O E S H O: D T, S C .: Niversidade Federal Do Rio Grande Do Sul

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

O EMPREENDEDORISMO DE SI E O NOVO HOMO


OECONOMICUS:
DISCUSSÕES SOBRE TRABALHO, SUBJETIVIDADE E
CLÍNICA.

VALMIR DORN VASCONCELOS

TRABALHO DE CONCLUSÃO DO CURSO DE PSICOLOGIA

Orientador (a): Prof. Dra. Fernanda Spanier Amador

Porto Alegre, 03 de dezembro de 2015.


VALMIR DORN VASCONCELOS

O EMPREENDEDORISMO DE SI E O NOVO HOMO


OECONOMICUS: DISCUSSÕES SOBRE TRABALHO,
SUBJETIVIDADE E CLÍNICA.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de


Graduação em Psicologia -Habilitação Psicólogo- do Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, referente
às disciplinas de TCC-I e TCC-II, como requisito parcial à obtenção
do grau, sob orientação da Prof.ª Dra. Fernanda Spanier Amador

Prof.ª Orientadora: Fernanda Spanier Amador


Porto Alegre, 2015
Empreendedorismo de si e o Novo homo Oeconomicus: Discussões sobre trabalho,
subjetividade e clínica

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de


Graduação em Psicologia-Habilitação Psicólogo- do Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, referente
às disciplinas de TCC-I e TCC-II, como requisito parcial à obtenção
do grau, sob orientação da Profa. Dra. Fernanda Spanier Amador

Porto Alegre, ____ de ____________ de 2015.

BANCA EXAMINADORA:
____________________________________________
Orientadora: Prof. Dra. Fernanda Spanier Amador
_____________________________________________
Prof.
_____________________________________________
Prof.

Porto Alegre, 2015


Agradecimentos

Agradeço a todos os professores, colegas e profissionais que me ajudaram nessa trajetória de


formações e deformações de conceitos de vida, desnaturalizações, abrindo linhas de fuga,
dando condições de possibilidade de novos territórios existenciais possíveis.

Agradeço a todos meus amigos, em especial ao Gabriel, Johhny, Kiko, Cícero, Duda, Luiz,
Digo, Jean, Roberto e Henrique por tornar essa vida uma aventura que sem vocês não teria
menor graça. Agradeço as pessoas do Coletivo Profanações por compartilhar experiências
que levarei comigo o resto da vida.

Agradeço a minha família pelo apoio ao longo desses seis anos. A minha mãe que me
incentivou, me ajudou e tornou tudo isso possível, sempre acreditando no meu potencial.
Agradeço ao meu pai que estava lá quando eu precisava.

Agradeço a minha orientadora, que nessa reta final especialmente acreditou nesse trabalho e
me auxiliou proporcionado um potencial no que eu gostaria de dizer.

Agradeço a minha companheira Fran, pelo amor, carinho e dedicação e por aguentar minhas
loucuras cotidianas. Sem você, nada disso seria possível. Obrigado por compartilhar sua vida
comigo
“A ontologia crítica de nós mesmos tem de
ser considerada certamente não como uma
teoria, uma doutrina e sequer como um corpo
permanente de conhecimento que está em
acumulação; ela tem de ser considerada
como uma atitude, um éthos, uma vida
filosófica na qual a crítica daquilo que somos
é, ao mesmo tempo, a análise histórica dos
limites que nos são impostos e um
experimento com a possibilidade de irmos
além deles.”
Michel Foucault.
Resumo

A experiência de escutar os trabalhadores geralmente nos leva a perceber repetições de


discursos que dizem algo de uma formação subjetiva específica dos sujeitos. Dentro dessas
repetições, não raras vezes, aparecem palavras como networking, competências,
empreendedorismo, proatividade, custo-benefício, palavras essas que são empregadas,
geralmente, nas empresas e que são usadas pelos trabalhadores para descrever sua vida e
avaliar seus conflitos. Nesta direção, perguntamos: como um sujeito se torna uma empresa?
A partir disso, este trabalho tem como objetivo discutir os processos de subjetivação no
trabalho e seus novos arranjos de forças no contemporâneo a partir de fragmentos e histórias
de trabalhadores de uma organização pública do município de Porto Alegre. Buscamos,
ainda, ferramentas para um olhar crítico-clínico do Psicólogo do Trabalho, inspirando-nos
nos estudos de Michel Foucault, especialmente em sua concepção de novo Homo
Oeconomicus, o empreendedor de si mesmo.

Palavras-chave: Homo Oeconomicus; Trabalho; Subjetividade; Clínica


Abstract

The experience of listening to workers generally leads us to notice discursive repetitions that
say something of a specific subjective formation of the subjects. Within these repetitions,
words often appear such as networking, skills, entrepreneurship, proactivity, cost-effective,
words that are generally employed in the companies and are now used by workers to
describe their lives and evaluate their conflicts. In this direction, we ask, how does a subject
becomes an Enterprise? From this, this paper aims to discuss the subjective processes at
work and your new arrangement of forces in the contemporary, from fragments and stories
of employees of a public organization in the city of Porto Alegre. We seek also tools for a
critical-clinical look to the Labor Psychologist, inspiring us in the studies of Michel
Foucault, especially in his conception of new Homo Oeconomicus, the entrepreneur himself

Keywords: Homo Oeconomicus, Work, Subjectivity, Clinic


Sumário

Introdução................................................................................................................9

1. Trabalho e Subjetividade: Das organizações do trabalho até o Homo


Oeconomicus..................................................................................................................12
1.1 As mudanças e os novos modelos de gestão da subjetividade.................................12
1.2 O Nascimento do Homo Oeconomicus: leituras da obra de Focault...................... 17
1.2.3 Das concepções de Economia até o Homo Oeconomicus....................................20

2. Diário de Campo de um Estagiário: Escuta de um servidor público pela equipe de


saúde........................................................................................................................................26

3. Clínicas do trabalho como desvio.........................................................................29

4. Considerações finais.............................................................................................33

Referências..............................................................................................................35
9

Introdução
Este trabalho é escrito a partir de nossa atuação como estagiário no período de dois anos
em um setor de Saúde e Segurança do Trabalhador em uma empresa pública de Porto
Alegre. Dentre nossas atividades, coordenávamos grupos, participávamos de palestras, de
reuniões, de interconsultas com outros profissionais de Psicologia, articulavam-se redes de
saúde, e, principalmente, exercia-se atividades de escuta do trabalhador, quando esse
procurava por motivos diversos, entre eles, por situações de sofrimento no trabalho. A
experiência de escutar os trabalhadores geralmente nos leva a perceber repetições
discursivas, que dizem de algo de uma formação subjetiva específica dos sujeitos. Dentro
dessas repetições, não raras vezes palavras como networking, competências,
empreendedorismo, proatividade, custo-benefício eram empregadas, palavras essas
geralmente encontradas no campo das empresas e da economia e que, agora, aparecem,
corriqueiramente, entre os trabalhadores para descreverem sua vida e para avaliar seus
conflitos.
Esses discursos também são marcas de uma realidade institucional no contexto de
mudanças da organização do trabalho que caracterizam a reestruturação produ-tiva e, muitas
vezes, analisados no escopo da precarização do trabalho, por sociólogos e psicólogos do
trabalho. Palavras e repetições que expressam modos de trabalhar e se subjetivar em um
processo marcado pela arte liberal de governar, que nos leva a perguntar: Que sujeito é esse?
Como um indivíduo vê a si mesmo como empresa?
Nesta direção, os estudos de Michel Foucault são intercessores importantes para
entendermos como se produz o “Homo Oeconomicus”, aquele que empreende a si mesmo e
sua relação com o trabalho e os processos de subjetivação
Assim, este Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) inscreve-se na linha de estudos
no campo de Subjetividade e Trabalho, aquele que se ocupa dos “modos como os sujeitos
vivenciam e dão sentido às experiências de trabalho, assim como a forma que as relações e
os contextos de trabalho produzem determinados modos de constituição dos sujeitos”
(TITTONI & NARDI, 2011).
Alguns conceitos são operadores-chave deste TCC, dentre eles, o de Trabalho.
Afirmamos que ele pode ser derivado desde uma perspectiva de Ergón- ação, trabalho- ou
Pónos- trabalho ou fadiga- ou até mesmo tripallium provenientes do latim para tortura,
punição e sofrimento (ANTUNES,2011) desde sua dimensão positiva até sua negatividade.
Dentro dessas perspectivas, uma das mais conhecidas é a de Marx que toma o trabalho como
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importante meio pelo qual o ser humano modifica a natureza, mas que em virtude de uma
sociedade capitalista, foi exaurido de seu sentido se reduzindo a uma exploração de força de
trabalho. Schwartz et al. (2007), definem trabalho como atividade humana que não podemos
prever, que renegocia normas que foram antepostas, afirmando que para entendê-lo,
devemos assumir uma posição de desconforto intelectual por não sabermos como os
trabalhadores efetivamente criam e recriam o que produzem, reforçando a necessidade de
uma posição ética de trabalharmos com ele em lugar de trabalharmos sobre eles.
Outro conceito-operador-chave é o de escuta, considerando-se as considerações sobre
crítica e clínica que aqui desenvolvemos. Enquanto a escuta é historicamente tomada pelas
disciplinas, entre elas as psi, capazes de desvelar essências como técnicas sofisticadas de
extração da verdade, propomos nos aproximar da perspectiva genealógica que não busca
uma verdade universal a ser revelada. Em lugar disto, busca um forte aliado que nos faz
perceber como as diferentes práticas de escuta se articulam com as experiências que fazemos
de nós mesmos no contemporâneo (ARANTES, 2012). Queremos, portanto, partir das
mudanças da organização do trabalho e dos processos de subjetivação que alteram a gestão e
experiência do trabalho no contemporâneo para entendermos a clínica do trabalho desde um
ponto de vista crítico (AMADOR & BARROS, 2011), entendendo por crítica uma prática de
problematização das verdades constituídas e de abertura a emergência de novos arranjos
existenciais (FOUCAULT, 2005; DELEUZE & GUATTARI, 1997) Isto, porque
acreditamos que as alterações nas vidas dos trabalhadores estão relacionada com a
emergência de discursos gerenciais (MORO & AMADOR, 2014) que tentam produzir o
Empresariamento da Vida (AMBRÓSIO, 2011).
A primeira parte desse estudo destina-se a discussão do eixo teórico trabalho e
subjetividade e uma revisão de literatura da obra foucaultiano em busca de outras pistas para
entendermos as mudanças no âmbito da gestão e da experiência do trabalho no
contemporâneo. Para isso, serão abordados as novas configurações de trabalho e sua relação
com os processos de produção de subjetividade, desde que ponto pretendemos analisar para
então discutir o surgimento de sujeitos-empresas. A partir dai, pensamos de que modo
Foucault pode nos ajudar para entendermos essas novas racionalidades através de seus
principais conceitos como disciplina, biopolítica governamentalidade, além de sua
concepção de Economia e do surgimento do Homo Oeconomicus em sua obra, assunto que
tem ganhado interesse na última década no Brasil.
11

A segunda parte deste TCC trata de um relato de experiência escrito em nosso


período inicial de estágio quando, então, essas questões se colocaram. Tal relato aborda a
experiência de escuta de um servidor que tinha como característica o discurso empreendedor.
A terceira parte pretende articular essa escuta a um exercício teórico sobre trabalho,
subjetividade e clínica e os contextos que elas acontecem na nossa contemporaneidade, em
busca de linhas de fuga possíveis para uma leitura acontecimentalizadora1 tanto do trabalho
quanto do trabalhador.

1 Acontecimentalizar o trabalho, conforme proposto pela leitura de Amador e Barros (2009) “[...]é perseguir
sua desnaturalização, é insistir em suas descontinuidades para propiciar a ruptura do evidente, a emergência
das singularidades, é apostar em uma política da singularidade. É [...] uma analítica das práticas que se
imiscuem por entre estratégias de saber-poder, de enunciados e visibilidades que ultrapassam os esforços
analíticos de suas relações de subalternização às distorções da ideologia, [...]. É tramar a urdidura sempre
emergente em uma certa correlação de forças sociais produtora de discursividades que, enquanto práticas,
amarram os trabalhadores em uma microfísica de poderes por eles mesmos desejada e alimentada (p.24)
12

1. Trabalho e Subjetividade: Das organizações do


trabalho até o Homo Oeconomicus
(...) O neoliberalismo é um movimento ideológico em
escala verdadeiramente mundial, como o capitalismo
jamais havia produzido no passado. Trata-se de um
corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante,
lucidamente decidido a transformar todo o mundo à
sua imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão
internacional. Eis aí algo muito maisparecido ao
movimento comunista de ontem do que oliberalismo
eclético e distendido do século passado.
Perry Anderson (1995, p.22)

1.1 As mudanças e os novos modelos de gestão da subjetividade


Não foram poucos os momentos em que estranhamos aquilo que escutávamos, de
discursos nos quais os trabalhadores usavam, para falar de si, de seu cotidiano e das suas
relações de trabalho, conceitos tais como marketing, administração, discursos de
empreendedorismo e inovação. Em contrapartida, esses trabalhadores não vinham falar de
teoria, essas pessoas se encontram ou se encontravam em situações de sofrimento, buscando
o serviço desde questões pessoais até as decorrentes da organização do próprio trabalho. Não
foram poucos, também, os que me procuraram, pessoas como o João (que vocês, leitores,
poderão conhecer no capítulo 2), pessoas que vestiam a camiseta de “Eu sou a Empresa”,
que entendiam como reconhecimento do trabalho o dinheiro que recebiam, que se sentiam
isolados, que procuravam técnicas para aceitar seu trabalho e pessoas que falavam de si
como se fossem empresas.
Ao mesmo tempo a empresa passava por mudanças: A tão conhecida “restruturação
produtiva”, que tinha como objetivo tornar o trabalho mais barato com número reduzido de
pessoas, porém com intenso regime de trabalho. Ocorreram terceirizações em diversos
serviços, os trabalhadores tiveram sua carga de trabalho aumentada, setores mudaram de
nome, além do que, metas coletivas foram criadas com análises individuais de desempenho,
os trabalhadores começaram a ser chamados de “colaboradores” e, por fim, criou-se um
regime de participação de lucros. Era de se estranhar, mas uma instituição pública obtinha
lucros.
Percebemos, também, que se investia cada vez mais na importação de modelos de
empresas privadas de organização e gestão do trabalho, entre eles os programas de qualidade
total, os programas de on-the-job training, as estratégias de organização japonesas, passando
13

pelos constantes investimentos em palestras sobre Empreendedorismo e Neurolideranças, até


aulas para os servidores e estagiários se prepararem para o mercado competitivo. Podemos
analisar que esses investimentos em saberes e técnicas tinham como objetivo sustentar as
modificações nos modos de fazer funcionar o trabalho mediante operação de mudanças
subjetivas nos trabalhadores.
Algumas dessas mudanças neste sentido merecem destaque especial, principalmente,
os modos como o trabalho vai se organizar e como os trabalhadores serão entendidos por
Tittoni e Nardi (2011); Lapís (2011); Baulmgartem e Holzmann (2011) e demais pensadores
que analisam o trabalho no contemporâneo.
Os processos de restruturação produtiva surgiram a partir da década de 70 após
diversas crises da produtividade industrial que tinham como modelo o Taylorista-Fordista. O
regime de acumulação flexível aparece como resposta às taxas de juros elevadas, às diversas
greves como os movimentos de maio de 68, à crise do petróleo e frequentes críticas a um
Estado de Bem-Estar Social2 e a seu intervencionismo na economia3.
Em resposta a essas crises, Margaret Tatcher e Ronald Reagan começaram a
implantar novas políticas de governo baseadas em estudos de economistas como Hayek e
Friedman (LAPÍS, 2011) e suas propostas conhecidas como Neoliberalismo, que resultaram
na diminuição dos direitos trabalhistas, elevadas taxas de desemprego, aumento de trabalho
informal e terceirizado, privatização de empresas estatais e o enfraquecimento dos sindicatos
dos trabalhadores.
O modelo “antigo” de organização científica, propostos por Ford e Talyor, tinha
como princípios encontrar a pessoa certa para o lugar certo, consistia em um trabalho
parcelado, repetitivo, simplificado, especializado cujo ritmo é determinado pela esteira e não
pelos trabalhadores e permeados pela vigilância constante e práticas de disciplina e controle.
(LAPÍS, 2011). Esse modo de organização laboral “[...]desencadeou estratégias de
resistência por parte dos trabalhadores, as quais se manifestaram em greves, alta
rotatividade, sabotagens e absenteísmo, ocasionado maiores custos para o capital[...]”

2 Estado de bem-estar social, Estado-providência ou Estado social é um tipo de organização política e


econômica que coloca o Estado como agente da promoção social e organizador da economia. Nesta
orientação, o Estado é o agente regulamentador de toda a vida e saúde social, política e econômica do país
em parceria com sindicatos e empresas privadas, em níveis diferentes de acordo com o país em questão.
Cabe, ao Estado do bem-estar social, garantir serviços públicos e proteção à população
(SCHUMPETER,1909)
3 John Maynar Keynes foi um economista britânico que defendeu uma política econômica de estado
intervencionista, através da qual os governos usariam medidas fiscais e monetárias para mitigar os efeitos
adversos do capitalismo. Algumas dessas políticas foram as parcerias entre o Estado, o sindicato e as
empresas.
14

(LAPÍS, 2011, p.28). Era necessário tornar o trabalho mais dinâmico, “flexível” e
simultaneamente combater estratégias de resistência que se manifestavam no corpo dos
trabalhadores.
Já as novas modalidades de organização do trabalho requerem um novo tipo de
trabalhador: que ele seja polivalente, capaz de desempenhar tarefas complexas, de circular
entre diversos postos de trabalho e de operar diferentes máquinas. (BAULMGARTEM &
HOLZMANN, 2011) O trabalho passará ter como foco atingir metas da empresa, sejam
quais forem os meios necessários. O trabalhador passará ser enxergado como “colaborador”,
uma prática que objetiva fazer o empregado se comprometer com as demandas da empresa e
que tem como “efeito alguém que incorpora novos repertórios de discursos e conceitos em
suas competências”.(LAPÍS, 2011). Além disso, chamar o operário de colaborador faz como
assalariado se identifique mais com a empresa do que o colega de semelhante situação
Então, em nome da “flexibilidade” das estruturas rígidas, opta-se por uma série de
estratégias com objetivos de modificar a centralidade do trabalho, como ele é avaliado e
principalmente como o trabalhador vai perceber a si mesmo, em busca empresas e sujeitos
que se adaptem as mudanças mercado global competitivo. Isso se opera por meio de saberes
e discursos gerenciais (MORO & AMADOR, 2014), Saberes ADM (SOUZA, 2013) e pelo
Empresariamento da vida (AMBRÓSIO, 2011).
No discurso trata-se de uma ode ao trabalho criativo e de pertença a empresa com os
conceitos de empreendedorismo e inovação. Na prática, resulta na criação de novas
subjetividades e meios de dominação, com suas implicações na exigência de flexibilização
da vida em nome das demandas trazidas pela empresa.(TITTONI & NARDI, 2011)
Frente a isso, Tania Maria Gali Fonseca e colaboradores (2008) nos trazem
importantes apontamentos o que está em jogo nessas novas relações de trabalho.
“Nesse novo contexto, o que as organizações buscam no trabalhador não é mais a
força, conforme ressaltava o conceito de "força de trabalho", nem o controle do
corpo obediente (o corpo dócil e disciplinado, examinado por Foucault); mas a
"alma" - as produções do espírito, como o conhecimento, a criatividade, a
inteligência, o engajamento subjetivo, a responsabilidade -, conforme observam
Negri e Hardt (2001, p. 11) a respeito da transição do fordismo ao pós-fordismo:
"Não é mais um corpo que pode ser posto a trabalhar, não é mais uma alma que
pode viver independentemente de valores e paixões. Desta vez é a alma que é posta
a trabalhar, e o corpo, a máquina são seu suporte".(p. 505)

O que está em jogo, portanto, não é o corpo e a capacidade laborativa do


trabalhador, mas trata-se de um forte investimento para que ele seja flexível, se autoproduza,
invista em si mesmo, inove, empreenda. Lógicas que “impõem um modelo de trabalhador
que deve ser seguido [...]” (NARDI & TITONI, 2011. p. 376).
15

O que o Capital vai se interessar é na produção de subjetividade. Veremos então, que


por uma série de conjunto de práticas e discursos imbricados em relações de poder e de
verdade, haverá uma tentativa de produção de um sujeito indissociável da empresa e de seus
processos econômicos, implicando mudanças no âmbito da gestão e da experiência do
trabalho que agora será regulado pelo mercado neoliberal.
Assim, os efeitos do neoliberalismo no cotidiano das organizações de trabalho, sejam
públicas ou privadas, tem sido nefastos gerando, sobretudo, fragilidade dos coletivos de
trabalhadores, sofrimento e adoecimento, configurando um quadro de precarização ética
(SELIGMANN-SILVA, 2011), pelo qual as pessoas vão naturalizando as táticas de
produção e de reprodução da dominação entre si nos contextos de trabalho. É neste lastro
que trabalhadores e trabalhadoras vem se subjetivando, isto é, produzindo modos de pensar,
de sentir e de agir, historicamente situados.
Imersos nessa compreensão existem diversos estudos na psicologia e sociologia do
trabalho como os de Heloani (2005) e Soboll (2008) que problematizam os modelos de
gestão do trabalho e suas influências na saúde do trabalhador e a relação desses modos de
organizar o trabalho com práticas sistemáticas de isolamento, ataque ao reconhecimento,
desqualificação do trabalho e de “assédio moral”, que é consequência de lógicas
individualistas e competitivas estimuladas em prol da produção de capital.
Neste ponto, Dejours e sua escola de Psicodinâmica do trabalho (LANCMAN &
SZNELWAR, 2011) procuram na instauração de coletivos como defesas a esses sofrimentos,
visando a diminuição de psicopatologias.
Outros estudos optam por cartografar e compreender esses processos, de como essas
mudanças operam na subjetividade e no trabalho pelo viés da filosofia da diferença, a
exemplo das pesquisas de Moro e Amador (2015); Amador e Barros (2011) Louzada,
Barros, & Camargo (2014) e Fonseca et al. (2008). Esses trabalhos estão articuladas aos
estudos do campo das Clínicas do Trabalho, entre elas a Ergologia (SCHWARTZ et al.,
2007) e da Clínica da Atividade.(CLOT et al., 2005).
Tendo em vista as considerações levantadas a respeito do Neoliberalismo,
Restruturação Produtiva e nossa aposta nas Clínicas do Trabalho como espaços de debates
de valores e normas que possibilitam aberturas para a singularidade, nos interessa também
outra orientação de análise sobre trabalho no contemporâneo: romper com a dicotomia do
paradigma sujeito/trabalho e dar passagem ao paradigma subjetivação/práticas sociais, no
qual o trabalho converte-se em mais um vetor de produção subjetiva. Analisar essas
produções de subjetividade, portanto, implica ao modo os sujeitos se produzem e se situam
16

em meio aos jogos de verdade, considerando as formas de sujeição e as estratégias de


resistência possíveis (NARDI & TITTONI, 2011).
Mas como um sujeito se torna uma empresa, e principalmente, como contribuímos
para isso, mesmo sem perceber?
Convido o leitor, então, a voltarmos a mais ou menos 36 anos atrás em busca de
pistas, em uma certa palestra do então professor de filosofia: Michel Foucault. Seu
pensamento nos interessa para a discussão de trabalho e subjetividade principalmente onde
ele analisa o neoliberalismo em o Nascimento da Biopolítica (FOCAULT,2008a ), em que
podemos encontrar alguns elementos para questionar nossa “escuta” junto aos trabalhadores,
bem como a nós mesmos, como psicólogos.
A direção de seus estudos nos leva a atentar para uma genealogia, uma história dos
regimes de verdade que criam o que antes não existia, conceitos que são afirmados a partir
de práticas reais que são avaliados entre verdadeiro ou falso, regimes de saber-poder
criadores de modos específicos de vida, tais como a loucura, a doença, a delinquência e a
sexualidade. Os estudos de Foucault partiam de como esses regimes de saber-verdade,
discursos imbricados em relações de poder, produziam determinados modos de enxergar a
natureza humana, modos de uma particular formação de subjetividade e de maneiras
particulares de pensar a política (READ, 2009) “diferentes modos nos quais, em nossa
cultura, seres humanos são feitos sujeitos” (FOUCAULT, 1995 p. 231). Um sujeito-
empresa, a partir desta perspectiva, não será diferente.
Inspirados nesta perspectiva genealógica, para analisar os modos como sujeitos se
tornam empresas, não se trata neste TCC, então, de tomar essas produções conceituais de um
determinado tipo de razão para defini-las como boas ou ruins, como erros de nossa sociedade
ou como ilusões de uma ideologia que devem ser dissipados racionalmente por uma verdade
irrefutável (FOUCAULT, 2008a) mas sim, de enunciar um conjunto de práticas coordenadas
por regimes de verdade que dão condições de existência a um novo tipo de sujeito, que é
esse que vê casamentos, crimes, gastos com as crianças através de um pensamento de custo-
benefício (READ, 2009), que torna a vida e suas escolhas, a grosso modo, como objeto de
estudo de uma análise econômica (FOUCAULT, 2008a p. 366). Esses mesmos indivíduos
que são prescritos como trabalhadores-empresa e por isso empreendem a si mesmo: O novo
Homo Oeconomicus.
Optamos por trazer para aquele que pacientemente leu esse texto até agora, um
encontro, um acontecimento. Um ano depois dos atendimentos de diversos trabalhadores
permeados por esses discursos econômicos e empreendedores de si, encontramo-nos com
17

esse livro vermelho, e ficamos curiosos para saber de que forma essa leitura causaria
ressonância em você, leitor. Peço então que seja um tanto mais paciente e que nos
acompanhe no percurso de nascimento do Homo Oeconomicus na obra foucaultiana.

1.2. O nascimento do Homo Oeconomicus: leituras da obra de


Foucault
Compreender como a leitura do Homo Oeconomicus vai aparecer na obra foucaultiana
implica situar-se em sua linha de pensamento. Dentro de sua produção conceitual, destaca-se
a questão das relações de poder, do poder Disciplinar, da Biopolítica e sua concepção de
Governamentalidade, imersos em um projeto de mão dupla: de um lado, seu interesse pela
racionalidade política e pela “Genealogia do Estado” e, de outro, seu interesse pela questão
da ética e pela “Genealogia do Sujeito” (LEMKE, 2002 apud: DANNER, 2011 P. 63).
O que pretendemos com Foucault é a busca por alternativas para uma analítica da
subjetividade que não se reduza aos processos macroeconômicos ou pela análise jurídico-
liberal do Poder exercido pelo Estado. Ele propõe, então, um modelo de rede de relações de
poder, uma microfísica do poder, que por meio de práticas cotidianas situadas historicamente
produzem determinadas concepções de verdade e novos saberes. O caráter relacional do
poder pressupunha, então, que ele não poderia ser propriedade de formas como o Estado,
empresas e patrões, mas que pertencia ao campo das forças (CANDIOTTO, 2010).
Outras considerações sobre a problemática do poder é entendê-lo a partir de sua
positividade em contrapartida a concepção negativa de violência e coerção. A coerção e a
violência, para o filósofo, agem nos corpos enquanto objeto, enquanto as relações de poder
vão agir sobre as condutas dos indivíduos, “uma ação sobre ações possíveis”
(FOUCAULT,1995 p.243). Tomar o poder como positividade é compreendê-lo pelo seu
caráter germinativo, resultante do embate de forças e formas, produzindo novos saberes,
novas realidades e novos sujeitos. Outra diferença entre Coerção e poder é que não há
relações de poder sem a possibilidade de resistência (FOUCAULT, 1976).
As relações de poder só atingem seu estatuto de Verdade a partir de sua relação com
o Saber que elas mesmas produzem. Esse jogo de saber-poder-verdade cria concepções de
vida que antes não existiam, considerando a inexistência de conceitos universais e naturais.
Foucault busca no método Genealógico uma maneira crítica de desmontar através da
enunciação de práticas discursivas que passam a ter o valor de real, operando sua
desnaturalização. Ao longo de sua obra podemos perceber que não há uma dicotomia entre
18

discursos e coisas produzidas, das formas e das forças: as relações de poder passam a ser
imanentes e inseparáveis.
O autor afirma que o poder não assume a centralidade em seus escritos
(FOUCAULT, 1995), mas sim, sua pergunta de como através dessa tríade saber-poder-
verdade o sujeito é dividido no seu interior em relação aos outros (em que vemos a
dicotomia entre o louco e o normal, o delinquente e o “cidadão de bem”, o doente e o sadio)
e de como eles passam a ver a si mesmos como indivíduos. Para isso, busca na análise
genealógica dos dispositivos punitivos e do surgimento de técnicas de poder disciplinar a
partir do século XVIII (FOUCAULT, 1975)
O poder disciplinar surge como uma tecnologia centrada nos indivíduos para
produção de corpos dóceis, em sua disposição espacial, em sua vigilância e visibilidade, um
dispositivo que inicialmente cumpre a função de se tornar mais eficaz e menos oneroso (e
não mais humano) de punir melhor (SANTOS,2013). Essas técnicas não eram operadas
apenas pelo soberano ou pelo Estado, mas por uma série de instâncias de captura - como a
prisão, o exército, a escola, o hospital e as fábricas- e que não operam pelas leis ou pelas
regras, mas pela “Norma” (normalização) com o propósito de examinar, comparar,
diferenciar, hierarquizar, homogeneizar, classificar, corrigir e excluir esse corpo em que age.
O efeito do dispositivo disciplinar não se restringe na produção corpos dóceis, mas tem
como consequência o surgimento de saberes sobre esses corpos que atuam, saberes como as
ciências humanas.
O controle e o consumo do tempo, no campo do trabalho, foram alvos privilegiados
por esse dispositivo disciplinar, tendo em vista que o tempo dos homens seja oferecido para
ser comprado por um salário e que fosse transformado em força de trabalho (LOUZADA,
BARROS & CAMARGO, 2014). Os modelos de organização laboral taylorista-fordista
baseiam-se muito nos saberes e técnicas da integração entre a sanção e a vigilância,
estratégias provenientes do que Foucault nomeou de “sociedade disciplinar”, estratégias
produtoras de uma ideia atomística do indivíduo moderno como representação ideológica
dessa sociedade. (Foucault, 1975).
Contudo, Michel Foucault aprofunda suas análises das instituições disciplinares para
entender um novo problema proveniente das mudanças da passagem de uma sociedade
feudal para uma burguesa e industrial, entre elas, o grande acúmulo de pessoas nas cidades.
Passa a dar mais enfoque na sua análise dos poderes, questões como o Governo e o Estado.
Este problema vai ser percebido para além da capacidade das instituições de controle
e do governo dos soberanos. Será preciso a construção de saber sobre algo que passará ser
19

um campo de intervenção de governo: a população. Para governar, será necessário entender a


população e seus problemas de higiene, de saúde, de trabalho, de alimentação, de natalidade,
de seus costumes; todo um cálculo necessário para uma arte de governo que passará a ser
“racional” através da invenção da estatística, medicina, psicologia e economia.
Se com o poder disciplinar Foucault propunha uma análise dos micropoderes do
cotidiano e de práticas que produzem indivíduos em instituições de cerceamento, é com um
novo campo de análise chamado Biopolítica ou Biopoder que vai introduzir as questões do
Estado Moderno na gestão do ser humano-espécie.
O Biopoder é entendido aqui como composto pelos dispositivos disciplinares e
biopolíticos e inteiramente voltado para a expansão e conservação da vida em todas as suas
modalidades, um processo simultaneamente totalizante e individualizante, uma dupla
perspectiva que intervem na vida das pessoas enquanto indivíduos e a vida das pessoas
enquanto membros de uma massa. (GIMENES, 2013)
Segundo Louzada, Barros e Camargo (2014)
O biopoder bifronte é um poder que visa processos de totalização, pois estende seu
controle pelos corpos e consciências, extraindo e absorvendo deles sua força para
dirigi-los, regulá-los, rearticulá-los e tentar administrar a totalidade das relações
sociais, dos fenômenos globais, de massa, sendo, por isso mesmo, avaliado como
indispensável para o nascimento e desenvolvimento do capitalismo

Exemplos de modulações biopolíticas no trabalho são estratégias nos fenômenos da


população para combater o absenteísmo, intervindo enquanto massa (em campanhas de
vacinação contra a gripe, campanhas de combate ao uso de álcool e outras drogas,
prescrevendo qualidade de vida) e práticas individualizantes disciplinares (perícias médicas
para verificar a veracidade de LTS)
Os termos Biopolítica e Biopoder estão inseridos na discussão da governamentalidade
em que o surgimento de uma racionalidade de governo dá pistas de como nos governamos e
somos governados atualmente. Governo em francês, em seus amplos significados pode ser
traduzido como dirigir, dar sentido para o caminho a ser seguido, mas, também, sustentar-se
assegurando a subsistência e principalmente, o que diz respeito a conduzir a conduta de
alguém (SOUZA,2013). Governar não é atribuição apenas do governante, ou a relação do
estado sobre seus residentes, é um amplo aspecto que compreende o governo dos filhos, das
famílias, das comunidades, da alma, inclusive o governo de si. (FOUCAULT, 2008a).
Vimos então como se dá produção de indivíduos influenciados por saberes disciplinares
normativos e da sua gestão em populações pelas práticas de biopoder, inseridas na
preocupação das mentalidades que legitimam o governo. A análise da biopolítica e da
20

governamentalidade serão propostas pelo filósofo por um novo campo de produção de


verdade, a Economia Política, e que funções históricas ela cumpre na Arte de Governar.
Se Daniel F. Souza afirma (2015), na sua tentativa de estabelecer uma origem
filogenéticas do Homo Oeconomicus, que há tantos conceitos de Homem econômico quanto
existem economistas (p.1), seu argumento é de que seus diferentes conceitos são balizados
na inserção do indivíduo na Economia.1.2.1 Das concepções de Economia até o Homo
Oeconomicus

1.2.3 Das concepções de Economia até o Homo Oeconomicus

O Oeconomicus de Xenofonte é um escrito grego que narra um diálogo de Sócrates em


suas quase sérias tentativas de convencer o preguiçoso e extravagante Crítobulo, da
importância de suas tarefas domésticas (NEUMANN, 1971) enquanto esse preferia gastar
seu tempo com comédias e atividades não lucrativas. O diálogo gira em torno de fazer
Crítobulo não cair nessas armadilhas, se preocupando com o que é necessário para sustentar
uma casa (Oikia). Para isso, Sócrates usa o exemplo de Ciro e Isômaco, o primeiro que
estudou tão bem a arte de governar sua casa que obteve sucesso na carreira militar, e o
segundo, fazendeiro, ensina a necessidade de instruir bem sua esposa para que a casa não
pereça. Nesse grande tratado de agricultura, matrimônio e de gerenciamento doméstico se
retira a máxima de que “O bom economista é capaz de não só administrar bem a sua casa,
mas, também, administrar a casa de todo mundo”. (NEUMANN, 1971 p. 239)
Para que seja possível gerir uma casa é necessário administrar o domínio de suas
terras, saber o que e como cultivar, instruir seus empregados, vender e comprar como
convêm, enfim, recorrer a práticas ora chamadas de Saber (epistême) ora de técnicas (technê)
com objetivo de conservar e manter o patrimônio mas, também, do que é necessário para
isso, sua a arte de comandar racionalmente (FOUCAULT, 1984a). Ele coloca neste texto,
seguindo o exemplo de Ciro, o bom economista-militar, de que a arte política, a arte militar e
arte doméstica não possuem grandes diferenças no que é governar, pelo menos no que
tangem o governo dos outros (FOUCAULT, 1984a, p. 138). Eis que a discussão será guiada
sobre a Casa de Isômaco e a necessidade de disciplinar sua mulher para que seja sua
“colaboradora” no gerenciamento dos recursos.
O modelo de conduta ideal aqui defendido era o do fazendeiro em oposição ao
artesão, esse nada podia fazer pela rés pública enquanto o proprietário de terras era o
caminho a ser seguido. Para bem governar, era necessário um cuidado de si e uma
21

temperança frente aos exageros da carne, um olhar e boa conduta sobre seus afazeres
domésticos, para então partir para as questões da pólis.
Em Governmentality (FOUCAULT,1991) é introduzida uma discussão sobre
L'Œconomique du Prince de um autor do século XVII chamado François La Mothe Le
Vayer destinadas ao futuro herdeiro do trono da França, uma obra pedagógica que apresenta
três tipos de formas de que são necessárias para governar, cada um com seus princípios: (1) o
governo de si mesmo, que compete ao princípio da moral; (2) a arte de governar uma família
como convém, que pertence à economia; (3) e enfim a ‘ciência de bem governar’ o Estado,
que pertence à política. (DANNER,2011; SANTOS, 2013). Reaparece à questão de que é
preciso governar bem a si mesmo, seguido de sua família e bens, para ter condições de
governar uma nação.
Segundo Danner (2011) o objetivo de Foucault estudando essa obra era responder a
pergunta “como introduzir o sábio governo da família, economia, no âmbito do Estado?”
(FOCAULT,1991 p.90). Esse problema é retomado por Rousseau Na Economia Política,
onde define Economia como “sábio e legítimo governo da casa, visando o bem comum de
toda a família” e da necessidade de estender esse governo para a grande família que é o
Estado, posição essa compartilhada por François Quesnay no século XVIII, para quem o
bom governo é essencialmente o econômico. Governar um estado passa pela aplicação da
economia em um nível maior, o que significará exercitar sobre seus habitantes, sobre a
riqueza e sobre o comportamento de todos uma forma de vigilância e de controle tão atenta
quanto aquela que a cabeça de uma família tem sobre seu lar e sobre seus bens
(FOUCAULT, 1991). Aos poucos, pela economia, é dito ao soberano que não se governa o
território, mas o “que se governa são sempre as pessoas, são homens, os indivíduos e as
coletividades.” (FOUCAULT, 2008b. p. 164)
Entre essas duas perspectivas que tinham a Economia como sabedoria da casa, existia
um período histórico considerável, diferentes ainda por um proto-pensamento biopolítico
proveniente primeiras unidades governamentais: O poder pastoral. Esse começou a ser
organizado no oriente pré-cristão, reatualizados pela religião católica e aplicado no Estado
Moderno, como forma de polícia (AMBRÓZIO, 2011 p. 63). O poder pastoral tinha como
objetivo a salvação das ovelhas, conduzindo e produzindo conduta, enxergando um animal
frente ao seu rebanho, processos massificantes e individualizantes, com uma nova concepção
de sujeitos separados de coletivo que os gregos não admitiam (SOUZA, 2013 p.403)
A Economia Política passa a cumprir função como limitador interno ao Estado da
arte de governar, para atingir objetivo limitado da racionalidade estatal que é a manutenção e
22

a existência da nação (FOUCAULT, 2008a). Enquanto o Direito (limitador externo) vai


dizer o que é legítimo ou ilegítimo fazer, um governo guiado pela Economia vai se
preocupar o que é hábil ou inábil governar.(SANTOS, 2013 p. 90).
Simultaneamente existia outra racionalidade que visava dar conta dos princípios
ilimitados de uma arte de governar: o Estado de Polícia (Politzeistaat) controlando as
condutas da população, seu fluxo, seu ócio, suas doenças; um controle exacerbado da vida
cotidiana através da produção de “ocupação”, com a ideia de que os trabalhadores propiciem
e contribuam para o desenvolvimento das forças do Estado (SANTOS, 2013 p. 74)
Entre essas forças antagônicas da Polícia e da Economia, Foucault (2008) começa a
nos trazer pistas de como surgiria na história do pensamento humano uma racionalidade de
um sujeito definido por seus interesses egoístas:
O que o empirismo Inglês - digamos, aquele que aparece grosso modo com Locke"
-, [...] sem dúvida pela primeira vez na filosofia ocidental, é um sujeito que não é
definido nem pela sua liberdade, nem pela oposição entre alma e corpo, nem [..]
pelo Pecado, mas um sujeito que aparece como das opções individuais, ao mesmo,
tempo irredutíveis e intransmissíveis (FOCAULT, 2008a, p. 370-371)

Esse tipo de compreensão de sujeito vai cumprir um papel importante na


resignificação do papel da Economia Política no Governo do Estado, pois deve-se governar
agora pelas lógicas de um Homo Oeconomicus, sujeito de interesses individuais. Em nome
de sua “liberdade” é preciso deixar-fazer, que as pessoas sigam a lógica natural de seus
interesses perpassados pela mão invisível do Estado. Se para o Estado de Polícia (que tem
racionalidades semelhantes a um Welfare State no século XX) nunca se governa de mais, já o
Liberalismo diz que não se deve deixar governar (SANTOS, 2009).
O Homo Oeconomicus de Smith e Ricardo aparece como sujeito de interesse que
jamais deveria deixar de procurar realizá-los, ao contrário de um sujeito de direito que
renuncia seus direitos naturais pelo contrato social coletivo. É um sujeito que deve ser
egoísta, por entender que os interesses coletivos se manifestam pelos interesses de cada
indivíduo, portanto, a partir de sua própria vontade (GUARESCHI, 2010). Era ao mesmo
tempo aquele que precisava trabalhar, aquele que tinha que se haver com a carência de
recursos e por isso era um sujeito de troca (SANTOS, 2013 P.103), trocando seu tempo e
força de trabalho por dinheiro em uma sociedade industrial e vendo interesses nos coletivos.
No entanto, o governo Liberal é consumidor de “liberdade”, mais um determinado
tipo de liberdade produzida (a liberdade de mercado, por exemplo), sendo necessário que
exista algum tipo de governo dos “agentes econômicos”, para que essa liberdade não seja
prejudicial aos interesses coletivos. Este governo que se dá inicialmente por dispositivos
23

disciplinares produtores de segurança e identidade, posteriormente, em sua fase neoliberal,


vai se associar a novas estratégias biopolíticas para dar conta das condutas das populações
para além do Estado de Polícia.
Frente ao problema das condutas da população, a crescente intervenção do Estado de
Bem-Estar social nas liberdades econômicas por políticas Keynesianas, influências do pós
segunda guerra e uma crescente Fobia do Estado; alguns pensadores na Alemanha –
conhecidos por Foucault (2008a) como Ordoliberais - reposicionaram o papel da Economia
Política: em vez de limitar as ações do Estado, era necessário saber como fazer um Estado a
partir da economia. “É necessário governar para o mercado, em vez de governar por causa do
mercado” (FOCAULT, 2008a p. 165).
Os Ordolibeirais vão propor uma sociedade que não tem o modelo um indivíduo de
interesses naturais, ou o exercício de um governo familiar, mas sim uma sociedade regulada
pela dinâmica das empresas, produzir na subjetividade um jogo de mercado, regulando a
vida a partir da produção artificial da concorrência nos interesses individuais. Passam a
idealizar e produzir os indivíduos como aqueles que se relacionam com outras instituições,
pessoas e famílias como empresas, concorrendo e autoregulando a si mesmos.
A Economia Política teve que se desprender do modelo doméstico que foi originado
visando dar conta de gerir a população. Visando dar conta de uma gestão de muitos sujeitos
de interesse, não seria mais na família que se retiraria o modelo de conduta de governo, mas
o local que a economia como ciência do Estado deveria intervir (CANDIOTTO, 2010)
procurando nela saberes sobre seus costumes, sexualidade e interesses.
Diante dessas considerações, de um indivíduo atomístico separado de seu coletivo
por práticas disciplinares e pelo poder pastoral, de um ser humano definido por seus
interesses individuais regulados não pela troca, mas sim pela concorrência, como produzir
um indivíduo que regula a si mesmo pela economia? Como o sujeito se torna uma empresa?
O papel do pensamento Neoliberal Americano, sua via de análise do trabalho e sua teoria do
Capital Humano é um dos meios que permitem generalizar a economia para espaços que
antes ela não pertencia.
A economia política clássica sempre indicou que a produção de bens dependia de três
fatores: a terra, o capital e o trabalho (FOUCAULT, 2008a p.302). Contudo, nas obras de
Smith e Ricardo a análise do trabalho se reduzia a questões quantitativas e sobre o controle
do tempo. O que queriam os Neoliberais americanos era enxergar o trabalho por uma
variável qualitativa que foi desconsiderada: o empregado. O que vai interessar aos
24

Neoliberais são as modulações do trabalhador, suas escolhas, suas decisões tomadas para
fins e meios ótimos para atingir um objetivo: a produção de capital.
Por que as pessoas trabalham, para esses neoliberais? Elas trabalham porque querem
dinheiro! Uma renda que é proveniente do capital. Esse Capital provêm do uso de si, de suas
competências de gerar esse dinheiro. Os trabalhadores não vendem a força de trabalho,
conforme tinha proposto Marx, o que os trabalhadores vendem é a si mesmo. Eles são
sujeitos econômicos indissociáveis de sua capacidade de produzir, eles são Capital Humano.
Esse novo Homo Oeconomicus é o indivíduo prescrito e desejado pelas novas organizações
do trabalho,
Nesse sentido é que a teoria do capital humano (construída entre os anos 1960 e
1970) quer ser uma análise concreta do trabalho ao entendê-lo como conduta econômica
racionalizada calculada por aquele que trabalha. (CANDIOTTO, 2011 p.480). Ao mesmo
tempo, produzem diversos saberes para realizar mudanças subjetivas nos trabalhadores, para
que esse indivíduo avalie seus campos da moral, da família e da política por uma lógica de
concorrencial de mercado.
O novo Homo Oeconomicus é uma utopia neoliberal, ele é o reflexo de seu governo:
“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gênesis 1:26). Essa
nova concepção de agente econômico equivale o indivíduo a uma empresa, uma empresa de
si mesmo. Empreende sobre si, sobre sua subjetividade, guiado por uma lógica custo e
benefícios e concorrência de mercado. Esse indivíduo é essencialmente responsável por tudo
o que lhe acontece, ele acredita que depende apenas do seu mérito e de suas escolhas
individuais para prosperar.
Sendo assim, especializar-se, graduar-se, fazer um MBA, falar outros idiomas, fazer
exercícios regulares, preocupar-se com a saúde, com sua qualidade de vida são investimentos
em capital humano. Casamentos passam a ser um contrato entre empresas que potencializam
ou atrapalham esse capital. Os resultados dessas empresas precisam de investimentos, pois o
tempo que passa ensinando seus filhos e a nutrição que os dá, bem como quanto gasta em
educação e cultura vão importar no desenvolvimento de competências desse futuro
empreendedor. Mas é importante que se veja bem os potenciais inatos de sua esposa ou
marido, pois a carga genética é o que vai definir quais investimentos são de risco, e quais não
são.
Supomos que determinados tipos de sujeitos e modos de habitar o mundo são
produzidos a partir dos regimes de veridificação e jogos de forças, podemos ver nesses
saberes disciplinares a exemplo dos estudos cognitivos da Tomada de Decisão dos
25

Economistas na década de 70, na concepção Qualidade de Vida; na literatura da autoajuda e


dos Coachs, nos discursos institucionais das gestões de pessoas e inclusive nas medidas
socio-educativas (RANIERE, 2014 P.68); produções que convergem para o
Empreendedorismo como caminho a ser seguido. A própria concepção Americana de
Economia como a ciência do comportamento humano produz efeitos nos regimes de saberes
que se baseiam nossas ciências, de como passamos a entender os sujeitos e intervir neles.
O Homo Oeconomicus é aquele que é proativo, inovador, que vê oportunidade de
negócios em todas as possibilidades (casamentos, crimes, trabalho, vida) cujas suas respostas
são sempre sistemáticas, jamais aleatória. Ele pode ser governado porque ele é flexível as
mudanças e as variáveis do meio, ele se subjetiva como Homo Oeconomicus quando ele
“aceita (livremente) essa realidade” (FOUCAULT, 2008a p. 369). Pode ser gerenciando (por
si e pelos outros) uma vez que, como estratégia biopolítica, o controle é internalizado por
cada um de nós. (MORO & AMADOR, 2015).
Como consequência desses investimentos de produção de subjetividade
implica mudanças na experiência do viver e trabalhar:
[...] Todos passam a concorrer entre si até mesmo fora do local de trabalho ou de
questões relativas às carreiras de cada um; todos passam a conferir crescente
atenção às ideias de inovação, empreendedorismo e marketing pessoal, entre outros
termos próprios ao mundo coorporativo; as instituições estatais e públicas passam a
ser guiadas por objetivos e métodos outrora confinados ao mundo dos negócios;
em suma: tudo passa a tomar a forma da empresa capitalista neoliberal. (SANTOS,
2013, p. 156)

Podemos ver que o propósito der Michel Foucault não era análise da Economia como
uma ideologia ou uma doutrina econômica, mas como um modo de governo, um novo modo
de ser, pensar e agir. (READ, 2009) Nesse ponto, se tomamos um desvio da experiência do
trabalhar e os processos de subjetivação que a alteram, foi para discutirmos os diferentes
modos que, na história da humanidade nos governamos e somos governados, para
entendermos o que está em jogo na nossa gestão da vida cotidiana no trabalho. Contudo, se é
por relações de poder e jogos de verdade que os indivíduos são feitos sujeitos, devemos
acreditar que não existe poder sem resistência.
A leitura da obra Focaultiana nos auxilia em uma ontologia crítica do presente,
enunciando os limites que nos são historicamente impostos, para irmos além deles (Foucault,
1984b). Após esse processo de imersão, teórica passaremos para a discussão de um
empreendedor de si conhecido como João e de como podemos repensar nossa escuta e
intervenção a partir dos conceitos aqui levantados.
26

2. Diário de Campo de um estagiário: Escuta de um


servidor público na equipe de saúde
“A economia é uma ciência do comportamento humano, a ciência do
comportamento humano como uma relação entre fins e meios raros que tem usos
mutuamente excludentes” G. Becker4

[...] Onde os homens sejam pessoas livres, o capital humano não é um ativo
negociável, no sentido de que possa ser vendido. Pode, sem dúvida, ser adquirido,
não como elemento de ativo, que se adquire no mercado, mas por intermédio de um
investimento no próprio indivíduo. T. Schultz, 1973,

"Uma das grandes contribuições recentes da análise econômica foi aplicar


integralmente ao setor doméstico a quadro analítico tradicionalmente reservado a
firma e ao consumidor. [...] Trata-se de fazer do casal uma unidade de produção
ao mesmo título que a firma clássica. [...] De fato, a que é um casal, senão o
compromisso contratual de duas partes para fornecer inputs específicos e
compartilhar em determinadas proporções os benefícios do output dos casais?”
Jean-Luc Migué.

“[...] o economista distingue as atividades criminais das atividades legitimas com


base unicamente no risco que corre. As atividades criminais são as que fazem o
indivíduo que a elas se dedica correr um risco particular: o de ser detido e
condenado a uma pena (multa, prisão, execução)” F. Jenny sobre Stingler e
Becker³.

“A Economia é o método; o objetivo é mudar o coração e a alma.” Margaret


Thatcher.

“... Ontem eu e minha supervisora conversamos sobre uma situação de um servidor que
não estava indo bem em seu estágio probatório. A chefia estava preocupadíssima, pois vê
que ele não tem o perfil para trabalhar onde trabalha. Ele ingressou na empresa como
assistente administrativo, cargo que é bem versátil. Foi-lhe sugerido o Serviço de
Atendimento ao Cliente (SAC), por estarem com falta de pessoal e terem uma vantagem na
carga horária e financeira: não precisam cumprir às oito horas diárias com uma hora e meia
de intervalo, e sim seis dias de seis horas e quarenta e quatro minutos, mais benefícios
salariais. Mesmo assim, não estava indo bem, então o pessoal do Acompanhamento
Funcional (as pessoas que trabalham “lá em cima” na Gestão de Pessoas) encaminharam
para nós. Ele ia ser um dos meus primeiros atendimentos.
Quando algo não vai bem, imagino o que esse pessoal do Call Center passa, pois
sentimos necessidade de sermos escutados em nossas insatisfações, nem que seja para

4
Gary Becker e Theodore Schultz(1973) foram os percursores da teoria do capital humano que
possibilitou a extrapolação do Modelo Homo Oeconomicus para a psicologia. Essas citações, com exceção do
discurso de Margareth Thatcher, são discutidas por Focault no Nascimento da Biopolítica (2008) na aula de 14
de março
27

reclamar para quem não tem culpa. Nesse contexto, ligo para João, 36 anos para termos a
primeira conversa. Foi “sugerido” para ele na avaliação do estágio probatório a psicoterapia.
No meu serviço não fazemos a psicoterapia, mas sim acompanhamento de tratamento e a
primeira escuta para ver se o funcionário tem essa demanda, e então encaminhamos para os
psicólogos conveniados com a empresa.

Vou até a recepção, encontro algumas pessoas com uma camiseta “Eu Sou a Empresa”.
Chamo João que me acompanha bastante fechado:
Valmir: E então, João, o que te traz aqui?
João: Bem, eu vim aqui conforme foi sugerido. Eu tenho me incomodado bastante com as
pessoas que ficam ligando para nós, são pessoas sem instrução, pessoas ignorantes, tento
explicar as coisas para elas e elas não me escutam. Fui mal no meu estágio probatório, mas
tudo bem, ainda faltam algumas competências que preciso aprender e ninguém do meu setor
tira mais que 70 na primeira avaliação do estágio probatório, fui um pouquinho a baixo, mas
dá pra recuperar.
Nesse momento me lembro do conteúdo da conversa e de que tipo foi o pedido para
que eu intervisse: ele não tinha aceitado a sugestão de trocar de setor, e eles se preocupavam
muito com o fato dele um dia gritar com alguém, pois podia resultar em um processo. Seria
melhor se ele fosse para um lugar que não atendesse público, ficasse na dele, enfim, era isso
que sugeria a chefia.
Valmir: Me fale mais sobre seu trabalho– curiosamente naquele ano e no próximo, atendi
várias pessoas desse local.
João: Olha, ele é bem tranquilo, mas é bem rigoroso com horário, temos algumas telas no
computador que precisamos preencher e precisamos saber de tudo um pouco, pois
precisamos dar a informação precisa para o cliente e encaminhar o pedido dele para o setor
certo, para ver se conseguimos solucionar. Temos um monitor maior, que todos temos visão
do controle da nossa meta, que é em média em 1 min e 36 por atendimento. Mas aí as
pessoas não entendem o que tu fala e depois tu és chamado para falar com o supervisor,
ficam te escutando na linha ou até te chamando para um canto falar com outra pessoa. Nosso
salário tem uma remuneração variável, e de acordo com essa meta recebemos parte do lucro
da empresa. O problema é que os outros setores não fazem nada, a gente cria um monte de
registro e ele não serve…
28

Soube de algumas coisas que organizavam seu trabalho entre elas que tinham horário para ir
ao banheiro (apenas quinze minutos durante as seis horas e quarenta e quatro de trabalho) e
que às vezes atendiam em média 60 pessoas por turno, podendo ser superior a 120, quando
há problemas na cidade. E sua extrema intolerância com atrasos.

Valmir: Mas me conta, e o serviço de atendimento aos clientes, como que foi isso?
João: Olha me sugeriram quando eu entrei. Sempre tive dificuldade de falar com pessoas,
preferia ficar na minha, sair com os amigos de vez em quando, sou mais fechado, gostava de
desenhar mesmo. Mas aí vejo meu amigo indo bem, já é o segundo concurso que ele passa e
ele tem uma empresa por fora. Na faculdade agente vê bastante, que o teu próximo sócio
pode ser aquele cara que tu conhece na rua, que tu tens que ser simpático, pró-ativo...
Valmir: Proativo?
João: Sim, proativo. Li muito sobre isso. Dai quando me falaram do quanto eu ia ganhar, e,
além do mais, que eu ia poder desenvolver as competências que preciso, porque esse
trabalho é provisório, o que eu quero mesmo é ser Engenheiro, ter minha empresa. Eu estava
no segundo semestre e ganhava 1300 reais, imagina se eu sou um dono de empresa que nem
era o meu chefe lá. Mas precisa ter contatos, Networking, proatividade e desenvolver essas
coisas que me faltam. O problema é as pessoas que ligam são mal-educadas conosco e não
entendem as nossas informações. Não tem como não se abalar né, não tem como separar, ah
a partir de agora “eu sou João” e agora eu “sou a Empresa”, eu tomo isso pra mim e meu dia
já fica horrível. Mas não é sempre assim, tem dias bons. Mas eu vim aqui, Valmir, por que
me falaram que tinha Psicoterapia e queria saber como funciona. Tenho esperança que com
essas técnicas e mais meu trabalho, vou conseguir falar com as pessoas, mas é sempre
complicado, eu tenho que ficar explicando o que eu tô falando e elas não me entendem.
“Acho que com a psicologia vou conseguir me manter no trabalho, foi só uma nota ruim…”.
29

3. Clínicas do trabalho como desvio:

A concepção da Biopolítica vai ser uma ferramenta importante para pensarmos o


processo de subjetivação no trabalho, por sua herança massificadora e individualizante do
poder pastoral: a totalização que diz respeito ao controle dos fluxos vitais e à individuação,
que, por processos de normalização e modelação impelem alguém a se reconhecer a partir de
uma identidade não criada por ele, tal qual o sujeito-empresa. (CANDIOTTO, 2011). Trata-
se de um indivíduo competitivo, que regula a si e aos outros com base nos seus próprios
interesses individuais.
Nessa competição, o próprio espaço de trabalho vai ser pensado, planejado e
esquadrinhado para que todos possam vigiar e competir com cada empresa-trabalhador,
inclusive, através de recursos digitais, como no exemplo do monitor das metas de João. Não
é a toa que Foucault (1975) analisava o Panóptico de Bentham como principal recurso da
sociedade disciplinar. E não é a toa, também, que agora quem regula o tempo e o trabalho
dos outros sãos os próprios colegas.
Sobre o trabalho de João e de toda organização do trabalho no contemporâneo,
podemos notar a presença de lógicas distintas e coexistentes. Assim, temos a presença da
chamada gestão flexível do trabalho através uma doutrinação subjetiva (palestras, disciplinas
na faculdade, estratégias da gestão de pessoas, metas coletivas, discursos sobre inovação e
excelência) e, simultaneamente, lógicas fordistas disciplinares de controle do tempo,
vigilância e sanções. Frente a essas coexistências, seria o processo massificante das metas
coletivas e a análise do desempenho individual uma incongruência ou uma reatualização do
poder pastoral na gestão empresarial?
Mesmo assim, diante dessa série de estratégias planejadas no controle da conduta,
pela organização do espaço, pela produção de identidade, pelos regimes de saber; elas, de
alguma forma, "falham" em João, requerendo a necessidade de se recorrer aos dispositivos
de regulação e vigilância externos. João tem uma conduta imprevisível e por isso, se
acionam dispositivos de segurança na empresa.
E aí, entra a psicologia, entra o Valmir e seus colegas. Os psicólogos do trabalho, ao
longo da história tiveram diversas inserções: tinham, inicialmente, função de achar o
indivíduo correto para o seu lugar certo, tradição da Psicologia Industrial, até a passagem
para Psicologia da Organizacional, que tenta organizar o trabalho para fazer a máquina-
30

empresa funcionar. Em nossas discussões do grupo n-pista(s)5 coloca-se agora,


questionamentos frente a emergência de uma Psicologia da Gestão, uma
Governamentalidede Empresarial (Souza, 2013) baseada numa pedagogia do auto-
empreendimento e da motivação, da qual o novo Homo Oeconomicus é uma peça
importante.
Além disso, é preciso considerar o duplo pedido que as instituições têm dos saberes
psi, como uma ciência social normativa tornando os “anormais” dóceis, ao mesmo tempo,
uma ciência de promoção de ganhos, reconhecimentos e recompensas em saúde mental e
qualidade de vida (ROSA & PUZZIO, 2013), como um meio de validar o homo
oeconomicus como um ser racional e obediente que governa a si mesmo com certo grau de
previsibilidade.
Podemos ver que João é consumidor e produtor do modelo Homo Oeconomicus. Mas
ele não é o homo oeconomicus (e podemos dizer que ele também não é somente João). Se
seguirmos as pistas da cartografia sentimental de Rolnik (1989), teremos ferramentas para
compreender como operam os movimentos do desejo: por territorializações (identidades),
máscaras (homo oeconomicus) e por linhas de fuga a partir de acontecimentos, de encontros.
O que queremos dizer com isso? Na história pessoal de João ele foi atravessado por
diversas linhas de forças e relações de poder que o direcionam a ser um aspirante-a-
empreendedor. Mas algo na singularidade de João, nesse encontro com o trabalho (que
deseja esse perfil de pessoa), essa "máscara" falha. Diante disso, esse aspirante-a-
empreendedor pode fixar-se ou produzir desvio, colar ou desgrudar nesse modelo. Sabemos
que algo opera em João e que ele resiste, ele foge da norma. A tentativa de captura do desejo
de João pelo Homo Oeconomicus e seu projeto empreendedor não dá conta das dificuldades
que enfrenta no trabalho, ainda que ele veja esse como o caminho a ser seguido.
Qual dimensão seria uma dimensão Clínica possível, então? Segundo Benevides e
Passos (2001) podemos enxergar nossa prática que segue um ethós desde uma posição
Klínikos e seu sentido de repouso, leito e desdobramento ou optarmos por Clinámen, uma
clínica que produza desvio, para uma bifurcação de um percurso de vida, na criação de novos
territórios existenciais, uma postura ativa no sentido de "inclinar-se". Em vez de normalizar,
produzir um desvio. É nesse ponto que pensamos as Clínicas do Trabalho como
possibilitadoras de linha de fuga.

5
Núcleo de Pesquisa em Instituições, trabalho e subjetividade em anali(s) pertencente ao Departamento de
Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia. Este TCC faz parte do projeto trabalho,
Subjetivação e Clínica - Análises nos setores da Assistência Social , Justiça e Comunicações
31

As Clínicas do Trabalho surgem na França por uma tradição diferente da Psicologia


Industrial e sua Psicotécnica (CLOT ET AL., 2005), tomando como conceitos fundamentais
a distância entre o trabalho que é Prescrito e o Trabalho Real. Nesta distância existe todo um
plano de forças produtor de novas possibilidades.
A Ergologia (SCHWARTZ, 2000) e Clínica da Atividade (CLOT, 2010), ambas as
abordagens Clínicas do Trabalho, tomam o trabalho pela via da atividade o que implica
posicionar o trabalho na esfera de uma renormatização parcial dos meios de vida. Tal
renormatização gera um movimento permanente no âmbito dos saberes produzidos no
trabalho, produzindo normas antecedentes que são sempre modificadas no recomeço
indefinido das atividades (Schwartz, 2000a) e no lastro de um debate de valores.
Trabalhar implica, assim,“dramáticas de usos de si”, como diz Schwartz (2000a;
p.44), isto é, envolve a produção de saberes engajados na história concreta do trabalho, dos
encontros entre homens e mulheres e o meio de trabalho técnico e organizacional, os quais
implicam sempre uma singularidade, já que trabalhar implica a gerir imprevisibilidades e
variabilidades.
No momento em que João atende um telefonema, por exemplo, por mais controlado
que seja seu tempo e o que ele deve responder, no encontro com o inesperado, com o Real do
Trabalho, João se vale de sua experiência, de seu conhecimento e de características que lhe
são singulares para criar uma resposta, fonte de um encontro produtor de subjetividade, e, só
depois, é que se torna meio a serviço da sua atividade. Trabalhar, neste sentido, consiste em
poder se apropriar do mundo, em fazer dele um mundo “para si” a fim de criá-lo (TEIXEIRA
& BARROS,2009).
Em outras palavras, nesse hiato inevitável entre o Prescrito e o Real, o trabalhador
opera um coegendramento e produção de si, resultados de um saber emergente das falhas e
sucessos das relações de forças prescritas, onde se criam aberturas para outras possibilidades
de mundo, onde se opera um debate de valores vigentes, uma invenção e renormatização da
vida (SCHWARTZ et al., 2000).
Contudo, segundo Louzada, Barros e Vasconcelos (2014):
[...]Essa aposta pode ser um risco, à medida que tanto pode servir de “prato
cheio” para os desdobramentos de modos de trabalhar no contemporâneo, com suas
flexibilizações e descartabilidades, como para afirmar uma vida que não pode ser
restrita a regras; pode soar com cooptação, mas esse não é o sentido ético aqui
adotado a partir dos intercessores que construímos. A invenção, aqui, é tomada
como diferente de criatividade e flexibilidade, e sim como uma capacidade do vivo
em divergir; como potência à singularização ( p. 358)

Enxergar o trabalho como potência significa compreendê-lo tanto pelos seus


32

processos de captura e cristalizações identitárias, quanto por sua dimensão inventiva de


novas realidades. Enxergar o trabalho como atividade é apostar nos movimentos, e intervir
onde eles são impedidos. Se o trabalho foi um dos campos privilegiados que a extrapolação
do modelo empresa se generalizou para outros aspectos da vida (Foucault, 2008a), talvez
pelo trabalho e sua atividade de debate de normas e valores, produzimos diferença.
João, no fim do percurso, aceitou tratamento, pois está inserido em uma lógica do
cuidado de si empreendedor, pensando a si mesmo como investimento em capital humano,
procurando métodos de aumentar sua eficácia, eficiência e excelência e esperando que a
Psicologia o auxilie nisso. Nesse sentido, apostamos justamente pelo contrário, no cuidado
de si como prática de liberdade (Foucault, 2001), por um princípio da inquietude permanente
que nos afasta de qualquer apelo individualista ou identitário, incitando o desprendimento
contínuo de nosso eu normalmente administrado a partir de escolhas já estabelecidas;
“identidades que assumimos embutidas de efeito de poder dos quais somos classificados e
objetificados de responsáveis ou irresponsáveis, empreendedores ou fracassados,
competitivos ou inadaptados” (CANDIOTTO, 2011 p. 488). .
A história de João pode ser entendida como subversiva, pela sua capacidade de
enunciar coisas que, muitas vezes, estão naturalizadas, verdades que estão implícitas e que
nem percebemos. No entanto, não se questiona o Homo Oeconomicus, pois geralmente
existe a tentativa de individualizar a questão para aquele que empreende mal, aquela empresa
que não deu certo. No fim das contas, diante de diversas tentativas das chefias de retirarem
João do local, ele optou por sair, investir mais em desenhos e em música, levar uma vida
mais tranquila. Isso também enuncia os limites de uma clínica individual no trabalho, tendo
em vista que todos sofriam da mesma racionalidade e o trabalho é sempre uma experiência
de ordem coletiva.
O esforço de enunciar essas práticas de saber-poder que criam em nós um Homo
Oeconomicus não é uma tarefa fácil, assim como não consiste em tarefa fácil perceber
quando produzimos desvio no sentido de criação, ou quando operamos pela captura da
invenção de um modelo de vida preso em uma liberdade planejada. Mas nem por isso
desistamos desse trabalho, pois “um trabalho, quando não é ao mesmo tempo uma tentativa
de modificar o que se pensa e mesmo o que se é, não é muito interessante. (...) Ora,
trabalhar é tentar pensar uma coisa diferente do que se pensava antes” (FOUCAULT, 2006
p. 240)
33

4. Considerações finais
Este trabalho teve como objetivo discutir os processos de subjetivação no trabalho e seus
novos arranjos de forças no contemporâneo, a partir de fragmentos e histórias da experiência
profissional daquele que escreve.
Vimos no primeiro capítulo um esforço conceitual para situar o leitor de que ponto
discutimos as modificações do trabalho propostas por um regime neoliberal de acumulação
flexível. Nele, vimos alguns apontamentos que corroboram com a hipótese de que essas
modificações se sustentam mediante operação de mudanças subjetivas nos trabalhadores,
através de saberes e técnicas que desejam produzir um trabalhador flexível, proativo,
comprometido com a racionalidade de mercado.
No segundo momento do primeiro capítulo procuramos ferramentas de como se
operam essas mudanças a partir do referencial foucaultiano de disciplina, biopoder e
governamentalidade na discussão das diferentes concepções e funções da economia nos
sistemas de pensamento da humanidade. Ela passa de um governo da família para o Estado,
se modifica como ciência de população e é aplicada no neoliberalismo como controladora
das condutas individuais, produzindo um novo Homo Oeconomicus competitivo,
empreendedor, individualista, governamentalizável e previsível.
Nos capítulos finais, articulamos o processo de imersão teórica com a experiência
discutindo de que ponto entendemos uma clínica possível no trabalho, através da conversa
em direção a uma escuta genealógica, afirmando a clínica como desvio e como uma prática
de liberdade. Tomamos os referenciais das Clínicas do Trabalho que analisam o trabalho
enquanto atividade, pois acreditamos que elas nos possibilitam explorar as fronteiras entre
trabalho, experiência e dobras da subjetivação, colocando em análise os modos como os
trabalhadores vivem o trabalho no enfrentamento das provas do real.
No entanto, algumas discussões com outros autores ficaram de fora de nosso escrito,
tendo em vista o foco da discussão trabalho e subjetividade com a articulação com o Homo
Oeconomicus. Acreditamos haver interlocuções importantes nas obras de Rose, Rabinow,
Lazaratto, Negri, Hardt e Agámbem, bem como demais estudiosos da obra de Foucault nos
trazendo sempre novas perguntas sobre uma ontologia crítica de nós mesmos. Há de se
considerar também as positivas articulações com Hannah Arendt, Deleuze, Guatarri,
Baudelaire e outros autores que nos dão ferramentas para acontecimentalizar o trabalho.
Além disso, o trabalho de revisão aqui realizado ficou restrito as discussões do período
genealógico de Foucault, ficando de fora seus trabalhos anteriores e seus estudos sobre um
34

éthos do sujeito.
Outras questões que não foram o foco desse estudo, dizem respeito a uma análise da
incorporação do modelo Homo Oeconomicus Neoliberal nas ciências psicológicas, em
especial aquelas usadas em RH, em coachings, e, principalmente, na reatualização da
psicologia comportamental nos estudos de tomada de decisão, Psicologia Cognitiva e
Psicologia Positiva. Muitos dos fundamentos que basearam a teoria do Capital Humano
estão sendo modificados, principalmente nas abordagens comportamentais que
desenvolveram e ainda desenvolvem, estudos da teoria da motivação, partindo do princípio
de que o trabalhador não é reforçado só por dinheiro. Muitos estudos tentam articular o
empreendedorismo nas Políticas Públicas, na cultura, sendo direção para novas pesquisas
para pensarmos o processo de produção de subjetividade e os impactos no trabalho e na vida
cotidiana.
No processo de escrita deste TCC foram encontrados no portal da Capes
aproximadamente 241 períodos nacionais e internacionais, tendo com o descritor Homo
Oeconomicus. Muitos deles são trabalhos desenvolvidos a partir da discussão foucaultiana,
artigos, teses e dissertações nas áreas de filosofia, sociologia, administração, psicologia,
psicologia social e psicologia social do trabalho. No Brasil, temos visto o crescente interesse
sobre o tema na literatura acadêmica brasileira, surgindo, simultaneamente, obras que tentam
sistematizar o pensamento do autor ou articular com outros campos teóricos, como foi o caso
desse trabalho.
Ainda assim, com esse trabalho não tínhamos como direção obter novas respostas. Neste
sentido, essa experiência de imersão teórico-prática nos serve para começarmos a pensar em
novas perguntas. Como nos tornamos uma empresa? Mesmo que exista uma vida prescrita,
um caminho a ser seguido, seja ele de empresa, indivíduo, polícia ou pastor, no momento em
que nos colocamos em atividade, em movimento, podemos produzir com os trabalhadores
linhas de fuga daquilo que tenta nos capturar. Essa foi a aposta deste TCC, essa seguirá
sendo nossa aposta no exercício da Psicologia
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