Mitos e Estações No Céu Tupi-Guarani - Revista

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20/08/2023, 18:05 Mitos e Estações no céu Tupi-Guarani – Revista

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Mitos e Estações no céu Tupi-Guarani


Com astronomia própria, índios brasileiros definiam o tempo de colheita, a contagem de dias, meses e anos, a
duração das marés, a chegada das chuvas. Desenhavam no céu histórias de mitos, lendas e seus códigos morais,
fazendo do firmamento esteio de seu cotidiano.

Resumo
A astronomia indígena foi amplamente estudada por Germano Bruno Afonso,
professor aposentado de Física da Universidade Federal do Paraná (UFPR). No
trabalho que desenvolveu durante grande parte de sua vida, aliou o conhecimento
tradicional indígena à astronomia como ciência acadêmica, tornando-se essencial na
divulgação dessa sabedoria ancestral. O pesquisador explorou profundamente as
culturas indígenas nacionais, o que possibilitou um grande avanço em conhecimento

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cultural de diversas etnias. Infelizmente, no dia 26 de agosto de 2021, Afonso morreu


aos 71 anos, vítima de covid-19. Em seu texto “Mitos e Estações no céu Tupi-
Guarani”, publicado originalmente na edição especial sobre Etnoastronomia da
revista Scientific American Brasil em 2006, o pesquisador mostra sua habilidade de
tornar a ciência mais acessível, também deixando um importante legado que traz um
olhar para as culturas indígenas que remete à toda cultura de povos que veem nas
estrelas a história e cultura de seu povo. Confira abaixo o artigo na íntegra.

A observação do céu sempre esteve na base do conhecimento de todas as


sociedades do passado, submetidas em conjunto ao desdobramento cíclico de
fenômenos como o dia e a noite, as fases da Lua e as estações do ano. Os
indígenas há muito perceberam que as atividades de caça, pesca, coleta e lavoura
estão sujeitas a flutuações sazonais e procuraram desvendar os fascinantes
mecanismos que regem esses processos cósmicos, para utilizá-los em favor da
sobrevivência da comunidade.
Diferentes entre si, os grupos indígenas tiveram em comum a necessidade de
sistematizar o acesso a um rico e variado ecossistema de que sempre se
consideraram parte. Mas não bastava saber onde e como obter alimentos. Era
preciso definir também a época apropriada para cada uma das atividades de
subsistência. Esse calendário era obtido pela leitura do céu. Há registros escritos
sobre sua ligação com os astros desde a chegada dos europeus ao Brasil, mas é
possível que se utilizassem desse conhecimento desde que deixaram de ser
nômades.
É evidente, no entanto, que nem todos os grupos indígenas, mesmo de uma única
etnia, atribuem idêntico significado a um determinado fenômeno astronômico
específico, e a razão disso está no fato de cada grupo ter sua própria estratégia de
sobrevivência. Além disso, considerando que não dependem, de maneira
uniforme, de suas moradias, caça, pesca ou de trabalhos agrícolas, as
constelações sazonais, por exemplo, oferecem aos distintos povos uma enorme
diversidade de interpretação.
Para acessar essa cosmologia é preciso considerar, entre outros pontos, a
localização física e geográfica de cada grupo, como os que habitam o litoral e o
interior, ou diferentes latitudes. Junto à linha do Equador, por exemplo, não há
muito sentido em referir-se às estações do ano em função de variação da
temperatura local. Além de reduzidas, nem sempre essas oscilações refletem o
que se pode caracterizar como verão ou inverno. O clima da região tropical é
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caracterizado, fundamentalmente, em função da maior ou menor abundância de


chuvas.
Separados mas iguais
Durante nossas pesquisas em etnoastronomia tupi-guarani, tivemos diálogos
informais e realizamos observações do céu com pajés de todas as regiões
brasileiras. Além disso, utilizamos documentos históricos que relatam diversos
mitos, constelações e a importância da astronomia no cotidiano das famílias
indígenas.

Figura 1. A posição da constelação do Cruzeiro do Sul é utilizada pelos tupis-guaranis para


determinar os pontos cardeais, o intervalo de tempo transcorrido durante a noite e as
estações do ano.
(Reprodução)

Das várias famílias do tronco lingüístico tupi, a tupi-guarani é a mais extensa em


número e na distribuição geográfica de suas línguas, que são várias, do mesmo
tronco. São encontrados grupos tupis-guaranis em todas as partes do Brasil, bem
como na Guiana Francesa, Argentina, Paraguai, Bolívia e Peru. O que nos
incentivou a realizar este trabalho de resgate da astronomia tupi-guarani foi
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perceber, em 1991, que o sistema astronômico dos tupinambá do Maranhão de


1612 é muito semelhante ao utilizado, atualmente, pelos guaranis do sul do Brasil,
embora separados pelas línguas (tupi e guarani), pelo espaço (mais de 3 mil km,
em linha reta) e pelo tempo (quase 400 anos).
As observações do céu que realizamos com os indígenas permitiram localizar a
maioria das constelações tupinambá e de diversas outras etnias da família tupi-
guarani. Verificamos que etnias diferentes – distintas culturalmente, como seria de
se esperar – possuem um conjunto muito semelhante de conhecimentos
astronômicos, utilizados para materializar tanto o calendário como os sistemas de
orientação. Esse conjunto comum se refere, principalmente, ao Sol, Lua, Vênus,
Via Láctea, e às constelações do Cruzeiro do Sul, Plêiades e das regiões do céu
onde se situam Órion e Escorpião, constelações ocidentais que surgem,
respectivamente no verão e no inverno, no hemisfério sul.
Além disso, algumas das constelações dos tupis-guaranis, utilizadas no cotidiano,
são as mesmas de outros índios da América do Sul e dos aborígines australianos.
É o caso da “Ema” e do “Homem Velho”, que também foram relatadas pelo
capuchinho francês Claude d’Abbeville. Em 1612, o missionário passou quatro
meses entre os tupinambás do Maranhão, perto da linha do Equador. Seu livro
“Histoire de la Mission de Pères Capucins en l’Isle de Maragnan et terres
circonvoisins”, publicado em Paris em 1614, é considerado uma das mais
importantes fontes da etnografia dos tupis. Ele registrou o nome de cerca de 30
estrelas e constelações conhecidas pelos índios da ilha. Infelizmente, identificou
apenas algumas delas. Sempre que nos referirmos aos extintos tupinambás,
estaremos utilizando essa obra de d’Abbeville, onde ele afirma: “Poucos entre eles
desconhecem a maioria dos astros e estrelas de seu hemisfério; chamam-nos
todos por seus nomes próprios, inventados por seus antepassados”.
Astronomia e biodiversidade
Os indígenas são profundos conhecedores do seu ambiente, plantas e animais,
nomeando as várias espécies. Os tupis-guaranis, por exemplo, associam as
estações do ano e as fases da Lua com o clima, a fauna e a flora da região em
que vivem. Para eles, cada elemento da Natureza tem um espírito protetor. As
ervas medicinais são preparadas obedecendo a um calendário anual bem
rigoroso.,Em 1758, na 10ª edição de seu livro Systema naturae, o botânico e
médico sueco Karl von Linné (1707-1778) classificou todos os seres vivos até então
conhecidos com as noções de gênero e espécie. Ele incluiu 39 espécies (14
mamíferos, 15 aves, 2 répteis e 8 peixes) das 1.370 catalogadas pelo astrônomo
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alemão Georg Marcgrave (1610 -1644), considerado o primeiro naturalista a estudar


a fauna brasileira. Linné considerou os índios guaranis como “primus verus
systematicus”, dando, assim, o devido crédito à contribuição intelectual desta
etnia à ciência da sistemática ou taxonomia, por cuja criação ele é
internacionalmente reconhecido.

“Os indígenas são profundos conhecedores do seu ambiente,


plantas e animais, nomeando as várias espécies. Os tupis-
guaranis, por exemplo, associam as estações do ano e as fases
da Lua com o clima, a fauna e a flora da região em que vivem.”

Os tupis-guaranis, em virtude da longa prática de observação da Lua, conhecem e


utilizam suas fases na caça, no plantio e no corte da madeira. Eles consideram
que a melhor época para essas atividades é entre a lua cheia e a lua nova (lua
minguando), pois entre a lua nova e a lua cheia (lua crescendo) os animais se
tornam mais agitados devido ao aumento de luminosidade. Certa noite de lua
crescente estava observando as constelações com os guaranis na ilha da
Cotinga, Paraná.
De repente, um deles me disse que seria melhor observarmos quando não
houvesse Lua. Rapidamente, com meu conhecimento ocidental, respondi que
estava de acordo, pois o brilho da Lua ofuscava o brilho das estrelas, embora
conseguíssemos enxergar bem a Via Láctea. Ao que ele retrucou dizendo que, na
realidade, o que o incomodava era a quantidade de mosquitos, muito menor
quando não há Lua. Nunca havia percebido essa relação, que de fato existe, entre
as fases da lua e a incidência de mosquitos.
Os guaranis que atualmente habitam o litoral também conhecem a relação das
fases da Lua com as marés. Além disso, associam a Lua e as marés às estações
do ano (observação dos astros e dos ventos) para a pesca artesanal. Segundo
eles, o camarão é mais pescado entre fevereiro e abril, na maré alta de lua cheia,
enquanto a época do linguado é no inverno, nas marés de quadratura (lua
crescente e lua minguante). Em geral, quando saem para pescar, seja no rio ou no
mar, os guaranis já sabem quais as espécies de peixe mais abundantes, em
função da época do ano e da fase da Lua.
Até o ritual do “batismo” (nimongarai ou nheemongarai, em guarani), em que as
crianças recebem seu nome, depende de um calendário luni-solar e da orientação
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espacial: o plantio principal do milho (avaxi) ocorre, geralmente, na primeira lua


minguante de agosto. Após a colheita do milho plantado nessa época é que
realizam o batismo das crianças. Esse evento deve coincidir com a época dos
“tempos novos”, caracterizada pelos fortes temporais de verão, geralmente o mês
de janeiro. O nome dado à criança guarani vem de uma das cinco regiões
celestes: zênite, norte, sul, leste e oeste. Cada região possui nomes típicos,
representando a origem das crianças.,A astronomia envolveu todos os aspectos
da cultura indígena. O caráter prático dos seus conhecimentos pode ser
reconhecido na organização social e em condutas cotidianas que eram orientadas
por rituais cujas datas eram definidas pelas posições dos astros.

Figura 2. Os guaranis que atualmente habitam o litoral relacionam as fases da Lua com as
marés e às estações do ano.
(Reprodução)

A comunidade científica conhece muito pouco da astronomia indígena e da sua


relação com o ambiente, patrimônio que pode ser perdido em uma ou duas
gerações pelo rápido processo de globalização, que tende a homogeneizar as
culturas e assim perder as nuances da diversidade. Esse risco ocorre, também,
pela falta de pesquisa de campo e pelas dificuldades em documentar, avaliar,
validar, proteger e disseminar os conhecimentos astronômicos dos indígenas do
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Brasil. Atualmente, há um grande interesse internacional na proteção e


conservação do conhecimento tradicional e de práticas ancestrais de indígenas e
das comunidades locais, para a conservação da biodiversidade.
O Sol e os Pontos Cardeais
Para os tupis-guaranis o Sol é o principal regulador da vida na Terra e tem grande
significado religioso. Todo o cotidiano deles está voltado para a busca da força
espiritual do Sol. Os guaranis, por exemplo, nomeiam o Sol de Kuaray, na
linguagem do cotidiano e de Nhamandu, na espiritual.
Os tupis-guaranis determinam o meio-dia solar, os pontos cardeais e as estações
do ano utilizando o relógio solar vertical, ou gnômon, que na língua tupi antiga, por
exemplo, chamava-se Cuaracyraangaba. Ele é constituído de uma haste cravada
verticalmente em um terreno horizontal, da qual se observa a sombra projetada
pelo Sol. Essa haste vertical aponta para o ponto mais alto do céu, chamado
zênite. O relógio solar vertical foi utilizado também no Egito, China, Grécia e em
diversas outras partes do mundo.
Na cosmogênese guarani, Nhanderu (Nosso Pai) criou quatro deuses principais
que o ajudaram na criação da Terra e de seus habitantes. O zênite representa
Nhanderu e os quatro pontos cardeais representam esses deuses. O Norte é
Jakaira, deus da neblina vivificante e das brumas que abrandam o calor, origem
dos bons ventos. O Leste é Karai, deus do fogo e do ruído do crepitar das chamas
sagradas. No Sul, Nhamandu, deus do Sol e das palavras, representa a origem do
tempo-espaço primordial. No Oeste, Tupã, é deus das águas, do mar e de suas
extensões, das chuvas, dos relâmpagos e dos trovões.,O calendário guarani está
ligado à trajetória aparente anual do Sol e é dividido em tempo novo e tempo velho
(ara pyau e ara ymã, respectivamente, em guarani). Ara pyau é o período de
primavera e verão, sendo ara ymã o período de outono e inverno.

“O caráter prático dos seus conhecimentos pode ser


reconhecido na organização social e em condutas cotidianas
que eram orientadas por rituais cujas datas eram definidas
pelas posições dos astros.”

O dia do início de cada estação do ano é obtido através da observação do nascer


ou do pôr-do-sol, sempre de um mesmo lugar, por exemplo, da haste vertical. O
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Sol sempre nasce do lado leste e se põe do lado oeste.


No entanto, somente nos dias do início da primavera e do outono, o Sol nasce
exatamente no ponto cardeal Leste e se põe exatamente no ponto cardeal Oeste.
Para um observador no Hemisfério Sul, em relação à linha leste-oeste, o nascer e
o pôr-do-sol ocorrem um pouco mais para o norte no inverno e um pouco mais
para o sul no verão. Utilizando rochas, por exemplo, para marcar essas direções,
os tupis-guaranis materializavam os quatro pontos cardeais e as direções do
nascer e do pôr-do-sol no início das estações do ano.
Lua e as Marés
Para os tupis-guaranis, a Lua (Jaxi, em guarani), principal regente da vida
marinha, é considerada do sexo masculino, o irmão mais novo do Sol. A primeira
unidade de tempo utilizada pelos tupis-guaranis foi o dia, medido por dois
nasceres consecutivos do Sol. Depois veio o mês (também chamado jaxi),
determinado a partir de duas aparições consecutivas de uma mesma fase da Lua.
Os tupis-guaranis consideravam essa fase como sendo o primeiro filete da Lua
que aparecia do lado oeste, ao anoitecer, depois do dia da lua nova (jaxy pyau), dia
em que a Lua não é visível por se encontrar muito próxima da direção do Sol.
Além de serem utilizadas como calendário mensal, as fases da Lua serviam para
orientação geográfica, pois a Lua brilha por refletir a luz do Sol, ficando a sua parte
iluminada no lado em que se encontra o Sol. Entre a lua nova e a lua cheia (jaxy
guaxu) o hemisfério iluminado aponta para o lado oeste, enquanto entre a lua
cheia e a lua nova, a indicação é do lado leste. As fases da Lua também permitiam
obter as horas da noite: o primeiro filete, depois da lua nova, aparece ao anoitecer,
do lado oeste, e desaparece minutos depois, a lua crescente (jaxy endy mbyte)
aparece desde o anoitecer até meia-noite, a lua cheia do pôr-do-sol ao nascer-
do-sol e a lua minguante (jaxy nhenpytu mbyte) fica visível da meia-noite ao
amanhecer.

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Figura 3. Constelação da Ema


(Reprodução)

Segundo d’Abbeville, “os tupinambás atribuem à Lua o fluxo e o refluxo do mar e


distinguem as duas marés cheias que se verificam na lua cheia e na lua nova ou
poucos dias depois”. Assim, mesmo antes dos europeus, os tupinambás já sabiam
que perto dos dias de lua nova e de lua cheia as marés altas são mais altas e as
marés baixas são mais reduzidas do que nos outros dias do mês. O conhecimento
da periodicidade das marés antes dos europeus pode ser explicado em virtude de
a relação entre as marés e as fases da Lua ser melhor observada entre os
trópicos, região em que se localiza a maior parte do Brasil.
Eclipses e o Fim do Cosmos
Os eclipses sempre espalharam terror por transformarem em caos a ordem de
repetição do Cosmos, de eterno retorno. Aparentemente, diversos povos antigos
podiam prever esses fenômenos. Mas, por falta de registros, não conhecemos os
métodos por eles utilizados. Os tupis-guaranis também observavam os
movimentos do Sol e da Lua e se preocupavam em prever os eclipses.
Um dos mitos tupi-guarani sobre o fenômeno relata que a onça (xivi, em guarani)
sempre persegue os irmãos Sol e Lua. Na ocasião do eclipse solar (kuaray
onheama) ou do lunar (jaxy onheama), os indígenas fazem a maior algazarra, com
o objetivo de espantar a Onça Celeste, pois acreditam que o fim do mundo
ocorrerá quando a ela devorar a Lua, o Sol e os outros astros, fazendo com que a
Terra caia na mais completa escuridão.
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No céu, a cabeça da onça desse mito indígena é representada pela estrela


vermelha Antares, da constelação zodiacal do Escorpião, e pela estrela Aldebaran,
também vermelha, da constelação zodiacal do Touro. Essas duas constelações
ficam no zodíaco onde, observados da Terra, passam o Sol, os planetas e a Lua.
Assim, de fato, pelo menos uma noite por mês e um dia por ano, a Lua e o Sol,
respectivamente, aproximam-se de Antares e de Aldebaran.

“A comunidade científica conhece muito pouco da astronomia


indígena e da sua relação com o ambiente, patrimônio que
pode ser perdido em uma ou duas gerações pelo rápido
processo de globalização, que tende a homogeneizar as
culturas e assim perder as nuances da diversidade.”

Os antigos astrônomos não sabiam que era a Terra que orbitava em torno do Sol
(movimento de translação). Ao nascer e ao pôr-do-sol, observavam que a posição
do Sol mudava, dia a dia, em relação às estrelas fixas, em um movimento cíclico
de um ano. Perceberam que os eclipses solares e lunares ocorriam apenas
quando a Lua estava próxima a essa trajetória do Sol entre as estrelas, no céu.
Devido a esta relação com os eclipses, denominaram essa trajetória aparente do
Sol de eclíptica. O mito sobre os eclipses demonstra o grande conhecimento
empírico de astronomia dos tupis-guaranis.
As Crateras Lunares
Lua, irmão do Sol, entrava tateando no escuro, no quarto da irmã de seu pai, com
a intenção de fazer amor com ela. Para saber quem a importunava todas as
noites, sua tia lambuzou os dedos com resina e de noite, enquanto Lua a
procurava, passou a mão em sua face.
No dia seguinte, bem cedo, Lua foi lavar a face para retirar a resina. No entanto, a
substância não saiu, e ele ficou mais sujo ainda. Por esse motivo, Lua tem sempre
a face manchada.,Desde então, a lua nova lava seu rosto, fazendo chover para
tentar tirar as manchas de resina, que ficam mais visíveis quando ela se torna
cheia. Esta fábula ensina aos tupis-guaranis que não devem cometer incesto.
A Mulher da Lua

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O planeta Vênus era muito observado pelos tupis-guaranis por ser, depois do Sol e
da Lua, o objeto mais brilhante do céu. Vênus era utilizado principalmente para
orientação, por ser visto pouco antes do nascer ou logo após o pôr-do-sol, sempre
próximo ao Sol. Os indígenas pensavam que se tratava de duas estrelas que
apareciam em períodos diferentes: a estrela matutina (kaaru mbija), que
chamamos de estrela D\’alva, e a vespertina (ko\’e mbija), que chamamos de
Vésper, cada uma delas visível por cerca de 263 dias.
Os tupis-guaranis chamam o planeta Vênus, quando aparece como estrela
vespertina, de “Mulher da Lua”. Eles contam que a mulher da Lua é muito linda,
vaidosa e nunca envelhece. Ela só fica ao lado do seu marido enquanto ele é
jovem, afastando-se dele à medida que fica mais velho.
Ao anoitecer, no dia seguinte à lua nova, os dois astros se encontram bem
próximos, no lado oeste. Nas noites seguintes, a Lua vai crescendo e se
distanciando de Vênus. Na crescente, Vênus continua aproximadamente no
mesmo lugar, mas a Lua se encontra no alto do céu, perto da linha norte-sul. Na
lua cheia, ao anoitecer, a Lua está no lado leste e sua mulher, bem afastada, no
lado no oeste. Na lua minguante, Vênus e a Lua não são mais visíveis ao mesmo
tempo. Na lua nova, o ciclo recomeça.
Esse mito, que pode ser considerado uma maneira alternativa de explicar as fases
da Lua, nos foi relatado pelos guaranis do Sul do Brasil e pelos tembés do Norte do
país, duas etnias da família tupi-guarani que não têm contato entre si.
Constelações na Via Láctea
As constelações formam figuras imaginárias, criadas há mais de 6 mil anos para
reunir grupos de estrelas (jaxy tatá), aparentemente próximas, visíveis a olho nu,
tendo em vista que nomear cada uma delas era uma tarefa difícil. A maioria dos
povos antigos observava as constelações ao anoitecer e as utilizavam como
calendário e orientação. Cada cultura tinha as suas próprias constelações. As
constelações dos tupis-guaranis diferem das concepções das sociedades
exteriores ocidentais principalmente em três aspectos.,Primeiro, as principais
constelações ocidentais registradas pelos povos antigos são aquelas que
interceptam o caminho imaginário que chamamos de eclíptica, por onde
aparentemente passa o Sol, e próximo do qual encontramos a Lua e os planetas.
Essas constelações são chamadas zodiacais. As principais constelações
indígenas estão localizadas na Via Láctea (Tapi\’i Rape), a faixa esbranquiçada que
atravessa o céu, onde as estrelas e as nebulosas aparecem em maior quantidade,
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facilmente visível à noite. A Via Láctea é conhecida como Caminho da Anta ou


como a Morada dos Deuses pela maioria das etnias dos tupis-guaranis.
Os desenhos das constelações ocidentais são feitos pela união de estrelas. Mas,
para os tupis-guaranis, as constelações são constituídas pela união de estrelas e,
também, pelas manchas claras e escuras da Via Láctea, sendo mais fáceis de
imaginar. Muitas vezes, apenas as manchas claras ou escuras, sem estrelas,
formam uma constelação. Os guaranis chamam a Grande Nuvem de Magalhães
de Bebedouro da Anta (Tapi\’i Huguá) e a Pequena Nuvem de Magalhães de
Bebedouro do Porco-do-Mato (Coxi Huguá).
O terceiro aspecto que diferencia as constelações Tupis-Guaranis das ocidentais
está relacionado ao número delas conhecido pelos indígenas. A União
Astronômica Internacional (UAI) utiliza um total de 88 constelações, distribuídas
nos dois hemisférios terrestres, enquanto certos grupos indígenas já nos
mostraram mais de 100 constelações, vistas de sua região de observação. Quando
indagados sobre quantas constelações existem, os pajés dizem que tudo que
existe no céu existe também na Terra, que nada mais seria do que uma cópia
imperfeita do céu. Assim, cada animal terrestre tem seu correspondente celeste,
em forma de constelação.
A Hora pelo Cruzeiro do Sul
O Cruzeiro do Sul (Curuxu) fica em plena Via Láctea, sendo a constelação mais
conhecida dos habitantes do Hemisfério Sul. Ela é formada, em sua parte
principal, por cinco estrelas, quatro delas representando uma cruz, e uma quinta
fora do braço da cruz. Essas estrelas, pela ordem de brilho, são conhecidas,
popularmente, como Magalhães, Mimosa, Rubídea, Pálida e Intrometida.
Magalhães (a mais brilhante) e Rubídea (avermelhada) formam o braço maior da
cruz; Mimosa e Pálida compõem o menor. A Intrometida (a mais apagada) não
consta da representação dessa constelação pelos tupis-guaranis.,O Cruzeiro do
Sul está próximo do Pólo Sul Celeste (PSC), prolongamento do eixo de rotação da
Terra no nosso céu, parecendo girar em torno dele de leste para oeste, devido ao
movimento de rotação da Terra de oeste para leste. Assim, dependendo do dia e
da hora, a cruz pode estar de cabeça para baixo, deitada, inclinada ou em pé,
sempre fazendo uma circunferência em torno do Pólo Sul Celeste.
A posição da constelação do Cruzeiro do Sul é utilizada pelos tupis-guaranis para
determinar os pontos cardeais, o intervalo de tempo transcorrido durante a noite e
as estações do ano. Quando a cruz se encontra em pé, o prolongamento do seu
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braço maior aponta para o ponto cardeal Sul. Olhando para o Sul, às nossas costas
temos o Norte, à direita o Oeste e à esquerda, o Leste.
Tendo em vista que o Cruzeiro do Sul efetua uma volta completa em cerca de 24
horas, o tempo gasto, por exemplo, para ir da posição deitada até a posição em pé
é de 6 horas. Assim, podemos determinar o intervalo de tempo transcorrido em
uma noite observando duas posições do Cruzeiro do Sul.
O início de cada estação do ano é determinado pelos tupis-guaranis considerando
a posição da cruz ao anoitecer: no outono ela fica deitada do lado esquerdo do Sul,
isto é, para leste; no inverno, fica em pé apontando para o Sul; na primavera, ela
se encontra deitada para o lado oeste e no verão de cabeça para baixo, abaixo da
linha do horizonte, sendo visível somente após a meia-noite.
As Plêiades e a Chuva
As Plêiades (Eixu, em guarani) são um aglomerado de estrelas jovens, azuis, que
se localizam na constelação ocidental do Touro. A olho nu, longe da iluminação
artificial e sem Lua, podemos ver, normalmente, sete dessas estrelas e, por isso, as
Plêiades são conhecidas, também, como as sete estrelas ou as sete irmãs. Muitas
etnias indígenas utilizavam as Plêiades para construir seu calendário. Eles
consideravam principalmente os dias do nascer helíaco, do nascer anti-helíaco e
do ocaso helíaco das Plêiades.
Cerca de um mês por ano, as Plêiades não são visíveis porque ficam muito
próximas da direção do Sol. O nascer helíaco das Plêiades ocorre perto do dia 5 de
junho, o primeiro dia em que elas se tornam visíveis de novo, perto do horizonte,
no lado leste, antes do nascer do sol. Esse dia marcava o início do ano.,Por volta
do dia 10 de novembro, as Plêiades nascem logo após o pôr-do-sol, este dia
recebe o nome de nascer anti-helíaco das Plêiades, pois o Sol se encontra no lado
oeste e as Plêiades no lado leste. Perto de 1o de maio, acontece o ocaso helíaco
das Plêiades, pois elas desaparecem do lado oeste, logo após o pôr-do-sol. Depois
desse dia, elas não são mais visíveis à noite, até perto do dia 5 de junho quando
ocorre, novamente, seu nascer helíaco. Pode-se admitir, então, um ano sideral,
baseado no nascer helíaco das Plêiades.
Os tupinambás conheciam muito bem o aglomerado estelar das Plêiades e o
denominavam “Seichu”. Quando elas apareciam, afirmavam que as chuvas iam
chegar, como chegavam, efetivamente, poucos dias depois. Como a constelação
aparecia alguns dias antes das chuvas e desaparecia no fim para tornar a
reaparecer em igual época, eles reconheciam perfeitamente o intervalo de tempo
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20/08/2023, 18:05 Mitos e Estações no céu Tupi-Guarani – Revista

decorrido de um ano a outro. Da mesma maneira, atualmente para os tembés, que


habitam o Norte do Brasil, o nascer helíaco das Plêiades anuncia a estação da
chuva e o seu ocaso helíaco aponta a estação da seca. Para os guaranis, do Sul
do país, o nascer helíaco das Plêiades anuncia o inverno, enquanto o ocaso
helíaco indica a proximidade do verão.
É interessante observar que culturas diferentes, habitando regiões distintas e
vivendo épocas desencontradas, utilizavam as Plêiades como calendário, mesmo
considerando que seu nascer helíaco, nascer anti-helíaco e ocaso helíaco não
correspondessem exatamente ao início das estações do ano. Pensamos que, além
de sua beleza, outro motivo contribui para essa escolha: as Plêiades estão situa-
das a cerca de quatro graus da eclíptica. Por isso, alguns de seus componentes
são freqüentemente ocultos pela Lua e ocasionalmente pelos planetas do nosso
Sistema Solar. Essas ocultações oferecem um belo espetáculo da Natureza, sendo
observadas mesmo a olho nu.
A Constelação da Ema
Na segunda quinzena de junho, quando a Ema (Guyra Nhandu) surge em sua
totalidade ao anoitecer, no lado leste, indica o início do inverno para os índios do
sul do Brasil e o início da estação seca para os do norte.
A constelação da Ema (Rhea americana alba) se localiza numa região do céu
limitada pelo Cruzeiro do Sul e Escorpião. Sua cabeça é formada pelo Saco de
Carvão, nebulosa escura que fica próxima à estrela Magalhães. A Ema tenta
devorar dois ovos de pássaro que ficam peerto de seu bico, representados pelas
estrelas alfa Muscae e beta Muscae.
As estrelas alfa Centauro e beta Centauro estão dentro do pescoço da Ema. Elas
representam dois ovos grandes que a Ema acabou de engolir. Uma das pernas da
Ema é formada pelas estrelas da cauda de Escorpião. As manchas claras e
escuras da Via Láctea ajudam a visualizar a plumagem da Ema.
Conta o mito guarani que a constelação do Cruzeiro do Sul segura a cabeça da
Ema. Caso ela se solte, beberá toda a água da Terra e morreremos de seca e sede.
O Homem Velho
Na segunda quinzena de dezembro, quando o Homem Velho (Tuya\’i) surge
totalmente ao anoitecer, no lado leste, trata-se do início do verão para os índios do
sul e o início da estação chuvosa para os do norte.

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A constelação do “Homem Velho” é formada pelas constelações ocidentais do


Touro e de Órion. A cabeça do Homem Velho é formada pelas estrelas do
aglomerado estelar Híades, em cuja direção se encontra Aldebaran, a estrela mais
brilhante da constelação do Touro, de cor avermelhada. Acima da cabeça do
Homem Velho fica o aglomerado estelar das Plêiades, um penacho que ele tem
amarrado à cabeça.
A estrela Bellatrix fica na virilha do Homem Velho, sendo que a estrela vermelha
Beltegeuse representa o lugar em que sua perna foi cortada. O Cinturão de Órion
(Três Marias) formado pelas estrelas Mintaka, Alnilam e Alnitak, representa o joelho
da perna sadia. A estrela Saiph representa o pé da perna sadia. O braço esquerdo
do Homem Velho é constituído por estrelas do escudo de Órion. Na sua mão direita
ele segura um bastão para se equilibrar.,Conta o mito guarani que essa
constelação representa um homem casado com uma mulher muito mais jovem
do que ele. Sua esposa ficou interessada no irmão mais novo do marido e, para
ficar com o cunhado, matou o marido, cortando-lhe a perna na altura do joelho
direito. Os deuses ficaram com pena do marido e o transformaram em uma
constelação.
Itacoatiara de Ingá
Pode-se dizer que existem dois tipos principais de constelação indígena: uma
relacionada ao clima, à fauna e à flora do lugar, conhecida pela maioria da
comunidade e que regula o cotidiano da aldeia; a outra está relacionada aos
espíritos indígenas, sendo conhecida, em geral, apenas pelos pajés e é mais difícil
de visualizar. Os guaranis, por exemplo, chamam de Nhanderu a mancha escura
que aparece perto da constelação ocidental do Cisne. O Deus Maior Guarani
aparece sentado em seu banco sagrado, utilizando seu cocar divino e segurando
o Sol e a Lua em suas mãos. Ele anuncia a primavera.
Às margens do rio Ingá, na Paraíba, existe um monólito de rocha gnaisse,
duríssima, cuja superfície está recoberta por cerca de 500 inscrições de baixo-
relevo, que muitos pesquisadores afirmam serem únicas no mundo, Trata-se da
famosa Itacoatiara de Ingá, com cerca de 23 m de largura e 3 m de altura. Há
várias hipóteses sobre a origem dos grafismos. A nossa é de que Itacoatiara de
Ingá serviu de local para rituais religiosos relacionados a elementos astronômicos.
Identificamos ali alguns espíritos da mitologia tupi-guarani, e supomos que o
painel indica parte da Vila Láctea. Diversos pajés reconheceram alguns dos
espíritos nas gravuras, puderam nomeá-los e localizá-los no céu.

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Capa: Constelação Homen Velho


(Acervo UFPR. Reprodução)

Leia mais:

O Céu dos Índios do Brasil

Astronomia Indígena

O céu como guia de conhecimentos e rituais indígenas

Agradecimentos:

Agradecemos à revista Scientific American Brasil, que está completando 20 anos no


Brasil e gentilmente cedeu o texto para publicação na Ciência & Cultura.

 Bibliografia

Germano Bruno Afonso

Germano Bruno Afonso foi professor aposentado de Física da


Universidade Federal do Paraná (UFPR). Possuía experiência
na área de Astronomia, com ênfase em Astronomia de
Posição e Mecânica Celeste, atuando principalmente nos
seguintes temas: Astronomia Indígena Brasileira,
Popularização da Astronomia, Efeitos das Marés no Sistema
Terra-Lua e Modelagem de Forças Não-Gravitacionais em
Órbitas de Satélites Artificiais e de Fragmentos de Asteroides
Rasantes à Terra.

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