Porque Nao
Porque Nao
Porque Nao
TATIANE RANGEL
Dimensões Ficção
EDITORA MULTIFOCO
Rio de Janeiro, 2014
EDITORA MULTIFOCO
Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.
Av. Mem de Sá, 126, Lapa
Rio de Janeiro - RJ
CEP 20230-152
1ª Edição
Novembro de 2014
ISBN: 978-85-8473-106-0
CAPÍTULO 1
HÁ MALES QUE VÊM PARA BEM 15
CAPÍTULO 2
o espelho quebrado 23
CAPÍTULO 3
eu, tu, ele... nós 31
CAPÍTULO 4
teus olhos e teus olhares 47
CAPÍTULO 5
por que não eu? 59
CAPÍTULO 6
meu universo é você 81
CAPÍTULO 7
emoções conflitantes 89
CAPÍTULO 8
rompendo o silêncio 101
capítulo 9
noites de verão 107
CAPÍTULO 10
não fale 119
CAPÍTULO 11
uma nova chance 125
CAPÍTULO 12
alguém se importa? 131
CAPÍTULO 13
para o seu bebê 145
CAPÍTULO14
escuridão 153
CAPÍTULO15
recomeço 165
TATIANE RANGEL | 15
CAPÍTULO 1
HÁ MALES QUE VÊM PARA BEM
I sabel andava pensativa pela rua. Nunca imaginara que aquilo
pudesse acontecer com ela algum dia. Sim, muitos haviam avi-
sado. No ritmo louco que sua vida andava ultimamente, era quase inevi-
tável. No entanto, Isabel deu de ombros. O que aquelas pessoas sabiam?
Nunca havia acontecido nada parecido antes. Não aconteceria agora.
Não mesmo.
Aquele estava, até então, sendo o melhor ano de toda a sua vida.
Isabel estava experimentando uma mudança radical. No ano anterior, as
coisas eram bem diferentes, embora não fizesse tanto tempo. Ela mora-
va em outra cidade, estudava em outra escola, conhecia outras pessoas.
Vivia um tanto isolada e reclusa, num mudinho que cabia dentro de seu
quarto. Nunca tinha sido realmente feliz e nem achava que o seria um
dia.
Um dia, assim, sem mais nem menos, seu pai chegou em casa e
anunciou a mudança. A vida tinha melhorado, os negócios iam bem e
finalmente havia comprado uma casa numa cidade melhor, um tanto
distante daquela. Uma cidade mais bem estruturada, com gente diferen-
te e... escolas melhores! Era a última semana de aula de Isabel, de modo
que seu pai esperou que elas terminassem antes de se mudarem. As fes-
tas de final de ano também fizeram com que a mudança fosse adiada por
mais alguns dias. Assim, na primeira semana de janeiro, se mudaram.
A nova cidade era muito maior que a anterior. Muito comércio,
gente andando na rua o dia todo. Ainda assim, o pai de Isabel conseguiu
encontrar um imóvel numa rua tranquila. Não gostava de apartamento.
Preferia uma casa e a encontrou numa área bastante residencial, que
se estendia para longe do centro comercial, até o limite com o bairro
seguinte.
Em fevereiro, Isabel começou as aulas em uma nova escola. Era
bem diferente das escolas que conhecia. Não era necessário usar unifor-
mes, o que fazia com que os corredores parecessem um grande desfile
de moda. As pessoas eram em sua maioria extrovertidas e comunicati-
vas. Sorriam quase o tempo todo.
16 | POR QUE NÃO?
Agora ela ia pensativa pela rua, para mais uma tarde na biblioteca.
Não entendia como aquilo havia chegado a tal ponto. Sua vida era agita-
da sim, mas Isabel tinha a cabeça no lugar. Quase não bebia, não fuma-
va, não usava drogas. Nem tinha namorado. Tinha muitas paqueras. Às
vezes “ficava” com alguém, mas não tinha namorado. Ela só gostava de
se divertir, de estar com os amigos. Estava longe de ser uma garota fútil
e metida. Uma vez sua mãe lhe disse: “Tenho certeza disso tudo, Isabel,
mas para tirar boas notas não basta ser uma pessoa legal. Sei que você é
uma menina maravilhosa, mas se não estudar, não vai passar de ano!”.
Isabel entrou na biblioteca. Fez o registro de entrada, deixou a
bolsa no guarda-volumes e foi até o acervo procurar o que queria. Livros
de Matemática, três volumes.
As mesas menores estavam todas ocupadas. Restava a mesa maior,
onde cabiam umas dez pessoas. Isabel não gostava muito dessa. Preferia
estudar sozinha, pois se concentrava com mais facilidade. No entanto,
não havia outra opção. Aquela era a última mesa disponível e só resta-
vam dois lugares, um ao lado do outro.
Isabel sentou-se e procurou se acomodar. A mesa estava terrivel-
mente cheia de livros de modo que foi difícil abrir espaço para suas
coisas. Ficou apertado, mas conseguiu. Abriu os livros e começou a fazer
exercícios de cálculo e resumos teóricos.
Estava muito difícil se mexer com a mesa tão cheia. Isabel acabou
esbarrando em uma pilha de livros muito grossos que estava do seu lado
esquerdo. Os livros vieram abaixo de uma só vez, fazendo um barulho
que fez eco na biblioteca. As pessoas olhavam e pediam silêncio. Algu-
mas riam. A vergonha de Isabel aumentou ainda mais quando ela viu
que boa parte dos pesados livros bateu no rapaz sentado ao lado antes
de cair no chão.
- Desculpe, não vi que tinha alguém aí. O lugar estava vazio quan-
do sentei e esta pilha enorme de livros não deixou que eu te visse. – dis-
se Isabel encabulada, enquanto ajudava o rapaz a recolher os livros do
chão.
- Bem, a culpa é minha. Eu coloquei os livros aí. Quando você se
sentou eu tinha ido buscar outros.
Isabel olhava para baixo e se concentrava em catar os livros, tama-
nha era sua vergonha.
- Veja, não vou mais precisar destes. Vou chamar alguém para re-
colher, assim evitamos mais acidentes. – disse o rapaz sorrindo.
- Tudo bem, deixa que eu vou. É o mínimo que eu posso fazer
depois de quase matar você.
- Não, sente-se. Olhe para mim: está tudo bem, não me machu-
18 | POR QUE NÃO?
quei, viu só? – disse o rapaz ajudando Isabel a se sentar enquanto tenta-
va mostrar que saíra ileso da avalanche de livros.
Isabel olhou para ele. O rapaz sorria com simpatia. Uma enorme
descarga elétrica pareceu percorrer o corpo de Isabel. Nunca tinha vis-
to alguém que a atraísse tanto. Era estranho, porque nunca havia visto
aquela pessoa antes, mas mesmo assim, no primeiro olhar, ela sentiu
suas pernas fraquejarem e sua vista escurecer. Isabel piscou algumas ve-
zes e pôs a mão na cabeça, mostrando claramente que estava tonta.
- Está tudo bem? Você está pálida.
- Sim, está tudo bem. Não foi nada.
- Você está gelada, quer que chame alguém? – disse o rapaz segu-
rando a mão de Isabel.
- Não, não é preciso. Já estou melhor, obrigada. Acho que me le-
vantei muito rápido só isso.
- Acho que você teve uma queda de pressão. Fique sentada. Vou
buscar um copo d’água para você.
O rapaz saiu para buscar a água enquanto Isabel se recuperava do
choque.
“Que rapaz bonito!”, pensava Isabel. Se estivesse a sós com ele
naquela biblioteca, poderia jurar que estava em um lugar qualquer da
Dinamarca. Seus olhos eram de um azul muito translúcido; os cabelos
eram loiros, quase brancos e ele deveria ter pelo menos um metro e
oitenta de altura. Mas não era só isso. Ele também esbanjava simpatia
e alto-astral. Tinha uma energia muito agradável e dispensara à Isabel
uma atenção desinteressada, que poucos estranhos naquele lugar dis-
pensariam.
O rapaz voltou com uma garrafa de água mineral e uma moça,
que recolheu os livros; deixando, assim, que os dois pudessem se ver
enquanto estavam sentados. Isabel tomou um gole da água.
- Está melhor?
- Sim, obrigada. Não precisava ter feito isso.
- Imagine, eu quis ajudar.
Ele olhou para Isabel com certa curiosidade. Pensou um instante
e se apresentou:
- Me chamo Daniel. – disse estendendo a mão.
- Isabel. – respondeu, aceitando o cumprimento.
- É um prazer.
Daniel olhou para os livros à frente de Isabel e perguntou:
- Matemática? É difícil ver gente jovem por aqui, ainda mais estu-
dando Matemática.
- História? – perguntou Isabel com ironia, enquanto dava uma
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olhadela nos livros dele – Então é isso que gente jovem deve estudar?
Você não parece tão mais velho que eu.
- Sei disso, tenho dezenove anos. É que, se você olhar em volta, vai
notar que a maior parte das pessoas nesta sala já passou da idade escolar.
- É verdade! – disse Isabel, surpresa – Não tinha percebido.
- Por que Matemática?
- Porque preciso muito recuperar minhas notas. Estou prestes a
repetir o ano.
- Isso é mal.
- É, eu sei. – disse Isabel, encabulada – E por que História?
- Estou fazendo um trabalho.
- Terceiro ano?
- Não, já me formei.
- Faculdade, então?
- É.
Neste momento, as pessoas da sala reclamaram e pediram silên-
cio.
- Melhor ficarmos quietos.
- É, ou então seremos linchados.
Ambos riram e continuaram com seus afazeres.
No final da tarde, quase ao mesmo tempo, Daniel e Isabel arru-
maram suas coisas e se prepararam para ir embora. Já fora da sala de
estudos, onde poderiam falar normalmente, os dois se despediram.
- Foi um prazer conhecer você, Isabel. – disse Daniel, enquanto
tirava da carteira o cartão de empréstimos da biblioteca. – Vou levar
estes. – disse para a balconista.
- O prazer foi todo meu. Mais uma vez, desculpe ter derrubado
todos aqueles livros em cima de você.
- Não tem problema, já disse que foi minha culpa.
- A gente se vê de novo?
- Quem sabe? Não sei se volto aqui nos próximos dias. Estou le-
vando os livros que preciso para terminar minha pesquisa.
- Bem, eu estou sempre aqui.
- Se não voltar a te ver, desejo boa sorte com as provas, desde já.
Espero que você consiga recuperar suas notas.
- Vou conseguir.
A balconista carimbou o cartão e juntamente com os livros, o de-
volveu a Daniel. Isabel assinou sua saída no livro de registros e pediu
uma cópia da folha, como sempre fazia.
- Por que isso? – perguntou Daniel.
- É uma longa história...
20 | POR QUE NÃO?
Então ele era dono de uma loja? Isabel puxou pela memória. Sabia
onde ficava. Ela mesma tinha ido àquela loja no começo do ano para
comprar os artigos pedidos na sua lista de materiais de educação física.
Lembrou mais: aquela não era a única loja que conhecia. Tinha outra
no centro da cidade e mais algumas espalhadas pelos bairros adjacentes.
Bem, o dia seguinte seria sábado. Como havia sido disciplinada a sema-
na inteira, ganharia o direito de sair por algumas horas. Era só ir até a
loja mais próxima e perguntar pelo dono. Alguma informação teriam
que dar.
* * *
CAPÍTULO 2
o espelho quebrado
A rua era aquela. Faltava encontrar o número. Lado par, lado
ímpar, parecia um jogo. Por causa da dificuldade em con-
seguir o endereço, Isabel esperava encontrar uma casa de muros altos,
segurança particular no portão e cães ferozes. Nada disso. A casa que
encontrou era grande sim, mas nada absurdo. O portão era de grades,
fazendo com que pudesse ver todo o quintal.
A frente da casa tinha um jardim, algumas árvores e uma rampa.
Esta rampa ia para a varanda, onde Isabel viu alguém sentado atrás de
uma mesa, de cabeça baixa, concentrado em alguns livros. Parecia estar
estudando. Chegou mais perto do portão e pôs o rosto entre as grades
para ver melhor. Sim, parecia ser Daniel!
A euforia foi tanta, que Isabel esqueceu as regras de boa educação
que aprendera em casa e, notando que o portão estava destrancado, foi
entrando.
O rapaz que estudava na varanda levantou os olhos para ver quem
chegava. Estava um pouco diferente, usava óculos de grau e um boné
virado para trás, mas Isabel o reconheceu: era Daniel mesmo!
Isabel, sorrindo, aproximou-se e, antes que pudesse dizer qual-
quer coisa, o rapaz falou:
- Quem é você e por que foi entrando assim? Não sabe tocar a
campainha?
- Desculpe, o portão estava aberto. Você não se lembra de mim?
- Estou certo de que nunca a vi antes.
- Como assim? Conversamos ontem na biblioteca, sou eu, Isabel.
Vim devolver suas coisas, você esqueceu sua carteira.
- Biblioteca? Eu não fui à biblioteca.
Isabel chegou mais perto e levou um enorme susto: o rapaz estava
sentado em uma cadeira de rodas.
- Meu Deus! O que aconteceu com você?
24 | POR QUE NÃO?
- Não, não estou passando mal, está tudo bem. Eu preciso ir agora,
já entreguei a carteira. – disse, já se levantando.
- Ei! Espere, Isabel, não vá ainda. – pediu Cláudio.
- É, por que a pressa? Você está prestes a ter outra queda de pres-
são. Fique aqui até melhorar.
- Eu não vou ter uma queda de pressão.
- Pare com isso, Daniel. Está constrangendo a garota. Isabel, des-
culpe o meu irmão. Fique e almoce com a gente.
- É sério, eu tenho que estar em casa às três.
- Ainda vai dar uma hora. Fica mais um pouco. – pediu Cláudio.
- Está bem. – sorriu Isabel.
- Ótimo! Vou pedir para servirem o almoço aqui na varanda mes-
mo. – disse Daniel se levantando e entrando.
Durante o almoço, Isabel notava mais diferenças entres os gêmeos:
Daniel era mais calmo, mais contido; Cláudio era mais brincalhão, mais
sarcástico; Daniel era vegetariano; Cláudio estava devorando o segundo
bife. Isso levava a outra diferença: Daniel comia apenas o suficiente para
matar a fome, enquanto Cláudio era uma verdadeira draga.
Isabel mal tocava na comida. Apenas observava o comportamento
oposto dos dois irmãos.
- Não repare, Isabel. O Daniel parece um coelho, só come mato.
Não deixe que ele te constranja. Coma o que quiser.
- E você é magro de ruim. Não sei para onde vai isso tudo. – reba-
teu Daniel.
- Bem, está vendo esta pancinha aqui? Ops! Não tem pancinha!
Eu faço exercício e, não sendo sedentário como você, não preciso fazer
dieta!
Todos riram.
- Não sou sedentário. Eu até me movimento bastante.
- Sei...
-É sério! Não vou fazer faculdade de educação física, mas eu me
mexo.
- Ajoelhar e rezar deve mesmo queimar muitas calorias.
Isabel ficou surpresa:
- Ajoelhar e rezar?
- Não acredito que ele não te contou!
- Contou o que?
- Ele é seminarista! – disse Cláudio às gargalhadas.
Isabel levou um choque:
- Então quer dizer que...
- É, esse bobão vai ser padre!
TATIANE RANGEL | 29
CAPÍTULO 3
eu, tu, ele... nós
D aniel acabara de chegar e Cláudio ainda estava na varanda.
Sentou-se ao lado do irmão e os dois se olharam comparti-
lhando a mesma interrogação.
- Quem é essa menina? – perguntou Cláudio.
- Eu sei lá... Ela estava ontem na biblioteca. Ela passou mal e eu
peguei uma garrafa de água mineral para ela.
- Foi só isso?
- Só, por quê?
- O comportamento dela foi estranho. Agiu como uma esposa tra-
ída...
- Como assim?
- Não sei, ela mudou quando eu falei que você ia ser padre. – disse
Cláudio, olhando desconfiado para Daniel.
- Pare de pensar besteiras. Nem a conheço direito.
- Tem certeza de que você não deu nenhuma esperança para ela?
Não fez nada que ela pudesse interpretar de maneira errada?
- Claro que não. Eu tenho convicção da minha vocação. Não saio
por aí paquerando menininhas em bibliotecas públicas.
- Você é um bobão mesmo.
- Por que diz isso?
- Uma deusa daquela te dando maior mole e você ainda insiste
nessa história de ser padre.
- Ela não estava me dando mole.
- Então por que ela fez tanta questão de trazer a tua carteira? Se
ela quisesse só entregar, ela teria deixado com alguém e depois teria ido
embora. E você precisava ver a cara dela quando você chegou. Só faltou
derreter.
- Bem, não importa. Ela já foi e acho que a gente nunca mais vai
se ver.
- Eu não teria tanta certeza.
- Por quê?
- Peguei o telefone dela. – disse Cláudio mostrando um papel e
sorrindo.
32 | POR QUE NÃO?
e podia ser que ele dissesse alguma coisa que a fizesse rir nos fim das
contas. Foi atender ao telefone.
- Isabel? Sou eu, o Cláudio. Espero que ainda se lembre de mim.
– brincou.
- Claro que eu me lembro.
- Sua voz está estranha... Andou chorando?
- Não, meu nariz está entupido. – mentiu Isabel.
- Bem, eu liguei porque amanhã é domingo e eu pensei que talvez
você quisesse fazer alguma coisa.
- Estudar?
- Bem, se você quiser... Mas na verdade eu estava pensando em
assistir uns filmes.
- Você quer ir ao cinema?
- Não, eu pensei em passar na locadora. Você pode vir aqui pra
gente assistir.
Isabel pensou em recusar. Não estava com cabeça para ver filmes,
e eles mal se conheciam. No entanto, algo veio à sua cabeça: Daniel po-
deria estar lá. Seria um bom pretexto para encontrar com ele outra vez.
Isabel teve ainda a ideia louca de que se Daniel a conhecesse melhor, ela
poderia fazê-lo se interessar por ela e desistir do seminário.
- E então, você vem?
- Não sei, não posso chegar tarde em casa.
- Não tem problema, eu te levo de carro depois. Eu dirijo, lembra?
- Está bem, eu vou.
- De que tipo de filme você gosta?
- Sei lá, qualquer um. – o tipo não importava. O que Isabel queria
era ver Daniel, mas percebendo que foi grossa, tentou contornar a situa-
ção: - Quer dizer, escolha você que vai estar bem escolhido.
- Tá legal, vou tentar caprichar. Você pode estar aqui às duas ho-
ras?
- Posso.
- Então nos vemos amanhã. Um beijo.
- Tchau.
Isabel quase se arrependeu. Pensou em ligar de volta e cancelar
tudo, mas desistiu. Afinal de contas, não estava fazendo nada de errado,
ia só assistir uns filmes, não era um encontro.
Cláudio colocou o telefone de volta no criado-mudo e sorriu. Sus-
pirou longamente, fechou os olhos. Não conseguia parar de sorrir. Po-
deria passar a noite toda sonhando acordado. Estava feliz... Tinha um
encontro com Isabel.
Daniel saiu do banho, vestiu o pijama, abriu as janelas do quarto,
34 | POR QUE NÃO?
olhou para o céu. “ELE está vendo”, pensou. Estava com o pensamen-
to inquieto desde aquela tarde. O que Cláudio disse seria verdade? Se
fosse, não era nada bom. Uma garota interessada num seminarista... E
o seminarista? Estaria interessado na garota? Não! Não podia! Ele ti-
nha assumido um compromisso com Deus! “ELE está vendo” – pensou
novamente. Sentiu de repente um pânico crescer dentro de si. Aquela
garota não podia chegar assim de mansinho e fazê-lo duvidar de sua fé,
mesmo que por um segundo. Faltava pouco. Em breve ele seria ordena-
do e logo não precisaria mais pensar nisso. O nome de Isabel, no entan-
to, fazia eco em sua cabeça. Aquela cena de Isabel transtornada, o jeito
como ela se despediu quando ele a deixou em casa, tudo aquilo passava
em sua cabeça como um flashback, que se repetia sem parar.
Quase sem perceber o que estava fazendo, ajoelhou-se diante de
um crucifixo que pendia da parede e começou a rezar desesperadamen-
te: “Não me deixe cair em tentação. POR FAVOR! NÃO ME DEIXE
CAIR EM TENTAÇÃO!”.
Isabel acordou com dor de cabeça. Parecia que tinha sido atro-
pelada por um trem. Precisava de um bom café da manhã e uns bons
analgésicos. Não tinha ânimo para nada. Levantou com dificuldade e
decidiu que um banho talvez lhe devolvesse o ânimo. Sentindo-se mais
revigorada, mas ainda com dor de cabeça, Isabel foi comer alguma coisa
para poder tomar um remédio. Depois, se jogaria no sofá da sala e as-
sistiria TV.
Cláudio abriu os olhos, viu que já era dia claro e sorriu. Esticou um
dos braços, puxou para perto sua cadeira de rodas, sentou-se na cama e
se transferiu para a cadeira. Estava feliz. Foi até o banheiro, transferiu-
-se para outra cadeira de rodas onde tomou banho. Depois de limpo e
vestido, escovou os dentes como nunca havia escovado antes. Penteou
os cabelos e conferiu o visual no espelho. Era cedo para se arrumar, mas
não importava. Depois do café da manhã, pegaria o carro e iria até a
locadora escolher os filmes.
Daniel tinha acordado antes de todos na casa. Eram cinco e meia
da manhã. Estava habituado a acordar àquela hora. Tomou um banho,
escovou os dentes e vestiu-se. O café da manhã era modesto. Carpe diem,
dizia a filosofia que seguia no seminário. Comia o suficiente para se sa-
tisfazer. Nem mais nem menos. Às seis e meia, saiu de casa e foi à igreja.
Ainda tinha umas coisas para resolver antes da missa das sete. Ainda
bem que era domingo. Passaria o dia ocupado com suas obrigações reli-
giosas. Assim, não se distrairia pensando no que não devia e nem corria
o risco de encontrar Isabel e Cláudio em sua reunião particular.
TATIANE RANGEL | 35
O telefone tocou umas dez vezes antes que Isabel resolvesse aten-
der. Só cedeu sob os protestos da mãe.
- Isabel?
- Quem é? – perguntou ela com a voz arrastada.
- Cláudio! Já se esqueceu de mim?
- Ah... Desculpa Cláudio. Não reconheci sua voz.
- Quero saber se nosso filme ainda está de pé.
- Filme? – perguntou Isabel um tanto desorientada.
- É, nós combinamos ontem. Você ainda vem, não é?
Isabel acabava de se lembrar que tinha marcado com Cláudio.
Teve vontade de dizer que não ia, mas lembrou-se que podia ver Daniel
e também que não tinha coisa melhor para fazer.
- Vou sim. Que horas a gente marcou mesmo?
- Duas horas!
- Ah, é mesmo! Então duas horas eu chego aí.
Os dois se despediram e Isabel desligou o telefone. Não estava
com muita vontade de ver nenhum filme, mas a ideia de rever Daniel a
animou.
Isabel se olhou no espelho e não gostou nada do que viu. Estava
horrível! Toda descabelada e com olheiras profundas. Era melhor dar
um jeito nisso logo, ou então Daniel se assustaria com sua aparência
deprimente. Um trabalho de maquiagem bem feito ajudaria a disfarçar
tudo aquilo. A roupa certa daria o toque final. Olhou no relógio: tinha
exatamente uma hora antes de sair de casa.
Naquele domingo, Daniel cumpria com suas obrigações de modo
bem mais dedicado que de costume. Não desviava a atenção para nada.
Arrumara a igreja, ajudara na missa, dera aulas de catecismo às crian-
ças e agora fazia horas que rezava em silêncio. Estava ajoelhado diante
da cruz desde as dez da manhã. As pessoas que eram de seu convívio
sabiam que ele era dedicado, mas naquele dia em especial parecia dife-
rente. Ninguém nunca duvidara de seu comprometimento com a igreja
e tudo o que dizia respeito a ela, mas havia em suas orações um fervor
nunca visto antes.
Cláudio não parava de se olhar no espelho e ainda dava retoques
no penteado quando a campainha tocou. Ela tinha chegado! Deu uma
última checada em tudo antes de abrir a porta: a sala estava arrumada, a
música estava suave, ainda dava para sentir o cheiro do aromatizador de
ambientes e a luz estava perfeita. Foi abrir a porta.
- Isabel! Que bom que você veio!
Isabel sorriu.
- Entre! Fique à vontade.
36 | POR QUE NÃO?
veitar o dia e ver o filme. Cláudio era boa companhia, ela gostava de
conversar com ele. Ele era divertido, inteligente, descontraído. Sentia
que no fim das contas o dia ia valer à pena.
- Que filme você pegou? – perguntou Isabel mudando de assunto.
Cláudio sorriu.
- Bem, como eu não sabia do que você gostava, eu peguei um de
terror, um de ficção, um drama, um romance, uma aventura, uma comé-
dia e um desenho animado. O que você prefere?
- Eu acho que hoje... Deixa eu ver... A comédia!
- Boa escolha! Vou colocar no DVD.
Cláudio colocou o filme para rodar e voltou para perto de Isabel.
Com uma ligeireza impressionante, ele saiu da cadeira de rodas e veio
sentar-se no sofá ao lado dela.
Isabel olhou com surpresa e sorriu. Parecia satisfeita de ver tanta
independência. A empregada chegou com a tigela de pipoca e os refri-
gerantes. Cláudio colocou a tigela entre ele e Isabel e cada um segurou
sua latinha.
O filme era uma comédia romântica, estrategicamente escolhida
por Cláudio. Todas as opções que ele havia escolhido tinham um pouco
de romance. Era uma estratégia muito sutil, mas ele achava que seria
interessante.
Os dois riam muito com as situações mostradas no filme e logo os
comentários sobre os protagonistas começaram a surgir:
- Credo, essa garota é cega ou o quê? Maior gato dando mole pra
ela e ela nem percebe!
- Gato? Eu ouvi bem? Esse magrelo? Cara feio, Isabel! Ela sim é a
maior gostosa!
- Tá de sacanagem! Loira aguada! Olha só! Viu quanta celulite?
- Invejosa.
- É você.
Os dois caíram na gargalhada. Um provocava o outro e depois os
dois morriam de rir. No fim das contas já nem prestavam mais atenção
ao filme. Eles se provocavam e riam. Em algum momento um dos dois
começou uma guerra de pipoca.
Quem visse aquela cena enxergava uma intimidade que nenhum
dos dois sequer imaginava. Pareciam velhos amigos e não pessoas que
haviam acabado de se conhecer.
Eles nem viram o filme acabar. Começaram a conversar sobre vá-
rios assuntos e a conversa foi se desenrolando. Cada um falava de si,
contava histórias da própria vida e perguntava sobre a vida do outro.
Foram horas e horas de um bate-papo tão gostoso que o tempo passava
e eles nem notavam.
38 | POR QUE NÃO?
Veja bem se você não está confundindo as coisas. Pode ser que ela esteja
querendo ser só sua amiga. Namorar é outra história...
- Agradeço a sua preocupação mano, mas o que aconteceu hoje
deixou bem claro que eu tenho chance e eu vou entrar nessa de cabeça.
- Cláudio, pense bem! Vamos supor que ela queira mesmo ficar
com você: ela é menor de idade! Você vai fazer vinte anos... Olha a con-
fusão que isso pode dar.
- Aonde você quer chegar? – perguntou Cláudio, um tanto inco-
modado.
- Não tem outro jeito de dizer isso, então eu vou ser direto: estou
falando de sexo!
- Você está sendo paranoico.
- Você sabe que não estou.
- Daniel, eu sou paralítico.
- Você tem pinto, não tem? Até onde eu sei o teu pinto não é in-
válido.
- Não se faça de idiota. O que eu quis dizer é que mesmo que eu
quisesse, não poderia forçá-la a nada. Você sabe que para fazer sexo eu
dependeria totalmente da participação dela.
- Eu sei disso tudo, Cláudio. O que eu quero dizer é que nada im-
pede que ela participe e isso pode dar a maior merda!
Cláudio passou do incômodo inicial a uma raiva contida.
- Por que você está fazendo isso? Está interessado nela, por acaso?
Daniel sentiu o chão desaparecer sob seus pés.
- Não... Claro que não estou...
- Então por que você está tentando me convencer a desistir dela?
Olha só o que você está falando, cara! Eu mal cheguei perto de dar um
beijo nela e você já está vendo a gente na cama! Eu nem sei se isso vai
dar em alguma coisa!
- Eu só quero proteger você!
- Me proteger? De quê? De ter uma namorada? Ou será que você
quer proteger a Isabel de mim, da possibilidade de namorar um inváli-
do?
- Cláudio, pare com isso...
- Ou será que você está querendo se proteger?
- O que você está tentando me dizer?
- Que você não pode ser feliz e também não quer que eu seja!
Daniel se levantou e saiu andando.
- Chega. Não vou ficar aqui ouvindo isso.
- Vai sair de fininho agora que o bicho pegou?
Daniel se virou e claramente exaltado disse:
44 | POR QUE NÃO?
- Não vou mais discutir com você. Eu vou pro meu quarto, vou
dormir e sugiro que você faça o mesmo. Mas antes, vê se põe a cabeça
no lugar e pensa bem no que eu te disse.
Daniel se retirou e Cláudio ficou sozinho na sala. Ele tinha ficado
com as ideias confusas depois de tudo o que tinha ouvido do irmão.
Estava chateado por Daniel tê-lo lembrado de sua condição física e tê-la
colocado como empecilho para ficar com Isabel.
Daniel entrou no quarto e trancou a porta. Sentou-se na cama e,
transtornado, pôs as mãos na cabeça. Teria mesmo sido melhor ficar
calado. Na tentativa de disfarçar seu ciúme, acabou fazendo uma cena.
Agora Cláudio estava desconfiado e isso não era nada bom.
Abriu as janelas e ficou parado olhando para o céu. “ELE está ven-
do”, pensou. Rezava em silêncio e tentava de todas as maneiras se des-
culpar pelo que estava sentindo. Pelo ciúme, pela raiva e principalmente
pela dúvida. Como aquilo poderia estar acontecendo? Ele mal conhecia
Isabel! Só a tinha visto duas vezes na vida!
O efeito que ela havia causado nele tinha sido instantâneo. Quan-
do viu aquela menina desajeitada na biblioteca, derrubando aqueles li-
vros em cima dele, ficou desarmado. Nunca tinha visto criatura tão bo-
nita em toda a sua vida. Quando ela passou mal e precisou de sua ajuda,
ele se sentiu como se tivesse um passarinho ferido nas mãos. Ele a viu
ali, desprotegida, quase desmaiando e teve vontade de cuidar dela, de
protegê-la, de aninhá-la nos braços. Depois de tudo, quando conseguiu
conversar com ela, viu que era também a criatura mais simpática que já
conhecera e a cada sorriso que dava, mais Isabel o desarmava, mais ele
se sentia impotente e dominado pela emoção. Até que deu a hora de ir
embora e ele tratou de fazer isso o mais rápido possível. Tão rápido que
esqueceu a carteira. E eis que no dia seguinte, estava Isabel em sua casa.
Agora, o que já era ruim tinha ficado pior: seu irmão estava inte-
ressado em Isabel e ela aparentemente correspondia! Como ele ia convi-
ver com ela todos os dias se eles começassem a namorar? Como ia ver os
dois juntos sem sentir ciúmes, sem poder fazer, nem dizer nada?
É, talvez ele estivesse mesmo sendo paranoico, como Cláudio dis-
sera. Dois dias! Eles só se conheciam havia dois dias! Dois dias e ele já
estava achando que o mundo ia acabar, já estava vendo Isabel e Cláudio
na cama e já achava que estava... apaixonado! Não! Não podia ser assim!
Aquilo não era possível! Dois dias! Dois dias...
Cláudio olhou o relógio. Ainda era cedo para dormir e, mesmo
que fosse tarde, estava tão agitado que não conseguiria. Ligou a televisão
da sala e procurou alguma coisa interessante para assistir. Sua cabeça es-
tava a mil e ele não conseguiu se concentrar. Primeiro aquele clima com
TATIANE RANGEL | 45
CAPÍTULO 4
teus olhos e teus olhares
I sabel olhava o relógio com impaciência. Faltavam quinze minu-
tos para o sinal tocar e anunciar o fim de mais um dia de aula.
O professor falava sem parar, mas Isabel não ouvia. A ansiedade tomava
conta de cada parte do seu pensamento.
Depois de muita espera, finalmente a aula acabou e Isabel, que já
estava com todo o material guardado, foi a primeira a sair da sala, quase
correndo.
Os amigos não reconheciam mais Isabel. Desde algum tempo ela
já não saía nos fins de semana, não ficava com eles para ir ao shopping
depois da aula e mal conversava. Foi por isso que Carlinha, uma das
colegas mais chegadas de Isabel, resolveu ir atrás dela para saber o que
estava acontecendo. Conseguiu alcançar Isabel ainda no corredor, mas
já perto da porta de saída.
- Isabel! – chamou Carlinha.
Isabel virou-se para trás, mas não parou.
- Oi, Carlinha. – respondeu Isabel sem parar de andar.
- Aonde você vai? Por que você não vai à lanchonete com a gente?
- Não posso, Carlinha. Tenho outro compromisso.
- Que compromisso? Você agora fica arrumando um monte de
desculpas para não sair com a gente. O que está acontecendo, Isabel?
Isabel parou. Já tinham chegado ao portão da escola. Olhou em
volta e não viu o carro de Cláudio.
- Isabel? – chamou Carlinha – Acorda!
Isabel respondeu um tanto irritada:
- O que é, Carlinha?
- Vem com a gente hoje!
- Carlinha, eu já disse que não posso.
- Por que não?
- Porque vocês todos vão passar de ano e eu não! Eu preciso estu-
dar, senão vou repetir! Minhas notas estão horríveis!
Naquele momento Isabel ouviu uma buzina. Era Cláudio que aca-
bava de chegar.
48 | POR QUE NÃO?
- O Daniel não para muito em casa. Depois que ele inventou essa
história de seminário ficou pior ainda. Está sempre na igreja, ou então
fazendo caridade em algum lugar. Quando está em casa, fica a maior
parte do tempo trancado no quarto ou no escritório. Ele estuda muito.
Quer se ordenar o mais rápido possível. Você teve sorte de encontrá-lo
aqui no sábado.
- Por que ele quer ser padre? – perguntou Isabel com um tom que
refletia sua incompreensão e certa intolerância.
- Sei lá! Acho que é porque antes do acidente nós dois estudáva-
mos em um internato católico. Depois daquelas férias, meu pai decidiu
tirar a gente daquela escola e colocar em uma outra mais perto de casa,
mesmo porque eu agora precisava de certos cuidados que ele temia que
o internato não pudesse dar. Então ele disse que a gente ia estudar numa
escola normal dali pra frente, o que eu particularmente adorei! Sempre
detestei o internato. Era obrigado a rezar, frequentar a missa, ficava lon-
ge de casa. Eu nunca acreditei em Deus, nem em nada disso. Pra mim
isso é tudo bobagem. Mas o Daniel não gostou nada da ideia e se recu-
sou a mudar de escola. De uma hora para outra resolveu ficar religioso.
Acho que acabou sendo influenciado pelo ambiente do internato. Co-
meçou a dizer que queria ser padre e meus pais acabaram respeitando o
desejo dele. Desde aquela época a gente não convive muito. Depois que
o colégio acabou ele foi fazer faculdade de teologia. Tem época que ele
fica no mosteiro, tem época que ele vem para casa, mas a gente nunca
se vê muito.
- Nossa! Vendo vocês dois conversarem, parecia que vocês eram
bem unidos.
- E a gente é. Nós sempre nos demos bem, apesar de tantas dife-
renças. A gente se fala bastante. Quando está longe ele sempre telefona,
manda e-mail. Ele sempre foi muito focado na família. Principalmente
depois do acidente. Mesmo longe ele sempre me cercava de cuidados.
Ligava para saber como eu estava, escrevia cartas. Ele sempre foi muito
meu amigo. Sempre que tem chance ele vem para casa, mesmo sabendo
que não vai poder passar muito tempo aqui. Ele gosta de vir, nem que
seja só para dormir. É o que tem acontecido ultimamente.
- Que história! Nunca vi uma criança de sete anos dizer que vai ser
padre e depois levar ao pé da letra.
- O Daniel é assim. Quando cisma com alguma coisa, dificilmente
muda de ideia. Acredita que ele nunca namorou?
- Nunca?
- Nunca! Nem beijo na boca ele deu. Parece que já nasceu celiba-
tário.
TATIANE RANGEL | 53
Quando Isabel olhou o relógio, viu que por pouco não perdia a
noção da hora. Já eram quase cinco da tarde e ela precisava voltar para
casa. Estava preocupada com o que diria para a mãe, já que desta vez ela
não teria a cópia da folha de registros da biblioteca.
- Eu tenho que ir agora, Cláudio. São quase cinco horas. Eu só
queria saber o que eu vou dizer para a minha mãe quando eu chegar em
casa sem a folha de registros da biblioteca...
- Quer que eu fale com ela?
- Não, imagina! Deixa que eu falo. Se ela não acreditar eu peço
socorro pra você.
- Tem certeza? Se você quiser, eu fico esperando do lado de fora,
caso ela não acredite. É só você abrir a porta e me chamar.
- É sério, pode deixar. Se ela brigar comigo eu deixo você falar
com ela amanhã.
- Eu vou tirar o carro. Te levo em casa.
- Não, Claudinho. É sério. Você já fez muito por mim hoje.
Isabel guardou os livros, pegou a mochila, deu um beijo no rosto
de Cláudio e caminhou até o portão. Quando saiu, virou-se para a va-
randa e acenou uma última vez antes de desaparecer pela rua.
Cláudio levou a mão ao rosto. Ainda podia sentir o cheiro do per-
fume que Isabel estava usando. E como ela o havia chamado mesmo?
Claudinho! Um diminutivo de seu nome! Deveria querer dizer alguma
coisa. Apoiou o queixo nas mãos, sorriu e ficou pensando que talvez
ainda houvesse uma chance de ter Isabel.
de estudos proveitosa foi essa se você não foi à biblioteca? Aonde você
foi?
- Calma mãe! Eu vou explicar tudo! Eu estava estudando sim! Só
que eu fui estudar na casa de um amigo.
- Você sabe que não é para ir à casa de nenhum amigo! Por causa
desses teus amigos é que você está nessa situação!
- Calma mãe! Não é nenhum amigo da escola. É outro amigo. Eu
conheci na biblioteca. Bem, na verdade eu conheci o irmão dele na bi-
blioteca e depois é que eu o conheci. A questão é: ele está se preparando
para o vestibular e se ofereceu para estudarmos juntos. Me explicar a
matéria é uma forma dele estudar também, entendeu?
- Não, não entendi nada. Me conta essa história direito! Eu quero
saber que amigo é esse!
Isabel respirou fundo e procurou não perder a paciência. Explicou
para a mãe como havia conhecido os gêmeos e falou sobre como tinha
sido bom estudar com Cláudio, pois pela primeira vez em muito tempo
ela finalmente conseguira entender aquelas matérias.
- Não sei, Isabel. Não conheço essa gente. E depois, quem me ga-
rante que você vai mesmo estudar e não ficar de bobeira na casa dos
outros ou sabe-se lá onde?
- Mãe, por favor! Confia em mim!
- Desculpe, mas não dá, Isabel! Olha só no que deu eu confiar em
você: está quase repetindo o ano.
- Mãe, eu prometo que dessa vez vai ser diferente! Eu aprendi tan-
to hoje!
- Não sei. Eu ainda não sei quem é essa gente.
- Mãe, por favor!
- Tudo bem, mas eu quero conhecer esse seu amigo primeiro.
Quero falar com ele, saber quem ele é, onde mora. Diga para ele vir
até aqui conversar comigo. Se eu achar que não tem perigo, tudo bem.
Senão, nada feito.
Isabel ficou um tanto contrariada, mas aceitou. Que remédio?
Precisava das aulas com Cláudio, e além do mais, gostava da companhia
dele. A mãe estava sendo paranoica. Que perigo poderia ter? De qual-
quer forma, era melhor não contrariar. Pelo menos assim ela ainda tinha
uma chance.
TATIANE RANGEL | 59
CAPÍTULO 5
por que não eu?
Isabel nem acreditava que não precisava mais passar a tarde in-
teira naquela biblioteca. Morrera de vergonha, mas pedira para
Cláudio ir conversar com sua mãe.
A mãe de Isabel na verdade achava que ela estava de namorico
com alguém em vez de estudar, mas quando viu com quem ela estava
estudando, ficou desarmada. O tal amigo que lhe dava aulas era um ra-
paz aleijado. Com certeza não era namorado de Isabel e nem oferecia
qualquer perigo para ela. Ficou tão sossegada que permitiu inclusive
que Isabel fosse estudar na casa dele, como vinha fazendo, em vez de
mandar que eles estudassem na sua própria casa, como pretendia fazer.
A rotina de Isabel ficou então estabelecida dessa forma: todos os
dias depois da aula, Isabel ia para a casa de Cláudio, almoçava e ficava lá
até as cinco ou seis horas. A mãe de vez em quando ligava para saber se
estava tudo bem, mas não incomodava.
Já havia passado três meses desde que Cláudio e Isabel começa-
ram a estudar. Mesmo focada em aprender as matérias necessárias para
não perder o ano, Isabel nunca perdia a esperança de ver Daniel. Naque-
le meio tempo não o tinha visto uma única vez.
Cláudio ficava cada dia mais interessado em Isabel. Contava as
horas para que pudesse vê-la novamente. Não importava se ela só estava
interessada em estudar. Aquela situação não era permanente. Depois,
parecia que a cada dia a amizade entre os dois crescia de forma assusta-
dora. Pareciam velhos amigos de infância, tamanha era a confiança que
haviam adquirido um no outro.
Daniel não aparecia em casa havia algum tempo. Durante aqueles
dias, preferiu a quietude e o retiro do claustro. Assim, poderia pensar na
própria vida e reafirmar sua fé. Queria voltar-se para a sua verdadeira
vocação.
Aquela rotina de seminário que tanto apreciara a vida inteira, de
repente parecia não mais preenchê-lo como antes. Acordava às quatro
da manhã, fazia suas orações, assistia a suas aulas, trabalhava nas obras
60 | POR QUE NÃO?
assistenciais que a igreja promovia. Porém, nada mais era o mesmo. Ele
já não se sentia tão completo. Seus pensamentos pareciam não mais pai-
rar sobre aquele lugar. Estava longe. Pensava em como as coisas estariam
em sua casa, como estaria Cláudio, como estaria Isabel. Ele lutava para
arrancá-la de dentro de si, repetindo o tempo todo para si mesmo que
ela era só uma ilusão, um entrave para os seus planos. Estava ali porque
queria manter-se o mais longe dela possível e sabia que isso talvez não
fosse possível. Não por tanto tempo.
Uma coisa o angustiava terrivelmente: seus pais já deveriam estar
voltando de viagem por aqueles dias. Faltavam poucos dias para que ele
e Cláudio fizessem aniversário e os pais sempre faziam questão de reu-
nir a família nesta ocasião. Ele teria que retornar em breve. Ele sabia que
todo o seu esforço estava sendo inútil. Voltar significava reencontrar
Isabel. As notícias que ele tinha de casa não eram nada animadoras. Ha-
via telefonado algumas vezes e Cláudio havia contado que Isabel passara
a frequentar diariamente a casa deles. Aquilo não era nada bom.
Às vezes ele pensava em se confessar, desabafar com alguém, mas
tinha medo. Tinha medo de ser julgado, de ser expulso do seminário.
Aquilo já o estava sufocando de tal modo, que ele não conseguia mais
dormir. Quando dormia, sonhava com Isabel. Sonhava que pecava, que
amava Isabel ardentemente, e depois se via crucificado, açoitado dian-
te de uma multidão que gritava alucinadamente: “traidor!”, “pecador!”,
“impuro!”.
Cláudio corrigia a última bateria de exercícios que Isabel acabara
de fazer. Satisfeito, viu que estavam todos certos.
- Parabéns, Isabel! Acho que você está pronta! Quando começam
as suas provas?
- Amanhã. Estou tão nervosa!
- Não fique. Você está indo muito bem. Talvez nem precise fazer
recuperação. Pelas minhas contas, é perfeitamente possível que você re-
cupere todas as notas agora nas provas finais.
- Você acha?
- Claro que sim. Você não errou nenhum exercício essa semana
inteira!
- Mas as questões das provas costumam ser bem mais difíceis.
Você é muito bonzinho comigo, só me passa questões fáceis! – disse
Isabel sorrindo.
- Em outros tempos, talvez isso fosse verdade. Eu não posso me
dar ao luxo de ser bonzinho com você numa hora dessas. Se você não
aprender direito a matéria, pode ser que repita o ano, e eu não quero ser
responsável por uma coisa dessas. Nesse caso, sinto te informar que eu
fui muito malvado com você...
TATIANE RANGEL | 61
- Como assim?
- Todos os exercícios que você tem feito foram tirados dos vesti-
bulares dos anos anteriores.
- Mentiroso!
- É sério! Se você estivesse prestando vestibular agora, era bem
possível que passasse.
- Então eu aprendi de verdade?
Isabel deu um grito de satisfação, beijou o rosto de Cláudio e deu
um pulo no sofá, caindo deitada em seu colo. Logo na primeira semana
eles haviam abandonado a mesa da varanda e desde então, estudavam
aninhados no sofá da sala. Cláudio alisou as mechas do cabelo negro
que escapavam do rabo de cavalo de Isabel e sorriu.
- Claro que você aprendeu. É muito inteligente. Eu tenho certeza
de que você vai passar.
Olhos nos olhos, os dois conversavam:
- Você é um professor maravilhoso. Eu não teria conseguido sem
a sua ajuda. Como eu posso agradecer?
- Eu queria dizer que não precisa, mas vou te pedir uma coisa.
- O quê? – perguntou Isabel, surpresa.
- Aparece aqui no próximo fim de semana.
- Mas eu venho aqui todos os dias!
- Mas nessa semana você faz as provas e depois disso não vai mais
ter que estudar.
- A gente nunca estudou no fim de semana!
- É que esse fim de semana é especial...
- É mesmo? E por quê?
- Porque essa semana meus pais chegam de viagem. – Cláudio
continuava alisando os cabelos de Isabel – Sabe como é, eles passam a
maior parte do tempo viajando a negócios, mas fazem questão de estar
presentes no nosso aniversário.
- É verdade! O aniversário de vocês é no sábado que vem! – inter-
rompeu Isabel.
- Pois é. Provavelmente vai haver uma comemoração, nada muito
grande, só família e amigos mais chegados. Queria que você viesse.
- O Daniel vai estar aí?
Pronto! Estava demorando! Cláudio sentiu um ciúme incalculá-
vel, mas se conteve. Não queria parecer inseguro.
- Claro que sim. É aniversário dele também. – dissimulou – E en-
tão? Você vem?
- Venho sim. Vou adorar comemorar o seu aniversário e conhecer
os seus pais.
62 | POR QUE NÃO?
- Daniel, não pude deixar de notar que alguma coisa o está inco-
modando. Você não tem ideia de quantas pessoas vieram me perguntar
o que está acontecendo com você.
- Não está acontecendo nada, padre.
- Meu filho, não adianta negar. Você mudou do dia para a noite.
Está inquieto, tenso, está executando suas tarefas de forma obsessiva,
está exagerando no trabalho, nas orações, não interage mais com nin-
guém. O que está acontecendo?
Daniel permanecia calado, mas o medo estava estampado em seus
olhos. Percebendo, o padre continuou:
- Não tenha medo, Daniel. Estou aqui para ajudar. Se quiser, pode
me falar em confissão. Você sabe que o que eu ouvir em confissão per-
manecerá em sigilo, por mais grave que seja.
- Não posso, padre. Não posso dizer o que está acontecendo.
- Já vi isso antes, Daniel. Estou aqui há trinta anos! É comum com
os seminaristas. Você está duvidando da sua vocação.
- Não, padre. Estou duvidando da minha fé. Antes, minha fé me
bastava para manter-me calmo. Assim eu vencia qualquer obstáculo, me
desfazia de qualquer dúvida. Agora, toda a minha fé não está bastan-
do. Por mais que eu reze ou trabalhe, minha angústia não se dissipa.
Não consigo me livrar dos maus pensamentos que atormentam a minha
consciência.
Sorrindo compreensivamente, o padre respondeu:
- Daniel, posso ter uma ideia do que você chama de “maus pen-
samentos”. Desde que você voltou da sua casa, você está diferente. Você
deve se lembrar de que todos nós somos, acima de qualquer coisa, hu-
manos! Seja o que for que esteja atormentando a sua consciência, creio
que aqui talvez não seja o melhor lugar para você pensar a respeito. Isso
aqui, no momento, representa somente uma fuga. Façamos o seguinte:
vá para casa mais cedo. Você já estava com a saída marcada por causa
do seu aniversário, vá mais cedo. Aproveite a sua festa, esteja com os
seus amigos e pense bem no que quer da vida. Volte quando estiver se-
guro. Se decidir não voltar, lembre-se que estar aqui não é a única forma
de servir a Deus. Você pode fazê-lo de outras maneiras: praticando a
caridade, sendo um homem de bem, respeitando valores, amando seu
próximo. Não há motivos para se sentir culpado.
Daniel sentiu um arrepio na espinha. Parecia que o padre adivi-
nhava-lhe os pensamentos.
- Tudo bem, padre. Vou seguir o seu conselho. Vou para casa ama-
nhã, mas volto o mais rápido que puder.
- Não tenha pressa, Daniel. Tenha certeza.
64 | POR QUE NÃO?
Daniel saiu dali um tanto mais aliviado e foi até o dormitório pre-
parar sua mala.
Na manhã seguinte, bem cedo, Daniel já estava em casa. Estacio-
nou o carro na garagem, abriu a porta bem devagar e entrou na ponta
dos pés, com medo de acordar alguém. Subiu as escadas, entrou em seu
quarto, fechou a porta e sentiu-se mais aliviado de poder estar ali, sozi-
nho. Por isso quis chegar tão cedo. Não queria ver ninguém.
Daniel ouviu vozes e sons vindos do lado de fora. Olhou pela jane-
la e viu que Cláudio já estava bem acordado e fazia fisioterapia perto da
piscina. Ia se retirar quando Cláudio olhou para cima e o viu.
- E aí, mano? Veio mais cedo? Desce aqui para a gente conversar!
Daniel não viu alternativa àquele convite. Poderia dizer que estava
cansado, mas sabia que o irmão não iria acreditar. Tinha como hábito
acordar antes das cinco da manhã e naquele momento, passava das oito.
Daniel trocou de roupa e desceu. Sentou-se próximo ao lugar
onde Cláudio estava e esperou.
- Eu já estou terminando. Num minuto a gente conversa. – disse
Cláudio.
Daniel fez um gesto compreensivo e continuou calado. Ficou al-
guns instantes observando o irmão. Esforçado, dedicado. Obedecia a
cada ordem do fisioterapeuta sem reclamar. Cláudio nunca reclamava
de nada. Praticamente não mudara depois que sofreu o acidente que
o levou àquela condição. Nunca lamentava sua deficiência e sempre se
adaptava com facilidade a qualquer situação. Havia conseguido gran-
des progressos com a fisioterapia e cada movimento era comemorado.
Mesmo sabendo que nunca voltaria a andar, Cláudio não desanimava.
Daniel se lembrava bem do dia em que o irmão acordou e percebeu que
podia sentir as pernas. Ele não comemorou pela esperança de voltar
a andar. Comemorou por sentir-se vivo novamente. Daniel nunca iria
esquecer o que o irmão dissera naquela ocasião: que se sentia inteiro
outra vez.
Daniel guardava um sentimento terrível a respeito daquele aci-
dente. Um segredo que sempre permaneceu entre ele e o irmão, que
mesmo aos sete anos de idade, Cláudio nunca ameaçara revelar a nin-
guém.
Em poucos minutos Cláudio terminou os exercícios e despediu-
-se do fisioterapeuta. Veio então até onde o irmão estava e estacionou a
cadeira em frente a ele.
- Chegou um dia antes? Você não vinha amanhã de noite?
- Resolvi chegar mais cedo. Andava estressado e o Padre Mauro
me deu umas férias.
TATIANE RANGEL | 65
* * *
o perdoasse e não ficasse zangado com ele. Logo mais a piscina estaria
cheia de gente, o quintal estaria barulhento e ele não poderia mais des-
frutar daquela paz e daquele silêncio.
Subiu as escadas na ponta dos pés, entrou no quarto e trocou a
formalidade da calça jeans e da camisa de botão pelo conforto de um
calção de banho. Desceu novamente na ponta dos pés e chegando ao
quintal dos fundos, deu um belo mergulho na piscina. Nadou por um
bom tempo, até perceber que as pessoas da casa acordavam. Só então
saiu da piscina e foi se arrumar para receber os convidados.
Isabel saiu de casa perto das onze e meia. Quinze minutos depois
chegava à casa dos gêmeos. Havia um bocado de carros estacionados na
calçada. Boa parte dos convidados já devia ter chegado. Abriu o portão
e subiu a rampa até a varanda, onde parou diante da porta e tocou a
campainha. Foi Cláudio quem atendeu com um sorriso largo.
- Isabel! Que bom que você veio!
Isabel deu os parabéns e os dois se abraçaram apertado.
- Entre! Vou te apresentar a algumas pessoas.
Isabel entrou e viu Daniel que observava tudo do fundo da sala.
Ela se apressou em cumprimentá-lo com seu melhor sorriso. Desejou
feliz aniversário, abraçou-o e deu um beijo de dois segundos em seu
rosto. Daniel estremeceu. Quando se tratava de um beijo de Isabel, dois
segundos pareciam uma eternidade.
Isabel abriu a bolsa e tirou dois embrulhos, entregando um a cada
irmão.
- Passei bastante tempo escolhendo estes presentes. Espero que eu
tenha acertado.
- Obrigado, Isabel! – agradeceu Cláudio.
- Não precisava ter feito isso, mas mesmo assim, obrigado. – disse
Daniel.
Os dois abriram os pacotes. Cláudio abriu o seu primeiro. Era um
livro de Victor Hugo. Um exemplar com o texto integral de “O Corcun-
da de Notre Dame”.
- É em parte para agradecer nossas tardes de estudo. Esse livro não
tem nada a ver com Física, Química e Matemática. É um entretenimen-
to para variar um pouco.
- Acertou em cheio, Isabel. Você sabe que eu gosto de ler. Adorei!
Daniel abriu o seu. Um embrulho pequeno, do tamanho de uma
caixinha de fósforos. De dentro, tirou uma correntinha com uma me-
dalha.
- É para te proteger. Não sei que santa é essa, mas quando vi a
medalha eu tive um pressentimento muito forte de que você ia gostar.
TATIANE RANGEL | 71
* * *
CAPÍTULO 6
meu universo é você
N a segunda-feira de manhã, Cláudio buzinava na frente da
casa de Isabel. Ela apareceu na porta ainda com cara de sono.
- O que você está fazendo aqui? São sete horas da manhã!
- Eu avisei que você hoje ia ao médico. Liguei pro médico da mi-
nha família e consegui uma hora pra você. Sua consulta é às nove. Eu
fico aqui esperando você se arrumar.
Isabel achou engraçada a preocupação de Cláudio. Ela então sor-
riu e pediu que ele entrasse.
- Você não vai passar duas horas aí fora, vai? Ponha o carro aqui
na garagem e me espere na sala.
Cláudio concordou.
Duas horas depois estavam no consultório. Cláudio entrou com
Isabel e mal deixou que ela falasse. Ele mesmo explicou o que acontecia.
O médico pediu alguns exames e marcou um retorno. Saindo do con-
sultório, Cláudio perguntou:
- O que você vai fazer agora?
- Hoje saem os resultados das provas. Preciso ir até a escola.
- Eu acompanho você.
Cláudio dirigiu até a escola de Isabel. Chegando lá, fez questão de
entrar com ela. Os dois seguiram por um corredor comprido até chegar
a um mural onde a lista estava pregada. O professor de Matemática de
Isabel estava parado diante do quadro e quando viu que ela se aproxima-
va fixou-lhe o olhar e fez uma cara estranha.
O coração de Isabel quase saía pela boca. Aquela cara não podia
ser nada boa. Cláudio apertava a mão de Isabel.
- Eu estou aqui com você. Seja corajosa.
Isabel andava dura feito um robô. Mal podia se mexer. O olhar do
professor ainda estava fixo nela. Ela parou diante do mural, olhou para
cima, procurou a lista com as notas da sua turma e encontrou seu nome.
O rosto de Isabel se iluminou em um sorriso de alívio e felicidade.
- Aprovada! Sem recuperação!
82 | POR QUE NÃO?
CAPÍTULO 7
emoções conflitantes
C láudio acabava de se arrumar, quando Isabel bateu à porta de
seu quarto.
- Pode entrar.
Ela estava com o cabelo molhado, cheirava a xampu e perfume e
segurava contra si o decote do vestido tomara-que-caia.
- Fecha pra mim? – pediu ela virando as costas para que Cláudio
pudesse subir o zíper.
Olhando quase com devoção ele admirou as costas perfeitas com
suas linhas sinuosas, a pele lisa e fresca, livre de manchas ou imperfei-
ções. Aproximou a mão espalmada, mas não tocou. Ficou parado, inde-
ciso, sabendo que estava cada vez mais difícil resistir àquela tentação.
- Você vai fechar ou não vai? – cobrou Isabel, despertando-lhe do
devaneio.
Cláudio respirou fundo e subiu o fecho bem devagar, admirando
uma última vez as linhas das costas de Isabel.
- Obrigada. – agradeceu Isabel, sentando-se ao lado de Cláudio.
- Você está linda. – elogiou.
- Obrigada. Ainda preciso secar o cabelo. Não consigo decidir o
que fazer com ele. Prendo ou deixo solto?
- Não sei dizer. Você fica linda de qualquer jeito. – disse Cláudio,
quase num sussurro.
Isabel ficou parada enquanto Cláudio olhava tão fundo em seus
olhos que parecia querer decifrá-la. Ele chegou mais perto e como Isabel
não esboçara reação alguma, aproximou-se mais. Pela primeira vez ela
não sorria nem tinha aquele olhar provocativo de sempre. Ela parecia
corresponder. Ele foi chegando mais e mais perto. Seus narizes já se to-
cavam pelas abas e os olhos iam se fechando bem devagar. Seus lábios
já trocavam um breve ósculo e os olhos de Isabel estavam semicerrados
quando subitamente ela pareceu despertar de seu transe, afastando-se
rápido, como se tivesse tomado um susto e, gaguejando, tentou disfar-
çar:
90 | POR QUE NÃO?
- Meu Deus, Cláudio! Você precisa parar de dizer essas coisas. As-
sim fico convencida! – disse sorrindo nervosamente – Vou terminar de
me arrumar e a gente se encontra lá embaixo.
Deu um beijinho na bochecha de Cláudio e saiu do quarto fechan-
do a porta atrás de si.
Cláudio ficou aturdido e sem fôlego, com o cheiro do perfume de
Isabel ainda invadindo suas narinas, o coração quase saindo pela boca e
a cabeça ainda tentando processar o que havia acontecido.
* * *
Não era a primeira vez que Cláudio passava por isso, mas com Isabel era
diferente. Nunca ele havia tido tanta intimidade com uma garota que o
rejeitasse no fim das contas. Isabel o enlouquecia. Literalmente.
Já passava das dez da manhã e Daniel estranhava a ausência de
Cláudio. Ainda não havia se levantado. O fisioterapeuta havia se cansa-
do de esperar e ido embora. Cláudio nunca perdia a fisioterapia.
Daniel resolveu ir até o quarto. Bateu na porta, mas Cláudio não
respondia. Forçou a maçaneta e a porta abriu. O quarto ainda estava
escuro e Cláudio ainda estava na cama. Daniel abriu as cortinas.
- Hora de levantar. Você perdeu a fisioterapia e não vai deixar de
nadar também.
Cláudio não respondeu. Daniel foi até a cama e sacudiu o irmão.
- Acorda! Está na hora!
Cláudio gemeu e fez uma careta. Daniel viu que algo estava erra-
do. Pôs a mão na testa de Cláudio e viu que ele estava queimando em
febre.
- Cláudio, fala comigo!
- Me deixa em paz.
Daniel respirou aliviado. Cláudio finalmente começou a chorar.
- O que aconteceu? Por que você está assim?
- Eu sou um aleijado! Foi isso o que aconteceu! Se as minhas per-
nas funcionassem ela estaria comigo!
Daniel engoliu seco. Percebeu que Cláudio falava de Isabel e sen-
tiu aquela culpa crescer ainda mais dentro de si. Se Cláudio não estives-
se na cadeira de rodas, Isabel estaria com ele. E se alguém era culpado
pela invalidez de Cláudio, esse alguém era ele. Sentia-se ainda pior pelo
fato de estar quase contente. Contente porque amava Isabel, e Isabel não
amava Cláudio.
- Vou chamar um médico. – disse Daniel saindo de seu devaneio.
Antes de ligar para o médico, ligou para os pais e avisou o que es-
tava acontecendo, sem dar os detalhes. Disse apenas que Cláudio estava
doente. Em uma hora o médico já havia chegado e todos estavam em
casa.
Daniel e seus pais esperavam em um canto do quarto enquanto
o médico examinava Cláudio. Quando terminou, chamou todos para
conversar do lado de fora.
- Aparentemente ele não tem nada que justifique essa febre, mas
tem sintomas de depressão, o que me leva a crer que a febre é emocional.
Vou receitar um antitérmico e observação. Se ele não melhorar, talvez
precise de um psiquiatra.
Os pais de Cláudio estavam perplexos. Depressão? Cláudio sem-
96 | POR QUE NÃO?
Pense nisso.
Daniel se despediu e foi embora. Isabel chorava, pois Daniel nem
mesmo havia reagido ao saber do que ela sentia.
Daniel entrou em casa ainda atônito. Esse tempo todo era dele
que Isabel gostava? Não podia acreditar naquilo. Depois disso não teve
mais coragem de encarar o irmão. O jeito foi trancar-se em seu próprio
quarto e rezar para que toda aquela situação se resolvesse tanto para ele
quanto para Cláudio. Só que tinha medo do modo como isso poderia
acontecer.
No final da tarde a campainha tocou: era Isabel. Luisa e Carlos, os
pais dos gêmeos, a receberam:
- Isabel! Que bom que você veio! – exclamou Luisa – Por favor, vá
falar com ele! Nunca vi meu filho assim antes.
Isabel subiu até o quarto de Cláudio. A porta estava destrancada e
o quarto estava escuro. Ela entrou e abriu as cortinas. Cláudio fez uma
careta e cobriu os olhos com o antebraço.
- O que está acontecendo? Fecha a cortina!
- Hora de parar com isso! Levanta dessa cama!
- Isabel? O que você está fazendo aqui?
- Fiquei sabendo que você não está bem. Vim conversar com você.
- Não tenho mais nada para falar com você. Vai embora.
- Não vou embora coisa nenhuma, porque eu tenho o que falar
com você.
Isabel puxou uma cadeira e sentou-se em frente à cama.
- Sua família está preocupada com você! Já faz uma semana que
você não sai dessa cama, mal come, não faz mais a fisioterapia. Você
quer enlouquecer todo mundo? Todo mundo está preocupado!
- E você, Isabel? Você está preocupada? – perguntou Cláudio, com
a voz embargada.
Isabel engoliu a seco e respirou fundo. Não suportava ver Cláudio
naquele estado.
- É claro que estou. – respondeu ela, sentando-se ao lado dele na
cama e afagando sua cabeça.
- Não é culpa minha, Isabel.
- O que não é culpa sua?
- Eu não queria te amar tanto assim. – respondeu Cláudio já cho-
rando – Se eu pudesse escolher, eu escolheria não te amar, mas eu não
posso. Eu não posso e não é culpa minha. Não é culpa minha eu te amar
e nem eu ser deficiente.
Isabel abraçou Cláudio e apoiou seu rosto na cabeça do rapaz.
- Eu sei, meu querido. Ser deficiente não é sua culpa. E eu também
TATIANE RANGEL | 99
sei que a gente não escolhe quem ama. – Isabel não se referia a Daniel.
Intimamente ela sabia que amava Cláudio, apesar de não querer.
- Pare com essa mania de achar que tudo é por causa da sua defi-
ciência. Você sabe que eu nunca liguei para isso. Eu sequer toquei neste
assunto com você. – Isabel sabia que contava outra mentira, mas ela ja-
mais admitiria isso para si mesma. – Venha. Eu te ajudo a levantar. Você
vai tomar um banho e comer alguma coisa.
- Antes me responde uma coisa, porque isso já está me enlouque-
cendo: o que aconteceu naquela festa? Por que você ficou tão chateada,
se não queria ficar comigo?
- Não sei. Acho que eu sou louca como você disse. Não suportaria
ver você com alguém como a Carlinha.
- E se fosse outra pessoa? Estaria tudo bem?
- Eu não sei. Me responde você agora: você gostou de ficar com
ela?
- Na hora sim, mas desde aquele dia eu não paro de ter pesadelos
com ela. Às vezes parece que ela ainda está do meu lado.
- Isso é bom ou ruim?
- Não tenho nada contra a Carlinha, mas é de arrepiar os cabelos.
Não sei por quê.
- Venha aqui. – chamou Isabel, abraçando Cláudio com força –
Me perdoa, tá?
- Claro que eu perdoo, Isabel. Eu te amo.
Depois disso, Cláudio finalmente tomou um banho e aceitou o
lanche que Isabel mandou fazer.
- É sobre nós, não é? Por isso você me deu este livro. Eu sou o cor-
cunda, meu irmão é o padre e você é a cigana.
Isabel corou.
- Eu não tinha pensado nisso. Foi por isso que você ficou depri-
mido, não foi?
Cláudio baixou a cabeça. Isabel deu um beijinho em seu rosto e
disse:
- Desculpe. Eu não tive a intenção. Jamais faria da sua condição
uma desculpa para não ficar contigo. Foi uma coincidência infeliz. Só
isso.
Isabel abraçou Cláudio com carinho.
- Eu tenho que ir agora. Amanhã cedo estarei aqui para vermos o
resultado juntos.
- Vou esperar por você. – Cláudio fez uma breve pausa – Sabe Isa-
bel, eu quero muito te ver feliz. Mas se não der certo com o meu irmão,
você pode pensar em me dar uma chance?
Isabel afagou os cabelos de Cláudio.
- Claro que sim. Até amanhã.
Isabel deu um selinho em Cláudio e saiu.
TATIANE RANGEL | 1 0 1
CAPÍTULO 8
rompendo o silêncio
N o dia seguinte, às oito da manhã, Isabel entrava eufórica no
quarto de Cláudio. Ele ainda estava dormindo, porque tinha
passado a noite em claro. O selinho que Isabel havia lhe dado havia sido
mais que um presente. Havia sido o elixir que faltava para que ele vol-
tasse à vida. Por isso não tinha conseguido dormir. Ficara pensando em
Isabel a noite toda. Pensando que ainda restava alguma esperança afinal.
Ficou durante horas se lembrando da textura dos lábios que havia pro-
vado por um momento tão breve quanto inesquecível.
Sem fazer cerimônia, Isabel abriu as cortinas e pulou em cima de
Cláudio fazendo-o acordar de vez.
- Anda, abre os olhos, levanta! Olha só o que eu trouxe! – disse ela
mostrando o jornal do dia – Vamos conferir!
Cláudio acordou um tanto desorientado.
- O que é isso? O que foi? O que está acontecendo?
- O que está acontecendo é que hoje saiu o resultado do seu vesti-
bular e eu trouxe o jornal para a gente conferir! Levanta!
Com algum esforço, Cláudio colocou-se sentado, pegou os óculos
na mesinha de cabeceira, praticamente tomou o jornal das mãos de Isa-
bel e abriu na página onde estavam os resultados. Os dois procuraram
freneticamente até que encontraram o nome de Cláudio: Aprovado!
Os dois gritaram de felicidade e se abraçaram. Daniel estava pas-
sando pela porta e se assustou com os gritos. Quando entrou, viu os dois
abraçados e perguntou:
- O que está acontecendo aqui? Que gritos foram esses?
Os dois se soltaram e Isabel explicou ainda eufórica:
- O Cláudio passou no vestibular! Não é maravilhoso?
Daniel abriu um sorriso e, com uma alegria mais contida, foi abra-
çar o irmão.
1 0 2 | POR QUE NÃO?
rir pode esperar lá na piscina, mas acho que vai ser meio chato, já que o
Cláudio não vai poder conversar.
- Eu acho uma ótima ideia. – concordou Daniel – Aonde você
quer ir?
- A gente pode ir comprar uma torta para fazer uma surpresa para
o Cláudio.
- Eu conheço uma confeitaria excelente. – disse Daniel.
Os dois saíram e Luisa, satisfeita, dizia a si mesma que Isabel era
“uma menina de ouro”.
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capítulo 9
noites de verão
I
sabel e Daniel escolheram a torta e ficaram de buscá-la ao meio-
-dia.
- Ainda são dez horas. O que vamos fazer até lá? – perguntou Isa-
bel entrando no carro.
- Eu conheço um bom lugar para esperarmos. – disse Daniel.
Daniel dirigiu colina acima por um caminho arborizado até che-
gar a um mirante. Tinha uma vista panorâmica do centro da cidade.
Naquela hora o lugar estava deserto, exceto por alguns atletas que pas-
savam correndo por ali.
Os dois sentaram-se um de frente para o outro em um banco de
concreto.
- Eu não conhecia este lugar.
- Você mora aqui há pouco tempo. Eu venho aqui desde pequeno.
Daniel chegou mais perto.
- Não acredito que você está aqui comigo. – disse ele, alisando os
cabelos de Isabel.
- O que vamos fazer agora? – perguntou ela.
- Eu não sei. Vai ser um choque para o Cláudio se ele souber.
- Até onde você pretende ir, Daniel? Se a gente parar agora ele não
precisa saber.
- Eu não sei até onde a gente vai, Isabel. Só sei que eu não quero
parar agora. Deus sabe o quanto eu sofri e ainda sofro para estar com
você. Coloquei a minha fé em xeque por isso. Mas se você me perguntar
se eu me arrependo, eu vou dizer que nem por um segundo. Não neste
momento.
- Em que momento, então? Você acha que vai se arrepender?
- Vou ser sincero com você: talvez eu me arrependa. Eu tenho
medo de magoar o meu irmão, de duvidar da minha fé, de te fazer al-
gum mal, mesmo sem querer. Mas neste momento eu quero viver isso.
Eu quero arriscar. Não quero passar o resto da vida frustrado, pensando
que eu te perdi, imaginando tudo o que eu podia ter feito ao seu lado,
1 0 8 | POR QUE NÃO?
ou mesmo pensando que não teria dado certo sem nem mesmo ter ten-
tado. Não pense que é fácil eu estar aqui, nem que é fácil decidir o que
fazer agora. É muita coisa na minha cabeça, Isabel. Coisas que você nem
imagina. Nada é fácil.
- Então o que estamos fazendo agora? Por que nós estamos aqui?
- Porque eu te amo! Porque eu quero viver este momento com
você e é isso o que estamos fazendo. Vivendo o momento. Por enquanto
vamos deixar como está e ver o que acontece, está bem? Não vamos ter
pressa para eleger um rótulo. Eu quero te amar o máximo que eu puder.
Estar com você o máximo que eu puder. Eu quero viver isso intensa-
mente, me entregar de corpo e alma para você. Depois a gente se preo-
cupa. Depois a gente pensa num jeito de contar para o Cláudio.
- E você acha que isso tudo vale à pena?
- Eu perdi tantas noites de sono pensando nisso, Isabel! Eu não
estaria aqui se não valesse.
Eles se beijaram e assim passaram as duas horas que ainda tinham
no mirante.
Cláudio saiu da piscina estranhando o silêncio dentro da casa.
Quando encontrou a mãe na cozinha perguntou:
- Onde está todo mundo?
- Seu pai está no escritório e seu irmão e a Isabel saíram.
- Juntos? – perguntou Cláudio, surpreso.
- Sim. Algum problema?
- Não, nenhum. – disfarçou – É que eles não são muito chegados
um ao outro. Fiquei imaginando o que eles podem estar fazendo juntos.
- Disseram que iam buscar uma surpresa para você, mas não diga
a eles que eu te contei.
- Pode deixar. Não vou dizer. – disse Cláudio, se preparando para
subir as escadas e sem despertar curiosidade a respeito da surpresa.
Cláudio começava a ficar apreensivo. Não estava gostando nada
daquela história. Podia até ser que os dois tivessem ido somente com-
prar-lhe um presente, mas Daniel e Isabel pareciam íntimos demais de-
pois de tantos meses sem mal falarem um com o outro. De qualquer
maneira, era melhor não pensar nisso agora. Cláudio foi tomar banho.
A mesa já estava posta quando Daniel e Isabel chegaram. Isabel
vinha sorridente com uma caixa nas mãos. Daniel estacionava na gara-
gem.
Cláudio estava na varanda quando os dois chegaram.
- Onde vocês foram? – perguntou, com um tom apático.
- Buscar uma surpresa para você, mas você não vai ver agora. –
disse Isabel, sorrindo misteriosamente enquanto entrava em casa.
TATIANE RANGEL | 1 0 9
Se ele viesse junto ia ter que assistir à missa – coisa que ele não suporta
– para poder voltar comigo. Ele é ateu.
- Você vai mesmo ajudar na missa?
- Não. Inventei isso para ele não vir.
- Estou me sentindo mal com isso tudo. Se ele descobrir, vai ficar
magoado. Não é melhor a gente conversar com ele?
- Eu também não estou orgulhoso, mas você viu como ele ficou.
Não é a hora de contar para ele. Acho melhor até a gente evitar se ver lá
em casa.
Daniel parou o carro.
- Pronto. Está entregue. – disse, beijando Isabel em seguida –
Amanhã eu te ligo e a gente combina de se encontrar.
- Tudo bem. Até amanhã.
- Até amanhã.
Beijaram-se mais uma vez e Isabel entrou em casa.
Aquela foi talvez a melhor semana da vida de Isabel. Ela e Daniel
andavam juntos para cima e para baixo. Iam ao mirante, ao shopping,
ao parque da cidade. Andavam abraçados ou de mãos dadas o tempo
todo. Às vezes Daniel parava o carro em alguma rua deserta e os dois
passavam tardes inteiras aos beijos e abraços, que iam ficando cada vez
mais intensos.
Às vezes Daniel sentia-se um tanto constrangido e tentava se con-
trolar, mas muitas vezes as demonstrações de afeto corriam quase sem
pudor, ainda que com certos limites.
Isabel não havia ido nem um dia até a casa dos gêmeos para visitar
Cláudio e fazia tempo que Daniel não passava nem na porta da igreja.
Durante aquele tempo Isabel não pensava em Cláudio. Estava tão
concentrada no que estava acontecendo que não pensava em mais nada.
Sequer se importava quando a mãe reclamava depois que ela passou a
chegar tarde da noite em casa.
Daniel também estava completamente afastado de suas atividades
habituais. Não ia mais à missa, não lia mais a bíblia, não estudava mais
teologia. Sequer rezava antes de dormir.
Na sexta-feira, Isabel recebeu um telefonema de Cláudio pedindo
que ela fosse até sua casa. Isabel foi preocupada, pois nem Daniel soube
dizer do que se tratava. Ela só podia pensar que Cláudio havia descober-
to tudo e que quando chegasse lá, teriam uma briga “daquelas”.
Quando chegou lá, os gêmeos e seus pais estavam reunidos na sala
e pareciam estar somente esperando que ela chegasse. Apreensiva, Isa-
bel entrou, imaginando coisas horríveis. Imaginava que Cláudio havia
descoberto tudo, ele e Daniel haviam brigado e os pais chateados com a
TATIANE RANGEL | 1 1 1
CAPÍTULO 10
não fale
D e manhã cedo todos colocaram suas coisas no carro e pega-
ram a estrada. Ficaram em silêncio praticamente o caminho
inteiro. Cláudio tinha o olhar triste e distante e tentava disfarçar ou-
vindo música com o fone de ouvido. Isabel e Daniel cochilaram prati-
camente o tempo todo. Carlos e Luisa conversavam baixo entre si para
não acordá-los.
Quando chegaram, foram primeiro deixar Isabel em casa. Dentro
do carro mesmo, ela abraçou Cláudio e se despediu. Agradeceu Carlos
e Luisa pelo convite e desceu do carro assim que Daniel – que estava
sentado perto da porta – também desceu para lhe dar passagem.
Ela abraçou Daniel e ele discretamente a afastou de si, enquanto
sussurrava em seu ouvido:
- Depois eu te ligo.
Daniel entrou novamente no carro. Isabel ficou acenando até que
eles desaparecessem na esquina.
Quando chegou em casa, Daniel tomou um banho e sentou-se na
varanda de seu quarto. Ficou pensando em tudo o que acontecera nas
últimas semanas, principalmente no dia anterior. Ele devia estar feliz,
mas não estava. Ficou acordado a noite inteira pensando. O sentimento
que ele antes nutria por Isabel havia desaparecido. Não tinha mais von-
tade de estar com ela como antes. Aquilo não poderia ter sido amor. Até
onde sabia o amor não acabava assim de uma hora para outra. Se, depois
de tudo, tinha simplesmente acabado, não era amor. Era só desejo. E o
pior de tudo era que ele sentia-se extremamente culpado por ter tirado
a virgindade de Isabel. Aquilo não havia sido certo, nem mesmo quando
ele ainda pensava que a amava. Ele agora se sentia sujo, criminoso, here-
ge. Nunca deveria ter se afastado do seminário. Lá era definitivamente o
seu lugar. Nunca deveria ter traído sua vocação e sua fé.
No dia seguinte, depois do almoço, Daniel ligou para Isabel e pe-
diu que ela o esperasse na porta de sua casa, pois ele estaria passando
para buscá-la. Quando chegou, encontrou Isabel sorridente na calçada.
1 2 0 | POR QUE NÃO?
Ela entrou no carro e, enquanto ele dirigia, ela ia falando animada, sobre
como havia gostado da viagem e tudo o mais. Aquilo tornaria as coisas
muito mais difíceis.
Foram até o mirante e sentaram-se no mesmo banco de quando
foram lá pela primeira vez. Isabel virou-se de frente para ele e já ia beijá-
-lo, quando ele a deteve.
- Espere, Isabel. Não faça isso.
- Por que não? – perguntou Isabel, surpresa.
- A gente precisa conversar.
- Conversar sobre o quê?
- Sobre tudo o que aconteceu.
- Você ainda está preocupado com aquilo? Eu disse que não tem
problema. Eu também quis.
- Tem problema sim, Isabel. Eu acho que a gente não devia mais
se ver.
- Como é que é? – Isabel ficou tonta e se não estivesse sentada,
provavelmente cairia – Como assim, Daniel? Por que você não quer
mais me ver?
- Ouça, Isabel, não está sendo fácil para mim também. Eu não
dormi esta noite só pensando nisso.
- Pensando em quê? Em como você ia me dar o fora? – perguntou
Isabel, com os olhos cheios d’água.
- Não, Isabel. Nas razões que eu tenho para fazer isso. Muitas ra-
zões.
Daniel fez uma pausa.
- A primeira delas é o meu irmão. Ele te ama mais que tudo. Eu
nunca o vi amar ninguém assim. Ele já perdeu tanta coisa, já sofreu tan-
to. Eu não quero tirar mais isso dele. Já basta o que aconteceu quando
éramos crianças.
- Do que você está falando? – perguntou Isabel, ainda mais con-
fusa.
- Da paralisia dele. Foi tudo minha culpa.
- Ele caiu da árvore, Daniel! Foi um acidente!
- Ele não caiu da árvore. Essa é a história que ele conta para todo
mundo.
- Do que você está falando, Daniel? O que aconteceu? – perguntou
Isabel já chorando.
- Isabel, eu nunca disse isso em voz alta, por favor, não me faça
dizer agora!
- Eu quero entender, Daniel. Agora você vai me contar!
Daniel respirou fundo. Nunca havia pensado que um dia contaria
aquilo a alguém, mas ele sabia que, no fundo, era o que merecia.
TATIANE RANGEL | 1 2 1
- É disso que eu estou falando, Cláudio! Ele nunca disse que era
meu namorado! A gente ficou junto por três semanas e eu achei que... –
Isabel não conseguiu terminar a frase.
- Eu sei, eu sei. – disse Cláudio abraçando Isabel. – Eu também
nunca pensei que ele fosse capaz de fazer uma coisa dessas. Estou cho-
cado. Mas não chore mais. Enxugue essas lágrimas e vamos apreciar o
nosso café da manhã.
Cláudio secou as lágrimas de Isabel e a convenceu a tomar o café
da manhã que a garçonete acabava de servir.
TATIANE RANGEL | 1 2 5
CAPÍTULO11
uma nova chance
D epois que passou no vestibular, Cláudio retomou a maioria
das suas atividades. Principalmente as que eram realizadas
no centro de reabilitação que frequentava. Precisava aproveitar enquan-
to não começavam as aulas, pois voltaria a não ter tempo hábil para tudo
aquilo.
Apesar de estar com Isabel, decidiu que aquele dia não seria dife-
rente. Terminado o café da manhã, ele convidou:
- O que você acha de participar um pouquinho da minha vida, só
para variar?
- Do que você está falando?
- Estou dizendo que vou te levar para conhecer o centro de reabi-
litação. Vai fazer bem para você. Você vai ver que, por maior que seja o
problema, qualquer que seja, está longe de ser o fim do mundo.
- Como assim?
- Eu sei que você está triste, que parece que você vai morrer, e tal.
Mas o seu problema vai passar e você vai continuar vivendo. As pessoas
que você vai conhecer têm problemas que não são passageiros e elas
escolheram viver mesmo assim! E vivem bem! Com alegria! Vai te fazer
bem. Vamos.
Isabel não teve escolha. Cláudio praticamente a obrigou a ir.
Chegando ao local, Isabel ficou espantada com o tamanho do pré-
dio. Era extremamente grande. Entrando lá, viu que havia muitos espa-
ços e ambientes diferentes, cada um com uma finalidade.
Cláudio pediu que Isabel esperasse enquanto ele se trocava.
Quando ele voltou, estava de uniforme de basquete e em outra cadeira
de rodas. Era manual e tinha as rodas inclinadas para dentro. Isabel se
ofereceu pra empurrar, mas ele recusou. Seguiram por um corredor até
chegar numa quadra, onde vários outros rapazes esperavam. Antes de
entrar, Cláudio falou para Isabel:
- Você está sofrendo, Isabel. Isso é natural. Mas o que eu quero que
você saiba é que todas essas pessoas aqui já sofreram muito um dia, e
1 2 6 | POR QUE NÃO?
CAPÍTULO 12
alguém se importa?
C láudio entrou em casa radiante. Seus pais haviam acabado de
chegar em casa e estavam sentados no sofá da sala.
- Que cara é essa, filho? Está vindo de onde? – perguntou Carlos.
- Fui levar minha namorada em casa. – respondeu ele com um
enorme sorriso.
- Você e a Isabel estão namorando? – perguntou Luisa, com um
misto de surpresa e alegria.
- Estamos sim. – respondeu Cláudio.
- Desde quando? – perguntou Carlos.
- Desde as cinco da tarde. – respondeu Cláudio, todo sorridente.
- Que ótimo, filho! Parabéns! – disse Luisa, abraçando Cláudio –
Eu fico muito feliz e torço para dar certo. Ela é uma menina maravilho-
sa! Seu pai e eu gostamos muito dela!
Depois de todo o interrogatório e comemoração, Cláudio foi para
o quarto. Queria ficar um pouco sozinho, pensar em tudo o que tinha
acontecido naquele dia, ficar a sós com a própria felicidade. Ele não ca-
bia em si de tanta alegria.
niel para recebê-la. Nada lá fazia lembrá-lo, como Cláudio havia prome-
tido. Luisa havia feito questão de deixar o cômodo com uma decoração
bastante feminina.
Como já era hábito, depois que todos estavam dormindo, Isabel
ia para o quarto de Cláudio e passava o resto da noite lá, tomando o
cuidado de trancar as portas dos dois quartos e redobrando a atenção
ao sair pela manhã. Se os pais de Cláudio vissem, certamente ficariam
chateados.
Os dias de carnaval chegaram e iam passando tranquilos. Eles não
faziam nada que saísse muito de suas rotinas. Passavam a maior parte
do tempo na piscina e quase todos os dias o pai de Cláudio fazia um
churrasco. À noitinha, faziam a roda de violão com Cláudio cantando,
jogavam baralho ou assistiam a um filme com direito a muita pipoca.
Na quarta-feira de cinzas os pais de Cláudio voltaram ao trabalho
e Isabel e ele voltaram a passar os dias praticamente sozinhos. Os pais
de Isabel só voltariam no domingo, então ela decidiu ficar até o final da
semana.
Isabel gostava dos momentos em família que passava com Cláu-
dio e os pais dele. Não se lembrava de ter feito isso nem uma vez em sua
casa. Com seus pais sempre havia sido diferente. Cada um no seu canto.
- Isabel! Acorda!
Isabel abriu os olhos.
- O que você tem hoje? Que sono é esse? Dormiu mal essa noite?
- Pior que não. Dormi feito uma pedra. Eu acho que esse remédio
é que não está mais fazendo efeito.
- Vou marcar o médico para você.
- Não, não precisa. Deve ser só uma indisposição. Amanhã vai
estar tudo normal. Você vai ver.
- Tudo bem, mas se você não melhorar eu vou marcar o médico.
- Você se preocupa demais. – disse Isabel dando um beijo em
Cláudio e se levantando.
Isabel passou o resto do dia com sono. Nos dias seguintes não
foi diferente. Isabel continuava com sono e começou também a ficar
irritada. Cláudio ligou para o consultório do médico para marcar uma
consulta para Isabel, mas a agenda estava lotada e só teria uma vaga dali
a uns dez dias. Ele marcou mesmo assim. Seria preciso esperar mais um
pouco, mas era melhor do que nada. Enquanto isso, Cláudio procurava
fazer com que Isabel tomasse os remédios na hora certa e comesse direi-
to, mas nada parecia adiantar.
No domingo, depois do almoço, Cláudio levou Isabel em casa,
onde ela deixou a mochila de roupas, pois seus pais chegariam à noite e
no dia seguinte teria aula. Depois eles foram dar uma volta no shopping
para aproveitar o último dia de férias. Na praça de alimentação, Isabel
resolveu que queria comer uma fatia de torta de chocolate, mas Cláudio
tentou convencê-la a desistir.
- Lindinha, escolhe outra coisa. Você sabe que não pode se encher
de doce.
- Mas eu não comi nenhum doce hoje. Não vai ter problema.
- Eu sei, mas julgando como você passou os últimos dias eu não
acho uma boa ideia. Sua hipoglicemia é reativa ao açúcar e sua glicose
já anda baixa. Se comer isso, vai baixar mais ainda e você vai passar mal.
Não se esqueça de que nós estamos na rua e eu não tenho como te car-
regar, se você desmaiar.
- Só um pedacinho! Você come junto comigo! Eu estou com tanta
vontade!
- Não, Isabel. Depois que você for ao médico, quando voltar ao
normal, eu prometo que deixo você comer um doce. Antes disso, nada
feito.
Isabel fez beicinho e encheu os olhos d’água.
- Ah, Isabel! Precisa chorar? – repreendeu Cláudio.
Isso fez com que as lágrimas de fato começassem a descer. Cláudio
se sentiu culpado.
1 3 4 | POR QUE NÃO?
da. – disfarçou Isabel – A que horas você chega em casa amanhã? – quis
saber.
- Acho que lá para uma hora.
- Vai fazer fisioterapia de tarde?
- Não, só à noite. Por quê?
- Pensei em passar aí depois do colégio.
- Pode vir! Você aproveita e almoça comigo. Só não vai dar tempo
de eu ir te buscar.
- Tudo bem, não precisa. Uma hora então?
- Combinado. Vou te esperar.
Os dois se despediram e desligaram o telefone.
No dia seguinte, depois da aula, Isabel foi para a casa de Cláudio.
Quando ela entrou na sala, já estava com uma expressão estranha e pa-
recia tensa. Cláudio tinha acabado de chegar da faculdade e ainda não
tinha mandado servir o almoço.
- Oi, minha lindinha. – disse Cláudio, beijando Isabel – Você deve
estar com fome. Vou mandar servir o almoço.
Cláudio se preparava para deixar a sala quando Isabel pediu que
ficasse.
- Você pode deixar isso para depois? Eu queria conversar uma
coisa com você primeiro.
- Tudo bem. – estranhou Cláudio – Por que você não se senta?
Isabel sentou no sofá e ficou olhando para Cláudio com uma cara
de medo.
- O que foi, Isabel? – perguntou preocupado – Aconteceu alguma
coisa?
- Aconteceu. – respondeu ela com a voz embargada – Aconteceu
uma coisa horrível!
Isabel desatou a chorar.
- Você vai me odiar. – disse ela entre lágrimas.
- Calma, Isabel. Me conta o que aconteceu. – pediu Cláudio, atô-
nito.
Isabel só chorava.
- Isabel, meu amor... Se você não parar de chorar e me contar o
que está acontecendo eu não vou poder te ajudar.
- Você vai me odiar. – repetiu ela.
- Minha lindinha, por pior que seja eu prometo que vou tentar te
ajudar, mas para isso você precisa me dizer o que aconteceu.
Isabel levantou o rosto e secou as lágrimas tentando se controlar.
Ela olhou nos olhos de Cláudio e o medo ainda era visível em sua ex-
pressão.
TATIANE RANGEL | 1 3 7
- Isabel, não tenha medo. Você pode me dizer qualquer coisa. Va-
mos lá. Respira fundo e me diz o que está acontecendo.
Vendo que não tinha outro jeito, Isabel fez o que Cláudio pediu.
Respirou fundo e disparou:
- Eu estou grávida! – disse, recomeçando a chorar.
Cláudio entrou em choque e não conseguiu esboçar nenhuma re-
ação imediata. Isabel só chorava.
Depois de algum tempo em silêncio, Cláudio procurou cair em si
e viu que precisava amparar Isabel, ou ela teria um treco.
- Calma, Isabel. – pediu – Vamos com calma. Você tem certeza?
- Tenho. Eu fiz um teste de farmácia ontem e deu positivo. – disse
Isabel ainda muito nervosa.
- Procure ficar calma. Se isso for mesmo verdade você precisa se
acalmar ou pode fazer mal ao bebê. Respire fundo.
Depois de conseguir com que Isabel se acalmasse um pouco,
Cláudio tentou raciocinar.
- Você contou isso para mais alguém? Seus pais sabem?
- Não. Quando eles souberem vão me matar! – Isabel ainda cho-
rava.
Cláudio abraçou Isabel e tentou consolá-la.
- Fica calma, meu amor. Eu estou do seu lado, está bem? Nós va-
mos dar um jeito.
- Você vai me odiar. – repetiu Isabel.
- Não, meu amor. Eu não vou te odiar. – disse Cláudio – A culpa
é de nós dois. A gente ainda está estudando e devia ter se cuidado. Eu
não esperava ser pai agora, mas a gente vai dar um jeito. Fica tranquila.
Prometo que vai ficar tudo bem. – disse ele, dando um beijinho na testa
de Isabel.
Ela levantou a cabeça, olhou para ele com mais medo ainda e fa-
lou:
- Não é seu.
- Como é que é? O que você está dizendo, Isabel? – perguntou
Cláudio mal acreditando no que acabara de ouvir.
- O filho não é seu. – disse ela mais controlada – É do seu irmão.
Desta vez Cláudio sentiu que era ele quem ia desmaiar.
- Você não tem como saber. O intervalo de tempo entre eu e ele
foi só de duas semanas e você ainda não foi ao médico, foi? Existe uma
chance de esse filho ser meu. – concluiu ele, quase histérico – Não existe,
Isabel?
- Cláudio, não tem chance de esse filho ser seu. Eu já estava atra-
sada antes de a gente... Bem... você sabe.
1 3 8 | POR QUE NÃO?
- Então é melhor dar logo um jeito nisso. Eu vou até lá com você
e te ajudo a contar, está bem? Vou ficar do seu lado o tempo todo, mas
isso precisa ser feito.
Isabel chorava.
- Não chore. – disse Cláudio, abraçando a menina – Tudo vai dar
certo.
Os dois chegaram à casa de Isabel e encontraram os pais sentados
na sala. Eles estranhavam aquela visita de Cláudio, que não era mui-
to comum. Pela cara dos dois e principalmente pelos olhos inchados
de Isabel, notaram que alguma coisa estava errada. Isabel sentou-se na
poltrona em frente ao sofá onde seus pais estavam e Cláudio parou a
cadeira ao lado dela.
- O que aconteceu, Isabel? – perguntou sua mãe, previamente ir-
ritada.
- Nós temos uma coisa muito séria para contar para vocês. – disse
Cláudio.
- O que você aprontou agora? – perguntou o pai.
O pavor estava estampado no rosto de Isabel. Cláudio sussurrou
para ela:
- Coragem, Isabel. Seja forte. Lembre-se de que eu estou aqui com
você e vou te apoiar em qualquer situação.
- Estamos esperando. – cobrou o pai.
Vendo que Isabel não ia conseguir falar, Cláudio tomou a frente:
- Não é uma coisa muito fácil de dizer, mas não tem outro jeito.
– disse ele, segurando a mão de Isabel o tempo todo – A Isabel e eu esta-
mos namorando e aconteceu um acidente. Ela está grávida.
- Como é que é? – perguntou a mãe de Isabel, claramente transtor-
nada – Você está grávida, Isabel? Então era isso o que você estava fazen-
do quando dizia que estava indo estudar? – perguntou ela já gritando.
- Não, mãe! Eu juro que eu estava estudando! Eu até passei de ano!
- Vadia! Vagabunda! Prostituta! – xingou a mãe, enfurecida – Não
deve nem saber de quem é esse filho!
Cláudio ficou ofendido e interveio:
- Ela não é nada disso o que a senhora falou! E eu já disse aqui que
eu sou o namorado dela e que esse filho é meu! Eu estou tomando uma
atitude de homem vindo aqui falar com vocês e assumindo a minha
responsabilidade! Agora tomem uma atitude de pais e apoiem a filha de
vocês!
- Admiro muito a sua postura, mas não espere que acreditemos
que esse filho é seu! Você é aleijado! Não consegue fazer filho! – rebateu
ela.
1 4 2 | POR QUE NÃO?
CAPÍTULO 13
para o seu bebê
Q uando os dois chegaram em casa, Isabel estava arrasada. Es-
perava qualquer reação exagerada dos pais, menos aquela.
Cláudio ainda custava a crer no que tinha acontecido.
- Caramba! Nós estamos no século 21! Quem ainda expulsa uma
filha de casa porque está grávida? Não se preocupe, Isabel. Nós vamos
dar um jeito nisso.
- Não quero me livrar dele. – respondeu Isabel, chorando – Quero
ficar com o meu bebê.
- Calma, meu amor! Não foi isso o que eu quis dizer! Você e o
bebê estão seguros aqui. Eu prometo que não vou deixar que ninguém
faça mal a vocês dois.
- O que vai ser de mim agora, Cláudio? Eu não tenho mais nin-
guém no mundo.
- Não diga isso. Você tem a mim. Apesar do que aconteceu, sua
vida segue normalmente agora, tá? Eu tenho algumas ideias, mas agora
você está muito nervosa. Conversamos sobre isso depois. Você parece
cansada. Por que você não se deita e dorme um pouquinho?
- Estou mesmo precisando. Não dormi nada esta noite.
- Eu imaginei. Vá para a cama e durma um pouco. Você vai rela-
xar. Vai te fazer bem.
- Não sei se consigo.
- Consegue sim. Quer que eu fique com você até pegar no sono?
Isabel fez que sim com a cabeça e Cláudio foi com ela até o quarto.
Ficou ao lado da cama alisando seus cabelos até que ela dormisse.
Depois que Isabel dormiu, Cláudio pediu aos empregados que fi-
cassem de olho caso ela acordasse e lhe servissem o almoço, pois ele
daria uma saída rápida.
Cláudio demorou umas duas horas, mas ao voltar para casa, Isabel
ainda estava dormindo. Ela dormiu até as três da tarde e quando acor-
dou, Cláudio estava ao seu lado, velando seu sono.
- Oi. – disse Isabel, ao abrir os olhos.
1 4 6 | POR QUE NÃO?
- Cláudio, não sei se posso aceitar e nem se seus pais vão aceitar
isso.
- Claro que pode! E meus pais não serão problema. Eles adoram
você! Vão concordar quando souberem o que aconteceu.
- Não sei se quero que eles saibam. Acho que vão ficar bem chate-
ados se souberem o que houve entre mim e o seu irmão.
- Eles não precisam saber! Você ainda não entendeu o que eu es-
tou te propondo?
- Acho que não.
- Isabel, eu digo que esse filho é meu! Assumo você e o bebê, regis-
tro como se fosse meu filho, dou meu nome para ele!
Isabel olhava surpresa para Cláudio.
- Isso me leva ao terceiro presente. – disse Cláudio, tirando uma
caixinha do fundo da sacola – Isabel, quer se casar comigo? – pediu ele,
com a caixinha aberta exibindo uma aliança.
Isabel tapou a boca aberta com uma das mãos. Seus olhos brilha-
vam.
- Cláudio... Eu só tenho dezessete anos! Meus pais nunca vão au-
torizar! Não depois de tudo o que aconteceu!
- Eu já pensei em tudo. No fim do ano você faz dezoito e não vai
mais precisar da assinatura deles. Até lá o bebê já vai ter nascido e a
gente pode se casar no início do ano que vem. Vai dar tempo de planejar
tudo com calma.
Os dois permaneceram em silêncio por alguns segundos. Cláu-
dio, ainda com a aliança na mão, perguntou novamente:
- E então, Isabel? Aceita ser minha esposa?
- Aceito! – respondeu Isabel, empolgada, abraçando Cláudio e, em
seguida, dando-lhe um longo beijo.
Ela chorava de felicidade. Os dois estavam nervosos e foi com as
mãos trêmulas que Cláudio pôs a aliança no dedo de Isabel.
À noite, os pais de Cláudio chegaram e todos se sentaram para
conversar sobre o que estava acontecendo. Cláudio e Isabel explicaram
sobre a gravidez e contaram tudo o que havia acontecido naquele dia.
Cláudio, é claro, disse que o filho era seu, que tinha resolvido assumir de
vez Isabel e o bebê e que agora eles estavam noivos.
Carlos e Luisa ficaram surpresos e até felizes, embora muito pre-
ocupados com a notícia da gravidez de Isabel. Mas ficaram completa-
mente revoltados ao saber da reação e da atitude dos pais dela. Sendo
assim, eles concordaram em acolhê-la em sua casa, mas fizeram questão
de deixar claras as obrigações que cabiam a ela e Cláudio.
- Bem, nós não esperávamos sermos avós agora. Vocês mal come-
1 4 8 | POR QUE NÃO?
Cláudio saía do trabalho, pois tinha que estar às sete na faculdade e lá fi-
cava até as onze da noite. Chegava em casa perto da meia-noite. Jantava,
tomava banho e ia dormir para no dia seguinte começar tudo outra vez.
Isabel mudou-se de vez para o quarto de Cláudio. Agora não tinha
mais razão para esconder. Continuava indo à escola normalmente, mas
lá, ninguém ainda sabia de nada. Isabel estava praticamente isolada. Às
vezes, sentia que Carlinha tentava se aproximar dela, mas quando isso
acontecia, Isabel saía de perto. Não queria mais ser amiga de Carlinha e
não se falavam desde a festa. As pessoas estranhavam o comportamento
de Isabel, que sempre havia sido tão sociável.
Isabel não era muito chegada a enjoos matinais. Com o acompa-
nhamento do endocrinologista e uma dieta rigorosa, sua glicose estava
sob controle. No entanto, Isabel ficava sonolenta e tinha muitas varia-
ções de humor. Certos cheiros e comidas podiam fazê-la vomitar facil-
mente.
Isabel havia iniciado o pré-natal com a médica que Luisa havia re-
comendado. Como todos eram muito ocupados e com Cláudio se des-
dobrando em três, Isabel precisava ir sozinha às consultas, mas quando
soube que ela ia fazer a primeira ultrassonografia, Cláudio deu um jeito
de deixar a loja para ir junto.
- Estão vendo esta mancha aqui? Este é o bebê de vocês. – disse o
médico, apontando para o monitor – E isto aqui que está pulsando é o
coração. Vou aumentar o som para que vocês possam ouvir.
O médico aumentou o som e o pulsar do coração se fez ouvir alto
e claro. Isabel olhou emocionada para Cláudio, que também tinha os
olhos cheios d’água. O médico imprimiu uma cópia e entregou na mão
de Isabel.
- Aqui está a primeira foto do seu bebê.
O médico disse que o desenvolvimento do bebê estava normal e
parecia estar tudo bem.
Com a jornada pesada de estudo, trabalho e reabilitação de Cláu-
dio, Isabel começou a sentir-se sozinha e preocupada. Muitas vezes
dormia antes de Cláudio chegar em casa, pois acordava cedo para ir à
escola. Quando acordava, ele estava fazendo sua fisioterapia e exercícios
diários. Praticamente só se viam na hora do almoço.
Cláudio tirava folga aos domingos, mas muitas vezes não podia
dar a atenção que queria à Isabel. Tinha que estudar e fazer os trabalhos
da faculdade.
Outra preocupação de Isabel eram os gastos que Cláudio estava
tendo. Pagava sua escola, sua assistência médica, tinha despesas com o
carro – uma necessidade para ele. Além disso, Cláudio havia começado
1 5 0 | POR QUE NÃO?
* * *
ram por desenvolver certa antipatia por Isabel. Então, quando a gravi-
dez ficou óbvia, começaram as fofocas e comentários maldosos. Isabel
passou a ser perseguida e agredida verbalmente.
As pessoas que estavam na festa de Carlinha e que presenciaram o
que aconteceu lá eram as piores. O principal boato era que Isabel havia
roubado o namorado de Carlinha e engravidado para prendê-lo. Não
havia como escapar deste último comentário, pois todos viam quando
Cláudio buscava Isabel na hora da saída. Por mais que Carlinha des-
mentisse a história, as pessoas tinham prazer em inventar cada vez mais.
Isabel começou a ficar desmotivada. Tão desmotivada que resol-
veu sair do colégio. Quando Cláudio soube, tentou convencê-la do con-
trário.
- Isabel, você não tem que ligar para essas coisas. Sabe o que vai
acontecer se você sair do colégio? Não vai terminar o ensino médio.
Vai ficar atrasada. E no ano que vem todos aqueles babacas vão estar na
faculdade e você não.
- Eu não consigo mais. – respondeu Isabel chorando – Você não
sabe o que é passar o dia inteiro sendo xingada, perseguida e apontada!
Você não sabe o que é entrar no banheiro e ver coisas horríveis sobre
você escritas em todas as portas e paredes.
- Meu amor, eu não posso te forçar a fazer nada que você não
queira, mas tenha em mente que se você sair da escola agora, vai ter que
esperar até o ano que vem para entrar em outra, porque os seus pais
ainda detém a sua guarda e só eles podem te matricular. E como você só
faz dezoito anos em dezembro...
- Não tem problema. O bebê vai nascer em outubro. Eu não ia
conseguir terminar o ano mesmo.
- Isso não seria um problema, Isabel. A lei te garante o direito de
fazer as provas depois.
- Não. Eu não quero mais voltar lá. Prefiro esperar até o ano que
vem e me matricular em outra escola. Eu posso trabalhar de dia e estu-
dar à noite. Assim eu consigo pagar uma creche para o bebê.
- Isabel, você não pode se afastar do bebê o dia inteiro. Ele vai
precisar de você. Você vai ter que amamentá-lo.
- Então eu volto a estudar quando puder! Só não me faça mais
voltar para aquela escola!
- Tudo bem. – concordou Cláudio, contrariado – Talvez possamos
contratar uma babá, ou... Sei lá. Pensamos nisso depois.
Isabel acabou mesmo saindo do colégio. Os pais de Cláudio não
gostaram nada quando souberam, mas acabaram deixando para lá dian-
te de toda a argumentação dela. No entanto, eles a fizeram prometer que
1 5 2 | POR QUE NÃO?
CAPÍTULO14
escuridão
A os cinco meses de gravidez, Isabel foi fazer outra ultrasso-
nografia. Cláudio deu um jeito de deixar a loja por algumas
horas para poder acompanhá-la. Talvez desta vez desse para ver o sexo
do bebê.
- Isabel, o seu bebê está ótimo! – elogiou o médico – Está crescen-
do normalmente, está com um peso ótimo e os batimentos cardíacos
estão perfeitos.
Cláudio estava dentro do consultório com Isabel. Ele estava para-
do perto da cabeceira da maca e segurava a mão dela.
- Está dando para ver o sexo. Querem saber? – perguntou o mé-
dico.
Os dois, empolgados e emocionados, fizeram que sim com a ca-
beça.
- Vamos ver... – brincou o médico, fazendo suspense – Vocês vão
ter uma menininha!
Isabel desatou a chorar, enquanto Cláudio deixou escapar uma lá-
grima bem discreta, mas não conseguiu disfarçar o sorriso.
O médico imprimiu o laudo e uma cópia extra da imagem para
que os dois pudessem ter mais uma “foto” do bebê.
No carro, Cláudio e Isabel conversavam animados com as novi-
dades.
- Uma menina! Eu sempre quis ter uma menina! Estou tão feliz!
– disse Isabel.
- Quando minha mãe souber, vai fazer um escândalo!
- Vamos ligar para ela!
- Não. Vamos esperar até a noite para dar a notícia pessoalmente.
Quero ver a cara dela quando souber que vai ter uma netinha.
- É! A gente fala e mostra a nova foto do bebê para ela!
- Precisamos parar de chamá-la assim. Agora que sabemos que é
menina, precisamos dar um nome para ela. Você tem alguma ideia?
- Bem, eu sei que não te disse nada, mas eu acho que já escolhi.
1 5 4 | POR QUE NÃO?
- Então você está comigo por caridade? Por pena? Ou só para fa-
zer um favor para o seu irmão?
- Você não entendeu, Isabel. Ele teve de você tudo o que eu sempre
sonhei e jogou fora! Ele não te amou e nem quis o seu bebê! Mas eu te
amei, Isabel! Eu te amei o tempo todo e continuo te amando mais a cada
dia que passa! Eu quero ter uma família com você! E se ele não quer e
você está disposta a me dar tudo isso agora, então não importa de quem
é esse bebê! Não importa, porque vocês são minha família agora! O Da-
niel e eu somos gêmeos idênticos, nós temos o mesmo DNA! Nenhum
teste de paternidade diria de quem é esse filho! Você entende, Isabel? É
como se a Gabi fosse minha filha sim! Mesmo que o meu DNA não fosse
igual ao do meu irmão: ela seria no mínimo a minha sobrinha! Ela tem
o meu sangue!
Cláudio não estava mentindo para Isabel. Ele realmente amava a
criança que estava por vir como se fosse sua, mas sabia que amaria de
outro jeito se ela realmente o fosse. Não amaria mais: apenas diferente.
Sabendo disso, Cláudio não podia deixar de sentir uma ponta de culpa,
mas procurava não pensar nisso. Isabel não tinha culpa do que estava
acontecendo. A bebê também não. E ele amava as duas como jamais
imaginou amar alguém em toda a sua vida. Isso bastava para que ele
se perdoasse e se permitisse viver toda a felicidade daquele momento,
apesar das dificuldades.
Cláudio e Isabel deram uma breve passada na loja para delegar
tarefas e não deixar nada pendente para o dia seguinte. Depois disso,
passaram o resto do dia no shopping, comprando tudo o que ainda fal-
tava para a pequena Gabriela.
Isabel estava radiante. Podia finalmente escolher as roupinhas cor-
-de-rosa que tanto queria e tudo o mais que fosse feminino e delicado.
À noite, os dois haviam preparado uma pequena surpresa para
os pais de Cláudio: fizeram uma cópia da “fotografia” impressa no ul-
trassom e a puseram num porta-retratos. Embrulharam para presente e
anexaram um cartão no qual escreveram: “Para a vovó e o vovô. Muito
prazer: eu sou a Gabriela”. Os dois ficaram extremamente felizes e emo-
cionados. Principalmente Luisa, que não parava de chorar enquanto
abraçava Isabel e beijava sua barriga.
No mês seguinte Cláudio finalmente entrou de férias da faculda-
de. Isso permitiu que ele passasse algum tempo com Isabel fora do horá-
rio de trabalho. Era até bom, porque a barriga de Isabel estava crescendo
cada vez mais e ele temia que em breve talvez não fosse mais possível
que ela o acompanhasse em sua jornada de trabalho. Mesmo assim, ain-
da era possível deixar Isabel sozinha na loja por algumas horas durante
1 5 6 | POR QUE NÃO?
o dia para pôr em prática uma surpresa que ele estava preparando. Ele
dizia que precisava visitar fornecedores e pedia que ela tomasse conta da
loja enquanto ele estivesse fora, embora quase não houvesse o que Isabel
pudesse fazer.
Um dia, ele passou quase o tempo todo ao telefone dando instru-
ções a alguém. Quando Isabel perguntava o que era, ele desconversava.
Até que no final do dia os dois voltaram para casa e ela pôde finalmente
ver do que se tratava tanto mistério.
- Não abra os olhos ainda. – pediu Cláudio, enquanto abria uma
porta e acendia a luz – Pronto! Pode olhar!
Quando viu, Isabel ficou sem palavras. Cláudio havia reformado
o antigo quarto de Daniel. Com a ajuda de uma decoradora, ele havia
sido transformado no futuro quarto de Gabriela. Tinha ficado lindo! O
quarto tinha papel de parede rosa com detalhes em branco na metade
de baixo da parede, que era pintada de branco na metade de cima, sen-
do que um roda meio de madeira em pátina separava as duas metades.
As janelas originalmente brancas foram pintadas de rosa e ganharam
cortinas de renda, enquanto o piso de tábua corrida fora substituído por
vinil branco. Os móveis escolhidos também eram lindos! Um berço, um
trocador, uma cômoda e um guarda-roupa em laca branca acetinada.
Uma poltrona forrada com um tecido branco com estampa bem delica-
da de pequenas flores cor-de-rosa. Lindos acessórios complementavam
tudo: pequenos quadros nas paredes, um móbile de borboletas sobre o
berço, o carrinho de bebê já montado, um abajur e todos os utensílios já
arrumados sobre a bancada do trocador. Sem contar as roupinhas - que
já haviam sido compradas – arrumadas dentro das gavetas e nos cabides
do armário, onde também estavam guardadas lindas roupas de cama.
Para arrematar, uma prateleira cheia de bonecas e bichinhos de pelúcia,
e o nome de Gabriela entalhado em madeira pendurado na porta do
quarto.
- Então era isso o que você estava tramando esse tempo todo?
- Era sim. Por isso eu tinha que sair da loja no meio do dia. Preci-
sava me reunir com a decoradora para escolher tudo e de vez em quan-
do dar um pulo aqui para ver se tudo estava saindo como planejado.
- Está maravilhoso, meu amor! Obrigada! – agradeceu Isabel,
emocionada, abraçando e beijando Cláudio.
Naquele dia, eles acabaram indo dormir bem tarde, porque fica-
ram horas admirando tudo.
Os meses passavam e a barriga de Isabel ia ficando cada vez maior.
Os exames sempre mostravam uma gravidez tranquila e dentro da nor-
malidade.
TATIANE RANGEL | 1 5 7
os dois postais, mas ambos sem seu endereço ou qualquer contato. De-
pois, desapareceu de vez. Sequer sabia que o bebê era uma menina. A
verdade era que ele não queria saber. Por isso tinha sumido. Para evitar
ter notícias.
No final da segunda semana de outubro, Isabel estava para dar à
luz a qualquer momento. Todo um esquema já havia sido montado caso
ela entrasse em trabalho de parto. Cláudio, seus pais e Isabel tinham
cada um seu rádio. Assim não haveria falhas de comunicação, como ce-
lulares fora de área, por exemplo. A mala pra levar para a maternidade já
estava pronta e a cadeirinha de bebê já instalada no carro de Cláudio. Os
empregados da casa tinham ordens expressas para ficar atentos.
Uma noite, Isabel estava recostada na cama esperando Cláudio
chegar da faculdade. Havia sido difícil encontrar uma posição mais ou
menos confortável, pois ela tinha passado o dia todo com dor nas costas.
O bebê estava se mexendo muito e Isabel estava com falta de ar e uma
cólica insistente que parecia aumentar e de tempo em tempo, ficava cada
vez mais forte.
Isabel começou a ficar assustada, pois ainda não tinha chegado
ninguém em casa. Ela quis se levantar para pegar o rádio, que estava em
cima na cômoda. Ia avisar a Cláudio que não estava se sentindo bem,
mas a dor estava ficando muito forte. Consultou o relógio: era quase
meia-noite. Cláudio já devia estar chegando. Resolveu esperar um pou-
co mais. Se não estivesse mais aguentando, gritaria. Alguém teria que
ouvir. Mas Deus estava do lado de Isabel. Quinze minutos depois, Cláu-
dio estava em casa.
Quando entrou no quarto, encontrou Isabel chorando com a mão
na barriga.
- Meu amor, o que aconteceu? Está na hora?
- Eu não sei. – respondeu ela entre lágrimas e gemidos de dor –
Mas está doendo muito!
- Por que você não me ligou? Por que não chamou alguém?
- Eu não consegui me levantar para pegar o rádio. Eu já ia gritar
para ver se alguma empregada aparecia.
- Sua bolsa estourou? – perguntou Cláudio já parado ao lado da
cama, enquanto segurava a mão de Isabel.
- Não.
- Ótimo, então ainda temos algum tempo. Vou passar um rádio
para os meus pais e ver onde eles estão.
Não precisou. Naquele exato momento os pais de Cláudio entra-
vam em casa. Cláudio foi até o corredor e gritou de lá de cima mesmo.
- Mãe! Sobe aqui e pede para o pai tirar o carro! Rápido!
TATIANE RANGEL | 1 5 9
to com seu pai. Seria difícil, mas agora era preciso providenciar o enter-
ro. Luisa ficou com Isabel enquanto os dois tentavam resolver isso.
De tarde Isabel já estava mais calma e foi liberada para ir para
casa. Ela e Luisa chegaram quase junto com Cláudio e Carlos. Os dois
informaram que o corpo de Gabriela já havia sido liberado e que o veló-
rio seria naquela mesma noite. O enterro seria logo pela manhã.
Eles não se demoraram muito em casa. Só o tempo de tomarem
banho e se arrumarem para enfim seguirem para a capela.
Foi uma noite difícil. Cláudio e Isabel estavam extremamente aba-
tidos. Embora os pais de Cláudio tivessem avisado o que acontecera,
ninguém da família de Isabel compareceu ao enterro.
O enterro foi traumático. Isabel desmaiou e precisou ser socor-
rida, mas se recuperou antes que precisasse ser levada para o hospital.
No final de tudo, só restou voltar para casa e tentar recomeçar a
vida.
Quando chegaram, Isabel quis tomar um banho para tentar des-
cansar um pouco, pois estava exausta. Quando saiu do banheiro, viu que
Cláudio não estava no quarto e preocupada, foi procurar por ele.
Quando saiu no corredor, viu que a porta do quarto de Gabriela
estava aberta. Ninguém ainda tinha tido coragem de entrar lá. Isabel
chegou na porta e viu Cláudio parado em silêncio, olhando para o ber-
ço vazio. Isabel entrou, sentou-se na poltrona e começou a chorar em
silêncio.
Cláudio também chorava. Ele fungou, secou os olhos e falou:
- Eu não consigo entender. Como a gente pode amar tanto alguém
que mal conhecia? Ela só ficou por três dias. Três dias! Nem teve a chan-
ce de entrar neste quarto. Como pode fazer tanta falta? Como pode doer
tanto?
- Eu também não consigo entender. Por que Deus levou minha
menininha?
- Deus não existe, Isabel.
- Não diga isso.
- Como você quer que eu acredite em Deus? Deus me deixou nes-
ta cadeira de rodas? Deus levou a Gabriela? Deus alienou o meu irmão?
Se houvesse mesmo um Deus, não acho que essas coisas aconteceriam.
Depois de um momento de silêncio, Claudio continuou:
- Sabe o que é pior? Aquele desgraçado devia estar aqui, sofrendo
com a gente. Mas ele nem soube que teve uma filha. E até resolver apa-
recer não vai saber que ela morreu.
Isabel respirou fundo. Ela guardava para si uma bomba que ain-
da não havia estourado. Sua vida inteira estava vindo abaixo no último
1 6 2 | POR QUE NÃO?
ano. Não sabia se valia à pena contar aquilo a Cláudio àquela altura
do campeonato, mas diante de todo o peso que ela estava carregando
ultimamente, não conseguiria carregar mais aquele. Já teria que viver
suportando a ausência de Gabriela dali para frente. Não queria suportar
o peso de uma culpa também.
- Cláudio, eu preciso te contar uma coisa. – disse Isabel, chorando
– Eu não aguento mais isso. Se eu não contar vou explodir!
- O que foi? – perguntou Cláudio, já sobressaltado. Não sabia o
que mais poderia suportar depois da morte de Gabriela.
- Eu não sei por que eu fiz isso, mas eu menti para você.
- Você o quê? Do que você está falando, Isabel?
- Eu sei que vai ser difícil, mas eu queria muito que você me per-
doasse.
- O que você fez? Sobre o que você mentiu, Isabel?
- Sobre a Gabriela. Ela não era filha do seu irmão.
- Como é que é? – perguntou Cláudio, atônito.
- Era sua.
- Minha? Me explica isso direito, Isabel! Você disse que já estava
atrasada quando a gente transou pela primeira vez!
- Eu menti. Logo depois que eu transei com o Daniel, minha
menstruação desceu. Quando eu soube que estava grávida pensei mes-
mo que fosse dele. Por isso eu te contei que ela não era sua filha, mas
depois que eu fui ao médico a minha suspeita se confirmou. Eu estava
só de três semanas. Não tinha como ser dele. Não sabia como te dizer
isso, então fiquei quieta.
Isabel chorava e Cláudio estava paralisado. Não sabia como reagir
depois daquilo tudo.
- Me perdoa! Eu não sei por que fiz isso. Não sei por que eu levei
essa história adiante. Eu acho que tive medo de dizer que eu estava en-
ganada. Você teria ficado feliz em saber a verdade. Hoje eu vejo que fui
uma idiota.
Cláudio sentia que ia explodir, mas estava cansado demais para
isso. Ele precisou reunir todas as suas forças para falar.
- Eu não acredito que você fez isso! A gente estava junto, Isabel!
Você aceitou namorar e noivar comigo pensando nele? Eu pensei que
você me amava! Mas não! Você me usou como trampolim para chegar
ao meu irmão! Você tem ideia do que você fez?
- Eu juro que não fiz por mal!
- Uma ova que não! Você deve ter feito tudo de caso pensado!
Engravidou de propósito para tentar segurar meu irmão, mesmo que o
filho não fosse dele! Mas o tiro saiu pela culatra, não foi? Ele não te quis
TATIANE RANGEL | 1 6 3
CAPÍTULO15
recomeço
C láudio não aguentava mais chorar e nem se torturar ali na-
quele quarto, olhando as coisas de Gabriela. Ele também esta-
va exausto. Também precisava tomar um banho e dormir, e quem sabe
talvez não precisasse acordar. Saiu dali e fechou aquela porta. Quando
tivesse coragem para tal, mandaria desmontar tudo e o velho quarto
de Daniel voltaria a ser como antes. Ele então se dirigiu ao seu próprio
quarto. Pegou uma roupa confortável na gaveta da cômoda e dirigiu-se
para o banheiro.
Cláudio forçou a porta, mas não conseguiu abrir. Ele bateu e cha-
mou:
- Isabel, é você quem está aí?
Como ninguém respondeu, Cláudio tornou a forçar a porta. Nada.
Estava trancada por dentro. Ele então chamou mais algumas vezes, mas
ninguém respondia.
Preocupado, Cláudio procurou Isabel pela casa, mas não encon-
trou. Ele então percebeu o que podia estar acontecendo e chamou seu
pai.
- Pai, a Isabel se trancou no banheiro e não responde. Estou pre-
ocupado!
Os dois foram até lá e depois de chamarem mais algumas vezes
sem sucesso, resolveram arrombar a porta. Encontraram Isabel caída
no chão, desacordada. Cláudio praticamente se jogou da cadeira para o
chão e se arrastou até onde Isabel estava. Ele deitou a cabeça da menina
em seu colo e tentou acordá-la sem sucesso.
Quando olhou em volta e viu todos os frascos de remédio e pro-
dutos de limpeza vazios ou derramados no chão, Carlos entrou em pâ-
nico e foi chamar uma ambulância. Cláudio dava vários tapinhas no
rosto de Isabel tentando acordá-la, sem sucesso.
A ambulância chegou logo e Isabel recebeu os primeiros socorros
ali mesmo, no quarto. Carlos já a tinha deitado na cama. Os paramé-
dicos constataram que a respiração de Isabel estava ficando cada vez
mais fraca, assim como seu pulso. Ela foi removida dali para o pronto-
-socorro.
1 6 6 | POR QUE NÃO?
* * *
- E o que você veio fazer aqui? – perguntou Cláudio, com uma voz
passiva.
- Eu não queria ir embora sem me despedir de você.
- Ir embora?
- É. Meus pais tiveram que me aceitar de volta, mas ainda não
me querem por perto. Principalmente agora que eu já não sou mais de
menor. Eles inventaram um intercâmbio. Vou terminar o colégio na In-
glaterra. Meu voo sai daqui a três horas. Meu táxi está me esperando, eu
estou indo para o aeroporto.
- Nossa! – exclamou Cláudio sem saber o que dizer.
- Longe, não é? Bem, na verdade eu não queria ir sem te pedir
perdão por tudo o que eu fiz. Juro pela nossa filha que nunca foi minha
intenção te magoar. Hoje eu sei que eu estava doente. Precisei passar o
natal, o ano novo e o meu aniversário na ala psiquiátrica para perceber
isso. Mas eles disseram que eu vou ficar bem agora. E eu sinceramente
espero que um dia você não me odeie mais e possa me perdoar.
Neste momento, Isabel ouviu uma voz conhecida vinda de dentro
da casa.
- Cláudio, quem está aí?
E então uma figura conhecida apareceu na porta.
- Isabel, você se lembra da Carlinha?
- Claro que sim. Oi, Carlinha. – disse Isabel, desapontada.
- A Carlinha e eu nos encontramos logo depois que... Você sabe.
Nós estamos namorando desde então.
Carlinha sentiu o constrangimento de Isabel e decidiu sair.
- Oi, Isabel. Fico feliz que você tenha melhorado. Vou deixar vocês
dois conversarem, mas antes de ir, queria que você soubesse que eu te
defendi o tempo todo. Nunca concordei com o que fizeram com você
na escola.
- Eu sei, Carlinha. Obrigada. Espero que você possa me perdoar
também.
- Bobagem. Não há nada o que perdoar. Espero que as coisas deem
certo para você daqui para frente.
- Obrigada.
Carlinha se despediu e entrou.
- Nossa! Por essa eu não esperava! – exclamou Isabel num tom
triste.
- E o que você esperava? Que eu quisesse voltar com você?
- Bem, na verdade eu esperava isso sim. Eu te amo, Cláudio. De-
morei a admitir, mas eu te amo. E ficaria se você me pedisse.
- Esperei tanto para ouvir isso, Isabel! Mas agora é tarde. A Carli-
nha é uma pessoa maravilhosa e eu estou feliz com ela.
1 6 8 | POR QUE NÃO?
- Bem, pelo menos diga que não me odeia e que pode até me per-
doar um dia. Sem isso eu nunca vou ter paz.
- Eu não te odeio, Isabel. E não estou dizendo isso só porque você
me pediu. E pode se considerar perdoada. Não ganho nada remoendo
isso.
- Obrigada. Conseguiu falar com o seu irmão?
- Ele ligou ontem à noite, mas eu não disse o que aconteceu. Não
é notícia que se dê pelo telefone. Eu disse a ele que conversamos quando
ele voltar.
- Bem, acho que vou indo então. Desejo do fundo do meu coração
que vocês dois sejam felizes.
- Obrigado.
Isabel deu um breve abraço em Cláudio e virou as costas. Ele ficou
parado, esperando que ela fosse embora. No meio do caminho, ela se
virou e voltou para perto de Cláudio estendendo a mão para dar-lhe
alguma coisa.
- Ah! Eu quase me esqueci! Quero te devolver isso. Estava no meio
das minhas coisas.
O que Isabel devolvia era a máquina fotográfica que Cláudio usa-
ra para tirar as fotos na maternidade. Cláudio havia guardado na bolsa
dela e no meio de toda aquela confusão, acabaram esquecendo.
Entregue a máquina, Isabel entrou no táxi e foi embora.
Cláudio entrou em casa um tanto desconcertado. Ligou a máqui-
na ao computador e então, pôde ver pela primeira vez as fotos deles e de
Gabriela. Os três juntos como a família feliz que nunca chegariam a ser.
Cláudio permaneceu em silêncio olhando para a foto na tela. Car-
linha notou que ele estava chorando.
- Ela era linda.
- Eu sei. – disse Cláudio, fungando.
- Sabe, Cláudio, agora eu percebi que isso foi um erro.
- Eu sei que foi. Não pela Gabi, mas por todo o resto.
- Não, Cláudio. Estou falando de nós dois.
- O que você quer dizer? – perguntou ele, surpreso.
- Que você nunca deixou de amar a Isabel. Nós dois nunca dare-
mos certo.
- Mesmo que isso seja verdade, Carlinha. O que a Isabel fez não
tem justificativa.
- Concordo que foi errado e que não tem justificativa. Mas é com-
preensível, você não acha?
- Compreensível?
- Claro que sim! Pensa comigo: a vida da Isabel nunca foi feliz. Ela
TATIANE RANGEL | 1 6 9
sempre viveu uma mentira, Cláudio. Foi isso o que ensinaram para ela.
Que mentir era normal.
- Como assim?
- Os pais biológicos não a quiseram. Os pais adotivos também
não. Ela era a substituta de uma menina morta! Ela vivia uma farsa,
Cláudio! Ela nunca soube realmente quem ela era! Ela nunca soube o
que era ter uma família! Quando ela fez o que fez, só estava tentando
ter uma família perfeita. Foi isso o que ela buscou no seu irmão, mesmo
sabendo que amava você. O problema é que ninguém nunca disse a ela
que famílias perfeitas não existem. Cláudio, ela nunca tinha sido amada
até conhecer você! Até na escola ela foi rejeitada! Só você foi amigo dela,
só você cuidou dela, só você a amou! Você foi a única pessoa por quem
ela nunca foi negligenciada! Ela nunca disse que te amava porque ela
nunca soube o que era amar de verdade. Ela precisou passar por tudo
isso para descobrir!
Carlinha fez uma pausa. Cláudio ouvia tudo pensativo.
- Desculpe, mas eu não pude deixar de ouvir o que ela te falou
lá fora. E eu acredito que ela esteja dizendo a verdade! Sabe por quê?
Porque depois de perder uma filha e passar três meses internada num
hospital de loucos, ela ainda teve coragem de vir até aqui e te dizer tudo
o que disse! Ela te ama! E eu sei que você a ama também!
- Então você está terminando comigo? – perguntou Cláudio.
- Com certeza. – respondeu Carlinha, sorrindo docemente.
- E o que eu faço agora?
- Bem, a mulher da sua vida vai voar para o outro lado do planeta
daqui a três horas. Eu acho que você sabe exatamente o que fazer.
Carlinha deu um beijinho na testa de Cláudio e foi embora mal
disfarçando uma lágrima. Cláudio desligou o computador e foi tirar o
carro.