O Retiro Sarah Pearse
O Retiro Sarah Pearse
O Retiro Sarah Pearse
e Retreat
João Guilherme Rodrigues
aís Carvas
ais Entriel
Larissa Fernandez e Leticia Fernandez
R. Shailer/TW
Getty Images e Shutterstock
Henrique Diniz
-
Maria de Fátima | Intrínseca
-
978-65-5560-829-8
1ª edição
@intrinseca
editoraintrinseca
@intrinseca
@editoraintrinseca
intrinsecaeditora
SUMÁRIO
[Avançar para o início do texto]
Capa
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Sumário
Dedicatória
Epígrafe
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Capítulo 76
Capítulo 77
Capítulo 78
Capítulo 79
Capítulo 80
Capítulo 81
Capítulo 82
Capítulo 83
Capítulo 84
Capítulo 85
Capítulo 86
Capítulo 87
Capítulo 88
Capítulo 89
Capítulo 90
Capítulo 91
Capítulo 92
Capítulo 93
Capítulo 94
Capítulo 95
Capítulo 96
Capítulo 97
Capítulo 98
Capítulo 99
Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora
Para minha mãe
“Não interessa se você é um rei ou um lixeiro, no m todos dançam
com a morte.”
Verão de 2003
Dia 1
Conforme Elin Warner corre, o ar viscoso feito chiclete açoita seus olhos e seu
cabelo.
São apenas seis da manhã, mas o calor já se ergue do asfalto em ondas
sólidas, sem a menor brisa para afastá-las.
O trajeto que ela está seguindo faz parte de uma trilha nacional litorânea —
tem casas em ambos os lados, casarões vitorianos e italianos luxuosos nas
encostas arborizadas. O sol bate nas janelas enquanto o re exo dela a
acompanha no vidro — o cabelo loiro e curto subindo e formando um
cogumelo a cada passo antes de se acomodar de volta ao redor do rosto.
As fachadas das casas parecem frágeis com o calor, seus contornos borrados.
Os gramados estão secos e amarelados — a grama não só parou de crescer
como também está de nhando e morrendo, vários trechos sem nada,
lembrando feridas abertas.
Outros verões também foram quentes, mas nada como este: semanas de sol
a o; temperaturas lá nas nuvens, batendo recordes. Os jornais não param de
publicar imagens de estradas rachadas, além do velho clichê dos ovos fritando
no capô dos carros. A previsão do tempo havia anunciado uma trégua, várias
semanas atrás, mas isso não chegou a acontecer. O sol continuou. Os nervos à
or da pele, as pessoas prestes a surtar.
Elin está conseguindo manter a cabeça no lugar, mas seu panorama interno
destoa do externo. A cada novo dia de calor escaldante, o exato oposto cresce
em seu interior: o toque gelado do medo se aproximando.
Isso a tem mantido acordada durante a noite, com os mesmos pensamentos
se repetindo. E, junto deles, sua estratégia de controle: a corrida, o exercício
implacável. Nas últimas semanas, aquilo havia se intensi cado — corridas mais
cedo, corridas mais longas, corridas em segredo. Autoflagelação.
Tudo porque seu irmão, Isaac, havia falado que o pai dela tinha entrado em
contato.
Após mais alguns metros, as casas à esquerda dão lugar a um grande
gramado. A trilha passa ao lado dele, contornando a ponta do penhasco.
Ela deixa o asfalto e corre até a entrada da trilha.
Um frio na barriga.
Não há nenhuma cerca, apenas um metro de terra entre ela e uma queda de
quarenta metros até as rochas lá embaixo, mas Elin adora: aquilo, sim, é uma
trilha litorânea — sem nenhuma casa entre ela e o mar. A vista se expande:
Brixham à sua direita, Exmouth à sua esquerda. Tudo que ela vê é azul, o mar
em um tom mais escuro e carregado do que o tom suave do céu da manhã.
A cada passo que dá, ela sente o calor do chão pela sola do tênis. Por um
instante, pergunta-se o que aconteceria se continuasse em movimento: será que
acabaria implodindo, como um motor que superaquece, ou simplesmente
seguiria em frente?
A ideia de seguir em frente até que seus pensamentos cessem e ela não
precise mais se controlar é tentadora. É exatamente assim que parece, às vezes:
como se precisasse se agarrar com muita força à normalidade. Um pequeno
descuido e ela sucumbirá.
No topo do morro, Elin diminui a velocidade, as coxas gritando, cheias de
ácido lático. Ela aperta o pause em seu Fitbit e vê um carro cinza subindo o
morro. Está vindo depressa, o motor fazendo barulho, assustando as gaivotas
que bicavam uma carcaça estirada na estrada.
Enquanto absorve o modelo e a cor, alguma coisa se encaixa. Identi cou o
carro do Steed, o agente de polícia convocado para ajudá-la durante sua
transferência temporária. Ele passa a toda velocidade, um borrão metálico
empoeirado levantando cascalho para todos os lados. Elin vê o per l de Steed:
nariz meio torto, queixo quadrado, cabelo um tanto rebelde dominado na base
do gel. Algo na expressão dele a faz perder seu último resquício de fôlego. Elin
a reconhece logo de cara: a intensidade discreta de alguém embebido em
adrenalina.
Ele está trabalhando.
O carro para na base do morro. Steed abre a porta e dá uma corridinha em
direção à praia.
Elin puxa o celular do short e olha para a tela. A sala de controle não ligou.
Uma missão, bem aqui do meu lado, e em vez de mim eles chamam Steed.
Preocupações familiares reaparecem, as mesmas que a consumiam desde que
o departamento de recursos humanos e Anna, sua chefe, decidiram que ela não
estava pronta para assumir de forma plena suas funções após a pausa que havia
feito na carreira.
Steed é agora um pontinho distante, aproximando-se da praia. Elin troca o
peso do corpo de uma perna para a outra. Sabe que a coisa certa a fazer é dar
sequência ao que havia planejado anteriormente — correr para casa, para o café
da manhã, para Will —, mas seu orgulho fala mais alto.
Ela desce o morro em disparada, passa pelo carro de Steed e atravessa a
estrada. Não há nenhum outro veículo; apenas um gato esgueirando-se pelo
asfalto, tão sorrateiro que suas listras alaranjadas quase tocam o chão. Elin
segue pelo trecho de grama seca em direção à praia vazia à sua frente. Nenhum
sinal de Steed.
Na praia, dobra à esquerda e passa pelo restaurante empoleirado em pilares
de metal. Um barraco de aparência rústica, com o nome gravado numa placa
de madeira pendurada logo acima da porta. e Lobster Pot. Está fechado. Na
noite passada, seu deque provavelmente estava agitado, luzinhas iluminando as
garrafas de vinho dentro dos coolers e as travessas cheias de mexilhões e batatas
fritas.
Um pouco mais à frente, ela o encontra; debaixo do beiral do restaurante.
Está ajoelhado na areia, seus músculos retesados por baixo do tecido da camisa.
Seu físico é sempre a primeira coisa que Elin nota em Steed, mas ele é uma
dicotomia: aquele corpo forte e esculpido contrasta com a delicadeza de sua
sionomia — olhos sensuais e profundos, uma boca grande e carnuda. É um
tipo raro de homem: aquele por quem as mulheres se sentem protegidas e ao
mesmo tempo querem proteger.
Os dois entraram em uma relação pro ssional tranquila. Ele tem vinte e
tantos anos, é mais jovem do que ela, porém não demonstra nenhum sinal
daquela soberba agressiva que os homens dessa idade às vezes têm. Steed é
muito astuto, tem um talento para fazer sempre as perguntas certas, uma
inteligência emocional bastante rara.
Há uma mulher de pé ao lado dele. Parece estar na casa dos quarenta e
tantos anos, é alta e musculosa. Ela ainda está vestindo uma touca de natação,
da mesma cor de seu maiô, uma na camada de borracha destacando o
formato de sua cabeça. Apesar do calor, está tremendo, mudando o peso de um
pé para o outro num ritmo nervoso.
Steed se mexe e, quando faz isso, Elin consegue ver: uma perna estatelada na
areia — uma panturrilha branca, com fragmentos de alga colados na pele, mais
parecendo alface.
Ela se aproxima para ver melhor.
Parece alguém ainda na adolescência. Ferimentos horríveis — cortes no
rosto, no peito e nas pernas. As roupas estão quase totalmente retalhadas, a
camisa polo rasgada na costura, descendo pelo torso.
Elin se aproxima um pouco mais e sua visão ca borrada novamente, o ar
pegajoso di cultando que seus olhos mantenham o foco. Ela dá outro passo e
sua reação se transforma em constatação.
Então puxa o ar com força.
Ao ouvir aquele som, Steed se vira para encará-la, seus olhos arregalados em
surpresa.
— Elin? — Ele hesita. — Você está…
Mas o resto de suas palavras se perde no ar. Elin começa a correr.
Agora entende por que ligaram para Steed em vez de para ela.
É óbvio.
2
Hana Leger e sua irmã, Jo, estão no cais à espera do barco que as levará até a
ilha, suas malas e bolsas empilhadas ao redor. Hana passa a mão pela nuca.
Parece que o sol está concentrado bem ali, como um laser.
O mar está cheio de gente: pessoas remando e nadando, botes, guras
solitárias atravessando o horizonte em suas pranchas. Crianças brincam no
raso, chutando a água, e um bebê golpeia a espuma das ondas com seus braços
gordinhos.
O estômago de Hana se revira, mas a garota se obriga a olhar de novo para
o bebê agachado na areia.
Não desvie o olhar. Ela não pode fechar os olhos para sempre.
— Você está bem? — pergunta Jo.
A irmã está olhando para ela por detrás dos óculos. Assopra para cima,
afastando os níssimos os de cabelo loiro quase branco que haviam se soltado
de seu rabo de cavalo.
— Com calor, só — responde Hana. — Não esperava que fosse estar tão
quente aqui, com a brisa do mar e tal.
Curtinho e desgrenhado, o cabelo escuro de Hana está molhado, grudando
na nuca. Ela o agita com uma das mãos.
Jo começa a vasculhar a mochila. Ela usa um desses modelos leves e
pro ssionais, cheio de zíperes e bolsos. Puxa uma garrafa d’água de dentro,
toma um gole e oferece a Hana, que aceita: o líquido está quente e com gosto
de plástico.
Sua irmã tem uma silhueta e tanto. Alta e bronzeada, consegue fazer com
que um vestido de algodão branco e sandálias Birkenstock com estampa de
oncinha e levemente desgastadas criem um visual simples e descolado. Cada
centímetro do corpo de Jo é discretamente musculoso graças a uma rotina de
yoga, corrida e esqui.
Hana a acompanha até a ponta do cais, semicerrando os olhos. A ilha em si
não passa de um borrão — o sol, esse círculo brilhante, a ofusca por completo.
Apenas uma coisa está visível: a famosa rocha que se projeta à esquerda da ilha,
com seus contornos que sugerem uma gura encapuzada, e uma protuberância
que se parece com uma foice.
O estômago de Hana se revira, aquela visão a atingindo direto em seu plexo
solar.
— Eu não esperava que ela realmente parecesse…
— Com a Morte? — Jo gira a cabeça, o rabo de cavalo batendo em seu
rosto.
— Sim.
Apesar dos óculos escuros, uma sombra nebulosa da rocha aparece toda vez
que ela pisca os olhos. É um contraste brutal com o pan eto cheio de
vegetação exuberante e praias de areia branca.
— Mas você está animada? Com a viagem, quero dizer. — Jo fala mais alto
por causa do barulho de um jet ski.
— Claro que sim.
Hana força um sorriso. Secretamente, está com um forte receio em relação
àquela viagem. Chegou a dizer não na primeira vez que Jo telefonara. A ideia
de viajar com Bea, a irmã mais velha das duas, e Maya, prima delas, além de
seus respectivos namorados, lhe pareceu estranha. A nal, não se viam fazia
meses, depois de anos se afastando gradualmente umas das outras. E, apesar de
Jo ter dito que o objetivo daquilo era reunir todas de novo, Hana não tinha
entendido muito bem o propósito. Por que agora? Por que depois de todo esse
tempo?
Então Hana deu o que pensou ser uma desculpa bem segura: sem o Liam,
aquilo não parecia certo. Mas Jo foi persistente: ligações, mensagens, até
chegou a ir à casa de Hana — algo bastante raro —, carregando um folder que
falava sobre o retiro.
Jo a venceu pelo cansaço, fazendo com que Hana se sentisse, ao mesmo
tempo, velha e muito fresca por recusar o convite. O modus operandi de Jo era
evidente: ela era uma líder, não porque era mandona, mas graças apenas à sua
personalidade forte. De alguma maneira, as pessoas acabavam sendo sgadas
por ela, sem nem perceberem que estavam sendo conduzidas àquilo.
E se por um lado isso nunca incomodou muito Hana, sempre irritou Bea.
Fã de livros e profundamente introvertida, Bea considerava a energia e a
extroversão de Jo exageradas demais para seu gosto. Talvez Hana não se
importasse tanto por ser uma espécie de meio-termo entre as duas: acadêmica,
mas não no mesmo nível de Bea; esportista, mas não como Jo.
— Vou postar como é a vista da ilha daqui… — comenta Jo, tirando uma
foto.
Hana lhe dá as costas. Isso a deixa puta — esse registro constante de cada
passo que elas dão —, mas não pode reclamar. Essa viagem é resultado do
trabalho frenético de Jo nas redes sociais: como in uencer de viagens, a irmã
costuma ser paga com esse tipo de coisa. Ela tem quase quatrocentos mil
seguidores, que gostam de sua naturalidade, comentando sempre o quanto é
fácil “se identi car” com ela — sua boca um pouco grande demais, seu nariz
um pouco torto, ao estilo Barbra Streisand.
— Aquele ali não deve ser o nosso. — Jo en a o celular de volta no bolso.
— Ainda tá cedo.
Há um barco vindo pela água, deixando uma espuma branca por onde
passa. Hana lê a palavra escrita em letras de forma na lateral do barco:
LUMEN. Jo confere seu Fitbit.
— Nossa, na verdade só faltam cinco minutos. Cadê todo mundo? — Ela se
vira para a praia. — Ah, acho que é o Seth vindo ali…
Hana vira para onde ela está olhando.
— Ah, é?
— Ah, é? — repete Jo, imitando-a. — Pelo menos nge um pouquinho de
entusiasmo, Han. — Ela balança a cabeça. — Eu sei que você não gosta muito
dele. Ele é muito “perigoso” — ela faz aspas com os dedos — pra você, né? —
A expressão de Jo ca séria. — Queria não ter te contado nada. Nem foi assim
tão sério.
Uma gota de suor escorre pelas costas de Hana. Jo é especialista nisso:
surpresas desagradáveis.
— Uma cha criminal é, sim, uma coisa séria. A gente só estava preocupada
com você.
— Ele se envolveu com as pessoas erradas. Ponto- nal. Nem todo mundo é
perfeito, sabe? Nem todo mundo pode passar o dia inteiro cantando
musiquinhas alegres e ensinando crianças a fazer contas.
Hana olha para ela. Pronto. Era só o que faltava. É por isso que essa viagem é
uma má ideia. Porque, como sempre, Jo é capaz de destruí-la com meia dúzia
de palavras escolhidas a dedo. E o pior de tudo é que aquilo não é uma
brincadeira, é exatamente o que o resto da família pensa dela — um clichê,
atolada até os joelhos em massinha de modelar, cantando os nomes na
chamada.
Nenhum deles conseguiria imaginar como as coisas são de verdade: os dedos
grudentos das crianças, prontos para beliscar; as maquinações complexas de
seus cérebros, que eles falam sem qualquer ltro; e como, após um semestre
com elas, Hana sabe exatamente que tipo de ser humano vão se tornar.
Conforme Seth vai se aproximando, Jo acena, toda sorridente de novo.
Virou a chave.
— Uhul — grita. — Você chegou!
Hana reage um segundo depois. Um homem forte, de bermuda e camiseta,
vem andando na direção delas. Sua altura, seu jeito de andar, o boné de
beisebol enterrado na cabeça — aquilo tudo é tão familiar que chega a dar um
frio na barriga. Com o sol ofuscando a visão dela, é difícil enxergar o rosto
dele, mas a semelhança é perturbadora. Apesar do que a lógica está lhe
dizendo, seu coração acelera antes de a realidade a acertar.
É claro que não é ele. Liam se foi. Está morto, morto, morto.
Engolindo em seco, ela se recompõe. Então nota outra pessoa, mais
franzina, vindo logo atrás de Seth. É Caleb, o namorado de Bea. Mas Bea não
está ali. O que faz Hana perguntar:
— Cadê a Bea?
— Ela deu pra trás. — Jo fala ainda mais alto. — Eu te disse, não?
— Não — responde Hana, seca. — Quando foi isso?
— Semana passada. Apareceu alguma coisa no trabalho, eu acho. Uma
viagem para os Estados Unidos.
Bea cancelou. Isso não deveria ser nenhuma surpresa. Ela sempre foi viciada
em trabalho, mas, nos últimos anos, aquilo havia se agravado muito.
— Então, ela mandou o Caleb no lugar. Um tapa-buraco.
Jo dá de ombros.
— Vai ser legal poder conhecê-lo melhor.
— Você não achou melhor remarcar para uma data em que a Bea pudesse
vir?
— Não. Já era tarde demais e, além do mais, nós estamos precisando disso,
Han. — Há uma expressão determinada em seu rosto. — Nos reconectar. —
E, antes que Hana possa retrucar, Jo começa a andar pelo cais em passos longos
e saltitantes. — Vou lá me encontrar com eles.
Mas, assim que passa por Hana, ela derruba a própria mochila, apoiada em
cima de sua mala. E, como está aberta, o conteúdo logo se espalha: uma escova,
um diário, uma bolsinha. Uma garrafa d’água pela metade sai rolando pelo
cais.
— Merda…
Jo a pega e en a tudo de volta de qualquer jeito dentro da mochila antes de
voltar a correr em direção a Seth.
Hana está prestes a ir atrás quando percebe que Jo se esqueceu de pegar uma
coisa: uma folha de papel toda amassada. Ela se abaixa e a recolhe. Seus olhos
percorrem a página.
Está escrito Hana, e depois há três pequenas frases iguais, porém as duas
primeiras riscadas.
Eu sinto muito. Eu sinto muito. Eu sinto muito.
3
Ela tinha razão: a viagem não era apenas uma maneira de reaproximar a
família. Jo a havia organizado por algum motivo, e Hana estava certa de que
tinha a ver com o bilhete que caiu da mochila da irmã.
— Jo Leger? — O piloto salta para o cais, e a embarcação ca oscilando
sobre as ondas.
Enquanto a amarra ao cais, o piloto cumprimenta o grupo por trás de seus
óculos espelhados com um sorriso de entusiasmo ensaiado. Ele é jovem, talvez
uns vinte e tantos anos, e está de camisa polo branca engomada e bermuda.
— Sou eu — apresenta-se Jo, sorrindo.
Hana consegue ver que ela está aliviada de a fase de cumprimentos forçados
e esquisitos já ter sido superada — os abraços de urso extremamente
empolgados que Jo deu em Caleb contrastando demais com os abraços meia-
boca de Hana.
— Meu nome é Edd — apresenta-se o piloto, vindo na direção deles.
Seth se apresenta, sorrindo, apertando vigorosamente sua mão e estufando o
peitoral largo. É bem a cara dele. Seth é atleta, além de um cara bonito, pensa
ela, olhando para os músculos rmes em seu braço.
Hana se lembra de quando o conheceu, num café perto da casa em que
moravam. Seth havia se apresentado — ostentando uma falsa modéstia — e
depois passou a se revezar numa espécie de erte com a mãe e as irmãs,
olhando para elas por tempo demais, distribuindo elogios. Ele obviamente
esperava que as pessoas o considerassem atraente, e, embora de fato ele fosse —
alto, barbudo, musculoso — e ela realmente concordasse, aquela autocon ança
era muito broxante. Aquela arrogância.
O olhar de Hana encontra o de Caleb quando o aperto de mão nalmente
termina, e eles trocam um sorriso.
É a primeira vez que ela de fato olha para ele. A bermuda cargo e a camiseta
desbotada do Pac-Man transmitem a atitude calculada e blasé de um nerd do
Vale do Silício que não está nem aí para nada. De certa maneira, até faz
sentido; Caleb é um acadêmico, mais velho que todos eles, mas continua
insistindo em se comportar como um estudante.
Fisicamente, ele é o exato oposto de Seth: magro, com as feições muito
marcadas e o tipo de cabelo castanho sem charme que o faz desaparecer em
qualquer multidão. Hana ainda se lembra da surpresa de sua mãe quando Bea
o apresentou no ano passado. Seus namorados anteriores costumavam ser, para
citar a mesma expressão constrangedora usada pela mãe, bem mais “fortes e
saudáveis”.
Alguns dias depois, a mãe ainda estava em cima do muro: tem alguma coisa
nele que parece um tanto hipócrita. Durante o jantar, naquela noite, todos
teriam um vislumbre disso: comentários sobre política e educação que
escaparam por causa da bebida. Aquilo não incomodava Hana. Ela admirava
aquela con ança em dizer coisas com as quais concordava, mas nunca havia
verbalizado. Ela sempre se importou demais com o que as pessoas pensavam a
seu respeito.
Quando se encontraram novamente — dessa vez, só as irmãs e Caleb —, ela
gostou ainda mais do sujeito. Ele tinha uma inteligência aguçada, um humor
seco e o tipo de con ança discreta que costuma passar despercebida ao lado de
alguém mais espalhafatoso como Seth. Caleb conseguia se equiparar a Bea
intelectualmente, e, diferente da maioria das pessoas, não tinha receio de bater
de frente com ela. O cérebro feroz de Bea intimidava quase todo mundo —
deixando as pessoas ou mudas, ou na defensiva.
— Então, quantas pessoas estamos esperando? — pergunta o piloto.
— Só mais uma. — Jo ri. — Na verdade, ela está bem ali.
Maya está vindo na direção deles, meio correndo, meio andando pelo cais, o
cadarço de um de seus tênis surrados arrastando pelo chão. Ela está com o
gurino de sempre: um vestido cinza soltinho no corpo bronzeado e
curvilíneo. Um lenço rosa-choque com uma estampa de abacaxis brancos meio
folgado na cabeça mal consegue domar o cabelo volumoso e cacheado.
— A gente quase te deixou aí. — Jo abre um sorriso. — Eu…
Mas Jo nem consegue terminar a frase antes de Maya se jogar em cima
delas, puxando Jo e Hana para um abraço triplo, fazendo com que elas
trombem e rocem os cotovelos. O abraço é meio constrangedor; como se
aquele gesto estivesse enferrujado pela falta de uso. Quando Maya as solta, sua
mala despenca de seu ombro — uma bolsa preta e maltrapilha que parece
estranhamente leve e pequena.
Jo arregala os olhos.
— Tem certeza de que você trouxe tudo aí?
Hana contém um sorriso. Jo havia mandado a elas uma lista enorme de
itens para a viagem. Camiseta de neoprene. Chapéus. Sapato à prova d’água.
Protetor solar. E daí por diante.
— Lógico. Eu segui a lista nos mínimos detalhes. — Maya dá uma
piscadinha, olhando para Hana.
— Beleza, então vamos nessa — diz o piloto, já se adiantando em direção
ao bote.
Quando Hana está embarcando, ouve-se um estrondo. Ela leva um susto. A
alguns metros dali, adolescentes estão pulando do muro próximo ao
restaurante direto no mar, seus calções in ando como balões enquanto eles vão
caindo. O estalo seco quando colidem contra o mar a perturba.
— Tudo bem? — questiona Jo, sentando-se ao lado de Hana e inclinando a
cabeça na direção dela.
Há um toque de compaixão em sua voz, junto com alguma outra coisa.
Irritação? Frustração?
— Sim, sim. Me assustei com esses garotos, foi só isso.
— Tem certeza de que você não está mais…
— Não estou mais o quê? — rebate Hana de forma abrupta.
Jo dá de ombros, mas Hana sabe o que se passa pela cabeça dela. Tem certeza
de que você não está mais ansiosa?
Seu comportamento nesse último ano, sua incapacidade de sacudir a poeira
e dar a volta por cima, havia, na visão de Jo, tornado Hana uma pessoa
imperfeita, debilitada. E Jo acreditava que aquilo era, de alguma forma, uma
decisão dela, e que, a essa altura, Hana já deveria ter virado a página.
Essa era sua lembrança mais forte do ano passado, depois do acidente de
Liam. Jo olhando para ela, não com empatia, mas examinando-a, como se
estivesse procurando por alguma ssura no luto de Hana, algum sinal de que
aquilo seria passageiro.
Mesmo agora, Jo tem di culdade em se referir diretamente àquilo,
apelando, em vez disso, para os eufemismos: depois do “acidente” de Liam, ela
queria que Hana “melhorasse” rapidamente. Dá para usar um milhão de
termos vagos, mas todos querem dizer a mesma coisa: “Supera!”
De repente, o barco se afasta do cais com um solavanco de aceleração, e Jo ri
quando cai por cima de Hana, toda sorridente.
A chave virou de novo.
Hana olha para a irmã com profundo asco.
Ela não deveria ter vindo. Aquilo foi uma péssima ideia.
5
— O guia disse que as cavernas cam a uns dez minutos daqui. — A voz de Jo
se ampli ca pela água quando ela se vira do assento da frente do caiaque para
duas pessoas. — Pelo que entendi, dá pra passar remando por elas, e sair uns
cem metros depois.
Conforme ela en a o remo na água, cada músculo de suas costas se destaca,
perfeitamente de nido por uma camada na de protetor solar.
Maya, num caiaque só para ela, a cerca de um metro de distância, simula
uma expressão de horror.
— Está se divertindo? — diz ela movendo apenas os lábios.
Hana dá um sorriso forçado. Apesar de aquilo não ser muito cansativo — o
caiaque segue num ritmo constante pelas águas tranquilas —, ela está um
pouco enjoada, e ainda consegue sentir o gosto ácido do suco que eles
tomaram quando chegaram. Ela não devia ter bebido aquilo, não quando
estava prestes a fazer exercício. O calor também não ajuda, pensa Hana,
sentindo o suor pinicando suas costas dentro da camiseta de neoprene.
Na verdade, Hana preferia estar no chalé, com os pés para cima, apoiados
nos azulejos azul-turquesa da piscina, e um copo de água com gelo ao seu lado.
O lugar era tão bonito quanto nas fotos — paredes brancas, piso de calcário
marrom-claro, plantas tropicais frondosas em cada canto. Um clima meio m
de semana na fazenda, com móveis de vime, vasos enormes de terracota,
tapetes de tecido grosso. Quadros pintados em tons intensos de vermelho-
ferrugem, rosa e azul.
Pra que toda essa pressa pra sair? Por que a Jo não consegue aproveitar o
momento?
A Bea nunca teria feito uma coisa dessas, pensa Hana, irritada. Bea, assim
como Hana, teria cado enrolando na hospedagem, onde as duas analisariam,
juntas, cada detalhezinho: as obras de arte minúsculas compostas de pedaços de
madeira alvejada aplicados às paredes, as formações surreais de cactos.
Hana até tentou car para trás, inventou algumas desculpas, mas todas
foram ignoradas. Bea teria ajudado nisso. Ela é uma das poucas pessoas capazes
de colocar Jo em seu lugar.
— Ei, vocês três. Chega de conversinha. Nós precisamos dar uma acelerada
se vocês quiserem voltar a tempo do almoço — diz Seth.
Ele e Caleb estão bem à frente, também em um caiaque para duas pessoas.
Eles formam uma dupla muito improvável — as costas largas e bronzeadas de
Seth contrastando fortemente com o corpinho miúdo de Caleb, que veste uma
camiseta de neoprene azul-clara. Aparentemente, é Seth quem está fazendo a
maior parte do esforço — as remadas de Caleb são desengonçadas, e seu remo
parece raspar a superfície da água em vez de mergulhar fundo.
A ilha faz uma curva na direção dos chalés e, ao mesmo tempo, a água
adquire um tom mais escuro e intenso, com enormes colunas de algas se
erguendo do fundo do mar. Hana sente o corpo tremer, experimentando a
resistência delas à medida que vão se enrolando em seu remo.
Conforme o último dos chalés ca para trás, a paisagem domesticada dá
espaço a algo mais selvagem: as enormes paredes de árvores que ela havia
vislumbrado quando chegaram à ilha. Pinheiros misturados com coníferas,
carvalhos e arbustos repletos de espinhos. A alguns metros dali, os rochedos se
curvam de forma abrupta para dentro, formando uma pequena enseada. Está
deserta, sem pessoas ou pranchas.
Jo as leva mais para perto dali. Então, erguendo o remo, ela aponta.
— Tenho certeza de que é ali. Reconheci pelas fotos da entrada. Dá pra dar
a volta depois que você entra por ali.
Apreensiva, Hana observa a pequena passagem de calcário, tão estreita que
mal dá para seguir com o caiaque.
— É bem apertada. — Caleb coloca o remo deitado sobre o colo. — Tem
certeza de que é o lugar certo?
— É mais espaçoso lá dentro. Outras pessoas já zeram isso… A gente vai
primeiro, não é, Han? Para mostrar o caminho pra vocês.
Hana percebe o tom de desa o na voz de Jo. Ainda sentindo o gosto ácido
na garganta, ela engole em seco e assente.
— Claro.
Lentamente, elas atravessam o arco de pedra. Caleb tinha razão: quando
chegam na abertura, é tão estreita que não dá para remar, é preciso parar e
deixar que o movimento da água as conduza até o interior da caverna. Hana
ca tensa à medida que as laterais do caiaque vão raspando nas paredes,
produzindo um som forte de arranhão, mas, instantes depois, elas chegam no
interior do local.
Logo de cara, a iluminação na caverna ca turva e melancólica. O teto de
calcário é baixo e úmido. Cracas e conchas cobrem as pedras. Está um pouco
mais largo agora, com espaço para remar dos dois lados.
— Tudo bem aí? — Jo se vira.
— Tudo certo. — A voz de Hana ecoa pelo teto baixo e pelas paredes.
Conforme elas avançam, vai cando ainda mais escuro, a água quase preta.
Um cheiro almiscarado de peixe permeia o ar parado.
Logo adiante, a passagem se estreita novamente.
— Tem certeza de que esse caminho dá a volta?
— Lógico que sim. — Hana percebe o toque de impaciência na voz da
irmã. — Aguenta um pouco. — Jo procura o tubo no da lanterna pendurada
num cordão elástico em seu pescoço e a liga. O feixe de luz ilumina uma curva
na passagem uns vinte metros à frente. — Não falei?
O medo de Hana dá lugar a uma repentina euforia, algo que não sentia há
muito tempo. Aventuras como aquela estiveram fora de cogitação desde a
morte de Liam. Ele era a pessoa ativa. Sem ele, seu esporte favorito era deitar e
roncar.
O canal de água por m se alarga o bastante para que mais um caiaque
possa remar ao lado. Jo aponta a lanterna para a frente, um fraco feixe se
espalhando pela água. A luz torna a superfície nebulosa — um azul-esverdeado
sinistro — e projeta sombras compridas nas paredes da caverna. Formas
incompreensíveis aparecem nas pedras, numa mistura frenética de cores e
texturas.
Hana segue remando, prestando atenção em tudo.
— Isso aqui é maravilhoso — comenta ela, olhando ao redor.
Jo sorri. Hana percebe que era disso que elas estavam sentindo falta nesses
últimos anos: uma experiência compartilhada como aquela. Cafés, refeições
rápidas, alguma aventura para viverem juntas. Novas recordações para serem
construídas.
E está prestes a verbalizar o sentimento quando escuta a voz de Jo saindo em
um murmúrio. Hana percebe, decepcionada, enquanto a irmã vira a câmera ao
seu redor, que o sorriso que pensou ser para ela era, na verdade, direcionado ao
celular. Isso é que é passar tempo em família. Será que essa viagem é apenas
para servir de conteúdo para o Instagram e o TikTok? Um exercício de
autopromoção?
— Será que não dá pra gente passar uns minutos longe desse maldito
celular? Você está documentando absolutamente tudo… Nunca sente vontade
de viver o momento, de fato, em vez de car sempre gravando?
Jo fecha a cara e se vira para a irmã.
— Han, pelo amor de Deus, dá uma animada, é por causa disso que
estamos aqui. Eu preciso produzir conteúdo sobre o retiro para justi car a
nossa estadia. — Ela balança a cabeça. — Com você é sempre assim. Sempre
julgando. Que coisa.
Percebendo a mágoa no rosto da irmã, Hana hesita, arrependendo-se de ter
aberto a boca. Talvez estivesse julgando rápido demais.
Mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, a expressão de Jo se suaviza.
— Mas você tem razão, eu vou parar. — O tom de sua voz não está mais
exaltado. — Eu me esqueço do quanto isso pode ser exaustivo para outras
pessoas. O Seth diz a mesma coisa. Eu entendo, mas é que, às vezes, tudo
isso… — Ela gesticula com a cabeça na direção do celular. — É muito mais
fácil do que o mundo real.
Hana olha para ela com curiosidade.
— Como assim?
— Essa versão editada da minha vida que eu coloco nas redes. Às vezes
pre ro essa versão. Não tem nada dessa confusão da vida real, essas dinâmicas
esquisitas entre as pessoas.
Hana sorri.
— Você está insinuando que a gente é confusa?
— Um pouco. — Jo abre um sorriso. — As coisas entre nós estão um
pouco estranhas, né? Eu co me perguntando se forçar uma coisa que não
existe mais é uma boa ideia. Você, eu, a Maya. — Ela hesita. — Aliás, como
estão as coisas entre você e a Maya?
— Tudo certo, quer dizer, a gente ainda está meio que colocando a conversa
em dia, mas fora isso…
— Tem certeza? Ela não disse nada?
— Sobre o quê?
Ela nota algo nos olhos de Jo antes de a irmã sorrir.
— Nada especí co.
Porém, conforme elas seguem remando, aquele sorriso continua congelado
em seu rosto. Por tempo demais para parecer genuíno.
9
Dia 2
Elin está sentada à sua escrivaninha, as coxas ainda latejando por conta da
corrida. Ela adora estar no escritório de manhã cedinho, o silêncio e o cheiro
cítrico do desinfetante, a luz difusa revelando a poeira na tela do computador.
Pequenos detalhes que ela só percebe nesse momento, quando seu cérebro está
livre, ainda sem o peso dos vestígios do dia.
Ela precisa de toda a ajuda que conseguir nesse caso; daquela fagulha vital
que lhe falta há tanto tempo. Houve mais um assalto a uma residência na noite
passada, o mais recente de uma onda de crimes semelhantes, e os ladrões
levaram milhares de libras em joias e aparelhos eletrônicos, mas pouco dinheiro
em espécie. Nas últimas semanas, Elin havia aprofundado as investigações. Eles
foram à imprensa para pedir a ajuda de testemunhas e requisitar imagens de
câmeras de vigilância, mas esses esforços se mostraram inúteis. Os peritos não
encontraram nada.
Ela estava sentindo a pressão: se não fizesse progresso na investigação, como eles
achariam que ela estava pronta para voltar para a equipe de investigação de crimes
graves?
Elin dá uma olhada nos depoimentos das testemunhas. A quadrilha — e
tem certeza de que é uma quadrilha, devido ao volume de crimes — é
pro ssional: eles identi cam alvos que não têm nenhum tipo de segurança nem
câmeras de vigilância, seja na casa ou na vizinhança.
— Bom dia.
Ela levanta a cabeça. Steed. Ele abre um sorriso fácil e faz a mochila
escorregar do ombro para o chão. Está irradiando calor, duas manchas de suor
brotando debaixo de seus braços.
— Pelo amor de Deus, já está quente a essa hora. Eu ia vir de bicicleta, mas
mudei de ideia — diz ele, depois puxa um shake de proteína do bolso lateral da
mochila e tira a tampa.
— Hoje à tarde a temperatura vai passar dos trinta — acrescenta Elin, que
ca feliz com aquele papo furado, certa de que ele não vai mencionar que a viu
na praia.
Steed é uma pessoa muito discreta. Elin tinha percebido isso quando
começaram a trabalhar juntos; ele sabe quando deve deixar algo para lá.
— O que temos para hoje? — indaga ele, tomando um gole do shake.
— Houve mais um arrombamento ontem à noite. Precisamos checar de
novo todas as câmeras de segurança num perímetro de meio quilômetro da
propriedade. Eu sei que tem alguns restaurantes ali perto, o iate clube do outro
lado. Temos que tentar encontrar alguma coisa por aí. Um segundo… — Ela
para, vendo o nome de Anna piscando em seu celular.
Elin ca nervosa ao relembrar sua última conversa. Mas não há nenhuma
referência ao dia anterior. A voz de Anna está tomada pela urgência.
— Recebemos uma denúncia a respeito de um corpo nas pedras, lá na ilha
Cary, no retiro.
— No LUMEN? — pergunta, sentindo uma bola na garganta com aquela
sincronicidade: o prêmio de Will.
— Isso. Tudo bem pra você ir até a cena e avaliar a situação? Você é quem
está mais perto. A ambulância e a perícia vão te encontrar no cais, em
Babbacombe. O barco da polícia vai levar vocês até lá.
Você é quem está mais perto. Faz sentido, mas Elin sabe que Anna sugerir que
ela vá não tem só a ver com o fato de estar nas redondezas. É um voto de
con ança nela, e em suas habilidades, depois da conversa que tiveram no dia
anterior.
No entanto, as dúvidas das últimas semanas aparecem para bagunçar seus
pensamentos. E se não for capaz de lidar com aquilo? Mas Elin rebate
rapidamente a ideia; claro que ela é. E está pronta.
— Com certeza. Só vou arrumar as minhas coisas aqui e já estou saindo.
Assim que se despede, percebe que Steed estava ouvindo.
— Aconteceu alguma coisa?
— Acharam um corpo na ilha Cary. Tá a m de ir comigo?
— Com certeza — responde ele, e então endireita a postura. Uma
empolgação que tenta disfarçar rapidamente ao pegar o celular meio de
qualquer jeito para conferir alguma coisa.
Porém, assim que Elin começa a preparar meticulosamente sua bolsa, na
qual leva de tudo, de sacos para provas até material para perícia, uma onda de
agitação percorre seu corpo.
Apesar do envolvimento de Will com o LUMEN, ela nunca foi até a ilha.
Nunca teve vontade — nenhum local tinha. O passado daquele lugar era
pesado demais.
12
Elin e Steed acompanham Rachel por entre as pedras na base das falésias. Há
pedras pequenas e planas intercaladas com enormes pedregulhos empilhados
uns em cima dos outros; destroços que despencaram com o tempo.
Já suando, Elin enxuga a testa com as costas da mão. Contornando a falésia,
ela consegue ver os paramédicos debruçados sobre o corpo, falando baixinho.
Ela olha para a cena: uma mulher magra, de cabelo claro, trinta e poucos
anos, estirada sobre as pedras. Está usando um vestido preto, seu braço
dobrado num ângulo nada natural. O lado de sua cabeça que está mais perto
da pedra está afundado, a magnitude do impacto destroçou uma grande parte
de seu crânio. Massa cinzenta e fragmentos brancos de ossos contrastam com o
cinza-claro da rocha e com a poça escura de sangue debaixo de sua cabeça.
Incomodada, Elin engole em seco. Algumas imagens, como aquela, são tão
impactantes que você nunca está preparado para ver. Ela sabe que aquilo cará
em sua cabeça por muito tempo depois desse caso ter sido resolvido.
— Daquela altura ali, ela não tinha a menor chance — diz Steed friamente.
O médico mais velho, Jon, um homem alto e corpulento, diz:
— Ela está morta. — Então gira o pulso para olhar o relógio. — Morte
ocorrida às 7h33. — Em seguida, virando-se para Elin, ele começa a remover a
luva. — Ela já está em estado de rigidez cadavérica. Ferimentos profundos
visíveis na cabeça, múltiplas lesões na coluna e na pelve. Ferimentos super ciais
compatíveis com uma queda dessa altura.
Elin olha para cima, tomada por uma terrível sensação de vertigem quando
enxerga os cumes irregulares da falésia. Não consegue não imaginar a queda: o
corpo da mulher se retorcendo e girando em pleno ar, o tremendo barulho do
crânio se esfacelando contra as pedras ali embaixo.
Ao voltar-se mais uma vez para a mulher, Elin concentra o olhar em seu
rosto. Os olhos estão fechados, o direito escurecido por uma escoriação
sangrenta. Sua mandíbula está solta, puxada para baixo.
Depois, começa a descer o olhar, examinando o vestido e os sapatos. Uma
das sandálias estilo gladiadora saiu um pouco do pé, deixando à mostra as
unhas pintadas de azul-escuro. Elin quer preservar aquele fragmento da mulher
em suas lembranças, a única parte dela que cou intocada.
— Algum documento de identidade?
— Nada, e não encontrei nenhuma bolsa ou celular. Ou ela não estava com
eles, ou se perderam em algum momento durante a queda — responde Jon, e
pigarreia. — Acho que vamos pegar o barco de volta e deixar vocês assumirem
a partir daqui, se estiver tudo bem.
Suas palavras a fazem entrar em ação. Elin en a a mão dentro da bolsa, tira
dois kits contendo trajes forenses, botas e luvas e entrega um deles a Steed.
— Tudo bem se eu começar? — Rachel coloca o capuz de seu próprio traje.
Elin assente. Eles vestem as roupas, o barulho do tecido ampli cado pelo
silêncio do lugar. E cam esperando enquanto Rachel fotografa o corpo, com a
poça de sangue em volta da cabeça da vítima.
Alguns minutos depois, Rachel deixa a câmera de lado e começa a apalpar o
corpo, examinando os bolsinhos nas laterais do vestido da mulher. Con rma
que estão vazios.
— E a rigidez?
Ela avalia.
— Eu diria que ainda não está completa. Ela está aqui há algumas horas,
mas não mais que doze.
Isso dá a Elin algum parâmetro: a mulher provavelmente havia caído no
comecinho da manhã.
— A gente pode virar o corpo? Procurar outros ferimentos?
Elin está atrás de sinais especí cos de algum tipo de ataque: um tiro, marcas
de perfuração. Com cuidado, Steed passa por cima do corpo, parando
exatamente de frente para Rachel. Eles contam até três e viram a mulher.
Rachel examina as costas e pernas.
— Nada. Não estou vendo nenhum outro ferimento além dos danos
provocados pela queda, escoriações nas mãos e nos braços. Nenhum ferimento
de defesa evidente, nenhuma lesão ou sinais de imobilização dos pulsos. As
unhas parecem limpas também.
Elin assente. Pelo que Rachel está dizendo, aquilo parece ter sido uma
simples queda, mas ela não pode descartar a hipótese de que a vítima tenha
sido empurrada. Um empurrão bem calculado por trás teria obtido o mesmo
resultado sem provocar qualquer ferimento de defesa evidente.
Enquanto Rachel pega a câmera, Elin vira-se para Steed.
— Vamos isolar a área com ta. De na um caminho de acesso e abra uma
folha de registro da cena do crime. Não imagino que vá aparecer ninguém
bisbilhotando por aí, mas é melhor prevenir. E, se você puder tomar as
medidas necessárias para preservar a cena do crime, eu vou atualizar a Anna e
depois dar uma conferida no Leon.
— Por mim tudo certo. — Steed dá um passo à frente, e seu rosto ca
vermelho.
Elin para por um instante.
— Tudo bem com você?
— Tranquilo. — Ele pigarreia. — É só que… Aconteceu uma coisa
parecida com uma pessoa da minha família… Isso traz lembranças.
Ela tenta consolar o colega, mas, pela maneira como ele pisca rapidamente,
percebe muito bem que Steed ainda está tentando domar seus sentimentos.
Elin quer reconfortá-lo, mas sabe que caso se renda a qualquer emoção, perderá
o foco que tanto está se esforçando para manter.
— Bom — diz Elin, por m, acenando com a cabeça. — Te vejo em breve.
Ela tira o traje e começa a fazer o caminho de volta pelas pedras, mas, a
alguns metros da cena, para, cega por um clarão repentino que parece ser
emitido do topo da falésia. Quando Elin vira a cabeça, o clarão desaparece, mas
volta a aparecer conforme ela anda: um brilho em forma de semicírculo cintila
no centro do seu olhar toda vez que pisca.
Aquilo leva um tempo até desaparecer e, mesmo quando acontece, Elin
ainda ca meio perturbada.
Está começando a ter uma sensação ruim quanto àquela ilha, uma placidez
esquisita que, por algum motivo, parece antinatural e malévola.
14
Hana acorda suada, os lençóis enroscados no corpo como um nó. Sua cabeça
está latejando e o quarto gira quando ela se senta na cama, a cadeira de vime
no canto e a costela-de-adão ao seu lado se alongam e se esticam diante de seus
olhos.
Aquela sensação a deixa desorientada e nervosa e, por um instante, ela se vê
de volta — aos dias repletos de pânico após a morte de Liam. Não era apenas
um luto, e sim dois: a perda de Liam e também a perda do sonho que eles
tinham de formarem uma família, destruído antes mesmo de começarem.
Alguns meses antes do acidente, eles haviam feito alguns avanços tímidos em
direção à fertilização in vitro.
Hana estava sendo consumida pelo arrependimento.
Por que eles não tinham começado o processo mais cedo? Tomado alguma
atitude em vez de apenas conversar sobre isso? Pelo menos assim ela teria
alguma coisa de Liam. Algo em que se agarrar enquanto o resto do mundo
desmoronava.
Outra onda de náusea.
Jogando as pernas para fora da cama, Hana vai até a pia do banheiro e
enche o copo com água. Então, pega seu nécessaire de remédios. Ela está
virando a própria mãe, pensa, tirando dois comprimidos de paracetamol da
cartela. Esteja sempre preparada.
Hana joga os dois comprimidos na boca e a enche com muita água, depois
dá aqueles goles generosos que alguém só dá quando está de ressaca.
O celular está na mesinha de cabeceira. Ela pega o aparelho e vai até a
janela.
Um quadro perfeito de verão: céu azul, árvores, a curva amarelo-canário de
uma rede na varanda.
Hana tira uma foto e ca olhando as que tirou na noite anterior. A primeira
a faz sorrir: uma foto em grupo na praia, todos felizes, de costas para o mar. A
imagem está fora de foco, o fotógrafo — Caleb — obviamente se mexeu
quando a tirou.
Depois de jantar, eles tinham ido até a praia como Jo sugerira. No m das
contas, ninguém mergulhou, mas caram conversando sobre a vida e o mundo,
os pés na água. Hana teve uma conversa intensa e meio constrangedora com
Caleb, os dois empoleirados nas pedras no canto da praia — alguma coisa
sobre o trabalho dele e políticas ambientais. Em dado momento, Jo e Seth
tiveram uma discussão de bêbado que acabou tão depressa quanto começou.
O interlúdio na praia terminou com uma ligação para Bea, que acabou
caindo na caixa postal. Em seguida, eles enviaram para ela a foto em grupo.
Hana sorri, imaginando o sorriso de Bea quando viu a foto, eles queimados de
sol, seus sorrisos iluminados pelo luar. O que estava escrito mesmo na
mensagem que acompanhou a foto? Alguma coisa melosa e sentimental.
Queríamos que você estivesse aqui. Caleb está mandando um beijo…
Ela respondeu com: Pessoal… amo todos vocês, mas estou em um evento de
trabalho. Depois nos falamos.
Hana consegue imaginar Bea nesse evento, ocupada e solícita, dizendo todas
as coisas certas, no tom adequado. É assim que ela enxerga a tal Bea 2.0:
inteligente, vestindo roupas caras, usando joias discretas, o cabelo claro preso.
Nada parecida com a irmã insegura e ssurada em livros com quem ela havia
crescido, e que detestava se arrumar.
Assim, segue passando as fotos: Caleb tirou algumas da mesma pose em
grupo, mas, quando chega à última imagem, uma sensação incômoda percorre
seu corpo. Ele obviamente tinha tirado aquela foto quando o grupo começava a
se dispersar, sem aguentar mais o esforço de manter o sorriso. Não consigo mais,
lembra-se de Seth dizendo enquanto ria.
Hana ainda estava com um meio sorriso no rosto, mas Jo tinha se
transformado. Ela olhava para Hana e, obviamente, não havia percebido que
ainda estavam tirando fotos. A expressão em seu rosto é perturbadora, o
semblante congelado de uma maneira estranha e sombria.
Hana não consegue entender o que é aquilo. Medo? Ódio?
Seus pensamentos se voltam para o bilhete que havia caído da mochila de
Jo. Talvez houvesse mais coisas ali do que imaginava.
Ela vai até a bolsa de viagem e vasculha o bolso lateral onde havia en ado a
carta, ainda no cais. Alisando-a cuidadosamente entre os dedos, ela olha
novamente para as palavras.
Hana,
Eu sinto muito. Eu sinto muito. Eu sinto muito.
Quando Elin chega ao topo da escada que vem da praia, faltam poucos
minutos para as oito da manhã.
O retiro está começando a despertar; funcionários de camisa branca
trabalham no restaurante, um grupo de nadadores caminha em direção à praia.
É nítido que alguns hóspedes perceberam que tem algo acontecendo. Eles
perambulam às voltas do pavilhão de yoga com um desinteresse falso e
calculado, sem querer dar a impressão de que estão curiosos, mas mesmo assim
olhando.
Prestes a vestir seu traje e colocar a proteção nos sapatos, ela se detém por
um momento ao ver que Farrah se aproxima.
— Imagino que ela realmente esteja…
Elin faz que sim.
— E acho que já faz um tempo — informa.
A boca de Farrah se contrai um pouco antes de ela se recompor, indicando o
restaurante.
— Michael, o homem que a encontrou, está esperando lá. Você queria falar
com ele…
— Ah, sim, eu quero. Me dá dois minutinhos. Preciso… — diz,
gesticulando na direção de Leon.
— Claro. Venha até nós quando estiver pronta.
Já devidamente paramentada, Elin se abaixa para passar pelo cordão de
isolamento. Leon está agachado ao lado do parapeito, passando um pincel no
vidro.
— Tudo bem por aqui?
— Tudo. — Ele aponta com o queixo para um vômito ali por perto. —
Fora alguns ossos do ofício.
— Isso é do cara que a encontrou?
— É.
Elin dá uma olhada por cima do parapeito e logo recua. Por mais assustador
que seja olhar para cima, olhar para baixo é muito pior — seus olhos
mergulham até as pedras pontiagudas lá embaixo. E, vista desse ângulo, a
silhueta destroçada do corpo da mulher a afeta de uma maneira diferente.
— O que você acha da altura do parapeito?
Leon continua pincelando o vidro.
— Com certeza é baixo o su ciente para cair por cima dele por acidente. Eu
teria colocado um mais alto.
— Encontrou alguma coisa no vidro?
— Sim. Uma sequência incomum de impressões do lado de lá… Tanto de
dedos quanto de palmas. Pelo que o cara disse, tenho quase certeza de que são
dela. Aparentemente, limpam o vidro toda noite, e ele passa um pente- no de
manhã. Tudo indica que ela caiu de frente e, em algum momento, virou o
corpo, como se tivesse tentado se agarrar, mas não conseguiu.
Elin se aproxima do parapeito. Um pó prateado destaca as impressões que
cobrem o vidro — uma mancha parcial de mão, digitais borradas —, mas ela
sabe que aquilo não prova nada. As marcas podem ser o resultado tanto de uma
queda acidental quanto de um empurrão.
— Ela derrubou alguma coisa por aqui?
Ele balança a cabeça.
— Eu dei uma olhada, mas, fora a echarpe, nada — diz ele, apontando com
a cabeça para um pedaço de tecido dentro de um saco plástico no chão.
— Onde ela estava, exatamente?
— Na grama, do outro lado do parapeito, mas eu não acho que foi isso,
necessariamente, que provocou a queda. A echarpe pode ter se soltado quando
ela caiu.
Elin examina a echarpe dentro do saco. Tem cores berrantes — uma
estampa abstrata e moderna com manchas cor-de-rosa e verdes.
— Você não encontrou mais nada?
— Só isso… — Ele aponta para algo do outro lado do parapeito. — Tem
um entalhe na grama ali, um pouco antes do precipício. Parece consistente
com algo consideravelmente pesado sendo colocado nesse ponto.
— Mais pesado que a echarpe?
— Sim, e num lugar diferente também, um pouco adiante de onde
encontrei a echarpe. Como não ventou nem choveu, a marca foi preservada.
Não dá para a rmar, com certeza, que foi feita ontem à noite, mas, se tivesse
sido feita há alguns dias, acho que a grama já teria se recuperado.
— Alguma conclusão?
— Na verdade, não. É uma marca pequena e quadrada. Talvez ela tenha
derrubado alguma outra coisa quando caiu. Pode ter se soltado durante a
queda.
— Bem, vou pedir para a Rachel dar uma olhada ali. — Ela faz uma pausa.
— Beleza, vou te deixar trabalhar. Estou indo falar com o cara que encontrou a
vítima.
Ao tirar o traje e os protetores dos pés, Elin percebe que a pequena
multidão de hóspedes aumentou, fazendo com que um dos funcionários
tomasse a atitude de dispersá-la, conduzindo-os ao restaurante. Ela espera os
hóspedes saírem dali e vai na direção de Farrah, que está sentada ao lado de um
homem idoso, falando baixinho.
Farrah levanta os olhos.
— Elin, este é Michael Zimmerman. Eu contei que você queria conversar
com ele.
Michael dá um sorriso forçado. Elin nota seus olhos na mesma hora. São
lindos, com pálpebras pesadas e de um azul-claro que remete ao céu pela
manhã. Imagina que ele deva ter uns sessenta e tantos anos e, a julgar pelas
profundas rugas em seu rosto e pela barba de náufrago, provavelmente é o que
Will chamaria de “lobo do mar” — um sur sta veterano, nascido e criado no
litoral.
Ela se senta de frente para ele e puxa o bloco de anotações.
— Michael, eu sei que isso não é fácil, mas espero que você possa nos ajudar
a entender o que aconteceu de manhã. Vamos começar com: onde você estava
antes de encontrar a vítima?
Ele assente, pega o boné na mesa ao seu lado como se fosse colocá-lo e, em
seguida, o larga de volta onde estava. O topo de sua cabeça está clareado pelo
sol, coberto de manchas.
— Eu me levantei por volta das cinco, como de costume, para começar o
turno da manhã. Vim dar a última conferida na limpeza das áreas comuns.
A nal, não dá para ter certeza de que o turno da noite não esqueceu nada por
aí, ou que os hóspedes não saíram no meio da noite e zeram uma bagunça…
— relata ele, levantando a cabeça na tentativa de encontrar nos olhos de Farrah
alguma solidariedade em relação à natureza imprevisível dos hóspedes, mas ela
está conferindo o celular.
— E a que horas foi isso?
— Pouco depois das seis. Eu tinha terminado tudo no restaurante e estava
vindo para o pavilhão de yoga. E estava subindo os degraus quando vi uma
peça de roupa do outro lado do parapeito. As cores eram berrantes, não tinha
como não ver.
Michael então pega seu boné mais uma vez, ca revolvendo-o entre os
dedos. Aquele gesto lhe é estranhamente familiar, e Elin é acometida por uma
sensação repentina de reconhecimento, como se já o tivesse visto, ou alguma
outra pessoa, fazendo aquilo antes.
— Continue — pede ela, com delicadeza.
— Eu fui andando até lá para pegar o lenço e foi aí que… — Ele umedece
os lábios. — Foi aí que eu a vi, nas pedras, lá embaixo. Dava pra ver que ela
estava… — Uma pausa. — Eu passei mal, como você provavelmente notou,
mas assim que me recuperei eu liguei para a emergência e depois para a Farrah.
— E você não percebeu nada de estranho durante o seu turno? Nada de
suspeito, fora do comum? Ninguém estranho andando por aí?
— Durante o meu turno não, mas…
Farrah tira os olhos do celular e lança um olhar penetrante na direção dele.
Ele muda de posição.
— Olha, provavelmente não tem nada a ver com isso, mas, na semana
passada, aconteceu uma coisa estranha durante a noite. Eu tinha acordado
porque, você sabe, na minha idade, a natureza chama. E, quando eu estava
voltando para a cama, vi alguém andando por aqui, perto da pedra. Achei
aquilo estranho, uma pessoa do lado de fora tão tarde da noite.
— Você estava no alojamento dos funcionários quando viu isso?
Ele assente.
— E eram exatamente que horas?
— Quatro, talvez um pouco mais. Fosse quem fosse, tinha uma lanterna e
estava iluminando a pedra, como se estivesse procurando alguma coisa.
— Provavelmente era um hóspede — intervém Farrah, dizendo aquilo
como quem não dá muita importância e, em seguida, se vira para Elin. —
Alguns tiram fotos da pedra à noite. Não sei por quê, não dá pra ver
praticamente nada.
Michael dá uma risada tristonha.
— Neste lugar, nada me surpreenderia.
Elin sente um calafrio.
— Como assim?
— Esta ilha não tem uma fama muito boa, né? Não me entenda mal, eles
transformaram tudo por aqui, mas, às vezes, ainda dá pra sentir, de manhã bem
cedo, quando não tem ninguém por perto.
— Sentir o quê? — Elin inclina-se para a frente, incomodada.
— Uma coisa… ruim. — Ele engole em seco ruidosamente. — Algumas
semanas atrás, um hóspede disse a mesma coisa.
— Sério? — Ela se esforça para controlar a voz.
— Sério. O artista que fez a obra que está na recepção me contou que
estudou naquela escola, a que pegou fogo. Disse que tinha vindo para ver sua
obra e conhecer o retiro — continua Michael. — Ele adorou, mas disse… —
O senhor faz uma pausa, seu semblante congelado por um instante enquanto
pensa. — Ele disse que ainda conseguia sentir — diz, por m. — A presença
do mal aqui.
Farrah balança a cabeça ao ouvi-lo dizendo aquilo, naquele tom
melodramático. Elin agradece e fecha a caderneta, mas não consegue ignorar o
que ele disse com tamanha tranquilidade. Quanto mais tempo passa ali, mais
consegue sentir também — essa presença e essa energia que vão além de todos
os relatos.
Uma coisa intrínseca à própria ilha.
— Nós vamos precisar tomar um depoimento formal mais tarde, mas, por
enquanto, está ótimo. Obrigada mais uma vez.
E, quando Elin pega sua bolsa, percebe que um homem vem andando em
sua direção. Ele se aproxima de Farrah e murmura algo inaudível em seu
ouvido.
Farrah vira-se.
— Este é Justin Matthews, nosso diretor de segurança. Ele encontrou as
imagens da câmera de segurança do pavilhão. Eu não sabia bem se havia uma
câmera por aqui, mas pelo visto há.
Um pequeno alívio.
— Podemos dar uma olhada agora?
— Com certeza.
Elin mal havia começado a se mexer quando ouviu um barulho: alguém
andando rapidamente sobre o cascalho.
Ela sente um puxão no braço. Ao se virar, se depara com Michael bem atrás
de si, numa proximidade desconfortável.
Ele aperta seu braço com força.
— O que eu disse antes — murmura ele —, eu estava falando sério. O que
aquele homem me disse, ele tem razão. Tem alguma coisa podre neste lugar.
Você precisa tomar cuidado.
16
Depois de tomar banho e se vestir, Hana penteia o cabelo e o prende num rabo
de cavalo, algo que nunca dá muito certo porque seu cabelo é curto demais.
Amarrotado, como Liam dizia, passando a mão nas pontinhas. É uma tentativa,
Han, mesmo que meio mais ou menos.
Depois de dar a segunda volta no elástico, ela calça as sandálias e sai pelo
corredor. Sente cheiro de café, amargo e perfumado, vindo da sala de estar.
Jo. Ela é sempre a que acorda mais cedo. É ela quem estará ali, fazendo café.
Aja com naturalidade, diz a si mesma, estampando um sorriso no rosto. Não
reaja.
Então descobre que não é Jo, e sim Maya quem está ali, sentada numa
cadeira de vime banhada pelo sol, com um lenço verde enrolado no cabelo
cacheado. Maya levanta os olhos, sorrindo.
— Você acabou de perder o café…
— Tudo bem, eu faço um pra mim. — Hana olha para o livro que repousa
no colo da prima. — O que está fazendo?
— Desenhando — responde Maya, apontando para o que Hana agora
percebe ser um caderno de desenho. — Não consegui dormir. É sempre assim
quando eu bebo. Acordo no meio da noite e não consigo voltar a dormir.
— Sei bem como é, também não dormi direito. Acho que aquela coisa toda
na praia foi um pouco de exagero. — Ela faz uma pausa. — Você viu a briga
da Jo com o Seth?
— Uma parte. Ele recebeu uma ligação, não foi? De uma amiga. — Maya
balança a cabeça. — Não entendo por que a Jo ainda ca surpresa… Ele
sempre foi assim. Cheio de “amigas” — completa ela, fazendo as aspas com os
dedos.
Hana para por um instante, tentando absorver o que Maya tinha acabado
de dizer.
— Isso que você disse sobre ele ser sempre assim… Você conhece o Seth,
digo, sem ser pela Jo?
Maya hesita, seu rosto ca vermelho. Ela abaixa a voz:
— Bom, eu não diria que conheço. Eu escalei com ele algumas vezes. É
amigo de um amigo. Foi assim que a Jo o conheceu, através de mim. A gente
saiu junto uma noite.
— Você nunca me contou isso. — Não apenas sobre como Jo havia
conhecido Seth, mas sobre elas terem saído, pensa Hana, magoada.
— Não achei que fosse importante. E, no caso da Jo, provavelmente não é a
história romântica que ela gostaria de compartilhar com seus seguidores…
Uma noite de amassos bêbada num barzinho.
— E o que você achava dele? Antes da Jo, quero dizer.
— Achava meio idiota. Todo sorrisos e charminho na sua frente, mas pelas
suas costas… “Super cial” seria uma boa palavra. — Maya dá de ombros e
olha para o corredor, abaixando a voz ainda mais um pouco: — Também tinha
uns rumores sobre ele ser agressivo, tentar intimidar os adversários nas
competições de escalada. — Ela passa os dedos no piercing que ca na parte
superior de sua orelha.
— O que houve? — A voz de Hana é quase um sussurro quando ela
também olha para o corredor, uma parte sua convicta de que Jo vai aparecer ali
a qualquer momento.
— Acho que essa agressividade dele transbordou com a Jo. Ontem à noite
ele estava reclamando de ela ter bebido demais, dizendo que ela deveria pegar
mais leve.
— Talvez ele só estivesse preocupado. Ela estava muito bêbada…
O semblante de Maya ca nebuloso. Hana muda de assunto, apontando
com o queixo para o caderno de desenho enquanto espera que a máquina de
café comece a funcionar.
— Não sabia que você ainda desenhava — comenta.
Maya sempre gostou de arte. Tinha começado a desenhar depois do
incêndio: ilustrações oníricas e intrincadas.
— Faço uns rabiscos de vez em quando. A fama e a fortuna de nitivamente
me iludiram. — Ela olha para Hana. — É engraçado, né? Quando você é
jovem, tem certeza de que vai dar certo na vida, e de que você tem todo o
tempo todo mundo para isso. Eu realmente achei que depois da faculdade eu ia
me dar bem. Ter sucesso, reconhecimento, que tudo se encaixaria, como num
passe de mágica.
— Ainda pode acontecer. Você só tem 28 anos.
Maya ri.
— Sonhos. A gente precisa de tempo para eles, Han. De concentração. De
dinheiro. A verdade é que eu sou boa, mas nunca vou ser brilhante.
Pega de surpresa, Hana se atrapalha toda tentando colocar a xícara debaixo
do bico da máquina de café. Quando olha para Maya, percebe, pela primeira
vez, o quanto a prima está magra, a luz da manhã destacando as cavidades de
suas bochechas. A queimadura é visível: uma linha de pele enrugada e derretida
que sobe por sua panturrilha. Jo também tem uma cicatriz — irregular e
redonda, no braço. A de Bea mal se nota, um borrão difuso na lateral de seu pé
direito.
Recordações permanentes do incêndio que transformou a vida de So a para
sempre.
Hana foi a única que escapou ilesa. Aquilo a fazia sentir-se culpada quando
elas eram mais novas, mas, olhando para Maya agora, ela se pergunta se as
pessoas não se concentraram demais nas cicatrizes externas em detrimento do
que estava acontecendo por dentro. Na época, todos chegaram à conclusão de
que Maya tinha lidado bem com aquilo. Crianças se adaptam com facilidade,
dizia sua mãe, mas talvez ela estivesse apenas reprimindo sentimentos — os
quais estavam se manifestando só agora.
— Mas chega de falar de mim. A gente não terminou nossa conversa de
ontem. Como você está?
Hana ca tocada. Há muito tempo ninguém lhe pergunta como ele está,
ainda mais de forma sincera. Ela dá de ombros.
— Tem dias ruins e dias não tão ruins. Eu acho… — Hana hesita,
pensando em como colocar aquilo em palavras. — Eu acho que a maneira
como aconteceu não ajuda, não ter todas as informações. Se eu soubesse, seria
mais fácil de processar. — Do jeito que aconteceu, tudo que ela tem são
projeções lúgubres e grá cas em sua mente.
O que se sabe ao certo: numa manhã ensolarada de abril, Liam foi pedalar
sozinho na Floresta de Haldon. Ele estava na trilha mais difícil, e tentou vencer
um obstáculo chamado Queda Livre, uma rampa de madeira que terminava
muito acima do solo. Na investigação, concluiu-se que ele não conseguiu
sequer chegar ao nal da rampa, caindo da bicicleta diretamente sobre a
própria cabeça. Ele quebrou o pescoço, fraturando a vértebra C6.
Morreu na hora.
— Bom dia.
Hana se vira, desperta de seus devaneios. Seth está parado na soleira da
porta vestindo uma samba-canção estampada com palmeiras, seu cabelo escuro
todo rebelde, eletrizado.
— A Jo ainda não voltou?
— Como assim? — diz Hana.
— Ela saiu pra correr, mas nem me mandou mensagem pra avisar.
Geralmente ela faz isso.
— Correr, nesse calor?
— É o que ela gosta de fazer depois de uma noite de bebedeira.
Normalmente ela posta fotos dessa “Jo acabada” a cada quilômetro nos stories,
reclamando sobre como é ruim correr de ressaca. — Ele olha para o celular. —
Só porque eu falei, ela não postou nenhuma até agora. Acho que dessa vez a
bebida pegou pra valer…
— Ela deve ter saído bem cedo — murmura Maya. — Eu estou acordada
desde as seis.
— Provavelmente — concorda ele, dando de ombros. — Mas achei que a
essa altura ela já teria voltado. Tá na hora do café da manhã.
Maya se levanta.
— Preciso jogar uma água no corpo, mas co pronta em quinze minutos, se
todo mundo quiser esperar.
Seth faz que sim com a cabeça.
— Vou chamar o Caleb e mandar uma mensagem pra Jo, avisando que nós
subimos.
Conforme todos deixam a sala, Hana ca sozinha com seu café. Está prestes
a tomá-lo lá fora quando vê o caderno de desenho de Maya em cima da
cadeira. Tomada pela curiosidade, Hana vai até ele. Coloca o café na mesa e
começa a folhear, sempre de olho no corredor. Rascunhos da face da rocha, um
menor que o outro. Uma ilustração em forma de boneca russa.
Ela segue folheando, mas as outras páginas estão em branco. Quando está
quase fechando o caderno, hesita por um instante e encontra um desenho
perto das últimas páginas. Um retrato de Jo.
Hana sente um calafrio. Embora Maya tenha desenhado Jo de maneira
muito realista — o nariz ligeiramente encurvado, os lábios carnudos, a leve
covinha em seu queixo —, ela percebe que a maneira como foi desenhada é
estranha. Todos os traços estão carregados, como se Maya tivesse pressionado o
lápis com tanta força contra o papel que ele quase atravessou a página.
O efeito era curioso: era como se ela tivesse capturado Jo, mas estivesse, ao
mesmo tempo, tentando subjugá-la com seu lápis, domesticando sua imagem a
cada linha e a cada traço.
17
— Foi mal, eu não sabia que o Michael seria tão intenso — diz Farrah
enquanto elas acompanham Justin pela trilha principal.
— Acontece. As pessoas costumam sentir essa necessidade de desabafar
depois de passarem por algo assim, é uma maneira de lidar com o que viram.
— Elin mantém o tom de voz sob controle, mas ainda está abalada enquanto
escolhe suas palavras. — O que você achou do que ele disse, sobre alguém
perambulando por aí?
Farrah balança a cabeça.
— Não faz sentido. Não dá pra ir até lá, não mais… — Ela interrompe o
que está dizendo quando Justin para na entrada do prédio principal e as portas
de vidro se abrem automaticamente.
Lá dentro é outro mundo. A área de recepção é linda, ampla e espaçosa,
com um piso de madeira claro. O teto é de vidro e, à esquerda, uma das
paredes também, iluminando bem o espaço.
A parede branca da direita é cortada abruptamente por painéis rosa-pastel
do mesmo tom usado na área externa. Estes painéis dividem o espaço em duas
zonas: uma área com cadeiras, de onde se consegue ver a rocha através do teto e
da parede de vidro, e a recepção, do outro lado. Uma leira de cactos enormes
toma a parede dos fundos.
Elin foca na grande obra de arte em tapeçaria pendurada na parede atrás do
balcão da recepção. É um padrão abstrato, redemoinhos coloridos que se
entrelaçam com símbolos menores, parecendo marcas primitivas.
Só quando chega mais perto consegue entender o que as marcas são.
Seu coração acelera. Não são formas abstratas coisa nenhuma, são a própria
morte.
Pequenas versões da rocha formando um padrão.
Elin continua encarando, desconfortável, à medida que vai enxergando cada
vez mais delas — algumas tecidas na peça usando a mesma cor do fundo,
camu adas.
Farrah olha na mesma direção.
— Lindo, não é? É de um artista britânico contemporâneo especializado em
tapeçaria, e que estudou naquela escola que cava aqui. É bem impactante vê-
la aqui, não acha? — Ela olha para a parede de vidro. — De cara para a própria
rocha.
Só então Elin presta atenção na tremenda formação rochosa acima dela,
erguendo-se por cima do teto transparente e da parede de vidro. Aquilo lhe
parece irreal. O tamanho da pedra, daquele ângulo, é muito opressivo; mais
um metro e ela estaria dentro do prédio.
— Elin? Está tudo bem? Justin já está pronto para começar.
— Tudo bem.
Ela precisa forçar um sorriso enquanto Justin as conduz até uma sala no
nal do corredor.
— Já deixei tudo pronto.
Elin dá uma breve olhada ao redor. Múltiplas telas cobrem a parede dos
fundos, cada uma exibindo uma imagem diferente do retiro. A sala está
vibrando com um aroma familiar de escritório: o de café misturado ao cheiro
plástico dos aparelhos eletrônicos.
Justin minimiza habilmente uma tela e maximiza outra.
— A câmera está posicionada na frente do prédio, virada para o pavilhão.
Ela se move da esquerda para a direita — explica ele, os dedos se mexendo
rapidamente pelo teclado. — Esta é a imagem ao vivo.
Elin reconhece imediatamente o pavilhão onde Leon está ajoelhado,
examinando alguma coisa.
Os dedos de Justin utuam sobre o teclado.
— Pra que horário eu volto?
— Vamos tentar por volta das onze da noite de ontem.
Ele começa a retroceder a gravação. A imagem é clara o bastante graças à
iluminação externa, mas ainda possui a granulação e a nebulosidade de uma
imagem noturna.
— Me peça pra parar se você vir alguma coisa.
Imagens se sucedem em alta velocidade na tela. Todas iguais; aquela mesma
estática acinzentada.
11h00, 12h00, 12h30, 01h00…
— Espera… Eu vi alguém. Ali… — Elin aponta.
Justin volta a imagem e a reproduz na velocidade normal. No canto inferior
esquerdo da tela, uma mulher aparece cambaleando na frente da câmera,
trazendo alguma coisa pendurada na mão. Apesar da imagem mal iluminada,
Elin tem certeza de que aquela é a mulher morta, o cabelo do mesmo
comprimento, a mesma roupa.
A mulher para no meio do pavilhão de yoga e caminha em direção ao
parapeito. Ela larga a echarpe em cima do corrimão e o tecido escorrega,
caindo do lado de fora.
Alguns segundos depois, a câmera vira para a direita, de modo que ela não
pode mais ser vista. Elin se inclina para a frente, frustrada, enquanto a imagem
da câmera dá uma leve tremida e depois começa a voltar, devagar. Quando a
mulher reaparece, está debruçada sobre o parapeito, como se estivesse se
esticando para pegar a echarpe.
De repente, conforme ela se inclina ainda mais, seu pé começa a balançar de
modo desajeitado no ar. É o su ciente para que ela comece a perder o
equilíbrio e, assim que o movimento começa, não há mais como interrompê-
lo. O peso de seu corpo e sua inércia a jogam por cima do parapeito, cabeça
para a frente e pernas para o alto, seu rosto e seu corpo colados contra o lado
de fora do painel de vidro.
Suas mãos ainda estão segurando o corrimão. Por um momento, Elin acha
que a mulher talvez seja capaz de ajeitar o corpo, mas isso não acontece. Num
segundo, sua mão direita escapa e a esquerda se transforma num estranho
ponto de apoio, girando sobre seu eixo à medida que o corpo vai rodando ao
seu redor, puxando suas pernas para baixo numa reversão completa da posição.
Elin prende a respiração e continua assistindo; é óbvio que a mulher não vai
conseguir manter aquela posição por muito tempo.
E, enquanto observa a tela, tudo parece acontecer em câmera lenta. Aquela
mulher lhe era uma estranha, mas, naquele momento, era como se Elin a
conhecesse intimamente. Elin está dentro da cabeça dela, imaginando seu
pânico, a sensação crescente de desespero enquanto sua mão vai escorregando
por causa do suor e ela consegue sentir que está escapando.
O peso é demais para ela suportar. Ela cai.
Ninguém diz nada: eles permanecem olhando para o espaço vazio onde a
mulher estivera. Um vazio acaba de se abrir e nenhuma palavra seria capaz de
preenchê-lo.
18
***
Elin escolheu conversar com os Leger em uma mesa num canto da varanda do
restaurante, com vista para uma piscina praticamente deserta. Olhando para o
fundo de vidro debaixo de toda aquela água e para as pedras pontiagudas lá
embaixo, seu estômago se revira: ela jamais confiaria naquele vidro.
Enquanto espera que todos se acomodem, vai tirando o caderno de dentro
de sua bolsa. O garçom traz uma jarra d’água e alguns copos e os coloca ao seu
lado.
Jo se joga sobre eles.
— Han, toma aqui. — Ela empurra um dos copos vazios pela mesa, mas
Hana não responde, está destroçando um lenço em suas mãos, gerando
fragmentos brancos que utuam até a mesa.
Elin pigarreia.
— Obrigada por conversarem comigo. Eu sei que é difícil, num momento
como este, mas é importante para que eu entenda um pouco mais sobre a Bea,
principalmente porque vocês não sabiam que ela estaria aqui.
— É claro. — Os olhos de Caleb, agora inchados de choro, encontram com
os seus. — A Bea devia estar trabalhando esta semana nos Estados Unidos. Ela
é advogada corporativa em Londres, mas sua rma tem um escritório em Nova
York.
Elin assente, levemente abalada pela dicção impecável dele, que, por algum
motivo, destoa da emoção em seu rosto.
— Ela planejava viajar com vocês, originalmente?
— Sim. — Jo gira seu celular sobre a mesa. — Essa viagem era pra ser uma
coisa de família, com nossos parceiros. Fazia tempo que não nos
encontrávamos.
— E de quem foi a ideia da viagem?
— Minha — assume Jo. — Bom, fui eu que organizei depois que alguém
deu a sugestão, e achei que seria uma boa ideia. Então, como sou in uencer,
entrei em contato com o marketing do LUMEN e eles me convidaram para vir
até o retiro. E aí eu convidei o restante do pessoal.
— Quando a Bea cancelou?
Jo ca re exiva.
— Faz algumas semanas. Disse que tinha uma viagem de trabalho da qual
não conseguiu se livrar, mas que o Caleb viria mesmo assim, para que a gente
pudesse passar um tempo se conhecendo melhor.
Elin assente.
— E não houve nenhum sinal de que a Bea havia mudado de ideia?
Nenhuma mensagem que talvez vocês não tenham visto?
— Não. Ela chegou a me dizer que o avião tinha pousado nos Estados
Unidos no horário — informa Caleb. — A gente cou em contato, trocando
mensagens desde que ela chegou lá. — Então ele se corrige: — Desde que eu
achei que ela tinha chegado lá. Como eu disse, ela chegou a me mandar
mensagem ontem à noite. A gente estava na praia, mandou uma foto do grupo.
Ela não atendeu à ligação, mas respondeu com uma mensagem. — Ele dá
alguns toques em seu celular e o vira para mostrar à policial. — Olha. Isso
foi… — Ele confere a tela. — Onze e três… a gente tinha acabado de voltar
para o chalé. — Em seguida, ele vira o celular na direção dela mais uma vez.
Elin olha para as mensagens, assentindo.
— E depois disso, ninguém saiu de novo do chalé?
— Não — respondem os outros, balançando a cabeça.
Ela se vira para Caleb.
— E quando foi a última vez que você falou com a Bea?
Uma pausa.
— Não falo com ela desde quinta, quando ela viajou — responde ele,
fazendo pausas. — Isso é comum quando ela viaja a trabalho. A gente não
sente a necessidade de car falando o tempo todo um com o outro, ainda mais
quando é uma viagem curta.
Elin faz sinal de que compreende, aquela sensação de incômodo crescendo
cada vez mais. A queda de Bea foi um acidente, a gravação da câmera de
segurança deixava isso bem claro, mas Elin está achando muito estranho o fato
de que ela não deveria estar naquela ilha.
Por que ela viria sem avisar para ninguém? Com que intenção?
Só consegue pensar numa coisa, embora aquilo pareça impossível: Bea teria
que ter, pelo menos, avisado ao retiro. Mas, ainda assim, decide verbalizar
aquele pensamento, avaliar a reação deles.
— Seria possível que ela tenha pensado em fazer algum tipo de surpresa?
— Não — responde Hana de imediato, a primeira coisa que ela dizia desde
que eles haviam se sentado. — Esse não é o estilo da Bea. Ela planeja as coisas.
— A Hana tem razão — concorda Caleb. — E por que ela se daria a todo
esse trabalho?
Um silêncio pesado se estabelece e, enquanto olha para eles, Elin percebe o
pescoço de Jo cando vermelho.
— Na verdade, eu acho possível que ela tenha pensado em fazer uma
surpresa, sim — diz Jo, numa voz baixa. — Talvez como um gesto.
— Um gesto? Não entendi… — Caleb se vira e olha para ela.
Faz-se um novo silêncio pesado, o qual Elin sabe muito bem que não deve
tentar quebrar.
— Quando ela me disse que não vinha… — A voz de Jo está tensa e
contida. — A gente teve uma conversa bem complicada. Eu tinha passado um
tempão planejando isso aqui. Tinha organizado tudo, o que não é fácil, e ela
foi lá e simplesmente desistiu, do nada. Eu quei chateada, senti como se ela
não desse a mínima para todo o esforço que eu tinha feito…
Seth coloca a mão em seu braço.
— Jo, agora não…
— Não, mas foi assim que eu me senti. Quando a gente conversou, eu
acabei esfregando algumas verdades na cara dela.
— Tipo quais? — questiona Hana, a voz alta, incontida.
— Eu só disse que ela precisava de nir direito as prioridades da vida dela.
Colocar a família em primeiro lugar. — Ela hesita. — Não olha assim pra
mim, Han. É verdade. Nós não somos prioridade para ela, principalmente a
mamãe e o papai. A quantos compromissos de família ela já faltou? O
aniversário do papai no ano passado…
— Então, você acha que ela pode ter vindo para tentar fazer as pazes com
vocês? — interrompe Elin, ao perceber que os ânimos estão cando exaltados.
Jo faz que sim rmemente com a cabeça.
Elin se prepara para fazer uma nova pergunta, mas logo para: Farrah vem
andando em sua direção.
Quando chega até a mesa, a cunhada se inclina e murmura em seu ouvido:
— Perdão por interromper — começa ela. — Mas acho que descobrimos
como Bea Leger veio parar na ilha.
21
Ela pede licença e vai com Farrah até uma mesa a cerca de um metro de
distância, onde um funcionário do retiro as espera.
— Este é o Tom, um dos instrutores de esportes aquáticos — apresenta
Farrah.
A gerente sorri para ele de forma encorajadora, e Tom cumprimenta a
detetive com a cabeça, dando um olá constrangido enquanto passa a mão pelo
cabelo preto.
— Me desculpe, eu teria vindo antes, mas hoje não estou nesse turno.
Acabei dormindo até mais tarde — explicou.
Parece óbvio que ele se vestiu com pressa. Sua camisa azul está abotoada da
forma errada, e a bermuda cáqui está sem cinto, caindo de sua cintura.
— Sem problema. Você pode me dizer o que sabe?
Tom coloca os óculos escuros na cabeça e assente. Elin chuta mentalmente
sua idade jogando um pouco para cima: deve ter uns 35, pelas rugas nas em
volta dos olhos.
— Bea e eu nos conhecemos na faculdade. Estudamos juntos. Uns meses
atrás, ela me disse que vinha para cá. Achei uma boa coincidência. Estava
ansioso para nos revermos.
— E você sabia que ela havia cancelado a viagem?
— Sabia. Ela entrou em contato comigo algumas semanas atrás e me
explicou que tinha desistido da viagem por causa do trabalho, mas disse que o
resto da família ainda viria. Nem pensei mais nisso até que ela me mandou
uma mensagem ontem, bem cedo, dizendo que tinha mudado de ideia. Ela me
perguntou se eu poderia ajudá-la, me disse que queria aparecer sem avisar a
ninguém e fazer uma surpresa para a família.
Mandou uma mensagem para ele ontem. Será que isso signi cava que aquela
havia sido uma decisão de última hora ou ela só foi contar para Tom quando já
estava a caminho da ilha?
— O que exatamente ela pediu para você fazer?
— Buscá-la e colocá-la para dentro. — Ele olha para Farrah, constrangido.
— Foi uma péssima ideia, eu sei, mas a primeira coisa que ela faria ao chegar
seria preencher o check-in e, como antes a Bea tinha uma reserva, eu sabia que
ela teria onde car…
— Quando você a buscou? De manhã? Mais para a tarde?
Ele franze a testa.
— De noite, por volta das oito. Eu atraquei numa das caverninhas menores
para que ninguém nos visse chegando, e dali nós fomos direto para uma sala de
reunião no prédio principal.
— Ela disse a você por que não quis ir imediatamente ao encontro da
família?
— Disse que a viagem tinha sido muito longa e que precisava beber alguma
coisa para relaxar e botar a conversa em dia.
— Quanto ela bebeu?
— Não muito. Uns dois ou três drinques. Acho que ela não percebeu que
estava cando tarde — responde Tom, observando o mar, seu olhar indo
automaticamente para um grupo praticando stand uppaddle. — Mas ela não
estava bêbada, se é o que você está me perguntando.
— E você não notou nada de estranho no comportamento da Bea?
Ele dá de ombros.
— Para mim é difícil dizer. Eu não sou muito próximo dela, não mais. Já
faz muito tempo desde a faculdade. A gente só se falava de vez em quando,
pelas redes sociais.
Elin aquiesce.
— Mais ou menos a que horas vocês pararam de beber?
— Umas onze e meia. Ela disse que ia até o chalé, fazer uma surpresa para
eles. Eu indiquei a direção e depois disso ela foi.
Onze e meia. Ela havia sido gravada pelas câmeras por volta de uma da
manhã. O que Bea fez entre o momento em que se despediu de Tom e sua
queda? Pelo que a família tinha dito, ela nunca chegou até o chalé.
— Ela levou a mala junto com ela?
— Imaginei que sim. — Ele franze a testa. — Vocês não a encontraram?
— Não.
— Talvez ainda esteja na sala de reunião. — Ele inclina a cabeça na direção
do prédio principal. — Eu posso mostrar onde ca.
— Por favor — agradece Elin, começando a empurrar sua cadeira para trás.
— Espera — diz Tom. — Antes de irmos, só mais uma coisa: quando você
me perguntou se não notei algo de estranho… só agora estou me dando conta.
Um pouco antes de ir embora, ela recebeu uma mensagem no celular. Disse
que precisava ligar para uma pessoa. Dei privacidade para que zesse a ligação,
mas ela pareceu bem nervosa.
Elin ca ruminando o que ele disse com uma persistente sensação de
incômodo.
Não consegue parar de pensar que tem alguma coisa faltando nessa história,
uma parte vital da narrativa.
22
A mala prateada de Bea é elegante e parece cara, compacta o su ciente para ser
levada a bordo, acondicionada no compartimento superior de bagagens de
mão.
Cuidadosamente posicionada debaixo da longa mesa de madeira da sala de
reunião, é a única coisa que destoa no ambiente. Apesar da conotação o cial, a
sala compartilha da mesma atmosfera relaxada do resto do retiro. É difícil
imaginar Bea ali depois do que Elin descobriu sobre ela; arrastando aquela
mala de rodinhas, preparando-se para fazer uma surpresa para a família, cheia
de vida.
Elin coloca luvas de látex, levanta a mala e a coloca em cima da mesa.
Vasculhando seus conteúdos, se depara com itens tradicionais de viagem.
Várias saídas de praia feitas de seda, com pouco tecido, decotes generosos,
fendas nas laterais. Elin reconhece imediatamente aquela estampa chevron das
revistas — Missoni. Bem cara. Percebe-se logo que o restante das roupas
também é caro: uma mistura meio hippie de blusinhas de tricô com saias de
algodão texturizado e shorts.
Aquilo lhe dá mais informações sobre quem Bea era como pessoa. Uma
mulher bem-sucedida e organizada. No controle.
Ainda assim, algo a incomoda. Elin vasculha a mala mais uma vez. Então,
percebe: nenhuma roupa de banho. Por que alguém viria a um retiro como esse
e não traria roupas de banho? Pode ter sido um descuido, mas também pode
sugerir que Bea fez as malas às pressas, e estava, de alguma forma, distraída.
Ela então pensa em como Bea avisou a Tom apenas ontem que estava vindo,
e na ligação que ele a entreouviu fazendo. Repassa tudo aquilo na cabeça,
novamente atormentada pela sensação de que existe uma outra narrativa
correndo em paralelo ao que ela já sabe.
A essa altura, não há como dizer se é importante para o caso ou não, mas é
algo que a está incomodando.
Elin coloca todas as roupas de volta ao devido lugar, peça por peça.
Está quase acabando quando ouve seu celular apitar: uma mensagem de
Rachel.
Terminamos por aqui. Você pode descer quando terminar aí?
Elin digita uma resposta e está prestes a fechar a mala quando nota uma
agenda dentro da rede que ca na parte interna da tampa da mala. Pela
aparência gasta, é evidente que foi bem usada. Bea, assim como Elin, ainda
prefere o papel ao digital quando se trata de fazer anotações.
A detetive folheia as páginas, seu olhar indo direto para o calendário. Está
meticulosamente preenchido, com uma letra bonita e de nida, exceto pelos
últimos dias, em branco. Seguindo adiante, encontra anotações de inúmeras
reuniões. Só quando chega à última página é que Elin encontra algo que
captura seu interesse: dois sites.
Não são os sites em si que chamam sua atenção, mas a maneira como foram
escritos. A letra, garranchada, foge totalmente do estilo organizado que aparece
no resto da agenda, e os endereços estão escritos em diagonal na página,
sublinhados diversas vezes.
Com certeza é a caligra a de Bea, pensa ela, comparando o formato das
letras.
www.fcf1.com, www.localhistory.org
Elin tira uma foto com o celular e coloca a agenda de volta em seu lugar.
Tanto os sites quanto a distração na hora de fazer a mala talvez não
signi quem nada, mas, mesmo assim, Elin começa a sentir alguma coisa
ganhando vida — aquela sensação de movimento que se manifesta quando um
monte de perguntas acumuladas começam, nalmente, a ser respondidas.
24
***
A faxineira vai se afastando do chalé com seu carrinho, e Elin fecha a aba do
navegador. Talvez tenha razão de achar que o clima pesado daquele lugar não
venha única e exclusivamente daquela rocha: talvez esteja no chão em que estão
pisando.
29
Hana vai até a varanda com uma xícara de chá morno. O sol está quase
desaparecendo no horizonte, mas continua tão abafado quanto algumas horas
atrás.
— Ei — chama Caleb.
Ele está sentado na beira da piscina, com os pés dentro d’água. Grandes
porções de protetor solar derreteram de suas pernas: uma camada delicada e
gordurosa repousa sobre a água. Há garrafas de cerveja espalhadas ao seu redor
e mais uma em sua mão. Ele olha para ela. Seus olhos estão vermelhos e
inchados.
— Foi mal, eu não sei mais o que fazer.
— Faz total sentido. — Ela coloca a xícara de chá sobre a mesinha a alguns
passos dali e se senta. — Você está em choque. Estamos todos.
— É que são tantas perguntas… Por que ela veio até aqui e não me avisou?
Não consigo entender. — Ele toma um gole da cerveja. — A surpresa eu até
entendo, mas não seria para mim. Fico pensando em todas as mentiras que ela
deve ter me contado para manter toda essa farsa.
Hana assente.
— É normal se fazer essas perguntas quando algo assim acontece. Eu me z,
com o Liam, não conseguia parar. Mas vai melhorando com o tempo.
— Você acha mesmo? — Caleb olha em seus olhos. — Já faz mais de um
ano que o meu pai morreu e tem dias que são piores do que todos os outros.
Ao se inclinar para trás, ele acaba derrubando um pouco de cerveja. O
líquido amarelado se derrama sobre a lajota, formando pequenas bolhas.
— Nossa, foi mal, eu não fazia ideia.
Ele dá de ombros, pega a garrafa e leva até a boca.
— Foi uma merda. Inesperado. Ele estava começando a colocar a vida nos
trilhos depois de uns anos bem ruins, e aí puxam o tapete dele…
Caleb para de falar e os dois olham para cima, ouvindo passos. Seth aparece
na soleira da porta.
Ele tinha trocado de roupa depois de nadar. Estava todo engomadinho: uma
camisa de linho branco e uma bermuda azul bem passadas. O cabelo penteado
para trás.
— Vou até o restaurante. Alguém quer alguma coisa?
— Eu, não — responde Caleb. — Hana?
— Estou bem, obrigada.
Seth hesita por um instante, como se quisesse dizer algo, mas apenas
aquiesce e volta para dentro do chalé.
Quando ele está longe o bastante, Caleb balança a cabeça.
— Seth não consegue nem ngir, né? Todo arrumado desse jeito, como se
nada tivesse acontecido, ainda em clima de festa.
— Sei lá… As pessoas têm jeitos diferentes de lidar com as coisas. A Jo
comentou mais cedo que ele tem di culdade de se abrir.
Caleb solta uma risada.
— Quando alguém diz isso eu sempre penso que é só uma desculpa
conveniente para fazer o que bem entender. Gente como ele não se deixa
incomodar por nada.
— Gente como ele? — pergunta Hana, embora possa imaginar o que ele vai
dizer pelos comentários que deixou escapar desde que o grupo chegou à ilha.
Suas opiniões estavam bem claras.
— Gente mimada, privilegiada, acostumada a pisar nas pessoas. Bea dizia a
mesma coisa, e ela estava certa.
Bea dizia a mesma coisa.
— Como assim?
Ele dá de ombros.
— A Bea não era uma grande fã dele, podemos dizer assim, mas não acho
que ela cou surpresa quando eles começaram a namorar. Ela achava que os
dois combinavam, o Seth e a Jo.
Hana ca quieta por um instante, sem saber o que dizer.
— Não tenho certeza disso, eu lembro que a Bea cou preocupada quando
eles começaram a sair. Por causa da história das drogas.
— Isso foi antes da discussão. Eu acho que foi ali que a Jo nalmente
mostrou quem ela é de verdade.
Caleb ca mexendo os pés dentro d’água. O movimento produz pequenos
círculos que se expandem.
— A discussão sobre o cancelamento da viagem? — pergunta Hana.
— Não, antes disso. — Caleb arqueia a sobrancelha. — Você não cou
sabendo?
— Não. Quando foi isso?
— Faz algumas semanas. A Jo foi lá em casa e elas começaram a discutir. Foi
uma briga bem feia, pelo que deu pra ouvir. A Bea acabou deixando a Jo
falando sozinha. — Ele dá de ombros. — Eu tinha certeza de que tinha sido
por isso que a Bea cancelou. Não estava a m de um segundo round. Eu
achava que, em parte, a viagem para os Estados Unidos era uma maneira
inteligente de escapar dessa.
— A Bea não chegou a te falar sobre o que foi essa discussão?
— Não, mas eu quei com a impressão de que a Jo cou pegando no pé
dela, rebatendo argumento atrás de argumento, só por inveja.
— Da Bea?
— É. A Bea nunca chegou a comentar, mas acho que isso era parte do
motivo de ela nunca ter feito nenhum esforço para manter contato. Sim, ela
estava sempre ocupada, mas acho que era mais uma desculpa para que não
precisasse car fazendo aquilo.
— Fazendo o quê? — A voz de Hana sai trêmula.
Ela se pergunta se Bea também pensava o mesmo a seu respeito — que a
irmã tinha inveja —, porque era verdade. Às vezes, também sentia inveja de
Bea.
— Essa coisa de car se diminuindo para que as outras pessoas se sentissem
melhor. Para proteger seus egos frágeis. Principalmente outras mulheres. Ela
nunca achava que podia ser quem era, porque aquilo fazia as pessoas se
sentirem ameaçadas.
Ele tem razão, pensa Hana, cando vermelha, re etindo sobre seu próprio
trabalho, os comentários sussurrados e sarcásticos entre suas superiores. Hana
costumava se perguntar com frequência se algumas mulheres eram
programadas para invejar o sucesso de outras: um mecanismo evolutivo que se
deve domar ou reprimir e, se não for capaz de fazer isso, ignorar. Ela também
carrega essa culpa.
Caleb dá mais um gole na cerveja.
— Acho que a Bea cava mais feliz quando não estava com a família. Eu sei
que é uma coisa horrível de se dizer, mas é verdade.
31
***
Caminhando pelo caminho de volta ao chalé, Elin está quase pegando o desvio
à esquerda quando aparece alguém, saindo das sombras.
Ouve-se um barulho sutil de passos no chão. Seus pensamentos vão para a
gura que ela viu no meio do mato.
— Elin?
Farrah.
— Achei que você tinha voltado para o chalé.
— Fui dar uma caminhada. — Com a respiração pesada, Elin passa a mão
no cabelo, imediatamente imaginando como deve estar sua aparência, o cabelo
todo desgrenhado e soltando do rabo de cavalo, seu rosto suado e vermelho.
Ela força um sorriso. — E você? Veio acompanhar o Will?
— Não, eu ia, mas…
Ela hesita, e Elin nota uma coisa que não havia percebido em meio ao seu
constrangimento: Farrah está com o rosto vermelho, e seus olhos estão
molhados. Ela é acometida pelo pensamento de que a cunhada havia chorado,
mas decide ignorá-lo.
— Desculpa pelo que aconteceu mais cedo — diz Farrah, quebrando o
silêncio. — O Will está estressado por causa do prêmio e, como eu já te disse,
entro no modo irmã protetora e começo a defendê-lo.
— Não tem problema. — As palavras de Farrah neutralizaram na mesma
hora a atmosfera de constrangimento. Elin re ete sobre como deve ter sido
para eles quando ela se levantou da mesa. — Eu é que peço desculpas, não
devia ter jogado o clima pra baixo bem no meio do jantar…
— Deixa pra lá. Foi um dia difícil para todo mundo.
Farrah sorri. As duas falam por mais alguns instantes, e então a cunhada
olha para o relógio.
— En m, já está tarde, é melhor eu deixar você voltar. Meu irmão vai
mandar uma equipe de busca se continuarmos aqui conversando.
Após se despedirem, Elin começa a descer pelo caminho. Andou apenas
alguns metros antes de avistar uma gura no topo das escadas que levam até o
pavilhão de yoga. Ela se vira, confusa. Farrah não teria como chegar lá em cima
tão depressa…
Olhando para cima, descobre que está certa: Farrah ainda está subindo pelo
caminho.
Elin permanece parada, observando, e algo curioso acontece: em vez de
seguir em frente, a gura ca imóvel, esperando.
Esperando Farrah?
Sua suposição está correta. Alguns minutos depois, quando Farrah chega ao
nal dos degraus, ela e seja lá quem for que está parado ali se falam brevemente
e depois seguem subindo juntos os degraus.
Demora alguns segundos até que se dê conta. Elin se lembra da hesitação de
Farrah quando perguntou se ela havia acompanhado Will de volta.
Será que aquele pedido de desculpas tinha sido apenas uma distração? Será
que Elin quase a havia agrado com alguém com quem a cunhada não queria
ser vista?
Ela sente uma pontada amarga de decepção. Com a Farrah é sempre assim:
dois passos para frente, um para trás.
Levando seu cartão até a fechadura do chalé, Elin não consegue não se
sentir muito ingênua, como se Farrah tivesse acabado de mentir bem na sua
cara.
32
Dia 3
Na manhã seguinte, Elin acorda num susto após uma péssima noite de sono.
Apesar do brilho intenso dos raios de sol que invadem seu quarto, fragmentos
de um sonho ainda persistem: ela correndo por uma oresta escura, arbustos
pinicando seu rosto e suas roupas…
— Ei — diz Will, repousando um dos braços em cima de sua barriga. —
Está tudo bem. Foi só um sonho.
— Horrível. Foi um desses hiper-realistas — contou ela, esperando a
respiração se acalmar. — Provavelmente só estou nervosa, é o meu primeiro
caso sério depois de tudo, e ainda teve essa coisa do Twitter, além dessas
histórias sobre a ilha. — Virando a cabeça para encontrar os olhos dele, ela
acrescenta: — Desculpe por ter cado falando disso ontem à noite.
Will tira o cabelo do rosto dela.
— Está tudo bem. Eu é que não deveria ter cado tão ofendido com o
assunto. É só que o passado da ilha… é um ponto meio sensível.
— Por quê?
Ele dá de ombros.
— Principalmente por causa da imprensa. No lançamento, mesmo depois
que os jornalistas nos prometeram que falariam apenas sobre o retiro, alguns
conseguiram encaixar referências aos assassinatos de Creacher e à escola.
— Mas eu não devia ter insistido naquilo. Acho que, às vezes… — Elin
para, sentindo di culdade para dizer aquelas palavras. — Às vezes eu me
incomodo com a relação que você tem com a Farrah. Me faz perceber algo que
eu não tenho.
— Com o Isaac?
— Aham. O fato de ainda não sermos próximos machuca, além de car
sabendo que nosso pai entrou em contato com ele, mas não comigo. — Ela
sente a garganta se fechando. — Ele obviamente cou com aquela história de
covarde na cabeça.
Will a puxa para mais perto.
— Não deixa isso mexer com você. Ele não é um bom pai. Que tipo de pai
culparia a lha por ela ter cado paralisada quando presenciou algo
traumático?
— Eu sei, mas parte de mim ainda acha que o que ele disse vai acabar se
provando a verdade, que alguma coisa vai acontecer aqui e aí eu vou car
travada.
— Elin, se você está tendo esse tipo de pensamento, talvez você não esteja
pronta…
Ele para. Há uma batida na porta. Nenhum dos dois faz menção de se
levantar. Elin se acomoda em seu abraço.
Will dá um suspiro.
— Entendi a mensagem. Eu vou…
Soltando-se delicadamente dela, ele sai da cama e veste uma camiseta
enquanto caminha em direção à porta.
Uma conversa sussurrada ocorre.
Quando volta para o quarto alguns minutos depois, a expressão no rosto de
Will é funesta.
— Era a Farrah. Um hóspede que estava no chalé da ilhota desapareceu.
Uma pessoa chamada Rob Tooley.
***
O acesso à ilhota é feito por uma ponte de madeira que balança à medida que a
atravessam: tábuas nas oscilam sob os pés de Elin.
Ela tensiona o corpo. Cada movimento aumenta os espaços entre as tábuas,
oferecendo vislumbres do mar resplandecente e das pedras mergulhadas nele.
— Tudo bem? — pergunta Farrah, um metro adiante. — O acesso não é
fácil, mas faz parte da atmosfera de isolamento.
— Isso é que é isolamento. Eu nem consigo ver a casa.
Para se equilibrar, Elin se segura com força na corda que serve de corrimão,
enquanto Farrah salta da ponte para a ilhota. Tudo que consegue ver é uma
trilha estreita que se embrenha por um matagal de enormes pinheiros e
carvalhos maduros.
— Foi assim que Will a projetou — explica Farrah. — Privacidade total da
ilha principal.
Elin sai da ponte e acompanha Farrah pela trilha. Após cerca de cem
metros, a parede de vegetação se abre, revelando uma versão maior do chalé. O
azul-pastel das paredes externas é um tom mais claro que o céu, de modo que a
casa parece se fundir ao mar e a ele, como se não tivesse limites.
— Acho que seria melhor colocarmos o protetor nos sapatos, só por
precaução.
Assim, Elin tira dois pares da bolsa e entrega um para Farrah. Após colocá-
los, Farrah segue em direção à porta. Faz uma barulheira quando abre, e as
duas entram em um vasto espaço aberto, projetado para relaxar — uma
enorme cama baixa à direita, sofás à esquerda.
O olhar de Elin é atraído pelas portas de vidro nos fundos, que levam para
um deque de madeira com vista para o oceano. Num canto, nota um corrimão
feito de aros entrelaçados — uma escada que leva direto para o mar. O lugar é
um oásis idílico e privativo, o lugar perfeito para passar uma lua de mel,
embora seja grande demais para apenas uma pessoa, pensa ela, sentindo uma
pontada ao imaginar Rob chegando sozinho ao chalé.
Conforme ela vai explorando a casa, logo de cara ca evidente porque a
faxineira cou preocupada. A cama ainda está feita, mas é como se fosse o olho
de um furacão, a única coisa que não está revirada. A porta do guarda-roupa à
sua direita está escancarada, algumas roupas jogadas de qualquer jeito por cima
das prateleiras.
Uma bolsa de viagem está virada de cabeça para baixo ao lado da cama, com
livros espalhados ao redor. Elin vê um pequeno álbum de fotos jogado e aberto.
Após andar com cuidado para não pisar nos livros, coloca um par de luvas e
começa a folhear as páginas.
Polaroids.
Fotogra as, a maioria sel es, de duas pessoas, que ela imagina serem Rob e
a ex-noiva, vivendo a primeira onda da paixão, seus olhos brilhando, os dois se
abraçando.
Tomando cuidado, Elin vasculha o lugar — o banheiro, a cozinha — e
depois segue em direção à porta dos fundos, que dá acesso à varanda. O sofá-
cama, a mesa e as cadeiras no centro estão intactos e o mar não revela nada
além de seus tons de azul.
— E aí? O que você acha? — quer saber Farrah, quando Elin volta para
dentro, seus passos fazendo o piso estalar.
— Difícil dizer. Não tem como saber se foi ele ou outra pessoa que fez essa
bagunça.
Entretanto, olhando ao redor mais uma vez, seu olhar se detém nos cabos
que escapam de um multiadaptador em formato de cubo encaixado na parede.
Não tem nenhum dos aparelhos que se esperaria ver ligados a eles — um
celular, um notebook, talvez uma câmera.
Será que foi um roubo que deu errado? Será que Rob teria ido até a ilha
principal e arrumado briga com alguém?
— Costuma haver roubos por aqui?
Farrah faz um sinal com a cabeça em negativa.
— Não que eu sabia. Você acha que foi isso que aconteceu?
— É possível. Uma pessoa pode ter vindo até aqui sem que ninguém tenha
visto. Em especial levando em conta o isolamento. E ainda mais à noite. — O
olhar de Elin se desvia de Farrah e cai sobre o mar.
Não consegue se livrar da sensação crescente de incômodo. Privacidade é
algo maravilhoso, porém o isolamento tem seu preço. Se alguma coisa
acontecesse ali, ninguém veria nem ouviria nada.
— Tem alguma câmera de segurança aqui?
— Não, mas estou começando a achar que talvez a gente deva considerar
isso, já que… — Farrah para. — Espera, alguém está me ligando.
Elin assente e olha para a imensidão do mar à sua frente. Alguém poderia
sair dali para onde quisesse usando um barco — direto para o meio do oceano,
sem que qualquer pessoa na ilha principal visse nada.
Farrah retorna, com uma ruga de preocupação se formando em sua testa.
— Era um funcionário da equipe de esportes aquáticos. Alguns
equipamentos de mergulho desapareceram.
O pulso de Elin acelera.
— Há quanto tempo?
— Pelo visto, estava tudo lá quando eles encerraram as atividades ontem à
noite. — Farrah faz uma pausa. — Eles também viram uma mochila boiando
na água.
— Vou precisar dar uma olhada nisso.
Ela pega o celular para ligar para Steed, sirenes de alarme soando na sua
cabeça. As palavras de Michael Zimmerman ecoam em seus pensamentos: Tem
alguma coisa podre neste lugar.
Quanto mais ela ca na ilha, menos consegue evitar a conclusão de que ele
está certo.
34
***
Somente uma parte do rosto está visível, pálida com alguns pontos
acinzentados, um respirador en ado metade para dentro e metade para fora da
boca. O coração de Elin acelera quando ela dá zoom na lente embaçada da
máscara e vê os olhos do homem abertos, vidrados e mortos.
O capuz da roupa de mergulho, levemente torto, está apertando seu rosto,
mas qualquer dúvida que Elin pudesse ter sobre a identidade do homem
desaparece quando ela vê sua barba escura.
Seth.
Seu estômago se revira enquanto ela tenta se lembrar das poucas palavras
que os dois trocaram. Não haviam se falado muito — ele parecia não saber
muito bem como lidar com as emoções que gravitavam ao redor da morte de
Bea, mas sua impressão geral tinha sido de vitalidade, de força. De alguém no
auge da vida. Era quase impossível conciliar esta imagem com a da foto.
Dois integrantes de um mesmo grupo, mortos em tão pouco tempo. Quais
eram as chances?
— Você o reconhece também? — pergunta Tom.
— Sim. Ele faz parte do grupo… Bea, a mulher que caiu. Seth é o
namorado da irmã dela. — Elin demora a perceber que ele tinha dito
“também”. — Você se lembra dele de ontem?
— Não exatamente. Pra ser sincero, quando você e eu conversamos, eu
sabia que você falaria com o Seth, mas aquela não era a primeira vez que eu o
via. Nós já nos conhecíamos. Ele já tinha vindo ao retiro algumas vezes.
— Era um hóspede frequente?
— Acho que não o descreveria assim. Não sei se você sabe, mas a família do
Seth é dona desta ilha. — Uma pausa. — Ronan Delaney. Pouca gente sabe
disso. O retiro faz parte de uma rede de hotéis, então ele não está, de fato,
envolvido no dia a dia.
— Eu não sabia. — Por que ninguém da família Leger mencionou isso? É
lógico que alguém deveria ter falado quando conversamos. — Quando o Seth vem
até a ilha, ele costuma mergulhar?
— Costuma, e é isso que eu estou achando o mais estranho, o fato de ele
estar aqui sozinho, de ter se colocado nessa situação — responde Tom, um o
de água escorrendo de seu cabelo pelo rosto. — Mergulhadores experientes têm
o protocolo profundamente internalizado… Você nunca mergulha sozinho.
Seth sabia disso, e geralmente levava um instrutor ou um amigo junto. — Ele
engole em seco. — Eu também não gostei da posição dele lá embaixo, assim,
de lado. Depois de um acidente, em geral são os cilindros de oxigênio que
cam mais embaixo, seguidos pela parte mais pesada do corpo.
Ele hesita por um momento, como se estivesse com di culdade de falar o
que estava pensando, ou considerando se deveria dizer mesmo.
— Mais alguma coisa? — pergunta Elin, com delicadeza.
Tom assente.
— A válvula do tanque de oxigênio está fechada.
— Isso teria cortado o fornecimento de ar?
— Exato. — Ele contrai todo o corpo. — Ele teria sufocado.
— É possível fazer isso a si mesmo, de forma acidental? — questiona Steed,
ainda olhando para a imagem.
— Não, acho que não, e mesmo que tivesse feito isso, ele teria corrigido a
tempo.
Elin re ete sobre as palavras dele, o tom de sua voz, uma conclusão
começando a se formar dentro de seu peito. Tom não está dizendo nada de
modo explícito, mas ela está captando a essência da coisa.
— E o capuz… — Tom pega o celular de volta, toca na tela e depois
devolve à detetive. — É como se tivesse sido puxado para trás.
Elin olha para a imagem: não há nada de natural nos vincos e nas dobras do
tecido. Alguém ou alguma coisa o havia puxado.
37
— Preciso fazer umas ligações para trazer a equipe certa para cá, mas, enquanto
isso, dá pra deixar um barco aqui? Para garantir que ninguém chegue perto? —
orienta Elin, rápido.
Mesmo debaixo d’água, preservar a cena de um crime é fundamental. Se
não foi um acidente e as provas forem alteradas, toda a investigação pode ser
comprometida.
— É claro. — Tom concorda com a cabeça, seu rosto ainda lívido. —
Qualquer coisa que eu possa fazer para ajudar.
Steed olha para a praia.
— Tem algum lugar além dessa praia onde poderíamos trabalhar?
Tom pensa por um momento, e depois faz que sim com a cabeça mais uma
vez.
— Tem uma cabana no pé da falésia. Não sei se está muito limpa, mas é
bem isolada.
— Obrigada — diz Elin, devolvendo o celular de Tom e procurando o dela,
mas, enquanto faz isso, o aparelho toca.
É Farrah.
A cunhada nem a cumprimenta:
— Tenho novidades — começa Farrah. — O homem que desapareceu não
estava tão desaparecido assim, no m das contas. Pelo jeito ele estava
mergulhando de snorkel do outro lado do resort. Estava com o celular, mas o
aparelho estava desligado. Só ligou de volta faz uns vinte minutos e apareceu
um monte de mensagens. Acho que cou um pouco ofendido pelo amigo ter
achado que o pior tinha acontecido. Disse alguma coisa como “eu a amava,
mas não tanto assim…”
— E a bagunça no quarto?
— Estava procurando pelo case à prova d’água do celular.
— De fato uma boa notícia. — Elin hesita por um momento, relutando em
estragar a alegria de Farrah. — Mas, infelizmente, tenho que responder com
uma má notícia. Aquela mochila que foi avistada… Nós encontramos um
corpo perto dela.
***
— Eu sei que ela não está exatamente à altura das outras dependências do
retiro, mas será que serve? Não sei quando foi que alguém abriu esse lugar pela
última vez — diz Tom e em seguida se vira, seus pés levantando uma nuvem de
poeira.
Steed começa a tossir, cobrindo a boca com a mão.
— Eu chutaria alguns anos — consegue dizer, meio engasgado.
Elin olha ao redor. O contraste com a cabana de esportes aquáticos na praia
principal é gritante. Uma umidade almiscarada e salina impregna a atmosfera,
o aroma rançoso de uma construção desativada na praia ampli cado pelos
detritos — boias gastas, coletes salva-vidas, um velho rádio em cima de um
frigobar todo manchado. Todas as janelas, quadradas, estão riscadas e cobertas
de limo, deixando apenas um pequeno círculo de vidro no centro de cada uma
ltrando a luz do sol.
— É bem isolada, o que é o mais importante. — Encrustada ao pé da
falésia, acima da faixa das marés, a cabana é o lugar perfeito, longe dos olhares
curiosos do retiro. — Para que ela é usada agora?
— Tenho quase certeza de que foi usada para guardar coisas da antiga escola
e, depois, da ONG que tinha aqui… — Tom para de falar, seu rádio
comunicador chiando. — Desculpem, preciso atender.
— Vai lá.
Quando Tom deixa a cabana, o celular de Elin apita. É uma mensagem de
Will.
Como estão as coisas?
Complicadas, ela digita de volta. Não posso falar muito, mas toma cuidado.
Os três pontinhos cam dançando enquanto ele responde, até que: Ok.
Estou no prédio principal. Vou ficar aqui até você entrar em contato.
Os três pontinhos aparecem novamente, mas, depois, desaparecem, como se
ele tivesse começado a escrever alguma coisa mas acabou desistindo.
— E aí, o que a sua intuição está dizendo sobre esse caso? — murmura
Steed, enquanto ela guarda o celular.
— Não dá pra saber nada até tirarmos o corpo de lá, mas, pelo que Tom
falou, não estou gostando nada disso. E ainda tem o fato de que ele estava
sozinho…
— E a mochila? — Steed ca na ponta dos pés para examinar uma
prateleira abarrotada. — Estava bem perto de onde o encontramos, talvez
explique por que ele foi até lá. — Ele muda de assunto, esticando o pescoço:
— Puta merda, parece que alguém morou aqui uma época. Tem um fogareiro,
um tapete, um monte de papelada antiga… — Steed estica o braço e um
pedaço de papel utua até o chão. Ele o recolhe e ca examinando. — É um
documento… Fala sobre a transformação da ilha numa reserva natural.
Elin olha por cima do ombro dele.
— Ah, já ouvi falar disso. Antes do LUMEN, os ambientalistas zeram uma
campanha para conservar este lugar, mantê-lo intocado.
Seu instinto lhe diz que aquela teria sido a escolha certa. A ilha parece estar
mandando uma mensagem muito clara a todas as gerações que habitam este
lugar: Não queremos vocês aqui.
Steed pega outra coisa.
— Achei uma foto. Parece a escola.
Elin ca arrepiada. A foto mostra um grupo de garotos en leirados na
frente da escola, os professores atrás deles, vestindo jalecos compridos. Tem
alguma coisa estranha no rosto das crianças: uma ausência de emoção muito
perturbadora. Ela ca pensando em todos os rumores que ouviu, nos
comentários de Zimmerman sobre o artista que havia estudado no colégio.
— Olhando para esses meninos, provavelmente a melhor coisa que
aconteceu com eles foi aquele incêndio.
— Antigamente, um monte de coisas que aconteciam nessas escolas passava
batido — comenta Steed, que continua averiguando o lugar. — Caramba, tem
até uma caneca velha aqui… Que lugar estranho pra se entocar. — Ele sorri.
— Mesmo para um amante da natureza.
Elin concorda. Acha aquela ideia tenebrosa: uma pessoa secretamente
alojada ali, sem que ninguém a visse. Ela muda de assunto.
— Alguma novidade sobre a equipe?
Eles estavam aguardando a unidade de apoio marítimo da polícia,
mergulhadores especializados em resgatar corpos debaixo d’água, fundamentais
para garantir que eles serão removidos com cuidado, evitando o
comprometimento das provas.
— Na verdade, sim, a sala de controle ligou alguns minutos atrás. — Steed
faz uma pausa. Pela maneira como ele abre a boca e depois a fecha, Elin já sabe
que o que vai dizer não será bom. — Não gosto de ser portador de más
notícias, mas eles não vão conseguir mandar ninguém nem tão cedo pra cá.
Parece que estão envolvidos numa operação com a Guarda Costeira um pouco
longe daqui.
Elin balança a cabeça, já imaginando o que aquilo signi ca para a
investigação. Existe um equilíbrio delicado numa situação como aquela, entre
garantir que o corpo seja preservado e se assegurar de que não se percam
evidências por carem muito tempo submersas. Se a unidade de apoio não
chegar logo, as provas podem acabar comprometidas.
— Vou falar com a Anna primeiro, mas acho que vamos ter que buscar o
corpo e a mochila agora mesmo.
Saindo da cabana, Elin começa a se preparar. Com uma equipe inexperiente
e, ela precisava admitir, provavelmente apavorada, aquilo não vai ser fácil, mas
sua mente está operando num nível muito superior ao que vinha há meses, e
ela sente uma mistura estranha de emoções: o óbvio — medo e ansiedade com
a situação —, mas uma outra coisa inesperada também.
Empolgação. Uma sensação potente e positiva que deixa seu corpo
borbulhando por dentro.
Ela está de novo no controle de uma investigação. Tudo que está por vir depende
dela.
38
***
Enquanto eles caminham pela praia, Elin segue lendo o artigo sobre Ronan
Delaney. Após os primeiros parágrafos, há uma estilosa foto pro ssional:
Ronan de camisa branca, o colarinho desabotoado.
— Parece com o Seth, não é? — diz Steed, olhando por cima do ombro
dela.
— Parece mesmo.
Apesar dos cabelos grisalhos de Ronan, a semelhança com Seth é evidente:
têm os mesmos traços fortes no rosto, a mesma estrutura corpulenta. Mas uma
coisa é diferente. Ainda que a expressão de Ronan esteja neutra, um leve sorriso
em seu rosto, seu olhar exibe uma característica que ela não esperava ver depois
de ter conhecido Seth: vulnerabilidade.
Ela precisava de mais informações.
Ao chegar aos degraus que levam até o prédio principal, Elin para.
— Um segundo — pede. — Preciso conferir uma coisa.
Ela acrescenta o nome do retiro ao nome de Ronan na ferramenta de busca.
Uma enxurrada de matérias sobre a compra da ilha aparece nos resultados.
Todas rea rmam o que Tom havia lhe dito: o retiro foi passado para um grupo
hoteleiro conhecido por seus empreendimentos de luxo na beira da praia.
Elin entra e sai rapidamente do artigo seguinte — um comunicado genérico
à imprensa — e está quase desistindo quando um dos resultados chama sua
atenção.
— O que você descobriu? — pergunta Steed.
Ela inclina a tela para que ele também possa ler.
Levando em conta quem é o novo dono da ilha, com certeza será uma
palhaçada, mas não uma surpresa. Ouvi boatos de que ele está envolvido
com um monte de empresas suspeitas. Esse cara é um predador.
Vale a pena dar uma conferida nos outros empreendimentos dele.
***
Parada a poucos metros de onde o corpo de Bea Leger foi encontrado, Elin
desvia o olhar das manchas de sangue residuais e observa a parede da falésia em
si. Ela se ergue brutalmente em direção aos céus, estonteante como sempre,
cheia de fendas abertas no calcário, rachaduras e entalhes esculpidos pela ação
da natureza.
Onde ela estava quando viu aquilo?
Mas era quase impossível ser precisa; tudo que sabia era que tinha visto
aquilo depois que Rachel havia começado a fotografar o corpo de Bea.
Talvez ela estivesse numa posição um pouco mais elevada, pensa, à esquerda
de Rachel — conseguia ver onde a falésia começava a fazer uma curva na
direção da enseada.
Elin sobe pela esquerda e testa diferentes ângulos e posições, mas tudo que
consegue ver são vestígios de natureza: bolsões de vegetação, gramados,
samambaias saindo pelas ssuras da rocha. Empoleirado na ponta de um dos
penhascos, um cormorão, com suas asas abertas.
Ela dá alguns passos para trás, frustrada, começando a duvidar de si mesma.
Porém, assim que olha para o lado, Elin pisca os olhos, repentinamente cega.
Uma luz muito intensa, idêntica à que tinha visto anteriormente.
Desta vez, sabe o que está procurando, de modo que não faz nenhum
movimento drástico em nenhuma direção para não correr o risco de perder de
vista o que está produzindo aquele re exo. Em vez disso, ela inclina
suavemente a cabeça para cima, o su ciente para que a luz desapareça.
Ali. Seu coração acelera. Está bem ali, pendendo da pedra.
Um aro de metal, sua superfície lisa e prateada re etindo a luz do sol.
Um grampo de escalada.
A mão de Elin treme ao puxar o celular e tirar uma foto.
Analisando o lugar em que ele está, a detetive começa a juntar os pontos na
mente, um a um: o mosquetão na bolsa de Seth; a crença de Maya de que alguém
havia saído do chalé; e agora isso: um grampo, exatamente embaixo do lugar de
onde Bea caiu.
Seria possível que a queda de Bea não tenha sido um acidente?
Ela estava mesmo com a sensação de que havia algo estranho nas imagens
da queda captadas pelas câmeras de segurança.
Assim, fechando os olhos, repassa tudo na cabeça. Conforme as imagens vão
aparecendo, se dá conta de que o que viu — a echarpe caindo e Bea se
inclinando para pegá-la — talvez não tenha sido, necessariamente, a narrativa
exata. Ela havia unido esses dois acontecimentos porque faziam sentido juntos.
Criavam uma associação de causa e efeito.
Mas talvez não fosse isso. A echarpe pode realmente ter caído, mas Bea pode
ter se inclinado por um motivo diferente. Por causa de uma pessoa.
Elin analisa o grampo, sua localização. Um calafrio lhe sobe pela espinha. É
uma ideia ousada, ainda que plausível; talvez Seth estivesse escalando a falésia e
tenha, de alguma forma, chamado a atenção de Bea. Lembra-se da marca na
grama descoberta por Leon.
Talvez não tenha sido Bea quem deixou algo cair, mas Seth, usando isso
como desculpa para simular uma queda. Ele pode ter pedido ajuda, Bea pode
ter visto seja lá o que for que ele havia derrubado, con ado nele e, quando se
inclinou para pegar…
Sua mente não quer completar aquele pensamento, mas completa: ele pode
tê-la puxado para baixo. As imagens da câmera, granuladas, não mostram nada
abaixo da metade superior do parapeito de vidro, e o corpo de Bea estava
tapando a maior parte dela, de modo que, se Seth esticou a mão para cima, isso
não apareceria.
Porém, enquanto ca matutando a respeito daquilo, ela re ete sobre a
logística da situação toda. Para enganar Bea, ele teria que esconder o
equipamento de escalada. Isso até não seria tão difícil, pensa, bastaria estar
usando roupas folgadas, especialmente à noite, mas ele não poderia
simplesmente car pendurado ali. Teria que ter estado numa posição
convincente de alguém que sofreu uma queda.
Dando um passo para o lado para ter uma visão mais de per l da falésia, ela
avista uma pequena plataforma a cerca de um metro de distância do grampo.
O calafrio agora gela seu peito.
De nitivamente, a plataforma é grande o su ciente para que Seth tivesse se
apoiado nela, pedido ajuda para Bea e então a puxado para a morte quando a
cunhada lhe estendesse a mão.
Quanto mais Elin repassa a hipótese na cabeça, mais plausível lhe parece.
Bea, talvez meio bêbada, com a percepção alterada, teria partido em seu
socorro sem perceber nada de estranho na situação.
Elin balança a cabeça. Se realmente foi assim que aconteceu, aquilo tinha
sido muito inteligente. Não era um acidente, e sim um assassinato. Uma ideia
bastante engenhosa — o crime perfeito é aquele que não parece um crime.
Mas qual seria o motivo?
Levando em conta o momento em que aconteceu, deve estar ligado à morte
de Seth. Mas o que Bea tinha a ver com ele?
Não dá para saber, não neste momento, mas, seja lá como for, ainda há
muitas perguntas a serem respondidas. Uma coisa assim requer planejamento.
Se Seth estava envolvido, como levou o equipamento de escalada até lá e onde
está o aparato agora? Um mosquetão, tudo bem, mas o restante das coisas — o
arnês, as cordas — faz volume, teria chamado a atenção àquela hora da noite.
É improvável que ele tenha jogado qualquer coisa no mar, arriscando que a
maré trouxesse tudo de volta ao retiro. Seria mais plausível que tivesse
escondido em algum lugar perto dali. Não perto demais a ponto de ser
encontrado quando a cena do crime fosse examinada, mas também não muito
distante; ele estava sob a pressão de retornar ao chalé antes que alguém sentisse
sua falta.
Elin duvida que ele tenha escondido qualquer coisa na região mais próxima
ao retiro, de modo que só restava a área à sua esquerda, onde a falésia fazia uma
curva na direção da próxima enseada.
Contornando lentamente a falésia, esquadrinha a parede da rocha em busca
de possíveis esconderijos.
Nada muito óbvio, até que percebe um tremendo vão na pedra, de cerca de
um metro de largura, que vai do nível do chão até, mais ou menos, a altura de
sua cabeça. Ela se inclina para a frente e se en a no buraco. O espaço é
apertado, e se estende por uns poucos metros; mal dá para virar o corpo.
Lutando contra uma sensação crescente de claustrofobia, Elin procura
algum esconderijo natural, mas as paredes não lhe revelam nada além de cracas
e protrusões abruptas de pedra.
Depois de fazer mais uma rápida inspeção, decide sair do vão para
continuar sua busca.
Continua contornando a falésia até chegar a uma outra abertura, de um
tamanho parecido com o da anterior, porém mais estreita. E, assim que está
dentro, ela imediatamente vê: um pequeno buraco a cerca de cinquenta
centímetros do chão.
Elin se agacha, coloca um par de luvas e en a a mão lá dentro.
Seus dedos encostam em alguma coisa. Ouve-se o ruído de um material
sendo amassado.
Empurrando a mão ainda mais fundo, sente a adrenalina tomar seu peito
quando alcança uma sacola plástica contendo algo sólido.
44
Com uma puxada incisiva e uma corda marrom e verde escapa da sacola
plástica e cai no chão. Há um arnês metálico no meio dela.
Elin olha para o equipamento não surpresa, mas horrorizada com o
signi cado daquilo tudo: não apenas a con rmação de sua teoria, como
também o grau de cuidado com o planejamento de toda aquela empreitada.
A morte de Bea não foi um acidente.
Aquilo ainda aumentava a probabilidade de estar ligada à de Seth. E o mais
deprimente de tudo é que o motivo provavelmente seriam as drogas.
Mortes sem sentido por causa de um veneno sem sentido.
Após tirar diversas fotos, ela en a de volta no buraco a corda e a sacola,
meio de qualquer jeito.
Era muito pesado para carregar sozinha pelas pedras; precisaria voltar mais
tarde para buscar.
Do lado de fora, Elin tira as luvas. E, enxugando o suor dos dedos na calça,
começa a andar pelas pedras em direção à praia.
Mas só avança poucos metros antes de escutar algo. Um barulho distante,
vindo do alto.
Inclinando a cabeça para cima, ela olha ao redor, mas as pedras e a ponta do
penhasco estão desertas. Apesar disso, Elin tem a estranha sensação de que não
está sozinha.
A cada passo que dá, seu desconforto só aumenta.
Ela está prestes a aumentar a velocidade quando percebe alguma coisa se
movimentando lá no alto.
Parece que é algo na própria pedra que se move, ou melhor: parte dela. Um
pedregulho, despencando em sua direção.
A princípio, ela ca quase surpresa, sentindo uma espécie de
distanciamento. Era como se estivesse assistindo àquela pedra caindo em cima
de outra pessoa, observando tudo com um interesse quase cientí co, à medida
que o pedregulho vai se chocando contra a parede da falésia e minúsculos
fragmentos de pedra se estilhaçam, produzindo sons de deslizamento.
Ela ca ali em pé, imóvel, ainda esperando que a pedra colida num
determinado ângulo e desvie dela.
Mas isso não acontece.
O pedregulho segue despencando.
O tempo parece congelar; cada rotação e baque da pedra contra a parede de
calcário está em uma espécie de câmera lenta agonizante.
Os pelos em sua nuca cam eriçados, mas suas pernas não se mexem, não
fazem o que seu cérebro está mandando.
Sai daí. Sai daí.
45
— Não podemos car aqui — diz Jo, levantando do sofá. — Primeiro a Bea,
agora o Seth.
Ela anda de um lado para o outro, tensa, os músculos de seus braços todos
retesados. Na segunda volta que dá na sala, esbarra na costela-de-adão no canto
com tanta força que as folhas se agitam violentamente e o vaso balança até
quase tombar.
Olhando nos olhos de Hana, Maya tira um cacho de cabelo preto do rosto
de maneira dramática, como se quisesse que ela dissesse alguma coisa, mas
Hana não sabe o quê. Jo tem razão.
Isso é surreal. Realmente não existe outra forma de descrever.
— O que aconteceu foi horrível — comenta Maya, baixinho —, mas não
passa de uma coincidência bizarra, só isso. Acidentes.
— Você acha mesmo? — Jo se vira, seu rosto transbordando de emoções.
— Pensei que você estava sendo paranoica, Han, com aquilo que falou sobre a
queda da Bea, mas agora eu acho que está certa, tem mesmo alguma coisa aí.
— Mas nós sabemos que a Bea caiu, e o Seth, a detetive disse que o
equipamento de mergulho dele… — diz Caleb, de um dos cantos da sala.
Ele esfrega os olhos, exausto daquilo tudo, percebe Hana.
Os olhos de Jo estão muito vivos, brilhando.
— Não — interrompe ela. — Ela não disse isso com todas as letras. Mas,
pelas perguntas que fez, é óbvio que ela não acredita que foi um acidente.
Alguma coisa não encaixa… Não é só o dinheiro, mas o fato de ele ter
mergulhado sozinho, sem falar pra ninguém.
— Eu sei o que você quer dizer — a rma Hana, pausadamente. — Isso é
estranho, ainda mais quando você não conhece bem o lugar. Um risco
tremendo.
Uma expressão esquisita se manifesta no rosto de Jo. Constrangimento?
— O que foi? — pergunta Hana.
Jo encara Hana.
— Eu ia acabar contando pra você de qualquer maneira. O Seth conhece a
ilha. Não era a primeira vez que ele veio aqui. O pai dele… é o dono.
— Nós sabemos. O policial contou — balbucia Caleb.
— Ah. — Jo balança a cabeça, uma expressão estranha em seu rosto.
Quando se encosta na parede, o movimento revela a cicatriz do incêndio. A
única vulnerabilidade em seu corpo saudável.
— Então, por que você não contou pra gente antes? Era pra ser uma grande
revelação no Instagram?
— Na verdade, não — responde ela, baixinho. — Como eu disse…
— Para de mentir — Hana interrompe a irmã, balançando a cabeça,
incrédula. — O Seth está morto e mesmo assim você está mentindo, Jo. E, se é
para ser sincera, vou dizer que acho muito difícil acreditar em qualquer coisa
que sai da sua boca.
Ao dizer essas palavras, ela tem uma sensação libertadora de alívio, por não
se preocupar mais com o que as pessoas pensam a seu respeito e não precisar
mais esconder o que sente de verdade. Talvez devesse ter feito aquilo antes,
pensa, levemente embriagada pela sensação.
Pega de surpresa, Jo arregala os olhos, mas se recupera rapidamente.
— Se eu estou mentindo, então não sou a única.
Sua voz faz Hana sentir calafrios, a precisão gelada de sua dicção.
— Não entendi — diz ela, sua voz vacilante. — Quem mais está mentindo?
— É isso o que eu quero saber. Nos últimos meses, o Seth andou recebendo
e-mails anônimos. Coisas horríveis. Ameaças. Acusações sobre ele e o pai.
Parece esquisito ele receber essas coisas e agora isso acontecer.
Então o olhar de Jo cai sobre Maya, e é neste momento que Hana percebe o
que havia acontecido naqueles últimos minutos: Jo nalmente disse o que
estava tentando colocar para fora desde que começou a andar de um lado para
o outro naquela sala.
— E? — questiona Maya, num tom duro. — O que isso tem a ver com a
gente? — Ela encosta no colar aninhado no vão da base de seu pescoço.
— Bom, eu diria que tem mais a ver com você, Maya.
— Comigo?
Maya encolhe o corpo, seus olhos feito poças escuras, indecifráveis.
— Sim, você. — A sionomia de Jo ca subitamente aguçada; um animal
partindo para cima de sua presa. — Pelo tanto que você cou puta com o Seth
depois daquela história toda do emprego.
Maya hesita por um momento.
— Fiquei mesmo — assume ela, devagar —, mas isso não quer dizer que eu
seja mentirosa. Você meio que me prometeu aquele trabalho, e aí o Seth foi lá e
acabou com tudo. É lógico que eu quei puta.
— Mas não foi só isso, foi? Eu sei o que você fez.
— Sabe o quê? — A voz de Maya sai trêmula.
Jo inclina a cabeça levemente.
— Eu sei que foi você, Maya, que espalhou aqueles rumores sobre a
empresa dele nas redes sociais.
Maya ca toda tensa ao lado de Hana. Silêncio. Tudo que se escuta é o
ronco suave do ar-condicionado.
Ela engole ruidosamente.
— Mas… — Ela gagueja. — Como você descobriu?
— Seu ex. O Sol encontrou o Seth uma noite e abriu o jogo pra ele.
— O Sol contou pra ele?
— Contou. Cada detalhezinho sórdido. — Jo dá uma risadinha sarcástica.
— Preciso admitir que eu nunca teria imaginado isso: logo você, destilando
ódio na internet. Eu não disse nada para a detetive, mas isso me fez pensar. Se
você é capaz de fazer uma coisa dessas, do que mais, exatamente, você seria
capaz?
Maya parece diminuir de tamanho à medida que Jo vai falando, seus
ombros se encolhendo como se o corpo estivesse se recolhendo ao seu núcleo.
Hana percebe que aquele é um exemplo perfeito da maneira como Jo se
comporta: fazendo as pessoas se sentirem menores para que ela possa se sentir
grande.
Mesmo encurralada é capaz de fazer isso, e Hana sabe por que a irmã está
agindo dessa maneira agora; Jo está invertendo a situação. Foi ela quem mentiu
— sobre Bea, sobre a ligação de Seth com a ilha, entre várias outras coisas —,
e, mesmo assim, está falando de algo que Maya fez, para desviar o foco de si.
Hana se levanta e encara Jo.
— Antes que você comece a acusar a Maya, acho que você nos deve algumas
explicações. Já que você está falando sobre enganar pessoas… No dia em que
nós chegamos aqui, um bilhete caiu da sua mala lá no cais. Você começou a
escrever pra mim, se desculpando por alguma coisa… E até agora eu não sei
pelo quê.
Um segundo de silêncio.
— Ah, isso… — diz Jo, rapidamente. — Eu escrevi há alguns meses. Como
eu disse, eu estava me sentindo mal por não ter te apoiado quando o Liam
morreu. Pensei em te escrever, mas aí surgiu essa viagem. Eu ia falar sobre isso
com você aqui, ter uma conversa cara a cara.
Hana ca escutando Jo falar, uma expressão de arrependimento em seu
rosto. Embora esteja dizendo as coisas certas, no tom correto, por algum
motivo, aquilo não está soando direito.
Ela está mentindo de novo. Acabou de ficar sabendo que o namorado morreu e
está mentindo.
46
— Maya, está acordada? — pergunta Hana, seu corpo projetando uma sombra
sobre a prima, deitada na espreguiçadeira.
Ela está vestindo um short jeans e a parte de cima de um biquíni quase da
mesma cor de sua pele, um chapéu-panamá de aba larga enterrado na cabeça.
Nada de resposta.
— Maya? — repete, dessa vez mais alto, uma sutil pontada de medo
começando a se manifestar. Depois de tudo o que aconteceu… Hana inclina o
corpo e sacode o braço da prima. — Maya, acorda!
Finalmente, ela se mexe, acordando. Então se senta agarrando com força as
laterais da espreguiçadeira, as veias de suas mãos saltando.
— Foi mal. — Suas palavras saem meio sussurradas. — Nem percebi que
tinha caído no sono.
Hana se senta de lado numa outra espreguiçadeira, mas é desconfortável —
a estrutura machuca suas coxas. Então, ela joga as pernas para cima e se
acomoda da maneira correta.
— Por que você não me falou a verdade? — pergunta ela, seu tom suave. —
Sobre o trabalho?
Maya ajeita a postura e esfrega os olhos. Uma listra de protetor solar se
acumulou numa dobrinha de sua barriga.
— Eu quei com vergonha. A coisa toda foi muito… humilhante. Jo teve
boas intenções, mas você sabe como ela é. Eu achei que ela tinha acertado tudo
com o Seth, mas no m das contas ela nem chegou a falar com ele. — Maya
ca passando o dedo em volta de um de seus anéis. — O Seth deu para trás,
todo cheio de desculpas, lógico, disse vou ficar de olho pra você, mandar o seu
currículo pra um amigo meu, mas não passou disso. Fim de jogo.
— Você não tinha assinado um contrato?
— Era pra ser assinado naquela semana. Tudo que eu tinha era a palavra da
Jo. — Maya balança a cabeça. — Eu quei arrasada, estava contando com
aquilo para pagar o aluguel e, como eu achei que estava tudo certo, desperdicei
semanas que eu poderia ter usado para procurar outro emprego.
— O Seth chegou a dizer por que ele não era a favor de que você
trabalhasse lá?
— Aparentemente, ele não queria que as pessoas achassem que aquilo era
nepotismo, disse que todo mundo tinha de passar pelo mesmo processo de
recrutamento, blá-blá-blá… O que é fato, mas eu estaria disposta a fazer
aquilo. Eu era totalmente quali cada para o trabalho. Mas ele cou
preocupado com o que os outros iam pensar se ele desse um emprego para uma
pessoa com quem ele tinha uma ligação.
— E a coisa nas redes sociais?
Maya retorce o rosto.
— Eu espalhei os boatos na internet, mas essas outras coisas que ela falou,
esses e-mails… eu não z isso. Eu sei que foi errado levar isso para as redes,
mas eu estava puta, Han, aquilo tudo foi muito injusto. Na mesma semana eu
fui visitar a So a com os meus pais. A minha mãe cou tão chateada… Eu
quei possessa. Foi a maneira como ele fez aquilo, como se não fosse nada.
Num estalar de dedos, sem nem pensar no que aquilo signi caria para mim,
para a minha vida. — Ela balança a cabeça — Aí eu andei lendo um monte de
coisas sobre ele, todos os trabalhos de caridade com os quais ele se envolve. Ele
é o garoto-propaganda de todas essas coisas positivas, mas, no mundo real,
longe dos golpes publicitários, nada disso se sustenta.
— Mas um contrato verbal deve ter algum tipo de validade legal.
Maya faz uma expressão sofrida.
— Eu tentei isso.
— Como assim?
— Eu falei com a Bea, Han. Levando a formação dela em conta, achei que
pudesse ajudar.
— E não ajudou? — pergunta Hana, hesitante. Como é que ela não sabia de
nada daquilo?
— Não. Ela nem quis se envolver. Além do mais, estava ocupada e, pelo
visto — Maya faz as aspas com dedos no ar —, “não era sua área de expertise”.
Foi essa a expressão que ela usou. Daí me indicou um advogado ridiculamente
caro. — Maya dá de ombros. — Conseguir o emprego de volta nem importava
tanto, era mais pelo princípio, mesmo. Tudo que eu queria era que ela me
ajudasse num rascunho de uma carta que fosse remotamente jurídica, só para
fazê-lo pensar duas vezes, mas, obviamente… ela não podia fazer aquilo. Ou
estava muito ocupada ou só não quis mesmo.
Mais uma vez, Hana tem a mesma sensação desestabilizadora de antes,
percebendo como conhecia pouco a própria família. O que mais ela tinha
perdido enquanto estava de luto?
— Desculpa, eu me sinto bem mal falando da Bea desse jeito. — Maya tira
o chapéu e balança os cachos. — Sabe o que dizem, não se deve falar mal dos
mortos.
Um silêncio se instaura entre as duas antes que Maya volte a falar:
— Aliás, que frase de merda, né? Não é só porque uma pessoa morreu que
ela, de repente, se torna perfeita.
Hana abre a boca para falar, mas presta atenção no rosto de Maya e decide
fechá-la novamente. Por um momento, a outra nem parece mais a prima. Tem
um vazio ali, algo indecifrável a respeito dela.
— Vou entrar pra beber uma água — diz Hana, por m.
Maya assente e volta a se recostar na espreguiçadeira.
No caminho, um inseto passa zunindo por Hana — são duas moscas-das-
ores, uma grudada na outra, em um trajeto atrapalhado em direção à piscina.
À primeira vista, parece que estão se entregando às mazelas do amor, mas,
quando presta mais atenção, Hana consegue ver que as duas estão lutando.
Uma tentando dominar a outra.
50
Elin ajusta a alça da mochila para car mais alta em suas costas.
Já fazia quinze minutos que eles haviam se afastado da trilha principal, e
parecia que estavam indo para lugar nenhum, o emaranhado de árvores e
arbustos perturbadoramente similar a cada poucos metros, pequenas frestas de
céu visíveis por entre as copas muito densas.
O caminho sinuoso começa a se estreitar, a vegetação rasteira invadindo-o,
galhos de espinheiros se aproximando mais e mais da trilha. A mata está
cando cada vez mais fechada, as árvores competindo por espaço, enormes
colossos adormecidos feitos de pinho e carvalho disputando com os insetos e os
animais.
— Tudo parece mais escuro aqui embaixo, não acha? — Steed vem para o
lado dela. Já suando, puxa a barra da camiseta e começa a sacudi-la, se
abanando.
— Pois é. É como se estivéssemos numa outra ilha.
Nas profundezas da mata, a vida é mais rica — os troncos de árvores
cobertos de hera, as pedras que aparecem às margens da trilha revestidas de
líquen e musgo. Um grosso tapete de folhas de carvalho sobre o chão, sem
praticamente nenhum centímetro quadrado livre de vegetação. Os pássaros
pulam de um galho para outro, mas Elin não consegue vê-los — escuta
somente o farfalhar das folhas e dos galhos conforme eles vão trocando de
árvore.
Steed en a a mão na mochila e tira uma barrinha de proteína.
— Você nunca para de comer? — pergunta Elin, sorrindo.
Ele está sempre mastigando alguma coisa, há sempre uma grande oferta de
alimentos disponíveis em cima de sua mesa ou dentro de sua mochila.
Steed sorri de volta.
— Só quando estou dormindo. — Ele gira o pulso e mostra a ela. — Além
do mais, olha, a minha desculpa é que está quase na hora do almoço.
Ele rasga a embalagem e en a a ponta da barra na boca. Não há nenhum
prazer envolvido no processo: trata-se do consumo e ciente de calorias feito
por um atleta. Ele faz um gesto imitando o ato de tirar uma outra barra de sua
mochila, oferecendo a ela. Elin dispensa com a cabeça.
— Valeu, mas vou esperar até voltarmos. Pensei em comer alguma coisa,
mas acabei me distraindo com o cara das câmeras de segurança.
— Alguma sorte?
— Parece que tem uma falha no sistema. Tudo deveria ser deletado a cada
24 horas, mas está programado para fazer isso de hora em hora. Vai levar
alguns dias até alguém resolver.
Steed assente.
— Eu estava pensando — começa ele, de boca cheia. — O Delaney ter
simulado uma queda… Para que isso desse certo, ele precisaria saber, de
alguma maneira, que Bea estava na ilha, e perto do pavilhão, né?
— O cara dos esportes aquáticos disse que Bea recebeu uma ligação quando
estavam juntos. É possível que eles estivessem em contato. Nós precisamos
solicitar uma quebra do sigilo telefônico dos Leger…
— Já tá feito. — Steed hesita. — Fico imaginando o que mais vai aparecer.
As dinâmicas entre eles… Foi meio estranho quando conversei com eles depois
que você saiu. Eles não parecem gostar muito uns dos outros.
— Ninguém teve uma crise histérica de choro?
— Não é isso. Na verdade, eles até que caram bem abalados quando eu
contei que o Seth tinha morrido. Choraram, a coisa toda; estou falando mais é
da reação que eles tiveram quando contei que o pai do Seth era o dono do
retiro. Maya e Caleb pareciam ter detestado.
— Porque ninguém falou pra eles? — Elin pisa com força, tendo que esticar
mais a perna para passar por cima de um amontoado de espinheiros.
— Por isso também, mas eu quei com a impressão de que eles não gostam
muito deste lugar. Falaram alguma coisa sobre ter mais estilo do que conteúdo.
Disseram algo na linha de “faz sentido que o Seth não tenha saído falando por
aí sobre o pai ser o dono da ilha, porque ela não faz jus a toda a propaganda
que fazem dela na internet”. E também criticaram as obras de caridade e os
lances ecológicos.
— É uma coisa bem esquisita de se fazer levando em conta o que você tinha
acabado de falar para eles sobre o Seth.
— Foi o que eu pensei — diz Steed, empurrando um galho que estava no
caminho e depois o segurando para impedir que acertasse Elin no rosto.
— Eles mencionaram algum tipo de con ito entre a Bea e o Seth?
— Não.
— Será que tiveram algum caso que acabou mal?
— Pode ser. — Ele en a o resto da barra de proteína na boca. — Não
consigo parar de pensar na audácia desse cara, fazendo uma coisa dessas no
resort do próprio pai.
— Mas a Jo disse que ele estava tentando sair de baixo da asa do pai. Um
complexo com a gura paterna com certeza é uma possibilidade.
A expressão de Steed ca séria de repente.
— Eu até entendo, de certa forma, se for isso mesmo. Os pais… Eles
conseguem nos afetar de uma maneira que nenhuma outra pessoa consegue. O
meu não foi nenhum pai do ano, por exemplo.
— O meu também não — revela Elin, chutando as folhas no chão.
— Que merda, né? — diz ele, abruptamente, limpando a boca com as
costas da mão. — Quando a pessoa que deveria estar sempre ao seu lado não
está.
Ela faz que sim com a cabeça.
— É mesmo.
Steed encara Elin, que sorri. É reconfortante, de uma maneira meio
estranha, pensar que outra pessoa seja capaz de reconhecer um fato que
costuma ser tabu: nem todos os pais são bons pais.
Os dois seguem caminhando. E, alguns minutos depois, a cobertura de
árvores começa a car mais rala — grandes porções de céu azul agora visíveis.
— Acho que estamos chegando a algum tipo de clareira — comenta Elin,
olhando para a trilha conforme ela vai se curvando para a direita.
Ela aumenta a velocidade na tentativa de ter uma ideia de para onde o
caminho leva, mas, poucos metros depois, seu estômago vem parar na boca
quando seu pé direito tenta pisar e não encontra nada além do vazio.
51
Apontando a lanterna para cima, Elin volta correndo pelo mesmo caminho que
fez para chegar até ali, seguindo a parede da caverna até a abertura por onde
eles entraram.
Virando-se de um lado para o outro, na tentativa de encontrar a saída,
acaba tropeçando, o feixe de luz da lanterna traçando linhas erráticas em meio
à escuridão. Tudo o que vem a sua mente é uma sequência frenética de
imagens: o manto, as pedras, as fotogra as. Com os olhos, capta apenas a
abertura à sua frente, a luz fraca dos raios de sol que entra por ela pintando as
paredes de um prateado brilhante.
Elin atravessa a passagem num salto e cai de pé no fundo da pedreira.
Comparada à penumbra da caverna, a luz do sol é feroz, mas ela não para,
correndo, febril, por toda a extensão da pedreira em direção aos degraus que
levam para fora dali.
Ela é seguida pelo som de passos, a voz de Steed chamando seu nome, mas
mal registra. Vai subindo de qualquer jeito, pisando e se agarrando um pouco
nos degraus e um pouco no cascalho, enquanto as pedras vão se soltando por
entre seus dedos.
Ela começa a sentir uma queimação nos pulmões por conta de todo aquele
esforço, mas segue em movimento.
Por m, alcança a beirada da pedreira. O caminho aberto em meio à
vegetação rasteira por onde eles haviam passado para chegar até ali está nítido.
Apelando a suas últimas reservas de energia, ela começa a correr mais uma vez,
mas, em questão de minutos, cada centímetro de seu corpo está urrando de dor
e o suor se acumula debaixo da camiseta.
Ela para, se agacha e leva as mãos à cabeça, enquanto as palavras de seu pai
ecoam em seus ouvidos.
Você é uma covarde, Elin. Uma covarde.
— Ei… — Steed a alcança, ainda segurando a lanterna. — O que
aconteceu? Você precisa da sua bombinha?
Elin balança a cabeça, ouvindo, mais uma vez, o som exasperante de sua
respiração.
— Eu não estava mais aguentando car lá, eu…
Ela se perde no que estava dizendo, ao se dar conta de que suas mãos e
antebraços estão pinicando. São pequenos arranhões em sua pele, pontinhos de
sangue em zigue-zague, resultantes da escalada por cima do cascalho.
— Não precisa explicar nada. Aquilo foi horrível. — A voz de Steed sai
trêmula. — Eu estava quase saindo correndo também — admite ele,
balançando a cabeça.
Elin detecta algo no rosto de Steed: medo. Ele também sentiu aquela
atmosfera malévola dentro da caverna.
— Mas eu acho — continua ele, com cuidado, enquanto se recompõe —
que quando você se depara com uma coisa dessas, é impossível não car
analisando tudo…
Elin faz que sim, sem questionar, porque é mais fácil para os dois seguir por
esse raciocínio. Esse tipo de reação faz parte deles. Racionalidade. Lógica. A
mente controlando o corpo.
Steed tira uma lata de Coca de sua mochila e passa para Elin.
— Não sei você, mas o meu tanque já está na reserva. — Ele olha para seu
relógio. — Já passou das duas.
— Valeu — agradece ela, baixinho, e, quando o encara, sorri. — Você
estava certo com toda essa sua história de escoteiro…
— Ganhei vários distintivos — responde Steed, e se vira para tirar outra lata
da mochila, mas, antes disso, ela consegue ver que ele está sorrindo também.
Elin começa a abrir a Coca, sentindo-se bem com a naturalidade daquele
ato, e percebe que parte do pânico que estava sentindo começa a se esvair. Ela
ainda não havia puxado o anel até o nal quando a Coca começa a jorrar,
projetando um o de espuma que escorre pelo metal. Inclinando a lata de lado,
ela suga a pior parte da bebida.
Steed ri.
— Eu devia ter avisado. Tive que correr muito pra te alcançar.
Ela engole tudo, com a boca ainda amarga da bile. O açúcar tem um efeito
instantâneo, acalmando-a.
Mais alguns goles. E então sente a respiração voltando ao normal.
— Melhor?
Ela faz que sim com a cabeça.
— Antes de ligarmos para a sala de controle, eu queria saber sua opinião
sobre o que a gente encontrou. Fiquei meio confusa com tudo isso.
— Vamos conversando no caminho?
Elin assente, mas logo se dá conta de que vai ser difícil fazer isso. Apesar de
terem aberto uma trilha rudimentar para chegar até ali, parecia que teriam que
lutar contra a vegetação rasteira mais uma vez. O açúcar desencadeia uma outra
sensação: sente a primeira pontada de fome quando passa por cima de um
tronco de árvore tombado.
— Que provas foram usadas contra o Creacher? — Steed toma um longo
gole de sua lata.
— De cabeça eu não me lembro, mas um cara que eu conheço, que
trabalhou nesse caso, disse que foi difícil desde o começo. Eles não
conseguiram achar muitas evidências.
— Quem era o detetive?
— Johnson. Já se aposentou. Não é do seu tempo.
Com uma cabeleira cor de cobre e um corte capacete, Johnson era um cara
tão direto que irritava as pessoas, mas também era um homem diligente,
trabalhador e detalhista, que se oferecia para assumir casos que outras pessoas,
incluindo a própria Elin, evitavam a todo custo. Ela se lembra de sua frustração
palpável no dia em que os dois conversaram sobre o caso Creacher num bar,
depois do expediente. Aquele caso o havia afetado pra valer.
— Ele me disse que tinha muita pressão para que houvesse uma
condenação.
— Em casos com esse, sempre tem.
— Nem me fale.
Então eles mergulham em silêncio, nenhum dos dois querendo verbalizar o
que aquilo signi ca. Adolescentes assassinados durante um passeio escolar. A
pressão para encontrar um culpado devia ser de outro mundo. É em momentos
como aquele que erros são cometidos. Atalhos são tomados. Elin engole em
seco, lutando contra a ideia de que o atalho que alguém decidiu tomar pode ter
deixado o verdadeiro criminoso solto, livre para matar novamente.
Steed dá mais um gole barulhento em sua bebida.
— Acho que esse é o meu pior pesadelo, sabe? Prender a pessoa errada. Isso
me assombraria…
— O meu também. Vou ligar para o Johnson quando chegarmos ao prédio
principal, ver se ele nos dá alguma dica.
Não era exatamente dessa maneira que ela deveria agir para conseguir
informações, mas Johnson não apenas havia expressado sua preocupação com a
conclusão do caso Creacher, como eles também já têm uma relação, o que
signi ca que há menos chances de ele se recusar a falar com ela. Se havia
alguma dúvida real em relação à condenação de Creacher, ele teria informações
em primeira mão.
Enquanto os dois seguem caminhando, ouve-se um barulho por entre as
árvores. É apenas um pássaro pulando de galho em galho, mas Elin tropeça,
virando o tornozelo. Steed a segura
— Ei… cuidado…
Elin assente.
— Só tô cansada.
Ela sente a adrenalina abandonando seu corpo, o breve pico de energia
proporcionado pelo açúcar dando lugar a uma terrível moleza, as leves
pontadas de fome se transformando numa sensação mais esmagadora e
insistente.
— O tempo entre os assassinatos ainda está me incomodando — começa
Steed, conforme seguem. — Se quem matou a Bea e o Seth for a mesma pessoa
que matou aqueles adolescentes, então tem que existir alguma espécie de
gatilho que justi que o crime depois de todos esses anos. Não é muito comum
que um assassino em série decida tirar algumas décadas de folga.
— Talvez seja alguém que foi preso e acabou de ser solto. Acho que vamos
ter que puxar a cha de todo mundo que está aqui. Ver se alguém estava na
ilha na mesma época dos assassinatos do Creacher. Qualquer nome que bata
com o de qualquer pessoa envolvida naquele caso. As crianças, os professores,
os monitores. Qualquer conexão mesmo.
Ele concorda com um meneio de cabeça.
— Deixa comigo. E vem alguém à sua cabeça?
Os pensamentos de Elin se voltam imediatamente para Michael
Zimmerman, mas no que estava se baseando para pensar aquilo? No fato de
que ele havia olhado de uma forma estranha para ela algumas vezes?
— Não, mas, levando em conta o que encontramos na cabana, não
podemos descartar a hipótese de ter sido alguém que não estava hospedado no
retiro, e acessava o terreno de modo ilegal. — Ela faz uma pausa. — A única
coisa que está evidente é que, seja lá quem for, a pessoa que estamos
procurando tem uma fascinação por aquela pedra, e pela maldição. Eu não sou
especialista em per s psicológicos, mas diria que este, provavelmente, é um
indivíduo desequilibrado, que talvez sofra de psicose. Durante um surto, é
muito possível que ele tenha alucinações e escute vozes mandando-o fazer
alguma coisa.
— A Morte? — sugere Steed, pensando em voz alta.
— Não dá pra tirar do campo das possibilidades, ainda mais depois daquele
manto que encontramos. A teoria do assassino visionário é uma motivação
plausível, alguém que mata uma pessoa porque acha que alguém o está
mandando fazer isso.
Steed en a a lata vazia num bolso lateral da mochila.
— Isso eu entendo, mas será que uma pessoa que sofre de alucinações teria
condições de planejar as mortes da Bea e do Seth com o grau de so sticação
que nós vimos?
— Tem razão — concorda Elin, pensando. — Essas pessoas costumam ser
mais caóticas. Isso se encaixa no modus operandi dos assassinatos dos
adolescentes, que foram bem frenéticos, segundo todos os relatos, mas não nos
da Bea e do Seth.
— E se for mesmo um imitador, alguém que se inspirou no Creacher? Talvez
isso explique as anomalias. — Ele dá de ombros. — Ou talvez não seja apenas
uma pessoa.
Elin rumina todas as hipóteses, ainda sem certezas. Tudo naquela caverna
sugeria uma continuidade. Alguém dando sequência a algo que teve início
durante os assassinatos de Creacher.
— Talvez, mas eu estou pensando que, talvez, a maneira como eles tenham
sido mortos não importe, e sim o fato de que as mortes aconteceram, foram
registradas e celebradas.
— De qualquer forma — acrescenta Steed —, a única coisa que a gente
sabe é que a pessoa que está fazendo isso planejou cuidadosamente as mortes
da Bea e do Seth para nos levar numa outra direção.
Ela concorda.
— Para ter tempo de voltar a agir.
Nenhum dos dois fala nada por um momento, sentindo o peso do que
aquilo signi ca caindo sobre seus ombros.
O assassino ainda não terminou.
56
— Não consigo falar com o Johnson — diz Elin. — Cai direto na caixa postal.
— Ele vai retornar a ligação — murmura Steed. — Enquanto isso, eu
consegui uma lista de todo mundo que está aqui. A moça da recepção é que
nem você, extremamente e ciente. — Ele sorri, mas o sorriso desaparece
rapidamente de seu rosto quando a detetive não o retribui. — Não gostei dessa
sua cara. O que foi?
Elin para um pouco antes de chegar ao balcão da recepção.
— Antes de ligar para o Johnson, conversei com o chefe de investigações.
Parece que estamos por nossa conta aqui. O efetivo da equipe de investigação
de crimes graves está completamente dedicado a um assassinato recente em
Barnstaple, e há diversos outros incidentes de grande porte em Exeter.
— Diversos? — repete ele, arqueando as sobrancelhas.
— Sim… Um acidente de trânsito com múltiplas vítimas fatais e um
incêndio num shopping numa área residencial. Tem pessoas presas. Parece que
todos os policiais do município estão envolvidos. Os regionais também. Eles
vão demorar para vir pra cá.
Steed passa a mão no cabelo. Parece desorientado, o que é incomum.
— E aí, o que a gente faz agora?
— Devemos isolar o retiro. Vamos reunir todo mundo. Preciso achar a
Farrah. Eu liguei para ela, mas também está caindo na caixa postal. — Ela olha
para o celular. — Vou tentar de novo.
Mas Elin quase perde o chão quando lê a mensagem que aparece na tela.
Leva um segundo para entender o que é. Uma mensagem de Will.
Postaram mais um tuíte. Te mandei uns prints.
Com a mão trêmula, Elin cria coragem e clica na imagem anexada. Seu
estômago se embrulha. Ela sente tudo ao mesmo tempo. Descrença. Medo.
Nojo. Emoções à or da pele a atingem feito ondas poderosas.
É ela de novo, mas, ao contrário da última foto, essa não foi tirada de um
site público. Na imagem, ela está na praia, de maiô, ao lado de sua amiga
Astrid.
As duas estão rindo para a câmera, mas aquele dia feliz havia sido arruinado.
Da pior maneira possível.
Não. Não.
Seus olhos haviam sido riscados novamente; linhas cruzadas de forma
agressiva umas sobre as outras numa rasura digital.
— O que foi? — pergunta Steed, preocupado.
— Um tuíte.
Ele franze a testa.
— Sobre o que está acontecendo?
Balançando a cabeça, Elin conta a respeito do outro tuíte, que Will havia
lhe mostrado antes.
— Este é pior, de alguma forma. A foto que usaram… foi tirada por uma
amiga minha. Alguém teve que vasculhar as redes sociais dela para encontrar.
Aquilo parece quase tão ruim quanto o que eles haviam feito com a imagem
em si. É como se alguém tivesse pegado sua recordação daquele dia e sapateado
ferozmente em cima dela. Aquilo era uma agressão.
— Trolls cuzões. — Steed balança a cabeça. — Eu sei que não ajuda, mas
aconteceu uma coisa parecida uns anos atrás com uma outra policial que eu
conhecia. Não as fotos, mas alguém cou enviando um monte de coisas
esquisitas pra casa dela. Ela fez um boletim de ocorrência e, aparentemente,
aquilo parou. — Steed faz uma pausa. — Provavelmente não é nada pessoal.
Elin minimiza a imagem e sente sua pele se arrepiar.
— Você tem razão. Se acontecer de novo, eu abro um boletim de
ocorrência, mas, por enquanto, isso vai ter que esperar. Nós precisamos
encontrar a Farrah e começar a nos mexer para isolar esse lugar.
Ela está se esforçando desesperadamente para projetar uma con ança que
não tem, e, enquanto anda em direção à recepção, aquela imagem insiste em
aparecer em sua mente, sua felicidade apagada por uma rasura violenta.
***
A funcionária que trabalha na recepção os cumprimenta com um sorriso
ensaiado. Steed o retribui, mas Elin, não, seus olhos vidrados na tapeçaria
pendurada na parede às costas da recepcionista.
Dessa vez, quando olha, a padronagem que remete à Pedra da Morte no
tecido não se camu a no fundo como na primeira vez que a tinha visto —
naquele momento, é só isso que consegue enxergar. Pequenas reproduções não
apenas da grande rocha como também das pedras pequenas dentro da caverna.
— Está tudo bem? — pergunta a recepcionista preocupada.
— Está, sim. — Ela precisa se esforçar para tirar os olhos de lá. — Eu estava
pensando se você saberia me dizer onde a Farrah está.
A mulher gesticula na direção de um dos cantos do salão.
— Ela está ali.
Elin segue o olhar da recepcionista e vê Farrah sentada num dos sofás com
um homem. Os dois parecem muito concentrados em sua conversa, a cabeça
inclinada.
— Obrigada — diz ela em voz baixa.
Enquanto eles cruzam o salão, o sanduíche que Elin comeu às pressas alguns
minutos atrás pesa em seu estômago, e um gosto ácido começa a subir por sua
garganta.
Engolindo com força, ela para na frente de Farrah e toca seu braço.
— Desculpe interromper, mas…
Porém, antes que possa terminar, é Farrah quem a interrompe com um
sorriso trêmulo, arregalando seus olhos como quem dá um aviso.
— Deixem-me apresentar vocês dois para Ronan Delaney.
58
Elin se esforça muito para não hesitar e sabe que, quando abre um sorriso, ele é
forçado.
O pai de Seth.
Ele os cumprimenta acenando de modo suave com a cabeça e, daquela
distância, Elin entende por que não o havia reconhecido de primeira; há um
tremendo contraste com a fotogra a que tinha visto na internet.
Não eram as roupas — a camisa branca e a calça de linho pareciam tão caras
quanto as que da foto —, mas há uma aura de cansaço e desleixo nele. Seu
cabelo grisalho está bagunçado; o rosto, repleto de rugas. O luto faz isso com as
pessoas. Suga a vida delas, tanto física quanto mentalmente.
Ronan estende a mão, seu relógio caro brilhando sob a luz da luminária.
Ela faz o mesmo.
— Detetive Elin Warner. Prazer em conhecê-lo.
Em seguida, Steed se apresenta, mas os olhos de Ronan não se concentram
nele por muito tempo e logo retornam para Elin.
— Acredito que foi você quem encontrou o Seth.
— Sim, fui eu — con rma Elin, com delicadeza.
— Eu estava justamente perguntando para a Farrah se ele… — Ele engole
em seco. — Se vocês já o levaram embora. Eu estava em Devon, a trabalho.
Queria vê-lo. — Lutando para manter a compostura, ele desvia o olhar para o
chão.
Elin troca um olhar com Steed. Essa é sempre uma preocupação numa
situação como aquela — que um parente enlutado queira assumir, ele próprio,
o controle da situação, sem perceber o que de fato pode ter acontecido.
— É melhor que você aguarde — diz ela, de forma cuidadosa. — Até que
ele esteja no necrotério.
Ele balança a cabeça.
— Mas eu quero vê-lo com os meus próprios olhos.
— Sério, é melhor você aguardar. — O tom de Steed é mais autoritário que
o dela.
Ronan o encara, e Elin percebe que ele está avaliando Steed, tentando
entender se seria possível pressioná-lo. Por m, ele faz que sim com a cabeça.
— É só que não consigo entender. — Ele parece desnorteado. — Por que
alguém ia querer machucar o Seth. Todo mundo o adorava.
— Foi o que nos pareceu — diz Steed, delicadamente —, mas a namorada
dele, Jo, mencionou que, nos últimos tempos, ele vinha recebendo ameaças por
e-mail. Bem pesadas, pelo que ela disse.
Ronan não hesita nem um segundo.
— Isso é completamente normal quando se é o lho de alguém como eu.
Você irrita muita gente só por existir. As pessoas me incomodam o tempo todo,
pedindo dinheiro, uns conspiracionistas que têm certeza de que sabem alguma
coisa a meu respeito. Não é incomum.
Steed tira os olhos de seu caderno.
— Nós também sabemos que ele tem cha criminal. Você teria algum
motivo para suspeitar de que ele talvez ainda estivesse envolvido com…
— Tudo isso é passado — interrompe Ronan. — Seth tinha se endireitado,
estava fazendo muito trabalho lantrópico. A prisão… mudou a maneira como
ele pensava, o fez perceber o quanto a vida é curta. Ele estava determinado a
não a desperdiçar com bobagens, em especial com drogas. — Ele retoma o
controle da conversa: — Então, quando é que vamos ter algumas respostas
sobre o que aconteceu com o meu lho?
— Estamos apenas no primeiro dia, de modo que a investigação está bem
no começo ainda — responde Elin, com cuidado. — Houve um incidente no
continente que está atrasando nossos processos habituais. — Ela percebe um
leve tremor em sua voz, e tenta domá-lo. A última coisa de que precisa é que
aquele homem descubra que tem algo ainda maior por trás de tudo antes que
ela possa conversar sobre aquilo com Farrah. — Voltamos a falar com você
assim que tivermos mais informações.
Ronan assente e volta a atenção para Farrah.
— Vou trabalhar daqui por enquanto. Posso usar uma das salas de reunião?
— Mas é claro. O pessoal na recepção vai dizer ao senhor quais estão
disponíveis.
— Obrigado.
Então, se despedindo, ele se levanta.
Assim que ele está longe o bastante para não os ouvir, Farrah balança a
cabeça.
— Desculpem, eu não fazia ideia de que ele viria para cá.
— E ele vai car por aqui?
— Aham. — Sua expressão é de preocupação. — Ele disse que veio por
causa do Seth, mas eu tenho a impressão de que também quer dar uma olhada
em tudo de perto. Algumas coisas já vazaram nas redes sociais, como vocês
devem imaginar.
— Talvez isso deixe o que vou dizer ainda mais complicado — comenta
Elin, decidindo ir direto ao ponto. — Acredito que as mortes de Bea e Seth
podem estar ligadas a um outro caso. E, eu não quero te assustar, mas acho que
existe a possibilidade de que a pessoa que fez isso esteja planejando outras
mortes.
Farrah respira com força.
O corpo de Elin se tensiona em resposta àquele som: a manifestação do
medo de Farrah ecoa o medo que ela própria sente e que, até aquele momento,
vinha mantendo sob controle.
— Por favor, nós precisamos manter isso em sigilo — disse Elin. — Se os
funcionários ou algum dos hóspedes remanescentes se derem conta do que está
acontecendo…
Aquelas palavras afetam a cunhada.
— Me desculpem, eu não estava esperando por isso… — Farrah se
recompõe. — Como posso ajudar?
— Reúna os hóspedes o mais rápido possível, e os prepare para deixarem a
ilha assim que for seguro. Quantos você acha que caram?
— Não muitos. Tem mais funcionários do que hóspedes. Na última
contagem, eram quinze, se não me engano. Posso mobilizar os funcionários
para fazerem isso, bater na porta dos chalés se não conseguirmos localizar as
pessoas.
— Ótimo. Tem algum espaço grande o bastante para reunir todo mundo?
— Acho que o salão de eventos nos fundos do restaurante. É um espaço
bem grande. — Ela olha ao redor. — Mas o que devo dizer a eles? As pessoas
vão fazer perguntas.
Elin ca em silêncio por um instante. Em sua visão periférica, vê Ronan
seguindo para os fundos do saguão.
— Tudo que você precisa dizer é que houve um acidente e que, para a
segurança de todos, é fundamental que eles sigam as suas instruções. Quando
estiverem reunidos, eu falo com eles, tento minimizar as preocupações.
Enquanto isso, converse com seus funcionários de con ança e informe todos
quanto ao plano.
— Faz sentido. — Farrah tenta injetar alguma con ança no que diz, mas a
rmeza com que ela segura o radiocomunicador quebra aquilo: os nós dos
dedos chegam a estar brancos.
Elin põe a mão no braço da cunhada.
— Olha, vai dar tudo certo. De verdade.
— É que… — Seus lábios tremem, um tom de pânico volta a se fazer
presente em sua voz. — Não é só isso. Eu queria falar com você sobre outra
coisa. — Farrah olha para Steed. — Em particular…
— É claro… — Elin para de falar de repente assim que seu celular toca,
fazendo um barulho tremendo. Detetive Johnson. — Desculpe, mas eu preciso
atender a essa ligação. Podemos conversar daqui a pouco?
Farrah assente, tenta abrir um sorriso, mas Elin percebe uma leve hesitação.
59
O celular da Bea.
Hana o segura com todo o cuidado do mundo, como se ele fosse um bebê.
A tela está estilhaçada, rachaduras irregulares atravessando o vidro como
raios. Tudo o que resta da parte traseira é um pedaço quebrado da capinha.
Não faz sentido: Como a Jo conseguiu o celular da Bea?
Porém, enquanto seus olhos percorrem a tela quebrada, sua confusão logo
dá lugar à compreensão, uma vez que ela se lembra por que, para começo de
conversa, entrou no quarto da irmã — por causa do que Caleb havia lhe dito
sobre ela ter saído do chalé.
Hana rumina aquilo, mas não importa o quanto disseque cada elemento ou
os analise sob esse ou aquele ângulo: a imagem que eles pintam não é nada boa.
***
— Eu acho que você precisa conversar sobre isso com ela, Han, assim que
puder — opina Maya, en ando um cropped dentro de sua mochila e lançando
um olhar meio perdido para a prima. — Não sei mais o que dizer. Ela precisa
te dar algumas respostas.
Hana faz que sim com a cabeça. Desde o começo, sempre soube que a
resposta de Maya seria aquela; ir até o quarto dela tinha sido apenas uma
maneira de ganhar tempo, de adiar o encontro, com medo do que Jo lhe diria.
— Você tem razão. — Ela gesticula com a cabeça na direção da mochila de
Maya, uma maçaroca de roupas jogada de qualquer jeito lá dentro. — Vou te
deixar terminar aí. Você está bem mais adiantada do que eu. Nem comecei
ainda.
— Eu só quero estar pronta para quando eles disserem que a gente pode ir
embora. Não quero car aqui nem um segundo a mais do que o necessário.
Maya pega um porta-retratos de sua mesinha de cabeceira. Está quase
guardando-o na mochila quando Hana olha para ele.
— Que linda — comenta.
É uma foto na praia: os pais de Maya inclinados sobre So a e ela, todos em
trajes de banho. Obviamente havia sido tirada antes do incêndio, mostrando
So a como ela era antes do AVC: toda sorridente para a câmera, com um
espaço entre os dentes da frente.
— É idiota — rebate Maya, a voz oscilando. — Eu levo comigo para todo
canto.
— Não é idiota, eu amei — diz Hana, com carinho. — Como estão os seus
pais?
— Estão bem, mas já faz um tempo que não visitam a So a, algumas
semanas. Eles mudaram, Han. Nós sempre soubemos o quanto era improvável
que alguma coisa milagrosa acontecesse, mas acho que a minha mãe se agarrava
à ideia de que minha irmã pudesse se recuperar. É o milagre da esperança…
Mesmo quando o cérebro te diz uma coisa, o coração consegue ignorar aquilo e
se agarrar a outras… À história de uma outra pessoa, alguma teoria que você
viu na internet, às conclusões de uma pesquisa obscura…
— Mas isso acontece, né? Pessoas que melhoram vários anos depois.
— Não com esse grau de dano cerebral. Os médicos vêm dizendo isso há
anos, nós é que não quisemos escutar. — Maya faz uma pausa. — Mas, no
último mês, mais ou menos, eu acho que a cha nalmente caiu. Minha mãe
perdeu aquele último o de esperança. É como se uma parte dela tivesse…
desaparecido. Ela é uma pessoa completamente diferente agora.
Quando pisca os olhos, Hana sente as lágrimas se acumulando.
— Sinto muito. Eu não fazia ideia.
— A vida é assim, né — conclui Maya, recolhendo a última pilha de livros
em cima da mesa. Na metade do caminho, os deixa cair. Ela força uma risada.
— Era só o que me faltava. — Hana se aproxima para ajudá-la a pegar os
livros. — Nem esquenta — diz Maya, rapidamente, e Hana percebe que
aqueles não são exatamente romances.
O caderno de desenho que tinha visto no dia anterior caiu com suas páginas
abertas. Hana o pega, olhando com curiosidade para o esboço na página da
direita: duas pessoas de per l, uma olhando para a outra.
O que chama a sua atenção, logo de cara, é a intimidade: não apenas o
quanto os rostos estão próximos um do outro, mas também a expressão deles:
lábios virados para cima num começo de sorriso, olhos vidrados uns nos
outros.
O instante que precede um beijo.
— Você é muito talentosa — elogia Hana, olhando o desenho com mais
atenção. — Eu queria… — Então para, percebendo uma coisa com o canto do
olho.
Uma fotogra a no chão, que havia caído de dentro do caderno.
Com uma expressão de pânico no rosto, Maya se abaixa para pegá-la, mas
não é rápida o bastante.
Hana a pega primeiro.
Ela puxa o ar num susto enquanto olha para a imagem; é como se alguém
tivesse dado um soco em seu estômago.
Hana olha uma vez, depois outra, se pergunta se está tendo alucinações, se
aquilo é uma peça maluca que sua imaginação está tentando lhe pregar.
Mas não é.
O esboço era uma cópia quase perfeita daquela fotogra a.
Sua irmã, junto com Liam.
60
Elin encara a vastidão do oceano, cada vez mais escuro à sua frente, enquanto
tenta processar o que Johnson havia lhe dito. Farrah estava na ilha na época dos
assassinatos do Creacher. Farrah testemunhou contra ele.
Como isso era possível?
Ela se lembra de Farrah interrompendo a conversa sobre o passado da ilha
no jantar na noite anterior.
Foi por isso.
A detetive vasculha a memória, tentando lembrar se alguma vez Will havia
mencionado a presença de Farrah na ilha, mas tinha certeza de que se lembraria
se fosse o caso.
Nada daquilo fazia sentido, em especial o fato de Farrah ter escolhido
trabalhar ali. Levando em conta o que aconteceu, por que se forçaria a passar
por isso?
— Elin? Tudo bem aí? — A voz de Johnson a desperta de seus devaneios.
— Sim, desculpa.
Ela olha ao redor, para o restaurante praticamente vazio, os funcionários
ainda trabalhando na limpeza.
— Estou pensando no que você disse sobre essa garota, Farrah. — Ela tem
di culdade de dizer o nome. — Que você teve dúvidas em relação ao
depoimento dela.
Uma longa pausa.
— Eu tive, mas, Elin, só pra deixar claro, essa é apenas a minha opinião, de
verdade. Além disso, eu estava sozinho nessa. Na época, todos os outros
acreditaram na culpa do Creacher.
— Nenhuma outra pessoa cou do seu lado? Só o Creacher?
— Não, mas eu continuava pensando na possibilidade de que, se não tinha
sido o Creacher, e se a Lois estava na ilha naquela noite em que o garoto disse
que ela estava, e foi assassinada pela mesma pessoa que matou aqueles
adolescentes, então o suspeito tinha que ter estado na ilha em ambas as
ocasiões. Aquilo reduziu um pouco mais o escopo, mas também não deu em
nada. Os funcionários que supervisionaram os dois cursos da ONG tinham
bons álibis.
Álibis que ela precisava investigar, porque Johnson estava certo: o grupo de
potenciais assassinos que estava na ilha naquela época não era muito grande.
Monitores de acampamento, professores, outros alunos… ou alguém que não
tinha nada a ver com aquilo? A ilha certamente era grande o bastante para que
outra pessoa se escondesse ali.
— Vocês nunca encontraram indícios de nenhuma outra pessoa acampando
na ilha? Nós achamos uma cabana na praia que parece ter sido usada…
— Não. Nós vasculhamos tudo. Não dá para excluir a possibilidade de que
alguém possa simplesmente ter pegado um barco e ido até lá, é claro. Mas nos
esforçamos para pensar numa alternativa plausível para o Creacher. Pelas nossas
investigações, ninguém tinha nenhum motivo para fazer aquilo. Os
adolescentes assassinados eram todos benquistos e populares. Eu pesquisei o
passado deles a fundo. Tentei procurar em todos os lugares. Parentes,
namorados, namoradas, inimigos. Possível envolvimento com gangues, com
drogas, questões de saúde mental, qualquer coisa que pudesse ter provocado
um ataque como aquele, mas não encontrei nada.
Elin re ete um pouco.
— Olha, eu sei que é pedir demais, mas será que você não consegue me
mandar o arquivo que tem desse caso? Você falou dos seus cadernos, mas e os
depoimentos das testemunhas, ou qualquer outra coisa que tenha considerado
relevante na época? Eu vou atrás disso pelas vias o ciais também, mas ter a sua
versão dos acontecimentos seria uma mão na roda.
— Sim, com certeza. Eu preciso dar uma procurada pra ver onde estão
meus arquivos, mas, por favor, que isso que entre nós, certo? Você sabe que o
que estou fazendo não é exatamente a coisa mais correta do mundo.
— Eu entendo. — Ela faz uma pausa. — Só uma última coisa, a pedra que
tem na ilha. A Pedra da Morte. Algum dos alunos fez alguma referência a ela
nos interrogatórios? Ou à maldição?
Um longo silêncio. Quando nalmente vai falar, ele começa soltando um
profundo suspiro.
— Não explicitamente, mas dava pra perceber… Aqueles garotos estavam
apavorados com alguma coisa… Aquilo me perturbou. Quando começamos o
interrogatório, eu sugeri que fôssemos conversar no prédio da antiga escola,
mas eles não queriam chegar nem perto. Alguém tinha assustado eles pra valer.
— Ele hesita. — Pra ser sincero, depois de passar alguns dias por lá, dava pra
entender. Aquele lugar, meio incendiado, do jeito que ele estava, bem debaixo
daquela pedra… Não era um lugar onde você tinha vontade de car muito
tempo.
Os pelos na nuca de Elin se arrepiam.
— As coisas que ouvi sobre a escola não foram exatamente positivas. Os
adolescentes com quem você falou depois dos assassinatos do Creacher
chegaram a dizer o que os havia assustado?
— Não, mas eu sempre tive a sensação de que nós não camos sabendo a
história toda. Esse foi o problema com a velocidade com que condenaram o
Creacher, o caso não teve tempo nem de respirar. Eu queria ter conversado
com eles mais uma vez depois que a poeira tivesse baixado, mas o caso já tinha
sido encerrado muito antes disso.
Elin pondera a respeito daquilo tudo, atormentada tanto pela ideia de que
alguém poderia ter tentado assustar os adolescentes quanto pela escola em si.
Que fascinação era essa com aquele lugar? As coisas parecem sempre voltar para
ela…
Depois que a conversa chega ao m e eles se despedem, os pensamentos de
Elin se voltam para Farrah. A detetive sente o estômago doer de nervosismo.
Não há como fugir daquilo; Farrah era a única pessoa que estava na ilha no
momento dos assassinatos de Creacher e agora. Precisa conversar com ela.
A caminho do prédio principal, Elin está a poucos metros da entrada
quando passa por Michael Zimmerman. Ele está carregando uma espécie de
lona, parte dela sendo arrastada pelo chão.
Ele faz um rápido contato visual com Elin antes de a detetive entrar no
retiro.
63
***
— Você tem certeza de que ela não está em nenhum outro lugar no retiro? —
A voz de Will está moderada e, embora ele talvez conseguisse esconder suas
emoções se aquele fosse um simples telefonema, as rápidas piscadas e sua
mandíbula retesada o entregam pelo FaceTime.
— Tenho. Falamos com todos os funcionários, eles passaram um rádio para
todos os cantos. Ninguém sabe onde ela está. O telefone cai direto na caixa
postal. Tem gente procurando dentro dos prédios e o Steed está com um grupo
vasculhando as proximidades.
— Talvez ela só esteja fazendo um intervalo, esteja sobrecarregada com tudo
o que está acontecendo.
Elin hesita por um momento, querendo reconfortá-lo, mas não consegue.
Depois do que viu no interior daquela caverna, está com medo por Farrah. Por
Will.
— Desculpa, mas eu não acredito nisso. — Ela respira fundo. — Will, o
motivo pelo qual estou preocupada é porque as coisas pioraram. Estamos bem
convictos de que as mortes deste m de semana não foram acidentais. É
possível que estejam ligadas aos assassinatos do Creacher.
Uma pausa. A expressão em seu rosto é de confusão enquanto ele processa
as informações.
— E você acha… — Ele gagueja. — Você acha que o sumiço da Farrah
pode estar ligado a isso?
— Não tenho certeza. — Elin pigarreia, uma tática para ganhar tempo. É
difícil encontrar as palavras para o que está prestes a dizer: expor uma mentira
de décadas, trazê-la à tona. — Will, quando o Steed e eu fomos até o escritório
dela, nós encontramos uma fotogra a rasgada dentro da lixeira, de quando
Farrah esteve na ilha, quando era adolescente. Num dos cursos da ONG.
O rosto dele congela. Por um instante, Elin acha que o sinal caiu, mas não.
De repente, ele respira fundo.
— Então você sabe.
Ela concorda.
— E não foi só a foto. Eu conversei com um policial que trabalhou no caso
Creacher. Ele me contou que o depoimento da Farrah foi um dos elementos
centrais na acusação da promotoria.
O olhar de Will sai da tela e vai para o chão. Há um longo silêncio, até que
ele nalmente a encara de novo.
— Vou ser sincero: eu sempre torci para que isso nunca viesse à tona. A
Farrah cou traumatizada com tudo o que aconteceu. Ainda está. É um dos
poucos assuntos sobre os quais a gente nunca conversa de fato.
Aquela ideia contrasta com o orgulho que a família dele sempre demonstrou
quanto à relação que tinham: Nós não escondemos as coisas. Nós conversamos. Ele
olha para Elin.
— Se você soubesse pelo que ela passou…
— Sinto muito — diz ela, baixinho.
— Não é sua culpa. Eles nunca deveriam ter deixado os malditos
adolescentes irem até aquela ilha com aquele maníaco por lá. Ele já tinha sido
denunciado, você sabia? Anos antes do ataque. O doente cava fotografando as
crianças quando elas estavam no acampamento.
Elin detestava ouvir o sofrimento na voz dele. Dava para notar que, para
Will, aquilo ainda machucava.
— Eu entendo, mas você não pode se culpar. Toda família deve ter sentido
a mesma coisa. Agora é fácil falar.
Ele a encara.
— Eu sei o que você vai me perguntar. Por que eu decidi fazer o LUMEN,
por que a Farrah quis trabalhar aí…
Ela balança a cabeça.
— Você não precisa me explicar nada. Cada pessoa lida com os traumas de
um jeito diferente.
— Não, eu quero contar pra você, quero explicar por que eu e Farrah
estávamos tão sensíveis na outra noite. O LUMEN era para ser justamente um
novo começo para nós dois. Quando nosso time pegou esse projeto, de cara eu
não conseguia nem pensar em trabalhar nele, mas, no m das contas, decidi
arregaçar as mangas e transformar o que era negativo em positivo. Eu nunca
imaginei que a Farrah ia querer trabalhar aí, mas, quando ela sugeriu, eu
pensei, Essa é a minha irmã. Nunca foge de uma briga. Pelo contrário, vai na
direção dela. É corajosa.
Ele tinha razão, mas Elin sabia muito bem que havia uma linha muito tênue
separando a coragem da estupidez. Quando isso se transforma num gatilho…
Ela hesita por um momento.
— Olha, eu sei que é difícil, mas nós achamos uma outra coisa, um
descanso de tela muito estranho no computador dela. Bem assustador. Alguma
coisa parecida com Eu sei o que você fez. Eu sei que você mentiu. — A expressão
dele ca sombria. — Estou tentando entender se esse aviso e o
desaparecimento de Farrah têm alguma ligação com o depoimento que ela deu.
O fato de eu ter encontrado uma foto da época em que ela esteve na ilha
também…
— Não estou entendendo — diz Will.
— Talvez essa mensagem tenha alguma coisa a ver com o que ela disse no
depoimento. — Ela tropeça nas próprias palavras, percebendo como tudo deve
soar.
— Ahh, agora eu entendi. — Ele está sério. — Vai, fala de uma vez. Você
está perguntando se a Farrah mentiu no depoimento.
— Não — rebate Elin rapidamente, tensa. Ela não está fazendo isso do jeito
certo. — Eu só estava pensando se ela tinha alguma dúvida sobre o que
aconteceu naquela noite.
— Elin, para. Eu consigo ler nas entrelinhas. Você encontrou essa
mensagem e então fez o que sempre faz com as pessoas. Você imaginou o pior
sobre elas.
Ela não responde logo de cara, não por ele não ter razão; ela realmente julga
as pessoas, mas aquele não era o caso ali.
— Eu não estou julgando a Farrah, eu estou tentando encontrar a sua irmã.
Se ela realmente mentiu, isso é importante, porque o depoimento dela foi
fundamental para a condenação do Creacher. Se a condenação se baseou numa
mentira, talvez isso queira dizer que ele não é o culpado. E, se esse for o caso,
signi ca que o assassino ainda pode estar à solta. Nesta ilha, neste momento.
Will fecha os olhos por um instante. Quando os abre, sua expressão é de
resignação.
— Você tem razão. A Farrah realmente mentiu sobre o Creacher no
depoimento, mas não foi por qualquer motivo horrível que você possa estar
pensando. Foi por minha causa.
— Por sua causa? — Elin segura o telefone com mais força, e a ponta de
seus dedos esconde o rosto de Will por alguns instantes.
— Sim. A Farrah de fato mentiu, mas não tinha nada a ver com ela. Ela fez
isso para me proteger.
67
— Você.
É tudo o que Elin consegue dizer. Ela sente algo estranho no peito, a
representação mental da sensação de ter um tapete sendo puxado de baixo de
seus pés.
— Sim, mas ela estava me protegendo, Elin. Bancando a irmã mais velha.
— Sua voz falha.
Elin tenta se conter. Não julgue. Você não está em posição de julgar.
— Mas o que aconteceu quando ela esteve lá? — indaga a detetive, com
delicadeza.
— Quando nós estivemos lá. Eu também estava na ilha naquela semana.
Como a turma da Farrah e a minha eram pequenas, as duas foram juntas.
Ela franze a testa.
— Mas a foto que eu encontrei… Você não estava nela.
— Era uma foto da turma da Farrah, não da minha. — Will faz uma pausa.
— Na noite dos assassinatos, eu estava com a ea, uma das meninas, quando
ela foi atacada. A gente tinha entrado na mata, e a ea se afastou um pouco
para fazer xixi. Eu não tinha nem virado as costas quando alguém, do nada, a
atacou. E atacou de novo e de novo, e eu… — Ele faz uma careta. — Só
consegui sair correndo. Eu a abandonei lá.
Elin tenta encontrar palavras para reconfortá-lo, mas é difícil. Está abalada
pelo que acabou de ouvir.
— Você estava assustado — diz ela, por m. — Queria ajudar, mas cou
com medo de ser atacado também.
— Não — nega Will, seco. — Eu nem cogitei ajudar. Não dá para dizer
nem que passou pela minha cabeça. Eu fugi. Aquilo que você disse outro dia
sobre ser covarde, você não foi covarde aquele dia, com o Sam. Você congelou,
mas não fugiu. Eu preferi salvar a minha pele a ajudar a ea. Eu penso até
hoje nos “e se”. E se eu tivesse tentado defendê-la… — Ele balança a cabeça,
uma nítida expressão de angústia em seus olhos.
— Eu entendo. Eu z a mesma coisa — confessa ela, baixinho. —
Continuei pensando naquilo, repassando todas as possibilidades paralelas.
Ele assente.
— Depois do que aconteceu, eu quei escondido por um tempo. Quando
saí do esconderijo, não tinha mais ninguém lá, só uma pedra na areia. Era
estranho, tinha sido esculpida no mesmo formato da rocha. — O coração de
Elin dispara. Esculpida, como as pedras da caverna. — Eu a peguei… E aí
alguém me atacou pelas costas. Eu não consegui enxergar direito a pessoa, mas
me lembro de ver um manto escuro, um capuz cobrindo o rosto.
Um manto: igual ao que eles tinham encontrado na caverna.
O que ele acaba de dizer comprova, sem sombra de dúvida, a ligação entre
os dois casos.
— Não sei nem como, mas consegui escapar dele, e voltei correndo pela
oresta. Eu a encontrei, ainda lá, na clareira. — Will cobre a boca com uma
das mãos. — Tinha tanto sangue, e ela parecia tão tranquila, Elin. Aquilo não
parecia natural. Eu quei ali por um tempo, parte de mim torcendo para que
ela acordasse, dissesse que não passava de uma brincadeira, mas, no fundo, eu
sabia. — Um soluço emerge por trás da mão dele. — No m, consegui voltar
até o acampamento, e eu ia contar para os professores, mas então vi a barraca
do Josh e do David rasgada e, dava para ver, mesmo de longe, que eles estavam
mortos. A pedra que eu tinha encontrado… — Sua voz sai mais aguda. —
Estava do lado deles, coberta de sangue. Eu pensei, eu pensei…
— Que era a mesma pedra que você tinha encontrado na praia — completa
Elin. Sabia aonde ele queria chegar.
Ele faz que sim. Solta outro soluço.
— Eu achei que tinha largado ela na praia, então, quando a enxerguei ali,
quei pensando no pior. Eu sabia que as minhas impressões digitais estariam
nela. Então entrei em pânico e peguei.
— E foi aí que você falou com a Farrah?
— Exatamente. Ela disse que eu não podia falar nada, que o meu DNA
estaria na pedra e que, quando eles encontrassem a ea, iam pensar que tinha
sido eu. Então a Farrah a jogou no meio do mato.
Elin faz que sim com a cabeça, mas uma coisa ainda a incomoda em toda
essa história — a ideia de que o assassino teria levado a pedra até a barraca, até
a cena do crime. Não há provas, até onde ela sabe, de que o assassino tenha
feito isso com Bea Leger nem com Seth Delaney.
Será que aquilo é algo importante, uma discrepância, ou implica outra
coisa?
— E quando a Farrah decidiu prestar depoimento sobre o Creacher?
— Depois que ele foi preso. Ela disse que nós não tínhamos como ter
certeza de que a polícia não encontraria alguma outra prova que me ligasse
diretamente ao caso, então teve a ideia de dizer que tinha visto o Creacher
rondando o acampamento.
— Isso foi ideia da Farrah?
— Aham, mas ela só disse aquelas coisas porque nós achamos que o
Creacher era mesmo o culpado. A ideia por trás da mentira era a de cimentar
aquilo que a polícia já suspeitava. Nós não pensamos nas consequências. — O
olhar de Will encontra o dela, enquanto balança a cabeça. — Eu devia ter dito
alguma coisa quando você começou a investigar esse caso, mas não queria nem
imaginar que pudesse existir uma conexão.
— Não precisa se sentir culpado. Imagino que deve ser difícil falar sobre
isso, e com o Creacher na prisão… — Mas, ao dizer aquelas palavras, uma
semente de dúvida é plantada. Isso foi para proteger ele e Farrah.
— Mas, se a mentira que a Farrah contou pra me proteger foi o que causou
o sumiço dela, então preciso me culpar. — Ele balança a cabeça. — Eu devia
ter encarado a situação, contado para a polícia. Você estava certa quando disse
que não dá pra jogar o passado pra debaixo do tapete, mas foi isso que eu z a
minha vida inteira. O retiro, meu nome…
— Seu nome?
Ele faz que sim.
— Eu mudei de nome depois do que aconteceu. Meus pais enfrentaram
toda a burocracia. Eu ainda tenho pesadelos até hoje, a ea chamando meu
nome. Era Oliver, mas ela sempre me chamava de Ollie.
As lágrimas começam a se acumular em seus olhos, e ele leva a mão para
enxugá-las.
Ollie. Elin experimenta a estranha e desconcertante sensação de que sua vida
inteira havia sido construída em cima de uma base que já não era mais tão
rme.
— Então, se o Creacher não era o assassino, você acha que a pessoa que
cometeu os assassinatos — dá pra ver ele engolindo em seco —,
independentemente de quem seja, talvez tenha pegado… a Farrah…
Ela concorda com a cabeça.
— Sinto muito por ter que dizer isso, mas, sim, é uma possibilidade.
— Mas se não foi o Creacher quem matou a ea, nem os meus amigos,
então por que o assassino viria atrás da Farrah agora? O depoimento dela
acabou sendo bom pra ele, não? Fez com que as suspeitas sobre o Creacher
fossem ainda mais embasadas.
— Não sei qual é a motivação dessa pessoa. Julgando pela foto que
encontrei na lixeira dela, estou achando que a Farrah começou a fazer umas
pesquisas e reconheceu alguém. Se foi isso mesmo, essa pessoa provavelmente a
reconheceu também. Essa pode ter sido a maneira que o assassino encontrou
para avisá-la disso.
— Você acha que vai conseguir encontrar minha irmã? — A voz dele está
desesperada. — Eu preciso falar com nossos pais e queria dizer alguma coisa
positiva para eles.
— Vou fazer tudo que eu puder, você sabe disso, mas somos só nós dois
aqui, e este lugar… não vai ser fácil… — Ela hesita. — Will, você se lembra de
qualquer coisa sobre a pessoa que atacou a ea?
— Bem que eu queria — responde ele, em voz baixa. — Tudo que eu sei é
que era alguém forte, e que teria me matado se pudesse. De alguma forma,
dava pra sentir a violência emanando daquela pessoa. Isso foi o que mais me
marcou, mesmo depois de tanto tempo. Aquela… brutalidade.
— Eu sinto muito — diz ela, com delicadeza. — E odeio te forçar a reviver
tudo isso, mas tenho uma última pergunta: alguém mencionou qualquer coisa
sobre a escola? O detetive disse que os adolescentes do caso Creacher tinham
medo de entrar no prédio da antiga escola, e nós encontramos referências a ela
nas coisas da Farrah.
Há uma pausa longa, e então Will con rma:
— Assim que pisamos na ilha, a galera começou a falar disso. Espalhar
rumores. Alguém disse que conhecia alguém que tinha estudado lá, que os
professores eram obcecados pela rocha. Que costumavam levar as crianças para
uma sala…
Elin sente um arrepio.
— Que tipo de sala?
— Não deram mais nenhum detalhe. Você sabe como são as coisas nessa
idade. Provavelmente era tudo boato.
Ela ca em silêncio. Boato.
Talvez Will tenha razão, mas, depois de tudo que Elin aprendeu a respeito
da ilha, não tem mais tanta certeza assim.
69
Elin conta para Steed o que Will havia revelado, seus olhos indo dos
funcionários do retiro para os hóspedes restantes que vão se aglomerando no
salão.
A tarefa dada por Farrah está em execução: os funcionários conduzem os
hóspedes pelo corredor nos fundos da recepção. Há uma confusão de barulhos.
Vozes. Rodinhas de malas. Os estalos erráticos de sandálias no piso.
— E o Will se lembra de alguma coisa que pudesse identi car quem o
atacou? — pergunta Steed, seus olhos acompanhando o movimento frenético
de alguns hóspedes perto dele. Eles estão discutindo e um homem aponta para
a própria mala.
— Não — responde ela.
Steed franze a testa de leve.
— Aliás, más notícias. Eu cobrei um favor e pedi para uma pessoa pesquisar
aqueles nomes no banco de dados… Não apareceu nada. Só o depoimento de
Farrah, mas, obviamente, disso nós já sabíamos.
— Eu deveria imaginar que não seria tão fácil assim.
Ele assente.
— Acho que vale a pena voltar para o básico. Falar com todo mundo que
sobrou, ver se aparece uma nova informação sobre os últimos dias. Alguém
pode ter visto alguma coisa e não ter dado muita importância.
— Boa ideia. Isso também vale para Farrah. Alguém pode ter…
Mas ela não termina a frase.
— Ainda nenhum sinal da Farrah?
É Jared, o supervisor. Seu rosto anguloso demonstra preocupação.
— Infelizmente, não. Fizemos uma busca nas proximidades… E nada.
— Será que não deveríamos ampliar essa busca? Podemos usar alguns
funcionários. A maioria dos hóspedes que caram já estão aqui, e os outros
estão a caminho. — Jared lança um olhar nervoso para o lado de fora, para o
volume cada vez maior de nuvens e os pingos de chuva estalando nas janelas.
— A tempestade está apertando bastante. Se ela estiver lá fora sozinha…
Elin segue o olhar dele. Não tem saída: se zer o que Jared está dizendo, eles
vão colocar a segurança dos funcionários em risco. Se não zer nada, as chances
de encontrarem Farrah diminuem ainda mais. Se realmente fossem ampliar a
busca, a pedreira e a caverna seriam os lugares mais óbvios por onde começar,
mas ela não podia permitir que ninguém fosse para tão longe.
— Não, eu acho que…
Suas palavras se perdem em meio aos chiados do radiocomunicador de
Jared, de onde, de repente, começa a brotar uma voz.
— Alô? — Ele aproxima o rádio do ouvido. — Pode repetir o que disse?
A pessoa repete, mas ainda é inaudível.
Seja lá quem está falando, deve estar do lado de fora, sua voz abafada pelo
barulho do vento.
— Me deixa ir pra um lugar mais silencioso — pede Jared, contornando o
balcão da recepção e entrando numa salinha na parte de trás.
Enquanto aguarda, Elin ca jogando o peso de seu corpo de um pé para o
outro, o nervosismo revirando seu estômago.
Instantes depois, ele aparece de trás do balcão.
— Um funcionário encontrou uma bolsa nas pedras. Disse que parece a
bolsa da Farrah.
— Eu vou até lá. — Elin se vira para Steed. — Começa a falar com os
funcionários.
***
Elin corre pela praia, gotas nas de chuva atingindo-a no rosto. Piscando para
tirá-las dos olhos, para um pouco antes de chegar à gruta e recupera o fôlego. A
erosão havia aberto um buraco na face da falésia, esculpido sulcos profundos,
formando uma saliência natural. Logo à sua frente, o sangue manchava a areia,
pequenas poças vermelhas ao lado de um arco de gotas salpicadas e espalhadas.
Ela nota as marcas na areia, vestígios de pegadas. Sente o coração pulsar nos
ouvidos enquanto raciocina: Farrah foi atacada ali e depois arrastada até a gruta.
Seguindo em frente, ela abaixa a cabeça — ca meio agachada para poder
acessar a gruta.
A primeira coisa que chega até ela é o cheiro: não a umidade salina, o
azedume da areia, mas a pungência metálica do sangue.
Forte o su ciente para abafar todos os outros odores.
O espaço apertado vibra com uma energia tremendamente violenta. Um
alerta ecoa: uma coisa terrível aconteceu aqui.
Tomada por uma intensa onda de náuseas, Elin precisa se forçar a olhar para
Farrah: o cabelo claro, o sangue na camiseta branca.
Desesperada, tenta identi car qualquer movimento, qualquer sinal de vida.
Apesar do sangue e da posição do corpo, Elin ainda se agarra a um o de
esperança de que Farrah talvez esteja viva.
Ela contorna o corpo até conseguir enxergar o rosto.
Não é a Farrah.
73
É Jo Leger.
Seus olhos estão fechados, mas ela parece qualquer outra coisa, menos em
paz. Há um enorme ferimento ensanguentado logo acima de seu olho direito,
onde seu crânio está esmagado e seu cabelo, bagunçado e sujo com uma
mistura de sangue e areia.
A blusa branca que Elin havia confundido com a camiseta de Farrah está
toda salpicada de areia e sangue.
Agora que tem certeza de que aquela é Jo, ela nota os detalhes com mais
atenção: a musculatura de nida, o tom de pele mais escuro. As semelhanças
com Farrah eram apenas super ciais.
Ao se aproximar, Elin não consegue parar de engolir, sua garganta seca de
um jeito um tanto impossível.
Ela calça um par de luvas e toca o pescoço de Jo para checar o pulso.
Enquanto posiciona os dedos, prende a respiração, ansiosa pelo resultado, mas
o corpo não lhe dá nenhum sinal além de um leve calor residual.
O coração de Elin hesita por um momento. Jo está morta, mas não faz muito
tempo.
Michael estava bem próximo quando encontrou aquela bolsa, e ela e Jared
também não estavam tão longe assim quando vieram correndo ao encontro
dele. O risco havia aumentado signi cativamente; um assassino que não tem
medo de ser descoberto — ou das consequências de ser descoberto — é capaz
de qualquer coisa.
Elin examina o ferimento meticulosamente. A causa da morte parece ter
sido um traumatismo craniano provocado por um objeto grande. Mas onde
está a arma?
Seus olhos percorrem aquele espaço reservado e toda a área externa. Não há
sinal de objeto algum.
Mas, ainda assim, sente uma pontinha de esperança: a escolha de Jo como
vítima revela algo fundamental.
Três mortes no mesmo grupo de pessoas. Bea. Seth. Jo. O que antes poderia
ser entendido como uma coincidência, naquele momento se assemelha a um
padrão.
Por que esse grupo de vítimas específico?
Depois do que tinham visto na caverna, Elin e Steed estavam inclinados a
aceitar a teoria de que a escolha das vítimas talvez fosse aleatória, algo que se
encaixaria com o grupo de adolescentes que o assassino havia selecionado
anteriormente. Agora, entretanto, ela se questionava se a escolha não era, na
verdade, mais deliberada.
Embora a motivação do assassino ainda pudesse derivar de uma crença
delirante na maldição da Pedra da Morte, talvez ele também tivesse outros
motivos para mirar nesse grupo especí co de pessoas.
— É a Farrah?
Elin leva um susto, mas é apenas Jared, parado do lado de fora da gruta,
com Michael logo atrás dele.
— Não — diz ela rapidamente. — É uma hóspede.
Ele dá um passo para trás, visivelmente abalado.
— Ela está…?
— Sim. Não faz muito tempo.
Então, após tirar algumas fotos, Elin sai da gruta enquanto Jared lhe faz
outra pergunta, mas suas palavras são engolidas pelo barulho da tempestade,
que não para de ganhar potência.
É como se a ilha, pacata e silenciosa por tanto tempo, tivesse nalmente
encontrado sua voz — uma voz que se manifestava através do mar, da chuva,
do vento que bradava e dos berros furiosos das gaivotas.
Aquela energia que, até pouco tempo atrás, apenas fermentava, produzindo
leves estalos, havia se transformado num tremendo rugido.
— Não é melhor a gente sair daqui? — A voz de Jared põe um m aos seus
devaneios.
Elin concorda, o medo pulsando de forma persistente dentro de seu peito.
Ela precisa checar a situação do envio de reforços e conversar com o grupo de
hóspedes afetado — ou com o que sobrou dele.
Hana, Maya, Caleb.
Está na hora de pegar pesado.
74
— Desculpa, Elin, não tem mais nada que eu possa fazer. Já mexi todos os
meus pauzinhos. As equipes de bombeiros e de resgate ainda estão lá ajudando
as pessoas, mas já está quase no m. Questão de horas, espero.
— Mas a Farrah continua desaparecida. — Elin consegue ouvir o desespero
na própria voz. As coisas mudaram. Anna com certeza entende isso. — Nós
precisamos de mais recursos para fazer as buscas.
Seu olhar corre até a janela. A parede de vidro do outro lado está molhada
por conta da chuva, a silhueta borrada dos funcionários indo de um lado para
o outro, distribuindo um jantar improvisado composto de sanduíches e frutas.
— Eu entendo, mas não há nada que eu possa te dizer além de aguente
rme. Estaremos aí com vocês assim que for possível.
— Tudo bem, então. Eu mantenho contato.
Ela precisa reunir toda a sua força de vontade para colocar alguma
positividade em seu tom de voz. É em momentos como aquele — e sempre
existem momentos assim numa investigação —, quando as coisas não saem
como você gostaria, que você mostra quem é de verdade. Ela precisa resgatar
aquela força que havia sentido antes.
— Imagino que esteja tudo na mesma — adivinha Steed, em um suspiro,
depois que ela se despede.
— Por enquanto, sim. Eles ainda estão bem atolados por lá. Parece que vai
ser uma noite longa.
— Pelo menos nós temos um plano. — Mas a con ança em sua voz
contrasta com a preocupação em seu rosto.
Ele também está com medo. Só não quer demonstrar.
Ela faz que sim.
— Primeiro, temos que falar com o que sobrou do grupo dos Leger.
Conseguir algumas respostas.
— Duas pessoas do mesmo grupo talvez ainda pudesse ser uma
coincidência, mas três…
— Pois é. Eu acho que tem um motivo para o assassino ter escolhido seus
alvos. Tem que ter.
Steed se concentra em um funcionário que está claramente de olho nos
sanduíches.
— Mas isso não vai contra a teoria de que a motivação estaria ligada à Pedra
da Morte?
— Talvez. Mas é complicado. Se existe, de fato, um plano para executar
todo esse grupo, isso sugere uma motivação muito pessoal. Mas, ao mesmo
tempo, temos todos aqueles adolescentes mortos… e o assassinato da Jo na
praia… Isso sugere um assassino mais descontrolado, que age por impulso.
Sua mente está dando cambalhotas. Steed passa a mão na testa.
— Essas diferenças podem ser o resultado do mau uso de algum
medicamento. Em algumas situações, ele pode estar mais lúcido do que em
outras.
— Ou até mesmo que são duas pessoas diferentes trabalhando juntas —
acrescenta Elin, mordendo o lábio. — Eu só não estou conseguindo montar
esse quebra-cabeça. Tudo que nós encontramos na caverna e as questões
envolvendo a condenação da Creacher sugerem que é a mesma pessoa, mas
essas discrepâncias me incomodam. Os diferentes níveis de planejamento, por
que deixar aquelas pedras ao lado do corpo dos adolescentes, e agora não temos
nenhum sinal delas…
Ele dá de ombros.
— Vai ver a escolha daqueles adolescentes tenha sido bem mais intencional
do que estamos pensando.
— Verdade, mas qual seria a ligação entre eles e os Leger?
— Bom, talvez seja mesmo só uma coincidência todos serem do mesmo
grupo — comenta Steed, pausadamente. — Não sobrou muita gente na ilha.
O assassino pode estar só aproveitando as oportunidades que tem.
— Talvez. Mas eu tenho a sensação de que nós estamos deixando alguma
coisa passar, especialmente em relação à escola.
— Mas como isso se relaciona aos Leger? — Steed franze a testa. — A
menos que eles tenham uma genética extremamente abençoada, eles não
deviam ser nem nascidos quando a escola estava em funcionamento.
— Eu sei. Mas acho que vale a pena dar uma conferida para ver se algum
deles tem alguma ligação com a escola.
— Bom, podemos perguntar agora — diz Steed, gesticulando com a cabeça
em direção à porta. — Eles acabam de chegar.
75
— Deixa comigo — diz Elin, mas, à medida que as palavras saem, sua voz vai
cando cada mais fraca, o peso da notícia que está prestes a dar se tornando, de
repente, insuportável.
É como se a visão de Hana, Caleb e Maya tivesse removido o bloqueio que
ela havia colocado na própria mente desde a praia. A lembrança está fresca em
sua memória: o corpo ensanguentado de Jo Leger estendido sobre a areia.
— Não precisa ser agora — conforta Steed, a observando.
— Acho que a cha… acabou de cair. Foi um choque duplo, de certa
forma; eu tinha certeza de que era a Farrah, mas acabei encontrando outra
pessoa… — A detetive fecha os olhos, relembrando o momento.
— É compreensível. Quer que eu faça as honras?
Elin sorri, agradecida.
— Por favor.
Hana está parada a alguns metros de distância. Elin e Steed andam até ela.
O cabelo da mulher está molhado; suas pernas, salpicadas de barro. Caleb e
Maya estão logo atrás, igualmente enlameados, parados de um jeito todo
esquisito. Os cachos pretos de Maya, libertos de seu lenço de sempre, estão
encharcados, colando nos ombros. Caleb tira um AirPod do ouvido quando
eles os cumprimentam, mas parece um tanto atordoado, enquanto passa os
dedos na bainha de sua camiseta azul. Anestesiado.
— Desculpe por termos vindo direto em cima de vocês, mas precisamos ter
uma conversa em particular. — Steed os conduz até um canto da sala. Ele
abaixa a voz: — O que vou dizer agora será um choque, mas preciso que
tentem não reagir nem chamar atenção dos outros hóspedes. Vocês acham que
conseguem?
Hana é a única que parece captar alguma coisa em sua expressão, ou, talvez,
no tom de sua voz.
— Aconteceu alguma coisa, não foi? — inquere ela, rapidamente.
Steed vai direto ao ponto:
— Infelizmente eu tenho que informar a vocês que Jo está morta. Nós a
encontramos agora há pouco.
Há uma puxada de ar coletiva. Uma mudança repentina na atmosfera,
carregada de emoções. Os olhos de cada um do grupo se xam no rosto de
Steed, primeiro, e depois no de Elin, como se estivessem esperando o desfecho
de uma piada, mas não há desfecho algum.
— Não é possível — gagueja Maya. — Ela estava com a gente agorinha
mesmo. No chalé. — Ela se vira para Hana. — Você disse que ela estava
fazendo a mala, não foi?
O rosto de Hana ca pálido e se tensiona.
— Foi. Eu pensei que ela estivesse. — Um toque de histeria tempera sua
voz. — Nós batemos na porta do quarto dela antes de sairmos, mas ninguém
respondeu. Achamos que ela já tinha vindo pra cá. — Ela solta um gemido
baixinho. — Quem está fazendo isso? E por que a gente?
Caleb passa o braço em volta de seus ombros.
— O que foi que eu disse? — resmunga. — Este lugar não é…
— Como? — diz Maya, em tom de desespero, cortando o que ele está
dizendo. — O que aconteceu?
— Nós a encontramos na praia. Parece que alguém a atacou lá.
Hana começa a chorar, seus ombros sacodindo. A imagem afeta Elin: apesar
de Caleb e Maya estarem ao lado, ela parece sozinha. Vulnerável.
Steed pigarreia e olha para eles.
— Lamento ter que perguntar isso justamente agora — começa ele, numa
voz calma —, mas vocês estiveram todos juntos nas últimas horas?
— Sim, nós estávamos no chalé, arrumando nossas coisas para vir pra cá. —
Lágrimas também se formam nos olhos de Maya. — Digo, não camos juntos
o tempo inteiro… Cada um estava no próprio quarto, mas ninguém saiu de lá,
saiu?
— Eu não iria sozinho a lugar nenhum aqui — solta Caleb.
Ele dá uma risadinha sarcástica, que não é capaz de suprimir a tremedeira
em seus lábios. De repente, explode em choro e vira o rosto, envergonhado,
quando um outro hóspede, à direita deles, olha naquela direção.
— Nem eu. — Hana balança a cabeça, as lágrimas agora escorrendo por seu
rosto. — Não consigo acreditar. A Jo também…
Maya morde o lábio, mas não consegue se conter — começa a chorar
ruidosamente.
Steed espera antes de voltar a falar.
— Olha, sinto muito por bombardear vocês de perguntas desse jeito, mas
ajudaria muito se pudessem nos dizer quando foi, exatamente, a última vez que
viram a Jo, para que tenhamos uma ideia mais clara da movimentação dela.
— Acho que, pra mim, é mais fácil responder essa — diz Caleb, girando a
caixinha do AirPod nas mãos. — Eu nem a vi direito hoje, desde o café da
manhã. E também não saí do chalé, exceto quando fui comer alguma coisa,
umas horas atrás.
Maya tenta se recompor, enxugando os olhos.
— A última vez que eu a vi foi depois do café da manhã.
— E você? — pergunta Steed, se dirigindo à Hana.
Hana enche o peito, depois solta o ar pela boca.
— Acho que a última vez que eu a vi foi lá fora, perto da piscina. A gente…
a gente discutiu. Eu a segurei pelo braço… — Ela para, e começa a chorar de
novo. — Eu a segurei pelo braço e…
76
Oi, meu nome é Alain Dunne, eu estudei na Rock House entre 1963 e
1967. Agora é bem óbvio que aquilo ali era o lixão onde as autoridades
locais de todo o Reino Unido despejavam as crianças “desajustadas” (que era
como se referiam a nós) que tinham problemas de comportamento.
Vários comentários abaixo, surge uma foto na discussão sobre a escola. Elin
continua lendo.
Um amigo do meu pai foi professor na Rock House nos anos 1960 e 1970.
Eu era criança na época, mas morria de medo dele, então vai saber o que
aqueles meninos devem ter passado.
Mais alguém se lembra do Porter Jackson? Ele era da minha turma. Única
pessoa com quem não mantive contato.
Elin encara a tela, seu coração batendo tão forte que conseguia senti-lo nos
ouvidos.
Estava bem ali: Porter Jackson, barqueiro na época dos assassinatos de
Creacher e alguém que havia protestado publicamente contra o
desenvolvimento da ilha, tinha estudado naquela escola.
Sua ligação com a ilha ia muito além dos assassinatos de Creacher.
— Achou alguma coisa? — Steed tenta olhar para a tela dela.
— Achei. O barqueiro, Porter Jackson.
Ela conta para Steed sobre a ligação dele com o artigo que havia lido, e
depois continua lendo os outros comentários, lembranças de professores e da
comida de qualidade duvidosa. Com o dedo sobre a tela, se detém em um deles
quase na metade da página.
Mais alguém se lembra daquela sala estranha para onde eles nos levavam?
Tinha umas coisas esquisitas no chão — umas pedras que se pareciam com a
pedra da ilha.
Elin pisca e relê aquela mensagem enquanto tem uma sensação estranha de
estar perdendo o chão: a sala, com certeza a mesma que Michael Zimmerman
havia mencionado.
Uma sala com pedras no chão. Como a caverna na pedreira.
Aquilo não podia ser coincidência. Ela vira a tela do telefone para Steed.
— Olha isso.
Ele solta um assobio.
— Puta merda.
Elin sente um arrepio. Os rumores que tinha ouvido sobre a escola agora
faziam sentido; as expressões anestesiadas dos garotos nas fotogra as,
Zimmerman falando sobre o trauma que o artista tinha relacionado ao tempo
em que estudou lá.
Perplexa, ela continua a leitura.
Não. Eles vendavam a gente, né? Mas não ficava muito longe da casa.
Eu lembro que tinha que descer uns degraus.
Só sei que funcionava. Nos deixavam a noite inteira ali, sozinhos… era um
castigo horrível, mas, depois daquilo, eu nunca mais me comportei mal.
Até hoje eu tenho pesadelos com isso. Eu comecei a usar isso na minha
arte… foi a única maneira que encontrei para processar tudo isso.
Vamos continuar essa conversa em privado, não acho que um fórum público
seja o lugar para falar desse assunto.
Elin continua lendo, mas aquela é a última menção à sala.
— Eu não entendo o que se passa na cabeça dessas pessoas. — Steed faz
uma careta. — Crianças indefesas…
— Pois é. E gente que deveria estar lá para protegê-las… — Enquanto Elin
volta a tela até um ponto especí co da conversa, seus olhos se xam numa
frase: Eu comecei a usar isso na minha arte. — Essa parte, sobre arte, me fez
pensar naquela obra que está na recepção, cheia de imagens da Pedra da Morte.
E se elas forem representações das pedras que cavam nessa tal sala?
— Talvez seja uma maneira de processar tudo, como disse esse cara.
— Algo que, talvez, o nosso assassino nunca tenha feito. Acho que temos
uma motivação bem substancial aqui. E se o nosso assassino estiver revivendo
através de seus crimes as experiências que teve naquela sala? E se estiver lidando
com um… trauma profundo? E se, ainda por cima, ele estiver em surto…
Steed concorda lentamente com a cabeça.
— Mas, se esse é o caso, isso implica o fato de o assassino ser alguém que
estava na escola, ou que a frequentou. Ou, no mínimo, alguém que a conhece.
— Você tem razão. — A mente de Elin vai direto para a pessoa cujo nome
havia chamado sua atenção para aquela discussão. — A única pessoa que se
encaixa nesse per l é Porter Jackson, mas a pergunta é: ele estava na ilha
quando Lois Wade desapareceu? Vou mandar uma mensagem para o Johnson.
Ele responde quase que instantaneamente. Elin vira-se para Steed.
— O Jackson era o barqueiro quando Lois desapareceu. Johnson não achou
isso relevante na época, porque, pelo jeito, Jackson deixou os adolescentes lá e
foi embora, e várias pessoas con rmam isso.
Ela detecta um brilho efêmero nos olhos de Steed.
— Mas só porque ele foi embora, não quer dizer que não tenha voltado.
— Exatamente.
Era uma teoria. Ela, no entanto, não conseguia ignorar os furos: apesar de
Jackson ter estado ou na ilha ou em algum lugar próximo na época dos
assassinatos do Creacher, não há nenhuma prova de que esteja ali agora.
— Vamos ver se conseguimos descobrir alguma coisa sobre o paradeiro
atual dele. — Elin rapidamente procura o nome dele, mas a busca lhe retorna
diversas páginas de resultados. — Péssima ideia. Vou perder horas nisso. Vamos
ligar para a inteligência, pedir ajuda. Enquanto isso, eu queria falar com o
Michael e dar uma olhada nessa estrutura que ele mencionou. Ele disse que
está bloqueada, mas, depois de ler isso, acho bom dar uma conferida para ver
se não tem algum outro ponto de acesso.
— Você acha que o assassino pode estar escondendo a Farrah nesse lugar?
— É uma possibilidade. Fique de olho nas coisas por aqui e eu vou atrás do
Michael.
Então, pegando sua bolsa, ela sente uma injeção de entusiasmo, a adrenalina
pulsando tão rápido em suas veias que ela chega a tropeçar enquanto sai
andando pelo salão.
Eles estão quase lá. Peça por peça, o quebra-cabeça está sendo montado.
78
As pernas de Elin tremem no trajeto para o salão de eventos. Ela se sente como
se estivesse oca, vazia, após ouvir as palavras de Will.
Ele quer conversar — aquilo soa péssimo. Não consegue parar de pensar que
Will nalmente tinha percebido como ela era de verdade, e não tinha gostado
do que viu. E se eles não conseguissem se recuperar disso? Como ela lidaria
com a situação se ele não con a mais nela como antes?
Assim que chega à porta do salão, porém, ela se força a parar de pensar
naquilo.
Recomponha-se. Você ainda tem trabalho a fazer.
Assim que o funcionário do retiro do lado de fora do cômodo abre a porta,
um cenário caótico se revela: malas e roupas espalhadas pelo chão, fragmentos
de conversas frustradas pipocando de todos os lados. Por que eles não nos dão
nenhuma informação? Eu quero ir embora agora. Eu quero ir pra casa. Os
funcionários estão no processo de levar colchões para lá, mas a maioria das
pessoas já se acomodou — em camas improvisadas feitas com suas próprias
roupas, ou empoleiradas em ângulos esquisitos nas cadeiras.
Com a chegada da noite, as luzes no teto são a única iluminação do
ambiente. O efeito da luz arti cial é implacável, revelando as queimaduras de
sol e as olheiras escuras no rosto de cada um.
— E aí, como foi? — diz Steed, quando ela para bem ao seu lado.
— Nada bem. E você?
— Tudo certo. O Seth… Estava tudo como tínhamos deixado. — Ele faz
uma pausa. — Mas eu tinha razão, não fomos os primeiros a pisar naquela
cabana desde os tempos da ONG. Encontrei jornais do ano passado, e isso
aqui, escondido lá nos fundos. É de antes da construção do LUMEN. É a
cópia de um projeto. — Steed tira um papel dobrado de dentro da mochila e
entrega a ela. — Parece um projeto alternativo de desenvolvimento para a ilha.
Ele aponta para um trecho escrito a lápis no canto superior direito. Elin
analisa melhor. É uma proposta de conservação ambiental, uma designação da
ilha como Local de Interesse Cientí co Especial.
— Essa história de Local de Interesse Cientí co Especial tinha aparecido
naquele artigo que eu li sobre o Porter Jackson reclamando das obras de
desenvolvimento da ilha…
Steed continua olhando para o projeto.
— Também tem um nome aqui, Christopher alguma coisa… Não consegui
entender o resto.
Ela examina aquela letra bonita, enquanto algo começa a piscar em sua
cabeça, mas não consegue dizer exatamente o quê.
— Mais alguma coisa?
— Um estudo de caso sobre o impacto desse tipo de obra no ecossistema,
na vida selvagem… dados acerca do uso de energia, destruição do meio
ambiente…
— Talvez estivessem planejando uma denúncia contra o retiro.
— É o que parece. — Ele dá de ombros. — Desculpa não ter sido mais útil.
Achei que isso poderia trazer revelações.
— Sem problemas. — Elin respira fundo. — Beleza, vou tentar acalmar os
ânimos do pessoal. Imagino que você não tenha nenhuma novidade sobre o
envio de reforços.
— Não, mas falei com eles. Boas e más notícias. Vou começar pelas boas,
embora não tenha muita certeza de que merecem ser classi cadas desse jeito…
A equipe de análise de dados mandou o relatório do celular de Bea Leger.
Con rma o que o cara dos esportes aquáticos disse para você. Ela fez várias
ligações na noite em que chegou na ilha. Uma é para o que sabemos ser o
celular da irmã dela, e outra para um número desconhecido. Tentei ligar para
ele, mas está fora de área. Pedi que levantassem qualquer informação disponível
sobre o número.
— Você acha que pode ser um celular descartável?
— Provavelmente, e a irmã tinha razão. O cartão de memória foi mesmo
tirado do telefone. E foi usado diversas vezes desde que o corpo de Bea Leger
foi encontrado.
— Possivelmente pelo assassino. Deve estar deletando informações.
— Parece que sim. — Steed dá de ombros. — Mas descobrir em qual
telefone ele foi inserido talvez seja que nem procurar uma agulha no palheiro.
— E as más notícias?
— Eu falei com a Anna quando estava voltando da praia. Você devia estar
no telefone… Ela tentou ligar para você. — Ele hesita por um instante,
visivelmente desconfortável com o que está prestes a dizer. — Postaram mais
um tuíte, Elin.
Sua mente leva um momento para entender do que ele está falando.
— Mais um?
— Aham. — Ele parece incomodado. — Anna ligou porque, dessa vez,
tinha uma foto sua…
— Mas no tuíte anterior também tinha uma foto minha.
O tom de voz dele a deixa preocupada: não é o tom casual, genuíno e
reconfortante dos últimos dias, mas uma coisa forçada. Ele está apavorado por
ela.
— Não, dessa vez foi diferente — explica ele, e se atrapalha tentando pegar
o celular. — A Anna fez um print. Olha.
Steed passa o celular para ela. Elin olha para o tuíte.
Por uma fração de segundo, sente como se seu coração tivesse parado de
bater. E entende imediatamente por que ele hesitou tanto em lhe contar aquilo.
A questão não era terem feito a mesma coisa de antes — dois buracos no
lugar de seus olhos —, mas o que o fundo da imagem lhe dizia.
A foto havia sido tirada no dia em que ela chegara ao retiro. Elin estava
parada ao lado do pavilhão de yoga.
A pessoa que está postando esses tuítes está na ilha junto com ela.
83
Flashes dos últimos dias passam pela cabeça dela: Elin sozinha nos fundos do
prédio principal, alguém andando com uma lanterna pelo mato; a pedra
despencando da falésia…
Será que ela está correndo perigo real?
Steed pega o celular de volta.
— Eu acho que alguém está querendo intimidar você, só isso.
— Se fosse só isso, por que não tentariam fazer o mesmo com você
também?
Ele hesita por um instante.
— Não sei — diz o colega, por m.
Elin sente a cabeça rodopiar: E se não for o assassino quem está postando essas
coisas? Será que é o mesmo troll que fez uma coisa parecida durante o caso Hayler?
Será que é o próprio Hayler? Aquilo não seria impossível. Ele nunca chegou a ser
encontrado. E quanto a Zimmerman? A detetive tinha a impressão de que o
conhecia de algum lugar…
— Talvez não signi que nada — reitera Steed, rapidamente. — Pode ser só
uma brincadeira, alguém que descobriu que você é policial e quer te dar um
susto. Por mais horrível que possa parecer, acho que, por ser mulher, você é
mais suscetível a esse tipo de coisa. Nós dois sabemos muito bem o que as
policiais precisam aturar. A maioria dessas pessoas são covardes se escondendo
atrás do teclado. Não quer dizer que elas vão mesmo fazer alguma coisa.
Elin assente. Ele tem razão, a maioria jamais faz algo físico, mas isso
também não chega a ser um alívio. A nal, já trabalhou com vítimas de stalkers
e sabe que o medo real vem da ameaça de violência, da certeza de que alguém
está sempre observando. À espreita. A imprevisibilidade de qual será seu
próximo passo.
— Olha, é só uma coisa em que temos que car de olho. — A voz de Steed
estava mais estável agora, como se ele estivesse reforçando sua convicção
naquilo conforme vai dizendo as palavras em voz alta. — Alguém, seja ou não
o assassino, está tentando entrar na sua cabeça, atrapalhar a investigação. Você
não pode deixar que isso aconteça. Não depois de já termos chegado tão longe.
— Ele indica com a cabeça as demais pessoas no cômodo. — Todo mundo
aqui está con ando em você. Eles precisam de você para saber o que está
acontecendo.
— Você tem razão.
Suas palavras destoam do turbilhão que sente dentro de si. Ela está
começando a ter um mau pressentimento quanto àquilo.
Elin se recompõe. Em seguida, se dirige até a parte da frente do salão.
— Com licença, gostaria de dizer algumas palavras.
Nenhuma reação. Nem sequer olham para ela.
Batendo palmas alto, Elin levanta a voz:
— Com licença, se puderem me dar um minuto de sua atenção, eu gostaria
de dizer algumas palavras…
— Já estava na hora — comenta alguém, mas Elin segue falando.
— Entendo que a situação é preocupante e que vocês provavelmente têm
mais perguntas do que eu tenho respostas. Neste momento, tudo o que posso
dizer a vocês é que estamos lidando com um incidente aqui na ilha e, para a
segurança de todos, o melhor a se fazer é carmos todos juntos. — Mais
cochichos de descontentamento. — Fiquem tranquilos, pois a polícia está
ciente da nossa situação. Assim que puderem nos enviar reforços, farão isso.
— Mas o que está acontecendo, exatamente? — questiona outra pessoa.
— Infelizmente, não posso entrar em detalhes, não até que tenhamos mais
informações.
Suor começa a brotar na nuca dela. Há mais burburinho e cabeças
balançando. Uma onda de tensão permeia o cômodo, uma hostilidade
profunda nos rostos reunidos à sua frente.
Elin sabe o porquê: as pessoas costumam se sentir aliviadas quando alguém
assume o controle de uma situação, mas não quando não há respostas. Sem
respostas, a imaginação toma conta.
Ela continua a falar, seguindo o roteiro improvisado que havia preparado
em sua mente: instruções sobre como proceder quando alguém quiser usar o
banheiro, ou como se portar numa emergência. Está na metade de sua fala
quando um homem se coloca à sua frente, a insatisfação bem óbvia em seu
rosto. Ele en a as mãos nos bolsos da calça, deixando os polegares para fora,
apontados para ela, sinalizando hostilidade.
— Você não pode dizer mais nada? — Uma marca vermelha de sol na
lateral do rosto dele faz parecer que levou um tapa. — Falar de um incidente
sem dar detalhes não é o su ciente. Minha esposa está apavorada, a gente só
ca ouvindo os boatos. Alguém ouviu um funcionário do retiro dizer que
acharam um corpo na praia.
Elin o encara, se sentindo exposta.
— Infelizmente, não tenho maiores informações a esse respeito. O que nós
queremos agora é manter todo mundo em segurança.
O homem permanece olhando xamente nos olhos dela, como se a estivesse
desa ando, mas o momento é interrompido pelo barulho ensurdecedor do
vento do lado de fora. Parece enlouquecido, fora de controle, como se estivesse
querendo arrancar o prédio do chão.
O salão cai num silêncio incômodo.
Mas Elin sabe que eles só estão dando uma trégua porque está tarde. É
quase meia-noite, as pessoas estão cansadas, não conseguem raciocinar direito.
Já passou da hora de dormir. Amanhã, quando todos acordarem descansados,
estarão em polvorosa. Ela precisa estar preparada.
— Vou repassar minhas anotações mais uma vez, reler os depoimentos que
Johnson mandou — diz para Steed, após se afastar das pessoas.
— Eu também.
Sentando-se num canto do cômodo, Elin começa a ler, procurando alguma
coisa, qualquer coisa. Agora tinha uma motivação plausível, mas, se Jackson
estava morto, quem seria o responsável?
Tinha que ser alguém ligado a três linhas do tempo diferentes — a escola,
os assassinatos de Creacher e o presente momento. As possibilidades parecem
escassas e, ao mesmo tempo, in nitas. Além disso, enquanto vasculha os
arquivos, ca repassando a conversa que teve com Will.
Às vezes, não fazer nada é a coisa mais corajosa que você pode fazer.
Reconhecer seus limites.
Lágrimas começam a incomodar seus olhos. E se ele tiver razão? E se isso
estiver além das capacidades dela? Elin se sente consumida por antigas dúvidas,
seus pensamentos acelerando. E se acontecer alguma coisa com a Farrah esta
noite? Bem debaixo do seu nariz? E aquele tuíte?
Com os pensamentos ainda rodopiando na mente, ela sente o estresse
acumulado do dia atingi-la feito uma marreta.
Então, se recosta na cadeira e fecha os olhos para ter um momento de
sossego.
84
Dia 4
Elin não sabe ao certo por quanto tempo dormiu quando escuta uma voz que
parece sair das profundezas de sua mente.
Ao abrir os olhos, ela leva um susto. Ronan está parado logo ali, inclinado
para ela, com o celular nas mãos, girando-o entre os dedos.
— Desculpe acordá-la.
— Tudo bem. — Ela se ajeita na cadeira, sentando-se melhor. — Eu não
deveria ter caído no sono.
O salão à sua volta está mergulhado na penumbra, cheio de gente dormindo
nas cadeiras e pelo chão. Algumas poucas pessoas ainda estão acordadas — a
luz da tela dos celulares dando um brilho esquisito aos seus rostos. Ela nota que
Steed também sucumbiu ao sono e está dormindo sentado na cadeira, com a
cabeça virada para o lado. Elin o cutuca com um dos pés, mas tudo o que ele
faz é soltar um leve ronco.
Ronan balança a cabeça.
— Compreensível, e eu deveria estar fazendo a mesma coisa, mas minha
cabeça não para desde a nossa conversa. Eu quei pensando sobre o Jackson,
aquilo que você perguntou sobre a família dele. — Ele balança a cabeça. — De
repente, eu me lembrei. No dia dos protestos, o Jackson estava com alguém.
Ele meio que me apresentou para a pessoa, acho que era o lho, e eles estavam
trabalhando juntos. Mas tinha tanta gente lá, virou tudo meio que um borrão.
— Você se lembra de alguma coisa sobre o lho dele?
— Não muito. Ele estava usando um boné, tinha barba e os olhos eram
parecidos com os do Jackson… — Uma pausa. Ele franze a testa. — Na
verdade, tinha uma coisa, sim. Ele gaguejava um pouco, igual ao Jackson.
Provavelmente foi por isso que eu cheguei à conclusão de que eram parentes.
Eu sei que esse tipo de coisa é hereditário. Meu tio era gago e meu primo
também.
Gago. Enquanto assimila aquela palavra, Elin sente algo se conectando.
Alguma coisa que tinha captado na primeira vez que conversou com alguém
ali, a maneira extremamente calculada como a pessoa falava. Uma pausa quase
imperceptível no começo de cada frase, como se estivesse escolhendo a dedo as
palavras. Outra associação: a camiseta azul da gura que tinha visto andando
no meio do mato. Era da mesma cor que a pessoa estava usando naquele
momento.
As idades batiam.
— Me dá um segundo — pede a detetive.
Elin en a a mão dentro da bolsa e tira um saco plástico contendo a
fotogra a rasgada. Ela vai organizando os fragmentos de papel no colo, meio
desajeitada, e ca olhando para a imagem.
Rostos se formam no meio daquela bagunça. Adolescentes. Professores.
Monitores do acampamento.
Ela os examina cuidadosamente mais uma vez, até que seus olhos se detêm
num rosto em particular.
Caleb.
Bem ali, na última leira, um dos monitores.
Por um momento, ela não enxerga Caleb na foto — parece uma pessoa
completamente diferente, o maxilar delicado de agora escondido atrás de uma
barba, cabelos sebosos e compridos alongando seu rosto. O boné camu a ainda
mais suas feições quando ela tenta olhar mais de perto.
Agora que sabe o que está procurando, as semelhanças estão muito
evidentes. Os olhos, o desenho da boca. Foi por causa disso que seu
subconsciente havia apitado quando ela juntou todos os pedaços rasgados que
encontrou na lixeira de Farrah.
Seu coração bate com força enquanto a mente vai ligando os pontos, antes
aparentemente tão desconexos: a gagueira, o comentário de Steed de que Caleb
falava muito mal de Seth e do retiro, o fato de Hana ter lhe dito que Caleb
havia perdido o pai.
Seu pai era Porter Jackson.
— É ele — balbucia Elin.
O vento se choca novamente contra a lateral do prédio, abafando suas
palavras.
Caleb estava na ilha quando os assassinatos de Creacher aconteceram.
85
— Parece que são e-mails que ela enviou para si mesma, cópias de mensagens
que tinha mandado para o Caleb — diz Steed. — Pelo que estou vendo, a Bea
mandou para o Caleb essas mensagens na manhã em que o grupo chegou à
ilha. — Ele toca na tela. — Parece que ela também encontrou o passaporte. Ela
tirou uma foto do documento e perguntou: O que é isso? — Ele faz uma pausa
e continua a descer a tela. — Ela também perguntou a ele sobre e-mails que
encontrou, enviados por uma conta diferente. Ao que parece, mensagens
ameaçadoras. E pelo jeito ele nunca a respondeu.
— De quando são essas mensagens?
Ele segue passando o dedo pela tela.
— O primeiro que aparece aqui foi mandado há uns dezoito meses.
Dezoito meses atrás. Aquilo não podia ser uma coincidência.
— Mais ou menos na mesma época em que estavam construindo o hotel.
Não muito tempo depois do funeral do Porter Jackson.
Maya vira-se para Hana.
— O Caleb disse pra você que o pai dele tinha morrido, não?
Hana assente.
— Em circunstâncias bem trágicas, pelo que parece. Ele me contou esses
dias que alguém tinha dado um golpe e roubado o dinheiro do pai não muito
antes da morte dele. Se não me engano, ele estava começando a colocar a vida
nos eixos quando isso aconteceu.
Enquanto absorve aquelas palavras, Elin pensa no que Ronan Delaney havia
lhe dito sobre Jackson ter perdido dinheiro num investimento — um
investimento que ele o havia aconselhado a fazer.
Todos aqueles pedacinhos começam a se encaixar em sua mente, formando,
pela primeira vez, uma narrativa coerente: uma que atribuía a Caleb uma
motivação mais consistente para assassinar Seth Delaney. E, pelo que eles
haviam encontrado, parecia que o fato de Bea ter descoberto sua verdadeira
identidade também lhe dava um motivo para matá-la.
O ceticismo se instala na cabeça de Elin quando ela se dá conta de que
aquele caso não tinha nada a ver com maldição alguma. A motivação de Caleb
era outra, uma totalmente diferente.
— Acho que temos um cenário perfeito aqui — diz Elin, afastando-se
lentamente, para que Hana e Maya não pudessem ouvi-la. — E se o plano que
Caleb e o pai haviam feito para a ilha nunca foi posto em prática porque
Delaney deu um golpe em Porter Jackson para que ele perdesse todo o dinheiro
que tinha, um dinheiro que poderia ter sido usado justamente para dar entrada
nesse processo? E depois que tudo isso aconteceu, o Delaney iniciou às obras
do retiro.
— Foi um tremendo tapa na cara.
— Exatamente. Os Jackson tentam protestar contra as obras, não dá certo, e
aí, pouco tempo depois, Porter Jackson morre. — Ela olha para Steed. — Isso
daria uma motivação bem sólida para o Caleb.
— Vingança.
Ela faz que sim.
— Uma motivação muito mais sólida do que as maldições envolvendo a
Pedra da Morte.
— Mas e tudo que nós vimos na caverna, os adolescentes do Creacher? —
questiona Steed, lentamente. — Onde isso se encaixa?
— Acho que tudo se encaixa perfeitamente. A caverna, eu tenho certeza, foi
obra do Porter Jackson e, para ele, a motivação da maldição, da in uência da
Morte, permanece. As pequenas diferenças que percebemos entre os casos
ocorrem pelo fato de os crimes terem sido cometidos por duas pessoas
diferentes. Acho que Porter Jackson era obcecado pela pedra, e matou aqueles
adolescentes em 2003, e Caleb apenas se utilizou dessa conexão para tentar nos
despistar.
— Faz sentido, mas uma coisa que eu não entendo é por que, para começo
de conversa, a coisa do Local de Interesse Cientí co Especial importaria tanto
para os Jackson.
— Pense no que Caleb disse a Hana sobre como seu pai estava conseguindo
colocar a vida de volta aos eixos pouco antes de morrer, e nos e-mails
ameaçadores que Seth Delaney estava recebendo. A mensagem por trás dessas
duas coisas é bem similar: Ronan Delaney tinha impedido que as pessoas
tocassem suas vidas. Se quem mandou os e-mails foi mesmo o Caleb Jackson,
talvez eles estivessem se referindo a isso. Talvez essa coisa do plano de
preservação fosse uma maneira de garantir que o pai não sentisse a necessidade
de voltar a matar. Se a ilha se tornasse uma reserva ambiental, ela não seria
habitada, e aí não haveria nenhuma tentação.
— Quebraria o encanto.
— Exatamente. Eu… — Elin para de falar ao ouvir passos se aproximando.
Eles veem Tom, o instrutor de esportes aquáticos, desviando das pessoas
dormindo no chão.
— Preciso falar uma coisa pra vocês — diz ele, com pressa. — Eu vi um
homem lá fora, correndo pela ponte que dá acesso à ilhota.
Elin puxa o ar com força.
— Quando?
— Faz uns dez minutos… Eu tinha acabado de acordar, ouvi um barulho.
Achei que fosse a tempestade, a princípio, mas daí lembrei que tinha me
esquecido de guardar o último suporte de pranchas. Não queria que elas
cassem se batendo na cabana, então fui até lá para resolver isso.
— Imagino que você não tenha usado a porta principal para sair.
Um pouco constrangido, Tom faz que não com a cabeça, apontando para
um biombo perto de uma parede lateral, montado paralelamente a ela.
— Tem uma porta ali atrás. — Ele faz uma pausa. — Só fazia alguns
minutos que eu tinha saído quando o vi.
— Era um funcionário?
— Não tenho certeza — responde Tom. — É meio escuro ali… A ponte
em si não tem luzes.
O estômago de Elin se revira.
A ilhota.
Virando-se para Steed, ela diz num tom mais baixo:
— Você procurou por lá, não procurou?
— Passei um pente- no.
— Alguma chance de ter deixado alguma coisa de fora?
— Sempre é possível. A mata é bem fechada em algumas partes.
— Eu quero dar mais uma procurada. — Elin olha para ele. — Vou até lá.
Ele franze a testa.
— Sozinha?
— Tem que ser, não posso correr o risco de deixar as pessoas sem supervisão
aqui.
— E você vai agora?
Ela faz que sim com a cabeça, a adrenalina pulsando em seu corpo ao olhar
para fora.
— Se for mesmo o nosso assassino — diz —, possivelmente Caleb, acho
que tem um bom motivo para ele ter ido até lá.
— Farrah.
88
Depois que os detetives se afastam, Maya volta a se deitar, seus cachos pretos se
espalhando pelo tecido claro do casaco.
— Han, tenta voltar a dormir. Não tem nada que você possa fazer. Não
agora. Você precisa dormir.
Hana a ta, incrédula. Como é que a Maya pode sequer pensar em descansar?
Uma onda de náusea percorre seu corpo quando ela pensa que o grupo que
desembarcou no cais poucos dias atrás foi reduzido a isto. A elas duas. Hana
não consegue suportar.
— Eu não entendo. — As lágrimas se acumulam, esquentando seus olhos.
— O Caleb… ele amava a Bea. O jeito como ele falava dela… não tem como
ngir uma coisa dessas.
Ela repassa as conversas dos dois na cabeça, uma bola de raiva e frustração
queimando em seu peito. Ele estava visivelmente enlutado. Como ela não havia
percebido algo tão importante?
— As pessoas mentem, Hana, você sabe disso. — Maya diz aquilo num
tom sem vida.
— Eu sei, mas quando foi que ele fez isso? A gente passou a maior parte do
tempo junto.
— Mas não todo. Eu estava pensando nisso. Depois que tudo aconteceu,
nós nos fechamos nas nossas próprias bolhas e camos achando que ele estava
no quarto, mas pode ser que ele tenha saído. Teve várias vezes em que o Caleb
foi sozinho até o restaurante, dizendo pra gente que tinha ido beber ou comer
alguma coisa, mas só Deus sabe o que ele estava fazendo. Eu não saberia dizer
quais foram, exatamente, os movimentos que qualquer um de nós fez… não de
verdade.
Hana aquiesce enquanto pensa em tudo aquilo.
— Mas como ele seria capaz de fazer algo assim? Algo tão errado? Mesmo se
você odeia muito uma pessoa, isso não te dá o direito de… — Ela não se
contém, e as lágrimas começam a cair, escorrendo pelo rosto.
— Eu não faço ideia. Como saber o que passa pela cabeça de outra pessoa?
— Maya faz uma pausa. — E, Han, não é você quem tem que descobrir essas
respostas. Nós já passamos por muita coisa. A Jo… está morta. — Ela tenta
olhar nos olhos da prima. — Nós ainda nem falamos sobre isso, né? Sobre a Jo,
quero dizer.
Hana balança a cabeça. Ela sente tudo ao mesmo tempo. Toda a raiva que
sentia de Jo misturada a uma estranha culpa. Arrependimento. Amor. Uma
mistura complexa que não consegue compreender, e menos ainda administrar.
Mas pode senti-la, entalada em sua garganta, toda a emoção represada ali,
petri cada, de alguma forma.
— Eu não perdoo o que ela fez com o Liam, mas eu amava a Jo, Maya —
diz ela, com a voz trêmula. — E eu amava a Bea também. — Ela engole. — Eu
amava muito as duas, e agora elas estão mortas.
— Eu sei.
Maya segura a mão dela, e ali, no chão, naquele espaço repleto de estranhos
dormindo ao seu redor, as lágrimas e os sentimentos reais nalmente a oram.
Todas aquelas emoções haviam se tornado uma bola enorme, que só agora
estava sendo desenrolada.
— Eu estou sozinha, Maya — percebe Hana, e não só é a primeira vez que
diz aquilo em voz alta, mas também que aceita na própria cabeça. — Eu estou
totalmente sozinha. Minhas irmãs estão mortas.
Seu peito começa a palpitar quando a cha cai. Uma marretada de tristeza.
Maya olha para ela. Por um instante, Hana acha que a prima também está
prestes a chorar, mas, então, Maya estende os braços em sua direção e a abraça
com força.
Hana se lembra das duas fazendo isso quando eram crianças, a última vez,
na noite do incêndio. Maya sempre tinha pesadelos terríveis, e Hana a abraçava
até que ela voltasse a dormir.
— Você não está sozinha — consola Maya, com carinho. — Eu juro. Eu
estou aqui. E dessa vez, Han, não vou te abandonar. Vou car aqui pelo tempo
que você precisar.
89
Elin gira o corpo, mas então enxerga um galho grande a cerca de um metro da
parte de cima da janela. Está sendo balançado pelo vento, todo mole e num
ângulo esquisito, como se estivesse sendo puxado para baixo.
— É só um galho — diz, voltando a se sentar na cama, mas ainda está em
alerta, seus olhos atentos a cada centímetro daquele cômodo. — O que você
estava falando sobre a sua bolsa?
Farrah assente.
— Provavelmente o Caleb pegou meu celular e se livrou do resto. — Ela se
contorce mais uma vez enquanto troca de posição. — Hoje de manhã eu ia
tentar voltar até a ilha principal para te contar tudo, mas ele deve ter me
visto… Ou ele sabia que eu estava aqui esse tempo todo, e estava só esperando
o momento certo. Eu tentei fugir de novo, mas ele me alcançou. Acho que
pensou que tinha feito o serviço direito. Que eu estava…
Ela para de falar e pisca os olhos, lágrimas caindo.
— E você sabe por que ele veio atrás de você? — pergunta Elin, num tom
suave.
— Sei. — Os olhos de Farrah encontram os dela. — Imagino… que você já
saiba que eu estava na ilha quando os assassinatos do Creacher aconteceram.
Elin assente.
— Já conversei com o Will. Ele me explicou tudo.
O alívio suaviza as feições de Farrah, mas então seu rosto ca mais sério.
— O Caleb, ou Chris, como ele era conhecido na época, era monitor do
acampamento. Uns meses atrás ele veio até o retiro, com um amigo. Eu o
reconheci logo de cara, mas achei que era impressão minha, que era só uma
pessoa muito parecida com ele. Minha cabeça não anda lá muito boa, por
causa do meu ex. Não dei muita bola pra isso, até que ele apareceu de novo,
várias semanas atrás. Quando ouvi a voz dele, quei encucada, mas ainda
estava achando que era só a culpa falando mais alto, que eu estava sendo
paranoica. — Farrah balança a cabeça. — Mas aí percebi que ele estava
olhando para mim. Ele foi até o bar algumas vezes, sempre com a desculpa de
pegar uma cerveja, mas dava pra ver que estava me observando. Não estava ali a
troco de nada, sabe?
— Ele também reconheceu você.
— É, acho que sim. Foi aí que eu ressuscitei aquele recorte antigo do jornal
da viagem da escola. Não dava pra ter certeza de que era ele, mas eu estava
quase certa. — Farrah esfrega a têmpora. — Isso não seria nada de mais, mas aí
a Bea caiu, o Seth foi encontrado morto e eu sabia que o Caleb estava com
aquele grupo… Eu lembro que, quando era monitor do acampamento, ele
cava o tempo todo falando sobre a antiga escola e a Pedra da Morte, querendo
aterrorizar a gente. Ele sempre foi um cara meio estranho, sabe?
— Então você achou que o Caleb talvez tivesse alguma coisa a ver com tudo
isso?
Ela faz que sim com a cabeça.
— Acho que ele deve ter imaginado que eu estava descon ando de alguma
coisa, provavelmente tenha pensado que, se ele tinha me reconhecido, eu
também poderia ter feito o mesmo. Comecei a me perguntar se aquelas
mensagens que eu vinha recebendo não podiam ser dele, se estava tentando me
afastar da ilha antes dessa última vez que ele veio pra cá.
— E ele não fazia a menor ideia de que você pensaria que era o seu ex quem
estava mandando aquilo.
— Exatamente, e eu imagino que, quando percebeu que não fui embora,
como tinha esperado, ele achou que teria que fazer alguma outra coisa. — Ela
morde o lábio. — Eu devia ter tomado mais cuidado.
Cheia de culpa, Elin olha para ela, sentindo um calor se alastrando pelas
bochechas.
— A culpa não é sua. Eu não te escutei quando você me disse que queria
conversar. Eu te ignorei. — Ela balança a cabeça. — Sinto muito. Deveria ter
levado isso mais a sério.
— Não — responde Farrah, um vestígio de raiva no rosto. — Você não tem
que me pedir desculpas. Você ter me encontrado onde me encontrou mais do
que compensa. Se eu casse mais tempo lá…
Ela pega a mão de Elin e a aperta com força. Seus olhos procuram os da
cunhada e, quando se encontram, há uma troca ali, como a que havia
acontecido na frente do chalé naquele primeiro dia.
Uma conexão num grau que ela jamais imaginou que seria possível.
Elin desvia o olhar, sentindo mais uma vez um nó se formando na garganta.
Sabe que, por ter encontrado Farrah, ela ganhará o perdão não apenas de Will,
como também de si mesma. Ao ver Farrah imóvel, ali, naquele chão
encharcado, teve a sensação de estar diante de um acontecimento que mudaria
para sempre a vida de Will — mas também a dela. Uma vergonha e um
arrependimento que a perseguiriam para sempre.
Farrah olha para ela.
— Você pode avisar ao Will que eu estou bem?
— É claro. Ele estava surtando. — Elin pega o celular no bolso, pensando
que também precisa avisar Steed a respeito de Caleb, dizer que as suspeitas
deles estavam corretas. — Mas, antes disso, alguém precisa examinar você. Eu
vou tentar conseguir ajuda médica.
Porém, quando ela olha para o mar revolto pela janela, um mau
pressentimento começa a se formar. Mesmo se uma equipe médica estivesse
disponível, será que mandariam um barco naquelas condições? Mais para o
meio do mar as ondas estão enormes, verdadeiras paredes de água de muitos
metros de altura. Levando em conta o vento, um helicóptero parece ainda
menos provável.
Prestes a digitar, Elin para, percebendo o ícone na tela.
— Não tem sinal. — Ela tenta controlar a voz.
— O sinal aqui não é muito bom mesmo, comparado com o da ilha
principal. — Farrah gesticula na direção da mesinha de cabeceira. — Tenta o
xo.
Elin vai até o telefone, mas tudo que ouve é silêncio.
— Está mudo. Ou a tempestade tirou do ar, ou o Caleb cortou o cabo. —
Ela morde o lábio. — Não quero deixar você assim, mas preciso ir até a ilha
principal para usar o telefone. Vou mandar um paramédico para cá assim que
eu chegar lá.
Farrah percebe o tom de hesitação na voz de Elin.
— Está tudo bem, de verdade. Pode ir.
Ainda relutante em deixá-la, a detetive pondera a situação. Não faz ideia do
paradeiro de Caleb, então aquilo é um risco. Mas não ir até a ilha principal
também é.
— Vai. — Farrah aperta sua mão. — Sério, eu estou bem.
— Beleza, mas quando eu sair você precisa trancar a porta.
Farrah assente. Após examiná-la uma última vez, Elin deixa o chalé, a porta
batendo com força às suas costas.
Há água por todos os lados. Poças de lama, correntes maiores escorrendo
entre as folhas. Elin vai pulando todas até chegar à trilha e entra pelo meio das
árvores. Começa a correr de leve, fazendo espirrar uma mistura de água e terra
molhada.
Quando aumenta a velocidade no trecho nal da mata, uma lufada de vento
joga o cabelo dela no rosto, o que a cega por um momento, fazendo com que
precise parar, derrapando no chão.
Elin começa a tirar o cabelo dos olhos, mas é tarde demais: nota um
movimento repentino pelo canto do olho.
Uma dor aguda e intensa.
Tudo começa a rodopiar, uma escuridão que parece vir da base de seu crânio
cobrindo-a por inteiro, como uma onda. Por um momento, parece que a chuva
está dentro da sua cabeça, os pingos estalando delicadamente em seus ossos.
Parece que ela está entrando num túnel, tudo cando cada vez mais escuro, de
dentro para fora.
Até uma escuridão completa.
92
Caleb deve ter se escondido bem perto do lugar por onde a detetive havia saído
do prédio, esperando até achar que a barra estava limpa.
Desesperada, Elin olha ao redor. Se der de cara com ele ali, acabará
perdendo o elemento surpresa. Com Caleb armado, ela não tem a menor
chance.
Seu olhar vai até as portas do prédio. Mas é tarde demais: se for para lá, vai
dar de cara com eles, sem contar que precisa de seu cartão para abri-la. Levaria
tempo demais.
O matagal.
A dor latejante em suas costelas está bem intensa agora, mas Elin tenta
forçar uma corrida pelo gramado, em direção ao comecinho da mata. Pedaços
de madeira e nacos de pinhas voam por todos os lados enquanto ela avança
desajeitadamente.
Está a poucos metros da entrada da mata quando escorrega e não consegue
se equilibrar. Tombando para a frente, ela estica os braços para amortecer a
queda. Sente um impacto brutal quando as palmas tocam o chão, o peso da
colisão subindo por seus braços e chegando ao peito. A dor em suas costelas se
intensi ca, e ela solta um gemido, se apoiando nas mãos e nos joelhos.
Elin olha para o prédio.
Eles estão chegando perto. Mais um metro e estarão praticamente ao seu lado.
Apavorada, ela deita no chão e tenta não fazer barulho, voltando toda a
atenção para si mesma. O solo está encharcado, e pedras minúsculas se
enterram em suas bochechas.
Prendendo a respiração, sente o coração batendo.
O vento dá uma trégua, e Elin consegue ouvir a voz deles mais uma vez. A
de Caleb está cada vez mais alta.
Será que eles viram quando ela caiu? Será que estão vindo em sua direção neste
momento?
Se ainda não a viram, quando carem paralelos a ela, certamente a verão.
Sai daí. Ela precisava se afastar.
Aos poucos, Elin vai rastejando em direção à mata fechada. Galhos e
espinhos cortam seu rosto e se prendem às suas roupas.
Ouve-se uma voz novamente, algum tipo de ordem.
Ainda rastejando, Elin mergulha mais fundo na mata, espinhos prendendo
em seu cabelo, arranhando o pescoço. Ela faz uma careta quando um deles
arranca um naco de pele de sua cabeça.
Em meio às lufadas de vento, ela consegue ouvir a voz de Caleb mais uma
vez.
Um pânico se instaura.
Ela ergue um pouco a cabeça, mas tudo que consegue ver é a vegetação
rasteira à sua frente: pedaços de pinhas, o solo revirado. Folhas caídas, mortas,
encharcadas e enrugadas. Suas narinas são invadidas pelo aroma do solo fresco
e de decomposição.
— Você viu aquilo? — É Caleb, um grito levado pelo vento. — Ali
embaixo?
Ela não faz ideia se ele está falando consigo mesmo ou com Ronan.
Há um barulho de movimentação.
Com o coração quase saindo pela boca, Elin congela onde está, os olhos
bem abertos, concentrados na vegetação. O esforço de manter aquela posição é
demais para ela; ela começa a sentir cãibra. Vai ter que se mover.
Ouve-se o estrondo gutural de um trovão.
Quando o som para, Caleb fala mais uma vez:
— Vamos embora. Não tem nada aqui.
O alívio é instantâneo, mas ela espera mais alguns minutos antes de se
mexer.
Respirando lentamente, vai se erguendo aos poucos, usando as árvores
como cobertura enquanto examina o gramado à sua frente e o espaço à sua
volta. Suas pernas estão dormentes e retesadas; leva algum tempo até que
voltem ao normal.
Ainda olhando para todos os lados, em alerta, Elin se esgueira pelo
gramado, indo em direção ao prédio principal. Nenhum sinal deles, mas ela
imagina que tenham continuado sua trajetória, se afastando do prédio, indo
em direção à pedra.
De volta à lateral do retiro, ela vai se movendo devagar, novamente
contaminada pela paranoia de que Caleb a esteja observando de algum lugar. À
espreita. Vislumbres do interior do prédio só aumentam seu desconforto:
vultos parecem se mover por todo lado.
Elin passa pela base da pedra, e está começando a descer os degraus em
direção aos chalés quando, de repente, o vento se acalma. As árvores param de
se debater, os redemoinhos devolvem a areia ao chão. Ela escuta alguém
falando e, em seguida, um som alto de algo sendo arrastado. A voz de alguém
ecoa novamente. São sons mais curtos, raivosos. E tudo cessa quando o vento
volta a soprar.
Com o coração acelerado, ela torce, pacientemente, por um novo momento
de silêncio.
E só precisa esperar por mais ou menos um minuto para que isso aconteça.
Escuta um gemido: Ronan?
Elin aguça os ouvidos e tenta isolar a fonte dos ruídos.
É só quando o barulho ca mais alto que Elin percebe que está vindo de
cima.
Da pedra.
98
Elin olha para cima, mas não consegue ver nada. No entanto, basta dar alguns
passos em direção à pedra para enxergar: uma escada, encostada no paredão.
Mais barulhos: o som de algo se arrastando. Vozes.
Ele está levando o Ronan pra lá.
Apesar da dor nas costelas, Elin corre o mais rápido que pode até a base da
pedra e vê Caleb começando a subir pela escada, com Ronan à sua frente.
Escondendo-se debaixo de uma pequena saliência, ela espera, em silêncio,
mas Caleb não dá nenhum sinal de que a tenha visto. E está prestes a também
começar a subir a escada quando essa se move.
A escada balança de forma precária para trás e para a frente até que Elin
consegue estabilizá-la. Ela olha para cima, mas Caleb ou não a viu, ou já não
está mais ali.
Elin coloca o pé no primeiro degrau e começa a subir, com cuidado. O
vento voltou a aumentar, e as lufadas violentas castigam suas roupas molhadas,
seu cabelo. A detetive sente a força da ventania conforme vai se puxando para
cima, mordendo o lábio a cada movimento, toda vez que sente uma pontada
de dor.
Após vencer o último degrau e chegar a uma espécie de platô, Elin observa
os arredores, ofegante. A pedra se projeta para dentro nesse ponto, formando
uma plataforma natural, de cerca de um metro de largura, que se estende como
um caminho pela lateral da rocha, subindo para a sua direita.
Ela não vê sinal de Caleb e Ronan em lugar nenhum. Eles devem estar do
outro lado da pedra.
Respirando rápido, Elin começa a contornar o platô, mas o chão está
escorregadio. Dá alguns passos e já sente uma lufada de vento. Balançando, se
esforça para olhar para a frente, concentrando-se no topo das árvores que vê ao
longe.
Não olhe para baixo.
Um novo sopro de vento. Com as mãos fechadas, Elin se encosta na pedra
para se proteger, os braços abertos para conseguir equilíbrio.
Instantes depois, ela vira numa curva na pedra e para imediatamente.
Caleb está apontando uma arma para Ronan. O dono da ilha está caído,
um talho enorme descendo por sua têmpora, pingando sangue na camisa.
Abaixo do ferimento, um de seus olhos está fechado, tamanho o inchaço. Os
lábios dele estão grudados como se estivesse se esforçando para não chorar.
Caleb nem olha na direção dela. Está fazendo algo curioso: falando com
Ronan, sem qualquer pausa ou pontuação. É uma violência verbal
concentrada. Ele está saboreando cada palavra.
Isso era o que ele queria, pensa Elin. Foi por isso que não matou o Ronan
assim que o encontrou — queria que Ronan soubesse exatamente o que ele
havia feito com a família dele. Queria que Ronan o visse, que visse sua família.
Elin imagina todos os momentos que haviam levado até aquele ponto: uma
mentira, cada equívoco, empilhados uns nos outros.
Então ela se aproxima. Caleb gira a cabeça, seu olhar apático quando
encontra o dela. A detetive se pergunta como não tinha percebido aquilo antes,
aquela frieza perturbadora em seu rosto. De uma pessoa que havia perdido a
conexão com o mundo.
— Eu sei que você quer ajudar esse cara, mas não vai rolar. — Caleb
balança a cabeça, parecendo lamentar. — Você nos interrompeu bem quando
eu estava chegando na melhor parte.
Às suas costas, as nuvens pesadas estão cada vez mais baixas, criando bolsões
escuros pelo céu.
— Caleb, eu sei que não é assim que você quer que as coisas terminem —
diz Elin, levantando a voz para ser ouvida em meio à tempestade. — Ainda dá
tempo de impedir que isso chegue mais longe.
— Mas eu quero que isso chegue mais longe. Esta é a atração principal. Este
momento.
Mesmo naquela curta distância, o nal da frase dele é abafado pelo vento.
Elin dá mais um passo.
— Você até pode pensar assim, mas isso não vai resolver nada.
— Para. — Caleb levanta a arma. — Nem mais um passo.
Então, ele abaixa a arma até que esteja apontada diretamente para o rosto de
Ronan. Em seguida, gira o pulso rapidamente, como se quisesse reforçar o
aviso. Ronan se encolhe e começa a tremer, um som quase inaudível subindo
pela garganta.
— Ele precisa ser sacri cado aqui, nesta pedra, onde tudo começou.
Faça ele continuar falando.
— Mas isso que você está fazendo aqui… Isso não tem nada a ver com a
Pedra da Morte, tem?
Os olhos dele se iluminam.
— Mas é claro que tem. É isso que vai acontecer aqui, agora, a Morte
ceifando a alma daqueles que merecem morrer. — Caleb olha para Ronan. —
De pessoas como ele.
Elin olha nos olhos dele.
— Você acredita mesmo nisso? — questiona, a voz controlada.
Ele parece surpreso com a pergunta. Alguma coisa se desmancha na
expressão em seu rosto, mas logo se recompõe.
— Claro que acredito. Olha o que aconteceu na escola, com os adolescentes
do Creacher.
— Mas foi o seu pai quem matou aqueles adolescentes. A Morte, como
entidade, não existe. Você sabe muito bem que o seu pai era uma pessoa
perturbada, que matou aqueles adolescentes por causa do que tinha acontecido
com ele na escola. Mas isso que você fez é outra coisa.
Caleb inclina a cabeça, olhando para ela, como se estivesse tentando
imaginar o que ela sabia. Ele começa a sorrir, mas não dura.
— Vamos lá, continua, então, já que parece que você entendeu tudo. Me
diga aí o que é isso que eu estou fazendo.
— Vingança. Vingança pelo seu pai, que perdeu dinheiro por causa do
Ronan. Um dinheiro que ele teria usado para comprar esta ilha, para garantir
seu status como Local de Interesse Cientí co Especial. E vingança também por
Ronan ter construído este retiro, algo que acabou levando seu pai mais cedo
para o túmulo.
Caleb abre a boca para falar, como se estivesse prestes a refutar tudo aquilo,
mas, um segundo depois, desaba. Seus ombros cedem. Para segurar o choro, ele
aperta o nariz com dois dedos.
— Essa coisa da área de preservação… Era pra ser um recomeço para o meu
pai. Você tem ideia do que aquela escola fez com ele? — Ele balança a cabeça.
— Ela o consumiu, o transformou num monstro. Ele passou horas naquela
caverna, esculpindo aquelas pedras, convencido de que ele era a porra da Morte
em pessoa. — Sua voz sai trêmula. — Mas, depois que matou aqueles
adolescentes, ele tentou mudar, sabe? Tomou os remédios certos, não queria
deixar que aquilo voltasse a se repetir. — Ele aponta para Ronan. — Mas ele
pisou em cima de tudo isso quando tomou o dinheiro do meu pai.
Ronan arregala os olhos.
— Tudo o que eu z foi dar uma dica. — Sua voz sai baixa, abafada pela
dor. Apesar dos protestos, ca evidente que está mentindo. Ela consegue
perceber a culpa, feito uma nuvenzinha cinza pairando sobre a cabeça dele.
Estava estampada em cada centímetro do rosto de Ronan. — Eu nunca quis
prejudicar o seu pai.
Caleb ca boquiaberto, incrédulo.
— Você continua mentindo, até agora. Você estava por trás da empresa que
comandou todo o esquema. Eu descobri. Tudo que você faz é tomar as coisas
dos outros, Delaney. Você arruinou o meu pai. Financeira e mentalmente. Você
o levou até o limite, até ele não aguentar mais, até ele…
As palavras cessam, e Caleb começa a tremer, fazendo o cano da arma ir
para cima e para baixo. Seus olhos estão vermelhos quando olha para Elin, e a
detetive consegue detectar algo neles: dor. Dor e angústia, e uma grande
confusão — como se estivesse olhando para o mundo e não conseguisse mais
entendê-lo.
— Eu sinto muito — declara Ronan, com o rosto pálido. Ele puxa o ar com
di culdade, e aperta a lateral do corpo com uma das mãos. — Eu não queria
que nada disso tivesse acontecido.
Elin sente a pontada aguda do medo naquele tom suplicante e adulador na
voz de Ronan. Não, quer dizer para ele, não tente fazer com que ele sinta
compaixão por você. Isso só vai fazê-lo odiar você ainda mais, porque nunca
demonstrou a menor compaixão por ele. Você tomou tudo o que ele tinha, e agora
está tentando tomar ainda mais.
Lágrimas começam a escorrer pelo rosto de Caleb.
— Você me ignorou quando eu tentei falar com você, quando tentei te
explicar tudo o que o Local de Interesse Cientí co Especial signi cava para o
meu pai. Como se o que você tinha feito, acabar com todo o dinheiro que o
meu pai tinha guardado durante a vida inteira e sapatear em cima do sonho
dele, não signi casse nada. — Ele respira. — Eu nunca entendi como é que
essas coisas não te afetam. Como é que você é totalmente incapaz de sentir
algo. — Caleb leva uma das mãos até o peito. — Você não tem nada aqui
dentro. O Seth era igual. Achei que ele poderia ter um mínimo de moral, mas,
não. Gente como vocês… Vocês acham que, só porque têm dinheiro e poder,
as leis não se aplicam a vocês. Mas eu estou fazendo você se importar agora,
não é? Você merece cada partezinha do que vai acontecer aqui.
— Mas os outros não mereciam — diz Elin, sua voz suave.
Sente uma pontinha de esperança. Como Caleb estava falando aquelas
coisas, se abrindo daquele jeito, talvez aquilo fosse o su ciente. A alavanca de
que ela precisava. Se conseguir mantê-lo falando, talvez consiga tirá-lo daquele
transe e o ajude a aceitar que soltar Ronan é a coisa certa a se fazer.
— A Bea, o Seth e a Jo — continua ela.
— A Jo? — Caleb semicerra os olhos. — Mas eu não matei a Jo. — Ele
inclina a cabeça para o lado, bufando. — Isso é parte da sua estratégia, tentar
me confundir, me acusando de coisas que eu não z?
Ele ergue a arma mais uma vez. Ronan se encolhe.
Elin se aproxima.
— Caleb, eu sei que o que o Ronan fez foi horrível, mas, se o machucar,
você também vai fazer uma coisa errada. Eu sei que você consegue entender
isso…
— Não chega perto. Tô falando sério. — Ele para de apontar a arma para
Ronan, passa a apontar para ela e depois volta para o pai de Seth, o cano
vacilando porque Caleb está tremendo, os músculos de seu antebraço se
contraindo visivelmente. — Eu sei que estou fazendo uma coisa errada. Tenho
plena consciência disso, mas, sabe, é bom que tudo termine aqui, nesta pedra.
— Ele força uma risada. — Eu não me conformo que o meu pai acreditava
naquela merda toda, mas as pessoas sempre acreditam por algum motivo, né?
— Ele fala cada vez mais rápido. — É uma projeção. Elas projetam suas facetas
mais obscuras numa outra coisa. É um “espaço seguro”, mesmo que seja meio
estranho chamar assim. Quando você pega todas as coisas que teme e odeia em
si mesmo e projeta numa pedra, como esta, aquilo não faz mais parte de você.
Foi isso o que o meu pai fez. — Ele balança a cabeça. — Mas eu sei onde as
trevas habitam, de verdade. Dentro de nós. Dentro de você. Nós é que fazemos
coisas ruins. Não uma pedra.
Caleb levanta a cabeça e a olha nos olhos. Por um instante, Elin acha que
ele está fraquejando, que sua mão está soltando a arma, mas, então, ele volta a
olhar para Ronan. Seu olhar se endurece e seu rosto congela em uma expressão
que a deixa nervosa.
Ele ergue um pouco a mão, e seus dedos param de tremer aos poucos, até
carem rmes.
Com o pânico se alastrando no peito, Elin avança na direção dele, estende
um dos braços, começa a falar alguma coisa, mas Caleb já está apertando o
gatilho.
Um estrondo ensurdecedor.
99
Ela percorre o texto com os olhos: a polícia não tomará nenhuma medida
legal contra Farrah e Will Riley.
Uma sensação de alívio. De encerramento. Ela se recosta no travesseiro,
repentinamente exausta.
— Você parece destruída — diz Anna, olhando para ela. — Vamos te deixar
descansar.
Ela levanta, se debruçando sobre a cama, e dá um abraço em Elin. Steed se
inclina e dá um beijinho na bochecha da detetive.
— Se a gente não se vir antes de você viajar, eu quero fotos, tá bom? Um
montão de fotos.
— Combinado. Você não vai escapar tão fácil assim dessa minha cara feia.
Eu vou ser uma daquelas pessoas insuportáveis que ca ostentando as férias,
postando fotos todos os dias.
Steed sorri, pegando uma última uva do cacho enquanto eles deixam o
quarto.
Pelo vidro, Elin ca olhando os dois no corredor, e em seguida pega o jornal
que Steed havia deixado lá. Ela começa a folheá-lo, tentando encontrar a
matéria sobre o Creacher, quando seu telefone faz um barulho.
Uma mensagem, de um número que não reconhece: o print de um tuíte.
Seu coração parece ter parado no meio de uma batida: ela não quer olhar,
mas, ao mesmo tempo, não consegue evitar.
Eles haviam marcado, novamente, a delegacia de Torhun, mas, daquela vez,
havia um texto também.
Duas frases.
Elin respira fundo, mas o medo que estava começando a sentir após ler
aquelas palavras é imediatamente suplantado pelo mais puro terror, com a
imagem que vem logo abaixo.
Uma fotogra a dela, deitada na cama do hospital, com o jornal deixado por
Steed em suas mãos, tirada poucos segundos atrás.
Duas semanas depois
Já faz algumas semanas que Maya voltou para casa, mas só agora sente que é
hora de desfazer as malas. Ela leva a bolsa de viagem para a cozinha e a esvazia
ao lado da máquina de lavar. As roupas amassadas têm cheiro de praia e mar.
Tem areia nas dobras do tecido, grãozinhos brancos, fragmentos de conchas —
meias-luas minúsculas, lascas violáceas de cascas de marisco.
Maya adorava aquela parte da volta das viagens, as possibilidades que
habitam uma mala recém-desfeita, esperando pela próxima aventura.
Seus tênis estão bem no fundo, os mesmos que havia usado na praia naquele
dia. Ela os sacode com vontade na pia, a areia se espalha pelo aço inox e,
naquele momento, lhe vem a lembrança do rosto de Jo quando Maya se
aproximou.
Tinha visto a prima indo em direção ao mar, choramingando. Maya
percebeu que, quando Jo se virou, ela pensou que fosse Hana, disposta a
continuar a discussão sobre Liam. A boca dela já estava entreaberta, pronta
para se desculpar, para reconquistar um lugar entre os afetos de sua irmã.
Quando viu que era Maya, ela sorriu de alívio. Jo não tinha notado a pedra
na mão de Maya — nem passaria pela cabeça dela a ideia de que sua prima
poderia machucá-la. Para ela, Maya sempre esteve em segundo plano, e deveria
ser grata. Grata por Jo ter conseguido um trabalho para ela, um trabalho que,
depois, tomaria de volta. Grata porque Jo, Bea e Hana a acolheram na família
depois do que aconteceu com So a.
Mas o que Jo não sabia é que Maya enxergava quem ela era. Enxergava
muito bem. Via quem a prima era por dentro: uma pessoa gananciosa e
egoísta, tão autocentrada que nem consegue identi car esse egoísmo, porque
está sempre por trás de uma camada de risadas e provocações e, no fundo, ela
não dá a mínima para nada. Maya via que Jo sentia inveja dela, desde criança,
do mesmo jeito que invejava todo mundo que tinha alguma coisa que ela não
tinha. Jo tinha inveja do quarto bonito de Maya, de suas cortinas que
combinavam com a decoração, dos pais gentis que a prima tinha.
Maya sabia que Jo era o tipo de pessoa que acenderia um fósforo e atearia
fogo nas lindíssimas cortinas do quarto da prima quando pensou que Maya
estava dormindo, sem nem parar para pensar nas consequências.
Por anos, Maya achou que tinha sonhado com aquilo — acordar e ver Jo de
pé ao lado das cortinas, assistindo às labaredas consumindo o tecido, seus olhos
arregalados, re etindo a luz do fogo, com o fósforo na mão ainda erguida.
Maya pensava que Jo jamais faria algo assim. Ela amava Maya. Maya era da
família. Não havia a menor chance de sua prima ter começado um incêndio,
um incêndio que mudaria a vida de So a para sempre.
Porém, à medida que elas foram crescendo, Maya foi percebendo um
padrão se repetindo — não apenas consigo, mas com Hana também; e, mais
recentemente, com Liam.
Jo viu Hana com uma coisa nova e brilhante e simplesmente teve que tomar
pra si. E se não conseguisse fazer aquilo, ela a destruiria.
Observando do chalé, Maya cou admirada com o autocontrole de Hana
depois que Jo confessou tudo, a maneira como soltou o pulso da irmã e saiu de
perto.
Mas Maya não tinha o mesmo autocontrole. Tinha uma coisa muito
melhor: um plano. E, graças a esse plano, Jo nunca mais tomaria nada de
ninguém.
Ela levanta a bolsa do chão. Ainda está tudo cheio de areia. Vai ter que
sacudir lá fora, bater contra os móveis do pátio. Se não der certo, vai tomar
uma medida mais drástica, usar o aspirador portátil.
Vai ser necessário tempo e esforço para se livrar de algo tão persistente, mas
ela vai conseguir.
Vai se livrar de todos os vestígios.
AGRADECIMENTOS
Nunca achei que seria fácil escrever um livro durante uma pandemia global, e
gostaria de expressar meu agradecimento a todas as pessoas que ajudaram este
livro a se concretizar durante esse momento tão delicado.
Em primeiro lugar, meu muitíssimo obrigada à minha maravilhosa agente
literária, Charlotte Seymour. Valorizo demais seu apoio e gentiliza incessantes,
que signi caram demais para mim nos últimos dezoito meses. Que jornada!
Tomara que ainda tenhamos muito caminho pela frente!
Um tremendo obrigada aos meus talentosos editores na Transworld, Frankie
Gray e Finn Cotton. Não tenho nem como agradecer pelo trabalho árduo de
vocês em circunstâncias tão complicadas e por terem passado tanto tempo
lapidando esta história. Sou muito privilegiada de poder me bene ciar do
conhecimento de cada um. Outro obrigada enorme a Tom Hill, meu
incansável assessor. Dá gosto de ver sua organização e sua atenção aos detalhes,
que são coisas que, eu sei, garantem que o livro alcance cada vez mais leitores.
Mais obrigadas intensos para a infatigável Em Burton, por seu talento no
marketing, e para Holly Minter, a Rainha do Digital. Vocês realmente pensam
fora da caixinha nas campanhas e estão sempre me surpreendendo. Também
gostaria de agradecer a Rich Shailer, no Reino Unido, pela capa brilhante.
Adorei como você traduziu tão bem o espírito do livro.
Outro muitíssimo obrigada para Reese Whiterspoon e toda a equipe
maravilhosa de seu clube do livro — ter escolhido a data do meu lançamento
para o dia 21 de fevereiro mudou a minha vida da melhor maneira possível e
acabou se mostrando uma tremenda motivação para que eu terminasse de
escrever esta história. Serei eternamente grata por isso.
Preciso agradecer a toda a equipe nos escritórios da Andrew Nurnberg
Associates e na Jonhson & Alcock pelo apoio de vocês e por terem ajudado o
livro a encontrar novos leitores, tanto aqui como no exterior. Muito obrigada
também aos meus editores estrangeiros, por acreditarem na história e quererem
levá-la a seus leitores.
Agradeço ainda ao maravilhoso Stuart Gibbon por sua ajuda meticulosa e
sempre brilhante quanto a terminologia e procedimentos policiais e por ter
aturado todas as minhas intermináveis perguntas. Qualquer fatídica imprecisão
em relação a isso ou é erro meu, ou foi de propósito para encaixar na história.
Também quero registrar um obrigada enorme para os meus amigos
maravilhosos, pelo apoio à minha escrita e por me botarem pra cima a cada
passo do processo. Não vi todos que eu gostaria por causa da quarentena, mas
sua gentileza constante signi ca tudo para mim. O mesmo vale para todos
aqueles que me seguem e interagem comigo nas minhas redes sociais, leitores e
livreiros, que não apenas me apoiam, mas me mostram o quanto a internet
pode ser um lugar positivo também. Seus comentários e mensagens me afetam
mais do que vocês imaginam.
Obrigada também aos pequenos livreiros pelo apoio, com menção especial a
Emily e Tanya, da Waterstones Torquay — a maneira como vocês divulgam
meus livros é de outro mundo, e sua gentileza e entusiasmo incessantes com a
minha jornada literária são tudo com que um escritor poderia sonhar!
Fui abençoada com a melhor família que se pode ter, e quero dizer um
muitíssimo obrigada a todos eles (ainda bem que não são nada parecidos com a
família deste livro!). Nós éramos muito colados antes da pandemia (alguns
dizem que até demais!), e esse tempo difícil só nos tornou ainda mais
próximos. Não sei o que eu faria se não tivesse nossas conversas diárias (às
vezes, duas vezes por dia), e todo o apoio de vocês.
Por m, queria agradecer às minhas lhas e ao meu marido. Este livro foi
escrito durante a quarentena, enquanto estávamos fazendo malabarismos com
as crianças estudando em casa, doenças na família e praticamente tudo que se
puder imaginar entre uma coisa e outra, mas vocês conservaram a minha
sanidade e me trouxeram in nitas canecas de café descafeinado. Obrigada
também às minhas duas gatas, Elsa e Anna, por estarem sempre na beira da
cama quando eu estava tentando escrever algum trecho difícil — amo que
vocês parecem gostar de dormir ao som do teclado do meu computador. Eu
não sei o que faria sem todos vocês. Mais uma vez… FTB.
SOBRE A AUTORA