Filosofando 04
Filosofando 04
Filosofando 04
.. A perenidade dos mitos nao e devida ao prestigioda &huIa(ao,_Clmagia da_ literatura. Ii que ela atesta a perenidade mesma da realidade humana.
Gusdorf
1. A.perspectiva dos
II
civilizados"
Inicialmente, faremos um~ advertencia, 0 ~roblema que sempre existe ao estuda£.J2losos ::lOVOS tribais e 0 risco do exotislTIo e da.compa~ao depreciativa, ou seja, do etnocentrismo. Se, por um lado, as pessoas se encantam e se 5UIpreendel11._comos e_stranhosrituais e convic;;Oes miricas dessas comunidades, por outro, nao :d:utam em considera-las inferiores, atrasadas. Dai a tendencia de classifica-las a partir das nossas categorias, como a sociedade "sem escri;:;1", "sern Estado", "sem comercio", "sem historia '. Segundo 0 etn6logo frances Pierre Clastres, se explicamos essespovos pelo que lhes falta, tendo como ponto de referencia a nossa sociedade, deixamos de compreender a sua realidade, 0 que, em muitos casos, acaba por justificar a atitude naternalista e missionaria de "levar 0 progresso, a ~tura e a verdadeira fe" ao povo "atrasado". A tendencia de ver esses grupos como inferimes decorre da tradicao da coloniza<;:ao"que a ~ca. Quando os na;egantes europeus iniciarn ~~sao ultramarina nos seculos xv e XVI, na procura de novos ciffillnhos para as Indias, dao 0 nome de Indios aos nativos americanos, que supunham pertecerem as terras do Oriente. Para evitar esse equivoco, muitas vezes 0 termo "indio" substituido por ind£gena, que etimolo icamente significa nasci 0 em casa". Usam-se tambem denorninacoes como povos, naoies ou etnias "primitivas" ou ((sem-esaita~m~econhecendoseamadequa<;:ao dessas expressoes. Nesse sentldo, a antrop6Iogo Claude LeviStrauss prefere colocar aspas na palavra "pri1 e 2. LEVI-STRAUSS. Claude. Mito e significado.
mitivo", quando a ela recorre, na falta de outra.' Mesmo assim, e preciso nao nos esquecermos de que esses povos devem s~r vistos ~omo diErentes, e nao injCriorcs1'i ainda Levi-Strauss quem 'nos explica como fomos nos gue perdemos muito de nossas capacidades, por exemplo, por .utilizarmos consideravelmente menos as nossas percep<;:6es sensorrais, . Basta lembrar como os indigenas tern a vista e 0 ouvido treinados para perceber 0 que nao mais conseguimos ver ou ouvir e como acumulam conhecimentos admiraveis sobre as plantas e os animais. "Nos perdemos todas estas coisas,mas nao as perdernos em troca de nada; estamos agora aptos a guiar um automovel sem correr 0 risco de sermos esmagadosa quglquer momento, e ao fim do dia podemos ligar 0 radio ou _otelevisor. Isto implica um.treino de capacidaqes mentais que os_povos:P;imitiyos' na~ possuem rorgue nao preClsamdelas. Pr",~sinto que, com 0 otencial que tem, poderianftermoificado a qualidade das suas mentes, mas tal mo-:: difica<;:ao nao seria adequada ao tipo de vida gue levanle ao-tipoCiereia<;:-oes que mantem com a natureza".2
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de divina, a claridade lhes e devolvida pela Aurora, porem nunca ' mais haveria s6 clarida de, como antes, mas alternancia do dia e da noire. De forma parecida, os gregos dos tempos J homericos narram 0 mito de Pandora, a primeira mulher. Em uma das muitas versoes desse mito, Pandora e enviada por Zeus a fim de punir 0 tita Prometeu, que roubara 0 fogo dos ceus ~ para da-le aos seres humanos. Pandora leva consigo uma caixa, que abre por curiosidade, deixando escapar todos os males que nos afligem, mas consegue fecha-la a tempo de reter a esperanca, unica forma de suportarmos as dores e os C\ sofrimentos da vida. ~ Nos do is relatos,percebemos situacoes aparentemente diversas, mas com fortes semelhancas, porque ambos contam a origem de algo: J 1:1 entre os incligenas, como surgiram 0 dia e a noite "i ~ e entre os gregos, a origem-dos males. Vma leitura apressada nos [aria entender 0 mito como uma maneira fantasiosa de ex licar ,_ a rea 1 a e am a nao Just! 1cada pela razao. Sob . esse entoque, os mitos seriam lendas, fabtI;:s, ~~ ~~ crendices e portanto uma forma menor de c~~ _ nheClmento, prestes_a_ sueerado Eor eXEhc~ser i~ yoes mais racionais. N 0 entanto, 0 mito e mais ~. cOillplexo e ma1Srico do gue supoe essa visao \S' redutora. l'v1eSmoporque nao sao s6 os povos ~ "pr:i"iilltivos"q_ueelaboram mItos, a consciencia mitica persiste em todos QS tempos e culturas componente indissociavel da maneira \>.::::, ~nacte compreender a realidade, como ve~ remos niais adiante;" ,U Foi1.mportante a contribuicao dos antrop6.;~ logos que, apartir cit) inicio do seculo xx, es;ta~ belecerarrrcorrtatrrsdrretos com comunidades das ilhas do Pacifico, da Africa e do interior do BrasiloSuas pesquisas de campo mostram que omito vivo e muito mais expressivo e rico do que supomos quando apenas ouvimos 0 relato frio de lendas, desligadas do ambiente que as fez surgir. ~ 'fomo processo de compreensao da realiS dade, 0 mito nao e lenda, mas verdade. Quando .~ pensamos em verdade e comum nos referirmos a coerencia l6gica, gar~ntida pelo rigor da argumentacao e pela apresentacao de provas.A ver~. dade do mito, porem, e intuida, e, como tal, nao ~ necessita de comprovacoes, porgue 0 criterio ~ de adesao do mito e a crenca, a fe. 0 mito e '!7 portanto uma intuis:ao _compreensi~ada reali~ dack cujas raizes se fundal1lnas emoyoes e na
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~fetividade. Nesse sentido, antes de interpretr o mundo, 0 mito expressa 0 que de.sejamos tememos, como somos atraidos elas coisas 0_ como e as nos afastamos. Esse "tarar sobre 0 mundo" simbolizado peio mitoesta impregnado do desejo humano dedQ: mina-ler,atugentando a inseguranya, os temore_g -aang6stia diante do desconhecido e da morte.
3. Fun~oes do mito
Embora 0 mito tambern seja uma forma de compreensao da realidade, sua ;;..:;:.:=::;;;...:;;.u;=~~_ dialmente, acomodar e trangiiilizar 0 ser hu!1ll.:" no em urn mundo assustador. Entre as comunidades "primitivas", 0 mito se constitui urn discurso de tal forya que s~ rende por todas as depe'i1dencias da realidade vivida; nao s estrin;"e apenas ao ambito do sagrado (ou seja, da relacao entre a pessoa e .2.Qivino), mas permeia todos os campos da atividadehumana.-F"or lSS0, os modelos de construyao mitica do -real~e ~atureza sobienatural, isto$. recorre-se aos deuses para compreenCler a ori'gem e natureza dos fatos, como indicam os exemplosa seguir: • a origem da tecnica: como os seres humanos eram rnais fracos do que os animais, 0 tita Prometeu roubou 0 fogo dos deuses para da10 aos humanos, tornando-os mais fortes, porque habeis; • a natureza dos instrumentos: certos utensilios sao objeto de cuIto, como a enxada ou 0 anzol, a lanca ou a espada; _ • a origem da agricultura: segundo 0 mito indigena tupi, a ~andlOca, alimento basicoda tribo: nasce 0 tumuloae umacrian"fa 'Chamada Mandi; no mito grego, Persefone e levad;- por Hades para seu castelo tenebroso, mas, a pedido de sua mae Demeter, retorna em certos periodos: esse mito simboliza 0 trigo enterrado como semente e renascendo como planta; - • aftrtilidade das mulheres: para os arunta, da Australia, os espiritos dos mortos esperam a hora de renascer e penetram no ventre das mulheres quando elas passam por certos locais; • 0 carater magico das danfas e desenhos:quafldo 0 fIomem de Cro-Magnon fazia afrescos nas paredes das cavernas, representando a captura de renas, talvez nao pretendesse enfeita-las nem most~ar suas habilidades pict6ricas, mas agir
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UNIDADE
II -
CONHECIMENTO
~-=-,,_....._uente, para garantir de anternao 0 suria cacada; essa suposicao se deve ao fato ~--e seralmente os desenhos eram feitos nas mais escuras da caverna. eaundo Mircea Eliade, filosofo romeno -050 das religioes, uma das funyoes do mito =-::=:or os modelos exen;-plares de todos os ritos =- '3: mdas as atividades humanas significativas. forma, 0 "primitivo imita os gestos exem~--es dos deuses, repetindo nos rituais as ayoes ~. Quando 0 m1SSlOnario e etriologo -=~ow perguntava aos arunta por que cele~ determinadas cerirnonias, obtinha inva~ente a mesma resposta: "Porque os an;r;:srr.:Us assim 0 prescreveram". Essa e tambern a _ - cativa invocada pelos teologos e ritualistas ..:±:ldus: "Devemos fazer 0 que os deuses fize~ no principio"; "Assim fizeram os deuses, 1Sri:m fazem os homens", os rituais, os arunta nao se limitam a re~entar ou imita~, os feitos e as aventu::3S dos ancestrais: tudo se passa como se eles ;warecessem de fato nas cerimonias. Nesse sen:ilio,o tempo sagrado reversivel, ou s~s:a Ie -giosa nao e Slmp es comemorayao, mas a ocasiao em que 0 sawado acontece novamente como reatualizayao do evento divino que t~e higarno passado mitico, "no comeco". Na sua a90, 0 "pnnutlvo" lITnta os deuses nos ritos que arualizam os mitos primordiais. Caso contrario, a sernente nao brotara da terra, a mulher nao sera fecundada, a arvore nao dara frutos, 0 dia nao sucedera a noite. A forma sobrenatural de descrever a realidade e coerente com a maneira magica pela quaro "pnnutlvo age sobre 0 mundo, como, por exem plo, nos mumeros ritos de passagem do nascimento, da mfancia para a idade adulta, do casamento, da morte. Sem os ritos, e como se os fatos naturais descritos nao pudessem se concretizar. Segundo Mircea Eliade, "quando acaba de nascer, a crianca so dispoe de uma existencia llsica, nao e ainda reconheClda peIa familia nem recebida pela comumdade. Sao os rHos que se cfetuam imediatamente apos -0 parto que con±erem ao reci!~m--nascido 0 estatuto de 'vivo' propriamente dito;i: somente grayas a estesritos que ele fica inte~rado na comunidade dos vivos. [...] No que diz
respeito a rnorte, os ritos sao tanto mais comple- ; xos quanto se trata nao-somente de urn 'fenomeno natural' (a v1da - ou a alma - abando!lando 0 corpo), mastambe~ma ~a de regime ao mes1no tern 0 ontolo ico e social: ~ o e unto deve afrontar certas provas que inte- fJ re.ssam ao se~",proprio destino post- ortem, mas . deve tam em ser reconhecido pela cOlTlunidade ~ dos mortos e aceito entre eles" _3 -
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Nas comunidades tribais em que predomina aconsciencia mitica, a experiencia individUal nao se separa ciaex enenCla da comunida e, mas se faz por meio dela,o ue nao significa a ausencia de qua quer principio de individua- _ ~ao, mas Slm que 0 equilibrio pessoaI de ende ~ a prepon eranCla 0 co etivo. Como diz Gusdarf, "a prirneira consciencia pessoal esta, por. tanto, presa na massa comumtana e nela sub ' r11ergida.Mas esta consciencia dependente e re' lativa nao e uma ausencia de consciencia; e uma ~_ consciencia em situayao, extrinseca e nao_ in- <, trinseca, a individualidade aparecendo entao , _ como urn no no tecido complexo das relayoes ' ~s. E 0 eu se afirma pelos outros, isto e, ele nao e pessoa, mas personagem". ~ Essa forma de coletivismo determina a ada tayao sem critica 0 in 1V1uo as normas da tra~A...5:.~nsciencia mitica e ingenua (no sentido de nao-critica), desprovida de problematizayao e supoe a aceitayao tacita dos mitos e das pr'escriyoes dos ntuais. A adesao ao mito e feita pela fe, pela crenca, No universo cuja conscienc.ia e coletiva, a transgressao da norma ultrapassa . quem a violou. Por isso a trangressao do tabu proibi ao sempre envolta em clima de temor e sobrenaturalida e - e~tigmatiza a familia, os amigos e, as vezes, toda a tribo. Dai os "rites de -::J purificacao" e os rituais do "bode expiatorio", cf) nos quais 0 pecado e transferido para urn animal. ~ Na tragedia Edipo rei, de Sofocles, ficamos saben- ~ do que 0 crime de Edipo traz toda sorte de pragas para Tebas, e 0 sabio Tiresias vaticina que a cidade so se livraria delas quando fosse encontrado 0 assassino de Laio.
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3. ELIADE. M. 0 sagrado e 0 projano. Lisboa, Livros do Brasil. s.d. p. 143-144. 4. GUSDORF. G. Mito e metafisica. Sao Paulo. conv~viO.~79. p. 102. ,_
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5. Mito e religiao
"Nc-desenvolvimento da cultura humana, nao podemos fixar um ponto onde termina 0 mito e a religiao comeca, Em todo curso de sua . historiara religiao permanece indissoluvelmente ligada a elementos miticos e repassada deles,"? Podenzes.distinguir tres fases na_formayao dos conceitos de deuses. -"-;}::,:--~AJmmeira fase.e cara:teriza~a pela multiphClaade ae deuses momentaneos, SImples excitayoes mstantaneas, fugidias, as quais'e atribuido 0 valor de divindade, e cuja fonte e a emoyao subjetiva, marcada ainda peT"Omedo. Esses deuses nao representam nem forcas da natureza.nern aspectos especiais da vida h~mana. As vezes, tratase de um conteudo mental, como a Alegria, a Decisao, a Inteligencia; outras, de um objeto ou de qualquer realidade percebida como tendo sido . repentinamente enviada do Ceu, ,}. t:.; Na segunda fase, hi a descoberta do senti<. menta da individualidade do divino, dos ele-" .mentos pessoais do sagrado. Essa etapa coincide com a maior complexidade -cIa~ao humana, caracrerizgdg pela divisao do trabalho.Assim, toda
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;E.::idade particular ganha 0 seu deus funcionaL que vigia cada momenta do trabalho. A regulayao da atividade encontra sua medida na propria periodicidade dos ciclos naturais (as estacoes do ano, 0 plantio, a colheita etc.). E cads ato, por mais especializado que seja, adquire significado religioso: 0 ser humano recorre a elivindades que devem protege-lo a,cada memento, r;.~tre_os grego~, p..9L~X~mplo,q_emeter p~i~ o ritmo das estacoes e das colheitas; Afrodite regul~ 0 amor; e ;ssim por diant;. _. - --. Ao mesmo tempo, mito conduz a
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carater existencial de
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SI mesmo. ser nao se sente mais merce das forcas naturais e sobrenaturais e desempenha 0 seu papel, convicto de que no mundo natural tudo .5kP.ende-;empaite, dos seus atos.. Como exemplo, podemos citar os ritos rnagicos da fertilidade, sem os quais se ,acrediqya~qU(;nem a terra frutificarianern a mulher conceberia. Convern lembrar que a..!!lJlg~t~!ll2pq_c!.~~r~da p<!r;L_Qern comopar~ b mal, ~ma _v~ que nao se.encontra ainda lig!!.d!!.~pri.!1fipi2seticos,
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No I~gar sagrado de Delfos, 0 templo e 0 teatro (na foto, em 1969) reverenciam duos i.ndode!3 g~ se op6em e ~e completqm: Apolo e Dioniso. 0 primeirosimbolizo o equilibrio, a harmonia de e 0 seg~ndo, deus do vinho e da 'fnspirac;:60, represento 0 que extravasa _e se expressa no impulse criador: 0 espirito dionisiaco, djsciplinado pelo apolineo, do ,Iugar_o trogedio e 0 co necio gregos.
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1972. p. 143.
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rerceira fase caracteriza-se pelo apareciJ do deus pessoal.J~uto do processo histouue inclui 0 desenvolvimento lingUistico. .."0'"- quando 0 nome do deus funcional, derin do circulo de atividade especial que lhe origem, perde a ligayao com essa atividade =a-se urn nome proprio, constituindo urn ::r;user que continua a se desenvolver s-;g~ - - proprias leis. 0 deus pessoal caracteriza-se ser capaz de sofrer e agir como as pessoas. :~ de maneiras diversas e seus multiples nog expressam diferentes aspectos de sua natu~seu poder e sua eficiencia, Como exemplo, ;km;a grega Palas Atena, filha de Zeus, surge ::::i::ia1mentecomo deusa guerreira, protetora dos ::xcrotos. Aos poucos, sua protecao se amplia ?U2 0 trabalho em geral e, mais tarde, especifi~ente para a atividade intelectual e as artes. ...::c..O mesmo tempo, e a deusa da sabedoria, a prolXiora da cidade de Atenas. C<?_]J1oesenvolvimento da terceira fase, d
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~NIDADE
II -
CONHECIMENTO
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IvV' ~.:-' ~ t~inpreensao do m'undo dessacraliza 0 pensamento e a acao, isto e, retira dele 0 carater de sobrenaturalidade, fazendo surgir a filosofia, a ciencia, a tecnica. Perguntamos entao: 0 desenvolvimento do pensamento reflexivo decretou a morte da COllSciencia mitica? Augusto Comte, filosofo frances do seculo XIX e fundador do positivismo, responde pela ;&mativa: ao explicar a evolucao da hurnanidade, define a maturidade do espirito humano pelo abandono de todas as formas miticas e religiosas. Dessa maneira, .opoe radicalmen~ ~ mito e razao, ao mesmo tempo gue inferioriza j ~ mito como tentativa fracassada de explicacao ~. dareilida~ ~ Ao criticar 0 mito e exaltar a ciencia, contradiiorr:;:mente 0 positivismo faznascer 0 mito do cientijicismo, ou seJa, a cren<;:ana ciencia c~ unica forma de sa5ei=possivel, de onde surgem o~mitos do progresso, da objetividade e da neutralidade cientificas. Alern disso, 0 positivismo mostra-se reducionista, empobrecendo as possibilidades de abordagens do mundo, porque a ciencia nao e a unica interpreta<;:ao valida do real nem e sufi . nte .a que 0 mito e uma orma fundamental do viver ~~ humano. 0 mito e 0 ponto de partIda para a ~ compreensao do ser. Em outras palavras, tudo 0 .\6 ~ue pensamos e queremos se situa inici~~ ll~ no honzonte cia Imaginac,:ao, nos pressupostos ,>""?~ miticos, cujo sentido existencial serve de base ~ ~ p_aratodo trabalho posterior da razao. $=" \ Como 0 mito e a nossa primeira leitura do c:;.c ~und~ 0 advento de outras inteipretacoes da ~~ realidade nao exclui 0 fato de ele ser raiz da inteligibilidade.A fiincao fabuladora persiste nao ~ Sl. so nos contos populares, no folclore, como tambern na vida diaria, quando proferimos certas palavras ricas de ressonancias miticas: casa, lar, '>.. amor, pai, mae, E:z, liberdade, mo~, cuja defi-~f nicao objetiva nao esgota os significados que ultrapassam os limites da propria subjetividade. gssas palavras nos remetem a valores arguetipicos, rrlOdelos universais existe~ na natureza inconsciente e primltiva ~e todos nos. Nao por
~ deixa tambem de ser concebido pelo~poder;;; - magicos e passa a ser enfocacio peIo poder de justica. Diz Cassirer: "0 sentido etico substiruiu e suplantou 0 sentido magico.A vida inteiradohomem se converte numa l~ta constante pelo amor da justica". 6 A partir de en tao, 0 individuo entra em contato com 0 sagrado como arbitro do seu ~ proprio destino. Ao dar a sua livre adesao ao bern, torna-se aliado da divindade, praticando 0 dever religiose.
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6. 0 mito hoje
A consciencia humana, antes do advento da escrita, permanece ingenua, nao-critica. No Capitulo 7 - Do mito a razao, veremos que a passage111_ara 0 pensamento critico-reflexivo p _9.!::!ebra unidade do m~ A nova forma de a
6. CASSlRER, E. AntropoLogiafi-Los6fi-ca. Sao Paulo.
Mestre Jau,
1972. p. 162.
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acaso, os psicanalistas aproveitam a riqueza do mito e descobrem nele as raizes do desejo humano. Por exemplo, a pedra angular da psicanalise se encontra na interpretacao feita por Freud do mito de Edipo".
de formatura, de debutantes, trate de calo lembram verdadeiros ritos de passagem. b:: minando as manifestacoes coletivas no c ~ diana da vida urbana do brasileiro, descobrime
imagens exemplares, e que, no jma inirio das pessoas, representam to 0 tipo de anseios: ~ £esso, poder, lideran<;:a,atrayao sexual ~. Por exemplo, na clecada de 1950 0 ator James Dean expressa 0 mito da "juventude transviada" e Marilyn Monroe um mito sexual, posteriormente outros modelos surgem e desaparecem, conforme as expectativas que predominam em cada periodo. Hoje em dia, com a rapidez dos meios de cornunicacao, essas influencias tornam-se multiplas e tambern mais fugazes. Nas historias em guadrinhos, 0 manigueismo exprime 0 arquetipo da luta entre 0 bem e 0 mal, enquanto a dupla personilidade do super-heroi atillge em cheio 0 deseJO da pessoa comum de illperar a propria inexpressividade e irnpotencia, t;;;;;;dQ se excepciQnal e poderosa. Tambern os ';;-ntos de fada remetem as crian<;:as os mitos unia 'versais do heroi 7m luta contra as forcas do mal, apa;gllando os temores infantis. ' ':- No campo da politica, quando alguem diz que 0 socialismo e um rruto, pode estar dizendo que se trata de algo inatingivel, de uma mentira, de uma ilusao que nao leva a' lugar algum. Porem, outros verao positivamente 0 mito do socialismo como utopia, 0 lugar do "ainda-nao", cuja forca mobili;;""a construcao daquilo que umdia podera "vir-a-set" .Ate as mais racionais adesoes a partidos politicos e a correntes de pensamento sup oem esse pano de fundo, nao-justificado e injustificavel, em que nos movemos em direcao a um valor que apaixona e que so posteriormente buscamos explicitar pela razao. o nosso comportamento tarnbem e permeado de "rituais", mesmo que secularizados: as comemoracoes de nascimentos, casamentos, aniversarios, os festejos de ano-novo, as festas
mconscientes. o mito se expressa ainda sob formas neg;:tivas, tais como ja nos referimos ao mito do cieetificismo ou, em tempos mais dificeis, quanu., Hitler fez viver 0 mito da raca ariana, por considerada a rap pura, e desencadeou moomentos apaixonados de perseguicao e genoodio de judeus e ciganos. A lista possivel das conotacoes diversas que mito assume nao termina aqui. Apenas quisernc mostrar como um conceito tao amplo e rico ni: se esgota numa so linha de interpretacao.
Conclusao
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mito nao resulta, portanto, dedeliri ieduz a sim les mentira,mas taz .a~
propoe, mas cabe consciencia dispor. E foi talvez.. .porque um racionalismo estreito demais fazia.., profissao de desprezar os mitos, que estes,deixados I sem controle, tornaram-se loucos'."
7. S6foc1es, dramaturgo grego do seculo V a.C., relata esse mito na tragedta Edipo rei: em vao Edipo tenta fugtr ao destino vaticinado pelo oraculo de que ele mataria 0 pai e desposaria a pr6pria mae. Ao retomar 0 mito grego, Freud refere-se ao "cornplexo de Edipo", como desejo inconsciente da crtanca. 8. GUSDORF, G. Mito e metafisica. Sao Paulo. Convivio, 1979. p. 308.
UNIDADE
II -
CONHECIMENTO
censcienda, econ .
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• Antes da discussao dos conceitos, sugerimos que grupos diferentes facam pesquisas sobre mitos, a fim de recolher elementos para melhor exernplificacao do capitulo: criacao do mundo segundo Hesiodo; Urano, Cronos e Zeus; Demeter e Persefone: Prometeu e Pandora; Dioniso e Apolo; Narciso; ritos de iniciacao de povos tribais: lend as de indigenas brasileiros.
z.. Os t6picos
relacionados a seguir visam verificar a cornpreensao dos temas abordados no capitulo. Explique cada um deles: a) funcoes dos mitos entre os "primitives"; b) mito e magia; c) mito e religiao: d) mitos contemporaneos.
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A partir dos conceitos de mito e rito, analise os fenornenos brasileiros do futebol e do camaval. Cada dos temas po de ser atribufdo a do is grupos diferentes.
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"Os contos de fadas, a diferenca de qualquer outra forma de literatura, dirigem a crianca para a descoberta de sua identidade e comunicacao, e tambem sugerem as experiencias que sao necessarias para desenvolver ainda mais 0 seu carater. Os contos de fadas declaram que uma vida compensadora e boa esta ao alcance da pessoa, apesar da adversidade - mas apenas se ela nao se intimidar com as lutas do destino, sem as quais nunca se adquire verdadeira idehtidade. Essas est6rias prometem a crianca que, se ela OUSaI se engajar nessa busca atemorizante, os poderes benevolentes virao em sua ajuda, e ela 0 conseguira, As est6rias tambern advertem que os muito temerosos e de mente mediocre, que nao se arriscam a se encontrar, devem se estabelecer numa existencia mon6tona - se um destino ainda pior nao recair sobre eles. (Bruno Bettelheim) a) Explique em que sentido, a partir das sugest6es do texto do psicanalista Bettelheim, podemos relacionar 0 conto de fada e 0 mito. b) Aplique as analises do texto a algum conto de fada (por exemplo, Joao e Maria, Chapeuzinho Vermelho ou a outro).
"[ ... J em numerosas sociedades sul-americanas, os ritos de passagem comportam uma serie de provas fisicas muito penosas e uma dimensao de crueldade e de dor que toma esta passagem um acontecimento inesquecfvel: tatuagens, escarificacoes, flagelacoes, picadas de vespas ou de formigas etc., que os jovens iniciados devem suportar em meio ao mais profundo silencio, Eles desmaiam, mas sem gemer. E nesta pseudomorte, nesta motte provis6ria (0 des maio deliberadamente provocado por aqueles que conduzem o ritual), surge claramente a identidade de estrutura que 0 pensamento indtgena estabelece entre nascimento e passagem. Este e um renascimento, uma repeticao do primeiro nascimento, que deve, consequenrernente, ser precedido por uma morte simb6lica." (Pierre Clastres)
A partir do trecho acima, responda as questoes a seguir. a) De exemplos de alguns ritos de passagem modernos dessacralizados. b) Entre os ritos modernos, 0 trote de calouros violento poderia ser considerado uma forma degenerada desse costume primitivo? [ustifique sua resposta.
""-_.,~
~-8]Segundo
Gusdorf, qual
e a diferenca
No trecho analisado, a que formas literarias Gusdorf se refere? Qual imaginario das pessoas?
jX~t Como
0 livro de Gusdorf foi publicado na Franca em 1953, transponha seus comentarios para os dias de hoje: que tipo de expressao ficcional exerceria 0 mesmo papel que ele descreve? justifique sua resposta.
Debate
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Dividir a classe em grupos: cada um deve pesquisar os mitos subjacentes nas producoes culturais (por exemplo: telenovelas, propagandas, filmes, hist6rias em quadrinhos, programas hurnorfsticos e outros sugeridos pelos alunos). Cada grupo faz um relat6rio e em seguida abre-se a exposicao dos temas e debate em sala de aula.