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XV Simpósio Nacional da ABCiber

Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura


Curando Causas: Educação, trabalho e diversidade na era dos dados
Online – 7 a 9/12/2022

Affordances das plataformas digitais e capitalismo de dados:


a persistência da Cibernética 1

Maira Silva de Moraes 2


Universidade Federal do Paraná - UFPR

Rodrigo Eduardo Botelho-Francisco 3


Universidade Federal do Paraná - UFPR

Resumo
Este artigo objetiva discutir como a Cibernética contribui para a compreensão das
affordances do ecossistema de plataformas digitais – configuradas como mecanismos de
controle que moldam as práticas cotidianas. Esse entendimento é construído a partir da
caracterização da sociedade do controle; da sistematização do conceito de affordances; e
da conformação das affordances como mecanismos de pressão. As articulações com a
Cibernética demonstram que as tecnologias dependem da correta coleta, transmissão e
processamento dos dados para a transformação de informações em produtos. Como
resultado aponta-se a importância de discutir a governança, termos de serviço, licenças e
diretrizes para desenvolvedores, uma vez que as plataformas focam em frustrar os
interagentes de saírem de seus ecossistemas e em potencializar ganhos, poder e influência.

Palavras-chave:
Capitalismo de Dados; Affordances; Plataformas Digitais: Dataficação; Cibernética

Introdução
A vida cotidiana é permeada por tecnologias digitais, que foram naturalizadas e
incorporadas em interconexões da mídia, das redes digitais e de diversas plataformas.
Experimentamos o mundo em fluxos de geração de sentido por meio de códigos, símbolos
e signos, que tecem significados em ambientes on-line e off-line. Organizados em
ferramentas e instrumentos, esses códigos são observados como a base do que Flusser

1 Trabalho apresentado no Painel Temático “Capitalismo de Dados, Capitalismo de Plataforma e Capitalismo


Algorítmico” do XV Simpósio Nacional da ABCiber, realizado online nos dias 07 a 09 de dezembro de 2022.
2 Maira Moraes é jornalista (UFBA); especialista em Gestão da Comunicação Empresarial (PUC/MG); mestre em

Ciências Humanas, Sociedade, Cultura e Linguagem (UNISA); e aluna bolsista CAPES no doutorado do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná (PPGCOM/UFPR), onde integra a linha de pesquisa
em Comunicação e Formações Socioculturais. Participa do grupo de pesquisa Information & Media Lab
(InfoMedia/UFPR), desenvolvendo estudos em informação, comunicação e conhecimento no contexto da Cibercultura.
[email protected]
3 Rodrigo Eduardo Botelho-Francisco é jornalista (Unesp); especialista em Computação e em Gestão Pública (UFSCar);

mestre e doutor em Comunicação (USP), com pós-doutorado na Universidad Complutense de Madrid (UCM) e
Universitat Autónoma de Barcelona (UAB); e livre-docente em Informação e Tecnologia (USP). Professor no
Departamento de Ciência e Gestão da Informação e nos programas de pós-graduação em Comunicação e em Gestão da
Informação da UFPR, é líder do Grupo de Pesquisa Information & Media Lab (InfoMedia/UFPR).
[email protected]

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(2017) trata como um processo artificial próprio da comunicação humana: nos


comunicamos por meio de artifícios influenciados pela cultura, utilizando e naturalizando
códigos, sendo a fala e a escrita frutos da produção de sons e gestos não naturais. As
tecnologias digitais acrescentam uma camada de codificação e são também naturalizadas
com o nosso mundo codificado e cheio de significados. Isso ocorre nos atravessamentos
das tecnologias nas práticas cotidianas e na incorporação de expressões inerentes aos
processos tecnológicos e suas formas de se apresentarem ao mundo, por meio de técnicas,
artefatos modelos de negócios, ideologias e formas de exercício de poder – a exemplo de
algoritmos4, internet das coisas5, inteligência artificial6 e aprendizado de máquina7.
Flusser (2017) considera a transmissão de informações como um aspecto essencial
da comunicação humana, sendo o homem caracterizado por ser “um animal que encontrou
truques para acumular informações adquiridas” (FLUSSER, 2017, p.79). A informática é
uma dessas formas de acumular e transmitir informações, sendo característico dos meios
digitais que os processos de produção da informação envolvam trocas de informações
para sintetizar novas informações (BIDLO, 2016; FLUSSER, 2014, 2017). Tal
entendimento dialoga com a Cibernética, que objetiva desenvolver um repertório de
técnicas que deem conta da comunicação (ou da troca de informações8), vista como algo
controlável, quantificável e verificável.
Para Wiener (1993), máquinas, organismos e a sociedade funcionam a partir da
troca de mensagens, que são enviadas e respondidas em processos de retroalimentação,
ou seja, de feedback – devendo-se buscar a fidelidade das trocas de informações

4 Originado na matemática, o termo representa a sequência de instruções ou comandos realizados sistematicamente


para executar uma tarefa ou resolver um problema. No dia a dia, os indivíduos relacionam algoritmo à internet e às
plataformas, focando no processamento de grandes volumes de informações de forma rápida para buscar e classificar
conteúdos de maneira eficiente ou de fazer recomendações/personalizações.
5 Internet das coisas (em inglês, Internet of Things - IoT) é uma rede de objetos cotidianos (carros, relógios, geladeiras

etc.) interconectados por meio da internet. Isso representa praticidade, mas abre caminho para questionamentos sobre
privacidade e extração/processamento de dados pessoais.
6 A Inteligência Artificial (AI, do inglês Artificial Intelligence) está ligada à execução de tarefas complexas por não-

humanos de maneira autônoma e similar às associadas a seres inteligentes. A AI está presente na vida cotidiana por
meio de softwares, assistentes pessoais, mensagens de telemarketing, chatbots e outros atravessamentos tecnológicos
nos quais humanos e não-humanos interagem e executam tarefas como falar, escrever e reconhecer expressões.
7 Como um ramo da inteligência artificial e da ciência da computação, o aprendizado de máquina (do inglês, machine

learning) se dedica ao uso de dados e de algoritmos para que não-humanos melhorem gradualmente sua precisão e
performance. O senso comum assimila esse conceito como a capacidade dos não-humanos simularem a forma como
humanos aprendem e tomam decisões. A partir de sequências de instruções/comandos criadas por programadores, o
deep learning é o uso de algoritmos para a aprendizagem, sem supervisão humana ao longo do processo.
8 O termo informação “[...] designa o conteúdo daquilo que permutamos com o mundo exterior ao ajustar-nos a ele, e

que faz com que nosso ajustamento seja nele percebido. [...] Dessarte, comunicação e controle fazem parte da essência
da vida interior do homem, mesmo que pertençam à sua vida em sociedade.” (WIENER, 1993, p.17-18).

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(homeostase) e evitar que estas sejam corrompidas por ruídos (o que leva à entropia9).
Trazendo a Cibernética para o contexto atual, Danesi (2013) explica que a teoria contribui
para a compreensão da comunicação, entre outros pontos, no que diz respeito ao
desenvolvimento de taxonomias, princípios e procedimentos. O autor acrescenta que o
interesse da Cibernética está nas maneiras pelas quais as formas materiais são organizadas
para constituir o sistema. Assim, devido à sofisticação dos computadores e aos esforços
para fazê-los se comportar de maneira humana, a Cibernética hoje estaria intimamente
ligada à teoria da informação, à inteligência artificial e à robótica (DANESI, 2013).
Danesi (2013) e Logan (2015) destacam a importância da Cibernética para o
trabalho e a compreensão de McLuhan (1972, 2007) sobre como o tipo de tecnologia
utilizada/desenvolvida para gravar e transmitir mensagens (o meio) determina como as
pessoas as processam e se lembram delas. A abordagem Cibernética contribuiu também
para pensar como a comunicação se transformou com o processador de texto (1964), o e-
mail (1965), os computadores pessoais (segunda metade da década de 1970) e a internet
comercial (popularizada nos anos 1990), bem como com os mecanismos de busca (1990),
as wikis (1994) e as mensagens instantâneas (1996) (ALLEN, 2017). Neste artigo,
consideramos que a Cibernética se aplica ao funcionamento das tecnologias digitais, que
dependem de processos de codificação e compressão, multiplexação e modulação,
transmissão de dados e correção de erros. Também, está presente em fenômenos como a
dataficação10, produzindo diagnósticos e inferências11 que alimentarão as interações entre
humanos e não-humanos nas plataformas digitais (GROHMANN, 2019; LEMOS, 2021;
POELL; NIEBORG; VAN DIJCK, 2020; POLIVANOV et al., 2019).
Não é só por meio da dataficação que as plataformas moldam as esferas pública e
privada da vida. Van Dijck, Poell e Waal (2018) explicam que são contínuas a seleção e
a mercantilização de dados, assim como a medição de desempenho e o rastreamento de
sentimentos, de interesses e de opiniões. Os autores nomeiam de comensuração a tradução

9 Para a Cibernética (WIENER, 1993), a entropia significa desorganização, devendo ser combatida. Por outro lado, um
grupo de mensagens (conduzindo informações) é uma medida de organização.
10 A dataficação traduz a vida em dados digitais performativos (quantificáveis, analisáveis e rastreáveis). Lemos (2021)

explica que não se trata da conversão de objetos analógicos em digitais, mas sim um conjunto de métodos de coleta,
processamento e tratamento de dados para fazer predições, modificar ações, comportamentos e conhecimentos. “[...]
Não se trata apenas de procedimentos com dados demográficos ou perfis socioeconômicos, por exemplo, mas de análise
dinâmica a partir de metadados comportamentais.” (LEMOS, 2021, p.194).
11 Por meio da dataficação, o espaço digital fornecido para as interações se torna área de exploração para o mercado, e

as plataformas coletam informações não apenas dos indivíduos (rastreamento, dados de uso etc.), mas também de outras
empresas e de sua produção (nas linhas de montagem e vendas em e-commerce, por exemplo), bem como de processos
naturais (condições climáticas, ciclos de cultivo etc.) (COULDRY; MEJIAS, 2019; SRNICEK, 2017).

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contínua de atividades em dados, ou seja, a transformação de diferentes qualidades em


métricas comuns que ranqueiam, comparam e separam ações previamente consideradas
(in)compatíveis e/ou (des)qualificáveis de acordo com estratégias mercadológicas. No
caso das plataformas, a comensuração ocorre por meio das affordances – materializadas
em métricas como número de curtidas, compartilhamentos, seguidores etc. Esses
balizadores da interação dos indivíduos, levam a processos de experimentação e
adaptação das ações de humanos e não-humanos, por meio da seleção ou curadoria de
conteúdos e de atores. Nesse sentindo, trazemos para esta discussão a compreensão de
affordances em alinhamento com Davis (2020): um conjunto de mecanismos (solicitar,
exigir, incentivar, desencorajar, recusar e permitir) e de condições (percepção, destreza e
legitimidade cultural e institucional) que balizam as relações objeto-sujeito.
Diante do contexto delineado, este artigo tem o objetivo de discutir como a
Cibernética contribui para a compreensão das affordances do ecossistema de plataformas
digitais – configuradas como mecanismos de controle que moldam as práticas cotidianas.
Trata-se de pesquisa descritivo-exploratória, de cunho qualitativo e bibliográfico, com
tensionamentos teóricos que buscam demonstrar que as affordances operam em diferentes
graus, variando de acordo com a forma como os indivíduos: a) percebem uma série de
funções e restrições apresentadas; b) lidam com os recursos a partir de diferentes níveis
de habilidade; e c) experimentam envolvimentos diversos com as tecnologias, devido a
normas culturais e regulamentos institucionais. Para dar conta desse percurso, o artigo foi
organizado em quatro tópicos: “Sociedade do controle”; “O que são affordances?”;
“Mecanismos de pressão”; e “As affordances e a Cibernética”.
Sociedade do controle
Uma das críticas mais severas feitas a Wiener (1993) é sobre o risco de as
máquinas controlarem fenômenos tecnológicos e políticos por meio de comandos
(machine à governer) – o que, segundo o autor, só ocorreria em estágios finais de entropia
crescente da sociedade.
[...] Seu verdadeiro perigo, contudo é muito diverso – é o de tais máquinas,
embora inermes por si mesmas, poderem ser usadas por um ser humano ou
por um grupo de seres humanos para aumentar seu domínio sobre o restante
da raça humana; ou o de líderes políticos poderem tentar dominar suas
populações por meio não das próprias máquinas, mas através de técnicas
políticas tão exíguas e indiferentes à possibilidade humana quanto se tivessem
sido, de fato, concebidas mecanicamente. (WIENER, 1993, p.178)

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Os argumentos de Wiener (1993) ganham contornos relevantes para relacionar,


no contexto contemporâneo, as affordances das plataformas digitais à Cibernética. Para
tanto, deve-se considerar que, na sociedade disciplinar, o poder está ligado à produção de
verdade e ao saber, sendo necessária a ação da autoridade sobre os corpos. De forma mais
sutil, a sociedade do controle se concentra em construções de mundo que moldam
comportamentos por meio da influência de humanos e não-humanos, ao intermediarem
e/ou facilitarem o cotidiano. Silveira (2017) ressalta que as sociedades disciplinar e de
controle se articulam e que “[...] os controles cibernéticos acompanham as pessoas em
suas trajetórias, dão a sensação de conforto, são eficazes na solução de problemas,
melhoram as experiências, não geram medo, mas afeto.” (SILVEIRA, 2017, p.60).
Tudo isso foi previsto pela Cibernética e denominado por Wiener (1993, p.71)
como “influências do tipo a quem possa interessar”, que conduzem novos dados
estatísticos às máquinas. Esses controles exercidos nas sociedades cibernéticas colocam
os indivíduos num behaviorismo de dados, em que padrões de comportamento são
desenhados, monitorados e registrados. A ilusão de liberdade dá a impressão de que tudo
é possível, porém as escolhas ocorrem a partir de alternativas pré-estabelecidas,
conformando processos de modulação (DELEUZE, 2021) – nos quais é preciso conhecer
bem cada interagente, além de reduzir o campo de visão dos indivíduos ou dos segmentos
da rede. As tecnologias de modulação, manipulação ou de formação de verdade por meio
do discurso são distintas e baseadas em critérios de impacto e objetivos: em vez de criar
discursos, imagens ou falas para cada indivíduo, só é preciso encontrar e destinar
conteúdos a grupos específicos.
Para que a modulação seja eficaz são necessários o reconhecimento de padrões, a
capacidade de aprender continuamente e de fazer previsões com base em dados, bem
como o ajuste dos parâmetros ao longo do processo. O primeiro passo é a captura,
armazenamento, classificação e análise dos dados, visando a formação de perfis – que
podem ser agregados a diversos bancos de dados. Já a condução do comportamento ou
opinião se dá a partir de dispositivos e processos persuasivos e de acompanhamento
constantes. Objetivando delimitar, influenciar e reconfigurar o comportamento dos
interagentes, as plataformas estruturaram processos de modulação usando algoritmos e
machine learning, que são aplicados pelas plataformas por meio das affordances.

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Evans et al. (2017) propõem que tratemos as affordances como um processo,


observando aspectos funcionais e relacionais entre humanos e não-humanos. Asim, as
affordances devem ser compreendidas como uma estrutura multifacetada que possibilita
ou restringe potenciais resultados comportamentais em determinados contextos.
O que são affordances?
Apesar de o termo affordances ser muito usado em pesquisas empíricas sobre
comunicação e tecnologia, há inconsistências nas abordagens e aplicações. Em parte,
segundo Evans et al. (2017), isso se deve ao conceito de affordance ser ontologicamente
interdisciplinar e originalmente formulado para capturar o dinamismo das relações entre
objetos e sujeitos. Detalhamos no Quadro 1 a transformação histórica do conceito de
affordance e sua adoção por diversas áreas do conhecimento.
Quadro 1 - Evolução histórica do conceito de affordances
Áreas Compreensão do conceito de affordances
Na década de 1960, James J. Gibson pela primeira vez refere-se às affordances
como a evolução dos animais para perceberem o ambiente e à manipulação
dos designers de características dos materiais para encorajar percepções de
Psicologia
artefatos. Baseadas no uso, as affordances representam oportunidades de ação
Ecológica
nas quais objetos oferecem potencialidades a sujeitos socialmente situados.
Objetos e sujeitos seriam co-constitutivos e as affordances seriam ações
potenciais decorrentes de relações objeto-sujeito.
Objetos devem ser projetados para orientar ações e percepções dos usuários,
cabendo ao designer destacar usos desejados e relevantes do artefato. Assim,
distingue-se entre: affordances reais e restrições lógicas (dadas pelo ambiente
Design de design); affordances percebidas (que o usuário sabe que estão disponíveis);
restrições físicas (affordances); restrições culturais (normas compartilhadas
por grupos); e as convenções (restrições culturais que se transformam com o
tempo, incentivando algumas ações e inibindo outras).
Possibilita compreender a interação entre: a) habilidades, conhecimentos e
ferramentas da fabricação dos artefatos; b) os sistemas sociotécnicos que
Antropologia
ligam as práticas culturais aos desenvolvimentos tecnológicos; e c) a práxis
cultural envolvida nas relações entre a técnica e os sistemas sociotécnicos.
As affordances são fundamentais para compreender a relação entre dois
Engenharia subsistemas, em que comportamentos potenciais podem ocorrer e que não
seriam possíveis se os subsistemas fossem tomados isoladamente.
Nos estudos das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) e da
Comunicação Mediada por Computador (CMC), as affordances capturam as
maneiras pelas quais hardware e software interagem com usuários
Comunicação
socialmente situados. O conceito é também utilizado para mostrar como as
arquiteturas, infraestruturas, políticas, práticas digitais, políticas de
plataformas e convenções informais moldam e refletem a dinâmica social.
Educação e Descrevem como o processo ensino-aprendizagem pode ser moldado pela
Pedagogia interação entre alunos e sistemas técnicos em ambientes digitais.
Fonte: Adaptado de Davis (2020)

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Compreendendo as affordances como a totalidade de comportamentos que se


pode ter com um objeto, outros conceitos foram agregados, dando relevância à percepção
e sua imbricação com a materialidade (vide Quadro 2). Nesse sentido, para que uma
affordance se atualize na relação sujeito-objeto deve haver um ajuste entre as
propriedades do objeto e as propriedades do sujeito – o que não determina um resultado,
mas gera potencialidades que podem mudar ao longo do tempo.
Quadro 2 - Conceitos complementares
Enfatizando a subjetividade na percepção e na capacidade de agir, a efetividade
deve ser compreendida na relação entre sujeito e objeto. A correspondência
Efetividade
entre as affordances dos objetos e as efetividades dos sujeitos seriam então a
forma como as potencialidades das affordances seriam atualizadas.
Utilidade São as potencialidades de um objeto em relação aos sujeitos.
Usabilidade Se refere à informação perceptiva sinalizada ao sujeito pelo objeto.
Funções São as características projetadas em um objeto.
Fonte: Adaptado de Davis (2020)
O dinamismo envolvendo questões como as habilidades dos interagentes e os
contextos de uso da tecnologia trazem tensionamentos que permitem sondar os
relacionamentos entre humanos e não-humanos de diferentes maneiras. Isso não abre
caminho para adaptações criativas e nem para o uso ambíguo do termo affordances. Evans
et al. (2017, p.36) explicam que a construção conceitual é desafiadora porque não há uma
teoria singular das affordances: “[...] elas surgem na mutualidade entre aqueles que usam
tecnologias, as características materiais dessas tecnologias e a natureza situada do uso”.
Nesse sentido, os autores propõem os critérios apresentados no Quadro 3, que devem ser
usados para avaliar as abordagens em pesquisas que envolvem as affordances.
Quadro 3 - Critérios de avaliação
A affordance não é o As características são estáticas enquanto as affordances são
objeto nem é uma dinâmicas, emergindo da relação entre o interagente, o objeto e
característica do objeto. suas características.
O resultado não precisa ser uma ação, mas precisa se conectar
A affordance não é um com objetivos do ator. Affordances convidam a comportamentos,
resultado. mas não são o resultado em si. Indivíduos podem estar associados
à mesma affordance com objetivos e resultados diferentes.
Diferente das características dos objetos, as affordances não são
binárias, podendo haver gradações/escalas de como os indivíduos
A affordance tem as percebem. Por exemplo, uma mesma tecnologia pode
variabilidade. proporcionar níveis diferentes de visibilidade e isso pode
influenciar comportamentos em relação à disponibilidade,
engajamento e formas de compartilhamento.
Fonte: Adaptado de Evans et al. (2017)

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Se assumirmos que as affordances dos objetos tecnológicos atuam não apenas


permitindo ou não ações, mas também demandando, solicitando, exigindo, incentivando,
desencorajando e recusando, então podemos considerar que se trata de um mecanismo
cujo funcionamento pode ser compreendido e agenciado. Isso faz com que o estudo das
affordances seja um tema sensível e importante em todas as áreas do conhecimento.
Por um lado, é preciso ter em mente que a agência dos indivíduos é um assunto
complexo e multifacetado, porque engloba tanto a atividade humana consciente quanto o
“inconsciente tecnológico” – representado pelos algoritmos e pelas affordances dos
ambientes digitais. Afinal, os interagentes são ao mesmo tempo produtores e participantes
de uma cultura, bem como cidadãos, amadores e profissionais. Por outro lado, mercados,
infraestruturas e serviços públicos são atraídos para o ecossistema das plataformas, em
um processo semelhante à industrialização ou à eletrificação: uma estrutura da qual
indivíduos, empresas e estados dependem (VAN DIJCK, 2013, 2020).
Para Davis (2020), tudo isso faz com que seja necessário reconsiderar as perguntas
que são feitas nas pesquisas sobre essa temática. Segundo a autora, em vez de perguntar
o que as affordances dos objetos tecnológicos permitem ou não, dever-se-ia questionar:
como, para quem e em que circunstâncias esses objetos se oferecem? As mudanças
permitem verificar de que maneira esses mecanismos operam juntos para articular
diferentes graus de insistência e para mobilizar os interagentes em múltiplas direções, seja
por processos cognitivos despertados pelos conteúdos, engajamento dos interagentes, ou
mesmo pela construção de mundos e realidades alternativas. Em outras palavras, pelos
mecanismos de modulação e confinamento (DELEUZE, 2021).
Mecanismos de pressão
Nem objetos nem sujeitos existem isoladamente, por isso Davis (2020) pontua que
observar o contexto das relações é fundamental para compreender as affordances – que
são potencialidades e que operam em graus a depender das interações. Considerando que
a assimetria se baseia na distribuição de responsabilidade, a autora pondera que apesar de
serem intrinsecamente relacionais, as interações entre humanos e não-humanos são
assimétricas: os artefatos e a tecnologia podem ser eficazes e exercer força, mas só
humanos têm agenciamento e podem ser responsabilizados12.

12 Davis (2020, p.47) articula essas relações assimétricas entre objeto-sujeito distinguindo eficácia (capacidade de
efetuar mudanças) de agência (capacidade de infligir vontade).

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A compreensão de que as tecnologias são construídas a partir das agências dos


designers e de que os interagentes humanos empregam seus agenciamentos às tecnologias
é fundamental para as discussões propostas neste artigo. Afinal, os objetos possuem
affordances, mas os efeitos são originados na intersecção da eficácia tecnológica com a
agência humana (questões culturais, diretrizes corporativas, interesses governamentais
etc.), que potencializam as relações de poder e a desigualdade. Estamos diante de
mecanismos que operam de maneira porosa, que articulam diferentes graus de demandas
e insistência. Então, Davis (2020) caracteriza as affordances por meio de mecanismos
(solicitar, exigir, incentivar, desencorajar, recusar e permitir) e de condições (percepção,
destreza e legitimidade cultural e institucional) (vide Quadro 4).
Embora as solicitações e demandas tenham origem com o artefato, elas estão
enraizadas na dinâmica socio-estrutural, uma vez que os humanos projetam, constroem e
distribuem objetos tecnológicos e infraestruturas. Ou seja, o que um objeto exige para um
indivíduo pode ser apenas uma solicitação para outro. Um interagente pode ser
encorajado a fazer algo, que a outro foi negado. Por isso, conforme alerta Davis (2020),
uma análise adequada das affordances requer atenção aos recursos dentro de um contexto.
Além disso, as condições de affordance tornam visíveis aqueles que são marginalizados,
ignorados e excluídos, adicionando contexto às análises.
Quadro 4 - Mecanismos e condições de affordance
Os interagentes usam pouca/nenhuma criatividade/desvio/subterfúgio
Solicitar pois a ação é geralmente óbvia, esperada e perfeita de executar,
representando aquilo que uma tecnologia foi construída para realizar.
Podem se apresentar em formas físicas e/ou simbólicas (sociais) e, embora
exerçam força e aparentem ser a única opção possível, são vulneráveis a
Mecanismos de affordance

Exigir
agências de usuários. Não são deterministas, pois os interagentes podem
optar por não usar uma tecnologia ou por subverter uma demanda.
Quando as tecnologias incentivam, elas tornam alguma linha de ação
Incentivar
prontamente disponível e fácil de executar.
Arquiteturas e estruturas normativas dos objetos erguem obstáculos,
tornando a ação “não óbvia”. Os interagentes precisam de disposição e
Desencorajar
capacidade de contornar normas/regras. A dissidência não é excluída e o
desencorajamento pode ser intencional (ou não) por parte dos designers.
Ações são implausíveis/impossíveis porque o objeto tecnológico foi
Recusar projetado para tornar certas funções insustentáveis. As recusas não são
necessariamente universais, nem são sempre permanentes.
São ofertas multidirecionais e de intensidade neutra – o que não significa
Permitir apolítico. O interagente pode seguir uma linha de ação, mas não há pressão
para fazê-lo, e não há obstáculos significativos no caminho.

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Ativa affordances e altera sua forma, tornando as tecnologias mais


flexíveis ou mais restritivas. A percepção muda as relações sujeito-objeto
Percepção
Condições de affordance

entre vários mecanismos: por exemplo, da solicitação para a recusa, ou


mesmo acomodando e subvertendo as intenções do design.
Para utilizar um objeto, é preciso não apenas perceber seus recursos como
disponíveis, mas também ter a capacidade (física ou cognitiva) de
Destreza
empregá-los. Assim como a percepção, não é uma designação fixa, mas
uma descrição das relações sujeito-objeto em um determinado momento.
É uma condição intrinsecamente política e ligada ao status e às dinâmicas
Legitimidade de poder. As possibilidades e relações homem-tecnologia são socialmente
cultural e situadas, uma vez que as normas/códigos culturais e institucionais criam
institucional oportunidades e proibições, determinando os caminhos construídos e as
estruturas que moldam a dinâmica sociotécnica nos níveis micro e macro.
Fonte: Adaptado de Davis (2020)
Percepção, destreza e legitimidade – tanto cultural, como institucional – estão
entrelaçadas e se moldam, uma vez que cada fator informa e é informado pelos outros.
Davis (2020, p.84) explica que podemos reconhecer o que um recurso faz (percepção) e
ter a habilidade de usá-lo (destreza), porém precisamos escolher enfrentar (ou não) as
barreiras formais ou normativas que recusam ou desencorajam uma ação. Por outro lado,
de acordo com a autora, a percepção e a destreza podem ser afetadas pela legitimidade
cultural e institucional, que atua facilitando ou impedindo a familiaridade com um objeto.
Em suma, as condições de affordance não são fixas. Elas mudam, assim como
mudam as relações entre humanos e não-humanos, mas por padrão se inclinarão para a
reificação de estruturas de poder. Nesse sentido, Davis (2020, p.73) considera que, à
medida em que os recursos exercem diferentes graus de insistência e orientam o que as
pessoas fazem e como interagem, os mecanismos de affordance podem ser tomados como
individuais, interpessoais e/ou culturais-estruturais. Essa maleabilidade possibilita aos
operadores (re)adequarem as respostas das plataformas de acordo com as interações e os
processos de machine learning, com o objetivo de que as infraestruturas sejam oferecidas
globalmente, sirvam a setores ou nichos específicos e atuem, por exemplo, como
gatekeepers (gerenciando, processando, armazenando e canalizando dados) e como
conectores entre indivíduos governos, organizações e microempreendedores.
As affordances e a Cibernética
Mesmo tendo sido formulada na década de 1940 por Wiener (1993), é perceptível
que a Cibernética faz sentido contemporaneamente. O autor já sinalizava que experiências
semelhantes (emocionais ou não) produzem reflexos intensos e condicionados geralmente
transferidos para as situações deflagradoras por meio de uma trilha, havendo uma
correção entre estímulo e resposta. A mudança no estímulo para o qual se verifica uma

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determinada resposta deve ter alguma trilha correlata que conduz à resposta constituindo-
se, assim, aquilo que a Cibernética chama de “mudança do taping”13 (WIENER, 1993,
p.69). Essa mudança ocorre com base em feedbacks informativos, definidos por Wiener
(1993, p.61) como a reintrodução no sistema dos resultados de seu desempenho anterior14.
Visto como uma alteração entre a entrada da informação no sistema e a saída, o autor
compreende o feedback como positivo (há um ganho na saída) ou negativo (o retorno é
menor do que a entrada). A circulação de informação poderia, portanto, ser quantificada
e o sistema deveria ser operado a partir de dados da mesma base digital: de acordo com a
álgebra de comutação (booleana), da teoria da informação e do feedback.
Richards (1952, apud LOGAN, 2015) apresentou o conceito de feedforward: uma
forma de usar o contexto para auxiliar o significado, baseada na troca recíproca entre os
interagentes – o que seria estritamente necessário para o feedback. A ideia de feedforward
aborda os usos (calculados ou presumidos) de um processo, fornecendo critérios para o
ajuste ou controle no momento do feedback e/ou a modificação do sinal de saída de um
circuito. Assim, enquanto o feedforward se coloca superficialmente (em relação ao
feedback) e é proativo, antecipando os caminhos e definindo objetivos, o feedback é
reativo e permite verificar o grau de proximidade alcançado em relação aos objetivos
traçados (LOGAN, 2015)15. Unindo os conceitos de feedback e feedforward, pode-se
compreender o que Wiener (1993) pretendia ao buscar um método para construir
máquinas que aprendem de forma similar ao humano, mas com uma natureza diferente16.
Levando em consideração que os operadores das plataformas digitais traçam
estratégias apoiadas no mercado e na dataficação das interações para potencializar
ganhos, aumentar o poder e frustrar tentativas de saída dos interagentes de seus
ecossistemas, deve-se compreender que o feedback e o feedforward são úteis para o
funcionamento das affordances. Afinal, essa relação circular é encontrada nos processos

13 Quando a Cibernética foi apresentada, “gravar” era um verbo que se referia a alimentar informações em um
computador com o uso de fitas. Por isso, Wiener (1993) utilizou a palavra em inglês taping (gravação).
14 Wiener (1993, p.61) diferencia dois tipos de processos: a) a realimentação simples, quando os resultados numéricos

são usados apenas como dados para a crítica e regulagem do sistema; e b) a aprendizagem, quando a informação for
capaz de mudar o método ou o padrão geral de desempenho.
15 Logan (2015) explica que a comunicação perfeita ocorre quando os sujeitos têm exatamente as mesmas experiências

ao longo de suas vidas. Sendo isso impossível, o feedforward remediaria essa situação.
16 “Na máquina aprendiz, é bom distinguir entre o que a máquina pode e o que não pode aprender. Pode-se construí-la

com uma preferência estatística por certa espécie de comportamento, que, não obstante, admite a possibilidade de outro
comportamento; ou, então, certas características de seu comportamento podem ser rígidas e inalteravelmente
determinadas. Chamaremos a primeira espécie de determinação de preferência, e à segunda espécie de coerção.”
(WIENER, 1993, p.175)

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de machine learning e na atuação de affordances e algoritmos. Também, a ideia de que


qualquer organismo se mantém unido quando possui meios para a aquisição, uso, retenção
e transmissão de informações pode ser vista como papel dos meios de comunicação para
a manutenção de uma sociedade coesa (WIENER, 2019).
À luz da Cibernética dos anos de 1960, a informação já é vista como “mercadoria,
uma coisa vale pelo que puder render no mercado livre” (WIENER, 1993, p.112). Porém,
Wiener (1993) esclarece que: a) a informação é mais um problema de processo que de
armazenagem; e b) não compete à Cibernética avaliar se essa atitude mercantil é moral
ou imoral, densa ou sutil. A mercantilização conduziria à compreensão e ao tratamento
errôneos da informação e dos conceitos a ela atrelados. Nesse sentido, Wiener (1993,
p.119) alerta: “[...] A ideia de que a informação possa ser armazenada, num mundo em
mudança, sem com isso sofrer enorme depreciação, é uma ideia falsa.”.
Essa afirmação nos remete ao contexto de excesso de informações e
desinformações que estamos vivenciando. Porém, independentemente da quantidade de
informação à qual estamos expostos – mesmo que sejamos relutantes em considerar a
Cibernética como uma forma atual para associar disciplina, biopolítica, economia e
publicidade –, não podemos ser indiferentes à forma como a dataficação uniu de maneira
eficaz a comunicação com a produção, coleta e análise de informações. Ou, conforme
defende Tiqqun (2020), nada expressaria melhor a vitória contemporânea da Cibernética
do que o fato de que o valor pode ser extraído como informação sobre a informação. “[...]
A lógica da mercadoria cibernética, ou lógica ‘neoliberal’, estende-se a todas as
atividades, incluindo a atividade ainda não mercantil, com o apoio inabalável dos Estados
modernos.” (TIQQUN, 2020, p.59, tradução nossa, grifo do autor17 ).
Esse contexto vem sendo analisado com diferentes abordagens e denominações, a
exemplo de sociedade de software (MANOVICH, 2013), sociedade de plataforma (VAN
DIJCK; POELL; WAAL, 2018), sociedade em rede (CASTELLS, 2017), capitalismo
cibernético (TIQQUN, 2020) e capitalismo de vigilância (ZUBOFF, 2019). Tais
conceitos têm em comum, em maior ou menor grau, a interconexão e interação em rede
de atores humanos e não-humanos a partir de tecnologias estruturadas em uma lógica
Cibernética e que tratam informações como seu principal produto. São formas de

17 Do original: “Nothing expresses the contemporary victory of cybernetics better than the fact that value can be
extracted as information about information. Cybernetic-commodity logic, or ‘neoliberal’ logic extends to every activity,
including not-yet market activity, with the unwavering support of the modern States.” (TIQQUN, 2020, p.59)

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descrever uma sociedade atravessada, comunicada e controlada por um modelo técnico


que tem a experiência humana tratada como matéria-prima, pronta para ser coletada para
a tradução em dados. É certo que alguns desses dados são empregados na personalização
e/ou melhoria de produtos ou serviços, porém em última instância, alimentam processos
de modulação baseados no machine learning para o tratamento e análise de dados com a
finalidade de previsão comportamental. Ou, nas palavras de Flusser (2014, p.18, tradução
nossa18): “O pensamento epistemológico e ético foi substituído de uma vez por todas pelo
pensamento cibernético, estratégico e pela análise de programas.”.
Considerações finais
A partir dos tensionamentos feitos ao longo deste artigo fica evidente que os
mecanismos de modulação (DELEUZE, 2021) contribuem para que as plataformas
explorem de forma lucrativa um recurso que há poucas décadas começou a ser
universalmente apropriado: a vida social humana. Tendo a informação se tornado um
produto a ser extraído e acumulado por meio de sua circulação, as relações sociais estão
se estendendo para além de nossas capacidades comunicativas. Esse contexto pode ser
chamado de “relações de dados” (COULDRY; MEJIAS 2019, p.29), que normalizam a
apropriação das informações por meio de narrativas e ideologias que ressignificam em
termos mais aceitáveis a forma como o valor é extraído das relações sociais. A “ideologia
da conexão” (COULDRY; MEJLAS, 2019, p.32) naturaliza a anexação da vida ao capital,
ou seja, a mercantilização da conexão de pessoas, coisas e processos por meio de uma
infraestrutura particular e desigual, atrelada à submissão a condições e poderes muito
particulares (COULDRY; MEJLAS, 2019, p.32).
Tendo em vista que os ecossistemas de plataformas estão atrelados a normas e
valores inscritos em sua arquitetura, defende-se aqui que os algoritmos não são neutros e
trazem consigo uma normatividade imposta pelos programadores e pelas empresas, que
delimita nossas ações e definem o que teremos acesso. Consequentemente, as affordances
operam em diferentes graus, variando de acordo com a maneira como os indivíduos: a)
percebem uma série de funções e restrições apresentadas; b) lidam com os recursos a
partir de diferentes níveis de habilidade; e c) experimentam envolvimentos diversos com
as tecnologias, devido a normas culturais e regulamentos institucionais. Dessa maneira, a

18Do original: “Epistemological and ethical thought has been replaced once and for all by cybernetic, strategic thought
and by program analysis. History is over.” (FLUSSER, 2014, p.18).

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Cibernética se mostra cada vez mais atual e capaz de endossar formas de controle
baseados no poder “[...] em termos de um campo operacional difuso de meios, cenários e
retroalimentação e no desenvolvimento de processos de monitoramento incessante e
avaliação.” (PIAS, 2016, p.23, tradução nossa19). Isso porque sistemas de governança e
controle podem ser escaláveis, possibilitando definir e introduzir metas, bem como
esperar que os resultados desejados/planejados se concretizem.
Por fim, ciente de que as problematizações trazidas neste artigo não esgotam a
discussão sobre as affordances das plataformas digitais e sobre a dataficação da vida, fica
a sugestão de, nas próximas discussões, aprofundar a análise sobre a operacionalização
de questões de governança, de classificação algorítmica, contratos e políticas (na forma
de termos de serviço, licenças de uso e diretrizes para desenvolvedores) que embasam as
affordances e os algoritmos – materializando a força da estrutura e seu poder. Ou seja,
sobre como os indivíduos “[...] tornaram-se ‘dividuais’, divisíveis, e as massas tornaram-
se amostras, dados, mercados ou ‘bancos’” (DELEUZE, 2021, p.126, grifos do autor).

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19Do original: “[…] on approaching the question of political power in terms of a diffuse operational field of milieus,
scenarios, and feedback and on developing processes of incessant monitoring and assessment.” (PIAS, 2016, p.23).

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