento de medo e desespero tomou conta dos cuiabanos, seja pelo
motivo de não terem informações da Corte e do desenrolar da guerra
ou por imaginarem a possibilidade do inimigo subir o rio e tomar Cuiabá,
assim como fez com o Forte de Coimbra, ou pior, pois a maior parte dos
soldados cuiabanos haviam ido para a guerra e próximo da cidade não
havia forte6, desta forma a cidade estava indefesa. Após o fim da guer-
ra, em 1870, a navegação retoma o transporte entre as cidades e Cuiabá
volta às atividades e o abastecimento normalmente.
Mas a navegação pela Bacia do Prata só dura até 1915 (somando-
se 53 anos de viagens, aproximadamente), quando é inaugurada a Estra-
da de Ferro Noroeste do Brasil, que ligava Corumbá a São Paulo. Devido a
este novo trajeto até o litoral ou a corte diminui o tempo de viagem em
oito a dez dias.

[...] indo-se pela via fluvial até Corumbá; dali em outro barco, em mais uma
noite de viagem, até Porto Esperança, ponto terminal da E. F. Noroeste, à
margem esquerda do rio Paraguai; deste ponto seguia-se pela via férrea, com
várias baldeações, até o Rio de Janeiro, com paradas em Campo Grande, Três
Lagoas, Araçatuba, Bauru e São Paulo. Com a conclusão de todas as obras da
ferrovia, principalmente da imponente ponte sobre o Rio Paraná, a viagem pas-
sou a ser feita sem baldeações desde o Porto Esperança até Bauru.
(PÓVOAS, 1980, p.25 e 26)

Com os trabalhos de Cândido Rondon e o Telégrafo Nacional,


a partir de 1930, “as notícias do país e exterior passaram a ser ouvidas
através dos rádios” (PÓVOAS, 1980, p.26). Neste mesmo ano foram ins-
taladas linhas aéreas, com frequência de duas vezes por semana, mas o
transporte era feito por um hidroavião, tendo assim capacidade apenas
para 6 passageiros, o que inviabiliza financeiramente o transporte. So-
mente após a abertura das rodovias, em 1950, que foi possível, com mais
frequência e sem percalços, o transporte da população de forma mais
acessível.

[...] novas linhas regulares, com as “Jardineiras” da “Empresa Baleia”, que


lançaram definitivamente a linha Campo Grande – Cuiabá, dotando-a poste-
riormente de ônibus confortáveis, iguais aos que circulavam nas demais linhas
comerciais do país.
(PÓVOAS, 1980, p.26)

6 O próximo forte, subindo o rio até chegar no Vale do Guaporé, é o Forte Real
Príncipe da Beira, localizado no estado de Rondônia, próximo a cidade de Costa Mar-
ques.
88
Nesta mesma época, foi construída a ponte Júlio Muller que liga
a duas cidades vizinhas (Cuiabá e Várzea Grande), separadas pelo rio
Cuiabá. A ponte foi construída sob um dos portos (rampas que descar-
regavam os navios), que ficava em frente à rua 15 de Novembro (primeira
rua do Porto).
Antes da construção desta ponte o acesso à cidade vizinha se
dava pela barca pêndulo, “que a partir do ano de 1870, passou também a
compor a paisagem do Porto Geral, fazendo a travessia para o já tercei-
ro distrito, Várzea Grande” (COSTA; DIENER, 2000, p.20) facilitando as
viagens para as cidades vizinhas, como Cáceres e Poconé, ambas no
estado do Mato Grosso. No final do século passado, antes da construção
da Ponte, a barca pendulo apresentava uma estrutura mais robusta que
transportava até automóveis.
O final do século XX, foi marcado por muitos percalços no Porto,
principalmente no ano de 1974, que ocorreu a maior cheia do Rio Cuia-
bá, causando uma inundação de boa parte da cidade, inclusive no porto
(figura 1). “O poder público considerou a área como de risco e promoveu
a retirada da população, levando-a para conjuntos habitacionais finan-
ciados pelo Banco Nacional de Habitações (BNH), como o Novo Terceiro
e o Grande Terceiro” (ROMANCINI, 2005. p.113). Essas realocações dos
desalojados ocorreu em três etapas, porem os moradores relatam que
tiveram que abandonar suas casas, alguns sem terem para onde ir (os
que não tinham como pagar o financiamento) e que acabaram ocupando
as proximidades do rio (figura 1), tentando manter o seu trabalho (a pes-
ca) e suas ‘raízes’ no bairro. Mas “[...] os moradores que foram retirados,
contra a sua vontade, até hoje lamentam o fato de terrem sido forçados
a abandonar seu espaço de vivencia” (ROMANCINI, 2005. p.113).

Figura 1 – Cartografia do passado.Fonte: Autora, 2021./

89
Depois da retirada dos moradores, o porto “passou por um pro-
cesso de urbanização” (ROMANCINI, 2005. p.113), seguido pela higieni-
zação e congelamento dos espaços que eram um ‘símbolo’ da história
de Cuiabá. Usando como desculpa o fim da navegação no rio Cuiabá,
que se extinguiu por volta de 1970, devido a implementação das rodo-
vias no Brasil, o porto é deixado de lado. Cuiabá passa “a se integrar
com os importantes centros do país através de rodovias” (ROMANCINI,
2005, p.112). Com essa mudança no transporte e, consequentemente,
no deslocamento de toda a população pela cidade, a região passa a ser
modernizada. Algumas ruas que não eram pavimentadas ou que eram de
paralelepípedo, foram asfaltadas. O mercado do peixe (figura 1) é trans-
formado em Museu do Rio (figura 2). A beira do rio é aterrada, dificultan-
do o acesso e a visão ao mesmo. O esgoto é canalizado e despejado no
rio inviabilizando o lazer e os banhos nas praias. As transformações não
foram realizadas somente nos espaços físicos, mas, também, nos hábi-
tos, fazeres e viveres, tudo para se adequar a uma cidade mais “moder-
na”.
É importante ressaltar aqui, portanto que, o porto é uma das regiões de
Cuiabá que apresenta uma das mais ricas tradições da cultura popular,
seja pela pesca, lendas e ou costumes de viver. Assim, “coube à comuni-
dade nativa do Porto a preservação da riqueza cultural da capital de Mato
Grosso” (LACERDA, 2018, p.82), ou o que restou dela.
Em 1996 foi solicitado o tombamento de Cuiabá e neste documento es-
tava incluso a região do centro e do Porto. “Após vinte e quatro anos con-
tados a partir da solicitação, finalmente, foi homologado o tombamento
de todo o conjunto, integrando os aspectos: Arquitetônico, Urbanístico e
Paisagístico, proibindo, assim, a demolição das edificações” (LOUZICH;
FIORIN, 2020, p.110). Porém, o Porto foi retirado do processo de tombo
sem nenhuma explicação nos autos, mesmo sendo “[...] possível identifi-
car que as configurações acerca da importância da região do Porto se di-
luem e os mapas que a princípio indicavam esta região passam a enfocar
apenas no centro da cidade” (LACERDA, 2018, p.86).

Apesar de toda a história que a região do Porto abrigava, é possível argumen-


tar que este espaço tenha tido seu valor nacional contestado por ter uma
representatividade especificamente local. No entanto, a hipótese mais bem
desenhada para a recusa vem do fato de ser um espaço urbano essencialmen-
te popular, pois nos idos da década de 1980, apesar da ampliação do conceito
de patrimônio com a introdução da produção dos esquecidos e excluídos pela
história tradicional, havia a permanência dentro das agências de preservação e
conservação de uma visão elitista da cultura.
(LACERDA, 2018, p.88)

90
A cidade inanimada./

Em 2017, “a prefeitura de Cuiabá, por meio da Secretaria Muni-


cipal de Cultura, gastou R$ 1,540 milhão para implantar o cenário per-
manente da Orla do Rio Cuiabá, no bairro do Porto” (FOLHAMAX, 2017).
Um cenário muito semelhante à Strada Novissima da Bienal de Veneza,
agora reproduzia fachadas de uma arquitetura cuiabana. Em seu interior,
muitos murais contendo textos sobre a história da cidade, fotografias e
mapas antigos.

Figura 2 – A arquitetura do passado e a arquitetura hiper-real. Fonte: Autora, 2021./

91
O espetáculo urbano que deveria ser permanente, durou apenas
quatro anos (figura 2). A estrutura construída em madeira foi destruída
pelas chuvas. A representação das fachadas é tentativa de recriação dos
“monumentos da memória numas tantas figuras de retorica esvaziada e
resfriada” (ARANTES, 1995, p.33), uma arquitetura simulada, pois algu-
mas fachadas foram simplesmente inventadas; outras imitam o patrimô-
nio arquitetônico cuiabano de uma forma mais simplificada, retirada de
contexto, miniaturizada, reduzido à superfície de uma cidade inanimada.
Tudo isso para compor o cenário em torno do tricentenário de
Cuiabá, que completaria três séculos de fundação em 2022. Entretanto,
para a validação do espetáculo urbano usou-se a data de fundação do
Arraial da Forquilha e quase tudo ficou pronto para as festividades em
2019, faltando ser terminado o Aquário Municipal que ainda não foi entre-
gue. Para este, foi elaborado um projeto de requalificação com um anexo
(figura 2).
Atualmente, a cidade inanimada está sendo reconstruída de
concreto e tijolo, no mesmo lugar (na área de preservação permanente
(APP) do Rio Cuiabá). Neste projeto serão gastos mais 1,2 milhões, aproxi-
madamente. O preço para manterem essa vitrine exposta para sempre e
juntamente com ela todo um espetáculo urbano, que aproxima o turista
e afasta os moradores, os ribeirinhos e os que não pertencem a uma
determinada classe social ou um a um padrão estabelecido.
A cidade inanimada e o Aquário Municipal fazem parte do proje-
to de revitalização da Orla do Porto, que está sendo elaborada em duas
etapas. Na primeira etapa, o projeto contemplava a revitalização de 1,3
quilômetros da orla, sendo inaugurada em 2016, mas algumas partes não
foram finalizadas, mesmo tendo desmatado boa parte da APP, para a
ampliação calçadão da orla, da abertura e visão do Rio e da Ponte Júlio
Muller e a implementação de bares e restaurante ao longo de toda a orla,
além da cidade inanimada.

Para a segunda etapa, a

“[...] Prefeitura de Cuiabá, ao longo de mais de 600 metros de extensão vai


implantar calçadões para caminhada e contemplação, ciclovia, iluminação,
arborização e adequação de acessibilidade. Além disso, o espaço contará com
esculturas de personalidades regionais, área coberta por lonas tensionadas
destinadas a feiras locais, espaço com aparelhos para atividades físicas ao ar
livre e estacionamento”
(PNBONLINE, 2020)

A Orla do Rio Cuiabá é uma área da cidade que está encurralada


pelas vias de fluxo intenso e rápido, para cima do Rio Cuiabá. Uma região
que é utilizada pelos pescadores que, em nenhum momento, foram le-
vados em consideração. Lócus da cultura tradicional, da pesca, da Festa
92
de São Gonçalo (padroeiro do bairro).
Sendo assim, nos últimos anos, as transformações urbanas
realizadas na cidade de Cuiabá-MT, estiveram vinculadas à busca pela
consolidação do ideal de ‘Cidade Moderna’, (SANTOS, 2013, p. 22), além
da persistência do estigma do 'novo' associado ao moderno, visto como
'melhor' e mais adequado para alcançar o ideal avançado, como suscita
também Arantes (2014, p. 20). Esta cidade, não tem sugere a imprevisi-
bilidade, não tem espaço para o que acontece repentinamente, não tem
lugar para o Outro. É uma cidade pronta e acabada.

93
A CIDADE
NÃO PODE
TER
CONCLUSÃO.../

94
As cidades sofrem silenciamentos e a desvalorização das suas
tradições e de seus espaços prenhes de cultural. O porto era a porta de
entrada da cidade na época das navegações, mas ainda poderia conti-
nuar sendo. Isto porque é preciso atravessar a Ponte Júlio Muller para se
chegar a Cuiabá. Entretanto, agora, de uma outra maneira, a Orla do Rio
Cuiabá passa a ser a principal chegada à cidade por meio da construção
de uma arquitetura inanimada.
No entanto, nesse processo de ressignificação, não valorizaram
ou incentivaram o comercio local, ou consultaram a comunidade. Os
espaços transformados ficam vazios a maior parte do tempo, pois não
foram elaborados projetos que pudessem dar sentido à cultura do lugar,
ou que tivessem a possibilidade de uma participação dos que ali peram-
bulam em uma continua construção da identidade.
Sendo assim, talvez, isso apenas beneficie poucas pessoas em
um curto espaço de tempo, pois a novidade está sujeita a obsolescência,
tendo um curto prazo de validade. Fatalmente, essa estratégia prejudica
as tradições, apaga os sentidos da cidade tradicional, abre caminho para
sessar os ruídos urbanos. Uma cidade acabada, construída para dar cer-
to, render benefícios e vender uma imagem, já deu errado em seu princí-
pio. Uma cidade não pode ter conclusão...
95
Referências Bibliográficas./

ARANTES, Otília Beatriz Fiori. O lugar da Arquitetura depois dos moder-


nos. 2ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 1995.

ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Urbanismo em fim de linha e outros estu-


dos sobre o colapso da modernização arquitetônica. 2 ed. rev., 1. reimp.
São Paulo: editora da Universidade de São Paulo, 2014. 224p.

ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pen-


samento único: desmanchando consensos. 8°ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2013, 192 p.

BOMFIM, Marcia. As engrenagens da cidade: centralidade poder em Cuia-


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2010.

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FOLHAMAX. Cuiabá investe R$ 1,5 milhão com cenário da Orla do Porto.


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GOMES, C. T. do A. C. Viveres, fazeres e experiências dos italianos na ci-


dade de Cuiabá: 1890-1930. Cuiabá: Entrelinhas: EdUFMT, 2005. 159p.

LACERDA, M. D. C. DE A. A invenção dos lugares de memória em Cuiabá:


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em Mato Grosso (1958-2013). Cuiabá-MT: EdUFMT. 2018.

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formação do Centro Histórico de Cuiabá: uma construção historiográfica.
94-113. In. BARBOSA, Frederico Celestino. Ciência e Desenvolvimento: um
olhar sobre a humanidade. Piracanjuba-GO. Editora Conhecimento Livre,
2020. 127p.

PNBONILINE. PREFEITURA DE CUIABÁ INVESTE QUASE R$ 4 MI NO PRO


96
JETO ORLA DO PORTO II. PNBONLINE. 25 FEV. 2020. DISPONÍVEL EM:
HTTPS://WWW.PNBONLINE.COM.BR/GERAL/PREFEITURA-DE-CUIABA-IN-
VESTE-QUASE-R-4-MI-NO-PROJETO-ORLA-DO-PORTO-II/63758

PÓVOAS, L. C. Sobrados e casas senhoriais de Cuiabá. Cuiabá: Fundação


Cultural de Mato Grosso. 1980.

ROMANCINI, Sônia Regina. Cuiabá: paisagem e espaços da memória. 1ed.


Cuiabá: Cathedral Publicações, 2005. 176p.

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SIQUEIRA, E. M; et.al., Cuiabá: de vila a metrópole nascente. Cuiabá: En-


trelinhas, 2006. 2008p.

97
05./ Lucas do Nascimento Souza

O caminhar
como uma
modalidade de
pesquisa.
98
Resumo./
Como analisar áreas urbanas na cidade contemporânea diante
da pluralidade das formas de apropriação dos espaços públicos? Este
trabalho busca contribuir com os estudos qualitativos sobre percepção
urbana por meio do método da cartografia. Assim, este escrito não trata
da busca de informações ou levantamento de dados, mas sim da imer-
são na processualidade em curso presente no território do antigo leito
férreo da cidade de Bauru-SP. O texto evidencia uma prática de pesqui-
sa pouco explorada neste recorte espacial, que tende a contribuir com
as discussões sobre percepção urbana e as futuras intervenções nesta
área, uma vez que revolvidas as camadas sócio-espaciais decantadas e
acessado um imaginário urbano pouco explorado por meio do caminhar
como modalidade de pesquisa.

Palavras-chave: Percepção urbana, Cartografia, Leito férreo, Cidade,


Bauru-SP.
99
Introdução./
Quais critérios teóricos e metodológicos deve seguir o arquiteto e
urbanista ao analisar áreas urbanas frente às transformações percebidas
na cidade contemporânea? Como descrever ou representar, a partir da
pesquisa qualitativa, os desejos e agruras dos espaços públicos das nos-
sas cidades? Como tentativa de validar uma modalidade de pesquisa que
dê visibilidade ao imaginário coletivo presente no trecho urbano do an-
tigo leito férreo da cidade de Bauru, este escrito tende a contribuir, para
além da ampliação do debate sobre os métodos de análise qualitativa
dos espaços urbanos, também para o arcabouço teórico utilizado nos
estudos sobre percepção urbana, especificamente no contexto da cidade
de Bauru, a partir de uma modalidade de pesquisa pouco explorada nes-
te contexto urbano. Na busca por tentar responder os questionamentos
anunciados acima, este trabalho se divide em quatro pontos. O primeiro
deles trata a problemática envolvida e faz uma breve apresentação do
contexto urbano onde será realizada a experiência de campo; o segundo
aborda o caminho metodológico traçado e o terceiro traz a apresenta-
ção dos dados produzidos a partir da experiência do caminhar como
prática estética; e, por fim, o quarto aponta algumas considerações que
não pretendem sistematizar nem concluir a experiência, mas sim lançar
possíveis direcionamentos acerca do contexto urbano explorado e alguns
apontamentos sobre modalidade de pesquisa utilizada. Assim, o objetivo
é suscitar novas reflexões sobre sua aplicação, podendo dar visibilidade à
possibilidade de uso para a análise e interpretação singular dos espaços
urbanos na contemporaneidade.
A cidade de Bauru, localizada no centro-oeste paulista, tem
seu leito férreo como testemunho do passado de pujança econômica
e social ainda no início do século XX. O transporte ferroviário que ala-
vancou a cidade passa a entrar em declínio após a segunda metade do
século e tem seu debacle marcado no início do século XXI. Os edifícios
ferroviários originários da “era de ouro” da cidade hoje encontram-se, em
sua maioria, depredados e subtilizados. Paralelo ao descaso patrimonial,
temos um vasto leito férreo que se configura pela junção de espaços er-
mos, à parte da cidade tradicional. Não menos pulsantes, esses espaços
encontram-se fora da rota das propostas de melhorias e intervenções
urbanas, mas sob olhares atentos dos Outros. Se o caminho percorrido
pelas locomotivas levando e trazendo cargas e passageiros pelo já consi-
derado maior entroncamento ferroviário da américa latina antes pudesse
ser considerado um não-lugar1, há tempos já não é assim. “Imagina, há
25 anos atrás isso aqui era bem diferente. A gente sabia que horas era
pelo apito do trem, tinha os horários certinho. Depois que parou tem

1 “Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que
não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico
definirá um não-lugar”. (Augé, 2002, p. 73.
100
ficado cada vez pior, desse jeito que vocês estão vendo aí”2. A série de
vagões abandonados em meio ao entulho e ao mato alto representa hoje
a paisagem de muitos moradores do Jardim Santana, bairro cortado pela
linha férrea. Mais à frente, à oeste, tem-se o patrimônio industrial re-
manescente da Companhia Antarctica Paulista, uma chaminé de tijolos.
Seguindo, chega-se ao trecho ao qual este trabalho se debruça, o re-
corte espacial do leito férreo no centro da cidade. A área abriga edifícios
patrimoniais remanescentes da atividade ferroviária na cidade, que hoje
pouco importa ao transporte de cargas, servindo, principalmente, para
transportar combustíveis.
Mais do que produto da percepção do espaço, as paisagens do
leito ferroviário são testemunhos da tecitura social na qual o homem
intervém continuamente.
Esta pesquisa parte do pressuposto da indissociabilidade do pes-
quisar e intervir, tendo como base que toda pesquisa é intervenção, con-
forme anunciado por Passos e Barros (2009). Neste sentido, atribuímos o
caminhar como ferramenta estética de interpretação da paisagem, onde
a partir disso, seja possível descrever e modificar espaços que revelam a
necessidade de serem compreendidos e atribuídos significados, confor-
me defende Careri (2013).

O caminhar revela-se útil à arquitetura como instrumento cognitivo e projetu-


al, como meio para se reconhecer dentro do caos das periferias uma geografia
e como meio através do qual inventar novas modalidades de intervenção nos
espaços públicos metropolitanos, para pesquisá-los, para torna-los visíveis.
(CARERI, 2013, p. 32)

O nomadismo presente desde a época de Abel3, apresentado por


Careri (2013), traz a experimentação e o mapeamento do espaço pelo
seu percurso em meio às pastagens, característica semelhante à perce-
bida pelo flâneur, descrito por Walter Benjamin: “aquele que ainda dispõe
de fragmentos da verdadeira experiência histórica e, por reconhecer a
distância que o afasta dessa experiência, ele representa a busca por uma
consciência histórica atual” (BIONDILLO, 2014, p. 9). “O flâneur se atenta a
cada detalhe das ruas e vê nelas sua fonte de inspiração, sentindo ‘uma
expressão misteriosa do gozo pela multiplicação do número’” (BENJA-
MIN, 1989, p. 187). Careri (2013) nos incita ao ato de caminhar, diante de
algumas passagens pela história da arte, do percurso dadaísta, passando
pela deambulação surrealista, até a “deriva”, cunhada pela Internacional
Letrista na década de 1950. Amparada pela psicogeografia, a deriva tem
por objetivo a exploração dos efeitos psíquicos produzidos no indivíduo

2 Trecho de diálogo informal com moradora do Jd. Santana, em meio a um dos percur-
sos realizados pelo leito férreo
3 Caim e Abel, o primeiro homicídio da humanidade, tratado na obra Walkscapes: O
caminhar como prática estética (CARERI, 2013).
101
dado o contexto urbano em que se está inserido.
Deste modo, nosso ponto de partida tem como pressuposto
essas experiências, mas não tem diretrizes específicas ou fórmulas pré-
concebidas, pois o método cartográfico não traça planos de trabalho, o
mesmo constitui-se no momento em que se inicia a ideia do pesquisar.
Tal direcionamento é composto por pistas, rastros a serem seguidos,
frestas entreabertas que aguçam nosso olhar e nossos sentidos e nos
levam a uma possibilidade de perceber e interagir com o espaço como
uma forma de interpretação singular.
Conforme formulado por Deleuze e Guattari (1995), a cartografia
não trata da representação dos objetos, mas do acompanhamento de
processos, portanto, meio não definitivo. Os procedimentos de pesquisa
aqui adotados estão diretamente ligados à ativação de diversos dispo-
sitivos sensoriais humanos: a visão, o olfato, o tato e principalmente a
audição, sendo este o mais sensível: aquele ao qual estamos mais vulne-
ráveis e, talvez, seja o mais importante ao ziguezaguearmos por entre os
trilhos do trem.
De tal forma, a modalidade de pesquisa a qual este escrito busca
dar visibilidade, vai de encontro com a necessidade de olhares mais
atentos às configurações a serem implementadas nos nossos espaços
urbanos, muitas vezes emergidas por incentivo dos agentes produtores
do espaço urbano, como o poder público, o setor privado e os interesses
do mercado, que, a partir da especulação imobiliária, arruínam o ou colo-
cam em dúvida o caráter humano dos espaços abandonados.
O modelo urbanístico de planejamento moderno, influenciado
pelo CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), a partir da
Carta de Atenas, vai na contramão de alguns aspectos presentes no leito
férreo de Bauru, como a série de conexões e entrelaçamento de forças
que emergem do espaço e revelam uma estrutura rizomática – ou que
não se fecha em si. Deleuze e Guattari (2007) expõem o conceito de
rizoma em oposição à estrutura hierárquica, que não conforma pontos
ou posições, somente linhas – uma percepção pelo meio, por entre os
trilhos. Os rastros destes espaços, grafites, pichações, lugares à mercê
do tempo, e outros tantos aspectos observados evidenciam a existência
de múltiplas conexões, que devem ser interpretadas em sua potência e
multiplicidade.
Nos limites da área de estudo aqui tratada temos o exemplo
da Avenida Rodrigues Alves, Bauru-SP, como tantas outras, trazidas do
ideário urbanístico do século XX. Um grande canal criado para escoar
a produção e as cargas trazidas pela ferrovia. Brasília, o exemplo mais
lapidado do racionalismo modernista também elucida o panorama de
eixos viários em detrimento dos espaços na escala das pessoas. De tal
sorte, este escrito perpassa pela crítica ao modelo moderno de urbanis-
mo por estar em sentido oposto às necessidades e anseios percebidos
nos espaços públicos das nossas cidades, sobretudo, àqueles lugares às
102
Perceber pelo meio./
margens do antigo leito férreo de Bauru.
“Não é fácil perceber as coisas pelo meio, e não de cima para
baixo, da esquerda para direita ou inversamente: tentem e verão que
tudo muda” (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 35). O nomadismo é rizo-
mático. Não se apreende o campo nômade com o estabelecimento de
começo, meio e fim. A apreensão nômade acontece. Tal sentido é pre-
sente no rizoma:

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre
as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança,
unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como
tecido a conjunção “e... e... e...”. Há nessa conjunção força suficiente para sacu-
dir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai você? De onde você vem? Aonde
quer chegar? São questões inúteis. Fazer tábula rasa, partir ou repartir do zero,
buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção de
viagem e do movimento (metódico, pedagógico, iniciático, simbólico...).
(DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 37)

Como permitir o domínio do espaço sobre nós? Careri (2013, p.


80) é categórico ao afirmar que “o percurso desenvolve-se entre insídias
e perigos, provocando em quem caminha um forte estado de apreensão,
nos dois significados, de sentir medo e de apreender”. Talvez a respos-
ta esteja no caminhar. “O espaço apresenta-se como um sujeito ativo e
pulsante, um produtor autônomo de afetos e de relações. É um organis-
mo vivente, com um caráter próprio, um interlocutor que tem repentes
de humor e que pode ser frequentado para instaurar um intercâmbio
recíproco” (CARERI, 2013, p. 39).
Careri nos coloca que antes do neolítico a única arquitetura sim-
bólica capaz de provocar mudanças no ambiente era o ato do caminhar,
“uma ação que, simultaneamente, é ato perceptivo e ato criativo, que ao
mesmo tempo é leitura e escrita do território” (CARERI, 2013, p. 51).
Nesse sentido, retomamos aqui que a pesquisa não se inicia ao
ir a campo, e nem possui aparatos técnicos pré-estabelecidos que irão
subsidiar a exploração, pois a exploração em si é o caminho, de tal for-
ma, emerge daí o processo recíproco de interação com o lugar. Não seria
possível fazer uso do método cartográfico sem ir a campo, tampouco
descrever quaisquer que fossem as impressões, mesmo que rememo-
rando, pois, a pesquisa está intrinsicamente ligada à prática do percurso.
“O ponto de apoio é a experiência entendida como um saber-fazer, isto
é, um saber que vem, que emerge do fazer. Tal primado da experiência
direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer ao fazer-saber, do saber
103
na experiência à experiência do saber. Eis aí o “caminho” metodológico”
(PASSOS e BARROS, 2015, p. 17).
A produção dos dados ocorre logo no início da pesquisa de cam-
po, que já desconfigura uma simples coleta de dados, pois esse processo
perpassa todas as etapas da pesquisa, desde a análise, tratamento, até a
publicação dos resultados, conforme Passos e Kastrup (2015).
O nosso percurso foi adiado várias vezes. O medo e a insegurança
fizeram com que a aproximação do desconhecido fosse protelada. Como
entrar ali? Como passar por aquele trecho perigoso?
Entretanto, a resposta sempre esteve no lugar. Ali, e, ao mesmo tempo,
aqui; dentro de nós. Só precisávamos resgatá-la dentro do âmago, reco-
nhecê-la como dado científico e parte da experiência.

Era preciso rasgar a Membrana...

Sabíamos que tínhamos de nos livrar das amarras; mas, não é


fácil.
Assim, este trabalho trata, sobretudo, do relato de pesquisadores
angustiados, ansiando pela ruptura de um estigma que as próprias ma-
trizes curriculares estanques ao longo de cinco anos de estudos deixa-
ram.
Agora sabemos que aquele espaço temido tem vida. Tem ação.
Tem reação. Tem gente. Tem buraco. É casa. É abrigo. É resistência.
A insistência nos cursos de arquitetura em projetar todo leito
férreo como um grande parque linear e cravar um letreiro “I am Bauru”
cegaria qualquer um que ali estivesse. Mero desejo, também importado,
dos arquitetos pós modernistas que vagueiam as ideias de alguns profis-
sionais do interior paulista.

Ruptura.

Bom, aqui estão esses dados, parcialmente reproduzidos nes-


se nosso processo de re-conhecimento do antigo leito férreo de Bauru.
Digo parcialmente porque, nem a escrita, tampouco a gravação, ou os
desenhos, podem representá-los. Nem devem, e eu também não quere-
mos. Não é o objetivo. O mais difícil aconteceu. Era preciso rasgar nossa
armadura e se lançar para o desconhecido. Não esperar, nem provocar,
mas estar suscetível a...

Buraco!

104
A presença física do homem num espaço não mapeado – e o variar das per-
cepções que daí ele recebe ao atravessá-lo – é uma forma de transformação
da paisagem, que, embora não deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o
significado do espaço, e consequentemente, o espaço em si, transformando-o
em lugar. O caminhar produz lugares.
(CARERI, 2013, p. 51)

Valendo-se das afirmações de Careri (2013), que o caminhar


produz lugares, assumirmos que intervimos no espaço ao pesquisar.
Vale ressaltar como se dá o processo de produção desse conhecimento
porque, a subjetividade é também um sentido trabalhado, assumindo
diferentes posturas no decorrer da pesquisa até atingir um resultado
inesperado. Daí a importância da distinção entre método e modalidade
de pesquisa.

Defender que toda pesquisa é intervenção exige do cartógrafo um mergulho no


plano da experiência, lá onde conhecer e fazer se tornam inseparáveis, impe-
dindo qualquer pretensão à neutralidade ou mesmo suposição de um sujeito
e de um objeto cognoscentes prévios à relação que os liga. Lançados num
plano implicacional, os termos da relação de produção de conhecimento, mais
do que articulados, aí se constituem. Conhecer é, portanto, fazer, criar uma
realidade de si e do mundo, o que tem consequências políticas. Quando já não
nos contentamos com a mera representação do objeto, quando apostamos
que todo conhecimento é uma transformação da realidade, o processo de pes-
quisar ganha uma complexidade que nos obriga a forçar os limites de nossos
procedimentos metodológicos. O método, assim, reverte seu sentido, dando
primado ao caminho que vai sendo traçado sem determinações ou prescrições
de antemão dadas. Restam sempre pistas metodológicas e a direção ético-po-
lítica que avalia os efeitos da experiência (do conhecer, do pesquisar, do clini-
car, etc.) para daí extrair os desvios necessários ao processo de criação.
(PASSOS e BARROS, 2015, p. 30, grifo dos autores)

O rizoma, descrito por Deleuze e Guattari, não só é identificado


na estrutura de forças atuantes, nas entradas múltiplas do leito férreo,
como também, no modo de interpretação e produção do espaço. É tam-
bém ferramenta para entendimento das subjetividades apreendidas no
espaço, meio pela qual tentamos esboçar a forma estética a qual somos
afetados. “A questão é produzir inconsciente e, com ele, novos enuncia-
dos, outros desejos: o rizoma é essa produção de inconsciente mesmo”.
(Deleuze e Guattari, 2007, p. 28).
Á área do leito férreo de Bauru abriga subjetividades subalternas
e expressões plurais da sociedade. Pode também ser lido como uma
zona autônoma temporária (TAZ – do inglês Temporary Autonomous Zo-
ne)4, a qual Bey (2004) não define, mas lança “fachos exploratórios” sobre
4 BEY, Hakim. TAZ: Zona Autônoma Temporária. Trad. REZENDE, Renato. 2. Ed. São Pau-
lo: Conrad Editora do Brasil, 2004.
105
um lugar, físico ou não, enquanto tática, percepção e prática de liberda-
de e estratégia política. O leito férreo de Bauru é uma possível TAZ, pois
detém uma dinâmica livre, de possibilidade de uso anarquista, dinâmica
essa ainda não alcançada pelo invólucro dos poderes da cidade projeta-
da, e que, se aparelhado a serviço do Estado e das organizações, tem a
possibilidade de ressurgir em outros lugares, pois não é definição e sim
tática, realidade que não é apreendida pela cartografia rígida das repre-
sentações totalitárias. “Quando o rizoma é fechado, arborificado, acabou,
do desejo nada mais passa; porque é sempre por rizoma que o desejo se
move e se produz”. (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 23). Daí a necessidade
da cartografia como modalidade singular de exploração do espaço.
Busca-se, portanto, experimentar um estranhamento. Quase que como
etnógrafo, o cartógrafo pode e deve entrar em contato com o Outro, per-
mitir que o Outro faça parte do seu processo de percepção do espaço,
enquanto agente daquele lugar. É ceder o nosso corpo, nossos sentidos
e nossa posição de fala para os Outros. É se colocar no lugar do itineran-
te, do andarilho, daquele que carrega em si as experiências do nômade.
É permitir que o espaço, tal qual como aquele que recebe as manifes-
tações dos Outros, também se expresse em nós. Assim, poderemos
agora carregar temores, angústias, necessidades e antever alguns dos
seus desejos. Isso em muito se distancia do roteiro técnico de análise
dos espaços urbanos que estamos acostumados a fazer nas escolas de
arquitetura.

106
O caminhar./

Ao nos propormos caminhar, buscamos explicitar essa experi-


ência e demonstrá-la sem definir esta etapa como uma coleta de dados
findada, mas sim, uma produção de informação inacabada. A possibilida-
de de retomar a caminhada novamente, inclusive, tem por objetivo sus-
citar novas reflexões e contribuir mais e mais para as pesquisas qualita-
tivas em torno de metodologias pouco exploradas, possibilitando novas
conexões para este espaço. Nos munimos de um telefone celular de
modelo popular com uma câmera suficientemente boa para os registros
(importante salientar que não havia conexão de dados no dispositivo, ou
seja, não estávamos conectados à internet para que não houvesse qual-
quer interferência externa à experiência). Além do telefone celular, leva-
mos um caderno, nosso diário de campo5, já usado para outros fins, com
o intuito de registrar pensamentos, ações ou qualquer outro fenômeno
emergido do espaço. Acompanhado do caderno, uma caneta nanquim.

[...] o pesquisador está, portanto, incluído no processo da pesquisa e se


restitui, ele também, na operação de análise das implicações. O registro do
trabalho de investigação ganha, dessa forma, função de dispositivo, não pro-
priamente para concluir o trabalho ou apresentar seus resultados finais, mas
como disparador de desdobramentos da pesquisa”.
(BARROS e PASSOS, 2015, p. 173)

Importante destacar que a narrativa dos dados produzidos


deste trabalho não se faz por meio de suas representações ou escritas,
mas encontra-se no próprio percurso realizado por entre os trilhos da
ferrovia, na estação central e nas oficinas. A ideia do uso dos termos
“membrana, ruptura e buraco” é uma alusão às dificuldades supera-
das relacionadas ao processo de imersão na modalidade de pesquisa
e, consequentemente, no percurso a ser realizado. Áreas reconhecidas
como perigosas deveriam ser acessadas, membranas deveriam ser ras-
gadas. Conceitos e preconceitos deveriam ser ressignificados, ruptura.
E buracos deveriam ser penetrados, serviriam de porta de entrada para
um mundo desconhecido. Ao longo do percurso o sentido de buraco vai
ganhando mais sentido, tal como Alice, que mergulha na toca do coelho
e passa a se comunicar com os animais, seres próprios daquele país de
maravilhas.
5 O diário de campo pode ser acessado na íntegra virtualmente. Disponível em: <ht-
tps://drive.google.com/file/d/1gf9aHR9xCR15XyP2Df0RGzsQWzpSOSlq/view?usp=sha-
ring>.
107
Antes de começar o percurso alguns medos deveriam ser supe-
rados. O encontro com o desconhecido é temerário. Careri é categórico
ao falar sobre o caminhar na América do sul: “[...] significa enfrentar mui-
tos medos: medo da cidade, medo do espaço público, medo de infringir
as regras, medo de apropriar-se do espaço, medo de ultrapassar barrei-
ras muitas vezes inexistentes e medo dos outros cidadãos, quase sem-
pre percebidos como inimigos potenciais” (CARERI, 2013, p. 170, grifo do
autor).

No leito férreo de Bauru não é diferente. Este espaço à mar-


gem da sociedade abriga muitos usos, uma verdadeira confluência de
outros espaços que interagem entre si, gerando novos espaços, outras
conexões. Roupas queimadas evidenciam a fogueira que ali aconteceu.
A sobreposição de camadas é clara ao vermos o caminho informal, de
mato pisado, se sobrepondo aos trilhos. Ao largo deles, marcas de pneu.
Foucault (2009) descreve essa sobreposição de espaços dentro de ou-
tros espaços e a forma como eles se relacionam como heterotopia. “A
heterotopia consegue sobrepor, num só espaço real, vários espaços, vá-
rios sítios que por si só seriam incompatíveis”. (FOUCAULT, 2009, p. 416).
A figura 1 trata-se do percurso realizado na área:

Figura 1 – Mapeamento do percurso realizado. Fonte: Google Earth, modificado pelo


autor (2021)./
108
A figura 2 se refere a uma fotomontagem elaborada a partir da
percepção de confluência e sobreposição de diversas atividades e espa-
ços dentro do leito férreo.

Figura 2 – Fotomontagem ilustrativa da heterotopia. Fonte: Acervo e modificações pelo


autor (2021)./

A dinâmica do movimento espiral que a concertina apresenta


está para além da representação em si. Ela se conecta ao campo reflexi-
vo que nós, cartógrafos em ação, adentramos, influenciados pelas dinâ-
micas espaciais do ambiente e de como ele nos afeta. As lâminas pon-
tiagudas e cortantes penetram àquele que tenta ultrapassar os limites.
Segurança patrimonial ou segregação? Patrimônio de quem? Para quem?
O que tem de um lado que não pode ser conectado ao outro? As has-
tes cortantes, antes de rasgarem, lançam um alerta: proibida a entrada!
A gare e todo o prédio da estação central são cercados por alambrado,
enquanto nos muros, arame farpado... mesmo assim, penetramos. Agora
fazemos parte deste mundo. Ele faz parte de nós também.
Neste sentido, o leito férreo de Bauru pode ser considerado um
lugar heterotópico, lugar de sobreposições de tempos e espaços, mora-
dores em situação de rua, usuário de drogas, andarilhos, vagões abando-
nados agora são moradia. Os viadutos e as pontes que se sobrepõem ao
leito férreo cobrem áreas imensas que acomodam os que não têm casa.
A figura 3 trata desse espaço-tempo interconectado.
109
Figura 3 – Fotomontagem da sobreposição de temporalidades e conexões. Fonte:
Acervo e elaboração pelo autor (2021)./

A figura 4 traz uma representação originada do percurso realiza-


do para este trabalho e de outros realizados anteriormente, sendo parte
de um processo que se quer inconcluso. Esse mapeamento cognitivo
se revela como expressão singular dentro da modalidade de pesquisa
aqui delimitada. Assim, a partir do caminhar, nosso imaginário é revolvi-
do suscitando memórias, pensamentos, desejos, impressões e aspectos
que, ao serem colocados no papel, geram uma cartografia. “O objetivo da
cartografia é desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em
questão se encontra conectado” (BARROS e KASTRUP, 2015, p. 57).
110
Figura 4 – Cartografia do leito férreo. Fonte: Acervo e elaboração pelo autor 2021./

No coração da cartografia temos o entroncamento da Estrada de


Ferro Sorocabana, Estrada de Ferro Noroeste do Brasil e Cia. Paulista de
Estradas de Ferro. A base da cartografia é um mapa feito à mão, o cinza
representa o limite urbano e os tons de vermelho se tornam mais vivos
de acordo com a hierarquia, sob o ponto de vista do leito férreo: princi-
pais acessos e transposições, rodovias e ferrovia. A partir da apreensão
realizada no espaço, pode-se representar alguns aspectos desse sistema
complexo que se assemelham a uma estrutura rizomática (figura 5):
111
Figura 5 – Estrutura rizomática observada. Fonte: Elaborado pelo autor 2021./

Deixamos aqui os registros da exploração por estes espaços


ermos, tão cheios de significado e vida. Guattari (1996)6 coloca que as
partes constituintes da criação de um trabalho filosófico, depende de
diversas variáveis que não são reproduzíveis. Neste sentido e, conside-
rando a singularidade com que buscamos representar esteticamente a
experiência subjetiva pelo leito férreo de Bauru, consideramos aqui, tam-
bém, muitas reticências e um pedido de continuidade da exploração por
este espaço que possibilita infinitos agenciamentos e conexões...
6 Paráfrase da resposta ao questionamento sobre a reprodução e aplicação da obra
Capitalismo e Esquizofrenia em outros cenários, em uma conversa informal após uma
conferência realizada na PUC São Paulo, em 8 de setembro de 1982, quando Felix Guat-
tari visitou o Brasil.
112
Continuar caminhando.../

Este trabalho não termina aqui. Esperamos que contribua ao


debate sobre a cartografia como método de pesquisa e o aumento da
visibilidade de outras modalidades de pesquisa sobre percepção urbana,
e, para além disso, seja ponte para outros trabalhos a serem desenvol-
vidos no contexto urbano dos nossos espaços públicos, sobretudo de
Bauru. Ao adotar o caminhar como técnica estética de interpretação da
paisagem, este escrito pretende ampliar as possibilidades das pesquisas
qualitativas comprometendo-se a cumprir com seu papel científico sem
que haja qualquer prejuízo metodológico, uma vez que desenvolve-se
longínquo da metodologia tradicional do arcabouço prático da ciência
moderna.
113
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114
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PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana. (Orgs.). In: Pistas


do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetivi-
dade. Porto Alegre: Sulina, 2015, pp. 17-31.

115
06./ Paula Gabbi Polli

Uma
narrativa de
descobertas,
(re)
construções e
deciframentos
do arquiteto na
cidade.
116
Resumo./
Este capítulo trata da relação sujeito|cidade como processo
aberto, múltiplo e relacional, adotando uma investigação sobre o ato de
(re)descobrir espaços urbanos enquanto meio para uma (re)descoberta e
(re)definição do sujeito. A trajetória de descobrimento é investigada com
foco sobre o modo como as emoções permeiam as experiências cotidia-
nas e como estas se relacionam com a concepção da auto identidade.
Considerando a intenção do estudo, adota-se uma abordagem qualitativa
através do método fenomenológico. Por meio da narrativa de três mo-
mentos que marcaram o percurso de descoberta de um novo espaço
urbano, foi possível evidenciar que o processo de construção permanen-
te do sujeito se interliga, conecta e perpassa o processo também per-
manente de construção do lugar. Neste entendimento, o estudo aferiu
que falar sobre o presente das cidades, também significa olhar para os
aspectos do passado e do futuro do sujeito.

Palavras-chave: auto identidade, emoções, dimensões temporais, narrati-


vas urbanas, corpo sensível.
117
Introdução./
Como afirma Bachellard (2008), a casa é o nosso canto no mun-
do. É onde, mesmo longe, somos capazes de revisitar o sentimento de
segurança e proteção. Ao me deparar com a seguinte frase, “you can’t
go home again” 1 (PROSHANSKY et al, 1983), tal pensamento, ao me
fazer cogitar que jamais serei capaz de revisitar este mesmo espaço, me
conduziu a um entendimento, mesmo que ainda parcial, do quão mutá-
vel e inconstante é o espaço que vivenciamos. O mesmo, e talvez até de
forma mais evidente, ocorre quando olhamos para nós, o sujeito. Aquela
rua do hoje não é a mesma que já foi há 29 anos atrás e jamais será a
mesma do amanhã. Da mesma forma que esse espaço se modifica e se
reconstrói diariamente, sazonalmente, ano após ano, também vou me
modificando me reconstruindo. Tal reflexão me conduz ao pensamento
do quão inacabados a cidade e o sujeito se encontram nesse momento
que aqui relato as minhas percepções.
Colocando tal paralelo em perspectiva, neste capítulo iremos
tratar da relação sujeito|cidade enquanto processo aberto, múltiplo e
relacional, partindo de uma investigação sobre o ato de (re)descobrir
espaços urbanos enquanto meio para uma (re)descoberta e (re)definição
do eu. Pautado na ideia de que o espaço urbano, assim como a identi-
dade do sujeito, se encontra em um estado em construção, volta-se o
olhar, neste texto, para a identidade pessoal não como substância, mas
como sentimento, o qual somente pode se configurar na pluralidade das
ressonâncias da experiência (LE BRETON, 2019).
Assumindo que o homem está afetivamente presente no mun-
do e a existência é um fio contínuo de sentimentos (LE BRETON, 2019),
adota-se como foco deste trabalho o modo como as emoções per-
meiam as experiências cotidianas e como estas se relacionam com a
concepção da auto identidade. Neste contexto, é investigada a relação
da pesquisadora ao se deparar com as descobertas e as emoções que
um novo espaço urbano é capaz de despertar, evidenciando aspectos da
relação pessoa-ambiente no contexto das cidades.
Considerando a intenção do estudo em investigar a vivência
do sujeito através das emoções evocadas no jogo de acontecimentos,
característico do viver cotidiano nas cidades, adota-se uma abordagem
qualitativa por meio do método fenomenológico. Neste contexto, o estu-
do revela um mergulho na relação sujeito|cidade através da consciência
que daí emerge, por meio dos significados e emoções que o sujeito atri-
bui ao objeto enquanto parte de uma trajetória de auto descobrimento,
atrelada ao desvendar de um novo contexto urbano.
Por meio da pesquisa, foi possível aferir que o comprometimento

1 “Você não pode voltar para casa” (PROSHANSKY et al, 1983, tradução nossa).

118
característico da relação sujeito e cidade retrata, ao mesmo tempo, o
processo de construção permanente do sujeito, que se interliga, conec-
ta e perpassa o processo também permanente de construção do lugar.
Logo, entende-se que olhar a cidade por meio de suas diversas possi-
bilidades, caminhos, elementos e pessoas, significa também olhar para
a auto identificação do sujeito, onde aspectos do presente do lugar, se
inter-relacionam com o passado e o futuro de cada indivíduo.

119
A cidade como jogo de
acontecimentos./

Ao buscar delinear um trajeto para esse processo de (re)des-


cobrimento, o olhar sobre a experiência na cidade surge por meio da
narrativa de momentos. Ancorada em uma perspectiva situacionista2 do
pensamento urbanístico, entende-se que os momentos que permeiam
a vivência nas cidades, caracterizados por certa ambiência3 e permeada
pelo jogo de acontecimentos, são responsáveis por estabelecer a nossa
percepção em relação aos espaços que habitamos no decorrer da nossa
existência.
Ao recordar as cidades que habitei, a ideia de momentos, que
na minha percepção constroem a imagem que tenho desses locais, se
apresentam como objeto principal dessas rememorações. Tais situa-
ções, inseridas em um contexto espaço-temporal, surgem carregadas de
emoções e sensações, decorrentes das ambiências evocadas em cada
lembrança.

Me recordo da brisa quente, da sensação do vento norte que toca


a minha pele anunciando o fim do inverno na minha cidade natal; O som
das folhas batendo umas contra as outras soma-se ao movimento lento
da silhueta das árvores toda vez que passava caminhando em frente ao
Jardim Botânico de Florianópolis nos finais de tarde; O reflexo das luzes
dos semáforos e dos carros refletidos nas poças de água acumuladas
pelo chão da cidade de Londres me transportam para a atmosfera fria e
por vezes ensolarada da primavera inglesa.

2 “Nossa ideia central é a construção de situações, isto é, a construção concreta de


ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional
superior. (...) o cenário material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o
alteram” (DEBORD, 1957).
3 O estudo das ambiências abarca não somente os fatores sensíveis do lugar (seus
sons, cheiros, luzes e cores, o movimento do ar e das pessoas) ou as sensações de
equilíbrio, de amplidão ou confinamento mas, também, sua capacidade de evocar me-
mórias e estabelecer afetos (DUARTE, 2015).
120
Tais percepções, que se fazem presentes por meio de revisita-
ções aos meus vividos, apontam para a concepção de que o corpo é o
aparelho sensível através do qual interagimos com o mundo (DUARTE,
2015). Vivemos e recordamos a cidade por meio das sensações que essa
nos provoca. Tal ideia aponta para concepção da existência e sua relação
com o espaço urbano por meio de uma solicitação sensível que permite
ao sujeito viver em plenitude. Ao nos tornar sensíveis ao ambiente que
nos rodeia, nos abrimos a nós mesmos, ao nosso próprio corpo (CAZAL,
2014). Tal fato aponta para a importância de se analisar tais momentos
como objeto deste estudo, buscando, por meio de um olhar sobre a ci-
dade, olhar para o processo de construção identitária do sujeito.
Por meio dessa perspectiva, é exposta a narrativa de três mo-
mentos que marcaram o percurso de descoberta desse novo espaço
urbano, conduzindo ao processo de (re)descoberta e (re)construção do
sujeito. Destaca-se, por fim, que o olhar sobre os acontecimentos nessa
pesquisa se dá com foco no detalhe e pelo fragmento como método de
apreensão do cotidiano (BARROS, 2019).

121
O cotidiano como
enfrentamento/descobrimento./

A narrativa que aqui se inicia descreve a experiência da pesquisa-


dora frente ao até então desconhecido que caracteriza esse novo espaço
urbano à espera de ser descoberto. A mudança de residência para um
contexto espacial repleto de novas culturas, novas linguagens, novos
modos de agir desperta a possibilidade de investigar as relações sensí-
veis entre o sujeito e a cidade, pois é quando nosso ambiente é modi-
ficado que nos tornamos mais conscientes a respeito (ITTELSON et al,
2005).
Ao me encontrar inserida nesse espaço, com novos símbolos e
novos ritos, foi possível perceber como o estar na cidade envolve uma
série de atravessamentos, relacionados à diversidade de elementos que
compõem a experiência do descobrimento. Vivenciar essa nova cidade
é sentir-se mergulhar em uma grande quantidade de signos onde não
há um código único para decifrá-los, os significados não são dados de
antemão, precisam ser produzidos (CAMPBELL, 2015). A pluralidade de
informações e de diferenças, em uma primeira aproximação com o lugar,
causa estranhamento, confusão:
Apesar das diferentes necessidades que me conduzem ao deslo-
camento pelo espaço urbano, todos os dias sinto o atravessar de sensa-
ções semelhantes. O caminhar pela cidade desperta olhares de crianças,
idosos e adultos. Todos passam me encarando, será que sou tão dife-
rente assim? Tento caminhar diariamente, buscar um pequeno contato
que seja com a luz do sol que mal sinto tocar a minha pele. Vejo poucas
pessoas correndo ao ar livre, muito menos mulheres aqui neste espaço.
Sinto novamente olhares, será que essa atitude é mal interpretada pelos
nativos? Será a roupa que estou usando? Deveria me portar de forma
diferente? Começo a tomar conhecimento dos questionamentos que
perpassam a minha percepção de mulher, estrangeira e brasileira nessas
terras distantes.
A experiência de acesso a um estabelecimento comercial já me
atravessa com um sentimento de insegurança. Fico desconfortável antes
mesmo de sair de casa. Ao chegar no caixa do mercado não sei se devo
tentar me comunicar em uma terceira língua, se é melhor ficar em silên-
cio, apenas concordar e tentar interpretar os sinais e gestos das aten-
dentes. Apontar, mostrar a quantidade por meio dos dedos, 1, 2, 3 pães,
gestualizar a intenção de comprar uma quantidade de queijo - em fatias,
não em bloco - já estão fazendo parte dessa nova rotina. Por vezes a
reação dos atendentes é solidária, tentam ajudar, retribuem sorrisos. Por
vezes o mau humor e a falta de paciência com o estrangeiro ajudam na
122
sensação de afastamento, causam mal estar. Será que um dia vou me
sentir em casa aqui? Parece que não (diário de campo, Dezembro de
2020).
Os relatos referentes à experiência do descobrimento retratam,
de início, uma série de questionamentos e incertezas provenientes da re-
lação do sujeito com o espaço. A percepção da auto identidade é ressal-
tada ao perceber a reação do outro, que resulta em um questionamento
frente a forma como deve-se agir: “deveria me portar de forma diferen-
te?”. Neste cenário o espaço urbano vira palco de uma comunicação
entre sujeitos que não se dá de forma direta e intencional, mas com-
portamental. Por meio de manifestações impregnadas de ambiguidade,
como olhares, gestos, conversas, risadas, o corpo do outro transmite
significados, que por vezes não são facilmente compreendidos.
A barreira gerada pelo desconhecimento de uma nova língua
pode, por vezes, ser superado por intermédio de mensagens simples,
pelo recurso aos gestos e às mímicas (LE BRETON, 2019). O gesto de
apontar, a identificação da quantidade de elementos por meio do le-
vantar dos dedos da mão ou o balançar da cabeça horizontal ou verti-
calmente, surgem como solução rápida e segura ao desafio que o viver
cotidiano agora apresenta. O fato de calar a voz, por sua vez, surge como
uma alternativa a uma possível exposição sobre o lugar de onde se está
falando, mulher, estrangeira e brasileira.
Tais acontecimentos ressaltam o papel do corpo vibrátil (ROL-
NIK, 2011), onde as situações do cotidiano, repletas de enfrentamentos e
descobrimentos, expõem um corpo que é afetado e acionado. A narra-
tiva descrita expressa, ainda, a busca por alternativas de sobrevivência
e adaptação a esse novo espaço, repleto de novas situações e relações.
Busca-se a segurança como um pequeno respiro frente ao turbilhão que
agora caracteriza o habitar na cidade.
Aliado às sensações que o contato com o outro desperta, a
incerteza em relação ao sentimento de pertencimento, seja ao contexto
espacial ou social deste lugar, reflete o processo de luto e luta expe-
rienciado pela autora (PROSHANSKY et al, 1983). Quando os laços com
o espaço familiar é rompido, a sensação de perda e de não pertencer
expõe a importância da vinculação ao lugar4 como elemento chave para
a construção de um senso de identificação com o espaço da vida coti-
diana. Os questionamentos, “deveria me portar de forma diferente?”, “um
dia vou me sentir em casa aqui?”, ressaltam a ideia de que as principais
mudanças de estado nas vidas das pessoas levam os indivíduos a recon-
siderar as suas perspectivas sobre eles próprios e sobre o mundo à sua
volta (SPELLER, 2005).

4 Aspectos da vinculação ao lugar são: um sentimento de segurança; um sentimento de


autonomia; o desejo e a capacidade de se envolver na apropriação; um nível ótimo de
estimulação interna e externa; e a congruência com o lugar (SPELLER, 2005).
123
Me recordo de um caminhar contido das grandes áreas livres
próximas à rodovia e ao trilho do trem, agora com suas árvores secas de-
vido ao inverno rigoroso que se aproxima. Os vastos gramados cobertos
por uma névoa branca e serena que pousa no ar estabelecem um clima
de mistério. O crocitar dos corvos ao fundo somam-se com as silhuetas
que observo ao longe. Apesar de ser 16h da tarde, o céu já está escuro.
Tal momento me atravessa com um sentimento de medo, inseguran-
ça e incerteza. Percebo que instantaneamente começo a me deslocar
mais rapidamente. É o meu corpo ativando o modo de defesa, buscando
meios para alcançar aquela sensação de segurança que por vezes sinto
que já não me pertence mais (diário de campo, Janeiro de 2021).

Figura 1 - Montagem sobre fotografias retratando o perder-se, os atravessamentos do


lugar. Fonte: acervo dos autores e editada pela mesma (2021)./

A experiência relatada evidencia a relação entre a experimenta-


ção do espaço e as ambiências que caracterizam essa vivência. A soma
de sensações – medo, insegurança -, aliada a percepção caracterizada
pelo vasto, o amplo e a ausência de pessoas, expressam a forma com
que o espaço afeta. Tal narrativa ainda conduz ao pensamento de que
a sensibilidade e a mobilidade são duas faces indissociáveis do mesmo
fenômeno urbano – arquitetônico, sem ser possível conferir supremacia
de uma sobre a outra (THIBAUD, 2004). Ao sentir, perceber e vivenciar
124
o espaço por meio de um corpo feminino e estrangeiro, a tensão gerada
pelo desconhecido, pelo escuro e vasto impulsiona ao movimento.
A reação – de deslocar-se com maior velocidade - reforça o papel das
angústias e incertezas que perpassam a vivência de um corpo que ao
ser afetado, aciona-se. Tal resposta se dá devido a percepção dos fatores
que compõem a ambiência desse novo cenário urbano, seja proveniente
do contato com o desconhecido, seja representado na figura do outro
- que reage a minha presença -, seja através da baixa legibilidade do es-
paço ao sentir-se perdido, confuso. Tal resposta ao meio serve enquanto
objeto para explorar o papel do passado ambiental na consolidação da
identidade e da vivência do sujeito, onde a experiência, por meio de nar-
rativas, constitui um meio de análise (LE BRETON, 2012).
Compreendido neste estudo por meio de uma concepção com-
parativa, o passado ambiental é a determinação do que é familiar e não
familiar ao sujeito (PROSHANSKY et al, 1983). Entendemos de forma
mais clara o que é familiar quando nos deparamos com o que é es-
tranho, o desconhecido que gera confusão e medo. Neste momento, o
papel da casa natal volta aos meus pensamentos. A sensação de segu-
rança proveniente das vivências junto ao espaço da primeira moradia, ao
contexto urbano da rua onde cresci, as relações sociais que desenvolvi
nesse espaço de segurança, conforto e também, descobrimento, são
revividos constantemente na minha interação com essa nova cidade.
Neste contexto, percebe-se que não vivenciamos o hoje somente
centrado no presente e por meio dos acontecimentos que caracterizam
esse lugar, aqui e agora. Cada som, cheiro, toque e sensação fazem parte
de um processo de revisitação aos vividos, colaborando para o estabe-
lecimento das emoções que permeiam a relação com esse novo lugar.
Seja por meio dos medos que o escuro e o vasto provocam, a insegu-
rança na atitude que devo desempenhar por meio da reação do outro,
percebo que descobrir esse novo espaço, diz muito sobre quem eu fui,
talvez de forma mais exata do que em relação a quem eu sou atualmen-
te.
Neste momento do estudo podemos perceber que o ato de nos
deslocarmos em nossas errâncias pela cidade promove uma captura
incessante de impressões e sensações que desencadeiam um processo
de triagem de nossas respostas afetivas proporcionadas pela incessante
(re)organização das referências memoriais (DUARTE, 2015). Tal questão
se relaciona a nossa própria memória corporal, isso significa dizer que
a forma como eu interajo com o espaço influencia nas formas como eu
irei interagir e perceber os ambientes em si (GREGORY, 2018).

125
O contraponto como experiência./

Me deparo com a lembrança de um caminhar lento, novamente


noto o olhar dos demais indivíduos que ocupam esse mesmo espaço.
Percebo como o simples deslocar lento desperta interesse. Diferente
das pessoas idosas que também parecem viver o mundo nessa mesma
velocidade, o meu percorrer desperta curiosidade e desconfiança. Ao
adentrar as pequenas ruas com casas em fita percebo uma calmaria ca-
racterística dessa parte da cidade. Longe do caos do centro consigo me
deslocar com maior tranquilidade. Penso em caminhar pelo canto da rua,
pois as calçadas não são confortáveis. Não vejo ninguém andando pelo
leito viário, não sei ao certo se isso é mal interpretado, devo seguir por
aqui? Melhor não, retornarei à calçada.

Figura 2 - Montagem sobre fotografias retratando o deslocar-se, os ruídos do lugar.


Fonte: acervo dos autores e editada pela mesma (2021)./
126
O baixo movimento de pessoas e carros permite que os demais
sons sejam percebidos, acho curioso que não consigo ouvir nenhum
ruído de dentro das casas. Silêncio. Momentaneamente ouço o assoviar
de 3 passarinhos junto ao gramado localizado em frente a um dos pré-
dios, tal situação me atravessa com uma sensação boa, quente, familiar.
Desde que passei a percorrer as ruas dessa cidade, acho que é a primei-
ra vez que ouço o som de uma ave que não seja o crocitar dos corvos.
Sigo percorrendo, em certo momento ouço alguns cães latindo dentro
de um quintal. Não avisto pessoas ou vozes, apenas um portão fechado.
Permaneço ouvindo o latir ao fundo e sinto que a presença desse som
me afeta com uma sensação boa, conhecida. Ao me sentar para des-
cansar em um banco junto a uma praça onde crianças correm e brincam
sob o olhar atento dos pais, percebo que tanto a presença dos pássaros,
quanto o som do latido, foram capazes de me transportar para lugares
das minhas vivências passadas.
Talvez seja o contraponto entre o cenário europeu, onde o frio, o crocitar
dos corvos e as árvores secas parecem tão distantes e amedrontadores.
Tais sons percebidos me conduziram em devaneio ao sol quente, as ruas
com vegetação verde, o céu azul do meu país. O som dos pássaros me
transportaram ao quintal da minha casa natal, os cães me remeteram
a rua onde cresci, onde hora sim e hora também os cães da vizinhança
latem para qualquer indivíduo que ouse se deslocar sobre aqueles para-
lelepípedos (diário de campo, Fevereiro de 2021).
Ao revisitar tais acontecimentos por meio da narrativa, as pa-
lavras de Bachellard (2008) mais uma vez retornam aos meus pensa-
mentos. Segundo o autor, o verdadeiro bem estar tem passado. Percebo
que o deslocar por esta nova cidade em um processo de descoberta,
internamente o corpo busca sensações de familiaridade, fazendo reviver
lembranças de proteção, segurança e bem estar. A simples presença de
pássaros ou o latido familiar dos cães, afeta o corpo como uma avalan-
che de sensações e de emoções. Tal aspecto, segundo Le Breton (2019),
cristaliza o essencial de uma existência onde a afetividade não se equi-
para à aferição objetiva de um fato (pássaros voando ou cães latindo), ela
decorre de um emaranhado de interpretações – de significados vividos
(casa, lar, infância, família, calor e saudade). Mais uma vez o espaço é
capaz de elucidar questões que me fazem refletir sobre quem eu sou.
O paralelo cidade|sujeito aqui descrito, caracteriza, assim, a ne-
cessidade humana de encontrar significados e ordem para as coisas que
vão acontecendo no nosso ambiente, é uma necessidade de descoberta
de nós mesmos naquele que será o mundo que nos rodeia (NORBERG
-SCHULZ, 1975). Seja por meio das emoções positivas ou negativas com
que esse espaço afeta meu corpo, tal processo caracteriza a noção da
construção identitária do sujeito através da pluralidade das ressonân-
cias da experiência. A forma como certo acontecimento me atravessa,
por meio do entrelaçamento de emoções e sensações, se relaciona ao
127
processo de criação e recriação dos sentidos que emergem da nossa
relação com o mundo e com os outros.
Tais fatores expõem a concepção já apresentada inicialmente de
cidade enquanto seu inacabamento. Por meio de suas oportunidades, di-
ferentes interpretações e possibilidades de (re)criação, o espaço, mesmo
edificado, projetado, nunca se encontra acabado. O lugar está sempre
sujeito às interpretações e vivências daqueles que dele se apropriam.
Sua evolução não se dá unicamente por meio de projetos de degradação
e qualificação, mas sim por meio de um processo contínuo de edificação
de um muro de histórias coletivas, memórias, que somadas constroem
o que verdadeiramente é aquele lugar. Nesse sentido, a ideia de uma
cidade em permanente construção se dá com enfoque no somatório
das diferentes percepções que aquele mesmo espaço urbano é capaz
de despertar. Se estabelece na múltipla gama de sensações, emoções,
ambiências, memórias e vivências que um mesmo espaço, seja um vazio,
um centro edificado ou uma quadra de um parque residencial, são capa-
zes de evocar.
Tal fato reflete ainda a tese já defendida por pensadores como
Norberg-Schulz (1975), Pallasmaa (2016) e Bohme (2017), de que o real
propósito da arquitetura se encontra na possibilidade desta em tornar-se
parte existencial do próprio homem. Por meio de tal reflexão, defende-se
aqui a noção de cidade como aquela que faz sentir, aquela que faz senti-
do.

128
O espaço como convite à
experimentação./

Ao me deslocar pelo centro histórico, um elemento que parece


bastante característico – devido a sua presença constante nessa parte
da cidade – me chama a atenção durante meus percursos. A presença
de galerias que cortam as quadras centrais da cidade, conduz os que ali
se aventuram a passar, de uma rua a outra, como um atalho em meio
ao desconhecido miolo das quadras. Tais espaços, por sua forma não
retilínea, não permitem ao observador do lado de fora enxergar muito do
que acontece do lado de dentro. Vemos a entrada, alguns elementos que
compõem esse percurso, mas não sabemos ao certo o que há escondi-
do ali dentro, quem pode ou não adentrar tal espaço. Toda vez que passo
em frente a esses túneis sou atravessada por uma sensação de curiosi-
dade, expectativa, quase como um convite à experimentação. Será que
posso entrar? Devo me aventurar nesses pequenos mundos desconhe-
cidos? Somado a tal aspecto, o medo e a insegurança perpassam no-
vamente a minha vivência na cidade. Começo a perceber como esse sen-
timento está presente nessa minha nova trajetória de habitar um novo
lugar. Durante a noite tais espaços, agora escuros, parecem perigosos,
ainda mais quando essa percepção se dá a partir do meu corpo feminino
que busca desvendar o desconhecido.

Figura 3 - Montagem sobre fotografias retratando o descobrir-se, as diversas


possibilidades do lugar. Fonte: acervo dos autores e editada pela mesma (2021)./

129
Em outras circunstâncias de perambulações pela cidade, per-
cebo novamente como o contato com esses espaços encobertos pelo
mistério e pela surpresa de não revelar o todo surgem como um convite
à fantasia. Diversas sacadas localizadas nos andares superiores dos pré-
dios, as janelas que se abrem ao exterior por meio de suas esquadrias
tão diversas. Que mundos habitam dentro de cada um desses aparta-
mentos? Ao passar em frente aos portões das casas mais antigas busco
sempre enxergar por entre as frestas, os rasgos nas grades, que outro
novo mundo se localiza nos jardins centrais desses velhos casarões? De
certo modo acredito que nunca irei descobrir, mas tais acontecimentos
me instigam a seguir caminhando, seguir imaginando e seguir descobrin-
do (diário de campo, Março de 2021).
As narrativas apresentadas remetem às diversas possibilidades
que os diferentes espaços urbanos apresentam no imaginário daque-
les que se permitem viver (n)as cidades. As emoções, que caracterizam
esse processo de descobrimento, repletas de expectativas, excitação e
possibilidades, retratam novamente a presença da questão temporal que
perpassa as vivências do sujeito. Ao habitar o hoje, como já menciona-
do, não o fazemos unicamente no presente, somado aos aspectos do
passado que nos acometem durante a experiência do cotidiano. O futuro
também está presente nas nossas experimentações da cidade.
Viver o espaço por meio das emoções que se relacionam as
antecipações, as diversas possibilidades e a fantasia que o desconheci-
do e o mistério são capazes de despertar, conduzem a um questiona-
mento sobre o papel da afetividade que não se relaciona unicamente a
concretude do presente. Ela pode antecipar um acontecimento e assim
misturar-se ao imaginário ou às fantasias, os quais igualmente produzem
emoções reais (LE BRETON, 2019).
O contexto temporal que perpassa a experiência cotidiana pode
ser expressado por meio das lembranças e memórias que constituem o
passado, as ambiências e os acontecimentos que registram e marcam o
presente e, por fim, as fantasias, possibilidades e expectativas que retra-
tam a influência do futuro. Tal fato aponta para o tempo, quer seja visto
como abstrato ou intangível, quer em termos de memória, significados e
sentimentos, é indiscutivelmente uma propriedade importante do lugar
(SPELLER, 2005).
Apesar do espaço remeter a uma série de sensações que se
relacionam à excitação do novo, o medo do desconhecido surge nova-
mente por meio das narrativas da insegurança quanto ao deslocar-se por
tal espaço. Evidencia-se, neste momento, a ambiguidade da situação, a
qual é característica das percepção individual daquele sujeito que sente
e que vive o espaço por meio de todos os aspectos temporais, sociais e
espaciais que consolidam a sua existência. Mediante a narrativa de cada
um dos momentos retratados neste trabalho, é possível, assim, perceber
como o espaço fenomenológico e eu como habitante mantemos uma
130
relação de extremo comprometimento ativo com o meio físico (DOS
SANTOS, 2011).
Tal comprometimento retrata o processo de construção perma-
nente do sujeito, que se interliga, conecta e perpassa o processo tam-
bém permanente de construção do lugar. Nesse momento, a história do
sujeito se interliga com a história do lugar e tais aspectos não podem
mais ser apagados, por fazerem parte da sua existência. Talvez diversas
outras camadas venham a modificar quase em sua totalidade os aspec-
tos de tal espaço|sujeito, mas os momentos que marcaram, carregados
de vivências, emoções, sensações, ambiências e acontecimentos, se-
guem inscritos e marcados na memória, revividos por experiências ainda
nem imaginadas.

131
À guisa de conclusão./

Ao delinear o fim dessa escrita retomo a reflexão inicialmen-


te apontada neste estudo. A ideia de “you can’t go home again” agora
surge de uma maneira já não tão mais amedrontadora. Compreendo,
sim, que me custaria um enorme e inútil esforço tentar revisitar aquele
mesmo espaço da minha infância que não existe mais. Fisicamente, ele
se encontra alterado pelas marcas do tempo, pelas diferentes pessoas
que hoje circulam por aqueles mesmos paralelepípedos, pelas novas
crianças do bairro que brincam pelos terrenos baldios e que andam de
bicicleta para cima e para baixo desbravando o seu universo de fantasias
infantis.
No entanto, algo que acredito que jamais será perdido e que não
importa quantos cidades me proponho a desbravar ou quais caminhos
pretendo seguir, é aquela sensação de segurança, de ser abraçado pela
atmosfera do lar e avistar o fogo aceso na lareira ainda do lado de fora
e saber que lá dentro aquele espaço e tudo o que ele representa vão
permanecer me amparando. Tais sensações e emoções perpassam a
experiência vivida e se inscrevem na memória de cada sujeito, guiando
percepções futuras sempre que novas experiências urbanas convidam a
diferentes jornadas de deciframento.

132
Ao considerar a influência dos aspectos temporais sobre a rela-
ção sujeito e cidade, evidencia-se que ao vivenciar o hoje por meio dos
acontecimentos não o fazemos unicamente centrados no presente. Essa
experiência diária é perpassada constantemente pela influência do nosso
passado ambiental, repleto de memórias e lembranças, assim como
pelas expectativas e antecipações, relacionadas a possibilidades futu-
ras de usos e significações nesse mesmo espaço do hoje. Ao assumir
tal entendimento, compreendo que apreender a cidade contemporânea
e falar sobre seu presente demanda um olhar crítico sobre o passado e
também sobre o futuro do sujeito.
Por fim, reconheço que olhar a cidade por meio de suas diver-
sas possibilidades, caminhos, elementos e pessoas, significa também
olhar para o meu eu interior. Enquanto descubro novos lugares por meio
do um corpo que se torna presente ao se movimentar, se apropriar e
transformar tais espaços, vou me descobrindo e (re)inventando enquan-
to indivíduo. Por esse entendimento, parece-me possível afirmar que
cada pequeno momento, que somados compõem uma nova camada de
vivências que constroem a parede da minha existência, é somente mais
uma pequena parte que compõe a vastidão de possibilidades e de repre-
sentações dessa mesma cidade. Por esse entendimento, pode-se afirmar
que a cidade, assim como o sujeito, é múltipla, é movimento, é inacaba-
mento.

133
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DES, M.C. (Eds.) Psicologia e Ambiente, EDUC Editoria da PUC-SP, pp.
347-361.

135
07./ Evandro Fiorin
colaborador: Igor Augusto de March

Sólidos,
planos, vazios;
espaços de
encontro,
escadas e
esquinas...
136
Resumo./
Este capítulo é resultado de um trabalho de iniciação científica
que reforça o viés da percepção ambiental como instrumental que con-
duz para uma leitura dinâmica das narrativas dos lugares. Por meio do
caminhar como prática estética, construímos olhares diversos, lidos pela
fenomenologia, pela semiótica e acionados pelo método da cartografia,
os quais possam produzir informação urbana sobre alguns contextos
peculiares e espaços emblemáticos no Centro Histórico de Florianópolis,
diante das principais transformações nas suas paisagens, decorrentes
dos seus modos de uso e ocupação. Logo, por meio de incursões às
imediações da Praça XV de Novembro e adentrando nos setores leste
e oeste da região histórica e imediações produzimos cartogramas em
aberto, traduções dos trajetos sobre os territórios, por meio de croquis,
textos e imagens. Estes elementos de leitura e análise se produzem
como interpretações transitórias, já que estas áreas mudam o tempo
todo. Sólidos, Planos, Vazios, Espaços de Encontro, Escadas e Esquinas
se descortinam pelo caminhar atento e perspicaz. Nessa jornada, car-
tografias da cidade se processam como forma de leitura dos lugares
transitórios, sempre como uma leitura inacabada.

Palavras-chave: Percepção; História; Grafites; Lugares à margem; Floria-


nópolis;
137
Introdução./
A cidade de Florianópolis teve sua ocupação urbana em fins do
século XVII, na região conhecida hoje como centro histórico. Aconteci-
mentos, revoltas, a gênese urbana, social e econômica do município se
deu no espaço que foi, é e continuará sendo de importância ímpar não
somente na história, mas na memória afetiva e no imaginário coletivo de
toda a população local. É um espaço de intenso conflito. Um lugar de
vivência pública e pilar da construção social da região.
Seu fortalecimento como foco da cidade se deu ainda no período
da colonização, onde lhe foram concebidas as primeiras obras públicas e
incentivo para os assentamentos, de forma a firmar o espaço de ocu-
pação da ilha e defesa da região (VEIGA, 1990, p. 30-33). Formaram-se,
assim, as principais ruas, todas paralelas à enseada e desembocando na
praça XV de Novembro – quadrângulo divisor dos setores centrais leste e
oeste (VEIGA, op. cit., p. 59). Neste sítio nasceriam casebres de madeira
e, aos poucos, o florescimento marítimo e comercial.

Figura 1 - Diagrama da Ilha de Santa Catarina, com detalhe do Centro Histórico de


Florianópolis. Fonte: autores, 2020./

138
Em meados do século XVIII (CABRAL, 1951, p. 6), com o surgi-
mento de diversas moradias rudimentares e o iminente adensamento
populacional da região, o espaço teve sua expansão acelerada. Observa-
va-se já uma distinção entre o antigo bucolismo e o processo de gra-
dativa urbanização. Os primeiros conflitos de classe se mostravam na
divisão entre os barracos de madeira do “baixo centro” e das grandes
chácaras do “alto centro” – afastadas do que conhecemos hoje como
Centro Histórico. Aos poucos, o comércio foi abarcando as ruas centrais
(VEIGA, op. cit., p. 178), fazendo com que diversos moradores de baixa
renda – em sua maioria pescadores – tivessem de ocupar regiões mais
periféricas e ou morros próximos da região geograficamente acidentada
do centro (VEIGA, op. cit., p.62).
Já na primeira metade do século XX, vemos um crescimento
exponencial com a conclusão de grandes obras públicas, com destaque
ao Mercado Público em 1905 e a construção da Ponte Hercílio Luz em
1924 – o início do processo de modernização da construção civil na re-
gião. Neste período, começava – ainda que lentamente – a verticalização
da região (VERA e SILVEIRA, 2019, p. 263). Estes fatos foram de crucial
importância, dando ao Centro Histórico um novo caráter dicotômico –
uma área rodeada de projetos residenciais precários e, ao mesmo tempo,
pontuada por grandes obras voltadas para o fortalecimento do setor de
serviços e de projeção econômica da cidade. Assim, um novo plano so-
cioespacial começava a se desenhar na região.
Deste momento em diante, Florianópolis deixava de ser uma vila
e tornava-se um importante centro urbano. Nesse âmbito, o Centro His-
tórico se tornou espaço de intensa especulação imobiliária. Multiplica-
ram-se os comércios e os edifícios do terceiro setor. Os moradores que
ali residiam, foram aos poucos compelidos a desocupar estes espaços
e se apropriarem de outas regiões. Grandes obras de cunho urbanístico1
tornaram a região o coração do deslocamento viário de produtos e de
pessoas.
Aos poucos, moldou-se a partir das antigas casas de olaria o
cenário que se vislumbra hoje: um espaço de volátil apropriação, de um
uso sazonal e imprevisível, de territorialidade hostil à habitação. Suas an-
tigas construções foram aos poucos modificadas, abandonadas e demo-
lidas; o perímetro central começava a ganhar uma nova face. O fluxo de
pessoas durante o dia se tornou intenso e foi perdendo, aos poucos, seu
caráter de permanência, sobretudo à noite; assim, um espaço de passa-
gem se configurou pelo reforço das atividades comerciais.
A partir de 1974, haja vista a preocupação com a preservação
patrimonial e com a homologação da Lei Municipal 1202, diversos con-
juntos e projetos isolados do Centro Histórico foram tombados como

1 Destacamos a construção dos aterros da prainha e da Baía Sul em 1943 e 1975, res-
pectivamente. (VERA & SILVEIRA, 2015).
139
patrimônio. Como resultado imediato, estabeleceu-se um processo de
manutenção imagética. Hodiernamente, entretanto, a potência desse
casario emblemático foi reduzida à conservação da fachada; uma espé-
cie de cenografia urbana que oscila entre o agito da ocupação comercial
durante o dia e o marasmo noturno. Uma terra de ninguém. A despeito
da manutenção e restauração patrimonial, o processo de abandono da
vivência coletiva expõe a fragilidade urbana, diante do predatório movi-
mento da especulação imobiliária e da construção civil (CRUZ, 2012).
Mesmo assim, o Centro Histórico segue sendo um lugar de efer-
vescência. Seja ela política, social e cultural; seja no embate de classes
entre os mais ricos que retroalimentam o mercado imobiliário, os traba-
lhadores da região comercial e os moradores de rua e camadas rejeita-
das que se encontram no dimorfismo da apropriação desse espaço. No
Centro Histórico se situaram ataques à ditadura, o nascimento e a morte
de ídolos da cultura local e a resistência da arte enquanto meio de ex-
pressão do anseio popular. É palco do carnaval e da expressão do direito
à cidade. É, ao mesmo tempo, ponto fora da curva e a própria linha do
projeto de cidade que se cultiva – é um lugar controverso, plural.
Há, neste espaço, uma reconhecida potência de apropriação
e absorção popular. É, mais do que o desvelamento de sua produção
histórica, é a redescoberta de sua hospitalidade comunal, de seu acolhi-
mento social e de seu reencontro com cidade livre. Assim, este trabalho
busca captar essa potência espacial, tendo a errância como método de
pesquisa sobre da região do Centro Histórico. Essa modalidade de inves-
tigação se justifica para compreendê-lo como local de fluidez, indo em
busca do inesperado, dando relevo à surpresa e ao conflito, à história e à
experiência do lugar.
Deste modo, temos como objetivo compreender o Centro Histó-
rico por meio de um caminhar estético experiencial, na busca por uma
quebra do sentido cartesiano e racional do entendimento da cidade,
para promover novas significações desse contexto ímpar. Entender suas
especificidades, multiplicidades e sua potencialidade transformadora
e de transformação, rompendo com os clichês na sua representação e
abrindo espaço para uma pesquisa que se produz pela vivência e pela
subjetividade humana. Assim, por meio das vivências, da experimenta-
ção espacial e da valorização sensível do lugar que se pretende buscar o
entendimento do Centro Histórico de Florianópolis produzindo algumas
cartografias urbanas.
140
Procedimentos./

No século XV fora instalada a cruz que marcava o início


da ocupação da Ilha de Santa Catarina, por Dias Velho. Pode-se conside-
rar que Desterro teve sua gênese urbana configurada por volta de 1726,
quando lhe foi dada a condição de “vila” pela Coroa Portuguesa. Seu
crescimento se deu em função da condição geográfica – a delimitação
inicial do centro da cidadela era conformada pela angularidade com o
mar e pela terminação nas elevações topográficas.
Ergueu-se, a partir daquele espaço, o que seria a primeira edifi-
cação simbólica de Florianópolis – a igreja matriz, delimitadora de um
grande largo trapezoidal (hoje chamado de Praça XV de Novembro), onde
que se instaura o eixo de crescimento viário. As ruas, a priori paralelas
ou normais ao limite marítimo, se estabeleceram de forma semelhante
a uma retícula, como era de costume das cidades coloniais portuguesas
na época. Esta ortogonalidade passou a romper-se com o avanço às pe-
riferias, cujas vielas – geralmente vias de acesso às cariocas e às fontes
de água mais próximas – assumiram uma construção mais orgânica. De
acordo com Murillo Marx:

O rumo dos becos e das vielas, ou mesmo das ruas e avenidas, se enviesa, se
reconcilia com a topografia caprichosa, abandonando a regularidade pretendi-
da.
(MARX, 1980, p. 25)

Suas construções, entretanto, diferem da proposta urbana em-


brionária da porção central, pontuada por um porto regional e um lo-
cal de exponenciais câmbios com atividade pesqueira intensa. A beira
do mar era ocupada por casas, cujos fundos se davam para o oceano,
exibindo "'quintalejos' murados ou de tábuas e ripas, com multidão de
embarcações miúdas ao redor [...]" (VEIGA, op. cit., p. 125). O Centro da
cidade de Florianópolis, na gênese de sua urbanização, nasceu e cresceu
dando as costas para o mar. Este, quase que desvinculado de afetivida-
de, fora sendo subestimado na memória coletiva, ao deixar de ser neces-
sário para as atividades econômicas locais, bem como sendo afastado
por diversos aterros (iniciados em 1943 e terminados em 1975).
Ao mesmo tempo, começam a crescer grandes chácaras na
região próxima da Baía Norte da ilha. Estes projetos, frutos da ascensão
de uma burguesia local, interessada em manter-se distante dos gran-
des espaços públicos e das comunidades que se instauravam no Cen-
tro Histórico e regiões próximas. Caracterizadas por casario imponente,
141
contavam com espaçosos jardins e largos passeios. Como consequência,
diversas ruas do Centro Histórico, cujo fluxo se dava perpendicularmente
ao mar – e consequentemente em direção ao que viria a se tornar o “alto
centro” – passaram a ser estendidas de forma a manter uma conexão,
ainda que distante, entre estas novas moradias e as áreas de maior efer-
vescência comercial.
Entretanto, já em 1876, eram registrados os primeiros “espaços
vazios”2 dentro do perímetro urbano do centro expandido. Sendo em
sua maioria resíduos privados, jardins inocupados ou oriundos de alguma
irregularidade topográfica, assim como, propriedades religiosas e mesmo
terrenos devolutos; estes espaços permaneciam sem qualquer trata-
mento, diante do rebuscamento arquitetônico das novas áreas construí-
das.
Atualmente, o Centro Histórico de Florianópolis, historicamente
relevante na gênese urbana do município, se projeta como um local de
conflito urbano. Em processo semelhante à diversos centros históricos,
está à mercê da especulação imobiliária e do mercado da construção
civil. Nesse sentido, um projeto de produção do espaço se firma: o da ci-
dade voltada para o lucro, bem como, a crescente descaracterização da
cultura do lugar. Desta maneira, adotamos como modalidade de pesqui-
sa desse espaço alguns vieses plurais para sua leitura.
O sentido tradicional de ordem que marcou a interpretação clás-
sica do espaço balizado por uma perspectiva funcionalista exclusivamen-
te permitia, na maioria das vezes, uma percepção linear da realidade. A
eminente dissolução dessa noção, diante das transformações recentes
das conformações urbanas contemporâneas, de cidades com centros
expandidos, periferias espraiadas e vastos territórios indefinidos (CAC-
CIARI, 2010), exige novos meios de cognição do espaço – o qual passa a
ser configurado por trajetórias múltiplas e flutuantes, instaurando siste-
mas urbanos versáteis e, assim, não-lineares.
Nesse sentido, defendemos como estratégia metodológica uma
leitura espacial desse objeto em transformação que é o Centro Históri-
co de Florianópolis que agasalhe outros sentidos e acolha o inesperado.

2 “Observando o mapa de 1876 podemos situar o perímetro urbano e comprovar a


existência de vazios. Além das ruas, praças e jardins, existiam outras áreas não edifi-
cadas dentro do polígono central. Alguns remanescentes destes espaços livres ainda
podem ser encontrados, [...] propiciaram a permanência de apreciáveis extensões de
prolongados quintais colidentes, ou, simplesmente, de terrenos devolutos. [...] Os vazios
urbanos devolutos na cidade, foram também consequência da existência de obstáculos
topográficos, hidrográficos e geológicos. [...] Esses impedimentos de ordem geográ-
fica, negaram, por certo, determinadas ocupações pretendidas, como a expansão de
uma cidade reticulada e regular. Foram obstáculos estes que estancaram o avanço das
ruas ortogonais, apontaram outras alternativas de traçados viários, e até derivaram na
consolidação de alguns hiatos urbanos. [...] Irregular depois do risco inicial em tabuleiro
xadrez, Desterro se expandiu sobre um relevo pontuado por suaves colinas.” (VEIGA, op.
cit., p. 106-110)
142
Um processo de reconhecimento urbano que, também se produza como
um outro objeto instável, ou seja, uma intelecção provisória do centro
expandido de Florianópolis através da produção/criação de informação
urbana, tendo em vista sua frequentação (FERRARA, 2000).
A transurbância, termo cunhado por Francesco Careri, aplicada
no seu coletivo de investigação – o grupo Stalker – tem como prerrogati-
va: a “importância de andar na cidade como metodologia de investigação
e como forma de encontrar, delimitar, analisar e intervir em territórios
desconhecidos” (DUARTE e ANDRÉ, 2015). O método busca, em essên-
cia, o entendimento e descoberta do que já classificara Milton Santos
(2003) como “espaços opacos”: sítios abertos de criatividade e afetivida-
de, em oposição aos “luminosos”, já racionalizados e fechados.
Por meio da modalidade peripatética evidenciaremos como uma
multiplicidade de visões são capazes de serem produzidas a partir dessa
área, gerando atrativos que a mantém sempre viva, como um espaço
que nos conduz a novas sensibilidades estéticas, independentemente de
serem exageradamente feias, ou extremamente bonitas. Lançamos mão
de um olhar de cunho fenomenológico, baseado na experiência do espa-
ço e balizado nas vivências do lugar, para que possamos revelar, algumas
essências, para além das aparências, independentemente da distinção
entre forma e conteúdo (MERLEAU-PONTY, 1999).
A experiência de caminhar pelo Centro Histórico de Florianópolis
pode trazer à luz seus meandros, suas zonas opacas, prenhes de des-
compassos, alteridades e hibridizações. Os lugares oriundos da surpresa,
que advém ao percorrer sua extensão, sempre como aquele que apre-
ende a área pela primeira vez, mesmo que tenha feito o percurso várias
vezes. A deslocação como uma modalidade capaz de ir em busca dos
significados desconhecidos, para compor novas significações que se
descortinam em um contexto latino-americano, onde a prática do cami-
nhar também significa enfrentar muitos medos (CARERI, 2013).
Dentro desse espectro, a cartografia afetiva foi adotada como
maneira de produção de informação sobre essa realidade dicotômica no
processo de pesquisa. Partindo do pressuposto adotado pelo urbanista
Kevin Lynch (2006) de que “a imagem de uma cidade é construída na
mente de seus habitantes em várias dimensões” – e que sua construção
do meio público é associativa e significativa –, este método mostra sua
relevância rompendo com a compressão espaço-temporal do Centro
Histórico pensado para a empresarialização3 e busca, então, uma ressig-
nificação estética, cultural e social das dinâmicas do centro urbano de
Florianópolis.
Deste modo, capturamos uma centena fotografias evitando os

3 “[...] onde o patrimônio se tornou um produto a escoar, constituindo-se como uma


“marca” com valor concorrencial e comunicacional [...]” (PEIXOTO, 2003). O processo
supracitado já pode ser observado no Centro
143
seus aspectos técnicos, sem os inúmeros diagramas, gráficos e equa-
ções; as imagens preparadas e os retratos de pessoas que posam, não
são mais importantes do que aquelas imagens captadas aleatoriamente,
pelas câmeras dos celulares, pois estes são mais fáceis de transportar
e, também, chamam menos atenção. Talvez, o mais importante dessa
tática para a leitura dos espaços nos valemos na nossa experiência do
caminhar advenha do fato de que: o fotógrafo de rua, simplesmente, tem
como o seu compromisso: vagar por aí, sem nada especial em mente
para fotografar (GIBSON, 2016).
Estas experiências do caminhar não podem ser lidas como con-
clusivas, mas como: constructo assimétrico, construído e desconstruído
por meio dos trajetos, nos seus territórios, na medida em que se con-
fundem com suas traduções; justamente porque estão circunscritas a
uma dialética do movimento (DELEUZE, 1997). Signos que atravessamos
e que nos atravessam, não se esgotando outras possibilidades de sig-
nificados e de significações, para permitir, a cada novo frequentador do
lugar, sempre uma nova experiência errática da cidade (JACQUES, 2012).
Desta forma as cartografias que produzimos por meio do ca-
minhar pelas ruas do Centro Histórico de Florianópolis, são imagens
dialéticas entre o presente e o passado. Chamamos aqui de Transurba-
nogramas porque são o resultado de um percurso pelo território que é
traduzido nas figuras que apresentamos. Talvez, sejam capazes de trazer
à luz a essência do lugar, em seus traços marginais e de abandono dos
antigos edifícios, inclusive, mesmo em meio a um processo de espetacu-
larização da cidade que se esboça, uma leitura que aqui se associa aos
escritos situacionistas de Guy Debord (2008).
Isto porque, hoje, o Centro Histórico4 de Florianópolis é viti-
mado por uma renovação que evidencia padrões de cultura de consu-
mo (LEITE, 2009, p. 194). Um processo que se distancia, portanto, de
uma patrimonialização que preserva e mantém vivos os usos; ao invés,
instrumentaliza uma encenação institucionalizada como estratégia de
criação de um espírito do lugar (FRIAS e PEIXOTO, 2001). Esta urbaniza-
ção comercial acaba, também, por tornar hostil a moradia no local, em
favor da “reativação e enobrecimento do espaço urbano”, substituindo-os
por profissionais do setor terciário e direcionando essa parcela da cidade
para um mero meio de acesso ao trabalho (MUXÍ, 2004, p. 55).
Outro caso pode ser o enfoque no apelo turístico urbano cres-
cente, desde a década de 1990; as mesmas regras de espetacularização
da cidade e da arquitetura também valem aqui. O passado passa a ser
meramente representativo, simulacro cenográfico, dispensado de seus
propósitos programáticos e sociais, e a urbes passa a ser mais segrega-

4 Histórico, onde projetos como o “Centro Sapiens” buscam, através da estetização


do patrimônio e da simbologia cultural, gerar prerrogativa na instalação de um grande
complexo comercial e empresarial em um espaço de extrema fragilidade social.
144
da.
Como consequência, os espaços de gênese urbana e o patrimô-
nio arquitetônico e imaterial passam a ser utilizados de forma a difundir
intencionalmente uma imagem negativa e degradada desta camada da
cidade (CRUZ, 2012). Esta dramatização da condição do “Centro Histó-
rico” visa justificar e legitimar uma renovação identitária – seja por meio
da destruição patrimonial ou subjugação deste. Assim, as vielas centrais
do Centro Histórico de Florianópolis se mostram cada vez mais dete-
rioradas. O centro que já foi, em outros períodos, lugar de permanência
e construção política e social, aos poucos é limitado a um espaço de
passagem. Há um processo de desvinculação afetiva desse espaço e, ao
mesmo tempo, uma crescente estetização da cultura por meio de edifí-
cios emblemáticos, tais como a nova praça de alimentação do Mercado
Público ou o novo Largo da Alfândega, para redundar na construção de
um ideal de cidade gentrificada.
Por fim, nossas andanças pelo Centro Histórico buscam contes-
tar esse sentido de cidade. Procuramos apreender, pelo andar errático,
suas permanências e alterações. É por meio deste entendimento experi-
mental, empírico, não-linear e orgânico, queremos construir uma intelec-
ção aberta sobre o lugar. Logo, produziremos diversas leituras e inter-
pretações possíveis das potências deste espaço traduzidos aqui pelas
cartografias urbanas.

Figura 2 - Diagrama do Centro Histórico: do cenário espetacular à cidade do abandono.


Fonte: autores, 2020./

145
Os Sólidos, os Planos e os Vazios./

É importante ressaltar que a divisão geográfica entre Centros


Leste e Oeste, tendo como sua fissura divisória a Praça XV de Novembro,
é muito benéfica para o entendimento da formação do Centro Históri-
co. Apesar dessa fronteira imaginária é possível identificar com clareza
os contrastes na análise empírica destas subdivisões. O Centro Oeste
tem forte vínculo comercial e é mais próximo de regiões com grande
especulação imobiliária (como o “Centro Alto” e a Beira-mar Norte). Esta
porção do Centro Histórico vem sofrendo uma transformação acelerada.
Isto porque grandes sólidos de concreto – edifícios monumentais – vêm
tomando o lugar de casebres e antigas construções que antes se instau-
raram naquele espaço.

Figura 3 – Diagrama do Centro Histórico, os centros oeste e leste, a Praça XV de


Novembro e focos de interesse. Fonte: produção do autores, 2020./
146
No perímetro oeste, grandes edifícios estão sendo erguidos,
especialmente nas bordas do Parque da Luz. Ao contrário, quando ru-
mamos em direção ao Leste, percebemos uma mudança de escala. As
ruas passam a se tornar mais humanas, menos hostis, mais coloridas.
A Rua Felipe Schmidt, espaço do florescimento comercial, junto com a
Rua Conselheiro Mafra, resguardam uma porção de pequenos estabeleci-
mentos quase centenários responsáveis por abastecer a microeconomia
local.
O comércio tradicional, no Centro Histórico, está concentrado
nessa porção. Podemos ver senhores e jovens dividindo espaço no en-
tra-e-sai de nomes conhecidos. Vera Cruz, Tupã. Das tantas casas – da
água, da pintura, dos cabides, do fogão, dos bolos. E as galerias podem
ser lidas como mundos a parte. Vencendo os terrenos irregulares dos
edifícios que avançam sobre ruas paralelas, de altitude cada vez menor
conforme a chegada ao mar, as galerias surgem como surgiam as ruas
perpendiculares à costa: de uma abertura tímida ao despertar comercial
de entremeios que assumem significados e produções livres em suas
voltas, completamente inseridas dentro da dinâmica urbana pública do
centro e da vivência local.
Aproximando-nos ainda mais da Praça XV de Novembro, percebe-
mos a mudança no padrão de sua disposição arquitetônica: os centená-
rios casarios brotam e começam a dividir espaço entre os prédios mais
antigos, em sua maioria de caráter modernista. Apesar de existir algum
abandono material, há, cada vez mais, edifícios com fachadas tampona-
das, trepadeiras ou mesmo grandes placas de “aluga-se”. Essas imagens
para nós se configuram como grandes planos: uma cidade coberta por
tapumes.
Contraditoriamente ao que pregava o sentido de liberação da
cidade para o pedestre e a circulação espacial característicos do movi-
mento moderno, antigas marquises sustentadas por pilotis vêm sendo
cercadas, justamente para impedir que indivíduos marginalizados pos-
sam se abrigar nelas. Destacamos o Prédio das Diretorias – reconhecido
símbolo do modernismo em Florianópolis, com sua avantajada marquise
e grande espaço de transição entre o público-privado, teve grande parte
do recuo tamponado porque ali se concentravam moradores de rua,
artesãos e indígenas.
Mesmo assim, avistamos moradores em situação de rua que se
abrigam na rua oposta, na tentativa de afirmar seu espaço na proximi-
dade daquela marquise, que por tanto tempo promoveu abrigo. Durante
a noite, estes moradores podem ocupar os espaços centrais com mais
liberdade. Lá, dividem espaço com prostitutas e jovens que frequentam
algumas boates instaladas na área. Não ameaçam, sequer são ameaça-
dos – convivem com o espírito de que podem apropriar-se subversiva-
mente daquelas vias pelas poucas horas que a madrugada os permite.
Sejam sentados nos meios-fios ou mesmo apoiados nos muros de esta-
147
cionamentos e prédios e dormindo nas calçadas. Pela manhã, é neces-
sário restaurar a ordem.
Quando chegamos mais próximos da Praça XV de Novembro
e adentramos as ruas do Centro Leste, deparamo-nos com outro pa-
norama. Neste trecho, chama a atenção justamente a permanência da
abertura inferior dos prédios sob pilotis, visto que, uma parte de seus
projetos (a grande maioria não atingindo os 4 andares) foi construída sob
a premissa de um plano diretor que obrigava os edifícios possuírem um
recuo com relação ao passeio público.

Figura 4 –Transurbanograma de percurso: do Centro Oeste para o Centro Leste.


Fonte: autores, 2019-2020./
148
Defronte à Praça XV de Novembro, o grande marco histórico
deste espaço que torna o vazio seu principal elemento é o Miramar. A
colunata arquitetônica evidencia um duplo vazio. Isto porque demarca de
forma dramática a mudança sócio espacial do Centro Histórico. O que
antes era mar, se transformou em aterro; e seu uso apenas mantém vivo
na memória coletiva o que deixou de existir ali. Entretanto, em alguns
momentos festivos essa arquitetura da ausência de transforma: suas co-
lunas viram apoio para cartazes, bandeiras e ela fica repleta de pessoas
em grandes manifestações.
Nas suas imediações remanescem a lembrança de importan-
tes espaços de resistência, hoje usurpados do povo: o “palco aberto” e
o grande vazio do Largo da Alfândega, bem como os vazios do Terminal
Cidade de Florianópolis. Estes sediavam as mais variadas manifestações
culturais locais, do boi de mamão à capoeira, ao ensaio da roda de sam-
ba e uma batalha de rap feminino – que reunia mulheres da periferia nas
noites de sexta-feira, e cuja truculência militar pulverizou o movimento.

Figura 5 – Transurbanograma de percurso: entre os Centros Oeste e Leste.


Fonte: autores, 2019-2020./
149
Mesmo assim, artistas se instalam e criam seu artesanato nes-
sa região. Os grafites e pichações ainda permanecem. Existe um certo
saudosismo nestas ruas do Leste, porque são menos povoadas do que
as do centro-oeste, seus comércios são mais humildes – destacando-se
malharias, brechós e sebos. É perceptível que a convivência dos mora-
dores de rua, prostitutas, artesãos, grafiteiros e artistas políticos da urbe
dentro dessa parte da cidade é mais intensa. Nota-se o vínculo espacial
gerado entre o local e a pessoa, mesmo que seja um vínculo volátil e de
constante interrupção.

150
Os Espaços de encontro, as escadarias
e as esquinas./

Entendemos que os eixos “horizontais”, leste-oeste, aparecem


como grandes definidores do desenvolvimento urbano do Centro Histó-
rico. Há tempos, estes eixos têm concentrado estabelecimentos comer-
ciais e de prestação de serviços. Como consequência, observa-se uma
permanência muito menor do contingente populacional. Essa caracte-
rização faz com que haja uma população flutuante nas áreas centrais,
mais densamente ocupada durante o dia. Um dos principais lugares de
uso maciço de diversos tipos de públicos são os arredores da Praça XV
de Novembro.
Dentro do seu espaço amplamente arborizado e mobiliado, se
destaca como um lugar de apropriação. Em seus bancos, podemos en-
contrar senhoras conversando, jovens descansando, moradores em situ-
ação de rua dormindo. O espaço transpira o espírito do lugar. Mais perto
da Catedral senhores jogam cartas e xadrez – e estes parecem estar lá
todo dia, a toda hora. Faça chuva ou faça sol, os assentos próximos a um
posto policial garantem a segurança e bem-estar desses senhores que
se reúnem frequentemente no mesmo local.
Vale o destaque, também, do que é o próprio Largo da Catedral.
Em um dos percursos, deparamo-nos com a apresentação do folclórico
boi-de-mamão. Em outro, com uma grande reunião sindicalista. Ao mes-
mo tempo, brotam do chão barraquinhas de artesanato. Um lugar que
já foi espaço de grandes manifestações e ainda continua sendo. A total
abertura espacial que está presente no coração da cidade é passível de
ocupação dos mais inimagináveis modos – une fé, cidadania e todos da
cidade. Pode ser considerado um espaço de encontro do Centro Hitórico
de Florianópolis.
Caminhando em direção à Avenida Mauro Ramos o movimento
mingua. Entretanto, estão presentes muitos grafites e pichações, que
trazem um tom político à região. Podemos reparar produções que vão
desde quadros monumentais a tags e manifestos. Já completamente
inseridos dentro do centro leste, por conta do abandono institucional,
podemos destacar dois espaços de grande importância pública.
151
Figura 6 – Transurbanograma de percurso: Praça XV de Novembro e cercanias.
Fonte: autores, 2019-2020./

O Colégio Antonieta de Barros, outrora chamado Dias Velho,


abandonado desde 2008, parece ser o mais gritante deles. Ao nos apro-
ximarmos dele notamos suas diversas inscrições – que vão desde grafi-
tagens quase profissionais a lambes de festas que ocorrem nas proximi-
dades. Jovens se sentem à vontade, mesmo a luz do dia, para contribuir
àquelas paredes: durante um dos percursos avistamos três deles que,
desimpedidos, colavam lambes de cunho político em sua fachada.
O outro é o imóvel onde antes localizava-se o cinema “Cine Imperial”
(MUNARIM, 2009, p. 197). Inaugurado em 1939, dando lugar a outros dois
cinemas e, por fim, fechando após uma curta temporada sediando uma
fábrica de sabões. Teve sua fachada completamente descaracterizada
com o tempo. Ali, um recuo com relação a rua permite que não somente
152
proliferem-se os manifestos e inscrições em suas paredes, como pro-
porciona espaço de acolhimento para um ou outro morador em situação
de rua. Passando pela fachada da Rua João Pinto pudemos encontrar
uma mochila, algumas caixas e um pouco de espuma – indícios de que
alguém já garantia, ali, seu precário espaço de permanência noturna.
É válido destacar a mudança da dinâmica desse espaço no período no-
turno, onde vários bares próximos ou adjacentes à Av. Hercílio Luz abrem
e permitem um fluxo relevante de pessoas. Há, portanto, uma abertura
para permanência – ainda que de forma desestruturada e espontânea.
Por conseguinte, não é difícil deparar-se com sinais de uso indevido da
rua – há lixo espalhado, principalmente na proximidade com a Rua Vitor
Meirelles. Garrafas, latinhas e bitucas de cigarro são, com certeza, o
maior volume.
A horizontalidade dessa região contrasta com os ricos ambientes
das escadarias que dão acesso às partes mais altas do Centro Histórico.
A escadaria do Rosário, mais a oeste, defronta a Igreja do Rosário, antiga-
mente frequentada pelos escravos libertos. No primeiro percurso em que
passamos pela escadaria, fomos abordados por um homem. Sentado,
ele pôs-se a nosso lado e conversou. Perguntou o que desenhávamos
e o que registrávamos. Ao lado dormia um homem que fez das paredes
ascendentes da escada um abrigo. A escadaria agora se transforma tam-
bém em um espaço de encontro, grande sala de estar para o desenho e
a conversa, mas, também, um abrigo para o sem-teto.
A UBRO (União Beneficente Recreativa Operária) fundou em um
casarão em 1922 seu teatro, que até hoje é utilizado na promoção de pe-
ças e espetáculos locais. No dia em que o visitamos, deparamo-nos com
um senhor vendendo arranjos florais. Pedro, morador em situação de
rua, não hesitou em nos contar sobre sua trajetória – do nascimento de
seu filho à tutela dos estudantes de biologia da UFSC na produção dos
arranjos. Recitou versos bíblicos, nos desejou bons sentimentos. O teatro
da UBRO, em tempo, é o grande tensionador daquele espaço social:
suas tardes e noites de peça mudam completamente o espaço público
e fazem da sua escadaria um grande hall de recepção, onde os degraus
viram um singelo mobiliário urbano para quem ali se aconchega.
Outros espaços de encontro no Centro Histórico também são
as esquinas, elementos de referência geográfica. São também objeto de
uma intensa trama de relações, porque, ao mesmo tempo, podem ser in-
terpretadas como a junção das linhas – as ruas –, mas, também, os nós.
Isto porque conseguem ser lidos como locais de intenso debate político
ou de uma relevância histórica. O Instituto Arco-íris, comércios como o
Senadinho, e outros, são caracterizados aqui como espaços nevrálgicos
da cidade.
Assim que nos aproximamos do casarão de esquina onde se en-
contra o Instituto Arco-Íris, percebemos um tipo de ambientação diversa.
Dois grandes salões, com equipamentos de cozinha, mesas e diversos
153
materiais em outro. Dois estagiários de psicologia nos apresentaram o
projeto, que acolhe e promove a formação político-cultural de popu-
lações em situação de vulnerabilidade. Em tempo, presenciamos uma
oficina de pintura, onde moradores em situação de rua e prostitutas de-
senham e pintam suas vivências. A estrutura é precária, aparente e com
forro e paredes com infiltrações. Entretanto, é inegável que diante deste
edifício decadente em uma esquina da cidade surgiu o inimaginável: um
espaço de permanência para os nômades urbanos.
O Senadinho, fundado em 1948 e originalmente batizado de Pon-
to Chic foi o espaço onde políticos e cidadãos debatiam informalmen-
te os rumos da política da cidade. Com suas fachadas completamente
abertas e seus balcões de apoio, sem assentos, geram uma arquitetura
gentil. Está localizado defronte à Esquina Democrática – palco de episó-
dios como o linchamento do presidente João Figueiredo, conhecido mais
tarde como “Novembrada” (AGUIAR, 2015, p.12-16). Nesse sentido são
notáveis as funções socializadoras do espaço das esquinas no Centro
Histórico de Florianópolis. Bares, botecos, centros de convivência, com
suas portas abertas se conformam como pontos de encontro.

Figura 7 – Transurbanograma de percurso: do Centro Leste para o Centro Oeste.


Fontes: autores, 2019-2020./
154
Apontamentos./

A prática errática dentro desta pesquisa permitiu serem apreen-


didas uma série de leituras sobre o entendimento da apropriação dos
espaços fora dos padrões urbanísticos e arquitetônicos mais usuais. É
importante ressaltar que estas percepções põem em xeque algumas
imagens pré-concebidas do Centro Histórico, especialmente àquelas
ligadas ao uso comercial, especulativo ou turístico.
Deste modo, o Centro Histórico de Florianópolis pôde ser com-
preendido e reafirmado como um local de grande efervescência cultural
social e política. Percebemos em todas as nossas vivências, a presença
das camadas mais fragilizadas da sociedade – moradores de rua, pros-
titutas, artistas, pessoas em situações de vulnerabilidade social e em
supressão de direitos. Todas habitando os lugares opacos. Houve tam-
bém uma percepção das mudanças que estão em curso, nos projetos
de gentrificação de áreas emblemáticas da região central, de modo a
favorecer interesses das classes dominantes e do mercado imobiliário.
O desenvolvimento desta pesquisa pode nos colocar em contato
com àquele que vivencia a urbe e suas variadas realidades. Entende-
mos que esta possibilidade é de profundo benefício para a formação e
o entendimento do sentido de pertencimento à cidade. Nessa pesquisa
procuramos vislumbrar não somente o nosso entendimento da cidade,
mas, também, do espaço público como lugar do coletivo, de alcance e
apropriação democrática e popular. A iniciação científica passa a cumprir,
portanto, um papel de relevância não apenas para a formação do jovem,
mas, também para a função social que o arquiteto precisa recuperar em
seu ofício.
155
Referências Bibliográficas./

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157
08./ Evandro Fiorin
colaborador: Arthur Fracaro Gonçalves

Trans-cidade.
158
Resumo./
Este capítulo é resultado de um trabalho de iniciação científica e
reforça o viés da percepção ambiental, como instrumental que conduz
para uma leitura dinâmica das narrativas dos lugares. Por meio do cami-
nhar como prática estética, os estudantes constroem olhares diversos,
lidos pela fenomenologia, pela semiótica e acionados pelo método da
cartografia, os quais possam produzir informação urbana sobre alguns
contextos peculiares e espaços emblemáticos no centro da cidade de
Florianópolis, diante das principais transformações nas suas paisagens,
decorrentes dos seus modos de uso e ocupação. Desta maneira, os
futuros arquitetos saem à deriva pelas áreas centrais, revelando alguns
traços do seu processo de deterioração, identificando espaços em de-
suso, grafites e pichações e os usos e as ocupações marginais, de modo
a abrir portas para a construção de um novo entendimento sobre estes
lugares. Assim, apontamos alguns espaços capazes de revelar a constru-
ção histórica da urbe e os seus elementos de permanência e alteração,
seja do ponto de vista evolutivo, mas, também, dos marcados retroces-
sos. Logo, por meio de incursões às imediações do Parque da Luz, do
Maciço do Morro da Cruz e da rua Frei Caneca e redondezas produzimos
cartogramas em aberto, traduções dos trajetos sobre os territórios, por
meio de croquis, textos e imagens. De tal forma, estes se constroem
como uma maneira de fazer-ver o patrimônio arquitetônico e urbano
em áreas emblemáticas e o seu processo de deterioração. De um modo
lúdico-construtivo, alimentam formas de reconhecimento urbano, que
podem ser úteis para a elaboração de projetos plurais e que evidenciem
a cultura dos espaços, porque cartografamos sob um enfoque qualitati-
vo. Nesse sentido, as cartografias contemporâneas revelam as surpresas
e as descobertas sobre o lugar, de modo a contribuir sobre os proces-
sos de deterioração urbana para os gestores municipais e o ministério
público, mas sobretudo, para o empoderamento da sua população, em
compasso de efetivas ações de mudança.

Palavras-chave: Percepção; História; Grafites; Lugares à margem; Floria-


nópolis;
159
Introdução./
O Centro histórico de Florianópolis é marcado pelas expressões
das subjetividades que por ali perambulam e o habitam. Neste traba-
lho propusemos como recorte de pesquisa alargar a compreensão do
triângulo central da cidade, realizando experiências de reconhecimento
urbano no que chamamos aqui de centro expandido, ou seja, as imedia-
ções da Ponte Hercílio Luz, o Maciço do Morro da Cruz e a Rua Bocaiúva
em continuação com a Frei Caneca.
Assim, essa pesquisa reforça o viés da percepção ambiental,
como instrumental que conduz para uma leitura dinâmica das narrati-
vas dos lugares. Por meio do caminhar como prática estética, pudemos
construir olhares diversos, lidos pela fenomenologia, pela semiótica e
acionados pelo método da cartografia, os quais buscaram produzir infor-
mação urbana sobre alguns contextos peculiares e espaços emblemáti-
cos no centro expandido da cidade de Florianópolis, diante das principais
transformações nas suas paisagens, decorrentes dos seus modos de
uso e ocupação. A nossa incursão no centro expandido de Florianópolis
se justifica para entendê-lo como lugar da experiência do caminhar, que
está repleto de surpresas e novas possibilidades para repensarmos o
lugar urbano das práticas sociais.
Desta maneira, saímos à deriva pelo que chamamos aqui de
centro expandido, revelando alguns traços do seu processo de deterio-
ração, identificando espaços em desuso, grafites e pichações e os usos
e as ocupações marginais, de modo a abrir portas para a construção de
um novo entendimento sobre estes lugares. Assim, apontamos alguns
espaços capazes de revelar a construção histórica da urbe e os seus
elementos de permanência e alteração, seja do ponto de vista evolutivo,
mas, também, dos marcados retrocessos.
Neste sentido, apresentaremos aqui os cartogramas que foram
produzidos em nossas caminhadas no Parque da Luz e antigo estalei-
ro Arataca; nas vielas e praças do Morro da Caixa; e na Rua Bocaiúva e
proximidades da antiga casa abandonada do Governador Celso Ramos,
na Rua Frei Caneca. Elas expressam percepções desconcertantes, onde
identificamos espaços ociosos, grafites e pichações, além de usos e ocu-
pações marginais, os quais foram captados pelos meandros das áreas
centrais da Ilha de Santa Catarina. Deste modo, o objetivo desse traba-
lho é desvelar potencialidades do centro expandido de Florianópolis por
meio da experiência do caminhar. Produziremos, assim, algumas leituras
espaciais, por meio de vivências para que se possa compreender qual
caminho tomar para uma restauração da paisagem urbana que seja mais
hábil em se considerar a surpresa.
De modo lúdico-construtivo, estes cartogramas alimentam
formas de reconhecimento urbano, que podem ser úteis para a elabora-
ção de projetos plurais e que evidenciem a cultura dos espaços, porque
160
cartografamos sob um enfoque qualitativo. Nesse sentido, as cartografias
contemporâneas que produzíamos aqui revelam algumas surpresas e
descobertas sobre o lugar, especialmente, sobre o Parque da Luz e suas
cercanias, sobre o Bairro Monte Serrat, no Morro da Cruz e nas imedia-
ções da Rua Frei Caneca. Nesse sentido, recuperamos parte da história
urbana destes espaços para, mais a frente, propor sua leitura por meio
de cartografias.

1 - Área que compreende os arredores da Ponte Hercílios luz

2 - Área que compreende o Morro da Caixa e seus arredores

3 - Área que compreende a Rua Frei Caneca com continuação


Rua Bocaiúva e seus arredores

Figura 1 – Ilha de Santa Catarina e centro expandido de Florianópolis,


fonte: autores, 2021./
161
Parque da Luz e suas cercanias./

O terreno onde está localizado o Parque da Luz, nos altos da Rua


Felipe Schimidt, na cabeceira insular da Ponte Hercílio Luz era, antiga-
mente, uma necrópole. Entretanto, com o passar dos anos, considerou-
se a sua transferência para um outro espaço da cidade.

“Em 1840 foi fundado o cemitério nos terrenos do cidadão José Vieira de
Castro no caminho do Estreito. A chacra de Vieria de Castro foi desapropriada,
cercada, e ali edificou-se uma pequena capela [...] foi verificando-se a incon-
veniência da escolha do local para o cemitério, já que não só apresentava um
visual depreciativo como também impedia a expansão urbana”
(VEIGA, 2010, p.283)

“Em 1887 já cogitava-se remover a necrópole, pois ela ocupava o ponto mais
pitoresco da cidade [...] o mais saudável por sua situação e elevação. [...] A
questão da transferência do cemitério prolongou-se durante anos, sendo
objeto de preocupações municipais até 1912[...] Após a aquisição do terreno,
no lugar chamado Três Pontas (bairro do Itacurubi), a questão ainda perdurou,
até que, em janeiro de 1925, foi aberta concorrência pública para realização de
uma parte da obra.[...] A partir de 1925, com a transferência do cemitério do
Estreito para o das Três Pontas, no bairro do Itacurubi, e com a implantação
dos eixos viários que deram acesso à Ponte Hercílio Luz, a área da ponta mais
ocidental da Ilha passou a integrar-se ao sistema viário e ao contexto urbano
como um todo. No século XX, parte do terreno foi confirmado como de inte-
resse público, configurando-se ali o chamado Parque da Luz.”
(VEIGA,2010, p. 283-285)

Ao longo dos anos os arredores do parque sofreram grandes


transformações, marcando um processo de verticalização. Até bem
pouco tempo atrás, existia um claro abismo entre as classes sociais que
frequentavam o local. De um lado, usos marginais e, de outro, os mora-
dores dos edifícios de alto padrão. Por conta disso, o parque passou por
uma reforma de caráter higienista junto ao processo de restauro e aber-
tura da Ponte Hercílio Luz, a qual fez com que os moradores em situa-
ção de rua e usuários transgressores se evadissem da região para outras
localidades da cidade. De tal forma, criou-se uma nova configuração de
162
ocupação, com subjetividades distintas das que antes o ocupavam.
Esse processo de renovação da região se estende até a cabeceira
da ponte. As ruínas do antigo estaleiro Arataca devem fazer parte de uma
futura intervenção. Ao longo dos anos, com o desmonte do estaleiro, a
construção passou por uma variedade de usos como boate, salão de be-
leza, bar e restaurante; sendo vedado em 2012, devido ao grande índice
de criminalidade que o vazio construído gerou, transformando-se em
uma das “Cracolândias” da região central da cidade.

“O Estaleiro Arataca foi construído por Carl Hoepcke na praia do Arataca em


1907, próximo ao Forte Santana na cabeceira insular da Ponte Hercílio Luz.
Ocupava 15 mil metros quadrados que abrigava diversas edificações [...] Cerca
de 150 trabalhadores especializados em consertos e na fabricação de navios e
estaleiros trabalhavam ali em 1952, o que acabou em 1964 com a extinção do
porto e aterro da Baía Sul. [...] Com o seu abandono, o histórico estaleiro foi
demolido em 2014, sendo preservada apenas a projeção do telhado e parte das
ruínas do casarão original. Primeira etapa do projeto de revitalização da área
tombada que segue em andamento.”
(PONTE-VIVA, 2019)

A apropriação do local, por moradores em situação de rua o tor-


na um ponto de uso e venda de drogas. Ruína onde aconteceram assal-
tos e um assassinato, conformando, desse modo, uma região perigosa,
tanto de dia, quanto à noite, já que há um baixíssimo fluxo de pessoas
no entorno; somente carros na via expressa – o que fomenta um afasta-
mento maior da comunidade em relação à área da construção.
Dessa forma, o espaço é usado por moradores em situação de
rua para seu abrigo e encontro, por usuários de drogas e por grafiteiros
que imprimem suas marcas nas paredes internas e externas da cons-
trução, os quais se identificam com esse espaço pela falta de vigilância,
configurando, assim, um espaço de apropriações e expressões plurais.

163
O Bairro Monte Serrat no Maciço do
Morro da Cruz./

Para um olhar histórico do Monte Serrat podemos salientar que é


uma das áreas mais antigas dos morros de Florianópolis.

“Já nos anos 1920, as grandes reformas higienistas culminaram na expulsão de


grandes populações pobres que viviam às margens do Rio da Bulha, canali-
zado e transformado na Avenida do Saneamento, atual Avenida Hercílio Luz
[...] Essas populações, predominantemente negras, descendentes de pessoas
escravizadas, e que trabalhavam atendendo às populações mais abastadas da
cidade [...] distribuíam-se como podiam, ocupando outros territórios então va-
gos. A preexistência de caminhos no Morro da Cruz, assim, configurou-se como
um convite a um dos eixos de ocupação do Maciço.”
(RUCHAUD, 2019, p.207)

Assim, o modo de ocupação se desenvolveu dessa maneira, quer


pela proximidade do local de trabalho dos indivíduos que ocupam o es-
paço, ou pela preexistência de caminhos que facilitaram a sua instalação
no local.
Nesse contexto, a praça do Morro da Caixa, que se localiza na
esquina das ruas General Nestor Passos e General Vieira Rosa, nasce
com a criação do reservatório de água da capital de Santa Catarina que
foi inaugurado em 1910, o qual atendia a região central de Florianópolis,
mesmo que a comunidade que ali residia só fosse receber água encana-
da em 1980. Uma nova praça foi inaugurada em 2019 com um projeto do
Instituto Padre Vilson Groh, em uma iniciativa público privada do progra-
ma “adote uma praça”, o qual já atuou em várias localidades da capital.
O local contém uma dinâmica que envolve a vida de todos os
moradores da região, já que está próximo de algumas escolas; o que gera
um grande fluxo de pessoas nos momentos pós-aulas entre pais e filhos
e senhores de idade, os quais se encontram no local para conversar e jo-
gar conversa fora. Assim, o programa do espaço público contempla todas
as individualidades da região, com parquinhos, mirante e mesas de jogos,
envolvendo o coletivo e propiciando muitas trocas.
164
Imediações da Rua Frei Caneca./

Deslocando-se para Rua Frei Caneca, o casarão eclético abando-


nado que se localiza no número 610 e 626 é a antiga Chácara Gonzaga, a
casa da família Ramos, que teve como moradores, vários de seus mem-
bros como figuras de grande importância no cenário político catarinense,
tais como: Nereu Ramos, governador e depois presidente da república,
único catarinense presidente até os dias de hoje; o governador Celso
Ramos; o prefeito de Florianópolis Mauro Ramos e o senador Vidal Ra-
mos. A edificação foi construída entre 1910 e 1920, onde a família residia
durante o início do século passado. Mais tarde, abrigou uma escola e foi
tombado pelo município como patrimônio histórico cultural em agosto
de 2015. Nesse tempo de desuso a edificação já passou por dois incên-
dios acidentais, que degradaram muito sua estrutura tendo uma de suas
edificações detelhada, devido ao ocorrido.
O local é usado como abrigo para maioria dos pedintes que ficam
nos semáforos da Av. Beira-mar Norte, criando um contraste com a re-
gião de prédios de alta renda em seu entorno; enquanto isso, o espaço é
deixado em aberto, sendo depredado com o intuito de aumentar o valor
da terra e destruir a atual edificação. O convívio entre esses dois grupos
gera uma situação de tensão na região, já que muitos dos assaltos ocor-
ridos são de moradores instalados na edificação que, depois das ocor-
rências descartam itens que não os interessam na propriedade. Nesse
local podem ser encontradas bolsas e identidades espalhadas pelo
imóvel. Um lugar instável sempre em contraste com as suas imediações,
embora, mais recentemente, tenha sido lacrado para evitar que a crimi-
nalidade pudesse tomar conta do local.
165
O caminho./

O sentido tradicional de ordem que marcou a interpretação clás-


sica do espaço, balizado por uma perspectiva funcionalista permitia, na
maioria das vezes, sempre uma percepção linear da realidade. A emi-
nente dissolução dessa noção, diante das transformações recentes das
conformações urbanas contemporâneas, de cidades com centros expan-
didos, periferias espraiadas e vastos territórios indefinidos (CACCIARI,
2010), exige novos meios de cognição do espaço – o qual passa a ser
configurado por trajetórias múltiplas e flutuantes, instaurando sistemas
urbanos versáteis e, assim, não-lineares.
Nesse sentido, defendemos como estratégia metodológica uma
leitura espacial desse objeto em transformação que é o centro expandi-
do de Florianópolis que agasalhe outros sentidos e acolha o inesperado.
Um processo de reconhecimento urbano que, também se produza como
um outro objeto instável, ou seja, uma intelecção provisória do centro
expandido de Florianópolis, através da produção/criação de informação
urbana, tendo em vista sua frequentação (FERRARA, 2000).
A experiência de caminhar pelo centro expandido de Florianópo-
lis pode trazer à luz seus meandros, suas zonas opacas, prenhes de des-
compassos, alteridades e hibridizações. Os lugares oriundos da surpresa,
que advém ao percorrer sua extensão, sempre como aquele que apreen-
de a área pela primeira vez, mesmo que já tenha feito o percurso várias
vezes. Assim, a deslocação como uma modalidade capaz de ir em busca
dos significados desconhecidos, serve para compor novas significações
que se descortinam em um contexto latino-americano, onde a prática do
caminhar também significa enfrentar muitos medos (CARERI, 2013).
Por meio da modalidade peripatética evidenciaremos como uma
multiplicidade de visões são capazes de serem produzidas a partir dessa
área, gerando atrativos que a mantém sempre viva, como um espaço
que nos conduz para novas sensibilidades estéticas, independentemente
de serem exageradamente feias, ou extremamente bonitas. Lançamos
mão de um olhar de cunho fenomenológico, baseado na experiência do
espaço e balizado nas vivências do lugar, para que possamos revelar,
algumas essências, para além das aparências, independentemente da
distinção entre forma e conteúdo (MERLEAU-PONTY, 1999).
Deste modo, capturamos uma centena fotografias evitando os
seus aspectos técnicos, sem os inúmeros diagramas, gráficos e equa-
ções; as imagens preparadas e os retratos de pessoas que posam, não
são mais importantes do que aquelas imagens captadas aleatoriamente,
pelas câmeras dos celulares, pois estes são mais fáceis de transportar
166
e, também, chamam menos atenção. Talvez, o mais importante dessa
tática para a leitura dos espaços é que nos valemos da nossa experiência
do caminhar. Ela advém do fato de que, o fotógrafo de rua, simplesmen-
te, tem como o seu compromisso: vagar por aí, sem nada especial em
mente para fotografar (GIBSON, 2016).
Estas experiências do caminhar não podem ser lidas como con-
clusivas, mas como: constructo assimétrico, construído e desconstruído
por meio dos trajetos, nos seus territórios, na medida em que se con-
fundem com suas traduções; justamente porque estão circunscritas a
uma dialética do movimento (DELEUZE, 1997). Signos que atravessamos
e que nos atravessam, não se esgotando outras possibilidades de sig-
nificados e de significações, para permitir, a cada novo frequentador do
lugar, sempre uma nova experiência errática da cidade (JACQUES, 2012).

167
Transitando e tropeçando./

Imerso em visões e experiências, as percepções extraídas das


nossas caminhadas pelo centro expandido de Florianópolis emergem
por meio de recortes fotográficos e croquis captados em instantes de
conexão com o espaço, algo que brota e gera impacto, pois vai desde um
grafite que se despe de amarras sociais instigando o olhar do observador
por meio de marcas agressivas e expressões sensíveis, até a comoven-
te situação improvisada de moradia de um sem teto embaixo de uma
marquise. Assim, juntas, formam uma narrativa da cidade que apenas
existe nos seus entremeios e vielas despercebidos pela grande parce-
la da população, que pela negação invisibiliza realidades subalternas.
Assim, como resultados são apresentados esses registros com a intelec-
ção aprendida sobre esses momentos captados por meio da vivência do
caminhar - uma experienciação peripatética.
As traduções nos territórios do centro expandido de Florianó-
polis atestam alguns dos seus modos de uso e apropriação subversivos
com referência aos códigos pré-estabelecidos, fazendo-ver o seu vigor
sintático. Uma arquitetura da cidade que sugere um caráter transgressor.
Revelam ainda, algo sobre o tom democrático que esses espaços po-
dem adquirir. Isto porque, não existem limitações ou restrições de uso e,
assim, o espaço permite e pertence a quem decidir se apropriar dele.
168
Figura 2 – Centro expandido de Florianópolis e locais visitados, fonte: autores, 2021./

Quando estivemos no Parque da Luz o local se apresentou com


uma clara distinção entre os usos do espaço, quase que corporificada
pelas ocupações e vestígios deixados pelos que ali perambulam. Cremos
que podem ser divididas em cinco tipos as apropriações encontradas
neste espaço: recreação, uso de drogas, moradia, sexo e grafite, respecti-
vamente.
O primeiro tipo de ocupação que tem como grupo de indivíduos
os moradores da região e visitantes da Ponte Hercílio Luz fica nas bordas
do parque e em uma pequena parte do centro, onde ficam alguns mobi-
liários e a quadra de futebol. O parque também é usado para caminha-
das ocupado por uma horta comunitária.
O uso de drogas no território do parque não é exclusivo dos
moradores em situação de rua, na realidade, a maioria dos usuários que
ocupam o parque são jovens adultos que frequentam o centro da cida-
de. Assim, em alguns horários se utilizam de alguns locais escondidos
por entre a vegetação. Desse modo, é possível encontrar usuários de
entorpecentes em quase todos os momentos do dia.

169
O terceiro tipo de ocupação é a moradia de andarilhos, que se
configura na entrada sudeste, na parte mais adensada por árvores e sem
qualquer trilha de ligação com o parque. Nessa região é possível encon-
trar muitos vestígios de quem ocupa a área como: embalagens de be-
bidas alcóolicas vazias, carcaças de celulares, possivelmente roubados,
roupas sujas e alguns preservativos usados, além de antigas estruturas
improvisadas de folhas de bananeira que servem como abrigo.
Um dos maiores atrativos de pessoas para esta região são as
boates 1007 e Fields, que nas noites de sexta-feira e finais de sema-
na geram um alto fluxo nos entornos do parque e filas para entrar nos
referidos clubes noturnos. Assim, tornou-se recorrente a utilização do
parque como lugar para externar desejos sexuais em meio às árvores do
local. Muitos já presenciaram cenas de sexo explícito no local.
Sobre os grafites encontrados existe uma grande variedade deles
e em locais diversos. Desde paredes, até nas pedras do parque, sendo
algumas mais expressivas e outras mais relacionadas a quem as fez,
como as tag’s. Desse modo vemos um local muito rico do ponto de vista
artístico.

2 1

1 - Grafites Parque da Luz

2 - Camiseta encontrada Parque da


Luz
3 3 - Cachimbo de crack Parque da Luz

4 - Camisinhas usadas encontradas


Parque da Luz
5 - Muros com arame farpado do Par-
que da Luz

Figura 3 – Transurbanograma Parque da Luz, fonte: autores, 2021./

170
O antigo Estaleiro Arataca é um local de complicado acesso, de-
vido a vedação presente para evitar a entrada de moradores em situação
de rua. Assim, descemos a Rua Almirante Lamego e fomos nos informar
sobre o espaço no Comando Geral-Corpo de Bombeiros, que fica ao
lado do lote do Estaleiro. Lá falamos com um Sargento dos bombeiros
que nos contou sobre as várias ocorrências de uso de drogas e de um
assassinato que ocorreu no ano de 2011. Depois disso, demos a volta no
quarteirão e tentamos acessar a antiga edificação pela parte da frente,
que fica na Avenida Osvaldo Rodrigues Cabral.
Quando chegamos nas imediações da ruína nos deparamos com
uma parte do muro de arrimo da casa e vários itens jogados no chão,
logo percebemos uma voz nos chamando de dentro da ruína: um mo-
rador em situação de rua que estava sentado em meio ao lixo. Ali era,
provavelmente um espaço utilizado por ele para se abrigar do sol e da
chuva.
Dentro da edificação havia muito lixo jogado no chão, como rou-
pas, garrafas, sapatos amontoados de modo que não era possível mais
ver o piso. Subimos para o segundo andar e saímos numa área já sem
combertura e cheia de mato, onde restava apenas uma parte da parede
da fachada e o resto da construção sem telhado. Nos restos da fachada
havia um grafite que nos chamou muito a atenção que dizia “ Sem teto
é nois“, uma clara tentativa de identificar o espaço como habitado. Desse
modo, o antigo Estaleiro Arataca apresentava uma deterioração avança-
da, porém, continua desempenhando função de morada, que, de certo
modo, mantêm o local vivo, já que contempla a função de abrigo para
desamparados e espaço para realização de atos transgressores.

171
1

1 - Grafites 'Sem teto


3 é nóis', antigo Estaleiro
Arataca

2 - Fachada antigo
Estaleiro Arataca

3 - Cama improvisa-
da antigo Estaleiro
Arataca

Figura 4 – Transurbanograma do antigo Estaleiro Arataca, fonte: autores, 2021./

172
O antigo Forno Incinerador de Lixo nos arredores do antigo es-
taleiro se mantém austero no meio da paisagem que compõe a região.
Sua chaminé ainda resiste ao processo de verticalização acelerado. No
passado a edificação possuía grande importância:

“O forno do lixo representou, junto com o cemitério, uma outra peculiarida-


de de uso exclusivo desta região. Formou, com o complexo portuário e fabril
da Rita Maria, um conjunto de implantação, e volumetria distinto dos demais
assentamentos construídos no século XIX. Nesta direção, a oeste da cidade,
situaram-se, além do cais Rita Maria, os estaleiros e guindastes do porto, di-
versos armazéns e fábricas, e uma pequena xila operária, que destacavam-se,
junto à encosta do morro da Boa Vista, das edificações coloniais implantadas
esparsamente”. (VEIGA, 2010, p.285). “O Forno Incinerador de Lixo foi construí-
do entre 1910 e 1914 pela firma Brando e Cia.[...] Com o aumento populacional,
foi necessário dar início, em 1959, ao aterro sanitário do Itacurubi”
(VEIGA, 2010.p.286)

Ainda no entorno do Parque da Luz, existem alguns locais por


onde passamos que merecem destaque como a antiga Fábrica de Pontas
Rita Maria da Cia. Hoepcke e o antigo Incinerador de Lixo. A Fábrica de
Pontas Rita Maria, hoje já em desuso, teve uma grande importância na
época em que foi construída.

A Fábrica de Pontas Rita Maria, inaugurada em 1896, foi uma das primeiras in-
dústrias de vulto em Florianópolis. Sua instalação, divulgada entusiasticamen-
te pelos jornais da época como uma das iniciativas mais relevantes do campo
industrial da Capital, repercutiu o cenário político, econômico e social de todo
o Estado de Santa Catarina. Aliada à fábrica de bordados do mesmo empre-
sário, Carl Hoepcke, ela veio a incrementar a produção industrial da cidade,
movimentando as atividades portuárias e criando uma empresa de navegação
local. O prédio foi construído com apenas um pavimento e nele utilizou-se
tecnologia importada, rompendo com os cânones arquitetônicos da região. [...],
foi efetivamente uma das mais importantes indústrias de Santa Catarina.
(VEIGA, 2010, p 265, 267)

173
Nos dias de hoje, a construção de um centro empresarial con-
trasta com o entorno e, consequentemente, com a antiga fábrica. As
novas edificações compostas por cortinas de vidro é parte do projeto de
restauração dos antigos galpões que irão compor o Centro Empresarial
Carl Hoepcke.
Além disso, nas imediações há um novo empreendimento, o
edifício Top Vision composto por três torres que vão abrigar moradias,
serviços, escritórios e lazer. Disposto na antiga Fábrica de Renda e Bor-
dados da Cia. Hoepcke, localizada na Rua Felipe Schmidt esquina com a
Rua Hoepcke e Conselheiro Mafra:

“A Fábrica de Rendas e Bordados Hoepcke foi construída em 1913 por Carl


Hoepcke e Ricardo Ebel. Inicialmente caracterizada por apenas cinco máquinas
e 15 colaboradores, em 1928 já havia quadruplicado de tamanho, tornando-se
uma das mais tradicionais empresas catarinenses e exportando internacional-
mente.Com o seu crescimento acelerado, em 1979 a fábrica se muda ao bairro
do Roçado, buscando expandir sua produção. Assim, a fábrica foi abandonada
e anos depois tombada.”
(PONTE-VIVA, 2019)

1 - Grafite próximo à ponte Hercílio Luz.

2 - Grafites próximos à balada 1007.

3 - Barraca no baixio do elevado Carl Hoepck.

4 - Antigo incinerador de lixo.

5 - Poema de Paulo Leminski em guarda-corpo.

6 - Fábrica de pontas Rita Maria.


174
2

1
3

Figura 5 – Tansurbanograma arredores da Ponte Hercílio Luz, fonte: autores, 2021./


175
Nos dirigimos em seguida à Avenida Mauro Ramos. Logo que che-
gamos no pé da subida do morro Monte Serrat. Notamos um grafite de
uma mulher negra. Ainda nas redondezas percebemos que alguns muros
e casas eram grafitados. Além disso, notamos que os terrenos desocu-
pados possuíam uma vedação de madeira impedindo o acesso de qual-
quer curioso ou perambulante que passasse por ali. Essa condição talvez
derive de um movimento da comunidade para evitar que esses pontos
se tornassem espaços para o uso de substâncias ilícitas por moradores
em situação de rua, como acontece na Avenida Mauro Ramos, que é um
reduto durante à noite.
Subindo o morro da comunidade do Monte Serrat sentimos a
grande dificuldade que passa o morador do local cotidianamente. Além
de a calçada possuir uma inclinação muito alta, que impossibilita qual-
quer cadeirante ter acesso ao local sozinho, o recuo que as casas têm da
rua muitas vezes é menor do que sessenta centímetros forçando, assim,
o caminhar pela rua. Entretanto, nos surpreendemos muito no final da
subida do morro quando nos deparamos com bancos inclinados e corri-
mões para se apoiar e poder descansar.
Quando chegamos ao topo encontramos um morador que traba-
lhava como taxista e conversando com ele descobrimos que boa parte
das qualidades do local foram conquistas teve com o apoio do padre Vil-
son Groh da igreja da comunidade. Além disso, sentimos que ele possuía
um grande orgulho de fazer parte daquele coletivo pela forma como ele
contava as histórias, cremos que devido ao engajamento dos moradores
do local para criar um espaço com mais qualidades gerou um forte sen-
so de pertencimento urbano.
A Praça do Monte Serrat pode ser citada como uma dessas con-
quistas. Foi construída no mesmo espaço que está localizado o primeiro
reservatório de água Ilhéu, em 1910. Um espaço amplo, com uma vista
privilegiada do centro da cidade, mesas de jogos, parquinhos e bancos.
Assim, devido a essas características se tornou um espaço de encontro
para os moradores da comunidade de todas as idades. Quando estive-
mos no local havia uma grande movimentação de pais e crianças, já que
era logo após o horário do colégio. O espaço era apropriado pelas crian-
ças, que jogavam bola, brincavam de pega-pega e pique-esconde o que
transformou o lugar em um espaço lúdico. Ainda no morro, encontramos
grafites de camaleões de um importante artista da cidade; os icônicos
desenhos estavam nos muros do parque e de uma casa.
176
1

1 - Casa com grafite Rua Major Costa.

2 - Grafite Rodrigo Rizo, entrada do Parque Ecológico do Morro da Caixa.

3 - Grafite mulher negra entrada Monte Serrat.

4 - Terreno vedado com madeira Rua Major Costa.

5 - Bancos na subida do Monte Serrat.

Figura 6 – Transurbanograma do Monte Serrat, Morro da Caixa e Morro da Cruz, fonte:


autor, 2021./

177
Após terminar o percurso no Monte Serrat e seus arredores nos
direcionamos à Rua Frei Caneca com continuação a Rua Bocaiúva e suas
imediações. Como já conheciamos a região, sabiamos da existência de
um casarão abandonado na Rua Frei Caneca, um local conhecido como
antiga Chácara Gonzaga.
Quando chegamos lá nos deparamos com uma casa muito de-
gradada devido ao uso por moradores em situação de rua, com destaque
para o gratide do camaleão em sua fachada, uma marca do artista Rodri-
go Rizo. A casa localizada no número 610 e 626 da Rua Frei Caneca já foi
morada da família Ramos, a qual muitos de seus integrantes já tiveram
papéis políticos importantes no cenário catarinense como o governador
Celso Ramos.
Ela também já foi ocupada pelo Colégio Autonomia no final do
século XX e início do século XXI. Entretanto, hoje, está entregue à ocupa-
ção de moradores em situação de rua, viciados e perambulantes. Acredi-
tamos que a casa foi deixada à merce do tempo para que, paulatinamen-
te, fosse sendo destruída e chegasse ao ponto em que fosse permitido
pelo IPHAN sua demolição, apesar do seu tombamento.
Referente as ocupações transgressivas praticadas nas imedia-
ções, a parte que abrange a Frei Caneca tem a casa que ocupa o terreno
da antiga Chácara Gonzaga apropriada para utilização de drogas como
o crack e algumas marquizes ocupadas por moradores em situação de
rua como forma de abrigo, enquanto na Rua Bocaiúva tem uma série de
grafites e, ao longo dela, suas praças são principalmente, utilizadas para
consumo de canabis durante à noite, já que os moradores dos prédios
da região, em maior parte adolescentes, enxergam esses espaços como
local seguro para utilização dessa substância.
1 - Grafite contra todo o timismo
civilizatório.
2 - Morador de rua sob marquise.
2 1
3 - Casa localizada na antiga
Chácara Gonzaga.

4 - Grafite 'permitido usar ma-


3 conha'.

5 - Grafite praça dos namorados.

5
Figura 7 – Transurbanograma da Rua Frei Caneca em continuação com a Rua Bocaiúva,
fonte: autores, 2021./

178
Transclusão./

Dentro do desenvolvimento dessa pesquisa fomos capazes de


realizar procedimentos que não acreditávamos serem possíveis de al-
cançar. Desse modo, cremos que houve um crescimento no processo de
exploração de novos horizontes por meio do caminhar como prática es-
tética. Em relação à contribuição resultante da elaboração desse traba-
lho de pesquisa, desvelamos uma nova cidade dentro da cidade, seja por
meio do conhecimento histórico, ou pela indentificação da dinâmica das
pessoas que a vivenciam cotidianamente, enriquecendo, dessa maneira,
nossa visão como arquitetos.
Sendo assim, esta pesquisa pôde nos fazer compreender mais
sobre o centro expandido da cidade de Florianopolis e suas práticas
transgressoras desenvolveram percepções arquitetônicas antes adorme-
cidas, quer pela deriva atenta, quer pelo conhecimento histórico.
Nesse sentido, o ato de ir e vir é o que chamamos de 'trans-ci-
dade'. Por meio dele fomos capazes de perceber a importância do grafite
no cenário da cultura urbana cotidiana da cidade, além da dinâmica dos
moradores em situação de rua e das diversas comunidades em relação
ao centro urbano da cidade. Também, construimos uma maior consci-
ência em relação às subjetividades subalternas e como elas ocupam e
se expressam no espaço urbano. Além disso, esta pesquisa pode nos
proporcionar uma capacidade de entender como a cidade se constroi, se
desconstroi e como essa conjuntura de fatos afeta a prática dos espaços
urbanos.
179
Referências Bibliográficas./

CACCIARI, Massimo. A Cidade. Barcelona: Gustavo Gili, 2010.

CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São


Paulo: Gustavo Gili, 2013.

DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.

FERRARA, Lucrécia D’Alessio. Cidade Imagem e Imaginário. In: FERRARA,


L. D. Significados Urbanos. São Paulo: Edusp, 2000, pp. 115-131.

GIBSON, David. Manual do Fotógrafo de Rua. São Paulo: Gustavo Gili,


2016.

JACQUES, Paola Berenstein. A experiência errática da cidade: em busca


da alteridade urbana. In: RIBEIRO, A. C. T.; VAZ, L. F.; SILVA, M. L. da. Leitu-
ras da Cidade. Rio de Janeiro: Letra Capital/ ANPUR, 2012, p. 48-63.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Mar-


tins Fontes, 1999.

PONTE-VIVA. <http://ponteviva.pmf.sc.gov.br/patrimonio.html>. Acesso


em: 21 dez. 2019.

RUCHAUD, Guilherme Galdo. A presença do passado na produção da


cidade: as narrativas do Monte Serrat, em Florianópolis/SC. São Paulo,
2019.

VEIGA, Eliane Veras da. Florianópolis: memória urbana. Florianópolis:


Fundação Franklin Cascaes, 2010.

180
181
09./ Djonathan Freitas

Sinal
vermelho.
182
Resumo./
O percurso construído nesse capítulo trata das relações entre
fotografia e a cidade, tendo o foco na narrativa das pessoas que expe-
rienciam as ruas como espaços de existência e resistência, enquanto
modo de ocupação e criação de territórios na cidade de Florianópolis.
No intuito de pensar uma estratégia para “fazer-ver” as mudanças e
adaptações exigidas com a chegada da pandemia de Covid-19 buscamos
registrar aqueles que são marginalizados, carregando em seus corpos as
marcas da desigualdade social e da luta pela sobrevivência. Este outro
olhar tem como pressuposto uma abordagem transversal que se ajusta a
cada realidade, à procura dos índices sócios espaciais, que acometem à
invisibilidade em seus espaços existenciais. Conduzindo esse pensamen-
to ao ato do caminhar, como prática estética, queremos pensar sobre
algumas complexidades da cidade, tendo no exercício fotográfico, uma
possibilidade de experimentação crítica e cartografia acerca da política
da esmola nas sinaleiras, diante de todas as suas contradições e con-
trastes sociais.

Palavras-chave: Fotografia, Narrativas Urbanas, Marginalização, Cidade,


Florianópolis.
183
Introdução./

O convite para sair pelas ruas de Florianópolis resultou em ex-


perienciar a cidade sob novas possibilidades de reconhecimento urbano,
em uma aproximação com as diferentes questões sociais, aprofunda-
das pelas mudanças acontecidas com a pandemia de covid-19 Neste
percurso, as possibilidades de caminhos a serem seguidos fizeram nos
aproximar daqueles que estão à margem, carregando em seus corpos as
marcas da desigualdade social e luta pela sobrevivência, principalmente
as subjetividades subalternas que estão pedindo esmola nas sinaleiras.
Isto nos faz pensar sobre o olhar singular do sujeito que, por sua
vez, também diz respeito ao contexto urbano como um todo. Ao aden-
trar as ruas é preciso provocar o desejo de desnaturalizar e ir contra um
modelo de automatismo, um processo de ir ao encontro com o desco-
nhecido descrito por Careri (2013), daquilo que ainda está por vir. É nesse
deslocamento que os corpos afirmam a sua existência, expressam sua
subjetividade (ROLNIK, 2011), criam possibilidades e rompem as frontei-
ras usuais entre o público-privado, o íntimo-impessoal, ainda que sob a
marca do estigma, da subjugação e das marcadas discrepâncias. É nessa
mesma questão que Deleuze e Guattari (1995) sublinham que as cida-
des evidenciam exatamente a natureza imanente da dobra que dissolve
a rígida fronteira aparente entre interior e exterior, fazendo parte de uma
trama ilimitada de acoplamentos entre máquinas de subjetivação.
Nesse percurso, cartografamos os retratos que desvelam as ruas
de Florianópolis, também se constroem com o “olhar do estrangeiro”
(PEIXOTO, 1988), em um desejo de contar histórias simples e originais,
que são atravessadas por possibilidades de documentar, mas, também,
criar ficções, em um jogo para fazer um recorte da realidade. Trata-se de
flagrar esse momento em que o sujeito se inteira da aparência da cidade
e, ao mesmo tempo, de si mesmo; como se seu corpo, as vestes e suas
atitudes traduzissem, nele mesmo, uma cidade revelada.

“O fotógrafo encontra-se inapelavelmente mergulhado na cidade, de modo que


olhar é também andar, visualizar é tatear por entre muros. Como se o ato de
ver acabe sempre pela experimentação tátil de um objeto erguido diante dele
e que ele precise contornar. Há um encavalamento entre o visível e o tangível.
Esse campo denso entre aquele que vê e a coisa que é vista é constitutivo de
sua visibilidade. O olhar apalpa as coisas: estamos no meio do mundo [...].”
(PEIXOTO, 2015)

184
Uma cidade revelada./

A cidade como campo de investigação atravessa as mais diver-


sas leituras em diferentes campos do conhecimento. É destacada por
Lefebvre (2001) como um lugar de encontro de pessoas e coisas, um
local de troca, representada pelas narrativas urbanas dos sujeitos, pelas
memórias, pelo vivido, pelo experimentado. É também fragmentada, no
entanto, convertida em lugares de passagem e “não-lugares”, sinalizada
pelo processo de subjetivação, à margem de uma sociedade que exclui e
estigmatiza seus corpos e espaços.
Aqui, a cidade se revela pelas ruas e vias, trazemos vestígios so-
brepostos, evidenciados pelas narrativas urbanas e pelas suas relações
na forma de perceber e interagir com o espaço e o tempo. Há, portanto,
uma cartografia do lugar, nos desvios que almejam outras rotas; mudan-
ças de rumo, estando sempre abertas a incidentes de percurso, percor-
rendo territórios diversos de extensão variável e tempo indeterminado
em busca da singularidade do Outro.
É nessa mesma direção que Deleuze e Guattari (1995) sublinham
que a cartografia não é uma competência, mas uma força performática,
sua pragmática em um princípio inteiramente voltado para uma experi-
ência ancorada no real. Cartografar é, portanto, habitar um território exis-
tencial (ROLNIK, 1989, p.15-16), onde se assumi um corpo caminhante,
ou transurbante como prática estética (CARERI, 2013), com o objetivo de
experienciar a cidade de forma direta e as subjetividades que despontam
do ambiente descrito por Certeau:

Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à


procura de um próprio. A errância, multiplicada e reunida pela cidade, faz dela
uma imensa experiência social da privação de lugar, criando um tecido urbano,
e posto sob o signo do que deveria ser, enfim, um lugar, mas é apenas um
nome, a Cidade
(CERTEAU, 1994: 177)

Nesse panorama, caminhar pela cidade como proposta de apre-


ensão, torna-se uma ferramenta essencial para criar condições de diálo-
go com os sujeitos, desenvolvendo a politização, ou seja, o saber sobre
185
si mesmo e sobre a coletividade. Um método que se propõe a investigar
as diversas particularidades não retratadas nos levantamentos usuais e
procura registrar a subjetividade de um espaço e de que maneira ele é
ocupado, por quem e como ele é explorado.
Nesse sentido Careri (2013) afirma que ao adentrar a cidade e
introduzir-se em seus pensamentos é uma forma artistica. Onde o tran-
seunte de um território procura “indicar o caminhar como um instru-
mento estético capaz de descrever e modificar os espaços que muitas
vezes apresentam uma natureza que ainda deve ser compreendida e
preenchida de significados, antes que projetada e preenchida de coisas”
(CARERI, 2016, p. 32).

[...] explorar a pé a cidade e penetrar em seus significados é uma arte tal como
a escultura, a pintura, a arquitetura, mas também como a fotografia, o cinema,
a poesia que nos contam muitas vezes com mais eficácia do que os urbanis-
tas, os fenômenos mais dificilmente legíveis da cidade atual (CARERI, 2017,
p.101).
(CARERI, 2017, p.101)

Uma atividade que produz encontros com a cidade, encontros


com o Outro, encontros com a diversidade e com as desigualdades,
definindo uma nova relação entre o caminhante e a cidade, que não
se restringe a mover-se apenas, mas a ouvir, sentir, experimentar, falar,
transformando estes em espaços de significados.
Assim, na tentativa de cartografar as ruas de Florianópolis, acei-
tamos os desvios estabelecidos na relação entre corpo e lugar, através
do exercício da fotografia como experimentação, que põe em operação
um mecanismo perceptivo, no qual as cenas das pessoas, as memórias,
os desejos e os olhares se entrecruzam para vir à tona. Uma revelação
sempre fotográfica, que foi definida a partir de uma concepção de corpo
intensivo, corpo vibrátil (ROLNIK, 2011), ou seja, um corpo concebido
como composição e devir de um campo de possibilidades de afetar e ser
afetado.
Nessa representação cartográfica, buscou-se “fazer-ver” as
mudanças e adaptações na eclosão da pandemia de Covid-19, em uma
relação de intimidade do sujeito e a rua, que fazem parte de uma reali-
dade concreta em que o espaço se apresenta como alternativa possível
de existência, sobrevivência e moradia, mesmo que de modo transi-
tório. É uma rua constitutiva de território já agenciado a linhas de fuga,
que deixam marcas e ficam gravadas no corpo de quem vivencia, um
processo que territorializa, desterritorializa e reterritorializa (DELEUZE e
GUATTARI, 1995) o sujeito da experiência que se torna o próprio lugar do
acontecimento.
As narrativas a cerca da vida nas ruas nos mostram um cotidiano
inusitado, que abarcou as maneiras como as pessoas se organizam para
sobreviver, esmolar e habitar as ruas. Esses modos de viver comparecem
186
para dizer que esses sujeitos estão vivos, produzindo táticas, como assi-
nalou Certeau (1998). Evidenciam novas formas de fazer existir e ocupar
o lugar, traçando uma rede de comunicação entre o sujeito e o desco-
nhecido. Sentimos que nessa cidade, este corpo que vagueia a pedir
esmola na rua, decorre de dificuldades de convivência familiar, questões
relacionadas à dependência química, desemprego e, por vezes, a um ci-
clo de perdas afetivas. Corpos marginalizados, carregando as marcas da
desigualdade social que opera pela lógica racista.
Portanto, esse encontro com o Outro, nos atravessa por meio da
fotografia e forja um modo de ver a rua que se traduz pela presença do
corpo excluso em linhas que desvendam o acontecimento inusitado. Os
resultados são imagens que produzem solavancos sobre a cidade e nos
colocam diante de questões cada vez mais complexas que precisam ser
refletidas e discutidas. Elas produzem choques (BENJAMIN, 1995) sobre
a nossa realidade cada vez mais desigual.

PARE!
OLHE E
SIGA...

187
Figura 1 - Imagem que ilustra a vida nas sinaleiras das ruas de Florianópolis;
Fonte: acervo dos autores (2021)./

188
Figura 2- Imagem que ilustra um abrigo improvizado nas ruas de Florianópolis durante a
eclosão da pandemia de Covid-19.
Fonte: acervo dos autores (2021)./

189
Figura 3 – Imagem que ilustra uma placa de pedido “por favor peço ajuda p/ adquirir
par de muletas”.
Fonte: acervo dos autores (2021)./

190
Figura 4 – Imagem que ilustra uma placa de pedido “Vivo da arte/Fome ajuda”.
Fonte: acervo dos autores (2021)./

191
Figura 5 – Imagem que ilustra uma placa “Não sustente a miseria. Não dê esmolas.”
Fonte: acervo dos autores (2021)./

192
Referências Bibliográficas./

BENJAMIN, Walter. Rua de Mão única. São Paulo: Brasilienses, 1995.

CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São


Paulo: Gustavo Gili, 2013.

CERTEAU, M de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

DELEUZE, G. GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 1. São


Paulo: Editora 34, 1995.

LEFEBVRE, Henri. O direito a cidade. São Paulo: Editora Centauro, 2009.

PEIXOTO, N. B. O Olhar do Estrangeiro. In: NOVAES, A. O Olhar. São Paulo:


Cia das Letras, 1988. p. 361- 363.

ROLNIK, S. (2011). Cartografia sentimental: transformações contemporâ-


neas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS.

193
Título: A cidade inacabada

Autores:

Evandro Fiorin
Djonathan Freitas
Guilherme do Carmo Gomes Dias
Heber Macel Tenório Vasconcelos
Kellen Melo Dorileo Louzich
Laís da Silva Rodrigues
Lucas do Nascimento Souza
Matheus Alcântara Silva Chaparim
Paula Gabbi Polli

Coordenação editorial:

Evandro Fiorin

Projeto gráfico:

Guilherme do Carmo Gomes Dias

Revisão:

Autores

Colaboração:

Arthur Fracaro Gonçalves


Igor Augusto de March

Formato do E-book: 14,8x21 cm

número de páginas: 194

Tipografia: Work Sans

1ª Edição: Dezembro de 2021

194
Evandro Fiorin:
Coordenador do Laboratório de Percepção Urbana / UFSC
Líder do Grupo de Pesquisa de Projeto, Patrimônio, Percepção e Paisagem / CNPq
Docente dos Programas de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo / UFSC / UNESP

Djonathan Freitas:
Arquiteto e Urbanista formado pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC,
campus CERES/Laguna. Graduando no curso das Artes Visuais UDESC, campus CEART/Flo-
rianópolis e mestrando com Bolsa CAPES em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade
Federal de Santa Catarina.

Guilherme do Carmo Gomes Dias:


Arquiteto e Urbanista (FCT-Unesp) - Pós-graduado em Habitação e Cidade pela Escola da
Cidade - São Paulo - Mestre em Arquitetura e Urbanismo, área: 'Arquitectura Avanzada Pai-
saje Urbanismo y Diseño' pela (Universidad Politécnica de Valencia) com especialização em
desenvolvimento urbano com base nos conceitos de habitat sustentável.

Heber Macel Tenório Vasconcelos:


Arquiteto e Urbanista formado pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL, Mestre em Ar-
quitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e Doutorando, Bolsista
CAPES pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG.

Kellen Melo Dorileo Louzich:


Arquiteta e Urbanista formada pela Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT. Mestre
em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.

Laís da Silva Rodrigues:


Arquiteta e Urbanista formada pela Universidade Paulista - UNIP, especialista em História
da Arte pela Universidade Estácio de Sá - UNESA e mestranda em Arquitetura e Urbanismo
pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP Bauru.

Lucas do Nascimento Souza:


Arquiteto e Urbanista formado pela Universidade do Sagrado Coração - USC e Mestre em
Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" -
UNESP Bauru.

Matheus Alcântara Silva Chaparim:


Arquiteto e Urbanista pela FCT-UNESP, campus de Presidente Prudente, e Mestre pela
FAAC-UNESP, campus de Bauru. Foi bolsista FAPESP de iniciação científica e mestrado na
Universidad de Sevilla e Università Roma Tre.

Paula Gabbi Polli:


Arquiteta e Urbanista formada pela Universidade Federal de Santa Maria - UFSM, Mestre em
Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e Doutoranda
em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.

Arthur Fracaro Gonçalves:


Bolsista de Iniciação Científica PIBIC-CNPq-UFSC.

Igor Augusto de March:


Bolsista de Iniciação Científica PIBIC-CNPq-UFSC.

195
a cidade INACABADA 1ª edição

196

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