FONSECA. Concepções de Família e Práticas de Intervenção
FONSECA. Concepções de Família e Práticas de Intervenção
FONSECA. Concepções de Família e Práticas de Intervenção
Claudia Fonseca
Professora Doutora do Programa Pós Graduação em Antropolo-
Resumo
gia Social-UFRGS Falar sobre a família como foco de intervenção exige
E-mail: [email protected]
aprofundar a discussão sobre o que é uma família e
como ela pode servir ou não de recurso em programas
de intervenção; exige também problematizar um ele-
mento básico do processo de intervenção: a comunica-
ção entre técnicos que atuam na intervenção e a popu-
lação-alvo. Assim, neste trabalho, sugere-se, num pri-
meiro momento, algumas pistas analíticas que podem
ajudar o técnico a perceber dinâmicas familiares em
grupos populares do Brasil. Descobrimos assim que,
da perspectiva espacial, redes de parentesco se esten-
dem além do grupo consangüíneo e da unidade domés-
tica para esferas mais amplas. Da perspectiva tempo-
ral, as pessoas se inserem em uma sucessão de gera-
ções, possibilitando projeções para o futuro ou resga-
tes de elementos do passado. Passa-se então a conside-
rar a contribuição específica de uma teoria da prática
e as implicações metodológicas de uma análise centra-
da em “modos de vida”, arraigados numa situação de
classe. Finalmente, comenta-se o olhar reflexivo – um
elemento fundamental do processo dialógico que per-
mite a escuta do outro em qualquer situação de inter-
venção. Propõe-se com essa abordagem descolonizar o
olhar do técnico, propiciando uma interação dialógica
capaz de reforçar, antes de reprimir, recursos tradicio-
nais na situação em que se pretende intervir.
Palavras-chave: Família; Parentesco; Ciclo Familiar;
Intervenção; Metodologia de pesquisa; Modo de vida.
1 Não há oportunidade, no curto espaço deste artigo, de descrever a vasta literatura que existe na área de antropologia do corpo e da
saúde. No entanto, coerente com minha preocupação metodológica, cabe citar uma obra de metodologia etnográfica voltada para
trabalhadores de saúde: Pesquisa qualitativa em saúde, de Ceres Victora et al. (2002).
2 ELSEN, I.; ALTHOFF, C. R. (Org.). Saúde da família? Multiplicar ou clarear conceitos? 2004. Trabalho apresentado no 56º Congresso
de Enfermagem, Gramado, 2004
3 Para mais informação sobre a importância desse valor nas relações de gênero de grupos populares, ver Sarti (1996).
4 DYTZ, J. L. O modo de vida da família e a saúde infantil. 2004. Trabalho apresentado no 56º Congresso de Enfermagem, Gramado,
2004
É para evitar esse tipo de dualismo, para rechaçar cômodos dormia mais, nem Vanilda, que trabalhava
uma perspectiva moralista que pressupõe muito mais das 8 da manhã às 6 da tarde, nem as filhas dela que,
do que devia, que a antropologia insiste no elemento quando não estavam no colégio, se revezavam nos cui-
(auto-) REFLEXIVO do olhar analítico. dados da avó. Vanilda, vendo que ela não conseguia
aliviar o sofrimento da mãe, tentou repetidas vezes
Modo de Vida: carência ou criativi- interná-la. Mas, como se pode imaginar, não havia
vaga na rede hospitalar e era a responsabilidade da
dade? família cuidar de seus membros. Quando a “mãe ve-
lha” passou, no meio do inverno gaúcho, num frio de
Essa reflexividade não significa, contudo, que faça-
menos 6 graus, a arrancar a roupa e sair para a rua,
mos abstração das diferenças de oportunidade, das
desigualdades econômicas e sociais, entre um sujei- completamente nua, Vanilda não teve dúvida. Resol-
to social e outro. As circunstâncias socioeconômicas, veu deixá-la amarrada à cama enquanto o resto da fa-
que são em grande parte alheias à vontade individu- mília tentava dormir, mesmo sabendo que esse proce-
al, são parte de qualquer modo de vida. É importante dimento poderia ser visto por observadores externos
lembrar: as condições objetivas de vida levam as pes- como prova de extrema crueldade.
soas a olharem para o mundo de um ângulo ou de ou- A experiência de Vanilda sublinha um último as-
tro. Uma coisa é ter um salário fixo e um convênio de pecto fundamental da relação entre saúde familiar e
saúde, que permitem o familiar de um doente se orga- modo de vida: a demanda apresentada por cada famí-
nizar por telefone com médicos e hospitais, com hora lia aos serviços públicos de saúde, isto é, ao Estado,
marcada. Outra coisa é levantar às cinco da madruga- varia muito conforme suas condições concretas de
da (ou passar a noite na fila) para pegar ficha de exa- vida. Eu, por exemplo, não tive que recorrer ao Estado
me médico, ou esperar meses por um leito hospitalar para cuidar da minha velha mãe, pois ela já tem apo-
que não sai. Essas circunstâncias obrigam as pesso- sentadoria e convênios de saúde, que são suficientes
as a se organizarem de forma diferente, acentuando para lhe garantir condições dignas de vida, sem so-
certas prioridades e atenuando outras. brecarregar seus familiares. Vanilda, por outro lado,
Penso mais uma vez no caso de Vanilda, que aca- aceitou o encargo de cuidar pessoalmente de sua mãe.
bou por cuidar de sua mãe durante os últimos anos de Ao mesmo tempo, procurava desesperadamente algum
vida, fazendo o milagre de sustentar uma família de apoio público para ampará-la, da mesma forma que
seis (além dela, três de suas filhas e a mãe) com uma muitos de seus vizinhos procuravam apoio de algum
renda de dois salários mínimos. A “mãe velha” – como serviço público para ajudar no tratamento de um fi-
chamavam a avó, nessa família – sofria de uma forma lho, dependente químico, ou outro membro problemá-
aguda de demência senil. Não somente ficou depen- tico da família. Infelizmente, Vanilda, tal como a mai-
dente economicamente da filha, como passou a ter oria de seus vizinhos, só conseguiu parcos resultados.
comportamentos agressivos e autodestrutivos, com Ironicamente, alguns políticos chegam a sugerir
sérios distúrbios de sono. Ninguém na casa de três que as insuficiências do serviço de saúde pública de-
6 ELSEN, I.; ALTHOFF, C. R. (Org.). Saúde da família? Multiplicar ou clarear conceitos? 2004. Trabalho apresentado no 56º Congresso de
Enfermagem, Gramado, 2004
7 DYTZ, J. L. O modo de vida da família e a saúde infantil. 2004. Trabalho apresentado no 56º Congresso de Enfermagem, Gramado, 2004