Os Filhos Do Diabo (Vol.1) Chloé Wallerand
Os Filhos Do Diabo (Vol.1) Chloé Wallerand
Os Filhos Do Diabo (Vol.1) Chloé Wallerand
Chloé Wallerand
Ficha Técnica
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Agradecimentos
Prólogo
É
É muito assustador ver-se assim exposta, por uma coisa
tão simples.
Como não me vão largar facilmente, aceno com um ar
cansado.
— Simples conselho de amiga: não te iludas. És apenas
mais uma entre muitas. Vulgar. Banal. Sem nada de
excecional ou invejável.
Depois de aceitar o facto de que ainda estamos num
parque de recreio, sorrio da maneira mais hipócrita, pronta
para retorquir, mas a Lola rosna-lhe:
— Por isso é que ela foi convidada para a festa privada
do Cárter e tu não...
Os três rostos à nossa frente ficam desconcertados e a
minha amiga rapidamente percebe o seu erro, aflita. Se eu
esperava que os rumores sobre mim e o gangue parassem,
agora toda a esperança ruiu. Mas não a levo a mal. Não foi
para me prejudicar, pelo contrário.
Sem mais conversa, as raparigas dão meia-volta e
raspam-se dali, roídas de ciúmes.
— Desculpa, não penso antes de falar! Perdão, perdão,
perdão!
A preocupação na cara dela faz-me rir. Passo uma mão
tranquilizadora sobre o seu braço e garanto que não lhe
levo a mal. Ela respira aliviada e, pelo canto do olho, vejo-a
tomar coragem. Vai finalmente fazer-me a pergunta que lhe
queima os lábios desde ontem à noite.
— Tens a certeza de que não queres ir à festa do Carter?
Esperava tudo, menos isto. Quando lhe contei o meu fim
de dia de ontem, ela ficou ainda mais irritada do que eu
com o gangue. Explodiu, depois usou um vocabulário rico e
variado de insultos. Pensei que nunca mais se ia acalmar.
— Por que raio havia eu de lá pôr os pés? — rosno.
— Bem, para começar, pelo evento em si. Parece que as
festas organizadas pelo Carter são as mais refinadas, ao
contrário das da fraternidade. Sabes, vestidos bonitos,
champanhe em belas taças... Um pouco como uma gala de
caridade.
Cala-se durante tanto tempo que, se não mexesse
nervosamente os dedos, julgaria que era o seu único
argumento.
— Na verdade, é por mim que te estou a pressionar a
reconsiderar a tua decisão. Eu sei, é egoísta. Mas eu quero
ir. Antes de o meu irmão se juntar ao gangue, éramos muito
próximos. Hoje, por querer tanto manter-me longe das suas
atividades ilícitas, afastei-me dele. Entendo, mas gostava de
perceber o universo em que ele se move, apenas por uma
noite, para ter a certeza de que está bem.
Imaginar-me a participar nessa festa deixa-me doente.
No entanto, não consigo ignorar a preocupação da Lola.
Como ela, estou disposta a fazer qualquer coisa pelas
pessoas que amo. Portanto, se sou a única que lhe pode dar
acesso à serenidade que procura, também estou disposta a
ficar perto do Carter e dos seus esbirros por algumas horas.
— Eles fornecem as belas taças de champanhe, mas não
os vestidos bonitos. Espero que encontremos o que
precisamos nos nossos armários.
A Lola levanta os olhos para mim, incrédula. No segundo
seguinte, uma lágrima solitária corre-lhe pela cara — uma
verdadeira drama queen! — e salta-me literalmente para o
colo, para me abraçar.
— Arrumar, lavar, trabalhos de casa: diz-me o que
precisas e eu sou o teu homem!
— Ah, não te preocupes. Espero até ter algo muito pior
para te fazer pagar a dívida.
Rimos com satisfação e, após sinceros agradecimentos
da sua parte, retomamos o nosso papel de claque, para os
últimos minutos do selecionamento.
Encharcados e sem fôlego, ao apito do treinador, os
jogadores retiram os capacetes e juntam-se à sua volta.
— Saíram-se bastante bem. Infelizmente, como sabem,
apenas três vão ser selecionados. Há lugar apenas para os
melhores.
A Lola e eu prendemos a respiração e cruzamos os
dedos.
— O primeiro a juntar-se à nossa equipa é o Jackson
Simons.
Saltamos e gritamos de alegria.
Simultaneamente feroz e iluminado de intensa felicidade,
o Jackson levanta o polegar para o Daniel e depois aponta
para nós, como se dissesse: «Bem vos disse!»
— O segundo é o Tom Riley.
A pessoa em questão grita vitória, causando em nós
duas uma tensão pouco altruísta. Só resta um lugar e o
Daniel começa a ficar agitado.
— O último lugar é para o Daniel West.
Os nossos gritos redobram de força, damos pulos em
homenagem aos vitoriosos.
— Obrigado aos outros por terem vindo. Tentem a vossa
sorte novamente no próximo ano. Para quem foi
selecionado, os treinos são obrigatórios, bem como boas
notas nas aulas, caso contrário perdem o lugar. A
temporada está quase a começar. O primeiro treino terá
lugar amanhã, às sete. Não são tolerados atrasos e não
queremos mandriões em campo!
Após alguns acertos, o treinador e o capitão abandonam
o relvado, dando autorização para que os jogadores
dispersem. A Lola e eu descemos os degraus da tribuna,
depois entramos no campo e pulamos nos braços dos
nossos amigos. Apesar de não partilharmos a sua paixão por
este desporto, eles estão tão felizes que isso nos aquece o
coração. Damos-lhes os parabéns e acompanhamos o seu
júbilo até ao balneário. Depois despedimo-nos e re‐
gressamos rapidamente ao nosso quarto, para nos
prepararmos para a noite.
Com o material de duche na mão, vamos para a casa de
banho coletiva e encontramos a Emily.
— Ah! Lola, esta é a Emily! Conheci-a na aula de
desporto, ela também está dispensada.
A Lola, simpática e fiel a si mesma, sorri para a rapariga,
antes de a crivar de perguntas. A Emily deita-me um olhar
de pânico, mas tranquilizo-a com uma piscadela de olho.
Fico surpreendida por saber que está no primeiro ano de
Letras, como o Jack e eu. Os pais moram na região, no
entanto, ela preferiu ficar na residência universitária, para
estar mais perto da biblioteca e evitar deslocações.
A Lola propõe-lhe jantar connosco, mas a Emily dirige-me
um olhar inseguro. Ou não quer impor-se, ou não se atreve
a recusar.
— Gostávamos que jantasses connosco, mas percebemos
se já tiveres planos, não tenhas problemas... — sossego-a.
— Não tenho nada planeado. Eu... hã... não quero
incomodar.
A Lola passa-lhe o braço por cima dos ombros e leva-a
para dentro da casa de banho; eu sigo-as.
— Não nos incomodas nada, pareces ser uma miúda
incrível, Em. Posso chamar-te Em? A Ava e eu temos dois
amigos, o Jackson e o Daniel. Duas raparigas, dois rapazes,
estás a ver o que quero dizer? Estamos em igualdade
numérica e, francamente, isso não é bom! Precisamos de ti
para reforçar as nossas fileiras! Girl power e essa coisa
toda!
Um sorriso passa pelos lábios da Em, que concorda
finalmente em juntar-se a nós para jantar. Contudo, parece
aliviada quando a Lola corre para uma cabina de duche,
excitada com a festa que se aproxima. A minha animação é
falsa, mas não quero fazê-la sentir-se culpada. Apesar de a
minha parceira me ter deixado curiosa, não sei o que nos
espera esta noite e já temo o pior.
Virá o dia em que vais acabar por chorar todas as
lágrimas do teu corpo e eu vou deliciar-me com isso.
***
De volta ao nosso quarto, observo a minha imagem no
espelho, com este vestido curto que nunca me atrevi a usar.
Achava-o demasiado bonito, sensual e imponente.
Reverenciai. Precisava de uma ocasião especial para o
vestir. Esta é a noite certa. Neste vestido de cetim azul-
petróleo, sinto-me valorizada. Digna do respeito dos
maiores.
As finas alças de cetim cruzam-se nas minhas costas
nuas e, depois de atadas pela Lola, oferecem uma visão
deslumbrante da curvatura da minha cintura. Com sapatos
de salto alto da mesma cor, as minhas pernas nunca foram
tão compridas.
— Estás magnífica — admira a Lola. — Vais deixá-lo
louco.
Estas últimas palavras ficam suspensas no ar. Olho para
o seu reflexo no espelho e topo o sorriso malicioso.
Mas de quem está ela a falar...? Ah, pelo olho de Odin!
Volto-me, de olhos arregalados.
— Lola Collins! Eu odeio-o, estás a ouvir-me? O que sinto
é unicamente vontade de estrangulá-lo!
— Isso não impede que o aches lindo de morrer!
— São todos lindos de morrer! — digo, em minha defesa.
— Mas o Clarke tem mais qualquer coisa. E não me
desmintas!
Viro-lhe as costas e enfio furiosamente os objetos
pessoais na minha bolsa amarelo mostarda.
Qual mais qualquer coisa? Sim, o Clarke é pior do que os
outros. Mentiroso, manipulador, violento, antipático, e por aí
fora!
Vou até à porta e, com um olhar furibundo, abro-a de par
em par, para obrigar a minha parceira a sair.
Com um vestido branco de alças finas e delicadas — em
contraste com a sua personalidade —, está resplandecente.
Faz olhinhos de uma forma muito sugestiva e passa por
mim. Em retaliação, dou-lhe uma palmada no rabo. Desata
a rir, com o mérito de me descontrair.
Saímos da residência para nos juntarmos ao Jackson e à
Emily no restaurante próximo. Contra todas as expectativas,
ela veio mesmo e ouve atentamente o discurso do Jack.
Chegamos e eles recebem-nos com grandes olhares de
espanto.
— Por Odin, meninas! Vocês estão incríveis!
— Magníficas — sussurra a Emily.
Agradeço e a Lola imita uma vénia. Sentamo-nos e um
empregado vem recolher o nosso pedido. Assim que somos
servidos das bebidas, o Jackson ataca.
— Porque estás dispensada das aulas de desporto?
As minhas amigas dirigem-me sorrisos bondosos e sente-
se uma ponta de constrangimento. Falar sobre a minha
doença é um tema de desmancha-prazeres, mas não posso
escapar-lhe mais.
— Tenho uma insuficiência cardíaca.
O véu de piedade que cobre o seu olhar faz-me desviar o
meu.
— Avalone... Não sei o que dizer, eu... lamento muito.
— Não lamentes, vivo muito bem com ela.
E sorrio para o certificar de que está tudo bem, mas
instala-se um ambiente estranho. Os segundos sucedem-se
com uma lentidão assustadora. Os deuses sejam louvados,
graças à Lola, o riso regressa rapidamente e o ambiente
desanuvia.
— A propósito — começa o Jackson, animado —, a minha
namorada só vai começar as aulas dentro de duas semanas.
E vem visitar-me daqui a dias, vão adorá-la!
Os seus olhos brilham quando fala dela, é enternecedor.
Essa Aurora parece ser uma rapariga incrível. Fá-lo feliz e
um homem bom. É o que ele diz, embora eu tenha
dificuldade em imaginá-lo mau.
— E tu, Em, tens namorado? — pergunta a Lola.
— Não, eu... quero concentrar-me nos meus estudos.
O vermelho que lhe cora as faces torna-a ainda mais
adorável.
— Oh, tenho impressão de que conheço mais alguém
assim — diz a Lola, voltando-se para mim, com um sorriso
digno do Gato Risonho, da Alice no País das Maravilhas.
Levanto os olhos para o alto.
— O quê? Tu também, Ava? — espanta-se o Jackson.
— Os estudos são primordiais para mim. Vou ter muito
tempo para me apaixonar mais tarde — minto.
Como vou morrer jovem, é difícil entender as minhas
escolhas. Para quê perder anos a estudar, em vez de os
aproveitar? A resposta é simples: a doença tornou o meu
dia-a-dia anormal, por isso, só quero é viver sem pensar no
tempo que me resta. Quero uma meta, um objetivo. Algo
para realizar antes de bater as botas.
— Nunca te vou entender! — exclama a Lola, que se
encosta ao espaldar da cadeira. — «Primordiais». Parece
que estou a ouvir o meu pai a falar sobre o bom
funcionamento do seu trânsito intestinal!
Desatamos a rir, a Emily também, apesar de mais
discreta. Não há dúvida de que é muito mais bem-
comportada do que nós três juntos. A não ser que seja por
timidez e medo de chamar a atenção.
Quando percebe que temos todos os olhos postos em
nós, cora e enfia a cabeça nos ombros para desaparecer.
Tento tranquiliza-la com um sorriso, mas quando parece à
beira da síncope, dou um chuto debaixo da mesa aos meus
dois amigos, que imediatamente se calam.
Inclino-me para ela e sussurro-lhe ao ouvido:
— Nunca deixes de viver por causa dos outros. Mesmo
que os seus olhares sejam assustadores, não matam. Só te
conseguem magoar se tu deixares.
Os olhos começam a brilhar-lhe e, impercetivelmente,
levanta o queixo, relaxa os ombros e acena com a cabeça,
agradecida.
Capítulo 8
É
— É o meu castigo por tê-los traído. Mudei de gangue,
mas o Carter vai sempre ter poder sobre mim. Como tem
sobre todos, o filho da mãe.
Sacode a cabeça.
— Ouve, não sei porque não lhe disseste que o teu
medicamento tinha apanhado água, mas fiquei a dever-te
uma. Portanto, acredita, não estou aqui para te causar
problemas. Recebi ordens, não tenho escolha: ou aceitas, ou
ligas para o teu chefe, a dizer que não precisas de mim;
mas ambos sabemos que, depois de tomar uma decisão, ele
não volta atrás.
Tem razão. O Carter não vai revogar a ordem e eu não
quero brigar com ninguém, hoje. Mas também não tenciono
deixar isto passar sem dizer nada.
— E quais são as suas ordens? Não parece que eu esteja
especialmente em perigo.
Ele encolhe os ombros e passa a mão pelo cabelo, com
uma certa lassidão.
— Ficar à coca, para garantir que nada te aconteça.
Passa-me o teu telemóvel.
Franzo a testa, desconfiada.
Se também decide deitá-lo à água...
— Vou gravar o meu número, para o caso de teres
problemas — explica, dada a minha relutância.
Hesito uns segundos, mas quero chegar ao meu quarto o
mais depressa possível e, portanto, acabo por ceder e
entrego-lhe o objeto dos seus desejos.
— Se também puderes gravar o do Carter, era bom. — O
Anjo confirma com a cabeça e tecla no ecrã.
— Avisa-me quando tiveres saídas previstas, para eu
ficar pela zona.
— Ainda não tenho nada planeado — minto.
Devolve-me o telemóvel e retoma o seu caminho, após
breves saudações.
Não perco um segundo a ligar para o Carter.
— Avalone!
Como sabe que sou eu? Como conseguiu o meu número?
Abano a cabeça para me concentrar no que é mais
importante.
— Mas que porra vem a ser esta com o Anjo?
— É para tua proteção.
— Eu não preciso disso! E a sério, o tonto do Anjo?
Por mais que me sinta culpada por colocá-lo em apuros,
isso não apaga o que ele fez no passado.
— O Anjo é muito bom no que faz. É ele quem melhor
pode cumprir essa função.
Solto uma gargalhada nervosa.
— Pois, é verdade, ele nunca traiu os seus!
— Tenho de desligar, falamos disso numa próxima vez.
— O temível Carter Brown foge, em vez de dar respostas!
Tem consciência de que está apenas a adiar o inevitável?
Estou a começar a ficar farta das suas manigâncias!
Desliga-me o telefone na cara e uma enxurrada de
insultos sai das profundezas da minha alma. Eu, que estava
feliz por não ter uma missão às costas, terei de passar os
próximos dias a brincar às escondidas.
Depois de um bom duche relaxante, algumas explicações
à Lola e a preparação para a noite que nos espera,
encontramo-nos com a Emily no estacionamento e
partimos. Não é preciso mais do que boa música para
despertar as folionas que há em nós. Até a Emily está
relaxada e a apreciar este momento.
Ao fim de quinze minutos, chegamos ao lago.
Estacionamos no parque de terra batida e saímos do carro
ao mesmo tempo que chega o Jackson. Estaciona ao nosso
lado, depois sai com a Aurora e o Daniel. Este coloca o
braço por cima dos ombros da Lola e beija-lhe a têmpora.
— Vou ficar por cá um pouco mais do que o planeado —
declara a Aurora.
Até o Jackson fica surpreendido, mas não tarda a sorrir
como um palerma.
— Quanto tempo?
Ela olha para todos nós rapidamente, com um sorriso
brilhante, depois concentra-se no namorado.
— Eu diria que seis anos...
O rosto do Jackson ilumina-se como nunca o vi antes.
— Mentira? Vens para cá estudar?
— Sim.
Ele solta um grito vitorioso e abraça a namorada. Sorrio,
encantada pelo nosso amigo e feliz por acolher a Aurora no
nosso grupo. O Jackson solta-a e beija-a ternamente, com os
olhos a brilhar de felicidade.
— Estamos em absoluta superioridade numérica,
meninas! — exclama a Lola. — Acabaram as intermináveis
conversas sobre futebol!
Os rapazes protestam e a Aurora ri e afirma que está
radiante por ser útil ao género feminino. Depois disso, a Lola
não lhe dá nem um centímetro e disseca a sua vida pessoal,
a caminho do lago.
Duas dezenas de estudantes aparecem à beira da água.
Vestem a camisola da equipa com as cores da universidade.
Há uma fogueira acesa, muitas geleiras com diferentes
bebidas, sai música de um altifalante e dois rapazes tratam
do churrasco.
O Wyatt vem ter connosco, com o grande sorriso
afetuoso que o caracteriza.
— Estávamos só à vossa espera!
O Jackson e o Daniel cumprimentam o seu running back,
que põe os braços à volta do meu pescoço e do pescoço da
Emily, que cora imediatamente, e leva-nos até ao pé dos
outros. Depois de algumas apresentações, a Emily e eu
vamos buscar uma limonada à geleira, enquanto os
rapazes, a Lola e a Aurora optam por uma cerveja.
O meu telemóvel vibra no bolso de trás e, oh espanto,
recebo uma mensagem do Anjo!
Caraças, como conseguiu o meu número? Guardou o dele
no meu telemóvel, mas eu não lhe dei o meu.
[O carro da Lola não está aqui.
Onde estás?]
[Estás a ficar paranoico! Vai para casa, estou
bem.]
Guardo o aparelho no bolso, mas ele vibra logo de
seguida e solto um grunhido de genuína irritação.
[Avalone, recebi ordens.
Por favor, onde estás?]
Deve estar realmente desesperado, para usar frases
educadas. E eu não sou uma cabra. Não gosto que me lixem
a vida, portanto não faço isso aos outros.
[Lago Whitmore.
Não te venhas armar em desmancha-prazeres.]
O capitão da equipa para a música e chama a nossa
atenção.
— Sabemos que os nossos anos na universidade vão ser
os melhores das nossas vidas, mas também serão os
últimos anos em que nos podemos realmente deixar andar,
antes de sermos sobrecarregados com responsabilidades.
Esta noite, temos um pequeno evento noturno. Amanhã,
começa o projeto X! No entanto, a regra é sempre a mesma:
não quero ver uma única garrafa cheia no final da noite!
Crescem gritos de aprovação e brindamos, no meio de
um bom ambiente. O quarterback dirige-se para o pé de nós
e vai recebendo abraços dos colegas de equipa pelo
caminho. Olha fixamente para as minhas pernas e o sorriso
nos seus lábios apaga o meu.
— Não fomos apresentados — diz, dirigindo-se às
raparigas. — Chamo-me Logan.
O Daniel encarrega-se das apresentações, mas esta
besta deste jogador de futebol é incapaz de nos olhar nos
olhos. Gala-nos abertamente e passa do decote às pernas,
sem se preocupar com o nosso mal-estar.
O Jack, que não aprecia que olhem assim para a
namorada, pigarreia, e um estranho aparece em nosso
socorro. Fala ao ouvido do capitão e o Logan confirma com a
cabeça, antes de olhar para mim.
— O dever chama-me. Espero conhecer-te melhor, ao
longo da noite!
Não respondo e ele recua com um sorriso arrogante,
depois passa a língua pelo lábio inferior e faz meia-volta.
A cabeça da Lola surge por cima do meu ombro. Sussurra
ao meu ouvido:
— Afinal, com o teu olhar assassino, o teu lugar é com os
Filhos do Diabo.
Desato-me a rir e preparo-me para me voltar para ela,
quando uma dor de invulgar violência no peito me tira o
fôlego. Preocupada, abro a bolsa em busca do
medicamento. Mas não o tenho comigo. O stresse invade-
me, quando percebo que o deixei no quarto. Trinco o interior
das bochechas, com dificuldade em respirar e a sentir-me
fraca. A dor intensifica-se e o pânico redobra, quando me
dou conta de que não o tomei o dia todo.
Nem um único comprimido. É uma bomba!
Sinto o sangue fugir-me do rosto. A respiração acelera e
fica mais sacudida. Agarro no braço da Lola e afasto-a uns
metros. Quando olho para ela, assusto-a.
— Estás terrivelmente pálida!
— Esqueci-me de tomar a medicação hoje e... não tenho
os comprimidos comigo.
O medo instala-se no seu rosto, começa a ficar em
pânico e as minhas mãos tremem.
— Okay, voltamos para a residência. Já.
Avança para o carro, mas agarro-lhe o braço, para
obrigá-la a parar.
— Não, fica! O Anjo está por perto, leva-me lá e volto
depois. Aproveita.
— Isso está fora de questão! Não te vou deixar neste
estado, muito menos com esse burgesso!
Retoma a marcha, mas eu travo-a. Recuso-me a ser a
colega que a impede de se encontrar com aquele por quem
está apaixonada.
— Estou bem — insisto. — Só tenho de tomar o
medicamento. E, quando voltar, quero ver-te a ti e ao Daniel
mais perto do que nunca!
Ela olha fixamente para mim, hesitante, depois aponta
um dedo ameaçador.
— Liga-me quando estiveres no quarto ou se tiveres
algum problema!
— Prometido.
Beijo-a, depois afasto-me da minha amiga e do fogo de
campo. Permaneci calma e serena na frente da Lola, mas,
uma vez fora do ângulo de visão de todos, permito-me
mostrar tudo no rosto.
Durante alguns anos, tive tendências agorafóbicas. Não é
o medo de multidões, como a maioria das pessoas pensa,
mas o medo de não poder fugir se algo der para o torto.
Tenho a maior vergonha do mundo de poder ter um ataque
de pânico na presença de testemunhas. Porque quando
tenho um, não é apenas a dor, mas também o medo de
morrer que me põem num estado lastimável. É-me
insuportável ser vista assim despojada, tão fraca e
aterrorizada por algo inelutável. Não quero ver o olhar
curioso do outro, onde se lê a incompreensão e a piedade,
ao mesmo tempo que me sinto a partir.
Tenho frequentemente palpitações e faltas de ar que
podem ser violentas, mas este tipo de sintomas não augura
nada de bom. Pego no telemóvel, com as mãos a tremerem
e o peito a doer, e ligo o número do Anjo, que atende sem
se fazer rogado.
— Está tudo bem?
— Preciso que tu...
A minha cabeça gira de tal modo que tenho de me
agachar, para recuperar alguma aparência de equilíbrio.
— Vem buscar-me, e depressa! Esqueci-me da
medicação.
Segue-se um longo silêncio, depois solta um palavrão.
— Estou no estacionamento!
Ele desliga e eu endireito-me, cambaleante. Avanço para
o parque de terra batida, com a respiração cada vez mais
curta. O Anjo já está à minha espera no exterior do seu
carro e corre na minha direção, com as feições deformadas
pela preocupação.
— Está tudo bem?
Pergunta parva.
— Não. Temos de ir.
Ele abre-me a porta do lado do passageiro, depois corre
para a dele. Dá à chave e arranca na mecha. As dores são
persistentes, estou a começar a ficar seriamente com medo.
— É grave se te esqueceres da medicação por uma
noite?
— Não.
— Então, porque pareces estar a entregar a alma ao
criador?
— Porque não tomo nenhum comprimido desde ontem à
noite. Esqueci-me.
O Anjo acelera bruscamente. Ultrapassa outros carros,
que nos buzinam. Concentro-me na minha respiração, como
o médico me ensinou. De olhos fechados, inspiro e expiro
pausadamente, para me acalmar. Para um doente cardíaco,
a ansiedade não é de todo amiga.
— O que tens exatamente?
— Insuficiência cardíaca.
Solta um palavrão e acelera ainda mais.
— Quantos comprimidos falhaste?
— Oito.
— Foda-se, tinhas de esquecer-te deles quando estás sob
a minha proteção! É o cúmulo da ironia! Queres que me
limpem o sebo?
Numa explosão de raiva, exclamo:
— Só pensas em ti, como quando traíste os Filhos do
Diabo!
O Pai do Demónio olha fixamente para mim, de
sobrancelhas arqueadas, depois desvia o olhar.
Bem, se ainda me consigo irritar, é bom sinal...
— Não vou falar sobre isso contigo, especialmente
quando o teu coração se pode ir abaixo a qualquer
momento e o teu olhar está tão assustador. Mas, para tua
informação, nunca desejei a morte do Clarke. O combinado
era que a bala não atingisse nenhum órgão vital. Era apenas
para desviar a atenção, para eu poder fugir com os Pais do
Demónio.
— É isso que murmuras à tua consciência, à noite, para
conseguires dormir?
— Tu não percebes! O Carter nunca me deixaria sair, sem
um ato de traição!
Não tenho forças para lhe responder, porque me sinto
mais fraca de segundo para segundo. Uma dor perfura-me o
peito e abafo um grito que me traz lágrimas aos olhos.
O Anjo acelera cada vez mais e chegamos rapidamente à
residência. Desço do carro, dobrada ao meio, e vou com
dificuldade até às escadas, com o Pai do Demónio colado
aos calcanhares.
Junto dos degraus, ele levanta-me e carrega-me contra o
peito, subindo dois a dois. Se ele ainda não tinha entendido
que a situação era grave, as lágrimas de dor e medo a
escorrerem pelo meu rosto convenceram-no.
A minha respiração está ofegante e o peito dói-me cada
vez mais. Sinto-me sufocar e tenho a sensação de que estou
a morrer. Era para o hospital que eu devia ter pedido para
ele me levar. Talvez agora já seja demasiado tarde...
— Vamos lá, coragem, mais uns passos!
Os meus pensamentos não são muito variados, neste
momento. Giram em torno da minha mãe e da morte. Nunca
me tinha esquecido de tomar os comprimidos, até hoje, e se
eu morrer por causa disso, juro que ponho a deusa da morte
tão louca que me vai mandar de volta para o mundo dos
vivos!
Hoje, cada dia é um bónus para mim. Eu devia mostrar-
me grata, mas não quero morrer. Aceitei a minha doença e
o facto de que ia bater as botas muito mais cedo do que os
outros. Acho que é essa a razão pela qual quero tanto viver.
Porque aceitar não é resignar-se.
— Qual é o número?
— Trezentos e sete.
O Anjo pousa-me cuidadosamente em cima das minhas
pernas de plasticina e apoia-me. Estou exausta, a visão
turva-se.
Vasculha a minha bolsa, encontra as chaves e abre a
porta. Entretanto, o oxigénio rarefaz-se nos meus pulmões.
Põe o telemóvel em alta-voz, mas não entendo o que está a
dizer nem com quem está a falar. Estou gradualmente a
desligar-me da realidade.
O primeiro passo que dou no quarto é fatal. As pernas
cedem sob o peso do corpo e bato no chão com violência.
Fica tudo esborratado em meu redor. O meu coração está a
ir-se abaixo, sinto-o no mais profundo do meu ser. Os
pensamentos ficam confusos, mas uma voz alcança-me
num eco.
— Vou pô-lo em contacto com o médico dela, não
desligue.
Ajoelhado à minha frente, apavorado, o Anjo ordena-me
que mantenha os olhos abertos. Infelizmente, as minhas
pálpebras estão a ficar demasiado pesadas.
— Que Eir19 venha em teu socorro...
— Não quero morrer — digo, num murmúrio.
Sinto as lágrimas nas bochechas e um medo avassalador
dentro de mim. O Anjo não olha para mim com pena, mas
com culpa e tristeza. Segura com força uma das minhas
mãos na dele.
— Não te conheço, mas com um olhar como o teu, não é
certamente um simples coração que vai deitar-te abaixo!
Tens de lutar, Avalone!
Agito as pálpebras. Cada respiração torna-se uma tortura
e recuso-me a resistir mais.
— Está? Ela apagou-se! Está a ficar inconsciente! Ela
esqueceu-se da medicação o dia todo!
— Tenha calma, senhor. De quem está a falar?
— De Avalone Lopez!
Um silêncio de morte cai sobre o quarto e depois:
— Hospital! IMEDIATAMENTE!
Í Ê
— PROÍBO-TE DE DEFENDÊ-LO!
— É CONTIGO QUE ESTOU PREOCUPADA!
O soluço incontrolável que me escapa abala todo o meu
corpo.
— Não quero que vás para a cadeia...
O olhar do Clarke suaviza-se imediatamente e, pela
primeira vez na minha vida, consigo decifrá-lo. Ele sente
uma forte culpabilidade.
— Fica aqui e não abras a porta a ninguém.
Abano a cabeça e afundo-me mais em lágrimas.
— Suplico-te, não me deixes! Não me deixes, não me
deixes, não me deixes...
Num segundo, o Clarke está em cima de mim e levanta-
me do chão para me deitar suavemente na minha cama.
Pega no meu rosto com umas mãos tão frescas e macias
como uma carícia, sem me quererem mal. Os seus olhos
verdes traem a preocupação.
— Prometo voltar, Avalone. Vou tirá-lo daqui do quarto e
volto para te vir buscar, okay?
As suas palavras acalmam os meus soluços e consigo
acenar com a cabeça. O seu olhar permanece imerso no
meu, hesita em deixar-me sozinha, mas acaba por se
afastar de mim, rosnando. Agarra no tipo com incrível
facilidade, pega nas minhas chaves e sai do quarto, tendo o
cuidado de fechar a porta atrás de si.
O quarto mergulha no silêncio e as tremuras do meu
corpo redobram.
Os meus olhos pousam na quantidade impressionante de
sangue no chão e na parede, e pulo da cama, a correr para
a casa de banho. Encho uma bacia com água e eis-me a
limpar os tacos de madeira, usando todos os panos que
encontro. Esfrego como uma louca, de vez em quando
passo a mão sobre partes do meu corpo, para apagar os
vestígios do abuso. Mas nada ajuda, a sensação persiste.
Apetece-me berrar e queimar a minha pele, para deixar de
sentir as mãos e a língua daquele estranho em mim. Esfrego
os braços e o pescoço. Esfrego as coxas até as deixar
vermelhas, enquanto mergulho o pano na bacia para o
lavar. Um par de mãos feridas pousa nas minhas, para
interromper os meus movimentos rápidos e repetitivos e,
quando olho para cima, vejo o Clarke. Não sei por quanto
tempo nos olhamos fixamente, mas ele acaba por me tirar
das mãos uma T-shirt, antes de a atirar para dentro da bacia
e levar tudo para a casa de banho. Estou a esfregar as últi‐
mas manchas de sangue do chão com o meu pijama, e a
voz do Diabo sobre o meu ombro sobressalta-me.
— Eu trato disso mais tarde.
Levanta-me do chão, vira-me de frente para ele e
certifica-se de que me aguento de pé.
Aterrorizada, completamente esparvoada e em choque,
atiro-me para os braços dele. Surpreendido, demora algum
tempo a apertar-me contra si, mas ao fazê-lo, o meu
batimento cardíaco diminui, apesar das minhas inesgotáveis
lágrimas.
— Acabou. Nunca mais volta a acontecer, prometo.
Sinto a raiva na sua voz, as mãos a tremerem-lhe de
contenção quando as coloca nas minhas faces, para me
observar.
— Ele magoou-te?
Não respondo, porque a minha atenção é atraída para a
sua mão em carne viva. Entro imediatamente em atividade.
Seco as lágrimas e descolo-me dele.
— É preciso desinfetar.
— Está tudo bem, não te preocupes.
É
— É preciso desinfetar. São só cinco minutos — insisto,
com voz trémula.
Viro-lhe as costas com a intenção de ir à casa de banho
buscar a caixa de primeiros socorros, mas ele trava-me o
passo e agarra-me no queixo, para mergulhar o olhar bem
fundo no meu.
A raiva dele abala-me. Ela volteia no abismo das suas
pupilas dilatadas e engole todas as outras emoções, para
ficar com o monopólio. Fico submergida.
— Eu devia ir atrás dele e matá-lo pelo que ousou fazer-
te! — lança, entredentes.
O Diabo puxa-me contra o seu peito e desliza a mão pela
minha cabeça, para agarrar a minha cabeleira desgrenhada,
como se isso lhe acalmasse a raiva. Percebo agora que ele
precisa de mim tanto quanto eu preciso dele.
Impregnamo-nos daquilo que o outro possui e que nos
falta, na esperança de nos acalmarmos.
Passa um bocado e o Clarke afasta-se de mim e vasculha
os quatro cantos do meu quarto.
— Vais dormir na minha casa.
Não discuto. Vejo-o preparar o meu saco. Não tenho a
menor vontade de ficar aqui sozinha. Sinto-me tão fraca e
vazia que temo novamente pelo meu coração. Esta noite
não o poupou. Os acontecimentos recentes fizeram-no bater
demasiado depressa. O Clarke parece partilhar as minhas
preocupações, pois coloca o saco de ginástica ao ombro e
levanta-me como se eu não tivesse peso. Saio do quarto nos
braços dele e continuo apertada contra o seu peito, mesmo
quando monta na mota.
Durante toda a viagem, não vejo nada além da sua T-
shirt, não cheiro nada além do seu cheiro, e não toco em
nada além do seu corpo. O calor do seu corpo tem o efeito
de me envolver numa bolha protetora, que apaga a
sensação das mãos do estudante em cima de mim. Sinto-
me em segurança com ele, muito mais do que com qualquer
outra pessoa. Porque ele é o Clarke Taylor. Ele é forte,
poderoso e ninguém o ataca.
Até pode ser uma bola de raiva em estado puro, mas
acalma-me. Embalada pelo bater do seu coração, consigo
secar as lágrimas.
É doloroso e ainda tenho dificuldade em pôr os
pensamentos em ordem, no entanto apercebo-me da sorte
que tive. O Clarke ouviu o meu grito de socorro. Outras não
tiveram a mesma felicidade. Outras ainda nem gritaram,
vítimas de manipulação ou chantagem emocional.
Apesar desta sorte, fico maldisposta por me sentir
desvalida. Vítima de agressão sexual ou violação, os danos
psicológicos são reais.
O Filho do Diabo para a mota em frente da entrada de
um belo prédio. Prepara-se para carregar-me ao colo, mas
ponho fim ao meu momento de fraqueza. Murmuro que
estou bem e ele fica a ver-me desmontar da sua Harley. Por
uma vez, aceita a minha escolha. No entanto, espera que eu
caia para o lado a qualquer instante e segue-me de perto.
Atravessamos um átrio espaçoso e o Clarke conduz-me
ao primeiro andar. Abre uma porta, que dá para uma
magnífica sala de estar, muito grande. Visivelmente, há
grandes vantagens em fazer parte de um gangue.
A Lola já me tinha informado de que ele morava com o
Set e o Tucker, pelo que não me surpreende o número de
quartos. Em compensação, está tudo bem arrumado e
impecavelmente limpo.
Sigo o Clarke até um quarto. É tão limpo como a sala de
estar, mas noto imediatamente que não tem nenhuns
objetos pessoais. Nem fotos, nem objetos que indiquem que
uma determinada pessoa dorme aqui. As paredes brancas
contrastam com a estrutura da cama de casal e os lençóis
pretos. Há uma porta, também preta, provavelmente para
uma casa de banho, em frente ao guarda-roupa.
— Há toalhas lavadas na gaveta — indica-me.
Aponta para a dita porta.
Aceno com a cabeça e depois de um último olhar que o
certifica de que estou bem, pousa o saco em cima da cama,
antes de sair do quarto.
Em piloto automático, pego nos meus haveres e entro
numa esplêndida casa de banho em mármore preto. Não
vejo o meu reflexo no espelho comprido por medo do que lá
possa descobrir. Em vez disso, apresso-me a tirar a roupa,
para entrar no chuveiro.
A água quente a escorrer pelo meu corpo faz-me imenso
bem, mas fica vermelha do sangue que tenho em cima da
pele. Coloco as mãos contra a parede e fecho os olhos.
Aguardo longos minutos, para ter certeza de que, quando os
abrir novamente, todos os vestígios de hemoglobina terão
desaparecido.
Por fim, lavo o corpo e o cabelo com produtos
masculinos, em embalagens já encetadas. Olhando de
relance para o lavatório, percebe-se que o quarto não está
desocupado. Escova de dentes, pasta de dentes, máquina
de barbear e toalha no toalheiro.
Depois de esfregada, seca e com os dentes lavados, visto
uns calções de algodão e uma camisa sem mangas.
Saio da casa de banho, depois do quarto, e atravesso o
corredor, hesitante. Entro na sala de estar, onde o Clarke
está de frente para uma janela panorâmica, com o
telemóvel colado à orelha.
— Ela está bem. Demorou uns minutinhos a voltar a
colocar a coroa na cabeça.
Estaco com a surpresa. Ele obviamente ouviu o que eu
disse ao Set, no jardim da fraternidade.
Ele suspira e tira qualquer coisa da parte de trás das
calças de ganga, que coloca em cima do aparador.
Horrorizada, dou um passo atrás ao reconhecer o objeto.
Um revólver. Eles têm armas, porra!
— Não, ligo ao Carter amanhã. Acho que ela já teve uma
noite merdosa que baste.
Faz uma pausa, enquanto o Set responde.
— Quero que se lixe se o Carter não gosta! De qualquer
forma, ela nunca aceitaria dormir em casa dele!
Tem razão.
— Sim, achei mesmo que o ia matar. Vai lá limpar todos
os vestígios de sangue do quarto dela. Não precisa de
reviver este pesadelo amanhã.
O Clarke desliga e, depois de passar a mão pela cara,
volta-se. O seu olhar imediatamente pousa sobre mim. A
boca descai-lhe e a testa franze-se, quando os seus olhos
descem para as minhas pernas nuas. As suas expressões
faciais talvez sejam impercetíveis para muitos, mas, a mim,
fazem-me corar.
Ele clareia a garganta e olha diretamente para os meus
olhos.
— Não pudeste comer piza na festa. Tens fome?
Digo que não com a cabeça. O que se passou entretanto
tirou-me o apetite. Por outro lado, achava que ele estava
muito ocupado a beijar a estudante para se dar conta de
que eu não tinha comido nada.
— Certo. Então, dorme bem. Se precisares de alguma
coisa, estarei aqui.
— Descansa-me lá, não vou encontrar roupa interior ou
secreções vaginais provenientes de excitação sexual nos
teus lençóis?
Arregala os olhos de surpresa e depois desata num riso
que faz vibrar a minha alma. É verdade, ela continua cá,
não me abandonou depois da agressão e até consigo sorrir
das suas saídas hilariantes.
— Não há qualquer risco, não vem cá nenhuma rapariga.
Ponho um ar cético.
— Não sou do género de ficar abraçado depois de as
foder, Avalone. Assim, poupo-me a ter de pô-las na rua e
levar com os insultos.
Levanto os olhos para o teto.
— Que cavalheiro!
— O cavalheiro, por surpreendente que te pareça,
concede-te a sua cama. A não ser que prefiras o sofá...
Levanto as mãos em sinal de inocência e dou um passo
atrás.
— Se dependesse de mim, ficava no sofá, mas o meu
médico proibiu-mo explicitamente — minto.
Encolho os ombros em resposta ao seu ar dubitativo.
— Uma questão de grau de inclinação, ou algo assim...
Contém o sorriso, mas os olhos brilham-lhe de diversão.
Depois de lhe desejar boa noite, atravesso o corredor. Antes
de desaparecer da sua vista, volto-me uma última vez na
sua direção e o que vejo faz-me estacar.
Com a cabeça inclinada para o lado, o Clarke tem os
olhos fixos nas minhas nádegas. Quando percebe que
acabou de ser apanhado em flagrante, endireita-se e
encolhe os ombros.
— Esses calções são ridiculamente pequenos.
— Tu é que os escolheste — lembro-lhe.
Esboça um sorriso e eu olho para o alto, antes de ir para
o quarto, grata por ele me deixar dormir cá.
Depois de engolir os medicamentos, desligo a luz e deito-
me. Agora, tenho a certeza de que é o quarto dele. Os
lençóis estão impregnados com o seu cheiro.
***
Acordo assustada, com a cara banhada em lágrimas, sem
conseguir respirar. Tremo toda. Imagens do meu agressor
ainda voltejam na minha cabeça. Ele estava ali, no meu
pesadelo, e o Clarke não vinha em meu socorro. Eu gritava e
lutava, sem sucesso.
Levo algum tempo a lembrar-me de que estou no quarto
do Clarke. Fraca e a sufocar, vejo a minha bolsa na mesa de
cabeceira, mas, quando tento agarrá-la, deixo-a a cair no
chão com estrondo. Endireito-me e saio da cama para a
apanhar. As pernas vão-se abaixo e são braços fortes que
me seguram. Os do Clarke, que eu rejeito. Recuso-me a
deixar que alguém me veja novamente neste estado. Mas o
Filho do Diabo aperta-me com mais força e não tenho forças
para me debater. Deixo-o carregar comigo e pôr-me de volta
na cama, com o cérebro enevoado pela falta de oxigénio.
— Eu...
— Está tudo bem — sussurra-me.
Aconchegada contra o seu tronco quente e nu, vejo a sua
mão abrir-se diante dos meus olhos, a revelar o remédio de
que eu estava à procura segundos antes. Agarro-o
imediatamente, coloco-o na ponta da língua e engulo-o. O
efeito do Xanax não demora muito a fazer-se sentir.
O ar chega-me aos pulmões com um som sibilante
desagradável ao ouvido. Começa um ataque de tosse
incontrolável, firmemente agarrada contra o Clarke, que me
envolve nos braços, como se quisesse proteger-me da
minha própria ansiedade.
Aos poucos, recupero a calma e respiro
convenientemente. De repente, tomo consciência da sua
pele nua contra a minha, toda arrepiada. Uma doce tortura
que descubro pela primeira vez. O calor do seu corpo
atravessa a minha camisa e põe-me a pele a ferver. Cada
respiração sua intensifica a pressão do seu tronco contra as
minhas costas, e o seu hálito...
— Devias tentar voltar a adormecer — sussurra, com o
nariz no meu cabelo.
O seu bafo na minha orelha causa-me um frémito que eu
teria escondido, se não estivesse meia drogada. Mas sinto o
Clarke a sorrir, sinal de que não lhe passou despercebido.
Mete-me debaixo dos lençóis e a sua pele deixa a minha,
provocando uma sensação de ausência, de privação.
Levanta-se e prepara-se para ir embora, mas a minha mão
agarra-lhe o pulso. Vira-se para mim, surpreendido.
— Dorme comigo...
Arrependo-me imediatamente das minhas palavras e,
quando vejo o Filho do Diabo tenso como um arco, dava
tudo para engoli-las.
O Clarke olha-me durante longos segundos e não consigo
sequer decifrar a sua expressão no meio da obscuridade.
Sem responder, dá meia-volta e dirige-se para a porta.
Fecho os olhos com um suspiro, sem forças para me insultar.
Quando a porta bate, descubro, para meu espanto, que não
saiu. O meu batimento cardíaco acelera, enquanto a sua
mão continua espalmada contra a madeira. Hesita, eu sei, e
posso até imaginar-lhe os músculos tensos, dos quadris até
ao pescoço. Lentamente, volta-se para mim e dá-me uma
visão incrível do seu tronco e das sombras que nele
dançam.
Uma vez tomada a decisão, não há volta a dar. O Diabo
avança para a cama e contorna-a para se deitar. Inspira
profundamente, de um modo que me enlouquece os
sentidos, passa o braço por baixo do meu corpo, voltado
para ele, e puxa-me para si. Quando a minha cabeça
assenta na depressão do seu ombro e repouso a minha mão
no seu peito nu, ele contrai-se.
Instala-se um silêncio pesado, durante o qual não me
atrevo a mexer-me nem sequer a respirar. Agora, rosna-me
de irritação e volta-me para o outro lado. Os seus braços
envolvem-me a cintura e puxa as minhas costas contra o
seu peito. Nesta posição, a sua respiração faz-se sobre o
meu pescoço, provocando novo frémito... e sinto o Clarke a
sorrir contra a minha pele.
É
tiram-me o fôlego. Nunca vi um olhar tão torturado. É uma
porta aberta para a sua alma supliciada, desnaturada, que
já não consegue animar este corpo de forma saudável.
O Clarke rosna e, quando se prepara para recuar, não lhe
dou tempo. Atiro-me contra ele e envolvo os meus braços
em torno do seu pescoço. Ele fecha-se instantaneamente no
meu corpo e, de repente, inala uma lufada de ar.
O meu coração bate forte contra o dele. Aperto-o ainda
mais e rezo para aliviar os seus tormentos.
— Tu não és culpado, Clarke.
Ele vacila, mas não me solta, pelo contrário.
Fecho as pálpebras, dilacerada pela sua dor, a pontos de
respirar mal.
— Tu não és culpado — sussurro. — Tu não és culpado.
Inspiro junto ao seu pescoço, absorvo o seu cheiro e
coloco os meus lábios na sua pele, provocando-lhe um
arrepio.
A minha raiva contra ele parece ter desaparecido com a
esperança de atenuar a sua dor. Não sei há quanto tempo
estamos abraçados um contra o outro, mas, aos poucos,
sinto os seus músculos relaxarem e a respiração tornar-se
mais regular. No entanto, tenho medo de largá-lo. Medo de
não o ter aliviado realmente e medo de descobrir que sinto
falta dos seus braços.
— Os gangues não são instituições de caridade, Avalone.
Se o líder não te der o seu consentimento, não podes sair
dele.
De repente, volto à realidade e fico tensa. A raiva
reaparece a tal velocidade que me faz sentir como se nunca
me tivesse abandonado.
— Eu não faço parte dos Filhos do Diabo e nunca serei
um de vocês! — respondo com uma voz glacial.
— Era preciso teres pensado nisso antes de vestires o
blusão.
O Clarke solta-me, os braços caem-me sem força ao
longo do corpo e, depois de montar na sua mota, arranca na
mecha e sai do estacionamento da universidade.
É
em paz. É claro que fica sempre morta de preocupação, mas
como já não moro com ela, não assiste às minhas incursões
noturnas e aos meus regressos por vezes ensanguentados.
Especulo sobre qual seria a reação da minha mãe, se
soubesse das minhas atividades dominicais. Ao contrário do
Justin, ela proibir-me-ia formalmente de voltar a ver estes
rapazes, independentemente dos aspetos positivos de se
pertencer aos Filhos do Diabo que alguém pudesse sugerir.
— Tu fazes-me lembrar muito a minha irmã.
Leva a cerveja aos lábios e afunda-se no sofá. Os seus
olhos, de um castanho-claro quase amarelo, enchem-me de
ternura.
— Tal como tu, ela é determinada e sabe o que quer. Não
é de rodeios e vai direta ao assunto. Não deixa que a pisem
e está sempre alegre. Tenho a certeza de que a ias adorar.
Ela é fantástica.
Aquece-me o coração ouvi-lo falar assim da irmã. Os
olhos brilham-lhe e não consegue deixar de sorrir. No
entanto, também sinto a sua dor. Ter sido separado dela e
deixar de partilhar o seu quotidiano ainda hoje o afeta.
Tanto quanto me lembro, nunca quis ter irmãos, por
causa da minha doença. Ouvi que baste o choro da minha
mãe, em segredo, à noite, para pôr a hipótese de fazer
outra pessoa passar por isso. Uma criança deve crescer com
inocência e acreditar que tudo é possível. Ter-me como irmã,
não a deixaria ser assim.
— Então e tu? De onde és? És muito reservada para
chavala.
O Set e o Clarke vêm ter connosco e sentam-se nas
cadeiras, logo seguidos pelo Sean, o Tucker e o Jesse.
— De Madison, Indiana.
Ninguém fala, esperam pacientemente que eu continue.
— Vivia com a minha mãe. O meu pai morreu antes de
eu nascer.
— Foi a tua mãe que te criou sozinha, então? — pergunta
o Set.
Confirmo.
— Ela conseguiu dar conta de tudo? Incluindo os teus
problemas cardíacos? — pergunta o Tucker, espantado.
Um sorriso de orgulho surge nos meus lábios, quando
penso na força da minha mãe.
— Sim. Ela é espetacular.
— Como foste nascer com essa doença? É uma
malformação ou algo assim? — pergunta o Sean.
— A minha mãe tomou drogas quando era jovem. Parou
quando conheceu o meu pai e, infelizmente, quando ele
morreu, teve uma recaída. Uma única recaída, que resultou
num defeito cardíaco no feto. Fiz uma cirurgia, algumas
semanas depois de ter nascido, para reparar o coração,
mas, anos depois, diagnosticaram-me a insuficiência
cardíaca.
A atmosfera torna-se estranha, todos mergulhados nos
seus pensamentos. A perna do Justin começa aos saltinhos,
deixando-me nervosa. É o Set quem finalmente quebra o
silêncio.
— Culpas a tua mãe?
— Claro que não! Ela tinha um histórico de drogas,
estava grávida, o marido morreu, deixando-a sozinha...
Tentou refugiar-se naquilo que conhecia. Sim, cometeu um
erro, mas é humana. Nunca lhe levei a mal por isso e nunca
o farei.
O ambiente esfria com estas revelações, então prossigo:
— Portanto, pelo que já entendi, para pertencer aos
Filhos do Diabo, é essencial ter uma particularidade. O
Tucker tem um ego enorme, o Sean é mais teimoso que a
conta, o Set é o maior tagarela que o Midgard já viu, o Jesse
tem alma de não-te-rales, o Justin precisa de ansiolíticos e o
Clarke é... o Clarke. Era preciso ter uma doença para
competir.
Uma explosão geral de risos e protestos sobe tão
poderosamente no ar que não entendo nada do que dizem,
mas vale a pena ver os seus sorrisos. Apenas o Clarke está
ao telemóvel, e ignora-nos.
A conversa dispara em todas as direções, para chegar a
um assunto perigoso.
— O cabrão não vai comer a minha irmã! — enfurece-se
o Set, franzindo a testa.
É terreno minado. Mesmo assim, isso não trava os
rapazes. Têm um prazer maldoso em enfurecer o Set com o
namoro da Lola.
— Ai vai sim, mano... Ele come-a e ela adora! — provoca
o Sean.
— Cala a boca! — protesta o irmão protetor.
Vira-se para mim e espera que eu apoie as suas
palavras. Levanto as mãos em sinal de paz.
— Não me metas ao barulho.
— O que diz tudo! — exclama o Jesse, divertido.
Não largam o Set, que reage como um louco. É hilariante.
— É um gajo morto!
— A Lola tem vinte e um anos! — intervenho, para
acalmá-lo. — A idade de consentimento é dezasseis e a
média da primeira relação sexual nos Estados Unidos é de
dezassete anos!
Manda-me um olhar furioso, antes de terminar a sua
cerveja de uma assentada.
Bem, não devia ter dito isto...
— O Daniel é boa pessoa e estão felizes juntos!
Perante os seus ares céticos, continuo:
— Já percebi que vocês têm uma infinidade de
conquistas, para darem umas rapidinhas, mas ainda devem
ser capazes de conceber a ideia de que há pessoas que
desejam mais.
Confirmam com a cabeça, sem grande convicção.
— Ajudem-me cá, vocês já tiveram namoradas?
— Não desde a faculdade — confessa o Tucker. —
Preferimos curtir. Sem compromissos.
— Ficaste com o coração partido, confessa.
Olha-me com um sorriso encantador.
— Ninguém parte o coração ao Tucker Ross, minha
querida. Estava a ficar sério demais para o meu gosto, só
isso.
— Assustou-se e enganou-a, para depois passar a saltar
em cima de tudo o que mexe — explica o Justin, a rir.
Dou uma palmada na nuca do Tucker.
— Grandessíssimo imbecil!
Os rapazes riem, exceto o Clarke, que continua
impassível. Não sei o que tem. Mesmo que muitas vezes
não tenha expressão, nunca ficou assim durante uma
conversa banal com os seus melhores amigos.
— Então e tu? A maioria dos rapazes fazem-se a ti, mas
tu não lhes prestas a menor atenção — atira-me o Justin.
Espera lá, que parvoeira é esta?!
— Estás a dizer disparates...
— Não estou nada! Ainda és mais cega do que a avó do
Tucker.
— Não te metas com a minha avó!
Desato a rir.
— Se gostas de raparigas, nós não nos importamos —
intervém o Sean. — Sempre sonhei entrar num trio com
duas lésbicas.
— Isso foi o que fizeste na semana passada — murmura
o Jesse.
— Bem sei — responde o visado, com um sorriso
perverso nos lábios.
Desmancho-me a rir com gosto. Estes rapazes não têm
remédio.
— Não sou lésbica. O meu último namorado tratava-me
como se eu fosse de porcelana. Foi um tormento. Um dia,
desmaiei em frente a ele e, quando acordei e vi o medo
estampado nos seus olhos, percebi que não queria voltar a
fazê-lo passar por isso. Desde aí, não quero mais
relacionamentos.
— Agora, és tu a imbecil — atira-me o Set.
— Estou melhor sozinha.
Encolho os ombros, saio do sofá e ponho-me a levantar a
mesa, para não ter de aprofundar o assunto. Entro em casa
e vou à cozinha deitar as garrafas vazias no caixote do lixo.
— Isso é apenas uma desculpa.
Volto-me em sobressalto e vejo o Clarke abrir o frigorífico
e tirar outra cerveja. Interrogo-o com o olhar. Ele tira a
carica, antes de se dignar a dirigir-me a sua atenção.
— Tens medo de começar um relacionamento sem
poderes terminá-lo. O teu problema é que gostas de
controlar. Contudo, não tens nenhum ascendente sobre o
teu coração e isso aterroriza-te. Preferiste separar-te porque
ele te impedia de viver, mas não foi só por isso. Na verdade,
foste tu própria quem quis acabar acima de tudo, e não a
tua morte. Tudo isso para manteres o controlo.
Siderada, olho fixamente para ele e vou para protestar,
mas a campainha da rua toca e tira-me o tapete debaixo
dos pés.
— É para mim.
Sai da cozinha sem me deixar abrir a boca e fico
especada, ainda atordoada com as suas palavras.
Como se atreve a pretender saber o que eu...?
E se ele tiver razão?
Um barulho surdo atrai a minha atenção na direção do
corredor. O que vejo bloqueia-me a respiração. Uma fulana
acaba de encostar o Clarke contra a parede e devora-lhe o
pescoço enquanto geme.
Uma dor toma conta do meu peito, tão aguda que sinto
como se estivesse a ser esfaqueada no coração. Os olhos do
Clarke, mergulhados nos meus, forçam-me a ficar
impassível e não ajudam ao meu estado emocional. Sempre
a olhar-me intensamente, o corpo começa gradualmente a
corresponder ao desejo da rapariga. A sua respiração
acelera, o seu olhar chispa e, quando agarra no cabelo da
parceira para aproximar a sua boca da dele, quebra o nosso
contacto visual para a devorar. Desaparecem do meu cam‐
po de visão e oiço a porta do quarto dele bater, ao mesmo
tempo que recupero a respiração.
À dor, juntam-se a raiva e o ciúme, numa mistura
explosiva. Ele, que beijou o meu pescoço de corpo e alma
há algumas horas e se proibiu de ir mais longe... Nada disto
faz o menor sentido!
Caraças, e então, porque fiquei tão afetada?
— Perseverança e indiferença, e o impossível torna-se
possível. A voz da Maria chega até mim, vinda não sei de
onde.
Rio-me sem alegria. Nem sei o que espero do Clarke. É
atraente, é verdade, e temos uma química que não pode ser
contestada; mas para além do físico, agrada-me
mentalmente? Seguramente que não, neste momento. Não
depois do que acabei de ver.
Espero encontrar a Maria escondida num canto da sala,
por isso volto-me. Nenhum vestígio dela.
Estou a ficar maluca!
Sacudo a cabeça, inspiro profundamente e saio da
cozinha para ir ter com os rapazes. Apetece-me refugiar-me
na minha cama, mas está fora de questão ouvir o Clarke e a
sua conquista a gemerem de prazer.
Atravesso o deque de madeira, vou até aos sofás ao ar
livre e sento-me entre o Justin e o Sean.
— Onde está o Clarke? — pergunta o Set.
— No quarto dele, com uma bela morena — respondo,
impassível.
O silêncio abate-se sobre nós, todos os olhos convergem
para mim, como se todos soubessem o que eu sinto no
fundo do meu coração.
— Que filho da puta! — insulta o seu melhor amigo.
O Justin põe o braço por cima dos meus ombros e puxa-
me contra ele.
Perdida nos meus pensamentos, não reajo ao comentário
do Set nem ao gesto reconfortante do Justin.
Talvez, afinal, o Clarke só queira um relacionamento
carnal comigo, mas impede-se porque agora sou um dos
seus e não quer complicar as coisas. Esta perspetiva deixa-
me ainda mais melancólica.
Ele mira.
Atira.
Sangue.
Muito sangue.
E uma dor insuportável.
Endireito-me bruscamente, enjoada, e a dor dos meus
sonhos torna-se realidade. Soltei um gritinho de animal
desesperado. Sinto que todos os meus órgãos foram
trocados de lugar e que não devia estar viva.
Com dores, deito-me com uma careta. Os meus olhos
recaem sobre as ligaduras que envolvem o meu abdómen.
Deuses Todo-Poderosos... O Henzo quis matar-me!
Obviamente, falhou.
Com a mão trémula, apalpo a pele em volta da ferida e
contenho um gemido. Silvo entredentes e pisco as
pálpebras, para engolir as lágrimas.
O meu cérebro está envolto num nevoeiro de que tenho
dificuldade em emergir. Estou confusa e luto para me
conectar com a realidade.
Os meus olhos seguem os fios ligados ao meu corpo até
ao equipamento médico que regista a minha frequência
cardíaca e observo o ambiente. Não estou no hospital. Estou
no meu quarto em casa do Carter, e o Sean e o Justin estão
a dormir em poltronas ao lado da minha cama. A sua
presença à beira da cama tranquiliza-me e provoca-me um
sorriso de ternura. Coitados, devem estar todos doridos... A
posição deles não é nada agradável.
Com a língua pastosa, retiro a cânula de oxigénio do
nariz e os diferentes fios que permitem monitorizar as
minhas funções vitais. Rasgo a fita que cobre o cateter da
minha perfusão e retiro a agulha da veia. Quando me liberto
dolorosamente dos lençóis, paro por um momento. Dou-me
conta de que estou vestida com uma camisa ampla e
descontraída, e que cheiro a gel de banho.
Por todos os deuses, se ousaram despir-me e lavar-me,
eu mato-os!
Assim que coloco os pés no chão, a cabeça começa a
girar. As recordações aproveitam para me dominar, e fico
toda mareada.
O Henzo disparou em cima de mim e, pelas palavras do
Ethan, eu devo ter-me passado novamente.
Vá-se lá saber porquê, os deuses estão a esforçar-se para
te dar um segundo alento, digo a mim mesma.
Terrivelmente fraca, permaneço sentada por alguns
segundos, para reunir as poucas forças que me restam.
Respiro fundo e levanto-me com um palavrão provocado
pela dor.
Com a mão sobre a cómoda para manter o equilíbrio,
recupero o fôlego. Uma gota de suor desce-me pela coluna
vertebral.
Com um passo verdadeiramente ridículo, caminho para a
porta, sem fazer barulho, para evitar acordar os rapazes.
Viro para o corredor e apoio-me contra a parede. Pela
primeira vez, amaldiçoo esta mansão por ser tão grande.
Demoro uns minutos intermináveis a chegar à cozinha,
sem me cruzar com ninguém. Por fim, desisto de estender o
braço para tirar um copo do armário. Em vez disso, lavo a
chávena deixada no lava-loiça e encho-a com água. Cheia
de sede, esvazio-a de uma só vez e encho-a de novo.
Fico petrificada quando percebo que não faço ideia do
que aconteceu quando perdi a consciência. O Clarke
explodiu e foi atrás dos Reis da Lei? Atacaram-se
mutuamente?
— Ava?
Volto-me bruscamente, ignorando a dor no meu
abdómen e dou de caras com um Set espantado por me ver
aqui. Um grande sorriso ilumina-lhe o rosto, mas não tenho
tempo para grandes efusões emotivas.
— Os rapazes estão bem? Diz-me que estão todos vivos!
— Como te sentes? O que estás a fazer a pé? Tens de
descansar!
Agarro a T-shirt dele com os punhos e abano-a, no limite
da minha paciência.
— Set, eles estão bem?
Divertido, ele agarra-me pelos ombros, para me
imobilizar.
— Sim. Mais ninguém ficou ferido.
Solto um suspiro profundo e o resto da malta surge à
entrada da cozinha. Ora felizes, ora aliviados, ora mesmo
preocupados, nenhum sabe que emoção fazer prevalecer.
— Mas o que estás tu a fazer levantada?! — ruge o
Clarke, louco de raiva.
Os seus olhos esbugalham-se ao ver as costas da minha
mão, que, por sinal, está a pingar sangue.
— Tu paraste a perfusão!
Inquietação. Acabaram todos por optar pela inquietação
e ei-los a olhar fixamente para mim, com severidade.
— Estava com sede. Muita, muita sede.
O riso nervoso do Ethan atrai olhares de desaprovação
para si e, quando a risada fica incontrolável, todos o imitam,
para aliviar a tensão. Exceto o Clarke.
— Porra, pregaste-nos um susto de todo o tamanho!
— Mesmo acabada de sair da cama, com um buraco no
estômago, continuas a ser uma criatura das mais tesudas.
Divertida, finjo uma vénia um tanto vacilante.
— Encantada por ser um prazer para os teus olhos,
Collins.
O Ethan vem ter comigo e trata de limpar e desinfetar a
minha mão.
— Mas que porra vem a ser esta? Porque é que o quarto
da Avalone está vazio? — grita o Carter Arinson, do corredor.
Entra na cozinha e fica siderado quando me vê. Como os
Filhos do Diabo antes dele, olha-me fixamente, com
severidade, mas um vislumbre de alívio brilha nos seus
olhos.
— Estava com sede.
Ele arqueia as sobrancelhas.
— Porque não pediste aos rapazes?
— Estavam com um ar muito descansado nas suas
poltronas.
O Sean e o Justin massajam a nuca e fazem uma careta,
enquanto um sorriso se esboça nos lábios do líder.
— Fico feliz por te termos novamente entre nós.
— Quanto tempo dormi?
— É melhor não saberes — responde o Tucker. — Tivemos
mão pesada na morfina.
Que grande merda...
Já me estou a imaginar afogada numa tonelada de
trabalhos, para recuperar o atraso das aulas. O Clarke
parece ler a minha mente, porque levanta os olhos para o
alto.
— Avalone, posso falar contigo no meu escritório? —
pede o Carter.
Concordo. Já cálculo qual o assunto de que me quer falar
e, para dizer a verdade, não lhe quero mal. Os seus laços
familiares são problema dele, embora eu ache que era
importante para a negociação eu ter tido conhecimento
deles.
O Ethan aproxima-se para me ajudar a deslocar-me; no
entanto, instintivamente, afasto-o. Habituei-me a mostrar-
me forte em todas as circunstâncias. Dito isto, e pensando
em quanto tempo demorei para chegar aqui, mudo de
ideias e aceito de bom grado a sua ajuda. Há momentos em
que temos de saber deixar-nos ir. Este é um deles.
Os rapazes afastam-se e seguimos o Carter até ao
escritório. Sento-me na cadeira à sua frente, com o apoio do
Ethan, que nos deixa sós.
Um vislumbre de inquietação brilha nos olhos do líder
dos Filhos do Diabo. É quando me lembro do que ele disse
na outra noite durante o jantar.
A verdade virá ao de cima, aconteça o que acontecer. É
apenas uma questão de tempo. E quanto mais a
ignorarmos, mais danos causará.
Durante um longo pedaço de tempo, o Carter não diz
nada e chego mesmo a pensar que nenhuma palavra lhe irá
passar pelos lábios. Suspira.
— Quero falar-te sobre os laços que partilho com o Mike.
Aceno com a cabeça. Por mais curiosa que esteja, sinto-
me como uma intrusa no seu passado. Se eu não tivesse
descoberto a verdade pelos meus meios, ele nunca me iria
informar.
— Éramos inseparáveis desde a mais tenra infância. As
nossas famílias conheciam-se como se fossem uma só. Eu
tinha nove anos quando os meus pais morreram num
acidente de automóvel. Foi quando os do Mike me
adotaram. Posteriormente, o Mike e eu construímos a
Arinson Arms juntos. Após alguns anos, as nossas visões
sobre o futuro da empresa divergiram. Fui ator e teste‐
munha das brigas que se multiplicaram entre nós. Preferi
abandonar o navio, para preservar o nosso relacionamento,
e criei os Filhos do Diabo.
A escolha do Carter foi humilde, o que é respeitável da
parte dele. Mas esta informação é apenas uma introdução.
O mais importante é o que vem a seguir.
— Porque me escondeu isso? Porquê escondê-lo dos
outros gangues, quando isso o colocaria num pedestal?
Fico estupefacta com a tristeza que lhe atravessa o olhar.
Não achava que um homem como o Carter pudesse
mostrar-se tão vulnerável, ao ponto de me arrepender da
minha pergunta. Tamanha tristeza leva inevitavelmente a
uma história terrível, que eu não tenho certeza de querer
ouvir.
— A mulher do Mike engravidou. Só que, naquela época,
ele cometeu um erro terrível: enganou os Irmãos de Sangue,
o gangue mais poderoso e sanguinário dos Estados Unidos.
Por vingança, decidiram tirar a vida ao seu filho, ainda por
nascer. Conseguimos fugir os três, mas... na precipitação,
um acidente de automóvel tirou a vida à mulher e,
consequentemente, ao bebé.
Prendo a respiração e luto para não imaginar o horror da
cena.
— Tentámos salvá-los...
A voz treme-lhe tanto que sinto falta do Carter Brown
impassível. Nunca desejarei uma tragédia destas, nem
mesmo ao meu pior inimigo. As mãos do Carter agarram-se
à mesa, solta um suspiro profundo e acalma-se.
— Os Irmãos de Sangue poderiam ter ficado satisfeitos
com o infortúnio do Mike, mas a sua sede de sangue era
enorme. Orgulhosamente, anunciaram que, a partir de
então, todos os recém-nascidos da família Arinson lhes
pertenceriam.
Um silêncio sufocante abate-se sobre nós. Se eu não
estivesse petrificada com esta história horrível, sacudiria a
cabeça para a tirar da minha mente para sempre.
— Na época, eu queria ter filhos — continua o Carter. —
O Mike e eu decidimos que era mais sensato afastarmo-nos
e escondermos o nosso parentesco, para proteger os meus
futuros descendentes. Então conheci a Kate, que é estéril. E
carregávamos esse segredo há tanto tempo, que preferimos
guardá-lo só para nós.
A culpa por ter confessado aos Reis da Lei que o Carter
era um Arinson teve em mim o efeito de uma estalada
violenta.
Por todos os deuses...
— Tenho a maior... — balbucio.
O Carter abana a cabeça, com um leve sorriso no rosto.
— Não precisas de lamentar, Avalone. A culpa é minha.
Eu devia ter-te confidenciado isso, como fiz com os Filhos do
Diabo. Afinal, tu provaste várias vezes que és digna de ser
um membro pleno do meu gangue.
Estas palavras ter-me-iam feito querer vomitar, há
algumas semanas, mas, hoje, emocionam-me e sinto-me
orgulhosa delas, o que me assusta ainda mais. Porque algo
me diz que os Irmãos de Sangue não são coisa do passado.
Fugir não vai resultar indefinidamente, um confronto — que
não desejo minimamente — há de ter lugar, mais dia menos
dia.
— Posso perguntar-te como obtiveste essa informação?
— pergunta, preocupado que outros a descubram.
— Pela Lola, a meu pedido. Ela é daquelas pessoas
nascidas para entrar para o FBI. Não faço ideia de como a
obteve. Mas pode confiar nela. Ela guarda segredo disso.
— Eu sei. Agora, vai descansar.
Digo que sim com a cabeça e levanto-me devagar. Antes
de cruzar a porta, o Carter chama-me.
— Eu disse que, depois da negociação, podias voltar para
a residência... No entanto, com o Henzo a monte, não é
seguro, percebes isso?
Confirmo com a cabeça. Vi a morte demasiado perto,
para recusar a sua segurança, e a sua presença já não me é
tão insuportável ou sequer desagradável.
— Mas não vai chatear a Lola, estamos de acordo quanto
a isso?
A diversão baila-lhe nos lábios.
— Continuas a achar que sou um monstro, hein?
Arqueio uma sobrancelha.
— O senhor não é intrinsecamente mau, Carter Arinson.
Retiro a sociopatia do seu diagnóstico. Mas continua a ser
um monstro.
Ele leva as mãos ao coração e finge ter sido ferido,
recebendo da minha parte uma explosão de riso sincera.
Sacode a cabeça com jovialidade, visivelmente feliz por as
nossas relações terem melhorado.
— Fizeste um trabalho excelente, Avalone. Salvaste
muitas vidas, podes estar orgulhosa de ti mesma. Por outro
lado, tenta não levar com uma bala da próxima vez.
Aponta-me a porta, depois de eu me oferecer, com ar
bem sério, para lhe marcar uma consulta com um
psiquiatra.
O Ethan vem imediatamente ao meu encontro, para me
ajudar a ir para o quarto.
Tenho um sorriso parvo estampado na cara, quando
caminhamos pelo corredor. Lutar incessantemente com o
Carter é esgotante. Estar de boas relações com ele não é
tão complicado, quando ele não rivaliza com o Clarke pelo
trono do rei dos filhos da mãe.
— Sabia que era apenas uma questão de tempo até o
Carter te mostrar o ser humano respeitável que dorme
dentro dele.
— A vida é uma cabra. E muda os homens; fortalece-os
para os proteger, ocultando as suas qualidades. O Carter é
um exemplo disso.
O Ethan concorda com a cabeça e chegamos ao meu
quarto.
— A partir de agora, venho examinar-te duas vezes por
dia. Quase morreste, tiveste sorte!
Passo a mão pelo seu braço, agradecida.
— Foi graças a ti. Obrigada.
— Na verdade, não foi. A bala atingiu a aorta e estavas a
esvair-te em sangue. Estanquei o sangramento, mas
tiveram de te transportar para uma clínica privada. Um dos
médicos devia-me um favor e não notificou a polícia. Foi ele
que te salvou.
A inconsciência sempre me provocou calafrios. Estamos
num lugar familiar, com as pessoas que amamos, e, no
momento seguinte, o nosso corpo viaja e passa por coisas
das quais não temos qualquer memória.
— Era o que eu estava a dizer. Sem ti, já estaria morta,
por esta altura. Agradeço-te infinitamente.
Ele recusa os meus agradecimentos, com um rosto duro.
— Não estás a perceber, Avalone. Com a tua doença, não
te podes dar ao luxo de depender de um cirurgião de mão
instável, sem acesso a nenhuma tecnologia médica. Já
tenho grande dificuldade em tratar adequadamente os
rapazes, quando são gravemente feridos. Então, tu, és uma
missão impossível. Com um coração como o teu, precisas de
esterilização, rapidez e precisão, equipamentos e
tratamentos. Não te posso oferecer nada disso... Se eu tocar
em ti quando estiveres em estado crítico, mato-te, Avalone.
Coloco as mãos nos seus ombros e sorrio ternamente.
— Obrigada.
— Caraças, entendes o que te estou a dizer?
— Obrigada por seres um bom cirurgião, consciente das
suas fraquezas, capaz de se adaptar e encontrar soluções.
Soubeste logo que não me podias tratar, ouvi-te bem. E
encontraste alguém que podia. Sem ti, eu não estaria aqui,
Ethan. Por isso, muito obrigada.
— Oh...
Tomo-o nos braços e recebo aquele abraço reconfortante.
Sempre acreditei que ia morrer de insuficiência cardíaca e
preparei-me para isso durante muito tempo. O Henzo foi um
acontecimento inesperado, insuportável para mim. Não
passei mais de dez anos da minha vida a aceitar que a
minha doença vai acabar comigo, para vir alguém tomar
uma iniciativa destas.
O Ethan deve sentir a minha angústia, já que o seu
abraço vai além da mera cortesia.
— O que aconteceu ao Lucas e ao seu gangue? —
pergunto, separando-me dele.
— Pensei que o Clarke os ia matar. Os Filhos do Diabo
começaram a passar-se com a quantidade de sangue que
estavas a perder, não te conto a carnificina. Então, havia
que escolher: vingar-se ou salvar-te. A decisão foi tomada
rapidamente. O Lucas insistiu em esperar pelo fim da tua
operação, antes de sair do país. Transmitiu-me as suas mais
profundas desculpas e agradecimentos pela tua gentil
intervenção. Neste momento, já devem estar no Panamá.
Um largo sorriso rasga-se nos meus lábios. Fico feliz por
ter terminado em bem. O Lucas não hesitou muito, antes de
escolher a não-violência. Merece felicidade e serenidade
para os seus entes queridos.
— O Clarke talvez se mostre distante.
Franzo a testa e inclino a cabeça para o lado, convidando
o Ethan a continuar.
— Ele culpa-se e sabes como ele reage aos seus
tormentos.
Afasta-se.
Rio-me sem alegria nenhuma. É manifestação de
deceção e cansaço. Já temos o Henzo a dar-nos chatices,
não me apetece enfrentar um Clarke perdido nas suas
emoções.
— Vou-me embora. Liga-me, se tiveres o mais pequeno
problema.
O Ethan agradece às Nornas por me manterem viva,
beija a minha testa e vai-se embora.
Penso no calor dos meus lençóis para passar outra noite,
mas tenho uma vertigem. Passo a mão pela testa e sinto a
presença do Clarke. Caminha na minha direção, de olhar
grave, enquanto a minha visão se turva. As pernas cedem
brutalmente sob o meu peso, os seus braços seguram-me.
Agarra-me contra o peito e olha-me fixamente, preocupado.
— Parece que é a tua vez de ficares na cama, Beleza.
Sorrio, no meio da bruma, e tudo desaparece à minha
volta.
***
O meu estômago, gritando de fome, tira-me do sono.
Antes de me conseguir endireitar, tenho de, mais uma vez,
retirar os fios do meu corpo e a cânula que me traz o
oxigénio. Não sei quem os repôs, mas são provavelmente os
instrumentos médicos que mais odeio no mundo.
Apanho o telemóvel na mesa de cabeceira e vejo as
chamadas perdidas, bem como as mensagens recebidas
desde a negociação. A Lola é a principal remetente. Avisa-
me de que está ao corrente da minha situação e que
pretende matar os Filhos do Diabo. Os meus amigos
também sabem o que se passa, graças à minha querida
colega de quarto, que armou um escândalo quando o Set a
informou do que se tinha passado. Digo a todos que ainda
não bati as botas e garanto-lhes que me estou a portar
bem.
Endireito-me e faço uma careta de dor, mas é menos
aguda do que no meu anterior estado de consciência. Não
sei exatamente quantos dias passaram desde a negociação
e prefiro ficar na ignorância.
Levanto-me da cama e saio do quarto na obscuridade da
noite, para ir buscar comida. A casa está mergulhada numa
calma absoluta. Entro na cozinha, em busca de qualquer
coisa que possa ser comestível.
Passos abafados anunciam a chegada de uma pessoa.
— Como te sentes?
Tiro o nariz de dentro do frigorífico e olho para o Clarke,
encostado na ombreira da porta. Luto com todas as minhas
forças para não fixar o seu peito nu, muito menos as calças
de treino que traz descidas pelas ancas; mas só o facto de
saber isso me deixa subitamente com calor.
Por todos os deuses, uma criatura assim não devia
existir, é desumano!
— Estou capaz de correr uma maratona — respondo. — O
que vem absolutamente a propósito, já que, depois de ter
obtido o distintivo de negociadora, foco-me agora no de
atleta.
Faz um esgar. O meu coração entra em pânico, quando
ele se move na minha direção. Dou um passo atrás,
pedindo-lhe silenciosamente para não se aproximar.
Estou demasiado frágil, física e mentalmente, para agir
corretamente e não sei o que faria se ele ficasse demasiado
perto de mim.
Mas o Clarke Taylor está-se completamente nas tintas
para o que eu quero. Continua a reduzir a distância entre
nós e sou forçada a colocar a mão no seu peito nu para o
deter. O calor da sua pele aquece-me a palma da mão, o
meu braço e o meu corpo todo. Não posso sustentar o seu
olhar sem o desejar, por isso mantenho os meus olhos
colados à minha mão, que ainda não se moveu do peito
dele.
— Clarke, eu...
Incapaz de formar uma frase, quebro todos os contactos
e rodeio-o para voltar ao frigorífico. Tiro os ingredientes
necessários para preparar uma sanduíche e coloco tudo na
ilha, diante do Clarke, que me observa sem dizer uma
palavra. Estou a arrumar tudo, quando a voz dele me
provoca um sobressalto.
— Não vai voltar a acontecer.
Atrevo-me a olhar na sua direção e a encarar o seu rosto
fechado.
— O quê?
— Pores-te em perigo por nós. Acabou.
Os seus belos olhos verdes estão apagados, a culpa
transpira de todos os seus poros e acrescenta uma fenda na
sua alma. Ele culpa-se muito mais do que eu poderia
imaginar, muito mais do que o Ethan me conseguiu
transmitir.
— A culpa não foi tua — murmuro.
— Sim, foi. Prometi-te que nada te iria acontecer.
O seu tom é firme e duro. Estou cansada deste muro que
ele está sempre a erguer entre nós. Preencho o espaço
entre nós e coloco as mãos nas suas faces, para captar o
seu olhar, mas ele fecha as pálpebras ao meu toque e
respira com dificuldade.
— Tu prometeste que eu não ia morrer. Cumpriste a tua
palavra.
Os seus dedos fecham-se em torno dos meus pulsos e
afastam-me.
— Acredita, essa promessa valeu muito mais do que eu
poderia dizer em voz alta.
— Não dá para salvares toda a gente, o tempo todo... —
murmuro.
— Diz o roto ao nu!
Ri nervosamente e dá um passo para trás, dececionado
consigo mesmo.
— Mesmo assim, a ti, eu deveria ter-te salvo. Ver-te
esvair em sangue...
Contrai os maxilares com força e passa as mãos pelo
cabelo, com os olhos fixos em mim. Pergunto-me se a sua
reação não terá a ver com a morte dos pais. Eles também
sangraram até à morte diante dele...
— Clarke, eu...
Ele dá meia-volta e sai da cozinha, dando um murro no
pote das colheres, que se escaqueira contra a parede.
Capítulo 26
Continua...
Agradecimentos