As Cartas de Caio Fernando Abreu

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INSTITUTO PEDAGÓGICO DE MINAS GERAIS

PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA DA LITERATURA E PRODUÇÃO DE TEXTO

PAULO CÉSAR PEREIRA JÚNIOR

As Cartas de Caio Fernando Abreu: Análise de Temáticas exploradas pelo autor no


respectivo Gênero Textual.

Belo Horizonte - 2023


PAULO CÉSAR PEREIRA JÚNIOR

As Cartas de Caio Fernando Abreu: Análise de Temáticas exploradas pelo autor no


respectivo Gênero Textual.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Instituto Pedagógico de Minas Gerais, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Pós-graduação
em Teoria da Literatura e Produção de Texto.

Belo Horizonte - MG
2023
JUNIOR, Paulo César Pereira. As Cartas de Caio Fernando Abreu: Análise de Temáticas
exploradas pelo autor no respectivo Gênero Textual. 120f. Trabalho de Conclusão de Curso –
Pós-graduação em Teoria da Literatura e Produção Textual – Instituto Pedagógico de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2023.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr/Ms. __________________________ Instituição__________________________

Julgamento____________________________ Assinatura__________________________

Prof. Dr/Ms. ___________________________Instituição__________________________

Julgamento____________________________ Assinatura__________________________

Prof. Dr/MS. ___________________________Instituição_________________________


(Orientador)
Julgamento____________________________ Assinatura__________________________
RESUMO

JUNIOR, Paulo César Pereira. As Cartas de Caio Fernando Abreu: Análise de Temáticas
exploradas pelo autor no respectivo Gênero Textual. 120f. Trabalho de Conclusão de Curso –
Pós-graduação em Teoria da Literatura e Produção Textual – Instituto Pedagógico de Minas
Gerais, Juiz de Fora, 2023.

O presente trabalho tem por objetivo analisar algumas cartas do autor Caio Fernando Abreu,
contidas no livro Cartas, seleção organizada pelo também escritor Ítalo Moriconi, cuja primeira
edição se deu no ano de 2002. O trabalho contou com a iniciativa de Heloisa Buarque de
Hollanda, e é constituído por cartas enviadas por Caio a amigos e amigas, como Maria Adelaide
Amaral, Hilda Hilst, Flora Süssekind, Cida Moreira, Gilberto Gawronski, Jacqueline Cantore,
João Silvério Trevisan, Mario Prata, entre outros. De acordo com pesquisas, essa coletânea
propôs ser uma espécie de homenagem ao escritor, cuja morte ocorreu em 1996. Cada carta,
como texto, é carregada de elementos intimistas, mostrando sua subjetividade, suas relações e
necessidades dialogais. Encontramos neste acervo a presença de máximas e aforismos criados
por Caio e que se eternizaram como expressões existenciais de pessoas comuns, nas redes
sociais. As cartas escolhidas, serão, obviamente, analisadas sob a perspectiva dos estudos de
gênero textual e interpretadas nas suas associações, nas suas perspectivas e possibilidades de
significado. O objetivo é mostrar a arte do autor em instrumentalizar as palavras, em um
ambiente marcado pelo interioridade, em produzir sentidos que ultrapassam sua individualidade
e alcançam outras existencialidades.

Palavras-chave:Caio Fernando Abreu. Subjetivismo. Diálogo. Existencialidade.


ABSTRACT

This work aims to analyze some letters by the author Caio Fernando Abreu, contained in the
book Cartas, a selection organized by the also writer Ítalo Moriconi, whose first edition took
place in 2002. The work had the initiative of Heloisa Buarque de Hollanda, and consists of
letters sent by Caio to friends, such as Maria Adelaide Amaral, Hilda Hilst, Flora Süssekind,
Cida Moreira, Gilberto Gawronski, Jacqueline Cantore, João Silvério Trevisan, Mario Prata,
among others. According to research, this collection proposed to be a kind of tribute to the
writer, whose death occurred in 1996. Each letter, as a text, is loaded with intimate elements,
showing his subjectivity, his relationships and dialogic needs. We find in this collection the
presence of maxims and aphorisms created by Caio and that became eternal as existential
expressions of common people, in social networks. The chosen letters will obviously be
analyzed from the perspective of textual genre studies and interpreted in their associations,
perspectives and possibilities of meaning. The objective is to show the author's art in
instrumentalizing words, in an environment marked by interiority, in producing meanings that
go beyond his individuality and reach other existentialities.

Keywords: Subjectivism. Dialogue. Existentiality


SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
● Objetivos
● Objetivo Geral
● Objetivos Específicos
● Justificativa
● Procedimentos Metodológicos
DESENVOLVIMENTO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
OBJETIVOS

Esse trabalho, pretende-se analisar algumas das cartas escritas por Caio Fernando
Abreu a destinatários diversos, num período de sua vida em que já havia se consolidado como
um escritor, tendo participado como colunista em jornais, palestrante em eventos literários e,
principalmente, tendo-se consagrado como uma das grandes representações da literatura das
últimas décadas do século XX, em especial a que explorava elementos urbanos e em linguagem
transgressiva, abordava assuntos até então tabus como sexualidade, drogas e DST´s.
A análise contemplará os aspectos do estudo do gênero textual carta, no
que concerne às suas composições, características e também, elementos como estrangeirismos,
uso da linguagem coloquial, a adaptação de termos então próprios dos vocabulários grupos
sociais para a complementarização semântica dos códigos linguísticos. Em continuidade ao
estudo das cartas, iremos analisar a presença do estilo literário de Caio, que segundo Avelar
(2011), foi o último escritor da última geração que valorizou o costume de redigir cartas, como
algo repleto de sentimentalismos, melancolias e subjetividades, que ao imiscuir-se com os
assuntos que o faziam escrever, faz com que o leitor se sinta diante da extensão de suas obras
mais conhecidas como Morangos Mofados, Onde Andará Dulce Veiga e os diversos contos
escritos que retratam o contexto urbano eivado de experiências marcadas pela desilusão
amorosa, crises existenciais e a constante oscilação das relações humanas.
Outro objetivo é reconhecer a preciosidade da obra, não disponível para
venda em sua forma impressa, mas encontrada em formatos virtuais, como uma coleção de
cartas que mostram acuradamente a mente e a personalidade do autor, caudalosa de expressões,
detalhes e a capacidade do escritor gaúcho em prosar as questões e acontecimentos do cotidiano,
os mais simples e torná-los significativamente superiores em detalhes do que geralmente pode-
se reputá-los, ajudando-nos a compreender o porquê do seu desdobramento no cenário literário,
carregando consigo a apreciação de nomes importantes como Hilda Hilst e Clarice Lispector.
No decorrer de cada missiva analisada, encontraremos Caio F. se relacionando
com seus pais, irmãos e aqueles que eram muito afeitos à sua caminhada. Vemos sua
sinceridade e liberdade em explorar assuntos complexos e polêmicos, bem como o seu
comprometimento com a sua autenticidade enquanto escritor aguerrido em defender aquilo que
considerava ser o importante, a não-mentira, a luta constante em ser amado e a rendição aos
percalços da existência.
OBJETIVO GERAL

Analisar, a partir da compreensão do gênero textual e de aspectos interpretativos que envolvem


a subjetividade no livro Cartas (Editora Aeroplano, 2002), obra esgotada há vários anos, alguns
textos escritos por Caio Fernando Abreu endereçados à Maria Adelaide Amaral, Hilda Hilst,
Flora Süssekind, Cida Moreira, Gilberto Gawronski, Jacqueline Cantore, João Silvério
Trevisan, Mario Prata, entre outros.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Identificar, nos escritos selecionados da obra, os fatores da textualidade que nortearam Caio
Fernando Abreu a escrevê-los, considerando os contextos que envolvem suas produções;
Identificar e refletir, a partir de uma postura interpretativa, questões subjetivas explicitadas pelo
autor;
Identificar os níveis de subordinação à norma culta e os aspectos da coloquialidade vistos em
cada carta;
Identificar neologismos, estrangeirismos e barbarismos propositais que Caio inseriu e como o
autor, na sua autenticidade literária, os empregava, a fim de registrar sua performance
redatorial;

JUSTIFICATIVA
O livro Cartas, como o próprio título sugere, concentra textos pessoais de Caio Fernando Abreu,
um dos maiores contistas e escritores brasileiros. Desde a primeira vez que o li, intui-me que
seria proveitoso analisar, dentro de uma estrutura de trabalho acadêmico as suas
particularidades, textuais literárias e históricas, bem como oferecer aos alunos e estudiosos,
recursos para o trabalho do gênero textual em um contexto de máxima subjetividade e
condensação da alma humana, nas suas dores, percalços, alegrias e realizações. A importância
de se estudar cartas reside no fato de que esses registros confessionais são importantes
documentos que mapeiam territórios e guardam na linguagem, conteúdo e caligrafia, os rastros
de circunstâncias e circunferências da escrita, como transposição do eu.
Considerando que estamos falando de um livro, infelizmente, fora do mercado editorial, com
circulação somente em formato digital e com poucas referências na internet, resolvi reputá-lo
como fomentador de um trabalho digno de uma análise acadêmica, cuja pesquisa, obviamente,
o compreendesse dentro do estudo dos gêneros textuais, mas ao mesmo tempo, atentando-se à
todas as suas particularidades, como, por exemplo, as nítidas marcas de pessoalidade quando
se trata das pessoas em que Caio possuía grande afeição. A análise interpretativa, seguindo o
paradigma anterior, poderá evidenciar as riquezas semânticas das formas peculiares do autor
nas suas composições.
O compêndio possui mais de quatrocentas páginas, com cento e cinquenta cartas, e dividido em
duas partes: a primeira, chamada de ‘’ Todas as horas do fim’’, composta pelas cartas escritas
entre os anos 1980 e 1996, quando ocorre a morte do escritor e a segunda, intitulada ‘’Começo:
o escritor’’, reunindo as correspondências enviadas entre 1965 e 1979. Como no espaço ideal
deste trabalho, não seria possível a realização de um levantamento minucioso de todas as
missivas, selecionei dez cartas e nelas fiz análises, em que foi possível instigar uma proliferação
positiva de ideias. A depreensão dos textos ocorreu com base nos momentos que, conforme
minhas percepções, ocorria uma interessante interseccionalidade do autor com temas
recorrentes aos anos 1980 e 1990: elementos da literatura tida como marginal ou transgressiva;
a expressiva musicalidade; programas de televisão; o advento da AIDS, os relatos das mortes
de amigos e a angústia diante da impotente ciência, que naqueles tempos possuía escasso
conhecimento o tratamento dos acometidos e a transição da máquina de escrever para o
computador - o impacto na vida de um homem que confessava passar horas a fio usando o seu
instrumento de trabalho.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Delineamento da Pesquisa:

Este trabalho foi produzido mediante a leitura do livro Cartas, buscando compreender, em
pesquisas em livros e na internet, o contexto, as pessoas e o cenário existencial em que Caio
Fernando Abreu se baseou para expressar suas emoções, pontos de vista e percepções da
sociedade. Foi imprescindível verificar as alusões pessoais e impessoais que o autor fez para
nortear a interpretação dos textos e a análise da sua criticidade.

Local da Pesquisa

A pesquisa foi realizada em bibliotecas públicas da cidade de Juiz de Fora - MG e nos diversos
materiais encontrados na internet.

Instrumento de Coleta de Dados

A medida em que a leitura acontecia, eu inseria em colunas, as temáticas que o autor enfatizava
e também as referências de obras literárias (dele e de outros). Reuni, também um conteúdo de
trechos e frases de acordo com a significatividade do que era abordado: política, vida
sentimental, família, religiosidade e amizade.
DESENVOLVIMENTO

A extensão epistolar de Caio Fernando Abreu é constituída por circunstâncias, momentos e


registros do tempo em que escreveu. Na maioria das cartas há a presença do contexto histórico,
sendo descrito sob o olhar subjetivo do autor, adjetivado segundo suas constatações e valores.
O escritor, que a princípio planejou formar em Letras e depois partiu para a profissão de
jornalista, agregou em seu repertório sociocultural uma notória vastidão vocabular, que o
habilitou a transitar os territórios da linguagem culta e o coloquial, isso, sem cair em nenhuma
impertinência textual.

Outro um traço facilmente discernível é a aplicação das palavras aos códigos de nomeação de
lugares e pessoas, bem como às imagens do pensamento, utilizando das palavras ordinárias
propriedades de suas ilações incomuns, repletas de sentidos peculiares à amorosidade, seja aos
amigos ou aos sujeitos que desencadearam em si emoções de cunho afetivosexual e a outros
sentimentos de aspecto negativo, delineando uma vivência marcada pelos impactos
sentimentais, nitidamente visto nas descrições que evidenciam sobressaltos existenciais,
melancolias diversas, do choque proveniente da decepção à sensação da paixão plena e prazeres
realizados.

Caio Fernando Abreu possuía uma notória predileção pelo gênero epistolar, tanto que seus
amigos, mesmo os que estavam fisicamente próximos, estavam acostumados a conviver com
suas cartas e nelas ouvir dos assuntos mais triviais às questões mais íntimas, como quando
esteve doente, antes e depois de ter-se descoberto portador do vírus HIV, em várias
correspondências, esse tema foi explorado sem nenhum temor de rejeição ou sinal de
autocomiseração.

As cartas de Caio podem ser entendidas como lugares de expressão e construção de sua própria
identidade, quando se percebe as constantes indagações a respeito da vida e do propósito em
continuar insistindo na felicidade. Ao lê-las, vasculharemos um universo íntimo e aberto à
visitações, daqueles e daquelas que anseiam por se enriquecer intelectual e filosoficamente com
a alma do escritor.

CONTEÚDO MOTIVACIONAL
TRECHO DA CARTA À BRUNA LOMBARDI - 16/02/1981

‘’Bruna, amei seu livro. Estive doente, há umas duas semanas (um vírus
misterioso, pestes soltas no ar, na água desta cidade infernal), e aproveitei para
ler uma porção de coisas guardadas há tempo. Acho corajoso, bonito, forte.
Principalmente quando você solta o emocional. Várias vezes, me comovi, li
em voz alta para amigos, para mim mesmo. Gostava, e muito, do primeiro, mas
acho que você cresceu ainda mais. E na direção certa. (...)
Está tudo muito ruim, e nós precisamos mais do que nunca ser
solidários uns com os outros. Trocar estímulos. Assim: olha, eu sei que o barco
tá furado e sei que você também sabe, mas queria te dizer pra não parar de
remar, porque te ver remando me dá vontade de não querer parar de remar
também. Tá me entendendo? Eu sei que sim. Qualquer coisa, conte comigo.
Sem conhecê-la profundamente — mas mais pelo que você escreve e menos
pela sua imagem pública — te quero muito bem. Estou com você e não abro.
Receba um beijo grande.
Seu amigo, Caio Fernando Abreu’’.

Uma das características interessantes do estilo epistolar de Caio era a sua forma direta
de abordar as pessoas com quem mantinha contato. Ele dispensava formalidades, se sentia livre
para construir seus textos, demonstrando uma proximidade com o destinatário. Inicia-se a
correspondência expressando suas prioridades, a literatura, tema que, sem dúvida, ocupa um
lugar privilegiado nas suas elocuções. Expressando apreciação à Gaia, o livro da amiga Bruna
Lombardi, podemos perceber que o aspecto analítico e interpretativo de Caio ocupa a primeira
consideração da carta. Podemos lançar a hipótese de ter sido esse o elemento motivador da
carta, Ao mencionar seu descontentamento com a cidade de São Paulo, percebemos que ele
prossegue em sua leitura negativa de sua contemporaneidade, estabelecendo uma relação de
fatores negativos e nessa enumeração está a presença do que chamada de vírus misterioso, uma
compreensível adjetivação, acompanhada de um implícito temor e apreensibilidade, diante da
falta de corroborações científicas do vírus HIV. Há nessa escrita, uma rapidez na explanação
do objetivo, haja vista que, comparada às outras cartas, é de tamanho reduzido e com
indubitável concisão. Mas não há traços de superficialidade, pois Caio utiliza-se de
metaforizações da realidade para estimular a amiga à esperança por dias melhores. Isso se
depreende na data de sua composição, o Brasil ainda estava sob a Ditadura Militar, depois de
anos de desgastes em artistas que, em meio ao cerceamento da produção cultural, suspiravam
por progresso e liberdade, dos inúmeros desaparecimentos de pessoas e as diversas interdições
na literatura, as quais o próprio autor fora atingido. O ato simbólico de remar, pode possuir
diversas conotações e certamente, ambos sabiam do que exatamente se tratava, algum desafio
extenuante ou uma indisposição com a conjuntura prevalecente. Em meio ao contexto
desanimador, o autor propõe à amiga Bruna que continue a agir, a fazer o que se deve fazer,
pois ele observava a perseverança dela como inspiração para a sua própria autodeterminação,
no que concerne à uma forma resiliente e forte de encarar os sobressaltos da vida. O
conhecimento e a simpatia de Caio pela atriz, segundo ele, era por causa do que ela escreveu.
Nisto, sua admiração era movida por aquilo que as pessoas redigiam e os textos lidos, uma vez
aceitos nos seus critérios, tornavam-se suficientes para avaliar e estabelecer vinculações com
elas.

COMPARTILHAMENTO DO DIA A DIA


TRECHO DA CARTA À JACQUELINE CANTORE - 24/06/1981

‘’ (...) Hoje é um dia bonito. Ontem também foi. Acordei cedo, dei uma
volta lenta pela Lorena, Consolação, Oscar Freire. Comprei duas coisas que
tinha vontade de ter, fazia tempo: uma garrafa térmica (tomo muito café, e
já estava cansado daquele negócio de subir/descer escada toda hora) e uma
sandália chinesa, daquelas cheias de bolinhas de plástico que massageiam
os pés (e os órgãos internos) enquanto você caminha. Procurei inutilmente
uma vela branca de sete dias pra acender pra São João, não encontrei,
comprei azul, ele deve gostar também (...)’’

Nesta carta, Caio compartilha a sua amiga, produtora de programas de televisão, com quem
chegou a morar em São Paulo e companheira das programações noturnas, Jacqueline Cantore,
sua disposição em sair pelas ruas e fazer o que lhe é aprazível, comprar pequenas utilidades do
lar (garrafa térmica) e acessórios pessoais (o chinelo chinês). Mas há um componente nesta
experiência de ir às compras, que pode-nos abrir espaço para um lado interessante da sua vida
pessoal: o elemento místico/religioso. O escritor demonstra ter percorrido alguns lugares para
encontrar uma vela branca, a fim de acendê-la, em forma de devoção religiosa, a São João -
santo católico, cuja carta foi escrita em seu dia comemorativo. O aspecto da fé é um detalhe
presente em muitos textos de caio, principalmente no que se refere ao estudo da astrologia e a
referenciação aos cultos de origem africana. Caio sinaliza ter uma relação pessoal de devoção
ao santo, ao utilizar o termo: ‘’ele deve gostar também’’, mostrando-nos credulidade à questão
da humanidade do ser cultuado, uma típica fuga das convenções e das condutas tidas como
inalteráveis. Ao escrever cartas, percebe-se um traço relevante de sua personalidade, como
mesmo afirma Avelar, é ‘’o desejo do eu de contar-se’, de dar valor às caminhadas pelos bairros,
encontrar nas lojas aquilo que, mesmo não sendo necessário, torna-se carregado de valor
afetivo. A apresentação das cenas do cotidiano sob uma aura de realização pessoal, nos faz
inferir que houve um encontro com a vida daquele dia, como se dissesse que o mesmo fora
produtivo ou que uma missão especial tivesse sido cumprida.

ASPECTOS DA SOLIDÃO EM SÃO PAULO


TRECHO DA CARTA A CHARLES KIEFER - 16/11/1982

‘’ (...) Eu tô meio agitado, aqui, de mudança para o Rio de Janeiro. Faz


tempo tenho problemas com Sampa — barulhenta, pouco saudável,
solitária, amarga. Agora decidi. Não dá mais. Há uns seis meses
praticamente não saio de casa, detesto tudo, perdi o contato com as pessoas,
fico vivendo uma vida toda pra dentro, lendo, escrevendo, ouvindo música
o tempo todo. Daí, então, vou em busca de um pouco de Sol (em todos os
sentidos). Faz tempo que me mexo sem parar. No momento, estou
reduzindo tudo que tenho (uma casinha cheia de coisas, coisas inúteis, mas
gosto delas) a no máximo duas malas (...)’’.

A inadequação ao contexto metropolitano de São Paulo é uma queixa recorrente em algumas


de suas cartas. A capital paulista é apresentada como um lugar conturbado e estigmatizado por
uma característica da urbanidade: ‘’barulhenta’’e por adjetivos pessoais: ‘’solitária, amarga’’.
O barulho poderia ser mais que o ruído, poderia significar os empecilhos do lugar à inspiração
dos seus textos - o elemento que o faria se sentir produtivo, útil e necessário. A solidão da
cidade, pode se referir à maneira como os moradores vivem - cercados uns dos outros, em
aglomerações cujo espaço é completamente ocupado - ônibus, praças e locais públicos, no
entanto, sem que aconteça a interatividade, a acolhida e o interesse em simplesmente
estabelecer-se um diálogo. O conceito conotativo da amargura, em uma megalópole, pode ser
aplicado ao ritmo desafiador de muitos de seus habitantes, que estão ladeados de violência, e
quando não há desemprego, vê-se a falta de perspectiva de uma vida confortável e certamente,
à cena que mostra a sofreguidão de homens e mulheres que saem de suas casas muito cedo e
retornam quase no fim da noite. Caio confessa que permaneceu seis meses em casa, sem desejar
nenhuma atividade social, se dedicando apenas às tarefas relacionadas à leitura, apreciação
musical e, obviamente, a arte de redigir. Esse refúgio na solidão, já visto desde muito cedo na
vida do autor, foi perpetrado pelas circunstâncias de insatisfação por estar em São Paulo, e,
certamente, proporcionou um contexto de intensa produção e desenvolvimento intelectual.

DESILUSÃO AMOROSA
CARTA À JACQUELINE CANTORE 20/05/1983

‘’(...) Escrevi ao C. uma carta DEFINITIVA. Hesitei em mandar, Sônia


falou que devia. Pedi a ele uma DEFINIÇÃO. Ou me quer e vem, ou não
me quer e não vem. Mas que me diga logo pra que eu possa desocupar o
coração. Avisei que não dou mais nenhum sinal de vida. E não darei. Não
é mais possível. Não vou me alimentar de ilusões. Prefiro reconhecer com
o máximo de tranqüilidade possível que estou só do que ficar a mercê de
visitas adiadas, encontros transferidos (...)

As desilusões amorosas de Caio Fernando Abreu são tratadas em suas cartas com bastante
contundência. Como nesta, ele se depara com uma experiência em que julga a indefinição
da parte de uma pessoa, que teve o seu nome propositadamente ocultado, a fim de preservar
sua identidade. Vemos o lugar de importância das cartas na vida do escritor, tanto que ele
solicitou uma à pessoa, cujo nome foi grafado com um C. Essas questões de ordem
sentimental, o faziam sofrer e ele as expunha nas cartas, não apenas para informar aos
amigos, mas para consolidar suas próprias determinações. A organização das palavras, a
construção frasal dos últimos períodos do trecho selecionado, nos mostra uma elaboração
muito bem articulada de sentidos e de argumentos necessários para a validação da postura
que assumiu, após se sentir iludido pela falta de determinação do parceiro. Há um elemento
justificador da solidão, que acreditava ser resultado dos desencontros e das frustrações
amorosas. É também recorrente o uso de metáforas para descrever e de alguma forma
sinalizar ao interlocutor as situações relativas aos conflitos sentimentais, chamando-o para
solidarizar-se com o seu desalento. Nesta carta, o escritor usa o termo ‘’ desocupar o
coração’’ para significar a decisão de praticar o desvencilhamento mental e emocional dos
apegos e ligações com a pessoa a quem se envolveu.

O IDEALISMO
CARTA À NAIR DE ABREU 15/09/1983

‘’(...) Querida mãe, deu vontade, de repente, de escrever para a senhora.


São quase seis horas da tarde, o sol começou a se pôr bem aqui em frente à
minha janela. Foi um dia muito bonito, a primavera está mesmo no ar.
Fiquei no sol o dia todo, agora há pouco tomei banho, fiz um mate, e dei
mais um jeito no quarto, com as outras coisas que vieram de São Paulo.
Está ótimo, parece uma casinha. Voltar foi um pouco difícil,
principalmente depois de todo o carinho que recebi aí. Coisa estranha,
família é uma coisa que a gente passa muito tempo negando até perceber
não só que não deve negar como também é ótimo. Descobri vocês todos
desta vez. E acho que tenho a melhor família do mundo. Estou um pouco
preocupado com Cláudia. Pelas contas, hoje devia ser o grande dia.
Prometa que me liga assim que o bebê nascer, contando tudo. E veja se
anota o minuto exato do nascimento para que eu e Jacqueline possamos
fazer o mapa astral. Diga a Cláudia que tudo vai dar certo, tenho rezado por
ela, para que seja corajosa e tudo corra bem. Comigo as coisas estão indo
bem. Terça passei na editora para ver a capa do novo livro. Fiquei chocado,
é bonita mas meio terrível: uma cidade enorme e meio vazia, como depois
de uma explosão nuclear, com um céu escuro, dramático, meio apocalíptico
por cima. E um dia nascendo. Os editores estão acreditando muito, espero
que dê certo. Acho que é meu melhor livro, mas é também o mais terrível
-porque é preciso falar claramente sobre certas coisas, é preciso alertar as
pessoas para as vidas erradas que levam, a alimentação errada, as emoções
erradas, os relacionamentos errados. Não quero ser dono da verdade, mas
aprendi algumas coisas nesses anos — pode parecer ambicioso, mas de
repente gostaria de ajudar a transformar este mundo numa coisa melhor
(...)’’

Caio Fernando Abreu, embora tenha passado parte de sua vida distante de Porto Alegre,
cidade onde residia sua família, em algumas cartas, como essa, mostra-nos o quanto
possuía de consideração pelos seus. Ao escrever à sua mãe, Nair de Abreu, afirma o
momento em que a vontade de escrever surgiu - redigir uma carta, escrever seus próprios
anseios e esperanças. Predomina a afetividade, o reconhecimento da preciosidade dos pais
e irmãos. Morando no Rio de Janeiro, o autor descreve o que observa - os aspectos do
final do dia e fala da primavera, mais que uma alusão a uma estação, percebe-se que
assume um sentido de adjetivação positiva do tempo. A maior expectativa é declarada
quando menciona os processos exitosos que antecederam ao lançamento do livro
Triângulo das Águas, obra que foi considerada como o seu melhor livro, aclamada pela
crítica e reconhecida com o Prêmio Jabuti - a maior honra literária no Brasil.
Entusiasmado com a conjuntura do momento e certamente, baseado no que escreveu,
novelas repletas de existencialidade e os mistérios que a cercam, inicia-se um instante
onde pensamentos tomados de admoestações e idealismos são lançados sobre o papel.
Primeiro, ele diz que é ‘’preciso falar sobre certas coisas’’, e conforme se constata na
leitura do referido livro, esses temas poderiam ser a sexualidade de homens homoafetivos,
solidão dos grandes centros e os desapontamentos com a inexistência do amor nas
concentrações das noites festivas. Caio continua enunciando o que considera ser o
comportamento errado das pessoas: a forma como vivem - talvez esteja se referindo à
atitude de serem pessimistas ou de se entregarem às péssimas idiossincrasias da
existência, como ódio, suicídio e toda especie de exteriorização que desumanize a si
mesmos. A alimentação errada e os relacionamentos também atribuídos como errados
compõem o final da lista daquilo que ele considera ser sua missão na transformação do
mundo. Caio tem em si a certeza de que as suas obras, por meio da reflexão crítica, podem
alcançar pessoas e retificar condutas que podem prejudicá-las, procedimentos que
inviabilizam o fluxo de uma existência feliz. O autor, em um ponto da carta, a princípio
direcionada ao contexto familiar, discorre sobre seu livro e o justifica a sua utilidade,
mostrando suas ênfases e os estímulos que foram responsáveis por seu surgimento. Caio,
por diversas vezes, declarou sua inconformidade com o mundo que via, tanto perto como
longe. E na convicção de que era convidado a transformar a sociedade, escrevia e tocava
em temas tabus, de maneira ousada e instransigente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho analisou algumas correspondências escritas pelo escritor Caio Fernando Abreu,
que estão incluídas no livro Cartas (2002), que teve a iniciativa de Heloísa Buarque de Hollanda
e organizado por Ítalo Moriconi. Foram selecionadas cinco cartas, cada uma destacada por
temas que eram recorrentes em todas as obras literárias do contista. Na verificação da
subjetividade do autor, percebe-se o lugar de importância do gênero epistolar e nos aponta
caminhos para explorá-lo, como marca de sua autenticidade e desvelamento da existência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1) ABREU, Caio Fernando. Cartas. Organização Ítalo Moriconi. Rio de Janeiro: Aeroplano,
2002.
2) SILVEIRA, José Roberto. A Correspondência de Caio Fernando Abreu: escrita e testemunho
do homem do fim do século XX. ABRALIC, 2011. Disponível em:
<https://abralic.org.br/eventos/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0589-1.pdf>. Acesso em
18/01/2023.

3)AVELAR, Idelber. O epistolário de Caio Fernando Abreu. Revista Fórum, 2011. Disponível
em:<https://revistaforum.com.br/news/2011/6/25/epistolario-de-caio-fernando-abreu-
20172.html>. Acesso em 20/01/2023.

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