Para Além Do Mal
Para Além Do Mal
Para Além Do Mal
PA R A A L É M D O M A L
FILOSOFIAECIÊNCIA
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maneira ainda mais definitiva as palavras do astrofísico Stephen
Hawking: “A filosofia está morta!” 6.
Estou em crer que alguém nesta sala já tirou do bolso uma peque-
na nota manuscrita de Albert Einstein que diz: “Um conhecimento do
pano de fundo histórico e filosófico dá esse tipo de independência
dos preconceitos de que a maioria dos cientistas sofrem”. Se esta
frase não nos causa grande perplexidade convém notar que o intuito
de Einstein era, numa época de grandes convulsões tecnocientíficas
(esta citação é de uma carta de 1944 a Robert Thornton), estabelecer
a diferença entre os “verdadeiros” cientistas daqueles que, na visão
do físico mais não seriam que artesãos ou especialistas. (Se posso
dizer em parêntesis rápido a discussão sobre o “verdadeiro” cien-
tista, como o do “verdadeiro” filósofo é uma discussão recorrente,
normalmente estéril e apenas indica uma espécie de dogmatismo
que, também neste caso, se observa. Lembro-me sempre de Platão
distinguindo os verdadeiros filósofos que viverão no Hades com
os deuses, e são puros, daqueles que são impuros e viverão no
lodo). Ora, aquilo que para o físico era a marca do cientista e
que o especialista não tinha era procurar a verdade. Sabemos hoje
claramente que Einstein estava do lado errado da questão (não se
pode acertar sempre!). Esta visão onto-científica será ultrapassada
por uma visão muito mais prosaica: a ciência procura responder a
questões através da experimentação. Como nos refere Dawkins, o
máximo que a ciência poderá procurar é a verdade objectiva, isto
é, os dados que nos permitem fazer coisas tão menores como este
5
telemóvel, vacinas ou mesmo até enviar homens à lua. Esse conhe-
cimento objectivo não é socialmente construído nem é subjectivo 7.
Vemos isso todos as vezes que vamos ao médico. E, sinceramente,
não queremos encontrar nenhum médico fascinado pela Verdade.
Pelo menos durante as nossas consultas.
A digressão foi mais longa do que esperado pelo que retomo
relembrando: Hawkins apontava (talvez não seja a melhor metáfora)
ao mundo o lugar onde a Filosofia estaria enterrada. Talvez não
tenhamos feito ainda, nós os filósofos, a defesa da filosofia como
um “tornar-se homem” tal como Marcel Conche a define: “filosofar
parece-me a única atividade normal do homem: do homem qualquer
[…]; porque o que é normal para o homem não é – não é simples-
mente – comer, beber, dormir, amar, coisas que os bichos também
fazem, não é viver – limitar-se a viver -, nem trabalhar para comer
e comer para viver, mas é não viver sem reflectir, isto é, sem se
perguntar o que faz no mundo, o que significa a vida – em suma,
o que é normal para o homem é não viver sem filosofar. Tornar-se
normal é tornar-se filósofo” 8. Ou como dizia Jaspers: “A filosofia é
o acto da concentração pelo qual o homem se torna autenticamente
no que é e participa na realidade”9. Podemos talvez assim concluir
que a filosofia não é um pensamento sem objecto.
Não se trata, para nós, de ter como objecto da filosofia a Verdade,
mas aquilo que Unamuno descreve como: “o homem de carne e
osso, esse que nasce, sofre e morre – sobretudo morre –, esse que
come e bebe e joga e dorme e pensa e quer, o homem que se vê
7 Dawkins, Richard – Science in the soul. New York: Random House, 2017,
8 Conche, Marcel – A análise do amor. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 103.
9 Jaspers, Karl – Iniciação filosófica. Lisboa: Guimarães Editores, 1993.
6
e a quem se ouve” 10. A este homem contrapõe-se uma espécie de
ponto universal que existiria por cima dos nossos corpos. Sublinha
Unamuno: essa “outra coisa a que chamam também homem […].
Um homem que não é de aqui ou de ali nem desta época ou de
outra, que não tem nem sexo nem pátria, uma ideia, enfim, quer
dizer, um não homem” 11.
Perdidos, tantas vezes, em discussões estéreis e em jargão inú-
til, os filósofos apercebem-se demasiado tarde, que a filosofia sem
vínculo à realidade de nada serve: “a filosofia não é uma ciência de
verdades inacessíveis, por princípio, à inteligência comum” 12 diz-
-nos Innerarity. Ou se quisermos maiores autoridades da tradição
tomemos Descartes e a sua constante luta pela clareza que o leva
a escrever: “parecem-se com um cego que, para se bater sem des-
vantagem com alguém que vê, o levasse para o fundo de qualquer
cave muito obscura”13 ou ainda Nietzsche: “quem se sabe profundo
luta pela clareza, quem gostaria de parecer profundo aos olhos da
multidão luta pela obscuridade” 14.
É, também por isso, que uma reflexão sobre a universidade e
aquilo para que realmente serve é necessário: deveremos muito
claramente colocar-nos a questão: o que eu estou a fazer é ser
filósofo. Tenho esperança de que a maior parte de nós saiba que
não. Que das nossas teses restará pouco. Vivemos sob um regime
7
educativo que privilegia a contabilidade à formação e que, por
isso, deixou de ser educativo. Como não relembrar estas palavras
sábias de Miguel Baptista Pereira: “transformamos os estudantes em
técnicos altamente qualificados, mas, do ponto de vista cultural,
permanecem bárbaros” 15. E sim, há técnicos da filosofia.
Por outro lado, devemos ter cuidado com a criação de pequenos
poderes na academia. Sabemos bem onde nos leva. Precisamos,
por isso, e como diria Derrida, de uma resistência activa “a todos
os poderes de apropriação dogmáticos e injustos” 16 . Aliás, se é
dogmático não é filosófico. Relembramos que a diferença entre
um sábio (σοφός) e filósofo (φιλόσοφο) é muitas vezes esbatida.
É preciso sublinhar com Colli “«o amor da sabedoria» [isto é, a fi-
losofia], é inferior à «sabedoria»” 17. O filósofo sabe que há limites
no conhecimento.
Sublinhemos, portanto, o que já em 1976 Ricoeur dizia claramente:
“a filosofia está assaz ameaçada na sua existência institucional
devido à sua inutilidade em relação às ciências e pelo facto de
que as outras formas do saber não lhe exigirem mais nada. Diria
que os filósofos, em lugar de acusar os outros, deveriam acusar-se
de terem falado para si mesmos em vez de se terem ocupado em
escutar as ciências” 18. O mesmo já indicava Júlio Fragata: “se ela [a
filosofia] busca a implicação metaempírica dos factos, essa mesma
8
busca tem de ser influenciada pelos novos factos que surgem com
o adianto das outras ciências” 19.
Talvez como nota à margem devamos sublinhar que, por vezes,
assistimos a simulacros de diálogo em que, em vez de se escutar,
o objectivo de qualquer diálogo é minimizar o outro lado. Isto é
normal, sobretudo entre filósofos. Já o dizia Collingwood na década
de 30 do século XX: “o presente é um tempo de crise e caos na
filosofia [entre parêntsis, crise e caos que não nos deixaram ainda].
A excepcional dificuldade que os filósofos modernos encontram em
aceitar as conclusões de cada um, e até em compreender os argu-
mentos de cada um, é uma consequência necessária do falhanço
em concordar sobre os princípios do método, ou até em encontrar
exactamente como diferem” 20.
Serve-me este ponto para desenrolar o meu segundo agradecimen-
to, ao doutor SAC, que – se me permitem a blague – apesar de ser
de psicologia, sempre me ajudou com a sua inteligência acutilante,
atenção ao pormenor e à actualidade, e um sem número de outras
qualidades, a pensar para além do pensar filosófico e acrescentar
uma perspectiva mais sobre a realidade. Na verdade, além desta
razão pessoal, há também uma razão formal, por assim dizer: foi
a psicologia a última ciência a desvincular-se da filosofia e tornar-
-se, por mérito próprio, autónoma. Recordo que foi desta casa que
saiu um dos fundadores da Faculdade de Psicologia e Ciências de
Educação da Universidade de Coimbra, o Professor Joaquim Ferreira
Gomes a quem devemos um inestimável interesse por Pedro da
9
Fonseca, enquanto professor de filosofia, e pela Educação enquanto
professor da Faculdade de Psicologia.
Assim, a Psicologia, fugindo dos métodos filosóficos que em
certa medida a limitavam, procurou métodos novos, empíricos,
que lhe permitiram estabelecer-se como uma ciência absolutamente
fundamental no século XX. Se a filosofia sempre estudou o fenómeno
humano, a sua metodologia (melhor dizendo a sua falta de metodo-
logia), aproximou-a sempre de conceitos gerais que pouca utilidade
tinham na vida prática. Se desde Platão estudámos a Ψυχή, a anima,
a alma, ou qualquer outro conceito equivalente, na verdade talvez
Bacon tivesse razão: “das filosofias gregas e das suas ramificações
nas ciências particulares, dificilmente poderemos indicar, apesar de
decorridos tantos anos, uma única experiência que tenha aliviado e
melhorado a condição dos homens e que possa ser verdadeiramente
tomada à conta das especulações e dos sistemas da filosofia”21. Por
isso quando se utilizam palavras de ordem como Mais Platão Menos
Prozac ficamos petrificados: não é, seguramente, a leitura do Timeu
que poderá ajudar a ultrapassar fases mais difíceis que Psicólogos
e Psiquiatras nos ajudam a passar. Quando muito piora a condição
com a sua teoria da alma e do corpo. Desviamo-nos, outra vez. Para
Bacon era claro que só havia uma maneira de testar as ciências (à
época quase todas filosóficas): “De todos os sinais o mais seguro e
mais digno é aquele que pode ser medido através dos seus frutos.
A razão é que os frutos e as obras inventadas constituem como
que a garantia e a caução da verdade das filosofias” 22. Por isso en-
tendemos bem aquilo que Chris Daly nos diz: “Os filósofos, como
10
os cientistas, fazem várias afirmações. Mas, ao contrário de muitos
cientistas, os filósofos não usam tubos de ensaio, telescópios, detec-
tores de particulas ou equipamentos semelhantes no seu trabalho.
Isso levanta a questão: que tipos de evidências existem para afir-
mações filosóficas? As alegações filosóficas são caracteristicamente
especulativas. No entanto, se isso significa que tais alegações não
são suportadas, podemos razoavelmente perguntar por que alguém
deveria fazer tais alegações e por que alguém deveria dar-lhes o
menor grau de crença” 23.
Há ainda uma terceira razão para convocar a Psicologia a conver-
sar com a Filosofia. Se já há campos em que esse diálogo se faz – e
recordamos apenas a questão da narrativa, que une em caminhos
ainda não totalmente coincidentes, a medicina, a psicologia e a
filosofia – outros campos se têm de abrir: como por exemplo nas
questões éticas, em que, seguramente a filosofia ficaria a ganhar
com os casos práticos, e a psicologia com fundamentos éticos mais
sólidos e mais diversificados. Mas há, talvez, um campo, que traz
já novos desafios para a psicologia e para o entendimento do hu-
mano: as neurociências.
Sabemos bem que as neurociências enquanto tal são uma disci-
plina recente. Mas apesar disso com uma história longa começando
na intuição dos Sumérios da relação do ópio com comportamentos
eufóricos baseados no cérebro, e já no corpus hipocrático haja esta
outra intuição fenomenal: “Os homens devem saber que do cére-
bro, e somente do cérebro, surgem os nossos prazeres, alegrias,
risos e brincadeiras, bem como as nossas tristezas, dores, tristezas
11
e lágrimas. Por meio dele, em particular, pensamos, vemos, ouvi-
mos e distinguimos o feio do belo, o mau do bom, o agradável do
desagradável, em alguns casos usando o costume como teste, em
outros percebendo-os pela sua utilidade. É o que nos deixa loucos
ou delirantes, nos inspira pavor e medo, seja de noite ou de dia,
traz insónia, erros inoportunos, ansiedades sem objetivo, distra-
ção e atos contrários ao hábito. Essas coisas que sofremos vêm
do cérebro” 24. É por este e outros fragmentos que, por exemplo,
Breitenfeld e outros consideram Hipócrates como antepassado da
neurologia 25, e Anna Chang e outros, da muito conhecida Stanford
University School of Medicine, indicado a sua importância para as
origens da neurocirurgia 26.
Ao longo dos tempos, a ciência demonstraria avanços, mas
limitados e muito espaçados no tempo. Por exemplo, o médico in-
glês Thomas Willis, em 1664, mais de 100 anos depois de Vesalius
ter desenhado o cérebro, apresenta a primeira anatomia cerebral.
Herdeiro ainda da filosofia como mãe de todas as ciências, e apenas
como curiosidade, Willis será professor em Oxford da disciplina
Filosofia Natural. A influência de Willis à época é grande, ao ponto
de Richard Cumberland, filósofo utilitarista inglês, ter utilizado a
obra de Willis e as suas descobertas sobre a anatomia do cérebro
para refutar a teoria egoísta de Thomas Hobbes. Foi nessa funda-
mental obra, Cerebri anatome, que se terá usado pela primeira vez
12
a palavra neurologia. A sua paixão pela anatomia cerebral levou-o
a descobertas quer na patologia quer na fisiologia.
É só em 1889, com Santiago Ramón y Cajal, que se estabelece a
doutrina do neurónio, e em 1914 é isolado o primeiro neurotrans-
missor, e apenas 5 anos antes Broadman descreve as 52 duas áreas
corticais com base na estrutura neural.
Todas estas descobertas, apesar de serem fundamentais no
avanço da neurologia, de certa maneira descreviam a estrutura
e não o comportamento. Por isso não é de estranhar que alguns
médicos, como Egas Moniz, tenham sugerido o tratamento através
da lobotomia ou leucotomia que implicava cortar as ligações do
córtex pré-frontal, com as consequências trágicas que se conhecem
nos seus doentes. Na verdade, Egas Moniz baseava a sua prática
clínica, sobre doentes de depressão, esquizofrenia, mania, catatonia
e maníaco-depressivos, entre outros, numa teoria associativista o
que, de modo relativamente claro, se afastava da teoria do neurónio
de Ramon y Cajal.
É só com o avanço tecnológico das décadas de 70 e 80 do sé-
culo XX que as neurociências obtêm os modelos e instrumentos
para compreender, para lá da especulação, a maneira com funcio-
na o cérebro, já para lá dos neurónios, sublinhando vários níveis.
Compreende-se agora que o cérebro funciona em diferentes níveis:
molecular, sináptico, neuronal, circuitos neuronais, e sistemas neu-
ronais. Se na década de 80 falávamos de homem-neuronal (como
não reconhecer esse livro fundamental de Jean Pierre Changeux?),
hoje em dia, compreendemos que o cérebro é ainda mais complexo
do que compreendíamos. É nessa década que também a filosofia
começa a encontrar nas neurociências e na biologia uma constante
interpelação a si mesma. Nasce aí, não só os rudimentos da neuro-
13
filosofia, como, uma noção clara que, para pensar, era necessário
recorrer aos dados da ciência. Isto é, a centralidade do cérebro na
resposta ao que sentimos, ao que pensamos, ao que decidimos,
isto é, ao humano (e não só). Comte-Sponville, ironicamente, assi-
nala esta mudança com a alteração do cogito cartesiano de “Penso
logo existo” para “Cérebro logo sou” 27. Ou, para o neurocientistas
Sebastian Seung, “I am my connectome”, isto é, eu sou o mapa de
conexões neuronais 28.
É Patricia Churland, em 1987, que nos dá uma hipótese não só
de definir o que é a neuro-filosofia (diferente de filosofia das neu-
rociências), mas também a filosofia propriamente dita. Se sabemos
que as perguntas da ciência são, como Hubert Reeves lapidarmente
nos deixou: “de que é feita esta realidade na qual estamos mergu-
lhados, como é que ela funciona e qual a sua história?” 29 e que,
sustentando-me outra vez em Reeves, “os novos conhecimentos cien-
tíficos não se limitam a aumentar a extensão do nosso saber. Têm
por vezes [entre parêntesis, eu diria sempre] implicações filosóficas
que podem influenciar o modo de pensar humano. Podem alterar a
nossa visão do mundo”30. Então neurofilosofia, seguindo “explora o
impacto das descobertas das neurociências numa série de questões
filosóficas tradicionais”, acrescentando – ainda que eu não o faça
14
- “sobre a natureza da mente” 31. Assim, para termos novos conteú-
dos filosóficos “em questões como a natureza do conhecimento e
da aprendizagem, da tomada de decisões e escolha, como também
sobre o auto-controle e os hábitos” 32 então, segundo Churchland
devemos sustentar esses conteúdos ao “basear-se em dados das
ciências relevantes - não apenas neurociência e neurologia clínica,
mas também biologia evolutiva, psicologia experimental, economia
comportamental, antropologia e genética” 33.
Como se percebe, Churchland aponta não apenas para as neu-
rociências, mas para muitas outras, sobretudo por uma questão
essencial: em geral, um único factor não determina esta ou aquela
característica humana. Quando dizemos factor estamos, por exemplo,
a falar nos genes, signos, contextos, funcionamentos cerebral, etc.
Habituados a tratar a realidade a partir da res, chamamos a estes
diferentes factores coisas que nos fazem como somos. Pio Abreu,
psiquiatra e amador da filosofia, faz-nos um volte-face ao sublinhar
que o que nos faz como somos é um quem: isto é, nós.
Mas até esta formulação é, em nosso entender, desajustada, pois
nem há um fazer (na natureza acontece-se) nem há um ser (nós,
quando muito, estamos a acontecer). É por isso é que as ciências
nos trazem informações absolutamente vitais para questões filo-
sóficas como o livre-arbítrio, o si-mesmo e o outro, a realidade,
o mundo, o cosmos, isto é, o homem e o seu entorno, isto é, os
temas filosóficos. Começar a filosofar passa a ser não uma mera
15
especulação sobre um mundo possível, mas que não é, mas uma
especulação alicerçada em dados reais do mundo, uma metaempi-
ria, como lhe chamava atrás Júlio Fragata, que apesar de ser meta,
é também empiria. É o que Churchland sublinha: “Philosophical
problems were once thought to admit of a priori solutions, where
such solutions were to be dredged somehow out of a “pure reason,”
perhaps by a contemplation unfettered and uncontaminated by the
grubbiness of empirical facts” 34. Esta noção da filosofia asséptica,
como se o mundo estivesse aqui para nos estragar o mundo das
ideias, é, hoje, ultrapassada pela realidade. A não ser que a filosofia
não queira fazer progressos. Pois como pode a filosofia pôr ques-
tões que sem ter os dados que permitem pôr essas questões? Será
porque as neurociências parecem pôr em causa a maneira como
nos vemos? O conceito de humano altera-se com estes dados? O
conceito de eu muda?
A opção enquanto filósofos é, creio eu, perceber a filosofia como
uma síntese de resultados, integração de teorias em todos os domínios
e avaliação crítica em que os dados são vitais. Poderão os filósofos
pensar que é uma visão redutora. A meu ver, é uma abertura. Demos
um exemplo, que roubamos sem perdão da Professora Maria Luísa
Portocarrero: pode-se ter uma ontologia sem o contributo da física
quântica. Faz sentido, hoje em dia, a ontologia clássica ainda ser
ensinada, sabendo que não tem qualquer correspondência à reali-
dade, tratando-se de uma construção mental?
Ao contrário do método tradicional, em que todas as questões
são enquadradas num método geral, precisamos de perceber o que
16
Trow já em 1957 desenhava tão bem: “é o problema da investigação
que dita os métodos da investigação” 35. Em geral, a utilização de
instrumentos metodológicos específicos é o que nos garante que os
resultados não serão em vão. Por exemplo, não temos médicos a usar
telescópios, assim como não temos astrofísicos a usar estetoscópios.
Mas voltemos à noção simples e complicada de eu. Qualquer
resposta filosófica a uma noção de eu tem de perceber que este
está dependente do constructo cerebral e que muda se o cérebro
mudar. Sublinhemos, no entanto, que esta noção de eu, é, para já,
puramente conjectural. Todos procuramos uma narrativa de nós que
faça sentido não quer dizer que seja verdadeira e o eu, parece-me,
ser uma dessas narrativas.
Mas peguemos num pequeno exemplo de um paciente, chama-
do Michael, que Burns e Swerdlow36 nos descrevem como tendo
desenvolvido apraxia construtiva e pseudodisgrafia após o desen-
volvimento de um tumor. Na imagem abaixo conseguimos verificar
como o tumor alterava a capacidade de construir os objectos do
mundo ou mesmo escrevê-los.
17
Após a operação de remoção do tumor quer a apraxia quer a
pseudodisgrafia desapareceram completamente e voltou a conseguir
desenhar (ainda que mal, mas já aproximado do mundo), e a escrever.
18
Michael não teve mais impulsos sexuais direcionados a crianças.
Voltou ao programa de tratamento e passou sem dificuldade, cum-
prindo as exigências do juiz. Ele voltou para casa e parecia não ter
problemas, além daqueles que se poderia esperar de alguém que
tinha passado por uma cirurgia no cérebro. Meses depois, porém,
os seus desejos sexuais por crianças voltaram. Outra ressonância
magnética revelou que o tumor também havia voltado. O tumor
foi novamente removido e, novamente, os impulsos de Michael
desapareceram” 37 .
37 Uri Maoz and Gideon Yaffe - What does recent neuroscience tell us about cri-
minal responsibility? Journal of Law and the Biosciences, 1–20 doi:10.1093/jlb/lsv051
38 Mike Mariani - What Doesn’t Kill Us Makes Us: WHO WE BECOME AFTER
TRAGEDY AND TRAUMA. Ballantine Books, 2022.
19
Maguire39 acerca dos taxistas londrinos, que são obrigados a memo-
rizar um certo número de trajectos e localizações para poderem ser
taxistas. O que acontece é que eles acabam por ter uma memória
superior sobre Londres e sobre os seus monumentos, verificando-se
uma alteração no hipocampus, isto é, aumento da matéria cinzenta
no hipocampus posterior – com a possível correlação na diminui-
ção no hipocampus anterior provocando uma menor performance
a reter e formar novas associações envolvendo informação visual.
Outro exemplo é efeitos dos vídeo-jogos na estrutura cerebral e
na maneira como percepcionamos o mundo. Estudos sugerem que
há um aumento de 10% de acuidade visual nos jogadores de vídeo-
-jogos. Tapscott diz-nos: “as pessoas que jogam muito videojogos
conseguem descobrir mais objectos de uma vez do que as pessoas
que não jogam […] conseguem mais rapidamente identificar um alvo
apresentado apenas por um momento numa paisagem desordenada”40.
A percepção própria, mas também a noção de percepção parece ter
aqui mais uma forma de se expandir. Aquilo que parece ser ape-
nas visual deixa rapidamente de o ser porque tem consequências
a outros níveis: a rapidez de reacção a qualquer acontecimento é
maior, aumenta a precisão da relação olho-mão (que é benéfica,
por exemplo, para cirurgiões), aumenta as capacidades espaciais
bem como a manipulação mental de objectos a três dimensões. O
mundo altera-se.
20
Deixemos ainda outro exemplo questionante, a investigação de
Benjamin Libet que nos indica que os processos cerebrais iniciam
a consciência e esta os actos. A experiência de Libet é simples e já
foi reproduzida muitas vezes com os mesmos resultados: com uma
pessoa ligada a sensores que captam a actividade neuronal e com
a monitorização dessa actividade pede-se que, estando quietos,
decidam agir (por exemplo clicar no rato, levantar a mão, etc). Os
resultados esperados seriam que a vontade consciente fosse o pri-
meiro sinal e depois seguir-se-ia a acção. Essa é a visão tradicional
da questão. O problema, na experiência de Libet, é que se encon-
trou uma resposta cerebral diferente: há uma actividade cerebral,
digamos, inconsciente primeiro, (é assim que a nomeia Libet, ainda
que, para nós, talvez não seja a mais indicada) e a “vontade cons-
ciente” só aparece depois. E, finalmente, a acção. Como ele conclui:
“o início de actos voluntários e livres parecem começar no cérebro
de forma inconsciente, bem antes que a pessoa, conscientemente,
saiba que quer agir!” 41.
Há várias maneiras de ler estes resultados. O próprio Benjamin
Libet tem consciência disso, quando se pergunta pelo papel da
vontade consciente. Uma das respostas contenta-se com a possi-
bilidade de haver uma contra-vontade, isto é, se temos actividade
cerebral -> consciência -> acção, quer dizer que entre a consciência
e a acção poderia haver aquilo que ele chama contra-acção e que
Libet chama de conscious veto. Mas ele próprio admite a possibi-
lidade que para haver aquela contra-acção ou não acção poderá
ter de haver outra actividade cerebral insconciente que contraria a
21
primeira. No entanto, Libet continuará a escolher a vontade livre
como controlo sobre o acto. Precisamente para manter ainda um
grau de indeterminação.
Ao contrário do que seria de esperar, estas questões são tão
importantes para os cientistas como para os filósofos. Num livro
absolutamente fundamental sobre o livre-arbítrio42, saído já este
ano, coordenado pelo neurocientista Uri Maoz e o filósofo Walter
Sinnott-Armstrong, demonstra-se como pode haver uma nova forma
de fazer ciência e filosofia. A primeira parte do livro intitula-se:
questões de neurocientistas para filósofos, em que, a partir dos da-
dos científicos, se formulam questões como o que é a vontade? ou
quando é que uma acção é voluntária?. A segunda é, precisamente
questões de filósofos para neurocientistas, onde se contam questões
como quais são os principais estádios nos processos neuronais que
produzem acções?.
Acerco-me do fim do meu tempo sem, pensará – e bem – o ou-
vinte, me referir à questão do meu título: para além do mal. Talvez,
dado estar aqui alguém de psicologia, que entraria pelas questões
levantadas por Zimbardo por exemplo e a sua experiência e resul-
tados vulgarmente intitulados Lucifer effect, mas tal levava-nos a
questões metodológicas e éticas que não nos interessam aqui. Por
outro lado, Zimbardo e colegas desenvolvem a sua investigação e
conclusão com base equívoca de que apontamos o primeiro que
derrubará tudo o resto: que o mal é um comportamento ou um
fenómeno social por si mesmo. Isso já Nietzsche nos tinha ensi-
nado que era um erro. Em Para além do bem e do mal sublinha
22
categoricamente: “não há essa coisa que se chama fenómeno moral,
mas apenas uma interpretação moral dos fenómenos”. Como pode,
então, a neurociência ajudar-nos?
Julia Shaw propõe-nos uma pergunta interessante: “será que o
teu cérebro é assim tão diferente do de Hitler?”. Na verdade, a res-
posta é sim e não, porque apesar de termos uma estrutura comum,
a plasticidade cerebral, os traumas, as capacidades de reparação são
diferentes. Num estudo muito recente, Deery e colegas indicam que
o cérebro tem alterações profundas após os 40 anos no sentido de
maximizar o funcionamento numa fase de decaimento.
É também a partir da Segunda grande Guerra que Simon Baron-
Cohen, neurocientista inglês, se perguntou: como foi possível que
pessoas objectificassem outras?, como podemos compreender a
crueldade humana?. Na verdade, as respostas normalmente vão do
inexplicável, passando pelo inumano, até ao puro mal. “Mas quando
pegamos nesse conceito de mal para o examinar, não retiramos
nenhuma explicação”, dirá, sublinhando: “como cientista eu quero
compreender o que causa que as pessoas tratem outras como se
fossem meros objectos” e a explicação tradicional do mal (evil) não
acrescenta qualquer tipo de compreensão do acto. Não descuran-
do outros factores, como genéticos, ambientais, etc., Baron-Cohen
procurou na neurociência alguma explicação. Por isso nos propõe
a alteração do unscientific term evil pelo termo de empatia, em
neste caso, a falta dela.
Pressupôs-se como hipótese que a empatia é o mais comum.
Assim, através de um questionário à população que pudesse quanti-
ficar o grau de empatia verificou-se que: 1. a maioria da população
tem um grau de empatia mediano (onde a erosão da empatia será
temporária, caso não haja outros factores); 2. poucos na população
23
são muito empáticos; 3. e poucos são pouco empáticos. Isto permitiu
verificar que a empatia não só é uma característica comum, como a
maior parte de nós está na mediania, criando uma curva em sino:
24
Qualquer alteração neste circuito permite olhar para determina-
do comportamento de forma diferente. Por exemplo, no campo da
justiça, uma mulher que matou os filhos para magoar o ex-marido,
foi considerada normal e sã, pois nenhuma das 297 desordens do
DSM-IV se aplicavam ao caso. Mas, de facto, é um caso de ero-
são de empatia e não um caso normal. Para além das desordens
psiquiátricas normais teremos de perceber o caso das desordens
cerebrais que configuram certos comportamentos. A questão da
culpabilidade, da responsabilidade e da imputabilidade fica assim
novamente em cima da mesa.
Fica-nos a questão: a explicação através de factores neuronais,
genéticos (visto que há genes para a empatia), hormonais e am-
bientais é uma melhor explicação do comportamento humano do
que o mal?
Talvez ao contrário do esperado, estas questões fazem-me re-
gressar ao princípio mesmo da filosofia: a admiração, o espanto. É,
sempre foi, esse o início de qualquer filosofia. Lembremos Platão:
“pois o que estás a passar, o maravilhares-te, é mais de um filóso-
fo. De facto, não há outro princípio da filosofia que não este”. E
Aristóteles: “foi o seu espanto, a sua admiração, que primeiro levou
os homens a filosofar e continua a levar”. E que outra admiração
maior podemos ter do que a realidade? É a partir dela que devemos
partir. Talvez assim consigamos continuar a perguntar.
25
Referências citadas
26
LIBET, Benjamin – Do we have free will?. In Journal of Cousciousness Studies,
6 (nº 8-9 / 1999).
MAGUIRE, E. A., GADIAN, D. G., JOHNSRUDE, I. S., GOOD, C. D., ASHBURNER, J.,
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