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Resumo
Este artigo objetiva discutir como a Cibernética contribui para a compreensão das
affordances do ecossistema de plataformas digitais – configuradas como mecanismos de
controle que moldam as práticas cotidianas. Esse entendimento é construído a partir da
caracterização da sociedade do controle; da sistematização do conceito de affordances; e
da conformação das affordances como mecanismos de pressão. As articulações com a
Cibernética demonstram que as tecnologias dependem da correta coleta, transmissão e
processamento dos dados para a transformação de informações em produtos. Como
resultado aponta-se a importância de discutir a governança, termos de serviço, licenças e
diretrizes para desenvolvedores, uma vez que as plataformas focam em frustrar os
interagentes de saírem de seus ecossistemas e em potencializar ganhos, poder e influência.
Palavras-chave:
Capitalismo de Dados; Affordances; Plataformas Digitais: Dataficação; Cibernética
Introdução
A vida cotidiana é permeada por tecnologias digitais, que foram naturalizadas e
incorporadas em interconexões da mídia, das redes digitais e de diversas plataformas.
Experimentamos o mundo em fluxos de geração de sentido por meio de códigos, símbolos
e signos, que tecem significados em ambientes on-line e off-line. Organizados em
ferramentas e instrumentos, esses códigos são observados como a base do que Flusser
Ciências Humanas, Sociedade, Cultura e Linguagem (UNISA); e aluna bolsista CAPES no doutorado do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná (PPGCOM/UFPR), onde integra a linha de pesquisa
em Comunicação e Formações Socioculturais. Participa do grupo de pesquisa Information & Media Lab
(InfoMedia/UFPR), desenvolvendo estudos em informação, comunicação e conhecimento no contexto da Cibercultura.
[email protected]
3 Rodrigo Eduardo Botelho-Francisco é jornalista (Unesp); especialista em Computação e em Gestão Pública (UFSCar);
mestre e doutor em Comunicação (USP), com pós-doutorado na Universidad Complutense de Madrid (UCM) e
Universitat Autónoma de Barcelona (UAB); e livre-docente em Informação e Tecnologia (USP). Professor no
Departamento de Ciência e Gestão da Informação e nos programas de pós-graduação em Comunicação e em Gestão da
Informação da UFPR, é líder do Grupo de Pesquisa Information & Media Lab (InfoMedia/UFPR).
[email protected]
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etc.) interconectados por meio da internet. Isso representa praticidade, mas abre caminho para questionamentos sobre
privacidade e extração/processamento de dados pessoais.
6 A Inteligência Artificial (AI, do inglês Artificial Intelligence) está ligada à execução de tarefas complexas por não-
humanos de maneira autônoma e similar às associadas a seres inteligentes. A AI está presente na vida cotidiana por
meio de softwares, assistentes pessoais, mensagens de telemarketing, chatbots e outros atravessamentos tecnológicos
nos quais humanos e não-humanos interagem e executam tarefas como falar, escrever e reconhecer expressões.
7 Como um ramo da inteligência artificial e da ciência da computação, o aprendizado de máquina (do inglês, machine
learning) se dedica ao uso de dados e de algoritmos para que não-humanos melhorem gradualmente sua precisão e
performance. O senso comum assimila esse conceito como a capacidade dos não-humanos simularem a forma como
humanos aprendem e tomam decisões. A partir de sequências de instruções/comandos criadas por programadores, o
deep learning é o uso de algoritmos para a aprendizagem, sem supervisão humana ao longo do processo.
8 O termo informação “[...] designa o conteúdo daquilo que permutamos com o mundo exterior ao ajustar-nos a ele, e
que faz com que nosso ajustamento seja nele percebido. [...] Dessarte, comunicação e controle fazem parte da essência
da vida interior do homem, mesmo que pertençam à sua vida em sociedade.” (WIENER, 1993, p.17-18).
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(homeostase) e evitar que estas sejam corrompidas por ruídos (o que leva à entropia9).
Trazendo a Cibernética para o contexto atual, Danesi (2013) explica que a teoria contribui
para a compreensão da comunicação, entre outros pontos, no que diz respeito ao
desenvolvimento de taxonomias, princípios e procedimentos. O autor acrescenta que o
interesse da Cibernética está nas maneiras pelas quais as formas materiais são organizadas
para constituir o sistema. Assim, devido à sofisticação dos computadores e aos esforços
para fazê-los se comportar de maneira humana, a Cibernética hoje estaria intimamente
ligada à teoria da informação, à inteligência artificial e à robótica (DANESI, 2013).
Danesi (2013) e Logan (2015) destacam a importância da Cibernética para o
trabalho e a compreensão de McLuhan (1972, 2007) sobre como o tipo de tecnologia
utilizada/desenvolvida para gravar e transmitir mensagens (o meio) determina como as
pessoas as processam e se lembram delas. A abordagem Cibernética contribuiu também
para pensar como a comunicação se transformou com o processador de texto (1964), o e-
mail (1965), os computadores pessoais (segunda metade da década de 1970) e a internet
comercial (popularizada nos anos 1990), bem como com os mecanismos de busca (1990),
as wikis (1994) e as mensagens instantâneas (1996) (ALLEN, 2017). Neste artigo,
consideramos que a Cibernética se aplica ao funcionamento das tecnologias digitais, que
dependem de processos de codificação e compressão, multiplexação e modulação,
transmissão de dados e correção de erros. Também, está presente em fenômenos como a
dataficação10, produzindo diagnósticos e inferências11 que alimentarão as interações entre
humanos e não-humanos nas plataformas digitais (GROHMANN, 2019; LEMOS, 2021;
POELL; NIEBORG; VAN DIJCK, 2020; POLIVANOV et al., 2019).
Não é só por meio da dataficação que as plataformas moldam as esferas pública e
privada da vida. Van Dijck, Poell e Waal (2018) explicam que são contínuas a seleção e
a mercantilização de dados, assim como a medição de desempenho e o rastreamento de
sentimentos, de interesses e de opiniões. Os autores nomeiam de comensuração a tradução
9 Para a Cibernética (WIENER, 1993), a entropia significa desorganização, devendo ser combatida. Por outro lado, um
grupo de mensagens (conduzindo informações) é uma medida de organização.
10 A dataficação traduz a vida em dados digitais performativos (quantificáveis, analisáveis e rastreáveis). Lemos (2021)
explica que não se trata da conversão de objetos analógicos em digitais, mas sim um conjunto de métodos de coleta,
processamento e tratamento de dados para fazer predições, modificar ações, comportamentos e conhecimentos. “[...]
Não se trata apenas de procedimentos com dados demográficos ou perfis socioeconômicos, por exemplo, mas de análise
dinâmica a partir de metadados comportamentais.” (LEMOS, 2021, p.194).
11 Por meio da dataficação, o espaço digital fornecido para as interações se torna área de exploração para o mercado, e
as plataformas coletam informações não apenas dos indivíduos (rastreamento, dados de uso etc.), mas também de outras
empresas e de sua produção (nas linhas de montagem e vendas em e-commerce, por exemplo), bem como de processos
naturais (condições climáticas, ciclos de cultivo etc.) (COULDRY; MEJIAS, 2019; SRNICEK, 2017).
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12 Davis (2020, p.47) articula essas relações assimétricas entre objeto-sujeito distinguindo eficácia (capacidade de
efetuar mudanças) de agência (capacidade de infligir vontade).
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Exigir
agências de usuários. Não são deterministas, pois os interagentes podem
optar por não usar uma tecnologia ou por subverter uma demanda.
Quando as tecnologias incentivam, elas tornam alguma linha de ação
Incentivar
prontamente disponível e fácil de executar.
Arquiteturas e estruturas normativas dos objetos erguem obstáculos,
tornando a ação “não óbvia”. Os interagentes precisam de disposição e
Desencorajar
capacidade de contornar normas/regras. A dissidência não é excluída e o
desencorajamento pode ser intencional (ou não) por parte dos designers.
Ações são implausíveis/impossíveis porque o objeto tecnológico foi
Recusar projetado para tornar certas funções insustentáveis. As recusas não são
necessariamente universais, nem são sempre permanentes.
São ofertas multidirecionais e de intensidade neutra – o que não significa
Permitir apolítico. O interagente pode seguir uma linha de ação, mas não há pressão
para fazê-lo, e não há obstáculos significativos no caminho.
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determinada resposta deve ter alguma trilha correlata que conduz à resposta constituindo-
se, assim, aquilo que a Cibernética chama de “mudança do taping”13 (WIENER, 1993,
p.69). Essa mudança ocorre com base em feedbacks informativos, definidos por Wiener
(1993, p.61) como a reintrodução no sistema dos resultados de seu desempenho anterior14.
Visto como uma alteração entre a entrada da informação no sistema e a saída, o autor
compreende o feedback como positivo (há um ganho na saída) ou negativo (o retorno é
menor do que a entrada). A circulação de informação poderia, portanto, ser quantificada
e o sistema deveria ser operado a partir de dados da mesma base digital: de acordo com a
álgebra de comutação (booleana), da teoria da informação e do feedback.
Richards (1952, apud LOGAN, 2015) apresentou o conceito de feedforward: uma
forma de usar o contexto para auxiliar o significado, baseada na troca recíproca entre os
interagentes – o que seria estritamente necessário para o feedback. A ideia de feedforward
aborda os usos (calculados ou presumidos) de um processo, fornecendo critérios para o
ajuste ou controle no momento do feedback e/ou a modificação do sinal de saída de um
circuito. Assim, enquanto o feedforward se coloca superficialmente (em relação ao
feedback) e é proativo, antecipando os caminhos e definindo objetivos, o feedback é
reativo e permite verificar o grau de proximidade alcançado em relação aos objetivos
traçados (LOGAN, 2015)15. Unindo os conceitos de feedback e feedforward, pode-se
compreender o que Wiener (1993) pretendia ao buscar um método para construir
máquinas que aprendem de forma similar ao humano, mas com uma natureza diferente16.
Levando em consideração que os operadores das plataformas digitais traçam
estratégias apoiadas no mercado e na dataficação das interações para potencializar
ganhos, aumentar o poder e frustrar tentativas de saída dos interagentes de seus
ecossistemas, deve-se compreender que o feedback e o feedforward são úteis para o
funcionamento das affordances. Afinal, essa relação circular é encontrada nos processos
13 Quando a Cibernética foi apresentada, “gravar” era um verbo que se referia a alimentar informações em um
computador com o uso de fitas. Por isso, Wiener (1993) utilizou a palavra em inglês taping (gravação).
14 Wiener (1993, p.61) diferencia dois tipos de processos: a) a realimentação simples, quando os resultados numéricos
são usados apenas como dados para a crítica e regulagem do sistema; e b) a aprendizagem, quando a informação for
capaz de mudar o método ou o padrão geral de desempenho.
15 Logan (2015) explica que a comunicação perfeita ocorre quando os sujeitos têm exatamente as mesmas experiências
ao longo de suas vidas. Sendo isso impossível, o feedforward remediaria essa situação.
16 “Na máquina aprendiz, é bom distinguir entre o que a máquina pode e o que não pode aprender. Pode-se construí-la
com uma preferência estatística por certa espécie de comportamento, que, não obstante, admite a possibilidade de outro
comportamento; ou, então, certas características de seu comportamento podem ser rígidas e inalteravelmente
determinadas. Chamaremos a primeira espécie de determinação de preferência, e à segunda espécie de coerção.”
(WIENER, 1993, p.175)
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17 Do original: “Nothing expresses the contemporary victory of cybernetics better than the fact that value can be
extracted as information about information. Cybernetic-commodity logic, or ‘neoliberal’ logic extends to every activity,
including not-yet market activity, with the unwavering support of the modern States.” (TIQQUN, 2020, p.59)
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18Do original: “Epistemological and ethical thought has been replaced once and for all by cybernetic, strategic thought
and by program analysis. History is over.” (FLUSSER, 2014, p.18).
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Cibernética se mostra cada vez mais atual e capaz de endossar formas de controle
baseados no poder “[...] em termos de um campo operacional difuso de meios, cenários e
retroalimentação e no desenvolvimento de processos de monitoramento incessante e
avaliação.” (PIAS, 2016, p.23, tradução nossa19). Isso porque sistemas de governança e
controle podem ser escaláveis, possibilitando definir e introduzir metas, bem como
esperar que os resultados desejados/planejados se concretizem.
Por fim, ciente de que as problematizações trazidas neste artigo não esgotam a
discussão sobre as affordances das plataformas digitais e sobre a dataficação da vida, fica
a sugestão de, nas próximas discussões, aprofundar a análise sobre a operacionalização
de questões de governança, de classificação algorítmica, contratos e políticas (na forma
de termos de serviço, licenças de uso e diretrizes para desenvolvedores) que embasam as
affordances e os algoritmos – materializando a força da estrutura e seu poder. Ou seja,
sobre como os indivíduos “[...] tornaram-se ‘dividuais’, divisíveis, e as massas tornaram-
se amostras, dados, mercados ou ‘bancos’” (DELEUZE, 2021, p.126, grifos do autor).
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DELEUZE, Gilles. Conversações. 3a edição, ed. São Paulo: Editora 34, 2021.
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Disponível em: http://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/722. Acesso
em: 16 ago. 2021.
19Do original: “[…] on approaching the question of political power in terms of a diffuse operational field of milieus,
scenarios, and feedback and on developing processes of incessant monitoring and assessment.” (PIAS, 2016, p.23).
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