Políticas e Sistema de Saúde No Brasil
Políticas e Sistema de Saúde No Brasil
Políticas e Sistema de Saúde No Brasil
A busca da saúde é tema do pensar e do fazer humano desde tempos imemoriais. A luta
contra a dor, o sofrimento, a incapacidade e, sobretudo, contra a morte sempre mobilizou
as energias humanas, as suas capacidades racionais, as suas emoções, para explicar e assim
intervir nesses fenômenos, sempre fugazes em seu hibridismo de manifestações objetivas
e sensações subjetivas. Ao longo da história humana, sucederam-se marcos explicativos de
tais fenômenos, sempre nos limites da compreensão humana sobre si e sobre o mundo, e
sempre na busca, às vezes dramática, de ações práticas para neles intervir, seja no mundo
físico, seja no mundo metafísico.
Há muito a luta contra a doença e a busca da saúde saíram do âmbito privado de vidas
individuais e do emprego empírico de conhecimentos primitivos. Hoje mobilizam progressi-
vamente refinados saberes, produzem e distribuem em larga escala conhecimentos científicos
e tecnológicos, em busca de desvendar os complexos processos biológicos e sociais envolvidos.
Seguramente o tema da saúde situa-se hoje no topo da agenda pública global. No
centro desse processo, está o conceito da saúde como uma complexa produção social, em
que os resultados para o bem-estar da humanidade são cada vez mais o fruto de decisões
políticas incidentes sobre os seus determinantes sociais.
uma ‘entidade’ que se apossava do corpo), ora uma visão funcionalista (doença como um
desequilíbrio interno ou externo ao corpo). Ao longo da história e dos sucessivos modelos de
civilização, combinaram-se de forma variada esses diversos conceitos, em consonância com
os padrões vigentes de conhecimento e organização social. Diversas tipologias e periodizações
podem ser adotadas, dependendo do aspecto que se quer enfatizar. Curioso e obrigatório
é constatar que o desenvolvimento dos conhecimentos e práticas de saúde não seguiu uma
sequência linear, cumulativa, ao longo da história, havendo avanços e retrocessos, idas e
vindas das crenças e dos modelos dominantes. A título de ilustração, vale lembrar alguns
momentos típicos desse processo.
Na Antiguidade Clássica, a vigência da explicação metafísica para os fenômenos da
Na mitologia grega, Hi-
geia e Panaceia eram fi- doença (vontade dos deuses) levava à busca de terapêuticas mágicas (oferendas, poções,
lhas de Asclepius. Higeia, sacrifícios), ao mesmo tempo que tinham grande prestígio as práticas de recolhimento, re-
deusa da saúde e da higie-
ne (e, depois, da lua), era laxamento, em geral buscadas nos templos de Asclepius, verdadeiros hospitais do espírito,
associada à prevenção das com ambiente de penumbra, banhos, repouso e outras medidas em busca de paz e equilíbrio,
doenças e à manutenção
num insuspeitado holismo à procura do reencontro de sua physis que, mais do que ausência
da saúde, enquanto o cul-
to de Panaceia vinculava- de doença, significava integração com a natureza, beleza exterior e interior, ideal de estética.
se à busca da cura, com
Mas é ainda na Idade Clássica, com Hipócrates, que tem início a lógica do pensamento
a intervenção ativa no
processo da doença por científico, baseado na observação clínica e da natureza, fundando a tradição da medicina
meio de poções etc. ocidental.
Hipócrates
Quem quiser prosseguir no estudo da ciência da medicina deve proceder assim. Primeiro deve
considerar que efeitos cada estação do ano pode produzir, porque as estações não são iguais, dife-
rem muito entre si mesmas e nas suas modificações. Tem que considerar em outro ponto os ventos
quentes e os frios, em particular aqueles que são universais, mostrando bem aqueles peculiares
a cada região. Deve também considerar as propriedades das águas, pois estas diferem em gosto
e peso, de modo que a propriedade de uma difere muito de qualquer outra. Usando esta prova,
deve examinar os problemas que surgem. Porque, se um médico conhece essas coisas bem, de
preferência todas elas, de qualquer modo a maior parte, ele, ao chegar a uma cidade que não
lhe é familiar, não ignorará as doenças locais ou a natureza daquelas que comumente dominam.
Fonte: Hipócrates, 2005.
Na baixa Idade Média, com o advento do monoteísmo cristão, a ação divina (agora
vingativa e corretiva, não mais dialógica) era responsabilizada pelos males e doenças, consi-
derados como punições por pecados, afrontas e infrações cometidos por pessoas e coletivi-
dades perante os rígidos mandamentos divinos. A terapêutica então era a penitência, eram
os castigos, até a fogueira, por meio dos quais as pessoas deveriam obter a cura expurgando
seus erros. As epidemias eram combatidas com a busca de bodes expiatórios individuais e
sociais. Esse tipo de obscurantismo certamente significou um estacionamento – até um re-
trocesso – do conhecimento e das práticas sanitárias, que se prolongou até o Renascimento.
Na Europa, com o avanço do Renascimento e com o impulso do pensamento racional
inspirado na desnaturalização do mundo, as grandes epidemias, inicialmente consideradas
pragas divinas, passaram a ser objeto de observação e reflexão sistemáticas. Embora ainda
muito longe do conhecimento de microrganismos, a reflexão sobre a causalidade das doen-
ças passou a se concentrar nos fatores externos. Desenvolveram-se então diversas teorias na
tentativa de explicar o fenômeno do contágio e da disseminação das doenças, principalmente
das epidemias. A mais importante delas foi a teoria dos miasmas, que, embora inconsistente
do ponto de vista científico, atribuía à insalubridade (pestilências) de ambientes físicos a
origem dos fenômenos de contágio e difusão de epidemias. Esse é o momento em que se
dá a base de evidência para as primeiras policies de saúde, dirigidas a medidas coletivas e
individuais de proteção à saúde, ou seja, defesa contra os miasmas.
O advento da modernidade, com seus avanços epistemológicos na desnaturalização
do mundo, com a emergência das trocas mercantis e a respectiva reestruturação das classes
e dos segmentos sociais – e, sobretudo, com a organização de Estados Nacionais sob a égide
da mediação interna e da defesa externa dos interesses das sociedades nacionais –, trouxe
consigo as políticas públicas, ou seja, as ações coercitivas e regulatórias do Estado sobre a
sociedade, visando ao bem comum.
Prevenção primária
Compreende a aplicação de medidas de saúde que evitem o aparecimento de doenças. As ações de
promoção à saúde visam a estimular, de forma ativa, a manutenção da higidez, como os cuidados
com a higiene corporal e a prática de atividades físicas, a fluoretação da água, a implementação
de políticas voltadas para o saneamento básico e a prevenção do uso de drogas, por exemplo. As
ações de proteção específica são conduzidas de modo a inibir o aparecimento de determinadas
doenças, como a imunização de crianças contra poliomielite, sarampo e tétano.
Prevenção secundária
Compreende o diagnóstico precoce das doenças, permitindo o tratamento imediato, diminuindo
as complicações e a mortalidade. Neste caso, a doença já está presente, muitas vezes de forma
assintomática. Exemplos: as dietas para controlar a progressão de determinadas doenças, como
diabetes ou hipertensão arterial; a realização de mamografia e de exame preventivo para detecção
do câncer do colo uterino.
Prevenção terciária
Nesse momento, a doença já causou o dano, compreendendo, então, prevenção da incapacidade
total, seja por ações voltadas para a recuperação física, como a reabilitação, seja por medidas de
caráter psicossocial, como a reinserção do indivíduo na força de trabalho. Exemplos: o tratamento
fisioterápico após o surgimento de moléstias que causam incapacidade física.
Promoção da saúde
Proteção específica
Diagnóstico precoce
Educação sanitária Reabilitação
Bom padrão de nutrição,
Uso de imunizações e pronto atendimento Limitação da
específicas
ajustado às fases de Medidas individuais e invalidez Prestação de serviços
desenvolvimento da vida Atenção à higiene pessoal coletivas para a hospitalares e comunitários
Atenção ao Hábito de saneamento descoberta de casos Tratamento adequado para reeducação e
desenvolvimento da do ambiente para interromper o treinamento, a fim de
Pesquisas de triagem
personalidade processo mórbido e possibilitar a utilização
Proteção contra riscos Exames seletivos evitar futuras máxima das capacidades
Moradia adequada, ocupacionais complicações e sequelas restantes
recreação e condições
• Objetivos
Proteção contra acidentes Curar e evitar o Provisão de meios para Educação do público e
agradáveis de trabalho
Uso de alimentos processo da doença limitar a invalidez e indústria, no sentido de
Aconselhamento evitara morte que empreguem o
específicos Evitar a propagação de
matrimonial e educação reabilitado
sexual Proteção contra doenças contagiosas
Emprego tão completo
substâncias carcinogênicas Evitar complicações e
Genética quanto possível
sequelas
Evitação contra alérgenos Colocação seletiva
Exames seletivos Encurtar o período de
periódicos Terapia ocupacional em
invalidez
hospitais
Utilização de asilos
Nas décadas de 1950 e 1960, por exemplo, as principais doenças registradas entre
trabalhadores brasileiros eram as intoxicações e as dermatoses profissionais. Nos dias de
hoje, com as mudanças decorrentes dos processos de trabalho e da própria organização eco-
nômica do país, as lesões por esforços repetitivos (LER) e as perdas auditivas ocupacionais
prevalecem (Wünsch Filho, 2004).
Nessa linha de pensamento, há uma dimensão estrutural que se caracteriza pelo mo-
delo econômico de desenvolvimento da sociedade, isto é, o modo de produção – capitalista,
socialista. Os autores consideram também uma dimensão particular, na qual operam os
processos de reprodução social, ditados pelo trabalho e pelo consumo, que são particulares
de cada classe social, e ainda uma terceira dimensão individual.
Esses diferentes enfoques sobre os determinantes das doenças remetem a uma reno-
vação e complexificação dos conceitos de saúde e doença. Afinal, para promover a saúde e
prevenir as enfermidades, curar e reabilitar os doentes, é necessário perguntar: existe uma
fronteira clara entre esses dois estados do indivíduo?
As diferentes visões sobre saúde – e sobre o que é estar sadio – não são apenas oriundas
das necessidades físicas e mentais que cada um requer durante sua respectiva etapa no ciclo
biológico, mas agregam valores culturais que, em nossa sociedade contemporânea, são cada
vez mais difundidos pelos meios de comunicação de massa.
Dessa forma, as ideias sobre saúde e doença, sejam do ponto de vista individual das
pessoas, sejam na ótica dos profissionais que trabalham na área, são mediadas por diferentes
disciplinas do conhecimento, tais como:
• o patrimônio biológico;
Biologia humana
Serviços de saúde
20 Estilo de vida
10 Ambiental
51
Assistência médica
19
Biológico
O campo biológico inclui aspectos físicos e mentais de base biológica, como patrimô-
nio genético, os processos físicos e mentais de desenvolvimento e amadurecimento e toda a
fisiopatologia do organismo humano.
O segundo grupo consiste nas condições sociais, econômicas e ambientais nas quais
fomos criados e vivemos, que reúnem um conjunto de fatores de expressão mais coletiva
como acesso à educação, aos serviços urbanos, e toda uma gama de agentes externos, cujo
controle individual é mais restrito. Por exemplo, a qualidade do abastecimento de água e
dos produtos alimentares, a poluição atmosférica, entre muitos outros.
A categoria ‘estilo de vida’ compreende fatores sob maior controle dos indivíduos,
como hábitos pessoais e culturais (fumo, dieta, exercícios físicos etc.), cuja incorporação à
vida da pessoa depende, em grande medida, da decisão de cada um.
No quarto conjunto de situações, encontra-se o sistema que a sociedade organiza para
cuidar da saúde de seus cidadãos e responder às suas necessidades. Compreende os serviços
de saúde, os hospitais e centros de saúde, os profissionais, o conjunto dos equipamentos e
tecnologias. Tradicionalmente, é onde os governos aplicam mais recursos financeiros, sem
que se possa identificar, na maior parte das vezes, um retorno em termos de mudança dos
níveis de saúde da população como um todo (Lalonde, 1974).
Essa concepção parte, assim, do reconhecimento de que o adoecimento e a vida saudá-
vel não dependem unicamente de aspectos físicos ou genéticos, mas são influenciados pelas
relações sociais e econômicas que engendram formas de acesso à alimentação, à educação,
ao trabalho, renda, lazer e ambiente adequado, entre outros aspectos fundamentais para a
saúde e a qualidade de vida. Tem como principal atributo uma abordagem mais abrangente
e integrada dos quatro grupos, permitindo a inclusão de todos os diversos campos de res-
ponsabilidade pelas questões de saúde, como autoridades (dentro e fora do setor saúde),
pacientes, profissionais de saúde, proporcionando, ainda, uma análise interativa do impacto
de cada grupo em um determinado problema de saúde.
Como causas subjacentes à mortalidade por acidentes de trânsito, por exemplo,
podem-se considerar os riscos assumidos pelos indivíduos (como não usar cinto de segu-
rança, dirigir alcoolizado, em velocidade excessiva), os riscos socioambientais (como a pa-
vimentação das ruas, a manutenção de semáforos, sinalizações) e os riscos decorrentes da
qualidade da organização de serviços de saúde (disponibilidade de serviços de emergência
e unidade de terapia intensiva – UTI – para os primeiros cuidados). Note-se que o grupo
de fatores biológicos não está considerado no presente exemplo. Essa abordagem permite
definir políticas voltadas para a diminuição da mortalidade por acidentes de trânsito e que
inclui ações de prevenção primária, secundária e terciária, orientando os diversos agentes
responsáveis por sua implementação – governo, sociedade.
Os quatro grupos de determinantes podem ser analisados como resultantes de um
acúmulo histórico de interações recíprocas, em que a dominância de cada um deles, no tem-
po, leva a uma previsão de futuras vantagens ou desvantagens (Blane, 1999). Por exemplo,
o prognóstico de vida de crianças nascidas no sertão nordestino difere do prognóstico de
crianças de classe média alta, nascidas na cidade de São Paulo – a esperança de vida de uma
criança nascida na região Nordeste, em 2000, era de 65,8 anos, enquanto a de uma criança
nascida na região Sudeste era de 69,6 anos. Experiências de má nutrição na infância, baixo
aprendizado escolar, trabalho infantil, trabalho adulto sub-remunerado e outros condicio-
nantes consistem em acúmulo de desvantagens que podem conduzir a um estado de saúde
de maior precariedade.
Para refletir
Identifique uma doença de alta prevalência em sua área de atuação e analise seus determinantes
sociais.
• a saúde é um investimento para a sociedade como um todo, e que a diminuição das Para saber mais sobre os
desigualdades em saúde no país resulta não apenas na efetivação de um compromisso diferentes sistemas de
ético, mas também em elemento de desenvolvimento e progresso para toda a nação saúde e suas reformas,
consulte os capítulos 3
(Canadá, 1994). e 25.
Para refletir
Quais os principais campos de intervenção para incidir sobre os determinantes econômicos e sociais
das doenças de maior prevalência em seu município? Quais seriam os setores governamentais
responsáveis por essas intervenções?
atividades físicas, alimentação). Mesmo nesse terreno, hoje se considera que medidas edu-
cativas e legislativas são insuficientes para enfrentar com efetividade alguns desses grandes
problemas. Sendo fruto dos complexos e mórbidos processos sociais e culturais da huma-
nidade contemporânea (industrialização predadora, saturação urbana, cultura consumista
de massas), esses riscos e doenças precisariam ser enfrentados não apenas com políticas de
saúde produtoras de atenção, educação etc., mas também por meio de políticas reguladoras
da própria atividade econômica. Assim como a adição compulsória de iodo ao sal marinho
comercializado acabou com o hipotireoidismo endêmico (bócio) e a adição de cloro e – mais
recentemente – flúor aos sistemas de abastecimento de água permitiu a redução drástica
da ocorrência de doenças de veiculação hídrica e da cárie dental, é possível pensar que o
controle da epidemia da obesidade, da hipertensão, das doenças cardiovasculares e do dia-
betes, por exemplo, exija políticas de industrialização de alimentos que regulem e moderem
a presença de patógenos nos alimentos industrializados, como gorduras insaturadas, sal,
açúcar refinado etc. (Kickbush, 2003).
Na América Latina, as ideias do movimento da promoção da saúde encontraram uma
realidade de pobreza e desigualdade que, desde logo, impôs um deslocamento do foco para
as questões estruturais. Mais do que práticas educativas voltadas para mudanças compor-
tamentais, a promoção da saúde na América Latina priorizou os processos comunitários
voltados para mudanças sociais. Ademais, desde os anos 70 desenvolvia-se na região um
movimento crítico ao modelo médico hegemônico que, com base numa abordagem estrutu-
ralista e numa pedagogia libertadora, foi refinando um campo de pensamento e prática que
viria a se consolidar no Brasil como o campo da saúde coletiva. Nos anos 80, tal movimento
plasmou o programa da Reforma Sanitária brasileira, orientado pelo princípio da constru-
ção social da saúde, da universalização e equalização do acesso não só aos serviços, mas aos
demais meios de obtenção de saúde (Carvalho, Westphal & Lima, 2007). Por isso foi cunhada
a expressão ‘promoção da saúde radical’ para expressar que o movimento canadense aqui,
na América Latina e no Brasil, deve aplicar-se de forma associada à perspectiva da mudança
social (Buss, 2003). Apesar da existência de uma variedade de tendências, seja na promoção
da saúde, seja na saúde coletiva, pode-se considerar que elas apresentam uma convergência
estratégica como projetos de construção social da saúde (Carvalho, 2005).
No Brasil, o Grupo de Trabalho sobre Promoção da Saúde e Desenvolvimento Social
da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) define a sua agenda
em três planos da determinação do processo saúde-doença:
PIB total ou PIB per capita bem superior a outros que, apesar disso, apresentam indicadores
de saúde muito mais satisfatórios.
Nos últimos anos, aumentaram também em quantidade e qualidade os estudos sobre
as relações entre a saúde das populações, as desigualdades nas condições de vida e o grau de
desenvolvimento da trama de vínculos e associações entre indivíduos e grupos. Tais estudos
permitem constatar que, uma vez superado um determinado limite de crescimento econômico
de um país, um crescimento adicional da riqueza não se traduz em melhorias significativas
das condições de saúde. A partir desse nível, o fator mais importante para explicar a situa-
ção geral de saúde de um país não é sua riqueza total, mas a maneira como ela se distribui.
Em outras palavras, a desigualdade na distribuição de renda não é somente prejudi-
cial à saúde dos grupos mais pobres, mas é também prejudicial à saúde da sociedade em
seu conjunto. Grupos de renda média em um país com alto grau de iniquidades de renda
apresentam uma situação de saúde pior que a de grupos com renda inferior, mas que vi-
vem em uma sociedade mais equitativa. Um estudo comparativo entre os estados dos EUA
revelou que os indivíduos que vivem em estados com grandes desigualdades de renda têm
pior saúde que aqueles com renda semelhante, mas que vivem em estados mais igualitários
(CNDSS, 2006). O Japão não é o país com maior expectativa de vida do mundo apenas por
ser um dos países mais ricos ou porque os japoneses fumam menos ou fazem mais exercício,
mas porque é um dos países mais igualitários do mundo.
Um dos principais mecanismos pelos quais as iniquidades de renda produzem um
impacto negativo na situação de saúde é o desgaste do chamado capital social, ou seja, das
relações de solidariedade e confiança entre pessoas e grupos (CNDSS, 2006). O desgaste do
capital social em sociedades iníquas explicaria em grande medida por que sua situação de
saúde é inferior à de sociedades em que as relações de solidariedade são mais desenvolvidas.
A debilidade dos laços de coesão social ocasionada pelas iniquidades de renda corresponde
a baixos níveis de capital social e de participação política. Países com grandes iniquidades
de renda, escassos níveis de coesão social e baixa participação política são os que menos
investem em capital humano e em redes de apoio social fundamentais para a promoção e
a proteção da saúde individual e coletiva.
No caso do Brasil, o fardo é duplo, pois além de apresentar graves iniquidades na
distribuição da riqueza, há grandes setores de sua população vivendo em condições de
pobreza que não lhes permitem ter acesso a mínimas condições e bens essenciais à saúde.
Além de a renda dos 20% mais ricos ser 26 vezes maior que a renda dos 20% mais pobres,
24% da população economicamente ativa possui rendimentos inferiores a dois dólares por
dia (CNDSS, 2006). Com um maior debate sobre as desigualdades sociais, o entendimento
sobre a pobreza também tem mudado. Entende-se que a pobreza não é somente a falta de
acesso a bens materiais, mas é também a falta de oportunidades e de possibilidades de opção
entre diferentes alternativas. Pobreza é também a falta de voz ante as instituições do Estado
e da sociedade e uma grande vulnerabilidade diante de imprevistos. Nessa situação, a capa-
cidade dos pobres de atuar em favor de sua saúde e da coletividade está bastante diminuída.
Para ser coerente com essa nova maneira de entender a pobreza, as estratégias para
combatê-la devem incluir tanto a geração de oportunidades econômicas como medidas que
favoreçam a construção de redes de apoio e o aumento das capacidades desses grupos para
melhor conhecer os problemas locais e globais, para estreitar suas relações com outros gru-
pos, para fortalecer sua organização e participação em ações coletivas, para se constituírem,
enfim, em atores sociais e ativos participantes das decisões da vida social.
A maneira mais moderna de explicar as determinações do processo saúde-doença, e
assim conceber os diversos planos de intervenção, é expressa na Figura 3.
MI CAS, CULTURAI
NÔ S E
CO AM
OE BI Intersetorialidade Participação social
CI EN
SO CONDIÇÕES DE VIDA T
E DE TRABALHO
ES
AI
ÇÕ
S
AMBIENTE
GE
DESEMPREGO
I
DE TRABALHO
ND
AIS E COMU
RA
CI
Distais
CO
NI
IS
SO T ÁGUA E
EDUCAÇÃO A DO S I ESGOTO
V ID
ES
ND
RI
DE
D
I
Intermediários
AS
RE
V
O
ÍD
IL
SERVIÇOS
U
ES T
OS
SOCIAIS
IDADE, SEXO DE SAÚDE
PRODUÇÃO Proximais
AGRÍCOLA E DE E FATORES
ALIMENTOS HEREDITÁRIOS HABITAÇÃO
Enfrentar as causas das causas, as determinações econômicas e sociais mais gerais dos
processos saúde-enfermidade, envolve, portanto, ações não apenas no sistema de atenção
à saúde, com mudanças nos modelos assistenciais e ampliação da autonomia dos sujeitos,
mas também intervenções nas condições socioeconômicas, ambientais e culturais por meio
de políticas públicas intersetoriais. E sobretudo em políticas de desenvolvimento, voltadas
para a distribuição mais equânime dos recursos socialmente produzidos, subordinando a
economia ao bem-estar social.
O fato de o Brasil ser o primeiro país a criar sua própria comissão, integrando-se
precoce e decisivamente ao movimento global em torno dos determinantes sociais da saúde
(DSS) desencadeado pela OMS, responde a uma tradição do sanitarismo brasileiro. De fato,
desde o início do século passado os sanitaristas brasileiros vêm se dedicando a aprofundar Mais informações sobre
os temas e deliberações da
o conhecimento das relações entre os determinantes socioeconômicos e a situação de saúde
8ª Conferência Nacional
e a desenvolver ações concretas, baseadas nesse conhecimento. Mais recentemente, inspi- de Saúde você encontra
rados por essa tradição, diversos setores da sociedade se articularam em um movimento de nos capítulos 11 e 12.
Reforma Sanitária, que consolidou sua força política e sua agenda de mudanças na memo-
rável 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, com a presença de mais de quatro mil
representantes de diversos setores da sociedade. Tal movimento contribuiu decisivamente
para a inclusão na Constituição de 1988 do reconhecimento da saúde como um direito de
todo cidadão e um dever do Estado, assim como para a criação do Sistema Único de Saúde
(SUS), fundado nos princípios de solidariedade e universalidade.
A criação da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde se inscreveu
nesse processo de desenvolvimento da Reforma Sanitária. Integrada por 16 expressivas li-
deranças de nossa vida social, cultural, científica e empresarial, sua constituição diversificada
é uma expressão do reconhecimento de que a saúde é um bem público construído com a
participação solidária de todos os setores da sociedade brasileira.
No início de 2008, a Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde apre-
sentou o seu relatório final, contendo diversas recomendações com ênfase na necessidade da
criação de espaços institucionais para o enfrentamento dos determinantes sociais da saúde,
sobretudo visando a integrar a ação de diversos setores governamentais e da sociedade.
Segundo o relatório, as intervenções sobre os DSS com o objetivo de promover a equi-
dade em saúde devem contemplar os diversos níveis assinalados no modelo de Dahlgreen e
Whitehead (1991), ou seja, devem incidir sobre os determinantes ‘proximais’, vinculados aos
comportamentos individuais, ‘intermediários’, relacionados às condições de vida e trabalho,
e ‘distais’, referentes à macroestrutura econômica, social e cultural.
São exemplos dessas intervenções:
• políticas macroeconômicas e de mercado de trabalho, de proteção ambiental e de
promoção de uma cultura de paz e solidariedade que visem a promover um desenvol-
vimento sustentável, reduzindo as desigualdades sociais e econômicas, as violências, a
degradação ambiental e seus efeitos sobre a sociedade;
• políticas que assegurem a melhoria das condições de vida da população, garantindo
a todos o acesso à água limpa, a esgoto, habitação adequada, ambientes de trabalho
saudáveis, serviços de saúde e de educação de qualidade, superando abordagens
setoriais fragmentadas e promovendo uma ação planejada e integrada dos diversos
níveis da administração pública;
• políticas que favoreçam ações de promoção da saúde, buscando estreitar relações
de solidariedade e confiança, construir redes de apoio e fortalecer a organização e a
participação das pessoas e das comunidades em ações coletivas para melhoria de suas
condições de saúde e bem-estar, especialmente dos grupos sociais vulneráveis;
• políticas que favoreçam mudanças de comportamento para a redução de riscos e para
o aumento da qualidade de vida mediante programas educativos, comunicação social,
Para que as intervenções nos diversos níveis do modelo de Dahlgren e Whitehead (1991)
sejam viáveis, efetivas e sustentáveis, devem estar fundamentadas em três pilares básicos: a
intersetorialidade, a participação social e as evidências científicas (Figura 3).
Uma vez que a atuação sobre os diversos níveis dos DSS extrapola as competências e
atribuições das instituições de saúde, torna-se obrigatória a ação coordenada dos diversos
setores e instâncias governamentais. Com vistas a institucionalizar um processo sustentável
de coordenação das ações intersetoriais sobre os determinantes sociais da saúde que permita
superar os problemas de baixa articulação anteriormente mencionados, a CNDSS recomenda
estabelecer no âmbito da Casa Civil da Presidência da República uma Câmara de Ações Inter-
setoriais para Promoção da Saúde e Qualidade de Vida com a responsabilidade de realizar o
seguimento e a avaliação de projetos, programas, intervenções ou políticas relacionadas aos
DSS desenvolvidas pelas diversas instâncias nela representadas. Deverá também propor à
Casa Civil mecanismos de coordenação das ações em curso, constituindo-se numa instância de
revisão e aprovação dessas ações, segundo seu impacto na saúde, além de elaborar projetos
e captar recursos para a implantação de novas intervenções intersetoriais sobre os DSS de
caráter estratégico. A câmara seria coordenada pela Casa Civil da Presidência da República
e o Ministério da Saúde, devendo funcionar como a sua Secretaria Técnica/Executiva.
Recomendou-se, num primeiro momento, prioridade às ações intersetoriais relaciona-
das à promoção da saúde na infância e na adolescência – respondendo à atual mobilização
da sociedade com relação ao tema – e ao fortalecimento das redes de municípios saudá-
veis já existentes no país, por meio de um programa continuado de disseminação seletiva
de informações, capacitação de gestores municipais e criação de oportunidades e espaços de
interação entre gestores para intercâmbio e avaliação de experiências relacionadas aos DSS.
Ademais, foi proposto o fortalecimento de duas outras estratégias da promoção da saúde,
experimentadas com sucesso em diferentes contextos: as escolas promotoras da saúde e os
ambientes de trabalho saudáveis.
Para a produção regular de evidências científicas sobre os DSS, sugeriu-se a criação
de um programa conjunto do Ministério da Ciência e Tecnologia e do Ministério da Saúde
para apoio, por meio de editais periódicos, de projetos de pesquisa sobre DSS e estabele-
cimento de redes de intercâmbio e colaboração entre pesquisadores e gestores, visando ao
seguimento dos projetos e à utilização de resultados. Sugeriu-se também estabelecer no
nível da Rede Interagencial de Informações para a Saúde (Ripsa) um capítulo sobre dados
e informações relativos aos DSS, incluindo um conjunto de indicadores para monitoramento
das iniquidades de saúde e para avaliação de impacto de ações intersetoriais sobre a saúde.
Para a promoção da participação social, com vistas a conferir a necessária base de
apoio político às ações sobre os determinantes sociais da saúde e para ‘empoderar’ os gru-
pos populacionais vulneráveis, de maneira que possam participar das decisões relativas à
sua saúde e bem-estar, foi reiterada a necessidade de fortalecer os mecanismos de gestão
participativa, principalmente os Conselhos Municipais de Saúde, por meio de ações de
disseminação intensiva de informações pertinentes e capacitação de lideranças comunitá-
rias com relação aos DSS, além de fortalecer as ações de comunicação social referentes aos
determinantes sociais da saúde.
Iniciativas como essas da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde
contribuem para a ação coordenada dos diversos setores governamentais com participação
social, condição necessária para enfrentar as determinações econômicas e sociais mais gerais
dos processos saúde-enfermidade.
Contudo, o processo de estabelecimento de uma agenda internacional sobre DSS não
estancou. Em maio de 2009, a Assembleia Mundial da Saúde aprovou proposta da delega-
ção brasileira de convocação de uma Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da
Saúde (WHO, 2009), que se realizou no Rio de Janeiro, de 19 a 21 de outubro de 2011, sob
os auspícios da Organização Mundial da Saúde e do governo brasileiro.
Na Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde (CMDSS) estiveram
presentes 125 países, dos quais mais de sessenta foram representados por seus próprios
ministros da Saúde e os demais por altos funcionários deste e de outros ministérios, como
de Relações Exteriores ou Desenvolvimento. Outras agências das Nações Unidas e centenas
de organizações não governamentais (ONGs) e ativistas do mundo todo também se fizeram
presentes.
Uma série de documentos foi elaborada e difundida em preparação à Conferência
(WHO, 2011a, 2011b, 2011c; Blas & Kurup, 2010). Consultas regionais e nos países foram
organizadas para mobilizar a participação e colher subsídios para a Conferência. Na região
das Américas, por exemplo, a consulta regional foi feita na Costa Rica, em junho de 2011;
a consulta nacional brasileira foi realizada no Rio de Janeiro, em agosto de 2011, com mais
de duzentos participantes presenciais e com centenas de participantes via virtual, por meio
do Canal Saúde, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Por ocasião da CMDSS, o Brasil esteve representado por numerosa delegação gover-
namental e da sociedade civil, liderada pelo vice-presidente da República e pelos ministros
da Saúde e das Relações Exteriores. Outros ministros e funcionários de alto nível de outros
ministérios, assim como autoridades estaduais e municipais, participaram do evento.
Uma série de plenárias centrais e paralelas simultâneas abordou as mais diversas di-
mensões dos determinantes sociais da saúde, retratadas no Informe Final da Conferência
e num sumário dela (WHO, 2011d). Também foram realizados diversos vídeos disponíveis
no site da CMDSS, no portal da OMS (WHO, 2012a).
Um site sobre a CMDSS está disponível no portal da Organização Mundial da Saúde: <www.who.
int/sdhconference/en>. A Declaração da Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da
Saúde e todos os demais documentos essenciais da Conferência estão disponíveis em português
no portal da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) sobre Determinantes Sociais da Saúde: <http://
dssbr.org/site/>. Consulte os documentos e acompanhe o debate sobre determinantes sociais da
saúde no Brasil.
• a atual crise econômica e financeira global demanda a adoção urgente de medidas para
reduzir as crescentes iniquidades em saúde e para prevenir a piora nas condições de
vida e a deterioração de sistemas universais de saúde e de seguridade social;
• a ação sobre os determinantes sociais da saúde deve ser adaptada aos contextos na-
cionais e subnacionais de cada país e região para que sejam levados em consideração
os diferentes sistemas sociais, culturais e econômicos, mas assinalam que evidências
resultantes de pesquisas e experiências têm mostrado características comuns nas po-
líticas e ações bem-sucedidas sobre os determinantes sociais da saúde.
Sarah Escorel
uma fase de grande crescimento na economia, cujos resultados eram usados para mascarar
a falta de liberdade. A teoria formulada naquele momento de ‘esperar o bolo crescer para
depois dividir’ apresentaria seus resultados no aumento da desigualdade social.
Na análise de Guillermo O’Donnell (1982), os regimes autoritário-burocráticos
caracterizam-se, em sua primeira fase, por ter duas grandes tarefas a cumprir: restaurar a
ordem na sociedade – o que significa reprimir toda e qualquer discordância – e normalizar
a economia, geralmente por meio de arrocho salarial e da transnacionalização crescente
da estrutura produtiva. O tripé sobre o qual se sustentou o regime autoritário-burocrático
brasileiro estava constituído pelo capital internacional, o grande capital nacional e a tecno-
burocracia civil e militar. Embora existisse muito antes da ditadura militar, foi nesse regime
que a tecnoburocracia se expandiu, desempenhando um papel não apenas técnico e admi-
nistrativo, mas também político.
O processo de modernização autoritária levado a cabo durante a primeira década
do regime militar, subordinado aos interesses do grande capital multinacional e nacional,
promoveu uma grande reestruturação do aparelho de Estado por meio das reformas finan-
ceira e fiscal de 1964 e 1965, previdenciária em 1966 e tributária e administrativa em 1967.
As reformas administrativa e tributária diminuíram a participação dos gastos públicos no
Produto Interno Bruto (PIB). Os investimentos na infraestrutura econômica aumentaram
enquanto diminuíram os gastos com as políticas sociais. Foi realizada uma centralização fi-
nanceira no governo federal, esvaziando o papel dos estados e municípios, e estes passaram
a depender da transferência de recursos realizada pela União. Todas essas reformas, feitas
sob a égide de modernizar os aparelhos de Estado, tinham como principal objetivo favorecer
a acumulação capitalista, não apenas facilitando esse processo como também submetendo
o Estado às regras do capital privado (Teixeira et al., 1988).
Baseados em Singer (1976) e Tavares e Assis (1985), Sonia Fleury Teixeira e colabo-
radores (1988) identificam que, na medida em que as reformas conseguiram normalizar a
economia, mas não acelerar o crescimento, a partir de 1968 foi implementada uma política
de expansão do crédito. A construção civil através do Banco Nacional da Habitação (BNH),
a indústria automobilística e outras indústrias de bens duráveis de consumo, como eletro-
domésticos, experimentaram forte expansão entre 1968 e 1971. O capital internacional
encontrava no país as condições ideais para investimento: mão de obra abundante, salários
baixos e repressão à atividade política e à organização sindical. Por outro lado, a entrada de
recursos externos estava associada à política econômica que trocou o modelo de substituição
de importações pela prioridade às exportações. A agricultura familiar e de subsistência foi
substituída por projetos agroindustriais voltados para o mercado externo. A política gover-
namental de isenções e subvenções fiscais e a conjuntura favorável no mercado mundial
conseguiram quadruplicar o volume de exportações entre 1967 e 1973.
Nesse período de ‘milagre econômico’, em que o PIB cresceu a uma média anual de
10%, aumentou também o endividamento externo. A partir de 1973, começaram a surgir
problemas na continuidade dessa política econômica devido aos limites da infraestrutura
física e, em 1974, os efeitos da primeira crise do petróleo indicaram que a estratégia de
‘crescer para fora’ estava esgotada.
O saldo dos dez anos de regime militar foi a concentração de renda, o arrocho salarial,
com perda do poder aquisitivo do salário mínimo, o aumento dos preços, a diminuição da
326 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
Até 1964, a assistência médica previdenciária era prestada, principalmente, pela rede
de serviços próprios dos IAPs, composta por hospitais, ambulatórios e consultórios médicos.
A partir da criação do INPS, alegando a incapacidade de a rede própria de serviços forne-
cer assistência médica a todos os beneficiários, foi priorizada a contratação de serviços de
terceiros, no modelo adotado pelo Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários
(IAPI). A orientação de privilegiar o setor privado de serviços de saúde foi, no âmbito da
previdência social, a expressão da diretriz estabelecida na Constituição de 1967 e reiterada
na Constituição de 1969, consubstanciada no decreto-lei n. 200/1968, sobre a Reforma
Administrativa. Esta preconizava em cada ministério o abandono das ações executivas, em
benefício do setor privado, com restrição das atividades, na medida do possível, ao nível
normativo (Oliveira & Teixeira, 1986).
Os anéis ou elos, que ligaram segmentos da burocracia estatal previdenciária a órgãos como
a Federação Brasileira de Hospitais (FBH), fundada em 1964, e a Associação Brasileira de
Medicina de Grupo (Abramge), associaram interesses e poder no sentido de garantir o pro-
jeto político-ideológico da compra de serviços médicos a particulares. Estas duas entidades
progressivamente [até 1979] deslocariam o poder político da Associação Médica Brasileira
(AMB), que representa a tendência ideológica da Medicina Liberal. (Cordeiro, 1980: 162)
rios, era feita por meio de credenciamento e remunerada por Unidades de Serviço (US),
modalidade de pagamento denominada por Carlos Gentile de Mello (1981) como “fator
incontrolável de corrupção”. Na medida em que os preços tabelados em US eram baixos e
na ânsia de tornar a medicina uma atividade lucrativa, os serviços inventavam pacientes ou
ações que não tinham sido praticadas ou ainda escolhiam fazer apenas aquelas que eram
mais bem remuneradas, como o parto por cesariana em vez do parto normal. O estímulo
à iniciativa privada pode ser evidenciado no aumento do número de leitos privados lu-
crativos: em 1960, 14,4% do total de leitos eram privados e, em 1971, esse número subiu
para 44% (Cordeiro, 1980).
Outra modalidade de atenção à saúde sustentada pela previdência social, que passou
a ser expressiva nesse período, refere-se aos convênios com empresas, a chamada ‘medicina
de grupo’. Nesses convênios, a empresa passava a ficar responsável pela assistência médica
aos seus empregados e, dessa forma, deixava de contribuir para o INPS. Para prestar servi-
ços de saúde aos seus trabalhadores, contratava uma empresa médica (ou de ‘medicina de
grupo’ ou ‘grupo médico’) pagando antecipadamente (pré-pagamento) um valor fixo por
trabalhador a cada mês. A medicina de grupo, orientada pelo lucro, tinha total interesse em
diminuir a quantidade de serviços prestados e baratear os custos desses serviços.
Esse tipo de convênio, incorporado na previdência social a partir de 1964, teve um
crescimento muito rápido, concentrando-se em empresas com média salarial elevada, loca-
lizadas, principalmente, no estado de São Paulo. “Em 1977 existiam 4.699 convênios desse
tipo abrangendo 1.801.082 segurados que, com seus dependentes, perfaziam o total de
4.337.187 beneficiários, ou seja, cerca de 10% da população previdenciária da época (segu-
rados: 17.900.000 e beneficiários: 59.300.000)” (Oliveira & Teixeira, 1986: 228).
Entretanto, a previdência social continuava a atender os empregados dessas empre-
sas nos casos mais complexos ou que exigiam mais tempo de internação. Essa modalidade
previdenciária destinada à elite da força de trabalho brasileira segmentou ainda mais os
beneficiários que estavam separados em três programas distintos: o Ipase, para os funcio-
nários públicos; o INPS, para os trabalhadores urbanos; e o Funrural, para os trabalhadores
rurais. Em 1976, toda a legislação previdenciária foi estabelecida na Consolidação das Leis
da Previdência Social (CLPS).
Para refletir
Devido ao fato de a previdência social ter privilegiado o setor privado prestador de serviços du-
rante a década de 1970, quais repercussões podem ser identificadas até os dias atuais na estrutura
de oferta de serviços de saúde do SUS?
Ainda no âmbito da saúde pública, a primeira década do regime militar deixou suas
marcas no episódio conhecido como ‘massacre de Manguinhos’ (Lent, 1978). Em 1964,
o pesquisador Rocha Lagoa foi nomeado pelo governo militar como diretor do Instituto
Oswaldo Cruz (IOC). Sob falsas acusações, o diretor e seus auxiliares empreenderam uma
série de perseguições a diversos pesquisadores, inclusive rejeitando financiamentos obtidos
por influência pessoal dos pesquisadores junto a órgãos nacionais e internacionais, como foi
o caso de Walter Oswaldo Cruz. Acusado de fazer proselitismo político contrário ao diretor
do instituto e ao regime militar, esse pesquisador teve seu laboratório fechado, falecendo,
prematuramente, em janeiro de 1967.
Em 1º de abril de 1970, o então ministro da Saúde, Rocha Lagoa, conseguiu, sob o
manto do AI-5, cassar os direitos políticos de dez cientistas do IOC. Eles foram sumariamen-
te aposentados e impedidos de lecionar e pesquisar em qualquer centro científico do país.
Ainda mais, não poderiam exercer qualquer atividade em instituição de ensino ou pesquisa
particular que recebesse financiamento do governo, o que levou muitos deles a emigrar.
A partir desse momento, a instituição entraria em um período de decadência revertida
a partir de 1975. A reintegração dos cassados de Manguinhos foi realizada em 1985, pelo
então presidente da Fundação Oswaldo Cruz, Sergio Arouca, em cerimônia simbólica em
frente ao castelo da instituição, com a presença do presidente da República, José Sarney, e
do presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães.
A tese de doutorado de Maria Cecília Donnangelo, orientada por Luiz Pereira, defendida em 1973
e publicada em 1975 (Medicina e Sociedade: o médico e seu mercado de trabalho), é o trabalho seminal
sobre as práticas médicas no Brasil. Nesse trabalho, a professora analisa “as formas pelas quais o
médico, enquanto trabalhador especializado, participa do mercado e se relaciona com o conjunto
de meios de produção de serviços de saúde”.
A tese de livre-docência, defendida em 1976, estuda a “medicina como prática social articulada a
outras práticas, em uma específica estrutura social, e a constituição do campo da medicina comu-
História das Políticas de Saúde no Brasil de 1964 a 1990 331
nitária, por referência às formas assumidas, em determinadas sociedades, em suas relações com
a política de bem-estar social”. Esta tese foi publicada em 1979, com o título Saúde e Sociedade,
contendo também um apêndice, “Capitalismo e saúde”, escrito por Luiz Pereira, com base nas
notas elaboradas para a arguição oral de Donnangelo. Para conhecer mais sobre a obra de Don-
nangelo, leia o artigo de Everardo Duarte Nunes, “Cecília Donnangelo: pioneira na construção
teórica de um pensamento social em saúde” (2008).
Experiências alternativas
Alames
A Associação Latinoamericana de Medicina Social foi constituída em 1984, no III Seminário de
Medicina Social (Ouro Preto, MG), como produto da confluência do pensamento crítico em saúde
e das lutas dos povos latino-americanos em defesa de sua saúde, com o objetivo de aprofundar
o conhecimento das relações entre saúde e sociedade. A Alames se define como um movimento
social, acadêmico e político com uma perspectiva de desenvolvimento da saúde pública e da
medicina social orientada para a resolução dos determinantes sócio-históricos do processo saúde-
doença. Desde a sua criação, a associação foi ampliando sua presença no cenário científico e da
política de saúde na América Latina, avançando na sua constituição como espaço de debate das
problemáticas atuais de saúde da região em seus seminários e congressos (Medellín, 1988; Cara-
cas, 1991; Guadalajara, 1994; Buenos Aires, 1997; Havana, 2000; Lima, 2004; Salvador, 2007).
A Alames está formada por vários núcleos e seus membros integram diversos movimentos sociais
e organizações de cidadãos em defesa do direito à saúde e trabalham nas instituições de saúde
impulsionando a formação de sistemas únicos, públicos e gratuitos de saúde (www.alames.org;
http://alamesuy.blogspot.co.uk).
pela Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp). Distinguia-se das duas outras correntes por
uma produção teórica que considera o social como determinante das condições de saúde,
e por apontar a necessária prática do profissional da saúde como sujeito da transformação
pretendida. Assim, com essa proposta que ainda não chegava a constituir um movimento,
iniciou-se uma luta pela hegemonia no interior do próprio ‘movimento preventivista’, con-
testando tanto os sanitaristas tradicionais quanto os racionalizadores.
Jairnilson Paim (1981) considera que as bases teóricas da saúde coletiva no Brasil já
estavam desenvolvidas antes do início da segunda metade da década de 1970, com as defe-
sas das teses Medicina e Sociedade: o médico e seu mercado de trabalho, de Cecília Donnangelo, e
O Dilema Preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva, de Sergio
Arouca. A teoria social da medicina adotou como conceitos básicos a determinação social da
doença, a historicidade do conceito saúde-doença, o processo de trabalho, a medicina como
prática social, o poder médico e a medicalização. Como conceitos estratégicos, a abordagem
médico-social adotaria a prática política e a consciência sanitária como parte da consciência
social, visando a uma transformação social.
Buscando um relacionamento entre a produção do conhecimento e a prática política,
as bases universitárias – a academia – tomaram o campo das políticas públicas como arena
privilegiada de atuação e, nesse sentido, o movimento sanitário começou a constituir-se
como tal. Sua organização transcenderia seu objeto específico, ao envolver-se nas lutas mais
gerais daquele momento: a democratização do país e o fortalecimento das organizações da
sociedade civil.
A divisão de ‘territórios’ traçada neste plano foi consolidada, no ano seguinte, na lei
6.229 do Sistema Nacional de Saúde, que constituiu, segundo Eugênio Vilaça Mendes, o
Tratado de Tordesilhas da saúde.
A proposta do II PND de priorizar o setor saúde no campo social teve seu equivalente
financeiro a partir de 1975, quando, comparativamente aos anos anteriores, os recursos do
Ministério da Saúde aumentaram e, na área previdenciária, a unificação e centralização de
recursos deram a aparência de um superávit em relação à demanda. Desta forma, o II PND
possibilitou abrir espaços institucionais para o desenvolvimento de projetos que terminaram
por absorver intelectuais e técnicos de oposição ao governo militar.
Diretamente vinculados ao II PND, surgiram nessa conjuntura três espaços institu-
cionais que chamamos (Escorel, 1999) de ‘estímulos oficiais’ à estruturação/articulação do
movimento sanitário: o setor saúde do Centro Nacional de Recursos Humanos do Instituto
de Pesquisa Econômica e Aplicada (CNRH/Ipea), a Financiadora de Estudos e Projetos (Fi-
nep) e o Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde da Opas (PPREPS/Opas).
Essas três frentes institucionais articularam uma rede de sustentação de projetos e pessoas,
financiando pesquisas, contratando profissionais, promovendo a articulação com as secretarias
estaduais de Saúde, elaborando propostas alternativas de organização dos serviços de saúde
e de desenvolvimento de recursos humanos. Constituíram, portanto, as bases institucionais
que estimularam o movimento sanitário em seu processo de articulação e crescimento.
As políticas de saúde têm grande relevância na conjuntura inaugurada em 1974, ca-
racterizada também por uma ‘crise sanitária’ na qual a epidemia de meningite, as denúncias
do aumento da mortalidade infantil em São Paulo, a ‘epidemia’ de acidentes de trabalho, o
reaparecimento de antigos problemas de saúde pública se traduziam em notícias diárias nos
História das Políticas de Saúde no Brasil de 1964 a 1990 337
Além do conflito ‘externo’, o grupo novo do Ministério da Saúde travou sérios emba-
tes internos contra os grupos mais conservadores representados administrativamente por
órgãos como a Sucam, a Fsesp e a Secretaria Nacional de Saúde. Na tentativa de sobreviver,
o grupo racionalizador adotou uma proposta de atuação cujo corpo doutrinário era o da
medicina comunitária e de extensão de cobertura difundido pelos organismos internacio-
nais – programas fundamentados nos conceitos de regionalização, hierarquização, integração
dos serviços, cuidados primários a cargo de auxiliares de saúde e participação comunitária,
coerentes com a proposta formulada em 1972 na III Reunião Especial de Ministros de
Saúde das Américas.
Tentando recuperar o papel de coordenador da política de saúde no que diz respeito
ao desenvolvimento de programas, o Ministério da Saúde adotou a estratégia de atuar em
áreas de ‘conflito não conflagrado’ com os interesses hegemônicos. Entre os instrumentos
utilizados, destacaram-se a recuperação da Conferência Nacional de Saúde, a implementação
de programas inovadores e a tentativa de estabelecimento de mecanismos de coordenação
política do setor saúde.
Nos anos Geisel, foram realizadas a 5ª e a 6ª Conferências Nacionais de Saúde, em
1975 e 1977, respectivamente. O tema central da 5ª CNS foi o Sistema Nacional de Saúde e
tinha como objetivo a elaboração de uma política nacional de saúde para ser submetida ao
CDS. Essa conferência foi utilizada para legitimar, dentro de uma base restrita de técnicos,
profissionais e funcionários das instituições – particularmente do ministério e de secretarias
de Saúde –, a dicotomia legalizada da atenção à saúde no país. Contudo, teve o efeito de
legitimar, em uma base suficiente e necessária, as propostas que envolviam a atenção à saúde
das populações marginais, que previam a participação comunitária. A partir desse momento,
o Ministério da Saúde procurou implementar programas de extensão de cobertura, preocu-
pado basicamente com as áreas rurais e a difusão de seus programas tradicionais. O exemplo
maior dos programas de extensão de cobertura desenvolvidos nesse período foi o Programa
de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento (Piass). O Ministério da Saúde também
desenvolveu nesse período o Programa Nacional de Saúde Materno-Infantil, a Campanha
da Meningite, o Programa Nacional de Imunizações (PNI), o Sistema Nacional de Vigilância
Epidemiológica, a Rede de Laboratórios de Saúde Pública, o Programa Especial de Controle
da Esquistossomose, o Programa Nacional de Alimentação e Nutrição e a chamada Política
Nacional de Saúde, documento apresentado na 6ª CNS (Paim, 2008).
Em 1977, realizou-se a 6ª CNS, que discutiu a situação das grandes endemias, a opera-
cionalização de novas leis aprovadas pelo governo federal no campo da saúde, a interiorização
dos serviços de saúde e a política nacional de saúde. Menos concorrida que a conferência
anterior, nem por isso os debates foram menos acalorados. A tentativa de regulamentação
do SNS sob uma ótica pretensamente ‘neutra’ e sistêmica pelo Ministério da Saúde desen-
cadeou intensos conflitos com técnicos defensores do setor público.
Com o objetivo de promover a articulação entre o Ministério da Saúde e o MPAS
e regulamentar a lei n. 6.229, foi criada, em 1976, a Comissão Permanente de Consulta
(CPC), cuja atuação, entretanto, foi muito pequena e suplantada por outro mecanismo de
coordenação e articulação interinstitucional, o Grupo Executivo Interministerial (Gein),
criado para o desenvolvimento do Piass.
História das Políticas de Saúde no Brasil de 1964 a 1990 341
Reforma Sanitária
Reforma Sanitária, nos palavras de Sergio Arouca (1988), é um “projeto civilizatório” contendo
em si os valores que queremos para toda a sociedade brasileira. Compreende um processo de
transformação da situação sanitária em pelo menos quatro dimensões: específica, que corres-
ponde ao fenômeno saúde/doença; institucional; ideológica; e das relações sociais que orientam
a produção e distribuição de riquezas.
Jairnilson Paim dedicou-se a estudar a Reforma Sanitária brasileira (2008), examinando-a como
um ciclo composto por “ideia – proposta – projeto – movimento – processo”. No seu entender a
Reforma Sanitária é “uma reforma social centrada nos seguintes elementos constituintes:
a) democratização da saúde, o que implica a elevação da consciência sanitária sobre saúde e seus
determinantes e o reconhecimento do direito à saúde, inerente à cidadania, garantindo o acesso
universal e igualitário ao Sistema Único de Saúde e participação social no estabelecimento de
políticas e na gestão;
b) democratização do Estado e seus aparelhos, respeitando o pacto federativo, assegurando a
descentralização do processo decisório e o controle social, bem como fomentando a ética e a
transparência nos governos;
c) democratização da sociedade alcançando os espaços de organização econômica e da cultura, seja
na produção e distribuição justa da riqueza e do saber, seja na adoção de uma ‘totalidade de
mudanças’, em torno de um conjunto de políticas públicas e práticas de saúde, seja mediante
uma reforma intelectual e moral” (Paim, 2010: 173-174 – grifos do autor).
do sistema; descentralizar esse sistema; e viabilizar uma real participação popular em todos
os níveis e etapas da política de saúde.
A segunda vertente do movimento sanitário estava constituída pelos movimentos de
Médicos Residentes e de Renovação Médica e distingue-se da vertente anterior por significar
uma atuação política na arena concreta do mundo do trabalho. No final da década de 1970,
existiam intensos conflitos entre a ideologia liberal e a ideologia assalariada trabalhista e
uma nítida divisão de pensamentos (e alianças) no interior da categoria médica, entre os
liberais, os empresários e os assalariados.
A luta pela renovação dos sindicatos, rompendo a barreira de descrédito dessas en-
tidades junto aos médicos, foi um passo à frente na tomada de consciência da categoria,
por se tratar de uma ação coletiva, organizada, que não escamoteou a realidade do assa-
lariamento, e decidiu lutar para melhorar as relações de trabalho através do instrumento
legal de representação nas negociações, mesmo estando os sindicatos atrelados ao Estado.
O movimento expandiu-se por todo o país, a partir de São Paulo e do Rio de Janeiro, não
apenas geograficamente, mas em sua amplitude, pois seus princípios e suas propostas mais
gerais balizaram a organização de oposição aos conselhos regionais e, posteriormente, aos
próprios Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Médica Brasileira (AMB), assim
como às entidades associativas dos demais profissionais da saúde.
Outro marco substancial na expansão do movimento foi a deflagração de greves a cada
ano a partir de 1978, num processo de crescimento numérico e qualitativo, até 1981, quando
ocorreu a greve nacional dos médicos por melhores condições de trabalho e remuneração.
A greve questionava amplamente as condições do mercado de trabalho e a própria política
de saúde e denunciava as más condições da assistência médica.
Nesse processo, o movimento dos Médicos Residentes desempenhou um papel de
vanguarda. Para tal, a Associação Nacional de Médicos Residentes (ANMR), criada em 1967,
abandonou a corrente pedagógica e adotou a corrente trabalhista, buscando o reconheci-
mento profissional da atividade com seus respectivos direitos trabalhistas e tendo como seu
maior apoio os sindicatos conquistados pelos movimentos de Renovação Médica.
Os movimentos dos Residentes e de Renovação Médica participaram juntos também das
lutas mais gerais da sociedade brasileira durante o ano de 1978, em particular, pela anistia
ampla, geral e irrestrita, integrando os subcomitês de saúde do Comitê Brasileiro de Anistia
e participando das vigílias cívicas promovidas em vários estados do país, durante a greve
de fome realizada pelos presos políticos no primeiro semestre desse ano. Os anos Geisel se
encerraram revelando um movimento médico em pleno vigor, crescendo e ampliando seu
espaço de atuação na sociedade brasileira.
A terceira vertente do movimento sanitário estava constituída pela ‘academia’, como é
conhecido o campo de atuação na área de docência e pesquisa. Nela, foi construído o marco
teórico – o referencial ideológico – do movimento, e se formaram os agentes reprodutores
e os novos construtores desse marco. A academia foi a vertente que deu origem ao movi-
mento sanitário e cuja manutenção foi a sua base de consolidação, dando o suporte teórico
às propostas transformadoras.
Entre 1975 e 1979, essa arena apresentou um grande desenvolvimento. Aumenta-
ram em número as instituições que incorporaram a abordagem médico-social à análise
344 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
dos problemas de saúde, e esse enfoque, até então restrito principalmente à região Su-
deste, passou a ter expressão nacional. Verificaram-se, também, a expansão na amplitude
dos objetos de estudo e a diversificação dos temas pesquisados e analisados, tendo como
principal característica o caráter coletivo e interdisciplinar da produção científica. Foi um
período de grande produção intelectual, concomitantemente à incorporação da atuação
política nas pesquisas, nos cursos de pós-graduação e nas articulações com os movimentos
sociais (Escorel, 1999).
Foi uma conjuntura de ‘encontro’: a fase que o regime militar atravessava possibili-
Juan César Garcia tou investimentos importantes, principalmente na área social, com os recursos do Fundo
Garcia foi o maior estimu- Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), e a existência de centros
lador, o principal teórico acadêmicos com uma nova abordagem da saúde propiciou à academia um grande desen-
e o grande articulador do
movimento de medicina volvimento. Os dois grandes produtos dos estímulos financeiros da Finep no Rio de Janeiro
social na América Latina foram diferenciados: de um lado, a concretização de um objetivo de Juan César Garcia,
na década de 1970. A
partir de sua inserção
a consolidação do mestrado em medicina social no IMS/Uerj, criado em 1972, uma pós-
profissional no setor de graduação que formou (como até hoje o faz) profissionais em saúde coletiva, e, de outro
desenvolvimento de re- lado, o financiamento dos Programas de Estudos Socioeconômicos em Saúde (Peses) e do
cursos humanos da Opas,
junto com Miguel Mar- Programa de Estudos Populacionais e Epidemiológicos (Peppe) na Ensp. O Peses teve como
quez, não apenas estimu- produto direto uma série de conhecimentos e, como produto indireto, a articulação de um
lou núcleos acadêmicos a
incorporarem as ciências conjunto de núcleos acadêmicos e de profissionais da saúde espalhados pelo Brasil em uma
sociais à análise dos temas espécie de ‘rede’ de medicina social.
de saúde como também
promoveu a articulação Na área de reprodução do conhecimento, ou seja, na formação de recursos humanos,
entre esses núcleos. No nessa época ocorrem: a descentralização da formação do sanitarista através de cursos re-
Brasil, esteve presente
desde 1969 estabelecendo,
gionalizados; o início do movimento que transformaria as residências em medicina preven-
a partir de 1970, intenso tiva e social; e as pós-graduações stricto sensu na área de saúde coletiva. Todos esses foram
contato, com intercâmbio instrumentos importantes para a consolidação da hegemonia da proposta médico-social na
regular de bibliografia.
Dessa forma, Garcia con- formação de recursos humanos no campo da saúde coletiva. Assim, difundiu-se de maneira
tribuiu com uma grande numericamente importante não só uma nova forma de pensar a saúde como também de
bagagem metodológica
e possibilitou o acesso ao atuar no setor.
que estava sendo elabo- Coerente com o pensamento segundo o qual a saúde é vista como uma prática social,
rado nos grandes centros
de reflexão, quando no portanto sob as mesmas determinações da sociedade e do seu conjunto de práticas, a pro-
país vivia-se sob a censura dução e a reprodução do conhecimento dentro das instituições acadêmicas estavam profun-
e com muitas dificuldades
damente ligadas ao que acontecia e agitava a vida política nacional. E, por isso mesmo, foi
de debate e de atualização.
alvo da repressão que visou à redução da carga horária destinada à medicina preventiva,
ao limite do campo de prática nos serviços de saúde e até impediu a realização de trabalhos
docentes e de pesquisa, como foram os casos de Campinas (1975), Bahia (1976-1979) e
Brasília (1978-1979).
Para refletir
Nos dias atuais, você identifica a atuação dessas três vertentes do movimento sanitário? Qual a
composição de forças políticas e sociais em defesa do direito à saúde e do SUS hoje?
História das Políticas de Saúde no Brasil de 1964 a 1990 345
Experiências institucionais
O Plus, primeira experiência coletiva de um grupo de saúde pública na previdência
social, foi criado para planejar a expansão física dos serviços de saúde previdenciários. Ini-
cialmente de abrangência nacional, logo passou a ser um plano envolvendo as nove regiões
metropolitanas. Seu desenvolvimento ocorreu em três etapas: a criação do grupo de traba-
lho (1975), a assinatura do convênio com o Ipea (1976-1978) e a tentativa de aprofundar
o trabalho ‘mergulhando’ na instituição previdenciária, que entrou rapidamente em crise
(1978-1979). Seus produtos foram os planos de saúde para sete regiões metropolitanas e
para todo o estado da Paraíba. São Paulo foi a única região não estudada. As conclusões
permitiriam localizar as unidades de saúde a serem construídas. Além disso, os documentos
finais traziam evidências do excesso de leitos hospitalares em algumas regiões metropoli-
tanas e sugeriam o descredenciamento de leitos privados e a realização de convênios com
secretarias estaduais e municipais e outras instituições públicas. O Plus foi um palco de luta
no interior do INPS, em que o grupo de saúde pública foi rapidamente derrotado pelos
interesses mercantilistas hegemônicos.
O Projeto Montes Claros foi uma das primeiras possibilidades, em âmbito regional,
de aplicação de diretrizes norteadoras de um modelo alternativo de organização de servi-
ços de saúde. O Sistema Integrado de Prestação de Serviços de Saúde no Norte de Minas,
desenvolvido entre 1975 e 1977, permitiu experimentar os princípios de regionalização,
hierarquização, administração democrática e eficiente, integralidade da assistência à saúde,
atendimento por auxiliares de saúde e participação popular. Para o movimento sanitário,
porém, mais do que o modelo, o PMC demonstrou a exequibilidade de suas propostas e a
sua capacidade em articular-se com outras forças para sustentar politicamente o projeto. A
partir de 1978, o PMC foi incorporado ao Piass.
O Piass foi criado em 1975-1976 para implantar uma estrutura básica de saúde pública
em comunidades de até vinte mil habitantes, na região Nordeste. A rede de serviços estava
composta por três níveis de atuação: elementar, intermediário e de apoio, sendo os dois
primeiros operados por pessoal de nível elementar. A proposta do Piass unia a abordagem
médico-social ao pensamento sanitarista desenvolvimentista, inclusive com a assessoria direta
de Mário Magalhães e de Carlos Gentile de Mello ao grupo do Ipea, visando à extensão
de cobertura por meio de serviços municipais de saúde (Escorel, 2000). O Piass marcou
um ponto importante de inflexão na forma de atuação da Previdência por meio do estabe-
346 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
lecimento de parceria com os governos estaduais. Esse projeto significou, por um lado, a
viabilização e expansão do modelo alternativo já experimentado em Montes Claros e, por
outro, a evidência de que o movimento sanitário, ao final do período (1979), tornara-se um
ator social no cenário da política de saúde.
A visibilidade proporcionada pelo Piass deveu-se à sua abrangência (dez estados), ao
movimento de ampliação do leque de alianças de sustentação – em particular, o aparecimento
da frente política dos secretários estaduais de Saúde que constituiria o Conselho Nacional
de Secretários de Saúde (Conass) – e ao fato de ter significado a primeira participação da
previdência social em um programa de saúde pública. Entre março e outubro de 1979, o
programa ficou paralisado, devido a incertezas institucionais do Ministério da Saúde. Nesse
momento, foi elaborada a proposta de expansão nacional do Piass. A partir de novembro
de 1979, com a mudança ministerial e o começo da gestão Arcoverde, inicia-se a sua última
fase, em que a expansão nacional foi aprovada, mas que dura até 1981, quando o Piass foi
institucionalizado na estrutura do ministério passando a integrar o Programa Nacional de
Serviços Básicos.
Conass
A constituição do Conass teve forte estímulo por parte dos secretários estaduais de Saúde da região
Nordeste, que por intermédio do Piass viveram as experiências de organização e expressão cole-
tiva na correlação de forças setoriais. O Conass começou a ser articulado em 1980 e foi fundado,
em fevereiro de 1982, como entidade de direito privado, sem fins lucrativos, congregando os
secretários estaduais de Saúde e seus substitutos legais. Tem como órgãos diretivos a Assembleia
Geral, a Diretoria e a Comissão Fiscal. Possui ainda um Comitê Consultivo, uma Secretaria Exe-
cutiva e as Câmaras Técnicas como órgãos de assessoria técnica. Na Assembleia Geral realizada,
no mínimo, seis vezes por ano, são eleitos os cinco membros efetivos da Diretoria, um de cada
região do país, sendo um deles presidente e os demais vice-presidentes, com mandatos de um
ano, podendo ser reconduzidos. O acompanhamento das atividades do Conass pode ser feito em
sua página virtual: <www.conass.org.br>.
Fonte: Conass, 2002.
Por ser uma proposta racionalizadora, que favorecia o setor público, e de cunho demo-
cratizante ao incluir a participação comunitária, o programa enfrentou enormes resistências
dos setores privatizantes e conservadores, da previdência social e do próprio Ministério da
Saúde, que exigiram a sua reformulação. Um mês após a primeira versão, em setembro
de 1980, foi apresentada uma segunda versão que tampouco foi aprovada e, assim, após
sucessivas versões – que chegaram a ser doze –, o Prevsaúde foi engavetado no começo de
350 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
1981. Ao final de algumas versões, o Prevsaúde havia se afastado tanto de suas proposições
originais que Gentile de Mello o chamava de ‘natimorto’ (Rodriguez Neto, 2003).
Em 1981, tornou-se pública a ‘crise da previdência’. A estrutural contradição finan-
ceira da previdência social foi se agravando, atenuada em certos momentos por medidas
paliativas, até que, com a recessão econômica, nesse ano, estourou a crise evidenciada no
grande déficit financeiro. Enquanto uns atribuíam o fato à erosão das receitas, decorrente
da diminuição das contribuições salariais devido ao desemprego e ao arrocho salarial con-
sequentes à recessão econômica, outros argumentavam que o problema estava localizado
na assistência médica previdenciária – na sua expansão e na falta de controle dos gastos
realizados, primordialmente, com a compra de serviços ao setor privado.
Entre a criação do INPS em 1967 e o início da década de 1980, o número de contri-
buintes do sistema previdenciário passou de 7 milhões para 24 milhões, concentrados nos
setores secundário e terciário da produção e localizados nas áreas urbanas (Ribeiro, 1983).
Entretanto, na primeira metade da década de 1980, os gastos do Tesouro Federal com saúde
diminuíram, assim como os gastos do Inamps, que apenas em 1986 retornaram ao patamar
de 1980. Em 1982, os gastos com assistência médico-hospitalar representavam 20% do total
dos gastos da previdência social, uma diminuição importante comparando-se aos 30% dos
gastos em 1976.
Diante da crise, o governo federal lançou, em novembro de 1981, o ‘pacote da previ-
dência’, que previa o aumento das alíquotas de contribuição, a diminuição dos benefícios dos
aposentados e a criação do Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária
(Conasp), para propor alternativas racionalizadoras que conseguissem conter os gastos da
previdência social com assistência médica (Rodriguez Neto, 2003).
O Conasp, órgão do MPAS, era presidido por Aloysio Salles e integrado por 14 mem-
bros escolhidos pelo próprio presidente da República a partir de listas quíntuplas elaboradas
pelos ministérios e organismos representativos. Participavam representantes do governo
federal (Previdência e Assistência Social, Saúde, Trabalho, Educação e Cultura, Fazenda,
Desburocratização e Planejamento); patronais (Confederações Nacionais do Comércio, da
Agricultura e da Indústria); dos trabalhadores (Confederações Nacionais dos Trabalhadores
da Indústria, do Comércio e da Agricultura); e dos médicos (CFM).
Na análise de Eleutério Rodriguez Neto, integrante da Secretaria Executiva, no Conasp
estavam representadas quatro tendências principais no que diz respeito às concepções do
sistema de saúde e suas estratégias organizativas. A ‘conservadora-privatista’, representada
pela Confederação Nacional do Comércio, à qual estava filiada a Federação Brasileira de Hos-
pitais (FBH), defendia a manutenção do modelo assistencial vigente, ampliando os recursos
e melhorando a fiscalização. A segunda tendência, ‘modernizante-privatista’, representada
pela Secretaria de Planejamento da Presidência da República, defendia a organização do
sistema nacional de saúde com base na medicina de grupo e pagamento direto dos usuários.
Ao setor público caberia a responsabilidade da atenção à saúde das populações marginali-
zadas e ações específicas de saúde pública.
O representante do Ministério da Saúde e os técnicos da Secretaria Executiva do
Conasp apresentavam uma terceira tendência, de ‘perspectiva estatizante’, que defendia a
responsabilidade estatal pela execução dos serviços de saúde. A quarta tendência, majoritária,
tinha um caráter ‘liberal’: defendia a primazia do setor público e o controle do setor priva-
História das Políticas de Saúde no Brasil de 1964 a 1990 351
do, mas buscava formas harmoniosas e eficientes de convívio dos dois setores ao interior do
sistema nacional de saúde, combatendo o mercantilismo. Essa era a tendência do próprio
presidente do Conasp, assim como do MEC, CFM, Confederação Nacional da Agricultura
(CNA), Confederação Nacional da Indústria (CNI), Confederação Nacional de Trabalhadores
da Indústria (CNTI), Confederação Nacional de Trabalhadores da Agricultura (CNTA) e
Confederação Nacional de Trabalhadores do Comércio (CNTC).
A previdência tentou, através do Inamps, controlar os gastos com assistência médico-
hospitalar utilizando dois mecanismos: fiscalização de contas mais rigorosa e a redução
progressiva dos valores pagos pelos atos médico-hospitalares e diárias (Ribeiro, 1983). O
primeiro produto do Conasp foi o estabelecimento de parâmetros assistenciais. Por inter-
médio da portaria MPAS 3.046/82, foram instituídas normas de padronização do número
de consultas médicas, exames, de cobertura e de concentração de serviços.
Em agosto de 1982, foi aprovado o Plano de Reorientação da Assistência à Saúde no
Âmbito da Previdência Social, documento conhecido como Plano do Conasp, composto por
três grandes eixos:
Para implementar o plano, Aloysio Salles, presidente do Conasp, foi convidado para
presidir o Inamps. O plano do Conasp foi traduzido institucionalmente pela direção geral
do Inamps em uma proposta de ação envolvendo 33 projetos e programas – dentre os quais
o Programa de Ações Integradas de Saúde (PAIS), que consubstanciava a proposta de convê-
nio trilateral. A partir do segundo semestre de 1983, o PAIS passou a ser implementado em
alguns estados do Brasil por intermédio de convênios e termos aditivos, desenvolvendo-se
em um contexto institucional que refletia de forma particular a crise governamental, com
a falta de recursos financeiros e de coordenação por parte do governo.
Além dessas dificuldades, a proposta enfrentou resistências dentro do aparelho de
Estado fortemente hegemonizado pelas posturas privatizantes. Representantes orgânicos e
independentes desses interesses ocupavam cargos importantes na direção geral do Inamps
e priorizavam a implementação das propostas relativas ao setor privado (novo sistema de
contas hospitalares e o projeto de racionalização ambulatorial), em detrimento da assinatura
de convênios com os governos estaduais eleitos diretamente e recém-empossados. Mesmo
assim, em maio de 1984, todos os estados brasileiros haviam assinado os convênios.
Com o PAIS inicia-se o processo de universalização da assistência médica. As prefeitu-
ras passaram a receber por produção e, financiadas pelo Inamps, ofereceram atendimento
352 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
A partir das AIS, a história da política de saúde deixa de narrar aquilo que vinha sendo
realizado por cada um dos ministérios e passa a centrar-se na implementação de propostas
de articulação interinstitucional e nas estratégias para a unificação do sistema de saúde.
Nem por isso os conflitos entre Ministério da Saúde e Ministério da Previdência e Assistência
Social deixaram de existir. Por exemplo, na contramão das propostas de universalização e
publicização do sistema de saúde, em gestação no âmbito do Conasp, o Ministério da Saúde,
entre março e abril de 1982, apresentou a proposta de criação de um Sistema Nacional de
Saúde. O documento elaborado pelo Grupo Saúde do CNRH/Ipea reunia as diferentes mo-
dalidades de prestação de serviços em três grandes subsistemas: privado autônomo, ou seja,
a medicina liberal independente de contratos e convênios governamentais; subsistema de
assistência à saúde delegado, equivalente à modalidade de convênio empresa; e subsistema
de assistência à saúde de responsabilidade pública, correspondendo ao conjunto de serviços
públicos e privados contratados. “A argumentação era de que seria um ‘atraso’ em relação
ao modelo econômico vigente e em processo de modernização apostar no desenvolvimento
do setor público” (Rodriguez Neto, 2003: 42-43).
A partir de 1980, os dias nacionais de vacinação, inicialmente contra a poliomielite,
alcançaram sucesso no controle desta e de outras infecções. O Programa Nacional de Imu-
nizações havia sido institucionalizado em 1973, porém a disputa entre ‘campanhistas’ e
defensores da vacinação como atividade de rotina retardou, entre 1974 e 1979, o desenvol-
vimento do programa. A estruturação da política de imunização teve repercussões positivas
na Fiocruz, com a criação de Bio-Manguinhos, em 1976, e do Instituto Nacional de Controle
da Qualidade em Saúde (INCQS), em 1981 (Ponte, 2010b).
No âmbito da academia, a partir de 1979, as residências em medicina preventiva e so-
cial tiveram grande desenvolvimento com o Programa de Apoio às Residências de Medicina
Social, Preventiva e Saúde Pública (PAR). O PAR resultou de entendimentos entre Inamps,
Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) e Fiocruz para atender as necessidades de
uma coordenação nacional entre os programas de residência, criados pelo Inamps em 1980,
por meio de convênios com diversas universidades federais e outras instituições do país.
O PAR significou a entrada da previdência social na pós-graduação em saúde coletiva
e sua associação – ainda que breve – com uma instituição formadora de recursos humanos, a
Ensp. O conflito entre linhas de atuação e o apoio do Inamps à proposta de Medicina Geral
e Comunitária em vez da Medicina Social fez com que o PAR procurasse abrigo na recém-
criada Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), confundindo
suas histórias nos primeiros anos de existência da associação.
Abrasco
Criada em setembro de 1979 como uma associação dos programas de pós-graduação em saúde
coletiva e saúde pública, deu ênfase muito especial à residência em medicina preventiva e social,
expandida no país devido a um convênio firmado entre o Inamps e várias universidades. Ainda
que conservando o nome de pós-graduação, a Abrasco muitas vezes veio a público se manifestar
sobre propostas políticas, estando com o Cebes presente em muitos fóruns da sociedade civil. As-
sumiria, então, duas funções: uma de caráter mais corporativo, que seria a defesa da investigação
e do ensino em saúde coletiva, no momento da constituição desse novo campo disciplinar, e outra
de porta-voz dos pensamentos da comunidade científica (Escorel, Nascimento & Edler, 2005).
354 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
No momento inicial da constituição da Abrasco, a área de recursos humanos foi destacada como
estratégica. Nos anos seguintes, a associação procurou se fortalecer no contato com as agências
financiadoras, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
e a Finep, ao mesmo tempo que buscou estimular e apoiar os programas de pós-graduação na
área de saúde coletiva. “À medida que o país caminhava para um regime democrático, a Abrasco
crescia orientada pelo debate em torno da constituição de um novo campo na área da saúde,
denominado Saúde Coletiva, e em torno dele se definia, se conformava como um ator político”
(Fonseca, 2006: 25).
um mandato presidencial de cinco anos teve como consequência a redistribuição dos cargos
políticos e uma nova equipe ministerial que passou a ser majoritariamente conservadora.
Ao final do governo Sarney, a política econômica, conhecida como “feijão com arroz”,
em nada alterara a situação. A inflação estourava, não havia negociação favorável à dívida
externa, a especulação financeira grassava e os investimentos produtivos eram escassos.
Nesse contexto, foi eleito Fernando Collor de Mello. Denunciando a corrupção ‘endêmica’
do governo Sarney e denominando-se o “caçador dos marajás”, derrotou o candidato do
Partido dos Trabalhadores para, dois anos depois, renunciar ao mandato antes de sofrer
um processo de impeachment.
Em 1985, a nomeação de representantes do movimento sanitário para importantes
cargos de direção governamental – no Ministério da Saúde em particular, de Sergio Arouca
para a presidência da Fundação Oswaldo Cruz, e no Ministério da Previdência e Assistência
Social, de Hésio Cordeiro para a presidência do Inamps – possibilitou uma inflexão nos
rumos da política nacional de saúde. As AIS, estratégia marginal do governo anterior, foram
ratificadas como estratégia de reorientação setorial pelos ministros da Saúde, da Previdên-
cia e Assistência Social e da Educação, e tornaram-se a política do Inamps. Essa prioridade
refletiu-se tanto no orçamento do Inamps para 1986, quanto na crescente adesão das pre-
feituras aos convênios AIS.
A proposta de unificação do sistema de saúde com a incorporação do Inamps ao
Ministério da Saúde, aparentemente consensual ao final do regime autoritário, até mesmo
incorporada no Plano Copag, encontrou diversas resistências. Além de divergências entre
os dois ministros do setor, o próprio movimento sanitário estava dividido, com cada grupo
‘vestindo a camisa’ de sua instituição. Como solução, foi convocada a 8ª Conferência Nacional
de Saúde, que deveria proporcionar elementos para debate na futura Constituinte (Esco-
rel, 1999). Nesta conferência, diferentemente das anteriores e pela primeira vez, além dos
profissionais e dos prestadores de serviços da saúde e dos quadros técnicos e burocráticos
do setor, incluíram-se os usuários do sistema de saúde.
Reunindo mais de quatro mil pessoas, entre as quais mil delegados, a 8ª CNS discutiu
Você pode ler mais sobre
e aprovou a unificação do sistema de saúde, o conceito ampliado de saúde, o direito de as Conferências Nacionais
cidadania e dever do Estado, elaborou novas bases financeiras do sistema e a criação de ins- de Saúde no capítulo 28.
tâncias institucionais de participação social. O relatório final desta CNS passou a significar a
consolidação das propostas do movimento sanitário original acrescido de novas vertentes e
integrantes, entre os quais se destacam o Movimento Popular de Saúde (Mops) e os secretários
municipais de Saúde, que viriam a constituir o Conselho Nacional de Secretarias Municipais
de Saúde (Conasems). Segundo Paim (2008), o relatório final da 8ª CNS é a sistematização
da Reforma Sanitária como projeto, isto é, o conjunto de políticas articuladas.
Conasems
Tendo como origem os Encontros Municipais do Setor Saúde realizados desde 1977, o movi-
mento dos secretários municipais de Saúde constituiu, em 1988, o Conasems “com a missão de
agregar e de representar o conjunto de todas as secretarias municipais de Saúde do país. Ali-
cerçado em conceitos como descentralização e municipalização, a entidade propôs uma fórmula
de gestão democrática para a saúde, atribuindo aos municípios um papel que não fosse o de
meros coadjuvantes. O Conasems passou a auxiliar os municípios na formulação de estratégias
voltadas ao aperfeiçoamento dos seus respectivos sistemas de saúde, primando pelo intercâmbio
de informações e pela cooperação técnica. Também se lançou na disputa por espaço político nas
instâncias federais, incluindo na pauta de discussões da saúde grandes temas de interesse, como
financiamento público, recursos humanos e a defesa dos princípios do SUS. Enfim, direcionou
seu trabalho para promover o acesso universal e equânime da população aos serviços de saúde
e para garantir a integralidade destas ações desde a prevenção até a reabilitação”. A partir da
Constituição e da Lei Orgânica da Saúde, o Conasems passou a ser o ator político de maior rele-
vância setorial, com grande influência na descentralização ‘municipalizante’ do SUS e na ênfase da
dimensão institucional da Reforma Sanitária, ou seja, dos aspectos envolvidos na implementação
do SUS (www.conasems.org.br).
para os níveis descentralizados dos instrumentos de controle sobre o setor privado. “A ideia
do Suds surgiu como uma estratégia ponte, uma estratégia transitória para a chegada ao
Sistema Único de Saúde” (Cordeiro apud Faleiros et al., 2006: 78).
O Suds foi o centro de nova polarização no interior do movimento sanitário. Para uns,
significava a tentativa do Inamps de esvaziar a Reforma Sanitária, reduzindo-a a uma mera
reforma administrativa. Para outros, uma estratégia para a implantação do SUS. Jairnilson
Paim (2008: 138) considera o Suds como a “trincheira técnico-institucional da Reforma
Sanitária, exercitando o planejamento, unificando estruturas administrativas, instalando
canais de participação social (conselhos de saúde) e, em alguns estados, implantando distritos
sanitários”. As duas outras trincheiras de luta da Reforma Sanitária seriam a sociocomuni-
tária (estabelecimento de amplo arco de alianças) e a legislativo-parlamentar (elaboração do
capítulo constitucional e da legislação ordinária sobre saúde).
A implementação do Suds nos estados e municípios dependeu do grau de compro-
misso dos dirigentes políticos e setoriais locais com a proposta. No entanto, mesmo onde o
processo começou com amplo apoio, o desenvolvimento do Suds passou a encontrar sérias
dificuldades a partir da demissão do presidente do Inamps e sua equipe, em março de
1988. A resistência originou-se nas lideranças políticas regionais, que sentiam seus interesses
ameaçados, e também na burocracia do Inamps e do Ministério da Saúde, principalmente
nos interesses ‘verticalistas’ e centralizadores localizados na Sucam e na Fundação Sesp – e,
naturalmente, do subsetor privado. Essa articulação de interesses contrários à proposta fez
com que, simultaneamente à aprovação do capítulo constitucional, a política de assistência
médica previdenciária desse uma ‘meia-volta à direita’.
Os principais desdobramentos da 8ª CNS foram a constituição da Comissão Nacional
da Reforma Sanitária (CNRS) e a conformação da Plenária Nacional de Saúde. A primeira,
de composição paritária entre governo e sociedade civil, realizou o trabalho de elaborar –
aos moldes da Comissão Afonso Arinos – a proposta constitucional para o capítulo de saúde,
tendo como referência o relatório final da 8ª CNS. A Plenária Nacional de Entidades de
Saúde, que se fez representar intensamente no processo constituinte, obteve vitórias que
culminaram na aprovação de um capítulo sobre saúde inédito na história constitucional,
refletindo o pensamento e a luta histórica do movimento sanitário.
de um milhão da emenda sobre o ensino público, indica “a estreita base de sustentação política
e social da Reforma Sanitária Brasileira, apesar da eficácia política obtida pela Plenária Nacional
de Saúde junto ao movimento popular e à Constituinte”.
Fontes: Faleiros et al., 2006; Paim, 2008.
As idas e vindas do processo constituinte, os detalhes de cada projeto apresentado e
debatido, os diversos interesses em disputa, as alterações incorporadas ao projeto original ao
longo do percurso da Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente, passando pela
Comissão da Ordem Social e pela Comissão de Sistematização até as votações em primeiro
e segundo turnos no plenário do Congresso Constituinte, foram descritos e analisados por
Rodriguez Neto (2003). A análise do processo indica as diferentes visões em disputa, não
apenas entre os defensores do setor público (ou estatizantes) e os empresários da iniciativa
privada, como também no interior do primeiro grupo entre os que defendiam a ‘unificação
pela previdência’ e os que queriam resgatar o papel de condução do Ministério da Saúde
sobre um sistema único.
Com “promessas e limites”, no dizer do autor, a Constituição de 1988 estabeleceu que
a saúde é parte da seguridade social (art. 194), um “conjunto integrado de ações de iniciativa
dos poderes públicos e da sociedade destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à
previdência e à assistência social”.
A saúde passou a ser considerada como direito de todos e dever do Estado (art. 196),
adotando-se o conceito ampliado de saúde formulado na 8ª CNS. E foi criado o SUS, sistema
universal de atenção à saúde, regido pelos princípios de descentralização, integralidade e
participação da comunidade (Brasil, 1988).
Leituras recomendadas
AROUCA, S. O Dilema Preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. São
Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Editora Fiocruz, 2003.
DONNANGELO, M. C. F. Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo: Pioneira; 1975.
DONNANGELO, M. C. F. & PEREIRA, L. Saúde e Sociedade. São Paulo: Livraria Duas Cidades; 1976.
ESCOREL, S. Reviravolta na Saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 1999.
FALEIROS, V. de P. et al. A Construção do SUS: histórias da Reforma Sanitária e do processo participativo.
Brasília: Ministério da Saúde, 2006.
FLEURY, S.; BAHIA, L. & AMARANTE, P. (Orgs.) Saúde em Debate: fundamentos da Reforma Sanitária.
Rio de Janeiro: Cebes, 2008.
FERREIRA, J. & DELGADO, L. de A. N. (Orgs.) O Tempo da Ditadura: regime militar e movimentos so-
ciais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. (Coleção Brasil Republicano, v. 4).
KOSHIBA, L. & PEREIRA, D. M. F. História do Brasil. 7. ed. São Paulo: Atual, 1996.
OLIVEIRA, J. A. de A. & TEIXEIRA, S. M. F. (Im)previdência Social: 60 anos de história da Previdência
no Brasil. Petrópolis: Vozes, Abrasco, 1986.
PAIM, J. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador, Rio de Janeiro:
Edufba, Editora Fiocruz, 2008.
PONTE, C. F. & FALLEIROS, I. (Orgs.) Na Corda Bamba de Sombrinha: a saúde no fio da história. Rio de
Janeiro: COC/Fiocruz, EPSJV/ Fiocruz, 2010.
RODRIGUEZ NETO, E. Saúde: promessas e limites da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.
VIANNA, M. L. T. W. A Americanização (Perversa) da Seguridade Social no Brasil: estratégias de bem-estar e
políticas públicas. Rio de Janeiro: Revan, 1998.
Sites de Interesse
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco): www.abrasco.org.br
Associação Latino-Americana de Medicina Social (Alames): www.alames.org
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes): www.cebes.org.br
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação
Getulio Vargas (FGV): www.cpdoc.fgv.br
Conselho Nacional de Saúde: www.conselho.saude.gov.br
362 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
Referências
ALVES, M. H. M. Estado e Oposição no Brasil, 1964-1984. Petrópolis: Vozes, 1985.
AROUCA, S. Saúde na constituinte: a defesa da emenda popular. Saúde em Debate, 20: 39-46, abr. 1988.
AROUCA, S. O Dilema Preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. São
Paulo, Rio de Janeiro: Unesp, Editora Fiocruz, 2003.
BERLINGUER, G. Medicina e Política. São Paulo: Cebes, Hucitec, 1978.
BOUDON, R. & BOURRICAUD, F. Dicionário Crítico de Sociologia. São Paulo: Ática, 2001.
BRAGA, J. C. S. & PAULA, S. G. Saúde e Previdência: estudos de política social. São Paulo: Cebes, Hucitec, 1981.
BRASIL. Ministério da Saúde. 8ª Conferência Nacional de Saúde. Relatório Final. Brasília: Ministério
da Saúde, 1986.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988.
BRASIL. Presidência da República. Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979). Brasília, s. d.
BRESSER PEREIRA, L. C. Pactos Políticos: do populismo à redemocratização. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BRIGAGÃO, C. A Militarização da Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
CARVALHO, A. I. Saúde e educação de base: algumas notas. Saúde em Debate, 7: 61-65, 1978. (Repu-
blicado em FLEURY, S.; BAHIA, L. & AMARANTE, P. (Orgs.) Saúde em Debate: fundamentos da Reforma
Sanitária. Rio de Janeiro: Cebes, 2008).
CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES). Londrina, 4 a 9 de abril, vem aí a IV
Sesac. Saúde em Debate, 2: 58-59, jan./mar. 1977.
CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS DE SAÚDE (CONASS). Conselho Nacional de Secretários
de Saúde: 20 anos. Brasília: Conass, 2002.
CORDEIRO, H. A Indústria da Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
CORDEIRO, H. Sistema Único de Saúde. Rio de Janeiro: Ayuri, 1991.
DE GÓES, W. & CAMARGO, A. O Drama da Sucessão e a Crise do Regime. Rio de Janeiro: Nova Fron-
teira, 1984.
DONNANGELO, M. C. F. Medicina e sociedade: o médico e seu mercado de trabalho. São Paulo: Pioneira, 1975.
DONNANGELO, M. C. F. & PEREIRA, L. Saúde e Sociedade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1976.
ESCOREL, S. Reviravolta na Saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 1999.
ESCOREL, S. Saúde Pública: utopia de Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
ESCOREL, S.; NASCIMENTO, D. R. & EDLER, F. C. As origens da Reforma Sanitária e o SUS. In:
LIMA, N. T. et al. (Orgs.) Saúde e Democracia: história e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2005.
FALEIROS, V. de P. et al. A Construção do SUS: histórias da Reforma Sanitária e do processo participativo.
Brasília: Ministério da Saúde, 2006.
FLEURY, S.; BAHIA, L. & AMARANTE, P. (Orgs.) Saúde em Debate: fundamentos da Reforma Sanitária.
Rio de Janeiro: Cebes, 2008.
FONSECA, C. A história da Abrasco: política, ensino e saúde no Brasil. In: LIMA, N. T. & SANTANA,
J. P. (Orgs.) Saúde Coletiva como Compromisso: a trajetória da Abrasco. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
Abrasco, 2006.
História das Políticas de Saúde no Brasil de 1964 a 1990 363
KUCINSKI, B. Abertura: a história de uma crise. São Paulo: Brasil Debates, 1982.
LENT, H. O Massacre de Manguinhos. Rio de Janeiro: Avenir, 1978.
MELLO, C. G. de. O Sistema de Saúde em Crise. São Paulo: Cebes-Hucitec, 1981.
MERCADANTE, O. A. et al. (Coord.). Evolução das políticas e do sistema de saúde no Brasil. In:
FINKELMAN, J. (Org.) Caminhos da Saúde Pública no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002.
MERHY, E. E. A Saúde Pública como Política. São Paulo: Hucitec, 1992.
NORONHA, J. & TRAVASSOS, C. Participação comunitária nos programas de saúde. Saúde em Debate,
12: 18-20, 1981. (Republicado em FLEURY, S.; BAHIA, L. & AMARANTE, P. (Orgs.) Saúde em Debate:
fundamentos da Reforma Sanitária. Rio de Janeiro: Cebes, 2008).
NUNES, E. D. Cecília Donnangelo: pioneira na construção teórica de um pensamento social em saúde.
Ciência & Saúde Coletiva, 13(3): 909-916, 2008.
O’DONNELL, G. Tensões no estado autoritário-burocrático e a questão da democracia. In: COLLIER,
D. (Org.) O Novo Autoritarismo na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
OLIVEIRA, J. A. de A. & TEIXEIRA, S. M. F. (Im)previdência Social: 60 anos de história da Previdência
no Brasil. Petrópolis: Vozes, Abrasco, 1986.
PAIM, J. Medicina preventiva e social no Brasil: modelos, crises e perspectivas. Saúde em Debate, 11:
57-59, 1981.
PAIM, J. A formação de recursos humanos em saúde coletiva: contribuição da residência em medicina
preventiva e social. Revista Brasileira de Educação Médica, 9(2): 88-94, 1985.
PAIM, J. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador, Rio de Janeiro:
Edufba, Editora Fiocruz, 2008.
PONTE, C. F. A saúde como mercadoria: um direito de poucos. In: PONTE, C. F. & FALLEIROS, I.
(Orgs.) Na Corda Bamba de Sombrinha: a saúde no fio da história. Rio de Janeiro: COC/Fiocruz, EPSJV/
Fiocruz, 2010a.
PONTE, C. F. Imunização: um programa nacional. In: PONTE, C. F. & FALLEIROS, I. (Orgs.) Na
Corda Bamba de Sombrinha: a saúde no fio da história. Rio de Janeiro: COC/Fiocruz, EPSJV/Fiocruz, 2010b.
REIS, F. W. & O’DONNELL, G. (Org.) A Democracia no Brasil: dilemas e perspectivas. São Paulo: Vértice,
1988.
RIBEIRO, H. P. (Org.) Políticas de Saúde e Assistência Médica: um documento de análise. Associação Médica
Brasileira: s. l., 1983.
RODRIGUEZ NETO, E. Saúde: promessas e limites da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.
SINGER, P. A Crise do Milagre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
TAVARES, M. da C. & ASSIS, J. C. O Grande Salto para o Caos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
TEIXEIRA, S. M. F. et al. (Coord.) Antecedentes da Reforma Sanitária. Textos de Apoio. Rio de Janeiro:
PEC, Ensp, 1988.
657
Jorge A. Z. Bermudez
Maria Auxiliadora Oliveira
Vera Lucia Luiza
Em setembro de 2000, os 192 Estados-membros das Nações Unidas assumiram os compromissos ex-
pressos como objetivos do milênio (ODM), estabelecendo metas a serem cumpridas em torno de oito
grandes grupos de objetivos: 1) erradicar a pobreza extrema e a fome; 2) atingir a educação primária
universal; 3) promover a igualdade de gêneros e ‘empoderar’ as mulheres; 4) reduzir a mortalidade
infantil; 5) melhorar a saúde materna; 6) combater o HIV/Aids, a malária e outras doenças; 7) asse-
gurar a sustentabilidade ambiental; 8) estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento.
Fonte: Pnud, 2001.
Cabe destacar que, dos oito objetivos e 18 metas propostos, cinco se encontram dire-
tamente relacionados à saúde, tal a importância que o tema vem assumindo na agenda do
desenvolvimento econômico e social.
O acesso a medicamentos está implícito em diversas metas estabelecidas nessa declara-
ção, tais como: reduzir em dois terços a mortalidade de crianças menores de 5 anos (meta 5);
reduzir em três quartos a taxa de mortalidade materna (meta 6); reduzir a propagação do
Human Immunodeficiency Virus (HIV) e, consequentemente, da Síndrome de Imunodeficiência
Adquirida (Acquired Immunological Deficiency Syndrome – Aids) (meta 7); reduzir a incidência
da malária e de outras doenças importantes (meta 8).
O acesso a medicamentos está explícito de maneira específica na meta 17 do objetivo 8,
intitulado “Estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento”, que enuncia o
Para refletir
Como mostra a Figura 1, os medicamentos usados de forma não racional podem constituir im-
portante problema de saúde pública. Por quê?
Outra questão da maior importância é o impacto dos gastos com medicamentos nos
orçamentos domiciliares e nos sistemas de saúde, uma vez que os medicamentos são res-
ponsáveis, em média, por 23,1% dos gastos mundiais em saúde. Por sua vez, os gastos em
saúde vêm aumentando de forma constante e expressiva em todo o mundo, tendo como uma
de suas causas o aumento progressivo dos gastos com medicamentos. A proporção desses
gastos em relação aos gastos totais em saúde varia entre 18,2% nos países de alta renda e
62,9% em países de baixa renda per capita (WHO, 2011). Esse fenômeno tem sido relacio-
nado a diversos fatores, tais como o envelhecimento da população, o aumento do número
de medicamentos prescritos por receita e a introdução de novos produtos protegidos por
patentes e preços mais elevados.
Cabe destaque a outro fenômeno que vem contribuindo sobremaneira para o aumento
dos gastos com medicamentos: a tendência crescente de prescrever tratamento medicamen-
toso para estados fisiológicos, como a menopausa; para fatores de risco, como a prevenção
de fraturas em razão da osteoporose; para modificar características pessoais, como a calvície,
por exemplo.
Assim, alguns fatores que levam ao aumento do consumo de medicamentos são ine-
xoráveis, enquanto outros ensejam a ação de políticas públicas para seu controle.
Para refletir
Medicamentos novos representam sempre vantagem terapêutica? Observe a Figura 2 e comente.
Fonte: Folha de S.Paulo – Folha online – 17 out. 2004. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/
ult306u12528.shtml>. Acesso em: 20 set. 2012.
Na maioria dos países da Europa, por exemplo, o gasto público representa mais de
60% do gasto total com medicamentos, chegando a 78% na Espanha, 80% em Luxemburgo
e 83% na Irlanda. O último inquérito da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a
situação farmacêutica mundial mostra que o financiamento público de medicamentos varia
entre 61,3% nos países de alta renda e 23,1% nos países de baixa renda (WHO, 2011).
Para refletir
Uma participação maior do Estado, e não do setor privado, no financiamento dos medicamentos
melhoraria o acesso aos serviços e insumos de saúde? Por quê?
• o consumidor tem reduzido poder de decisão sobre o produto que vai adquirir: em
geral, é o médico ou outro prescritor que o faz;
Para refletir
O que diferencia os medicamentos de outros bens de consumo?
Desde janeiro de 1995, com a entrada em vigor do atual sistema de propriedade Propriedade intelectual
é uma expressão genérica
industrial, que engloba, entre outros aspectos, o acordo sobre os aspectos da proprie- que corresponde ao di-
dade intelectual relacionados ao comércio, conhecido como Acordo Trips (sigla em inglês reito de apropriação que
para Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), todos os países-membros o homem ou a empresa
pode ter sobre as suas
da Organização Mundial do Comércio (OMC) são obrigados a conceder patentes em todos criações, obras e produ-
os campos tecnológicos, incluindo o setor farmacêutico. Até então, conforme estabelecia a ções do intelecto, talento
e engenho. Abrange duas
Convenção da União de Paris (CUP), vigente desde 1884, cada país tinha liberdade para grandes áreas: os direi-
escolher o regime de propriedade intelectual que melhor atendesse às suas necessidades de tos do autor e copyright,
desenvolvimento social, econômico e industrial. que protegem trabalhos
literários, artísticos, foto-
Naquele contexto, países desenvolvidos, como Estados Unidos, Suíça, Itália e Ja- gráficos, cinematográficos
pão, entre outros, só passaram a reconhecer patentes para o setor farmacêutico quando e softwares; e os direitos de
propriedade industrial,
os seus parques industriais nacionais estavam plenamente consolidados. Obedecendo à que protegem as ativida-
mesma legislação, o Brasil, como outros países em desenvolvimento, optou por não re- des industriais e comer-
ciais do indivíduo ou da
conhecer patentes em setores estratégicos, dentre os quais o químico e o farmacêutico, o companhia, mediante a
que possibilitou a implementação de políticas nacionais de desenvolvimento industrial e concessão de monopó-
acadêmico. Essas políticas fomentaram a capacitação tecnológica nacional de países em lios legais, entre eles as
patentes.
desenvolvimento, como Brasil, Argentina e Índia, entre outros, mediante formação de
massa de recursos humanos em nível de pós-graduação, bem como o estabelecimento
de plantas industriais produtoras de matérias-primas e de medicamentos acabados, algu-
mas das quais, até os dias atuais, têm papel fundamental no abastecimento dos países com
medicamentos a preços acessíveis.
O Acordo Trips da OMC estabelece padrões mínimos de proteção da propriedade
intelectual que devem ser incorporados às legislações nacionais relacionadas ao tema. Dessa
forma, padroniza as legislações de propriedade intelectual (LPI) com critérios mais rígidos
do que os vigentes nos países desenvolvidos na ocasião, sendo exemplos a duração de vinte
anos para as patentes e a obrigatoriedade de concedê-las em todos os campos tecnológicos.
Além disso, contém algumas flexibilidades (Quadro 1), as quais, se implementadas na legis-
lação nacional, permitem aos seus países signatários adotar medidas que protejam a saúde
pública (Oliveira, Chaves & Epsztejn, 2006). Em 2007, o governo brasileiro fez uso de uma
dessas flexibilidades quando emitiu uma licença compulsória para um dos medicamentos
utilizados no tratamento da Aids, o Efavirenz. Este medicamento era vendido para o Mi-
nistério da Saúde a um preço 136% mais alto que em outros países em desenvolvimento,
como a Tailândia. A medida permitiu uma economia inicial de cerca de US$ 30 milhões,
tendo um impacto positivo na sustentabilidade financeira do Programa Nacional de Doenças
Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais.
É importante registrar que o uso dessa flexibilidade pelo Brasil e por outros países em
desenvolvimento, como a Tailândia, só foi possível porque havia disponibilidade de versões
genéricas dos medicamentos licenciados no mercado internacional, as quais são produzidas
por empresas indianas.
A Índia optou por usar todo o período de transição permitido pelo Acordo Trips, até
janeiro de 2005, para o reconhecimento de patentes de produtos farmacêuticos. Tal opção,
aliada a uma política de desenvolvimento industrial que permitiu a capacitação tecnológica
do seu parque produtor de medicamentos, transformou a Índia em um dos maiores ex-
portadores de medicamentos genéricos de baixo custo para países de média e baixa rendas
(Waning, Diedrichsen & Moon, 2010). Além disso, cabe mencionar que em 2005 a Índia, ao
revisar a sua legislação nacional de propriedade intelectual para implementar integralmente
o Acordo Trips, incorporou outras importantes flexibilidades, como normativa para uma
interpretação rígida dos critérios de patenteabilidade (seção 3.d da lei de patentes), assim
como os dois tipos de mecanismos de oposição de patentes descritos no Quadro 1.
A patente é um título de propriedade que garante ao seu titular o direito exclusivo
de produzir, importar e comercializar o produto protegido por um período predeter-
minado, que atualmente é de vinte anos. Assim, ao inibir a entrada de concorrentes no
mercado, a patente cria um forte monopólio, permitindo ao seu titular estabelecer preços
que são várias vezes superiores aos custos marginais de produção, os quais, dependendo
da essencialidade do produto patenteado, podem ter impacto muitas vezes nefasto no
acesso a medicamentos.
Para refletir
Como os acordos comerciais internacionais influenciam no acesso aos medicamentos?
O preço é um dos determinantes do acesso pleno aos medicamentos. Por essa razão,
diferentes estratégias que visam a reduzi-lo, como negociações conjuntas de países, compras
centralizadas ou por fundos comuns administrados por organizações internacionais ou não
governamentais, entre outras, vêm sendo adotadas por todos os países.
O fomento à competição é um dos mais poderosos instrumentos políticos para re-
duzir preços de medicamentos. Nos Estados Unidos, quando expira uma patente, o preço
do genérico, em relação ao medicamento de referência, cai, em média, para cerca de 60%
quando existe apenas um competidor; e para 29% quando existem dez competidores
(Creese & Quick, 2001).
Um exemplo que ilustra a importância da concorrência no preço de medicamentos
essenciais para as políticas de saúde pública é a enorme diferença de preços entre os me-
dicamentos inovadores, especialmente quando protegidos por patentes, e os genéricos. Os
dados do Gráfico 1 foram retirados de artigo de revisão (Cameron et al., 2008) em que os
autores consolidaram dados de 46 estudos, realizados em 36 países com metodologia pro-
posta pela OMS. Nessa metodologia, os preços de cada medicamento estudado são todos
comparados a preços de referência internacional, obtendo o indicador MPR (razão entre a
mediana de preços – do inglês median price ratio) que expressa, portanto, quantas vezes cada
preço observado foi maior que seu correspondente na lista de referência.
Disposições e
Descrição
flexibilidades
Qualquer invenção, de produto ou de processo, em todos os setores tecnológicos, será patenteável,
desde que seja nova, envolva um passo inventivo e seja passível de aplicação industrial (art. 27).
Nota: Estados-membros têm liberdade para estabelecer regras para o exame dos pedidos de patentes
Critérios de
baseadas em uma interpretação mais restritiva dos critérios de patenteabilidade, com o objetivo de
patenteabilidade
evitar a concessão de patentes indevidas e evergreening (estratégia das empresas para obter a extensão
do monopólio para além da expiração da patente original, por meio do patenteamento de aspectos
secundários da invenção ou de pequenas modificações da mesma).
Podem ser considerados como não patenteáveis, entre outros, “métodos diagnósticos, terapêuticos e
Exceções de
cirúrgicos para o tratamento de seres humanos”, assim como novos usos de medicamentos que contêm
patenteabilidade
substâncias conhecidas (art. 27.2 e 27.3).
Um ano (até 1996) para os países desenvolvidos;
Período de transição Cinco anos (até 2000) para os países em desenvolvimento;
para adequação da Onze anos (até 2006) para os países menos desenvolvidos (art. 65 e 66).
legislaçâo Nota: o Conselho de Trips estendeu o período de transição para os países menos desenvolvidos
adequarem suas legislações ao acordo até julho de 2013.
Dez anos ou até janeiro de 2005 para conceder patentes em campos tecnológicos não protegidos antes
da entrada em vigor do Acordo Trips (janeiro de 1995) (art. 65).
Período de transição
Nota: países menos desenvolvidos, que não reconheciam patentes no setor farmacêutico antes de
para o setor
janeiro de 1995, têm um prazo adicional de 11 anos para fazê-lo, ou seja, até 2016, conforme estabelece
farmacêutico
a Declaração sobre o Acordo Trips da OMC e a Saúde Pública, assinada em Doha, Catar, em novembro
de 2001.
A patente não deve impedir o uso experimental da invenção por terceiros com propósitos científicos
ou com propósitos comerciais que não estejam em desacordo com a exploração normal da patente e
Uso experimental
não prejudiquem os legítimos interesses do titular da patente, levando em conta os legítimos interesses
desses terceiros.
De acordo com o princípio do esgotamento de direitos, o direito exclusivo do titular da patente de
Esgotamento do importar um produto protegido se esgota e, desse modo, termina quando este produto é lançado
direito de propriedade no mercado pelo titular ou por terceiros de forma legítima. Quando a legislação de um país prevê
intelectual o esgotamento internacional dos direitos de propriedade intelectual, a importação paralela está
autorizada a todos os residentes desse país (art. 6).
Produtos importados para um país sem a autorização do titular da patente nesse país e que tenham
Importação paralela sido introduzidos no mercado do país exportador pelo titular da patente ou por terceiros com o seu
consentimento (art. 6).
Autorização concedida por uma autoridade judicial ou administrativa para a utilização, por terceiros,
Licença compulsória
de uma invenção patenteada, sem o consentimento do titular da patente.
Exceção bolar Permite a uma empresa completar todos os procedimentos e testes necessários para registrar um
(trabalho antecipado) produto genérico antes do prazo de expiração da patente (art. 30).
Permite a terceiros a possibilidade de fazer oposição à concessão da patente durante um período
determinado. Os Estados-membros da OMC podem incluir em suas legislações nacionais um ou os dois
Sistemas de oposição à
tipos de sistema de oposição de patentes:
concessão da patente
Oposição ex ante – pode ser feita quando a oficina de patentes publica a intenção de conceder a patente.
Oposição ex post – é realizada depois que a patente é concedida.
Fonte: Adaptado de Oliveira, Bermudez & Osório-de-Castro (2007) e UNDP (2010).
Oeste Pacífico
30
20
10
0
Privado MI Privado GMP Público GMP
Quadro 2 – Participação (%) das duas empresas líderes de mercado por classe terapêutica/
princípio ativo e origem de capital. Brasil – 2000
Para a primeira categoria, constituída por doenças prevalentes em países ricos, existe
grande número de novas opções terapêuticas, exemplificando-se com as doenças cardio-
vasculares; para a segunda, constituída por doenças com menor prevalência nesses países,
mas que conformam um mercado para a indústria, há número significativamente menor de
novas opções terapêuticas, sendo exemplos a tuberculose e a malária; para a terceira, figura
um conjunto de doenças para as quais as opções de tratamento são inadequadas ou não
existem, uma vez que o mercado potencial é insuficiente para provocar a pronta resposta
do setor privado e, além disso, a capacidade de compra e de fomento à P&D por parte dos
governos é insuficiente. A quarta categoria engloba ampla variedade de condições não mé-
dicas, como calvície, celulites e rugas da face, mas representa grande parcela de mercado,
em especial nos países desenvolvidos (Figura 3).
Verificou-se também que apenas 10% das pesquisas globais em saúde são dedicadas
a condições que acometem as populações mais pobres do planeta – a isso se designa dese-
Para saber mais sobre as quilíbrio 90/10. Nesse contexto, sete organizações de diferentes partes do mundo uniram
doenças negligenciadas e esforços para lançar a Iniciativa para as Doenças Negligenciadas (DNDi, sigla em inglês),
as iniciativas em pesquisa
para enfrentá-las, consul- cujo objetivo é fomentar a pesquisa e o desenvolvimento de medicamentos para tais doenças
te o capítulo 8. (disponível em: <www.dndi.org>).
Para refletir
Por que são necessárias políticas explícitas de medicamentos e de assistência farmacêutica?
ções com todas as partes interessadas, o que inclui outros ministérios, representantes de
profissionais de saúde, da indústria farmacêutica doméstica e transnacional, de instituições
acadêmicas, organizações não governamentais e de defesa dos consumidores, entre outros
atores (Figura 4). Também é essencial envolver representantes dos diferentes níveis de ges-
tão do sistema de saúde, pois o processo de participação de todos é tão importante quanto
o próprio documento da política.
Meios de
Comunicação
Poder
Poder Executivo
Judiciário
Principais atores
e porta-vozes
de diferentes
Interesses
Poder Profissionais
Legislativo de saúde
Usuários
Indústria Entidades
Farmacêutica de Defesa do
Consumidor
Objetivos da PNM
Componentes Uso racional de
Acesso Qualidade
medicamentos
Seleção de medicamentos essenciais X (X) X
Acessibilidade no preço X
Financiamento X
Uso racional X
Pesquisa X X X
Recursos humanos X X X
Monitoramento e avaliação X X X
mentos oferecidos, e o preço era total ou parcialmente financiado pelo INPS, descontado Mais informações sobre
IAPs, INPS e Ceme você
em folha de pagamento (Wilken & Bermudez, 1999). encontra nos capítulos
Outro marco no país em relação às políticas farmacêuticas foi a criação da Central de 10 e 11, que contam a
história das políticas de
Medicamentos (Ceme), em 1971. A Ceme foi criada com o objetivo de promover o acesso a
saúde no Brasil.
medicamentos às populações de reduzido poder aquisitivo; suas estratégias de ação incluíam
o fomento à pesquisa e à produção nacional de medicamentos, inclusive os fitoterápicos, e
o desenvolvimento de fármacos. No entanto, a ação mais visível no âmbito dos serviços de
saúde foi seguramente a do fornecimento de medicamentos. Nesse sentido, a Ceme funcio-
nou como grande licitadora, adquirindo os medicamentos centralizadamente e promovendo
sua distribuição nas unidades de atendimento.
As listas de medicamentos essenciais têm sido propostas como eixo estruturante das
políticas farmacêuticas (WHO, 2001), constituindo poderosas ferramentas com impacto tanto
nos custos quanto no uso racional de medicamentos. Destaca-se aqui o pioneirismo do Brasil,
que, juntamente com um pequeno grupo de países, precedeu essa estratégia proposta pela
OMS estabelecendo, em 1964, por meio do decreto n. 53.612, a Relação Básica e Prioritária
de Produtos Biológicos e Matérias para Uso Farmacêutico Humano e Veterinário e conta
com a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) desde 1975. Os princípios e as dire-
Uma nova política nacional de medicamentos foi formulada no final da década de trizes do SUS são discuti-
dos em detalhes no capí-
1990, período no qual o país se encontrava em meio aos esforços de consolidação do Sis- tulo 12.
tema Único de Saúde (SUS), considerando seus princípios éticos/doutrinários, em que se
destacam a universalidade, a equidade e a integralidade das ações, e seus princípios orga-
nizacionais/operativos, com foco na descentralização, na regionalização e hierarquização
e no controle social.
As diferentes opiniões manifestadas pelos pensadores e ativistas no campo dos medica-
mentos convergiam no diagnóstico de uma série de problemas na assistência farmacêutica,
dentre os quais alguns são aqui destacados.
Do ponto de vista da oferta, o Brasil contava com um parque industrial constituído por
cerca de quatrocentas empresas, dentre as quais cerca de oitenta indústrias transnacionais
dominavam o mercado. Marcado pela presença de oligopólios com participação concentrada
por classes terapêuticas, o país encontrava-se também altamente dependente da importação A importância da indús-
de matérias-primas, em particular dos princípios ativos. A incipiente produção nacional tria farmacêutica no com-
plexo industrial da saúde
de fármacos caracterizava-se como indústria de cópia, sem desenvolvimento importante de é discutida no capítulo 7.
produtos novos.
Do ponto de vista da demanda, a escalada dos preços dos medicamentos conformava
importante barreira ao acesso, em meio ao comércio mal controlado, com realização de
práticas comerciais obtusas, como a chamada ‘empurroterapia’, em que o consumidor é in-
duzido, nas farmácias, a comprar produtos de qualidade duvidosa ou dos quais não necessita.
Outra característica importante quanto à demanda é que a maior parte do financia-
mento do consumo de medicamentos era realizada com recursos próprios. Dados da Pes-
quisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 1998 mostram que, apesar de os gastos
crescerem com a renda, os medicamentos comprometem uma porção maior da renda das
famílias mais pobres do que das famílias mais ricas. Contudo, segundo Biasoto Jr. e Nishijima
(2003), ainda com base na Pnad de 1998, a parcela da população com renda até dois salá-
rios mínimos dependia exclusivamente do setor público para obtenção dos medicamentos.
A despeito de o Brasil contar há muito tempo com amplo modelo de distribuição pú-
blica gratuita de medicamentos, o que representa avanço em relação à maioria dos países em
desenvolvimento, o cenário geral apresentava problemas de diversas ordens. O abastecimento
público tinha falhas e ineficiência e contava com profissionais com treinamento insuficiente
e muitas vezes desmotivados – o que resulta em constantes faltas de medicamentos, perdas
em razão de desvios, más condições de estocagem e processos inadequados de distribuição.
No mercado privado de medicamentos, as más práticas comerciais e profissionais, além dos
preços inacessíveis à maioria da população, contribuem para agravar a situação.
Como consequência dos princípios da descentralização, a Ceme foi extinta em 1997,
em meio a denúncias de corrupção, ineficiência, desabastecimento da rede de saúde e desvio
de seus objetivos.
Para refletir
Com base na sua experiência, seja como profissional da saúde, seja como usuário, como evoluiu
o cenário apresentado? Quais os avanços percebidos?
Outro ponto a ser destacado é que a atenção farmacêutica, modelo de prática pro-
fissional que implica a interação direta do farmacêutico com o usuário, é explicitada como
parte das ações da assistência farmacêutica.
A PNM estabelece oito diretrizes e quatro grupos de prioridades para o setor, suma-
riamente apresentados no Quadro 4.
Várias ações têm sido desencadeadas com base na formulação da PNM e da Política
Nacional de Assistência Farmacêutica (Pnaf) no Brasil. A seguir, algumas são destacadas (Ber-
mudez, 2002; Oliveira, Bermudez & Osório-de-Castro, 2007).
PROPOSIÇÃO
2ª versão Consultas
Apresenta sugestões
Oficina de trabalho
(2ª versão)
APERFEIÇOAMENTO
Apresenta sugestões
Seminário
(3ª versão)
VALIDAÇÃO
Ministro da Saúde
4ª versão Conselho Nacional de Saúde
Ministro da Saúde
Diretrizes Prioridades
Adoção de relação de medicamentos Revisão permanente
essenciais
Regulamentação sanitária de Revitalização, flexibilização de procedimentos e busca por
medicamentos maior consistência técnico-científica
Elaboração de procedimentos operacionais sistematizados
Treinamento
Reorientação da assistência farmacêutica Garantia de recursos pelas três esferas para distribuição
direta ou descentralizada
Descentralização plena da aquisição e distribuição de
medicamentos
Financiamento específico para os medicamentos da
atenção básica
Atenção especial aos medicamentos de alto custo
Promoção do uso racional de Campanhas educativas
medicamentos Registro e uso de medicamentos genéricos
Formulário terapêutico nacional
Farmacoepidemiologia e farmacovigilância
Diretrizes Prioridades
Promoção da produção de medicamentos -
Garantia da segurança, eficácia e -
qualidade dos medicamentos
Desenvolvimento e capacitação de Treinamento de RH (gerenciamento de sistemas de
recursos humanos saúde e de informação; guias terapêuticos padronizados;
farmacovigilância)
Medicamento genérico
É aquele similar a um produto de referência ou inovador, que pretende ser intercambiável com
este, produzido, em geral, após a expiração ou a renúncia da proteção patentária ou de outros
direitos de exclusividade, comprovadas a sua eficácia, segurança e qualidade e designado pela
Denominação Comum Brasileira (DCB) ou, na sua ausência, pela Denominação Comum Inter-
nacional (DCI).
A ação das políticas públicas na regulação do mercado de genéricos tem sido fun-
damental para a efetividade do programa nos diferentes países – no sentido de garantir
seu impacto na redução dos preços, na aceitação pelos prescritores e pela sociedade – e
de seu uso racional. O Quadro 5 apresenta os mecanismos propostos por Bennett, Quick
e Velásquez (1997) para promover seu uso.
Ademais, a utilização da denominação genérica favorece a identificação inequívoca do
medicamento em qualquer lugar do mundo e sua vinculação a dada família terapêutica. Dessa
forma, além de ser estratégia de promoção de acesso que assegure a escolha ao consumidor,
dentre produtos intercambiáveis, daquele de menor preço, uma política de medicamentos
genéricos é estratégia de promoção do uso racional.
No Brasil, a política de medicamentos genéricos foi outro importante marco da im-
Produto farmacêutico
plementação da PNM. Um dos seus objetivos é promover a concorrência visando a reduzir intercambiável
os preços, em especial os dos medicamentos de uso contínuo. Equivalente terapêutico
Em fevereiro de 1999, a lei n. 9.787, conhecida como a ‘lei dos genéricos’ (Brasil, 1999a), de um medicamento de
referência, comprovados
define o que considera medicamento genérico, assim como as condições segundo as quais os essencialmente os mes-
nomes genéricos podem ser utilizados. Essa lei define também os medicamentos similares. mos efeitos em relação
à eficácia e à segurança.
Medicamentos similares
Bioequivalência
São os que contêm o(s) mesmo(s) princípio(s) ativo(s), apresentam a mesma concentração, forma Consiste na demonstração
farmacêutica, via de administração, posologia e indicação terapêutica, preventiva ou diagnóstica, de equivalência farmacêu-
do medicamento de referência registrado no órgão federal responsável pela vigilância sanitária, tica entre produtos apre-
podendo diferir somente em características relativas ao tamanho e à forma do produto, prazo sentados com a mesma
forma farmacêutica, con-
de validade, embalagem, rotulagem, excipientes e veículos. Devem sempre ser identificados por
tendo idêntica composição
nome comercial ou marca. qualitativa e quantitativa
de princípio(s) ativo(s) e
que tenham comparável
A principal diferença é que os genéricos são perfeitamente intercambiáveis com os biodisponibilidade, quan-
medicamentos de referência, o que deve ser comprovado pelas evidências necessárias e do estudados de acordo
com o mesmo desenho
suficientes, incluindo os testes de bioequivalência. experimental.
Pró Genéricos
Fundada em janeiro de 2001, é a entidade que congrega os principais laboratórios atuantes na
produção e comercialização de medicamentos genéricos no país. Disponível em: <www.proge-
nericos.org.br>. Acesso em: 28 set. 2012.
15.000
14.130
14.000
13.000 12.845
12.000
10.950
11.000
10.000
9.000 8.370
8.000
7.000
6.000 5.726
5.000
4.000 3.588
2.860 3.068 3.135
3.000 2.572
2.355
2.000 1.896 2.184
1.559 1.582
1.126
759 755
1.000 138 324 517 342 373 384
63 127 178 212 234 265 317 329 334
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011
Para refletir
Quais são as bases e os objetivos para políticas de medicamentos genéricos?
A partir de 2006, o Pacto pela Saúde (Brasil, 2006) reorganiza, entre muitos outros
aspectos, o financiamento do SUS. São criados seis blocos de financiamento, sendo de inte-
resse para a presente discussão o Bloco da Assistência Farmacêutica e o de Gestão do SUS.
É reafirmada e redefinida a responsabilidade de financiamento pelas três esferas de
governo. Fica estabelecida, além da cobertura dos medicamentos, a necessidade de recur-
sos para a organização das ações de assistência farmacêutica, o que inclui a adequação dos
ambientes de armazenagem de medicamentos e educação continuada de recursos humanos.
O financiamento dos medicamentos é estruturado em três componentes: básico, estraté-
gico e, com a denominação definida pela portaria MS/GM n. 2.981, de 2009, o especializado.
Para o componente básico são estabelecidas contrapartidas mínimas para cada esfera
de gestão, que em valores de 2010 importavam em R$ 5,10 por habitante/ano para a União
e R$ 1,86 para o nível estadual e igual valor para o municipal, sendo permitido o uso de
até 15% do montante total para a adequação de espaço físico, aquisição de mobiliário e
educação continuada da equipe, mediante aprovação da Comissão Intergestores Bipartite
(CIB) correspondente. A contrapartida financeira da União ocorre parte em valor finan-
ceiro e parte em produtos, como é o caso da insulina e de insumos do Programa de Saúde
da Mulher. Outras inovações a partir da portaria MS/GM n. 4.217/2010 (Brasil, 2010) são
o financiamento de insumos para o automonitoramento da glicemia; a inclusão de medica-
mentos fitoterápicos e homeopáticos; e de medicamentos que compõem as linhas de cuidado
do componente especializado.
O componente estratégico abarca os medicamentos, produtos e insumos para os pro-
gramas estratégicos, cujos financiamento e aquisição são de responsabilidade do Ministério
da Saúde e reúne:
• Imunobiológicos;
• Alimentação e nutrição.
Tais protocolos são também uma importante iniciativa no SUS. São elaborados tendo
como base o paradigma da terapêutica fundada em evidências e o consenso obtido por con-
sulta pública, processo no qual, antes de ser assumido como oficial, cada protocolo específico
circula um tempo na Internet para receber contribuições e críticas dos profissionais.
Assim, os esforços de reorientação da assistência farmacêutica no SUS têm envolvido
tanto a implementação de iniciativas de gestão quanto readequações dos mecanismos e do
valor do financiamento. Lembrando sempre que se tem reforçado a descentralização – se
considerados apenas os gastos federais, os medicamentos passaram a comprometer de 5,8%,
em 2002, a 12,5%, em 2010, do orçamento total do Ministério da Saúde (Gráfico 3). A Ta-
bela 1 permite visualizar a evolução da despesa do Ministério da Saúde com medicamentos
segundo grandes grupos. É visível que houve crescimento no financiamento de todos os
grupos e que o componente especializado e os medicamentos usados no HIV/Aids repre-
sentam a maior carga financeira.
Embora a adoção desses diferentes mecanismos tenha contribuído para ampliar o acesso
a medicamentos no país e melhorar a gestão da assistência farmacêutica, ainda ocorre des-
continuidade no abastecimento público, o que pode ser atribuído, em parte, ao fato de não
englobar todo o elenco definido na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename).
Como consequência, a população tem utilizado, de forma crescente, o recurso de pro-
cessar judicialmente o setor público para obter os medicamentos de que necessita, ao que o
Judiciário arbitra conforme seu entendimento em cada caso específico. Assim, a via judicial
tem não somente garantido o acesso a produtos essenciais em situações de falha do funciona-
mento do setor público, mas também a produtos novos, sem eficácia comprovada – algumas
vezes, inclusive, a produtos sem registro no país, provocando gastos elevados, desperdício de
recursos e uso não racional dos medicamentos (Messeder, Osório-de-Castro & Luiza, 2005).
8,00 7,2
5,8
6,00
4,00
2,00
0,00
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Fonte: Ministério da Saúde/SCTIE, 2011.
Tabela 1 – Gastos com medicamentos no SUS (em mil reais). Brasil – 2003-2009
A lei federal n. 12.401/2011 (Brasil, 2011) muito provavelmente alterará todo esse
processo. A partir dela, fica estabelecido o compromisso de dispensação pública especifi-
camente para medicamentos e produtos cuja prescrição esteja em conformidade com as
diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a
ser tratado. Ademais, o compromisso de fornecimento público é garantido aos atendimento
realizados pelos serviços próprios, conveniados ou contratados pelo SUS. Da mesma ma-
neira, se reconfigura no Brasil a questão de medicamentos essenciais segundo o conceito,
pois o elenco a ser financiado se consolida mais como uma lista positiva com critérios de
inclusão ampliados.
Leituras recomendadas
BERMUDEZ, J. A. Z. & OLIVEIRA, M. A. (Orgs.) La Propiedad Intelectual en el Contexto del Acuerdo sobre
los ADPIC: desafíos para la salud pública. Rio de Janeiro: Ensp/Fiocruz, 2006.
BUSS, P.; CARVALHEIRO, J. R. & ROMERO, C. P. (Orgs.) Medicamentos no Brasil: inovação e acesso.
Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008.
MARIN, N. et al. (Orgs.) Assistência Farmacêutica para Gerentes Municipais. Rio de Janeiro: Opas, OMS,
2003.
OLIVEIRA, M. A.; BERMUDEZ, J. A. Z. & OSÓRIO-DE-CASTRO, C. G. S. (Orgs.) Assistência Farma-
cêutica e Acesso a Medicamentos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.
ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE/ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE/BRASIL.
Ministério da Saúde. Avaliação da Assistência Farmacêutica no Brasil: estrutura, processo e resultados. Brasília:
Opas/OMS, Ministério da Saúde, 2005. (Série Medicamentos e outros Insumos Essenciais para a Saúde).
OSÓRIO-DE-CASTRO, C. G. S. (Org.) Estudos de Utilização de Medicamentos: noções básicas. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2000.
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). How to Implement and Develop a National Drug Policy.
Genebra: WHO, 2001.
Sites de interesse
Anvisa – Medicamentos: www.anvisa.gov.br/medicamentos/index.htm
Management Science for Health – Center for Pharmaceutical Management: www.msh.org/about-us/
technical-centers/center_for_pharmaceutical_management.cfm
Organização Mundial da Saúde – Medicines Departments: www.who.int/medicines
Organização Pan-Americana da Saúde – Medicamentos e Tecnologia Essenciais: http://new.paho.org/
bra/index.php?option=com_joomlabook&Itemid=259&task=display&id=124
Referências
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Resolução RDC n. 133, de 29
de maio de 2003a. Dispõe sobre o registro de medicamento similar e dá outras providências. Diário
Oficial da União, 19 set. 2003. Disponível em: <www.anvisa.gov.br/legis/resol/2003/index_rdc_mai.
htm>. Acesso em: set. 2012.
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Resolução RDC n. 134, de 29 de
maio de 2003b. Dispõe sobre a adequação dos medicamentos já registrados. Diário Oficial da União,
25 set. 2003.
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Listas de Estatísticas: registros valores
acumulados, 2012. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/wps/portal/anvisa/anvisa/home/medica-
mentos>. Acesso em: 28 set. 2012.
BENNETT, S.; QUICK, J. D. & VELÁSQUEZ, G. Public-Private Roles in the Pharmaceutical Sector: impli-
cations for equitable access and rational drug use. Genebra: WHO, 1997. (WHO/DAP/97.12).
BERMUDEZ, J. A. Z. Expanding access to essential medicines in Brazil: recent economic regulation,
policy making and lessons learnt. In: GRANVILLE, B. (Ed.) The Economics of Essential Medicines. Lon-
dres: Royal Institute of International Affairs, 2002.
BERMUDEZ, J. A. Z. et al. O Acordo Trips da OMC e a Proteção Patentária no Brasil: mudanças recentes e
implicações para a produção local e o acesso da população aos medicamentos. Rio de Janeiro: Ensp/Fiocruz, 2000.
BIASOTO JR., G. & NISHIJIMA, M. Uma análise estratégica da universalização. In: BAYMA, F.
& KASZNAR, B. (Orgs.) Saúde e Previdência Social: desafios para o terceiro milênio. São Paulo: Pearson
Education, 2003.
BONFIM, J. R. A. & MERCUCCI, V. L. (Orgs.) A Construção da Política de Medicamentos. São Paulo:
Hucitec, Sobravime, 1997.
BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 3.916, de 30 de outubro de 1998.
Aprova a Política Nacional de Medicamentos. Diário Oficial da União, 10 nov. 1998.
BRASIL. Lei federal n. 9.787. Altera a lei n. 6.360, de 26 de setembro de 1976, que dispõe sobre a
vigilância sanitária, estabelece o medicamento genérico, dispõe sobre a utilização de nomes genéricos
em produtos farmacêuticos e dá outras providências. Diário Oficial da União, 11 fev. 1999a.
BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 176, de 8 de março de 1999. Incentivo
à Assistência Farmacêutica Básica. Diário Oficial da União, 11 mar. 1999b.
BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. 1ª Conferência Nacional de Medicamentos
e Assistência Farmacêutica efetivando o acesso, a qualidade e a humanização na assistência farmacêutica, com
controle social. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. (Relatório Final Preliminar).
BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 338. Aprova a Política
Nacional de Assistência Farmacêutica. Brasília: Conselho N acional de Saúde, 2004. Disponível em:
<bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2004/res0338_06_05_2004.html>. Acesso em: 28 set. 2012.
BRASIL. Ministério da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz. Programa Farmácia Popular do Brasil: manual
básico. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.
BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria MS/GM n. 399, de 22 de fevereiro de
2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006 – Consolidação do SUS – e aprova as Diretrizes Operacionais
do referido Pacto. Diário Oficial da União, 6 nov. 2006.
BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n. 2.981, de 26 de novembro de 2009.
Aprova o Componente Especializado da Assistência Farmacêutica. Diário Oficial da União, 30 nov. 2009.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria GB n. 4.217, de 28 de dezembro de 2010. Aprova as normas
de financiamento e execução do componente básico da Assistência Farmacêutica. Brasília: Diário Oficial
da União, 29 dez. 2010.
BRASIL. Lei n. 12.401, de 28 de abril de 2011. Altera a lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, para
dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema
Único de Saúde – SUS. Diário Oficial da União, 29 abr. 2011.
CAMERON, A. et al. Medicine prices, availability, and affordability in 36 developing and middle-
income countries: a secondary analysis. The Lancet (online), 1, dez. 2008. Disponível em: <www.
thelancet.com/journals/lancet/issue/vol373no9659/PIIS0140-6736%2809%29X6057-5>. Acesso em:
28 set. 2012.
CHAVES, G. C. & OLIVEIRA, M. A. A proposal for measuring the degree of public health-sensitivity
of patent legislation in the context of the WTO Trips Agreement. Bulletin of the World Health Organi-
zation, 85: 49-56, 2007.
CREESE, A. & QUICK, J. Working Paper on Differential Pricing Arrangements and Feasibility. Genebra:
World Health Organization, 2001.
FERREIRA, R. L. Análise de Implantação do Programa Farmácia Popular do Brasil no Rio de Janeiro e no
Distrito Federal: um estudo de casos, 2006. Mestrado em Saúde Pública, Rio de Janeiro: Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz.
FONSECA, M. G. P. & BASTOS, F. I. Vinte e cinco anos da epidemia de Aids no Brasil: principais
achados epidemiológicos, 1980-2005. Cadernos de Saúde Pública, 23 (Sup 3): S333-S344, 2007.
HALAL, I. S. et al. Avaliação da qualidade de assistência primária à saúde em localidade urbana da
região Sul do Brasil. Revista de Saúde Pública, 28(2): 131-136, 1994.
HASENCLEVER, L. et al. Diagnóstico da Indústria Farmacêutica Brasileira. Rio de Janeiro: Unesco, FUJB,
IE-UFRJ, 2002. (Relatório de Pesquisa)
HEALTH ACTION INTERNATIONAL/WORLD HEALTH ORGANIZATION (HAI/WHO). Medicines
Prices: a new approach to measurement. Genebra: HAI/WHO, 2003.
HENRY, D. & LEXCHIN, J. The pharmaceutical industry as a medicines provider. The Lancet, 360:
1.590-1.595, 2002.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa de Orçamentos Fami-
liares 2008-2009: despesas, rendimentos e condições de vida. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
MANAGEMENT SCIENCES FOR HEALTH (MSH). Managing Drug Supply: the selection, procurement,
distribution and use of pharmaceuticals. Connecticut: Kumarian Press, 1997.
MCISAAC, W. et al. Reflexions on a month in the life of the Ontario drug benefit plan. Canadian Medical
Association Journal, 150: 473-477, 1994.
MÉDICINS SANS FRONTIÈRES (MSF)/DOCTORS WITHOUT BORDERS. Fatal Imbalance: the crisis
in research and development for drugs for neglected diseases, 2001. Disponível em: <www.doctorswithout-
borders.org/publications/reports/2001/fatal_imbalance_2001.pdf>. Acesso em: 28 set. 2012.
MESSEDER, A. M.; OSÓRIO-DE-CASTRO, C. G. S. & LUIZA, V. L. Mandados judiciais como ferra-
menta para garantia do acesso a medicamentos no setor público: a experiência do estado do Rio de
Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 21(2): 525-534, 2005.
MINISTÉRIO DA SAÚDE/SECRETARIA DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INSUMOS ESTRA-
TÉGICOS (SCTIE). Estruturação Institucional no âmbito do Complexo Industrial da Saúde (CIS).
Apresentação realizada no Seminário sobre Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo, Fundação
Getulio Vargas, SP, 29 abr. 2011. Disponível em: <www.google.com.br/search?q=Percentual+de+ga
stos+com+medicamentos>. Acesso em: 28 set. 2012.
OLIVEIRA, M. A.; BERMUDEZ, J. A. Z. & OSÓRIO-DE-CASTRO, C. G. S. Assistência Farmacêutica e
Acesso a Medicamentos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.
OLIVEIRA, M. A.; CHAVES, G. C. & EPSZTEJN, R. Legislación brasileña de propiedad intelectual:
la propiedad intelectual en el contexto del acuerdo sobre los ADPIC – desafíos para la salud pública.
In: BERMUDEZ, J. A. Z. & OLIVEIRA, M. A. (Orgs.) La Propiedad Intelectual en el Contexto del Acuerdo
de la OMC sobre los ADPIC: desafíos para la salud pública. Rio de Janeiro: Ensp, OMS, 2006.
OLIVEIRA, M. A. et al. Has the implementation of the Trips Agreement in Latin America and the
Caribbean produced intellectual property legislation that favours public health policy? Bulletin of the
World Health Organization, 82: 815-821, 2004.
ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD (OMS). Cómo Desarrollar y Aplicar una Política Farmacéutica
Nacional. 2. ed. Genebra: OMS, 2002. Disponível em: <www.who.int/medicinedocs/en/d/Js5410s>.
Acesso em: 28 set. 2012.
PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO (PNUD). Coleção de estudos
temáticos sobre os objetivos de desenvolvimento do milênio, 2001. Disponível em: <www.dominiopu-
blico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=14526>. Acesso em: 28 set. 2012.
UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME (UNDP). Good Practice Guide: improving access
to treatment by utilizing public health flexibilities in the WTO Trips Agreement. Nova York: UNDP, 2010. Dis-
ponível em: <http://apps.who.int/medicinedocs/en/m/abstract/Js17762en/>. Acesso em: 28 set. 2012.
WANING B.; DIEDRICHSEN, E. & MOON, S. A lifeline to treatment: the role or Indian generic
manufacturers in supplying antiretroviral medicines to developing countries. Journal of the International
Aids Society, 13: 35, 2010.
WILKEN, P. R. C. & BERMUDEZ, J. A. Z. A Farmácia no Hospital: como avaliar? Rio de Janeiro: Ágora
da Ilha, 1999.
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). The Rational Use of Drugs. Report of the Conference
of Experts. Nairobi, 25-29 nov. 1985. Genebra: WHO, 1987.
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). WHO Medicines Strategy. Genebra: WHO, 2001. (World
Health Assembly Resolution WHA 54.11)
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). The World Medicines Situation. Genebra: WHO, 2004.
Disponível em: <http://apps.who.int/medicinedocs/en/d/Js6160e/2.html>. Acesso em: 28 set. 2012.
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). The World Medicines Situation: medicines expenditures.
Genebra: WHO, 2011. Disponível em: <http://apps.who.int/medicinedocs/en/m/abstract/Js18767en/>.
Acesso em: 28 set. 2012.
Sarah Escorel
Marcelo Rasga Moreira
Os múltiplos significados da palavra ‘participação’ fazem com que essa categoria seja,
necessariamente, ampla e geral. Isso significa que, ao menos no campo analítico, participação
deve ser considerada como uma categoria polissêmica (com múltiplos sentidos e significa-
dos), que abriga diferentes nuanças, desdobramentos e estratificações, produzindo novas
categorias que, articuladas, procuram abranger o maior número de aspectos possíveis das
realidades a serem compreendidas e explicadas.
Exemplos dessa polissemia são as categorias ‘participação social’, ‘participação popu-
lar’ e ‘participação comunitária’, que, embora tendo uma mesma origem (a categoria guar-
dachuva ‘participação’) e apresentando aspectos convergentes, guardam especificidades
próprias, visto que procuram analisar diferentes realidades.
Uma tipologia da participação considera os espaços em que ela ocorre: dos mais micros,
como o cotidiano das relações familiares, para, em movimento crescente, espraiar-se por
outras instâncias e instituições até chegar a um patamar mais macro, no qual se pretende
intervir nas leis e políticas que regulam a sociedade.
Microparticipação, a “associação voluntária de duas ou mais pessoas numa atividade
comum na qual elas não pretendem unicamente tirar benefícios pessoais e imediatos” (Bor-
denave, 1983: 24), possui uma função instrumental, mas também pedagógica, na medida
em que tem grande importância na formação de hábitos participativos que extrapolam a
dimensão familiar.
Formados com tais hábitos, os sujeitos estariam mais habilitados a reproduzir em suas
outras relações sociais uma prática de valorização do público e do coletivo. Essa caracterís-
tica é multiplicada à medida que indivíduos e grupos se inserem em instâncias que também
valorizam a criação e o fomento de espaços públicos.
Paulo Freire foi um ardoroso defensor da escola como uma dessas instâncias, demons-
Capital social trando que a relação participativa professor-aluno inspira novas práticas sociais marcadas pela
É um conjunto de ca-
racterísticas pessoais e
construção conjunta de uma explicação crítico-reflexiva do mundo, na qual preponderam
sociais de cooperação e o respeito à diversidade, à valorização do coletivo via a autonomia cidadã do indivíduo e à
confiança que indivíduos superação de relações opressivas cristalizadas na sociedade capitalista. Instituições voltadas
e grupos portam e lhes
garante relações, apoios e para a valorização do público e que incentivam a participação contribuiriam, assim, para a
alianças vitais para a con- ampliação do capital social e a disseminação de uma cultura participativa.
secução de seus objetivos.
Putnam (1996) considera Entretanto, a participação não pode ser naturalizada como algo positivo em si mesmo
o capital social como um nem desvinculada das relações sociais, econômicas e políticas. Vários autores, além dos já
elemento-chave para o mencionados, trabalharam e procuraram construir categorias para analisar as relações par-
desenvolvimento social e
econômico. ticipativas, de acordo com suas diferentes práticas, campos do saber e abordagens teóricas:
Valla (1998), Silva e Labra (2001), Reis (2002), Gerschman (2004), Coelho e Nobre (2004),
Fleury e Lobato (2009), Labra (2009), Côrtes (2009a).
diferente das formas anteriormente referidas nas quais está presente a marginalização. No
extremo, poder-se-ia dizer que a opção por não participar de uma situação é, em si, uma
maneira de participar.
O papel dos espaços de participação está configurado por duas dimensões interligadas:
uma mais imediata e pragmática, que congrega os esforços dos sujeitos diretamente inte-
ressados na situação; outra, mais ampla, multiplicadora e até mesmo conscientizadora, que
compreende a construção e a difusão de uma cultura participativa promotora da interação
com sujeitos que, mesmo não envolvidos com uma determinada situação, podem, de alguma
maneira, contribuir para a realização dos objetivos.
A análise da dimensão de reunião dos sujeitos inclui aspectos ligados à organização,
à democratização, à autonomia e à gestão da instância participativa – em especial os que se
referem às regras de ingresso dos sujeitos interessados em participar –, às oportunidades que
estes sujeitos têm de atuar e de deliberar – em particular o acesso à informação –, aos recursos
voltados para a qualificação e a capacitação dos sujeitos, à sustentabilidade e à resolutividade.
Se o funcionamento da instância participativa não se restringe àqueles que já partici-
pam, mas amplia-se e torna-se mais permeável à inclusão de novos sujeitos e ao intercâmbio
com outras instâncias participativas, a tendência é a formação de uma rede para a troca de
experiências, valores e conceitos.
A construção e o pleno funcionamento de uma rede participativa encontram um
contraponto nas instituições que são os alvos das ações das instâncias participativas. Na
análise dessa relação, deve-se verificar em que medida há reconhecimento e legitimidade
das instâncias participativas pelas instituições.
Para refletir
Elabore uma forma de interferir na política da sua instituição. Não se esqueça de definir o ponto
de partida e de seguir a dinâmica participativa usando os atributos e as características expostas
anteriormente.
Participação Social 859
Para Dahl, não há, nas sociedades contemporâneas, assim como não houve nas pas-
Sociedades poliárquicas
sadas, alguma que tenha concretizado plenamente essas oportunidades. Por isso, trabalha
são as que foram substan-
cialmente popularizadas com a ideia de poliarquia, categoria que tem como objetivo construir parâmetros para que
e liberalizadas, isto é, se possam medir e comparar, a partir de experiências sociais concretas e existentes, as so-
fortemente inclusivas e
abertas à contestação po- ciedades que mais se aproximam ou se afastam da democracia.
lítica, mas que, em uma Esquematicamente, o ideal democrático de Dahl baseia-se em dois eixos: ‘liberaliza-
escala evolutiva, ainda
não atingiram o grau
ção’, a capacidade de uma sociedade de construir instituições que viabilizem a participação,
máximo de democracia. individual ou coletiva, dos cidadãos; e ‘inclusão’, as possibilidades que os diferentes sujeitos,
sobretudo aqueles que contestam o governo, têm de se utilizar dessas instituições para ma-
nifestarem suas opiniões. Na visão liberal contemporânea, parlamentos fortes são essenciais
para a democracia: é esta fortaleza que permite, inclusive, a participação dos setores mais
radicais da sociedade. As atenções voltam-se, então, para a necessidade da expansão e do
fortalecimento dos processos eleitorais, com liberdade para a criação de partidos e a postu-
lação de candidaturas (Dahl, 1997).
histórica, que estabelece, também, um ambiente participativo, uma sociedade estaria preparada
para lidar adequadamente com a variedade de objetivos dos sujeitos participantes, administrando,
de maneira transparente, as diversidades.
A premissa básica é a de que os conflitos gerados pela diversidade de objetivos precisam ser ins-
titucionalizados, pois, se sua superação não for decidida por instituições plenamente aceitas pela
sociedade como os fóruns adequados para regular as relações conflituosas, tendem a se expandir
tanto que colocariam em risco a organização democrática da sociedade.
A ampliação dos sujeitos participantes sem a devida ampliação institucionalizadora teria como
efeito negativo a não aceitação das instituições como fórum adequado. Assim, dificilmente o con-
flito seria dirimido dentro das regras do jogo democrático, abrindo espaço para o uso da força e
o surgimento de ditaduras.
Para refletir
Considerando o grau de participação da sociedade nas instâncias que deliberam sobre as políticas
públicas, como você definiria a democracia no país? Remetendo-se à concepção liberal contem-
porânea, você considera que o Brasil é uma sociedade poliárquica? Por quê?
“Os soviets eram uma democracia autêntica (...) não tinham uma câmara alta e câmara baixa como
a maioria das democracias ocidentais; prescindiam da burguesia profissional e neles os eleitores
tinham o direito de destituir seus representantes a qualquer momento. Tinham suas bases na
classe operária das fábricas, e a extensão de seu poder era de ser simplesmente um governo dos
trabalhadores em embrião” (Trótski apud Bottomore, 1988: 77).
862 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
A proposta revolucionária, pelo menos em seus primeiros anos, considerava, assim como
Marx, o Estado como uma superestrutura capitalista construída para manter a dominação
de classes e visava a descentralizar o poder para os soviets, apostando numa radicalização da
participação social. Na elaboração da Constituição soviética de 1917, o projeto original foi
analisado em mais de 50.000 soviets, sendo que cerca de 322.000 deputados (representantes
dos eleitores nos soviets) apresentaram algum tipo de proposta ou emenda.
“Todo o poder aos soviets”, o famoso mote usado por Lênin e Trótski, pode ser lido,
à luz da categoria participação social, como uma forma de transformar as instâncias parti-
cipativas em instituições, buscando eliminar ou, pelo menos, reduzir as mediações entre os
sujeitos, o ciclo de políticas e os bens sociais que estas produzem e distribuem.
Para Gramsci, os conselhos participativos (que, no caso da Itália, eram os ‘conselhos
de fábrica’) não seriam somente uma organização para levar adiante a luta de classes, mas
as bases de um novo tipo de Estado: a comunidade dos trabalhadores, na qual o sistema
estatal seria uma federação de conselhos unificados.
Em outras palavras: os conselhos radicalizariam o espaço público, ampliariam a parti-
cipação direta (democracia ‘não delegada’) e reduziriam (mas sem extinguir) a necessidade
de representação, numa sequência em que o sujeito pode apresentar seus desejos e interes-
ses, e direcionar, cada vez mais diretamente, com menos intermediários, seus objetivos aos
responsáveis pelas políticas públicas.
Na Iugoslávia, após a Segunda Guerra Mundial, foi desenvolvido o sistema denomi-
nado ‘autogestão’, no qual, por meio dos conselhos operários, os trabalhadores exerceram
diretamente um papel de direção tanto no sistema econômico como no político, na fábrica
(com objetivos gerenciais) e no território.
A participação social seria a essência da sociedade socialista. Porém, a proposta mar-
Guerra Fria
xista de dissolução do Estado como caminho para o comunismo não foi experimentada pela
Nome recebido pelo con-
tencioso entre os países
revolução soviética. De modo diverso, a proposta implementada por Stalin no contexto
capitalistas, liderados da Guerra Fria transformou o Estado soviético em uma instituição totalitária, reduzindo
pelos EUA, e os países consideravelmente as instâncias participativas (soviets) e as possibilidades dos sujeitos de
socialistas, liderados pela
URSS, que se seguiu à Se- participarem diretamente do ciclo de políticas. Quando, no final do século XX, o sistema
gunda Guerra Mundial, socialista desmoronou, a democracia instaurada nesses países significou, principalmente, a
e em que os dois blocos
instituição do livre mercado em detrimento da participação social.
perpetuaram a ‘guerra’
ideológica sem disparar No início do século XXI, as democracias representativas defrontam-se com o des-
tiros, mas criando armas prestígio de seus ideais democráticos, que supõem cidadãos atentos à evolução da coisa
cada vez mais poderosas.
pública, informados dos acontecimentos políticos, a par dos principais problemas, capazes
de escolher entre as diversas alternativas apresentadas pelas forças políticas e fortemente
Eurobarômetro interessados em formas diretas ou indiretas de participação. A forma mais comum e, para
É uma iniciativa da União muitos a única, é a participação eleitoral.
Europeia que monitora
a opinião pública dos
Estudos feitos pelo Eurobarômetro demonstram que até mesmo em sociedades euro-
países-membros sobre peias, nas quais a história da valorização institucional foi mais forte, os processos eleitorais e
temas que lhe são afeitos, parlamentares estão cada vez mais desacreditados. Os EUA também passam por tal situação,
dentre os quais se destaca
a preocupação com os nítida nos momentos de eleição presidencial, que apresentam altas e crescentes taxas de
ideais democráticos. abstencionismo, em especial das camadas que mais necessitam das políticas públicas. Em
Consulte: <www.ec. europa. situações como estas verifica-se também a “patologia da representação” (Santos & Avritzer,
eu/public_opinion>.
2002), em que os cidadãos sentem-se cada vez menos representados por aqueles que elegeram.
Participação Social 863
Além disso, a militância em partidos políticos atinge uma faixa bem limitada da população e
nem todos os inscritos participam ativamente. Também é baixa a inscrição em outras associações
que exercem influência na vida política, como sindicatos, associações culturais, recreativas etc.
Nesse contexto de baixa intensidade participativa, movimentos sociais surgidos após
1968, em torno de características de identidade, sobretudo os que têm conseguido agluti-
nar o interesse de determinados segmentos da sociedade, chegam a suplantar, em alguns
momentos, as formas mais tradicionais de representação.
Outras formas novas e menos pacíficas de participação, como as manifestações de pro-
testo, marchas, ocupação de edifícios etc., são tão esporádicas que não levam quase nunca à
criação de instrumentos organizativos, isto é, à institucionalização da participação (Bobbio,
Matteuci & Pasquino, 1991).
O desencanto com a democracia seria decorrente da proposta que se tornou hegemô-
nica ao final das duas guerras mundiais – a democracia de baixo impacto – que implicou uma
restrição das formas de participação e soberania ampliadas, em favor de um consenso em
torno de um procedimento eleitoral para a formação de governos (Santos & Avritzer, 2002).
reforma democrática do Estado, ou seja, à orientação das políticas públicas para a promoção
da justiça social, e à construção de uma nova gramática social mais inclusiva.
Para refletir
O reconhecimento e a ampliação das instâncias de democracia participativa podem resultar em
conflitos com as instâncias de democracia representativa. Prefeitos e câmaras de vereadores eleitos
por milhares ou mesmo milhões de eleitores podem questionar a legitimidade de decisões toma-
das por representantes de segmentos sociais que não se submeteram ao sufrágio eleitoral. Reflita
sobre as relações entre essas duas formas de participação e sobre as possibilidades de superação
destes conflitos, em um processo de aprimoramento democrático.
• Plebiscito – quando a população é chamada a decidir sobre algo que ainda não foi
transformado em ato legal. Apesar de estar presente já na Constituição de 1946, só
foram realizados dois plebiscitos no Brasil, ambos envolvendo a forma de governo:
parlamentarismo versus presidencialismo. O primeiro, em 1963, esteve diretamente
ligado ao golpe de 1964.
Em 1961, a renúncia do presidente Jânio Quadros abriu vaga para que João Goulart,
o vice-presidente (na época eleito em separado), assumisse o cargo. Contudo, as forças
políticas ligadas ao empresariado e aos círculos militares, opositores das propostas
trabalhistas e populistas defendidas por Jango, aceitaram sua posse desde que fosse
implantado o parlamentarismo como forma de reduzir os poderes do presidente. No
plebiscito de 1963, a população deliberou sobre a restauração do presidencialismo, o
que descontentou esses segmentos que, pouco tempo depois, promoveriam o golpe
militar, a derrubada de Goulart e a instauração da ditadura.
O segundo plebiscito foi realizado em 1993, num contexto político de consolidação do
regime democrático muito diferente do anterior. Nesse caso, tratou-se efetivamente de
Participação Social 865
Orçamento participativo
Criado em 1989, quando o Partido dos Trabalhadores (PT) assumiu a administração de Porto
Alegre (RS), o orçamento participativo é uma inovação institucional que procura romper com a
tradição autoritária e patrimonialista das políticas públicas, recorrendo à participação direta da
população em diferentes fases da preparação e da execução orçamentária, com uma preocupação
especial pela definição de prioridades para a distribuição dos recursos de investimento.
O orçamento participativo é uma estrutura e um processo de participação comunitária baseado em
três grandes princípios e em um conjunto de instituições que funcionam como mecanismos ou ca-
nais de participação popular sustentada no processo de tomada das decisões do governo municipal.
Os princípios são: todos têm direito de participar; a participação é dirigida por uma combinação
de regras da democracia direta e de democracia representativa, e realiza-se através de instituições
866 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
Quando iniciativas desse tipo encontram respaldo na gestão pública, conseguem atingir
níveis mais elevados de participação social. Isso ocorre porque a gestão participativa permeia
a instituição que gerencia (um órgão público, uma secretaria, um ministério, ou mesmo o
Poder Executivo como um todo), reconhecendo legitimidade às instâncias participativas
(conselhos de Saúde, comitês de orçamento, conselhos tutelares, comissões...) e garantindo o
cumprimento de suas deliberações. Com isso, os sujeitos que participam compreendem seu
poder, o mesmo acontecendo com os que não participaram. A participação social valoriza-se
e cresce uma cultura participativa que se amplia para outros campos e setores em busca de
uma rede participativa.
O tópico a seguir procura situar e analisar a participação social no setor saúde. A de-
mocratização do setor saúde preconizada pelo movimento sanitário (Escorel, 1999) ou da
Reforma Sanitária tornou-se uma experiência modelar para outros países e, internamente,
para outros setores. Foi consubstanciada em um “formidável sistema nacional de órgãos
colegiados” (Carvalho, 1997: 93) que institucionalizou a participação da sociedade civil no
processo de formação das políticas de saúde, numa cogestão social que se processa no in-
terior do aparelho do Estado, configurando um verdadeiro sistema de accountability social
no Brasil (Labra, 2009).
Accountability
Este conceito do campo da ética não encontra um correspondente preciso em português. Costuma
ser traduzido por ‘responsabilização’ e significa uma obrigação moral de dar transparência às ações
e de prestar contas. Dessa forma, os governantes sentem-se obrigados a prestar contas das ações
realizadas, e os cidadãos os consideram responsáveis pelas consequências. É um ‘instrumento’ de
controle do poder e um atributo que integra o controle social.
Participação Social 867
Ao longo das últimas quatro décadas, houve uma mudança qualitativa na forma de
participação. Na década de 1970, despontou sob a denominação de ‘participação comuni-
tária’ em programas de extensão de cobertura preconizados pelas agências internacionais
de saúde para a América Latina. Tais programas não só incentivavam o aproveitamento
do trabalho não qualificado da população nas ações sanitárias, mas também valorizavam a
organização autônoma da comunidade como possibilidade de conseguir melhorias sociais
(Carvalho, 1995).
Em contextos ditatoriais, como era o caso de muitos países da América Latina, inclusive
o do Brasil, esses programas ou foram implementados mutilando a dimensão participativa
ou utilizados por agentes e intencionalidades contestatórias do status quo político-sanitário,
em busca da construção/divulgação de um projeto sanitário contra-hegemônico.
Num segundo momento, surgiu a proposta de ‘participação popular’, em que a ca-
tegoria ‘comunidade’ foi substituída pela categoria ‘povo’, entendida como a parcela da
população excluída ou subalternizada no seu acesso a bens e serviços. Essa proposta repre-
sentou o aprofundamento da crítica e a radicalização das práticas políticas de oposição ao
sistema dominante. A participação foi preconizada no conjunto da dinâmica social, e não,
como anteriormente, em ações simplificadas no âmbito dos serviços. O lócus da participação
deixou de ser o serviço de saúde e passou a ser o conjunto da sociedade e do Estado, ga-
nhando novo objetivo – a democratização da saúde, ou seja, o acesso universal e igualitário
aos serviços e também acesso ao poder. As experiências baseadas nesse referencial foram
contemporâneas aos movimentos sociais urbanos e, assim como estes, marcadas pelo con-
fronto com o Estado que era compreendido em sentido restrito como ‘comitê de negócios
da burguesia’ (Carvalho, 1995).
Na década de 1990, ganhou força a categoria ‘participação social’, que deixou de se
referir apenas à participação dos setores sociais excluídos e passou a reconhecer e a acolher
a diversidade de interesses e projetos existentes. Por isso, a categoria central deixou de
868 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
“O CNS é um órgão de consulta que deve examinar o que lhe for submetido pelo Ministério da
Saúde bem como opinar sobre matéria que por força de lei tenha que ser submetida à sua apre-
ciação.” O perfil técnico e normativo do Conselho foi mantido. Era composto pelo ministro da
Saúde, presidente nato, e quinze conselheiros, em um arranjo organizacional em que se verificam
a ausência de representantes da sociedade, a proeminência da elite médica, a sobrerrepresentação
de instituições militares e o exercício do papel de legitimador da política predominante.
Em 1976, o decreto que regulamentou a lei do Sistema Nacional de Saúde (6.229/75) definiu o
Conselho Nacional de Saúde como uma espécie de coletivo de câmaras técnicas a quem competia
examinar, propor soluções para problemas e elaborar normas encaminhadas para a apreciação do
ministro de Estado. Duas portarias ministeriais, de 1977 e 1978, estabeleceram a estrutura técnica
e administrativa do Conselho para seu funcionamento como órgão consultivo com atribuições
normativas. Nessa ocasião, sua composição foi alterada: continuou sendo presidido pelo ministro
da Saúde, mas passou a ser composto por 23 membros, dos quais seis representantes ministeriais;
seis presidentes de câmaras técnicas; seis membros de instituições relacionadas com a saúde e
com a segurança nacional; e cinco técnicos de notória capacidade e comprovada experiência em
assuntos de interesse da saúde.
Entre 1970 e 1990, o Conselho teve pouca importância na formulação e no acompanhamento da
política de saúde. Nesse período, outras instâncias de articulação ministerial foram criadas, como a
Comissão Interministerial de Planejamento (Ciplan). Após a 8ª Conferência, a Comissão Nacional de
Reforma Sanitária foi o espaço privilegiado de debate sobre o projeto de saúde para a Constituinte.
Em 1990, já sob a égide da nova Constituição brasileira e da criação do SUS, o decreto 99.438/90
configurou um novo Conselho Nacional de Saúde com ampla representação social, composto por
31 membros e com as seguintes atribuições e competências:
• deliberar sobre: formulação de estratégias e controle da execução da política nacional de saúde
em âmbito federal; critérios para a definição de padrões e parâmetros assistenciais;
• manifestar-se sobre a Política Nacional de Saúde;
• decidir sobre: planos estaduais de saúde, quando solicitado pelos conselhos estaduais de Saúde;
divergências levantadas pelos conselhos estaduais e municipais de Saúde, bem como por órgãos
de representação na área da saúde; credenciamento de instituições de saúde que se candidatem
a realizar pesquisas em seres humanos;
• opinar sobre a criação de novos cursos superiores na área de saúde, em articulação com o
Ministério da Educação e do Desporto;
• estabelecer diretrizes a serem observadas na elaboração dos planos de saúde em função das
características epidemiológicas e da organização dos serviços;
• acompanhar a execução do cronograma de transferência de recursos financeiros, consignados
ao SUS, aos estados, municípios e Distrito Federal;
• aprovar os critérios e valores para a remuneração dos serviços e os parâmetros de cobertura
assistencial;
• acompanhar e controlar as atividades das instituições privadas de saúde, credenciadas mediante
contrato, ajuste ou convênio;
• acompanhar o processo de desenvolvimento e incorporação científica e tecnológica na área de
saúde, para a observância de padrões éticos compatíveis com o desenvolvimento sociocultural
do país;
• propor a convocação e organizar a Conferência Nacional de Saúde, ordinariamente a cada
quatro anos e, extraordinariamente, quando o Conselho assim deliberar, de acordo com a lei
8.142, de 28 de dezembro de 1990.
Entre 1990 e 1993 o Conselho Nacional de Saúde esteve no centro da arena política setorial, sendo
o principal fórum em que foi travada “a disputa por ampliação de influência sobre os rumos da
870 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
política nacional”. No entanto, com a criação das Comissões Intergestores Bipartite e Tripartite
(CIB e CIT), por iniciativa do próprio Conselho em 1991, este foi relegado a um segundo plano,
na medida em que, a partir de 1993, os gestores priorizaram a CIT como espaço decisório e de
coordenação federativa do SUS. Além disso, “a estratégia adotada pelos conselheiros provenientes
de entidades sociais de restringir a influência dos representantes de entidades de mercado, de
médicos e de gestores no processo decisório do Conselho” impulsionou-os a buscar outros espa-
ços políticos para defender seus interesses e apresentar suas propostas. Assim, embora tivessem
reduzida “sua influência no interior do fórum, continuaram a ocupar posições muito influentes
na arena decisória setorial” (Côrtes, 2009a: 200-202).
Em 2002, o Conselho Nacional de Saúde tinha o ministro da Saúde como presidente nato e era
composto por 32 conselheiros titulares: seis representantes do governo federal, dois representan-
tes dos gestores estaduais e municipais cada. A categoria médica e outros profissionais de saúde,
assim como os prestadores de serviços de saúde tinham três vagas cada, e os usuários ocupavam
a metade das vagas (16).
O decreto n. 5.839, de 2006, promoveu nova reforma na composição do Conselho, que passou a
contar com 48 conselheiros titulares e, pela primeira vez, a eleger seu presidente, sendo o primeiro
representante do segmento dos trabalhadores da saúde que após dois mandatos foi substituído,
em 2011, em eleição, pelo ministro da Saúde.
Os 48 conselheiros representam os seguintes segmentos: entidades e movimentos sociais de
usuários do SUS (24); profissionais de saúde, incluída a comunidade científica (12); prestadores
de serviço (2); entidades empresariais da área de saúde (2); e gestores federais (6), estaduais (1)
e municipais (1).
Entre 1990 e 2006 as organizações de profissionais e trabalhadores de saúde passaram de 4 (um
da categoria médica) para 12 (um da categoria médica); as associações comunitárias, movimentos
sociais e organizações não governamentais, de 2 para 6 conselheiros; e as entidades étnicas, de
gênero e portadores de patologias, de 5 para 13 representantes. Portanto, em 2006, os represen-
tantes dos profissionais e trabalhadores de saúde e das entidades étnicas, de gênero e portadores
de patologias detinham mais de 50% dos votos (25 dos 48) no Conselho. Além do maior núme-
ro de conselheiros de organizações sociais, estes eram mais assíduos, coordenavam maior número
de instâncias organizativas do Conselho e dos debates do plenário, se manifestavam com mais
frequência durante as discussões e representavam mais vezes o Conselho em atividades externas
(Côrtes et al., 2009a).
O Conselho Nacional de Saúde continua a desempenhar importante papel no contexto da polí-
tica de saúde como instância de fiscalização, espaço de discussão pública de propostas e lócus de
agregação de atores individuais e coletivos comprometidos com o controle social e com a defesa
dos princípios fundamentais do SUS (Côrtes, 2009a).
de Saúde, oferecendo apoio técnico e financeiro. Cabe também à SGEP viabilizar administrativa
e financeiramente a participação de conselheiros nacionais nas conferências nacionais de Saúde e
na Plenária Nacional dos Conselhos de Saúde.
A Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa estabelece a participação da SGEP no
processo de educação permanente dos conselheiros nacionais, estaduais, municipais e dos con-
selheiros de gestão participativa e a sua responsabilidade em disponibilizar o resultado de suas
ações ao CNS.
A SGEP, entre diversas outras atribuições e responsabilidades, deve, ainda, apoiar o fortalecimento
dos movimentos sociais, aproximando-os da organização das práticas de saúde e das instâncias
de controle social da saúde.
Fontes: Morais & Escorel, no prelo; Brasil, 2007.
Para refletir
Identifique em seu cotidiano formas de participação na política de saúde e reflita a respeito de
suas potencialidades e de seus limites.
Conselhos de Saúde
A lei 8.142/90 regulamenta a participação da comunidade na gestão do SUS por meio
de conselhos de Saúde que devem existir em nível local, municipal, estadual e federal. Um
conselho de Saúde é definido, na lei, como
Órgão colegiado, em caráter permanente e deliberativo, composto por representantes do
governo, prestadores de serviço e usuários, [que] atua na formulação de estratégias e no
controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos
econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente
constituído em cada esfera de governo.
A lei 8.142 não estipulou a paridade exata entre os segmentos, que só foi proposta
na resolução 33/1992, do Conselho Nacional de Saúde (mais tarde ratificada pela resolu-
ção 333, de 2003), e nas recomendações da 10ª e da 11ª conferências nacionais de Saúde.
A paridade estabelece que 50% dos conselheiros devem ser representantes do segmento
dos usuários, 25% dos trabalhadores de saúde e os demais 25% formados por gestores e
prestadores de serviços.
Os conselhos de Saúde integram o conjunto de ‘conselhos gestores’ criados pela
Constituição Federal e suas leis complementares para atuarem nas áreas da educação, da
assistência social, da habitação, da criança e do adolescente e do emprego. Devido a seu papel
de mediador da relação entre Estado e sociedade, os conselhos gestores foram a principal
inovação nas políticas públicas no período pós-ditadura, tornando-se uma nova esfera social-
pública (ou pública não estatal) e moldando um novo padrão para tais relações (Gohn, 2003).
Os conselhos conjugam características da democracia representativa e elementos da
democracia direta, como o controle dos atos do conselheiro, diretamente ou por meio das
entidades, e a revogabilidade do mandato (Labra, 2005).
Estudo realizado com 27 conselhos estaduais e distrital de Saúde e com 2.994 conselhos
municipais de Saúde elaborou um perfil dessas instâncias participativas a partir das respostas
mais frequentes ou, no mínimo, de metade dos conselhos (Quadro1).
874 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
Para refletir
Visite o Portal ParticipaNetSUS (www.ensp.fiocruz.br/participanetsus) e, utilizando as ferramen-
tas de pesquisa, identifique as principais características dos conselhos estaduais e municipais de
Saúde. Reflita sobre os avanços e as dificuldades enfrentadas pelos conselhos.
Nos oito anos do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foram criados ou
ampliados diversos canais de interlocução do Estado com os movimentos sociais – conferên-
cias, conselhos, ouvidorias, mesas de diálogo, mesas de negociação permanente, audiências
públicas etc. – que configuram o embrião de um verdadeiro sistema nacional de demo-
cracia participativa. A partir de 2003, a Secretaria Geral da Presidência da República, que
tradicionalmente é um órgão de assessoramento das articulações políticas do governo com
o Congresso, ganhou formalmente a função de estabelecer uma estreita comunicação do
governo com a sociedade civil organizada (Ipea, 2011). Essa secretaria coordenou o proces-
so participativo do debate do Plano Plurianual (PPA 2004-2007) ocorrido em 2003, com a
realização de audiências públicas descentralizadas.
Em 2011 existiam 61 conselhos de participação social assessorando as ações de todos
os ministérios, dos quais 33 foram criados ou recriados (18), ou democratizados (15) desde
2003 (Ipea, 2011). Das oitenta conferências nacionais realizadas nos últimos vinte anos,
setenta delas ocorreram a partir desse ano. A saúde foi o grupo temático que mais realizou
conferências (21), nacionais ou de temas específicos da saúde como saúde bucal, saúde do
trabalhador, saúde indígena, saúde mental, saúde ambiental. Vinte conferências abordaram
o grupo temático ‘minorias’ englobando povos indígenas, juventude, direitos da criança e
do adolescente, promoção da igualdade racial, direitos da pessoa com deficiência, direitos
da pessoa idosa. Outras 22 conferências debateram temas agrupados em Estado, economia e
desenvolvimento (economia solidária, agricultura e pesca, segurança alimentar e nutricional,
cidades, arranjos produtivos locais) e 17 conferências abordaram temas relativos a educação,
cultura, assistência social e esporte (Pogrebinschi & Santos, 2010).
Embora haja concordância sobre o fato de terem aumentado os espaços e processos
participativos, os estudiosos discordam quanto ao seu significado. De acordo com Moroni
(2009), foram abertos espaços de ‘interlocução’, incorporando sujeitos políticos, bons na
mobilização e com capilaridade, porém não atores políticos ou sujeitos sociais, com envol-
vimento no processo de tomada de decisão. No seu entender, o processo de elaboração do
PPA 2004-2007 foi “um verdadeiro espetáculo da participação”, restrito, com discussões
limitadas e incorporação de aspectos periféricos, sem mudar a lógica das políticas.
Por sua vez, Côrtez (2009b: 122) menciona estudos que comprovam que no setor saúde
o impacto das conferências nas decisões políticas é pequeno, seja nos aspectos relacionados ao
financiamento, seja na definição de prioridades. Em contrapartida, Pogrebinschi e Santos (2010)
Participação Social 879
identificaram que um quinto dos projetos de lei e quase metade das propostas de emenda
constitucional que tramitavam no Congresso em outubro de 2009 apresentavam forte con-
vergência com deliberações de alguma conferência.
Leituras recomendadas
BORDENAVE, J. E. D. O que É Participação. São Paulo: Brasiliense, 1983. (Coleção Primeiros Passos, 95)
CARVALHO, A. I. de. Conselhos de Saúde no Brasil: participação cidadã e controle social. Rio de Janeiro:
Fase, Ibam, 1995.
CÔRTES, S. V. (Org.) Participação e Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.
DAHL, R. Poliarquia. São Paulo: Edusp, 1997.
LABRA, E. Conselhos de Saúde: dilemas, avanços e desafios. In: LIMA, N. et al. (Orgs.) Saúde e Demo-
cracia: história e perspectivas do SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.
SANTOS, B. de S. & AVRITZER, L. Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, B. de S. (Org.)
Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
Sites de interesse
Conselho Nacional de Saúde: http://conselho.saude.gov.br
Eurobarômetro: http://ec.europa.eu/public_opinion/index_en.htm
Latinobarômetro: www.latinobarometro.org/latino/latinobarometro.jsp
Orçamento Participativo de Porto Alegre (RS): www2.portoalegre.rs.gov.br/op
ParticipaNetSUS: www4.ensp.fiocruz.br/participanetsus_novo
Secretaria de Articulação Social da Secretaria Geral da Presidência da República: www.secretariageral.
gov.br/art_social
Referências
ARENDT, H. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.
BOBBIO, N.; MATTEUCI, N. & PASQUINO, G. Dicionário de Política. Brasília: Editora UnB, 1991.
BONONE, L. Iuperj revela: conferências geram medidas efetivas. Soa Brasil: Sociedade dos Amigos da
TV Brasil, 20 abr. 2010. Disponível em: <http://amigosdatvbrasil.blogspot.co.uk/2010/04/iuperj-revela
conferencias-geram.html>. Acesso em: ago. 2012.
BORDENAVE, J. E. D. O que É Participação? São Paulo: Brasiliense, 1983. (Coleção Primeiros Passos, 95)
BOTTOMORE, T. Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
BRASIL. Ministério da Saúde. 8ª Conferência Nacional de Saúde. Relatório Final. Brasília: Ministério
da Saúde, 1987.
BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Site. Disponível em: <www.conselho.
saude.gov.br>. Acesso em: set. 2007.
BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa, Brasília: Ministério
da Saúde, 2007.
CARVALHO, A. I. de. Conselhos de Saúde no Brasil: participação cidadã e controle social. Rio de Janeiro:
Fase, Ibam, 1995.
CARVALHO, A. I. de. Conselhos de saúde, responsabilidade pública e cidadania: a reforma sanitária
como reforma do Estado. In: FLEURY, S. (Org.) Saúde e Democracia: a luta do Cebes. São Paulo: Lemos
Editorial, 1997.
882 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
REIS, F. W. Democracia, igualdade e identidade. In: FUKS, M. & PERISSINOTO, R. M. (Orgs.) De-
mocracia: teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
SANTOS, B. de S. Orçamento participativo em Porto Alegre: para uma democracia redistributiva.
In: SANTOS, B. de S. (Org.) Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SANTOS, B. de S. & AVRITZER, L. Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, B. de. S. (Org.)
Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002.
SILVA, I. F. da & LABRA, M. E. As instâncias colegiadas do SUS no Estado do Rio de Janeiro e o
processo decisório. Cadernos de Saúde Pública, 17(1): 161-170, fev. 2001.
SILVA, M. K. et al. A dinâmica das relações sociais no Conselho Nacional de Saúde. In: CÔRTES, S. V.
(Org.) Participação e Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.
TATAGIBA, L. Os conselhos gestores e a democratização das políticas públicas no Brasil. In:
DAGNINO, E. (Org.) Sociedade Civil e Espaços Públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
VALLA, V. V. Participación social, derechos humanos y salud: procurando comprender los caminos de
las clases populares. In: BRICEÑO, L. R. et al. (Coords.) Salud y Equidad: una mirada desde las ciencias
sociales. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1998.
1011
Este capítulo trata do impacto da violência sobre a saúde dos brasileiros do ponto de
Causas externas é uma
vista físico e emocional e, também, das consequências que a violência gera sobre a demanda expressão construída pela
aos serviços de atenção à saúde. O setor saúde, quando atua de forma teórica e prática sobre Organização Mundial
da Saúde (OMS) para se
os problemas relacionados à violência, utiliza uma categoria denominada causas externas, referir a mortes, lesões e
que está incorporada nos capítulos 19 e 20 da Classificação Internacional de Doenças (CID), traumas provocados por
agravos sociais e relacio-
utilizada mundialmente. Essa categoria se refere à mortalidade por homicídios e suicídios,
nais que não podem ser
agressões físicas e psicológicas, acidentes de trânsito, quedas, afogamentos e outros (códigos descritos dentro de parâ-
VO1 a Y98) e lesões e traumas provocados por esses fenômenos (códigos S e T). metros biomédicos. O ter-
mo ‘causas externas’ não
O sentido da palavra violência está vinculado a questões sociopolíticas e de formação é sinônimo de violência
social e se refere à perda de reconhecimento do papel de sujeito (pessoa, grupo, coletivida- porque constitui apenas
um recurso classificatório
de) quando rebaixado à condição de objeto, mediante o uso do poder, da força física ou de de morbimortalidade. Já
qualquer outra forma de coerção. ‘violência’ diz respeito a
processos sócio-históricos
Pode-se dizer que cada sociedade desenvolve tipos de violência que lhe são peculiares, e culturais.
embora também se possa dizer que a violência tem configurações próprias em cada tempo
histórico: ela é tão antiga como o ser humano e se confunde com a sua própria saga. A Bí-
Formação social é um
blia, por exemplo, em suas primeiras páginas, narra o assassinato de Abel pelo irmão Caim,
conceito da sociologia
segundo o texto, motivado por inveja, o que certamente não é um evento histórico, mas é que significa a dinâmica
um mito de origem para a civilização ocidental. No caso brasileiro, observam-se distintas de construção histórica,
social, econômica e cul-
formas de violência ao longo do tempo com especificidades históricas, como a violência da tural das sociedades, das
escravidão dos índios e dos negros na época da colonização, a violência política da época da comunidades e dos gru-
pos através da história.
ditadura militar e, ainda, a violência social que se apresenta hoje, primordialmente urbana,
Ela pode ser compreen-
por motivos econômicos e com uso intensivo de armas de fogo. dida como o contexto
O termo ‘acidente’ que aparece na CID é assim definido na Política Nacional de Redução de desenvolvimento dos
fenômenos sociais.
da Morbimortalidade por Acidentes e Violências (PNRMAV): “um evento não intencional
e evitável, causador de lesões físicas ou emocionais no âmbito doméstico e em outros espa-
ços sociais, como o do trabalho, o do trânsito, o de esportes e lazer, dentre outros” (Brasil,
2001). Pela dificuldade de tipificar se uma ocorrência violenta foi intencional ou não, cada
1012 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
vez mais o próprio setor saúde vem questionando os atos caracterizados como acidentes.
Por exemplo, um montante de mais de 35.000 mortes no trânsito por ano – como ocorre
no Brasil – poderia ser considerado um fato meramente acidental? Os governos, as socie-
dades, os motoristas, os pedestres e todos os demais envolvidos nada poderiam fazer para
diminuir essa trágica realidade?
Violências e acidentes, ao lado das enfermidades crônicas e degenerativas, configuram,
na atualidade, um novo perfil no quadro dos problemas de saúde do Brasil e no mundo.
Esse novo perfil ressalta o peso do estilo de vida, das condições sociais e ambientais e da
maior longevidade no quadro de morbimortalidade, exigindo novas abordagens.
Neste texto, usam-se os dois termos – causas externas e violência – aproveitando-se das
potencialidades de cada um para a explicação do fenômeno em pauta. O capítulo se orga-
niza da seguinte forma: inicia com teorias explicativas da violência e definição de conceitos,
apresenta informações sobre morbimortalidade por causas externas no Brasil e no mundo,
discute a introdução do tema violência na agenda política do setor saúde e realiza breve
avaliação da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências.
Filósofos e cientistas sociais, ao longo da história, têm contribuído para teorizar o as-
sunto e mostrar a proeminência dos aspectos sociais sobre os biológicos. Domenach (1981),
por exemplo, sublinha a ideia de que a violência está inscrita e arraigada nas relações sociais
e, dialeticamente, também no interior das consciências e das subjetividades. Portanto, esse
fenômeno não pode ser tratado apenas nem como um dado da natureza (ou seja, como fato
biológico), a não ser em casos de psicopatologias, nem como uma força exterior aos indiví-
duos e aos grupos, ou somente como um mal produzido pelo ‘outro’. O autor ressalta que a
violência não pode ser analisada nem fora do indivíduo, nem fora da sociedade que a produz.
Domenach (1981) e Jean-Claude Chesnais (1981) consideram que a percepção das
várias formas de violência como um mal para a pessoa, para as comunidades e para as
sociedades é um passo muito positivo alcançado pela humanidade, pois essa consciência
acompanha o progresso do espírito democrático. Para a filósofa Hannah Arendt (1999), não
existe nada de bom na violência, a não ser o fato de ela dramatizar causas, sendo um alerta
sobre problemas e situações sociais que ficam naturalizadas na história das sociedades e dos
grupos. Portanto, essa autora reage a vários pensadores que são condescendentes com o
papel da violência na história: contra Friedrich Engels (1991), que apresenta esse fenômeno
como um acelerador do desenvolvimento econômico; contra o pensamento ingênuo e sim-
plificador de Frantz Fanon (1979), que a considera uma forma de vingança dos deserdados;
contra Georges Sorel (1993), que a define como mito necessário para a mudança da sociedade
desigual em busca de uma sociedade igualitária de base popular; e contra Jean Paul Sartre
(1980), que a analisa como algo inevitável quando a população passa por momentos de
escassez e necessidade. Hannah Arendt (2004) expressa sua opinião de forma contundente
na obra em que analisa o nazismo e o stalinismo, condenando as expressões de crueldade
nas experiências políticas totalitárias.
Hannah Arendt (1906-1975) foi uma cientista política e filósofa alemã, de origem judaica, e
uma das pensadoras mais importantes do século XX, tratando sobretudo da questão humana da
violência. Foi perseguida e presa em seu país, e o regime hitleriano retirou-lhe a nacionalidade
em 1937. Passou então a viver nos Estados Unidos, onde trabalhou como jornalista e professo-
ra universitária, tendo publicado obras importantes sobre filosofia política, dentre as quais se
destacam, para efeitos deste estudo, Origens do Totalitarismo, publicada originalmente em 1951, e
A Condição Humana, em 1958.
• Abuso sexual – Refere-se ao ato ou ao jogo sexual que ocorre nas relações hétero ou
homossexuais que visa a estimular a vítima ou utilizá-la para obter excitação sexual e
práticas eróticas e pornográficas impostas por meio de aliciamento, violência física ou
ameaças. Vítimas de abuso sexual costumam sofrer violência física e psicológica. Ten-
dem a sentir muita culpa, ter baixa autoestima, apresentar problemas de crescimento
e desenvolvimento físico e emocional e ser mais vulneráveis à ideação (pensamentos
de dar cabo à vida) e a tentativas de suicídio (Lippi, 2003).
Tipologia da violência
A tipologia da violência, utilizada pela OMS e pelo Ministério da Saúde, diz respeito às
expressões sociais da violência, as quais são definidas a partir de quem as comete: autoinfli-
gidas (suicídios, tentativas de suicídio e autoagressão), interpessoais (violência intrafamiliar e
comunitária) e coletivas (violência política, econômica, de classes, guerras, terrorismo). Como
essa classificação não dá conta de todas as manifestações de violência, a autora acrescenta os
conceitos de violência estrutural (que alimenta a desigualdade e a miséria); violência cultural
(que se naturaliza na sociedade – submissão feminina, violência contra criança e adolescente
por razões pedagógicas, homofobias, exclusão dos diferentes); violência institucional (que
ocorre nas várias formas de trabalho e serviços e reproduz a violência social); e tortura
(considerada o ápice da violência contra o outro).
Tipologia da violência
• Violências autoinfligidas – Suicídio, comportamentos suicidas e autoabusivos.
• Violências interpessoais – 1) Intrafamiliar: entre os parceiros íntimos (violência conjugal) e
entre os membros da família (contra crianças, contra a mulher ou o homem e contra os idosos),
principalmente as agressões no âmbito doméstico; 2) Comunitária: acontece no ambiente mais
próximo entre as pessoas conhecidas e desconhecidas. Possui várias expressões, como: violência
juvenil, agressões físicas, estupros, ataques sexuais e, inclusive, a violência que ocorre dentro
de instituições, como escolas, locais de trabalho, prisões, asilos, hospitais.
• Violências coletivas – Acontecem nos âmbitos macrossociais, políticos e econômicos e caracte-
rizam a dominação de grupos, classes, do Estado ou de um país sobre os outros. Incluem-se os
crimes cometidos por grupos organizados, atos terroristas e de multidões. No campo político,
a violência coletiva se expressa nas guerras e nos processos de aniquilamento de nações por
outras, ou dentro delas próprias, e nos cerceamentos e nas intimidações da liberdade de ex-
pressão, de discordância e de manifestação. As manifestações de violência coletiva abrangem,
ainda, ataques econômicos entre grupos e nações.
• Violência estrutural – Diz respeito às diferentes formas de manutenção das desigualdades
sociais, culturais, de gênero, etárias e étnicas que reproduzem a miséria, a fome e as várias
formas de submissão e exploração de umas pessoas pelas outras. Está diretamente relaciona-
da à situação de exclusão social de parcela significativa da população com nível precário de
desenvolvimento social e econômico.
• Violência cultural – Corresponde a todas as maneiras naturalizadas de humilhar, intimidar
e ignorar o outro. Apresenta-se, principalmente, na forma de discriminações e preconceitos.
• Violência institucional – Ocorre dentro das instituições, pelo comportamento dos chefes ou
dos funcionários entre si, reproduzindo estruturas e relações sociais injustas. A ausência de
acesso aos serviços de saúde por parte significativa da população é um exemplo de violência
institucional. A forma impessoal e arrogante com que muitos profissionais da saúde tratam a
população também o é.
• Tortura – Punição com o propósito de destruir a vítima como ser humano, através da impo-
sição de dor severa e de sofrimento psicológico. É utilizada para aniquilar e ameaçar a pessoa,
forçando-a a trair seus pares ou a revelar assuntos considerados relevantes pelo opressor.
A tortura é usada, principalmente, para criar medo e intimidar opositores e para arrancar
informações à força.
1018 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
Relacional Individual
Comunitário
Social
El Salvador
Guatemala
Colômbia
Venezuela
Brasil
Trinidad e Tobago
Guiana
Porto Rico
Belize
Equador
Paraguai
Rep. Dominicana
México
Nicarágua
Panamá
Bahamas
Barbados
Costa Rica
Argentina
Estados Unidos
Chile
Suriname
Cuba
Uruguai
Peru
Canadá
Gráfico 2 – Proporção de óbitos por causas externas em relação à mortalidade geral. Brasil –
1980-2009
14,0
13,0
12,0
11,0
%
10,0
9,0
8,0
19 1
19 2
19 4
19 5
19 7
19 8
19 0
19 1
19 3
19 4
19 6
19 7
20 9
20 0
20 2
20 3
20 5
06
20 8
09
19 0
83
19 6
89
92
95
98
01
04
20 7
8
8
8
8
8
8
9
9
9
9
9
9
9
0
0
0
0
8
0
19
19
19
19
19
20
20
19
20
Ano
Fonte: Elaboração do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), com base
em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)/Datasus.
Violência 1021
80,0
75,0
Taxa por 100.000 hab
70,0
65,0
60,0
55,0
50,0
19 1
19 2
19 4
19 5
19 7
19 8
19 0
19 1
19 3
19 4
19 6
19 7
20 9
20 0
20 2
20 3
20 5
20 6
20 8
09
19 0
83
86
89
19 2
95
98
20 1
04
07
8
8
8
8
8
8
9
9
9
9
9
9
9
0
0
0
0
0
0
9
8
0
19
19
19
19
19
20
20
19
Ano
Fonte: Elaboração do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), com base
em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)/Datasus.
29,3%
36,4% Homicídios
Suicídios
Afogamentos
Outras lesões acidentais
Óbitos relacionados ao trânsito
Quedas
6,8%
Lesões de intenção indeterminada
1,4%
Outras causas externas
6,5% 6,3%
4,6%
8,7%
Fonte: Elaboração do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), com base
em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)/Datasus.
Em 2009, ocorreram 135.936 mortes por causas externas no Brasil, das quais: 50.113
(36,4%) foram homicídios; 39.211 (29,3%), acidentes de trânsito e de transporte; 9.328
(6,8%), suicídios; e 37.284 (27,5%) por outras motivações. A mais importante clivagem nos
dados de mortes violentas é a de gênero, como se pode constatar no Gráfico 5, que mostra
esse padrão entre 1980 e 2009.
1022 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
Gráfico 5 – Proporção de óbitos por causas externas, segundo sexo. Brasil – 1980, 1990,
2000 e 2009
1980 1990 2000 2009
Masculino
Feminino
Fonte: Elaboração do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), com base
em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)/Datasus.
No Gráfico 6, são apresentadas as taxas por grupos etários, evidenciando-se o pico das
mortes violentas em jovens adultos, todavia com alta prevalência em quase todos os grupos
etários. É importante observar nesse gráfico que, mesmo entre as mulheres, as mesmas faixas
etárias de 20 a 49 anos são as de maior risco. Ressalta-se também a incidência de mortes
violentas na população idosa acima de 70 anos, sobretudo motivadas por quedas e acidentes
de trânsito e de transporte.
Gráfico 6 – Taxas de mortalidade por causas externas, segundo faixa etária e sexo. Brasil – 2009
250,0
200,0
Tx. por 100.000 hab.
150,0
100,0
50,0
0,0
0-9 10-19 20-29 30-39 40-49 50-59 60-69 70+
Fonte: Elaboração do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), com base
em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)/Datasus.
Violência 1023
Na Figura 2, podem ser observadas as diferentes taxas de mortes violentas por uni-
dades da federação em 2009.
Figura 2 – Taxas de mortalidade por causas externas (número de mortes por 100 mil habi-
tantes), segundo unidades federativas. Brasil – 2009
Roraima
Amapá
Amazonas
Maranhão Ceará Rio Grande
Pará do Norte
Paraíba
Piauí Pernambuco
Acre Alagoas
Tocantins
Rondônia Sergipe
Mato Bahia
Grosso
DF
Goiás
Minas
Gerais Espírito
Mato Grosso Santo
55,99 - 70,16 do Sul
70,17 - 84,34 São Paulo
84,35 - 98,52 Rio de
Paraná Janeiro
98,53 - 112,70
Santa Catarina
Rio Grande
do Sul
Fonte: Elaboração do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), com base
em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)/Datasus.
à saúde. Mas, no caso brasileiro, outras dificuldades existem quanto aos dados disponíveis a
partir dos serviços: os hospitais privados não se sentem na obrigação de notificar violências,
e as emergências não estão integradas ao sistema de informação hospitalar, uma vez que a
finalidade das notificações sobre internações é o ressarcimento por procedimentos realizados
pelos estabelecimentos que compõem o Sistema Único de Saúde (SUS). A partir de 2005, o
Ministério da Saúde lançou o sistema chamado Vigilância de Acidentes e Violências (Viva),
que recolhe informações sobre eventos de causas externas que chegam às emergências. Mas
esse dispositivo não inclui todos os hospitais, apenas os considerados de referência. Pretende-
se que esse tipo de dado vá ajudando a corrigir as falhas hoje existentes com o uso exclusivo
do Sistema de Informações Hospitalares a respeito das várias formas de morbidade.
Gráfico 7 – Taxas de mortalidade por homicídios, segundo sexo e faixa etária. Brasil – 2009
120,0
100,0
Tx. por 100.000 hab.
80,0
60,0
40,0
20,0
0,0
0-9 10-19 20-29 30-39 40-49 50-59 60-69 70+
Masculino 1,1 43,9 108,0 71,2 45,1 29,7 20,9 16,3
Feminino 0,9 4,0 7,3 6,6 4,4 3,0 2,6 2,7
TOTAL 1,0 24,3 57,7 38,2 23,9 15,7 11,1 8,5
Fonte: Elaboração do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), com base
em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)/Datasus.
Gráfico 8 – Taxas de mortalidade por tipo de acidentes de transporte, segundo faixa etária.
Brasil – 2009
18,00
16,00
14,00
Tx. por 100.000 hab.
12,00
10,00
8,00
6,00
4,00
2,00
0,00
0a9 10 a 19 20 a 29 30 a 39 40 a 49 50 a 59 60 a 69 70+
Pedestre 1,56 1,83 3,12 4,25 6,05 7,65 9,81 16,93
Motociclista 0,15 3,62 11,05 7,10 5,10 3,31 2,04 1,36
Ocup. de veículos de transp. 0,92 2,73 7,33 6,68 6,19 6,55 6,03 5,76
Fonte: Elaboração do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), com base
em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM)/Datasus.
Observando-se a violência na ótica das causas externas, pode-se dizer que ela afeta fortemente
o setor saúde como um todo e a saúde das pessoas em particular, porque: 1) provoca mortes, le-
sões e traumas físicos e um sem-número de agravos mentais, emocionais e espirituais; 2) diminui
a qualidade de vida individual, comunitária e das coletividades; 3) exige uma readequação da
organização tradicional dos serviços; 4) coloca novos problemas para o atendimento médico pre-
ventivo ou curativo; 5) evidencia a necessidade de atuação muito mais específica, interdisciplinar,
multiprofissional, intersetorial e engajada, visando às necessidades dos cidadãos.
‘síndrome do bebê espancado’. Uma década depois de esses pioneiros terem cunhado a ex-
pressão, observaram-se um aumento significativo da produção científica e a criação de um
movimento social importante, liderado por profissionais da saúde, contra os abusos às crianças
e aos jovens em grande parte dos países. Programas de prevenção primária, secundária e
intervenções de vários tipos, principalmente referentes às dinâmicas familiares responsáveis
pela maioria das agressões, das negligências e dos abusos psicológicos e sexuais, começaram
a compor a pauta de instituições públicas, privadas e de organizações não governamentais
(Assis, 1994; Assis et al., 2009).
No Brasil, os pediatras também participaram desse despertar e passaram a estudar, a
diagnosticar e a tratar as marcas dos maus-tratos na infância. Mais que isso, os que se sen-
sibilizaram com esse problema se incluíram nos movimentos de pressão da sociedade junto
a outros profissionais das mais diferentes áreas e militantes de organizações não governa-
mentais nos anos 80, movimento esse que culminou na criação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), promulgado em 1990. Hoje existem vários programas e iniciativas do
setor saúde e da sociedade, espalhados pelo Brasil, que focalizam a prevenção da violência
nesse grupo etário. Muitas dessas iniciativas têm sido avaliadas e algumas cumprem papel
fundamental, conforme se pode constatar no trabalho de Romeu Gomes e colaboradores
(2010), representando importante avanço democrático da sociedade brasileira.
aprovada a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa, que traz orientações gerais e trata de
problemas específicos do envelhecimento. Nesse documento, o Ministério da Saúde assume
como paradigma o envelhecimento ativo e não focado na doença, colocando diretrizes sobre
a participação do idoso nas tomadas de decisão da sociedade, nas atividades familiares e
nos conselhos e nas reuniões que podem definir seu futuro, com a ideia de que a velhice
deve ser bem vivida. Tais orientações vêm acompanhadas de algumas ações práticas, como
a implementação da caderneta de saúde e a portaria que trata da internação domiciliar.
Essa política incorpora o conhecimento mundial e nacional sobre a população com
mais de 60 anos, inclusive sobre os maus-tratos e suas consequências, e distingue o grupo
composto por mais de 75% das pessoas idosas que se encontram em boa saúde, atuam de
forma independente e não precisam de auxílio para realizar atividades cotidianas. Para essa
grande parcela da população, as diretrizes são a promoção de atividades saudáveis e de
prevenção, para que ela continue vivendo de forma independente. Porém, existe o grupo
composto por cerca de 25% de idosos com algum grau de dependência e que precisam de
atendimento diferenciado, devido a vários motivos, porque aí estão os mais vulneráveis a
todas as formas de violência. O documento da Política Nacional orienta os gestores a atender
prioritariamente a parcela da população que se encontra com algum agravo, por meio da
oferta de ações de prevenção secundária, de reabilitação, de promoção da saúde, além do
cuidado e do tratamento fundamentais para garantir qualidade de vida.
Outros temas, como prevenção da violência racial, homofóbica e contra pessoas por-
tadoras de deficiências, paulatinamente estão sendo incluídos na pauta da atenção à saúde.
Entretanto, em todos os casos, a presença na agenda pública depende muito da pressão da
sociedade civil e dos movimentos de grupos sociais específicos.
No campo acadêmico, epidemiologistas brasileiros vêm apresentando, desde os anos
1970, importantes estudos sobre a magnitude e as tendências dos agravos por causas externas e
seu impacto nos serviços de saúde. Igualmente, psiquiatras analisaram as relações das agressões
com as enfermidades mentais, com ênfase em estudos sobre suicídio. No entanto, as primeiras
tentativas de aproximação das pesquisas estiveram marcadas por uma visão unidisciplinar e
estanque. O incremento maior da contribuição científica da área sobre o tema da violência
ocorreu a partir dos anos 80 e coincide com o fim da ditadura militar. A produção acadêmica
nos últimos 25 anos cresceu 90% em relação a tudo o que foi registrado em qualquer período
histórico anterior e vem se tornando cada vez mais interdisciplinar, transversal às áreas de
conhecimento e mais integrada com os serviços e com as políticas setoriais e intersetoriais.
ser considerada um problema de saúde, e sim de segurança pública. Por fim, a partir do
Informe-se mais: leia a
empenho de muitos atores que haviam participado do processo, uma portaria de aprovação Política Nacional de Re-
ministerial foi publicada em 16 de maio de 2001, oficializando o documento com o nome dução da Morbimorta-
lidade por Acidentes e
Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências (PNRMAV). Violências, cujo teor se
É importante ressaltar que essa política foi promulgada um ano antes do Relatório Mundial encontra no portal do Mi-
nistério da Saúde (www.
sobre Violência e Saúde elaborado pela OMS (2002).
saude.gov.br).
O documento da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e
Violências, em primeiro lugar, trata o tema como um problema social e histórico e o situa
nos marcos da promoção da saúde e da qualidade de vida. Faz um diagnóstico geral do
problema, das formas como ele afeta o setor saúde e como esse próprio setor, por ser parte
da sociedade, também o gera e reproduz. Analisa as fontes oficiais de informação, sua impor-
tância e suas deficiências. No texto, os termos utilizados para definir a natureza da violência
e a tipologia coincidem com os do relatório da OMS. Essa coincidência se deve ao fato de
ambos se apropriarem de conceitos, categorias e conhecimentos bastante trabalhados, ao
longo de vários anos, por pesquisadores internacionais e nacionais.
Os princípios que fundamentam essa política são os mesmos que orientam o SUS: a
saúde como direito fundamental e como requisito para o desenvolvimento social e econômi-
co, o direito ao respeito à vida como valor ético e a promoção da saúde como fundamento
de qualquer ação para redução das violências e dos acidentes. Tais princípios devem estar
presentes nos planos nacionais, estaduais e municipais. As diretrizes para atuação assim se
resumem: 1) promoção da adoção de comportamentos e ambientes seguros e saudáveis;
2) monitoramento da ocorrência de acidentes e violências; 3) sistematização, ampliação e
consolidação do atendimento pré-hospitalar; 4) incremento de formas de assistência multi-
profissionais às vítimas de violência e acidentes; 5) estruturação e consolidação dos serviços
de recuperação e reabilitação; 6) investimento na capacitação de recursos humanos e em
estudos e pesquisas que possam iluminar as práticas nos três níveis, principalmente o local.
Um dos passos mais importantes para a implementação da PNRMAV foi a formulação
de um plano de ação (Brasil, 2005), que começou a ter vigência em 2005. O processo de sua
construção envolveu muitos atores governamentais e não governamentais, pesquisadores e
profissionais que atuam na assistência. Oficializado pela portaria n. 936, de 18/5/2004, do
Ministério da Saúde, o plano dispõe sobre a estruturação da Rede Nacional de Prevenção
da Violência e Promoção da Saúde e sobre a Implantação e Implementação de Núcleos de
Prevenção à Violência em Estados e Municípios. Para sua efetivação, foram traçadas algumas
estratégias que continuam em vigência: o sistema Viva, a Rede de Núcleos de Prevenção
da Violência, o Programa de Redução de Acidentes no Trânsito e a Formação de Gestores
e Profissionais dos Serviços.
O sistema Viva se divide em duas partes: Contínuo e Sentinela. O Viva Contínuo tem a
finalidade de melhorar as informações, visando, principalmente, a adequar políticas e práti-
cas. Ele se configura em uma forma de notificação permanente com o objetivo de descrever
o perfil das vítimas de violências doméstica, sexual e outras. Esse programa é realizado em
unidades de referência definidas pelas secretarias municipais de Saúde em colaboração com
as secretarias estaduais. A pessoa que faz a notificação caracteriza o perfil da vítima, o tipo e o
local de ocorrência da violência, o perfil do provável autor da agressão, entre outros itens. Esse
programa se articula com a Rede de Atenção e de Proteção Social às Vítimas de Violências.
1030 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
A Rede Gandhi Saúde e Cultura de Paz é uma rede de compromisso social que “tem como ob-
jetivo minimizar a violência sob todos os seus aspectos e manifestações, assim como promover
a cultura de paz, não só como o oposto da guerra, mas como conceito que expresse a condição
necessária para a promoção do convívio social, assim como para o desenvolvimento pleno do
potencial do ser humano. A Rede Gandhi propõe-se a realizar esses objetivos por meio de uma
ampla mobilização de parcerias em todos os municípios do Brasil, para incorporar os princípios
da cultura de paz e não violência nas sociedades locais e nas políticas públicas que se realizam
nos municípios” (Conasems, 2012). Consulte também o site Gandhi in Action Network (www.
gandhiinaction.ning.com).
sobre a problemática. Para isso reuniu um grande número de pesquisadores com inserção
em todos os âmbitos referentes ao problema: desde as questões de promoção e prevenção
até os serviços de atenção primária, secundária e de reabilitação. Muitas das pesquisas fi-
nanciadas já foram concluídas e espera-se que contribuam para melhorar a formulação de
políticas e as práticas do setor.
Também os municípios e os estados têm incluído a violência em suas pautas de discussão
coletiva. Em 1998, o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), com
assessoria do Claves, instituiu um plano de ação de prevenção da violência contra crianças
e adolescentes, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a
Unesco. Esse plano ofereceu orientações gerais para o conjunto dos municípios e adotou
metas de sensibilização a partir das secretarias de Saúde, visando à interiorização no siste-
ma de um tema ainda pouco familiar (Conasems, 1998). Nos últimos dez anos, desde que
o Conasems passou a fazer parte da Rede Gandhi, o tema da não violência e da cultura da
paz faz parte da pauta de ação de vários municípios e de todos os congressos desse conselho.
Bem mais tarde, mas de forma contundente, em 2007, o Conselho Nacional de Se-
cretários de Saúde (Conass) divulgou um documento oficial denominado “Violência: uma
epidemia silenciosa”, tomando posição sobre a inclusão no tema em sua área de atuação. O
assunto foi objeto de seminários, oficinas e do seu V Congresso. A partir de um diagnóstico
do problema, o texto aponta seis áreas para a atuação das secretarias estaduais de Saúde:
vigilância; prevenção e promoção (incluindo participação comunitária e comunicação social);
organização da assistência; pesquisa; formação e educação permanente; e legislação. O foco
é a cultura de paz e o investimento nos profissionais da saúde que atuam no atendimento às
vítimas de violência nas grandes cidades ou nos municípios mais longínquos das fronteiras
ou do interior do país.
Em resumo, no período de 2001 a 2011, a partir de diretrizes e ações planejadas, o
Ministério da Saúde vem apresentando importante evolução na legitimação da PNRMAV
promulgada em 2001. Além dos documentos que são estruturantes da ação ministerial e do
SUS, outros foram elaborados ou oficializados, buscando-se a integração do tema nas ações
rotineiras do setor. É o caso, por exemplo: 1) da portaria n. 1.968/2001, que trata da notifi-
cação obrigatória pelos profissionais da saúde das situações de suspeita ou confirmação de
maus-tratos contra crianças e adolescentes; 2) da portaria n. 1.969/2001, que dispõe sobre
o registro e o preenchimento da Autorização de Internação Hospitalar (AIH) nos casos de
atendimento das causas externas; 3) das portarias SAS/MS n. 969 e 970/2002, que disponibi-
lizam uma nova ficha de registro de entrada de pacientes no SUS, com a intenção de captar,
com mais precisão e adequação, as informações sobre acidentes e violências.
Outros avanços podem ser observados também na área de saúde mental, que passou
a discutir a inserção do atendimento às mulheres, às crianças e aos adolescentes em situação
de violência nos Centros de Apoio Psicossocial (Caps); no campo da saúde do adolescente
e do jovem, apoiando atividades de protagonismo juvenil como prevenção das violências;
na área de saúde do idoso e do portador de deficiência, que também começa a inserir a
temática da violência em suas linhas de atuação.
Durante toda a primeira década deste século, o Ministério da Saúde lançou várias
normas técnicas, como as que tratam do atendimento aos agravos decorrentes da violência
sexual, da anticoncepção de emergência nos casos de violência sexual contra mulheres e
1032 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
• Hospitalar – A maioria dos hospitais nas capitais do país possui mecanismos próprios
de articulação com outros serviços para realização de transporte e transferência de
Violência 1033
Conclusões
A análise do fenômeno da violência realizada neste capítulo e as informações disponí-
veis sobre lesões, traumas e mortes permitem algumas conclusões. Por ser uma construção
humana e social, a violência é prevenível. A história de todos os países da Europa e de al-
1034 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil
guns países das Américas mostra que as taxas de mortes violentas diminuem drasticamente
ao longo do tempo quando há investimento em democracia, cidadania, direitos humanos,
melhoria de condições de vida e educação formal. Políticas públicas nessa direção são mais
importantes do que programas coercitivos, embora esse tipo de ação também seja importan-
te. O clássico princípio de que o Estado deve atuar de forma equilibrada em seu papel de
coesão social e de coerção da criminalidade e das contravenções é sumamente importante
no controle da violência social.
O homicídio é o ato mais hediondo nas relações sociais, pois resulta no aniquilamento
do outro. Mas ele é apenas um indicador das múltiplas expressões de violência (embora o
mais utilizado internacionalmente, pois permite comparação). Outras manifestações que vão
desde as mais graves até as mais sutis e ocultas se alimentam mutuamente. As formas cultu-
ralmente naturalizadas de agressões intrafamiliares, interpessoais, de discriminações raciais
ou contra grupos específicos (como homossexuais, crianças, mulheres, idosos, deficientes
físicos, dentre outros) constituem um ambiente sociocultural adverso e, frequentemente,
portador de exclusão e de lesões físicas e emocionais.
A noção de causalidade complexa da violência interconecta fatores históricos, con-
textuais, estruturais, culturais, conjunturais, interpessoais, subjetivos e biológicos. Sempre
existirão elementos gerais e especificidades nas formas de apresentação e de reprodução
desse fenômeno do ponto de vista individual ou coletivo. Portanto, propostas positivistas
que apresentem planos mirabolantes para acabar com a violência não têm consistência teó-
rica. A violência precisa ser entendida e analisada como um fenômeno de expressão e parte
constitutiva dos processos históricos complexos sobre os quais se pode intervir.
Por se diferenciar no tempo e no espaço e por manter formas culturais de longa
duração, é importante investir no conhecimento específico e empírico da violência e das
causas externas, levando-se em conta a história, a manifestação no local, os grupos mais
vulneráveis, os fenômenos de maior gravidade e as representações da sociedade sobre eles,
para se compreender e agir. No caso brasileiro, sobretudo nas regiões metropolitanas e nos
grandes centros urbanos, a violência coletiva tende a vicejar persistente e vigorosamente na
sua expressão instrumental, como recurso usado por muitas pessoas e grupos para conquistar
mercados de bens e de poder.
Mas a chamada violência tradicional, aquela que ressalta os conflitos comuns ou ins-
titucionais entre as pessoas e os grupos, as frustrações das paixões nas relações de gênero,
os furtos provocados pela fome, pela necessidade ou pelo vício continuam a existir e res-
pondem por grande parte das agressões e crimes. Não se pode compartilhar do imaginário
da inevitabilidade e da falta de controle que frequentemente é evidenciado pela opinião
pública em relação ao fenômeno da violência. O presente e o futuro são criações humanas,
com o barro das circunstâncias ao seu alcance. O setor saúde, com lógica diferente do setor
de segurança e justiça, que focaliza o criminoso e o crime, tem muito a contribuir com seu
ethos de cuidado atendendo tanto às vítimas como aos agressores.
Termina-se esta reflexão assinalando-se fatos que demonstram o esforço de engajamen-
to do setor: 1) o país foi pioneiro em organizar e adotar a construção coletiva e a promulgação
do documento da PNRMAV, em 2001; 2) o Brasil saiu na frente no planejamento de ações
no âmbito do SUS, por meio da elaboração de um plano nacional de ação, fundamentado
em estudos e bases epidemiológicas; 3) o país atendeu a uma recomendação da OMS de
Violência 1035
que cada país promovesse seu diagnóstico situacional para fundamentar ações estratégicas
de redução das mortes e dos agravos por causas externas, elaborando a publicação deno-
minada Impacto da Violência sobre a Saúde dos Brasileiros (Brasil, 2005). Duas outras iniciativas
são dignas de nota: a inclusão do Conasems na Rede Gandhi, em 2000, e a pactuação do
documento pelo Conass entre as secretarias estaduais denominado “Violência: uma epide-
mia silenciosa”, em 2007.
Todos os que integram as redes de prevenção da violência e de cultura da paz apostam
nos esforços empreendidos para criar parâmetros, definir diretrizes e integrar ações que
clamam pela promoção da vida e contra tantas mortes preveníveis e evitáveis. Nesse sentido,
a tradição do cuidado que caracteriza o ethos do setor saúde faz toda a diferença!
Leituras recomendadas
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Impacto da Violência na Saúde dos
Brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.
GOMES, R. et al. Êxitos na Prevenção de Violência. São Paulo: Hucitec, 2010.
MINAYO, M. C. S. Violência e Saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.
Sites de interesse
Gandhi in Action Network: www.gandhiinaction.ning.com
Portal do Ministério da Saúde – Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e
Violências: www.saude.gov.br
Rede de Cultura de Paz e Promoção da Saúde – Conasems/Redes institucionais: www.conasems.org.
br/site/index.php/o-conasems/redes
Referências
ARENDT, H. A Condição Humana [1958]. São Paulo: Companha das Letras, 1989.
ARENDT, H. Sobre a Violência Hoje [1970]. São Paulo: Civilização Brasileira, 1999.
ARENDT, H. Origens do Totalitarismo [1951]. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
ASSIS, S. G. Crianças e adolescentes violentados: passado, presente e perspectiva para o futuro. Ca-
dernos de Saúde Pública, 10(Supl.1): 126-134, 1994.
ASSIS, S. G. et al. Situação de crianças e adolescentes brasileiros em relação à saúde mental e a vio-
lência. Ciência & Saúde Coletiva, 14(2): 349-361, 2009.
BAKER, A. A. Granny battering. Modern Geriatrics, 5: 20-24, 1975.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria MS/GM n. 737, de 16 de junho de 2001. Política Nacional de
Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Brasília: Ministério da Saúde, 2001.
BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Estatuto do Idoso. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos,
2003.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Impacto da Violência na Saúde dos
Brasileiros. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.
BURSTON, G. Granny battering. British Medical Journal, 3(5.983): 592, 1975.
CASTELLS, M. A Sociedade em Rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
CHESNAIS, J. Histoire de la Violence: en Occident de 1800 à nos jours. Paris: Éditions Robert Laffont, 1981.
1036 Políticas e Sistema de Saúde no Brasil