2 - O Trono de Fogo
2 - O Trono de Fogo
2 - O Trono de Fogo
TÍTULO ORIGINAL
The Throne of Fire
[2011]
Esta é uma transcrição de uma gravação. Carter e Sadie Kane foram conhecidos,
primariamente, em uma gravação que recebi no ano passado, que transcrevi como A
Pirâmide Vermelha. Este segundo arquivo de áudio chegou a minha residência pouco
depois que o livro foi publicado, então posso assumir que os Kane confiaram em mim
para continuar a contar sua história. Se os relatos deste segundo áudio são verdadei-
ros, o rumo dos acontecimentos só pode ser descrito como alarmante. E, por causa dos
Kane e do mundo, eu espero que o que se segue seja ficção. Do contrário, todos nós
estamos com sérios problemas.
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1. Diversão com combustão espontânea R
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AQUI É CARTER. Olhe, não temos tempo para longas introduções. Preciso
contar essa história logo, ou vamos todos morrer.
Se você não ouviu a nossa primeira gravação, bem... Prazer em conhecê-
lo: os deuses egípcios estão correndo soltos no mundo moderno; um grupo
de magos chamado de Casa da Vida está tentando pará-los; todos odeiam
Sadie e eu; e uma cobra gigante está prestes a engolir o sol e destruir o
mundo.
[Ai! O que foi isso?]
Sadie acabou de me dar um soco. Ela diz que vou assustar muito vocês.
Eu deveria me acalmar, e voltar desde o começo.
Certo. Mas pessoalmente, acho que você deveria se assustar.
O objetivo dessa gravação é informá-lo do que está realmente aconte-
cendo e como as coisas deram errado. Você vai ouvir um monte de pessoas
dizendo horrores sobre a gente, mas nós não causamos aquelas mortes.
Quanto à cobra, aquela também não foi a nossa culpa.
Bem... não exatamente. Todos os magos no mundo têm que se unir. É a
nossa única chance.
Então, essa é a história. Decida por si só. Começou quando colocamos
fogo no Brooklyn.
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estátua, eu não tinha ideia alguma de como ela nos ajudaria. Examinei os
hieróglifos esperando por uma pista.
— Quem é o garotinho na frente? — Walt perguntou. — Uma criança?
Jaz estalou os dedos.
— Não, eu me lembro disso! Khnum fez os humanos num vaso de argila.
É o que ele está fazendo aqui, aposto, formando um humano da argila.
Ela olhou para mim em confirmação. A verdade era que eu mesmo es-
quecera aquela história. Sadie e eu devíamos ser os professores, mas Jaz fre-
quentemente lembrava-se de mais detalhes que eu.
— É, bem — falei. — Tirar os homens da argila. Exato.
Sadie franziu a testa para a cabeça de carneiro de Khnum.
— Parece um pouco com aquele desenho animado antigo... As aventuras
de Alceu e Dentinho, não é? Poderia ser o deus alce.
— Ele não é o deus alce — falei.
— Mas se estamos procurando pelo Livro de Rá — ela disse — e Rá é o
deus do sol, então por que estamos procurando um alce?
Sadie pode ser muito irritante. Eu já mencionei isso?
— Khnum era um aspecto do deus do sol — falei. — Rá tinha três perso-
nalidades diferentes. Ele era Khepri, o deus escaravelho, na parte da manhã;
Rá durante o dia; e Khnum, o deus de cabeça de carneiro no pôr do sol,
quando ele descia ao mundo inferior.
— É confuso — falou Jaz.
— Não é não — disse Sadie. — Carter tem diferentes personalidades. Ele
vai de zumbi pela manhã para lesma à tarde, e de...
— Sadie — chamei — cale a boca.
Walt coçou o queixo.
— Acho que Sadie está certa. É um alce.
— Obrigada — disse Sadie.
Walt deu a ela um sorriso relutante, mas ainda parecia preocupado,
como se alguma coisa o incomodasse. Peguei Jaz estudando-o com uma ex-
pressão preocupada, e fiquei imaginando o que eles haviam conversado mais
cedo.
— Já chega de alce — falei a eles. — Temos que levar essa estátua de volta
à casa do Brooklyn. Tem algum tipo de pista aí.
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Assim que ela arrancou o rolo da estátua, a sala inteira tremeu. Racha-
duras apareceram nas vitrines.
Sadie deu um berro quando o rolo na sua mão explodiu em chamas. Elas
não pareceram consumir o papiro ou ferir Sadie; mas quando ela tentou
sacudir o fogo a fim de apagá-lo, chamas brancas espectrais pularam para a
vitrine mais próxima e correram em volta da sala como se seguissem uma
trilha de gasolina. O fogo tocou as janelas e hieróglifos brancos inflamaram
no vidro, provavelmente disparando uma tonelada de alarmes e maldições
protetoras. Então o fogo fantasmagórico ondulou pelo grande friso na en-
trada da sala. A placa de pedra sacudiu violentamente. Eu não podia ver os
sinais esculpidos no outro lado, mas ouvi um ruído estridente – como um
papagaio grande e realmente zangado.
Walt puxou o cajado das costas. Sadie balançava o rolo flamejante como
se estivesse preso na mão dela.
— Tire essa coisa de mim! Isso tudo não é só a minha culpa!
— Hã... — Jaz puxou a varinha. — Que som foi aquele?
Meu coração afundou.
— Eu acho — falei — que Sadie acabou de arranjar uma grande distração
para nós.
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2. Domesticamos um beija-flor de três mil
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HÁ ALGUNS MESES, as coisas teriam sido diferentes. Sadie poderia ter dito
uma única palavra e causado uma explosão de nível militar. Eu poderia ter
me revestido de um avatar mágico de combate, e quase nada teria sido capaz
de me derrotar.
Mas isso foi quando éramos totalmente mesclados com os deuses – Hó-
rus para mim, Ísis para Sadie. Nós desistimos desse poder porque era dema-
siado perigoso. Até termos um melhor controle de nossas próprias capacida-
des, encarnar deuses egípcios poderia nos deixar loucos ou, literalmente ser-
mos incinerados.
Agora tudo o que sobrou foi a nossa própria magia limitada. Isso tornou
mais difícil de fazer coisas importantes – como sobreviver quando um mons-
tro ganha vida e quer nos matar.
O grifo apareceu pronto para lutar. Era o dobro do tamanho de um leão
normal, seu pelo dourado-avermelhado revestido com pó de calcário. Sua
cauda era repleta de plumas espetadas que pareciam tão duras e afiadas como
punhais. Com um simples toque, ele pulverizou a laje de pedra de onde saiu.
Suas asas estavam eriçadas em linha reta, e até agora alinhadas sobre o seu
dorso. Quando o grifo se movia, elas se agitavam tão rápido que se turvavam
e zumbiam como as asas do maior e mais cruel beija-flor do mundo.
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O grifo fixou seus olhos famintos em Sadie. Chamas brancas ainda en-
volviam sua mão e o pergaminho, e o grifo pareceu encarar isso como uma
espécie de desafio. Eu já ouvi um monte de gritos de falcão – ei, eu fui um
falcão uma ou duas vezes – mas quando isso abriu o bico, ele soltou um grito
que sacudiu as janelas e arrepiou os meus cabelos.
— Sadie — eu disse — solte o pergaminho.
— Oláaa? Está preso na minha mão! — ela protestou. — E eu estou pe-
gando fogo! Eu mencionei isso?
Chamas do fogo fantasma estavam agora queimando em todas as janelas
e artefatos. O pergaminho parecia ter disparado cada reserva de magia egíp-
cia na sala, e eu tinha certeza que era ruim. Walt e Jaz ficaram congelados
em estado de choque. Suponho que não poderia culpá-los. Este foi o pri-
meiro monstro real deles.
O grifo deu um passo em direção à minha irmã.
Eu estava ombro a ombro com ela e fiz o único truque mágico que eu
conhecia bem. Alcancei o Duat e puxei minha espada fora do ar rarefeito –
uma khopesh egípcia com uma lâmina perversamente afiada, em forma de
gancho.
Sadie parecia muito boba com a mão e o pergaminho pegando fogo,
como a Estátua da Liberdade entusiasmada demais, mas com a mão livre,
ela conseguiu chamar sua principal arma ofensiva – um cajado de um metro
e meio de comprimento esculpido com hieróglifos.
Sadie perguntou:
— Alguma dica de como lutar com grifos?
— Evite as partes afiadas? — chutei.
— Brilhante. Obrigada por isso.
— Walt — chamei. — Verifique as janelas. Veja se pode abri-las.
— M-mas elas estão amaldiçoadas.
— Eu sei — respondi. — Mas se tentarmos sair pelo salão de baile, o grifo
vai nos comer antes de chegarmos lá.
— Vou verificar as janelas.
— Jaz, ajude Walt — falei.
— Essas marcas no vidro — Jaz murmurou. — E-eu as vi antes...
— Apenas faça! — falei.
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O grifo avançou com suas asas zumbindo como serras elétricas. Sadie
lançou seu cajado e em pleno voo, ele se transformou em um tigre com as
garras afiadas prontas para o ataque.
O grifo não ficou impressionado. Ele bateu o tigre de lado, em seguida
atacou com velocidade anormal, abrindo impossivelmente seu bico. SNAP.
O grifo mordeu e o tigre sumiu, restando um cajado quebrado.
— Esse era meu cajado favorito! — Sadie lamentou.
O grifo virou seus olhos para mim.
Segurei firme minha espada. A lâmina começou a brilhar. Eu desejei que
ainda tivesse a voz de Hórus dentro da minha cabeça, aconselhando-me. Ter
um deus da guerra pessoal torna mais fácil fazer as coisas estupidamente
corajosas.
— Walt! — chamei — Como está indo com essa janela?
— Ainda tentando — disse ele.
— E-espere — Jaz disse nervosamente. — Esses são os símbolos da deusa
Sekhmet. Walt pare!
Então, várias coisas aconteceram de uma vez. Walt abriu a janela, e uma
onda de fogo branco rugiu por cima dele, derrubando-o ao chão.
Jaz correu para seu lado. O grifo logo perdeu o interesse em mim. Como
todo bom predador, ele se concentra no alvo móvel – Jaz – e investiu contra
ela.
Eu investi. Mas, em vez de atacar nossos amigos, o grifo passou por Walt
e Jaz e bateu na janela. Jaz puxou Walt para fora do caminho enquanto o
grifo ficou louco, batendo e mordendo as chamas brancas.
Ele estava tentando atacar o fogo. O grifo ficou fora de controle. Ele gi-
rou, batendo em um sarcófago com um shabti exposto. Sua cauda quebrou
o sarcófago em pedaços.
Eu não tenho certeza do que se apossou de mim, mas eu gritei:
— Pare com isso!
O grifo congelou. Ele se virou para mim, grasnando em irritação. Uma
cortina de fogo branco correu para longe e queimou o canto da sala, quase
como se ele estivesse se reagrupando. Então eu observei outras chamas se
unindo, formando contornos lembrando vagamente humanos. Um olhou
para mim, e eu senti uma aura inconfundível de malícia.
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parecia um idiota total de pijama preto com minha espada brilhante, trope-
çando em artefatos quebrados e gritando ordens para um beija-flor-gato gi-
gante.
Justamente quando eu pensei que as coisas não poderiam ficar piores,
meia dúzia dos convidados da festa apareceram para ver o que o era o baru-
lho. Suas bocas se abriram. Uma senhora com um vestido cor de pêssego
gritou.
As sete criaturas de fogo branco dispararam em linha reta na direção dos
convidados do casamento, que imediatamente desabaram. Os incêndios
continuaram, girando em torno da sala para o salão de baile. O grifo voou
atrás deles.
Olhei para trás para Sadie, que estava ajoelhado sobre Jaz e Walt.
— Como eles estão?
— Walt está acordando — disse ela — mas Jaz está inconsciente.
— Sigam-me quando puderem. Eu acho que posso controlar o grifo.
— Carter, você está louco? Nossos amigos estão feridos e eu tenho um
pergaminho em chamas preso na minha mão. A janela está aberta. Ajude-
me a tirar Jaz e Walt daqui!
Ela tinha um bom argumento. Esta poderia ser nossa única chance de
tirar os nossos amigos de lá vivos. Mas eu também sabia o que aqueles sete
incêndios eram agora, e eu sabia que se não fosse atrás deles, muitas pessoas
inocentes iriam se machucar.
Murmurei uma maldição egípcia – do tipo xingando, não do tipo mágica
– e corri para participar da festa de casamento.
O salão principal estava em caos. Os convidados estavam correndo por
toda parte, gritando e derrubando mesas. Um cara em um smoking tinha
caído no bolo de casamento e estava rastejando com uma decoração plástica
de noivinhos preso à sua traseira. Um músico estava tentando fugir com um
tambor de corda em seu pé.
Os fogos brancos se solidificaram o suficiente para que eu pudesse en-
xergar as suas formas – em algum lugar entre caninos e humanos, com bra-
ços compridos e pernas tortas. Elas brilhavam como gasolina superaquecida
enquanto corriam pelo salão, circundando os pilares que rodeavam a pista
de dança. Um atravessou uma dama de honra. Os olhos da senhora ficaram
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Jaz pegou algo mais de seu saco mágico – uma estátua de cera – e apertou
isso na mão livre da minha irmã.
— Você vai precisar disso em breve, Sadie. Desculpe-me, eu não posso te
ajudar mais. Você saberá o que fazer quando chegar a hora.
Eu não acho que eu já vi Sadie perder as palavras desta forma.
Jaz correu para o centro do salão de baile e tocou sua varinha no chão,
desenhando um círculo de proteção em torno de seus pés. De sua bolsa, ela
retirou uma pequena estátua da deusa Sekhmet, a sua deusa patrona, e se-
gurou no alto.
Ela começou a cantar. Uma luz vermelha brilhava ao seu redor. Gavinhas
da energia se espalharam a partir do círculo, enchendo a sala como os galhos
de uma árvore. As gavinhas começaram a girar, primeiro lentamente, então
aumentando a velocidade até que a mágica arrastou os bau, forçando-os a
voar na mesma direção e atraindo-os para o centro. Os espíritos gritaram,
tentando lutar contra o feitiço. Jaz cambaleou, mas continuou cantando,
com o rosto pontilhado com o suor.
— Nós não podemos ajudá-la? — Walt perguntou.
RAWWWWK! gritou o grifo, o que provavelmente signifi-
cava Oláaaaaaaa! Eu ainda estou aqui!
As sirenes soaram agora como se estivessem à porta do edifício. No final
do corredor, perto dos elevadores, alguém gritava em um megafone, orde-
nando à última leva de convidados do casamento que saíssem do prédio,
como se eles precisassem de incentivo. A polícia chegou e se nós fossemos
presos, esta situação iria ser difícil de explicar.
— Sadie. — falei — Prepare-se para soltar a corda do grifo. Walt, você ainda
tem seu amuleto barco?
— Meu...? Sim. Mas não há água.
— Apenas convoque o barco!
Eu busquei nos meus bolsos e encontrei meu próprio fio mágico. Falei
um encanto e de repente estava segurando uma corda de vinte metros de
comprimento. Fiz uma laçada solta no meio, como uma gravata enorme e
cuidadosamente aproximei-me do grifo.
— Eu só vou colocar isso em seu pescoço — falei. — Não perca o controle.
FREEEEK! Disse o grifo
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3. O sorveteiro trama a nossa morte
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ESTRANHO COMO VOCÊ PODE FACILMENTE ESQUECER que sua mão está em
chamas.
Ah, desculpe. Sadie, aqui. Você não acha que eu deixaria meu irmão
tagarelar para sempre, não é? Por favor, ninguém merece uma maldi-
ção tão horrível.
Chegamos de volta na Casa do Brooklyn, e todos se aglomeraram em
minha volta porque a minha mão estava presa a um pergaminho flamejante.
— Estou bem — insisti. — Cuidem de Jaz!
Honestamente, eu aprecio um pouco de atenção de vez em quando, mas
eu estava longe de ser a coisa mais interessante acontecendo. Nós pousamos
no telhado da mansão, que em si é de um estranho encanto – um cubo de
cinco andares de pedra calcária e aço, como um cruzamento entre um tem-
plo egípcio e um museu de arte, empoleirado no topo de um armazém aban-
donado no cais do Brooklyn. Sem mencionar que a mansão brilha com ma-
gia e é invisível para os mortais normais.
Abaixo de nós, todo o Brooklyn estava pegando fogo. Meu irritante per-
gaminho mágico pintou uma ampla faixa de fogo fantasmagórico pelo cami-
nho. Nada esteva queimando verdadeiramente, e as chamas não eram quen-
tes; mas nós ainda causamos bastante pânico. Sirenes soavam. As pessoas
lotaram as ruas, curiosos pelos telhados em chamas. Helicópteros circularam
com holofotes.
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Meu quarto era um lugar adorável para estar de mau humor. Nos últimos
seis anos, eu vivi em um sótão da vovó e do vovô no apartamento em Lon-
dres, e embora eu tenha perdido a minha antiga vida, minhas companheiras
Liz e Emma, e quase tudo da Inglaterra, eu não podia negar que o meu
quarto no Brooklyn era muito mais bacana.
Da minha varanda dava para ver o Rio East. Eu tinha uma confortável
cama enorme, meu próprio banheiro e um closet com inúmeras roupas no-
vas que magicamente apareciam e limpavam-se quando necessário. O realce
da cômoda era a geladeira embutida com minha bebida favorita refrigerante
de groselha, importada do Reino Unido, e os chocolates refrigerados (bem,
uma garota tem que tratar a si mesma). O sistema de som era absolutamente
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isso.
Nas últimas sete semanas, desde que Walt Stone chegou à Casa do Bro-
oklyn, pensei que poderia ser capaz de superar Anúbis. Claro, Walt era meu
recruta, e eu não deveria pensar nele como um possível namorado, mas eu
tinha quase certeza de que houve uma faísca entre nós na primeira vez que
vimos um ao outro. Agora, no entanto, Walt parecia estar se afastando. Ele
estava agindo de modo secreto, parecendo sempre tão culpado e conver-
sando com Jaz.
Minha vida era um lixo.
Eu puxei meu pijama enquanto Adele continuou cantando. Todas as
suas canções eram sobre não ser notada por garotos? De repente, eu achei
isso muito chato.
Desliguei a música e caí na cama.
Infelizmente, uma vez que adormeci a minha noite só piorou.
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como o deus Osíris de pele azul, a minha mãe em suas vestes brancas fantas-
magóricas. Eles podiam estar usando chapéus de festa e cantando “Feliz Ani-
versário”, enquanto Ammit o Devorador, seu extremamente pequeno mons-
tro de estimação, saltava para cima e para baixo, latindo.
Ou poderia ser, talvez, Anúbis chamando. Oi, hum, pensei que você poderia
querer ir a um funeral ou algo assim?
Bem... isso era possível.
Então eu aceitei o convite. Eu deixei meu espírito ir para onde isso que-
ria me levar, e o meu ba flutuou acima do meu corpo.
Se você nunca viajou como ba, eu não recomendo – a menos que você
goste de se transformar em uma galinha fantasma e fazer um passeio descon-
trolado através das correntes do Duat.
Os ba são normalmente invisíveis aos outros, o que é bom, já que têm a
forma de uma ave gigante com a cabeça normal em anexo. Uma vez, eu fui
capaz de manipular a minha forma de ba em algo menos constrangedor, mas
desde que Ísis desocupou a minha cabeça, eu não tenho essa capacidade.
Agora, quando eu me levantei, eu estava presa no modo padrão de aves.
As portas da varanda se abriram. Uma brisa mágica varreu-me para a
noite. As luzes de Nova York borraram e desbotaram, e eu me encontrei em
uma câmara subterrânea familiar: o Salão das Eras, na sede principal da Casa
da Vida debaixo de Cairo.
A sala era tão longa, poderia ter hospedado uma maratona. No meio
estava um tapete azul que brilhava como um rio. Havia imagens entre as
colunas de cada lado, cortinas de luz brilhantes – holografias da longa histó-
ria do Egito. A luz mudou de cor para refletir diferentes épocas, desde o
brilho branco da Era dos Deuses para a luz vermelha dos tempos modernos.
O telhado era ainda maior do que o do salão de baile no Museu de Bro-
oklyn, o enorme espaço brilhava com esferas de energia brilhantes e hieró-
glifos flutuantes. Era como se alguém tivesse detonado alguns quilos de ce-
reais para crianças em gravidade zero, todos os pedaços coloridos açucarados
vagando e colidindo em câmera lenta.
Flutuei até o fim da sala, logo acima da plataforma com o trono do faraó.
Era um lugar de honra, vazio desde a queda do Egito, mas no degrau abaixo
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— Não — disse Desjardins. — Ele estava sob nossa proteção. Todos os que
buscam a cura deve ser dado santuário, até mesmo um Kane.
Vladimir tomou uma respiração profunda, o que parecia um aspirador
entupido.
— Mas com certeza agora que ele partiu, precisamos agir. Você ouviu a
notícia do Brooklyn, meu senhor. As crianças encontraram o primeiro per-
gaminho. Se eles acharem os outros dois...
— Eu sei, Vladimir.
— Eles humilharam a Casa da Vida no Arizona. Fizeram a paz com Set
ao invés de destruí-lo. E agora eles procuram o Livro de Rá. Se você me
permitir lidar com eles...
O topo da vara de Desjardins explodiu em uma chama roxa.
— Quem é o Sacerdote-leitor Chefe? — perguntou.
A agradável expressão de Vladimir vacilou.
— Você, meu senhor.
— E eu vou lidar com os Kane no devido tempo, mas Apófis é a nossa
maior ameaça. Temos que desviar todo o nosso poder para manter a Ser-
pente presa. Se há alguma chance de os Kane poderem nos ajudar a restaurar
a ordem...
— Mas, Sacerdote-leitor Chefe — Vladimir interrompeu.
Seu tom de voz tinha uma nova intensidade, uma força quase mágica
para isso.
— Os Kane são parte do problema. Eles alteraram o equilíbrio do Maat,
despertando os deuses. Estão ensinando magia proibida. Agora irão reviver
Rá, que não se pronunciou desde o início do Egito! Eles vão lançar o mundo
em desordem. Isso só vai ajudar o Caos.
Desjardins piscou, como se confuso.
— Talvez você esteja certo. Eu... Eu devo pensar sobre isso.
Vladimir se inclinou.
— Como quiser, meu senhor. Vou reunir nossas forças e aguardar suas
ordens para destruir a Casa do Brooklyn.
— Destruir... — Desjardins franziu a testa. — Sim, você vai aguardar as
minhas ordens. Eu vou escolher a hora de atacar, Vladimir.
— Muito bom, meu senhor. E se as crianças Kane buscarem os outros
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dois pergaminhos para despertar Rá? Um deles está além de seu alcance, é
claro, mas o outro...
— Vou deixar isso para você. Guarde-o como achar melhor.
Os olhos de Vladimir ficaram ainda mais horríveis quando ele ficou ani-
mado, viscosos e brilhantes por trás daquelas pálpebras arruinadas. Isso me
lembrou do café da manhã favorito de vovô: ovos quentes com molho Ta-
basco.
[Bem, desculpe se é nojento, Carter. Você não deveria tentar comer en-
quanto estou narrando, de qualquer maneira!]
— Meu senhor é sábio — disse Vladimir. — As crianças procuram os per-
gaminhos, meu senhor. Elas não têm escolha. Se elas deixarem seu reduto e
entrarem em meu território...
— Eu não acabei de dizer que nós vamos eliminá-las? — Desjardins falou
categoricamente. — Agora, deixe-me. Eu tenho que pensar.
Vladimir recuou para as sombras. Para alguém vestido de branco, ele
conseguiu desaparecer completamente bem.
Desjardins voltou sua atenção para a cortina de luz brilhante.
— Uma nova era... — ele meditou. — A idade das trevas...
Meu ba rodou nas correntes do Duat, correndo de volta para minha
forma dormindo.
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Comecei a perguntar:
— Como...
Então, minha visão do Salão das Eras – as implicações do que eu tinha
visto – me deterioraram.
— Está tudo bem. — disse Amós. — Acabei de voltar do Egito.
Tentei engolir, minha respiração quase tão ruim quanto à daquele ho-
mem medonho, Vladimir.
— Eu também, Amós. E não está tudo certo. Eles estão vindo para nos
destruir.
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4. Um convite de aniversário para o
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Armagedom
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DEPOIS DE EXPLICAR MINHA HORRÍVEL VISÃO, só uma coisa poderia ser feita:
um café da manhã adequado.
Amós parecia abalado, mas insistiu em esperar para discutir assuntos até
que tivéssemos reunido todo o Vigésimo Primeiro Nomo (como o nosso
ramo da Casa da Vida era chamado). Ele prometeu atender-me na varanda
em 20 minutos.
Depois que ele se foi, tomei banho e considerei o que vestir. Normal-
mente, eu ensinaria Magia às segundas-feiras, o que exigiria o característico
linho mágico. No entanto, o meu aniversário era suposto para ser um dia de
folga.
Dadas as circunstâncias, eu duvidava que Amós, Carter e Bastet iriam
me deixar ir para Londres, mas eu decidi pensar positivo. Coloquei um jeans
rasgado, meus coturnos, uma camiseta regata e minha jaqueta de couro –
nada bom para a magia, mas eu estava me sentindo rebelde.
Enfiei minha varinha e a imagem do mini Carter na bolsa de magia. Eu
estava prestes a lançá-los sobre o meu ombro quando eu pensei “Não, eu
não vou ficar carregando isso para cá e para lá no meu aniversário”.
Eu respirei fundo e concentrei-me em abrir um espaço no Duat. Eu
odeio admitir isso, mas sou uma droga neste truque. Simplesmente não é
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justo que Carter poder puxar coisas do ar a qualquer momento, mas eu nor-
malmente preciso de cinco ou dez minutos de foco absoluto, e mesmo assim
o esforço me dá náuseas. Na maioria das vezes, é mais simples apenas manter
a minha bolsa sobre meu ombro. Se eu saísse com minhas amigas, no en-
tanto, eu não queria estar carregando isso, e não queria deixar completa-
mente para trás.
Por fim, o ar brilhava quando o Duat se inclinou à minha vontade. Eu
joguei minha bolsa na minha frente, e ela desapareceu. Excelente, supondo
que eu pudesse descobrir como obtê-la novamente mais tarde.
Eu peguei o pergaminho que tinha roubado do deus alce na noite ante-
rior e desci as escadas.
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nossas defesas?
Amós encarou as portas deslizantes de vidro, possivelmente lembrando-
se da última vez que as nossas defesas foram violadas. O resultado não foi
nada bom.
— Devemos nos certificar de não chegarmos a isso — falou. — Desjardins
sabe o que estamos tentando, e que só temos cinco dias... bem, quatro dias
a partir de agora. Segundo a visão de Sadie, Desjardins está ciente do nosso
plano e tentará nos impedir por causa de uma crença enganosa que estamos
trabalhando com as forças do Caos. Mas se conseguirmos o que queremos,
teremos poder de barganhar para fazer Desjardins recuar.
Cleo levantou a mão.
— Hã... nós não conhecemos o plano. Quatro dias para fazer o quê?
Amós gesticulou para Carter, convidando-o a explicar. Estava tudo bem
para mim. Honestamente, eu achava o plano um pouco maluco.
Meu irmão sentou-se torto. Preciso dar crédito a ele. Nos últimos meses,
ele progredira em parecer um adolescente normal. Depois de seis anos de
educação em casa e viagens com nosso pai, Carter estivera fora de contato.
Ele se vestia como um executivo júnior, em camisas brancas e calças compri-
das. Agora pelo menos aprendera a vestir jeans, camisetas e o ocasional ca-
puz. Ele deixou o cabelo crescer numa bagunça cacheada – o que parecia
muito melhor. Se continuasse progredindo, o garoto até poderia namorar
algum dia.
[O que foi? Não me empurre. Foi um elogio!]
— Vamos acordar o deus Rá — disse Carter, como se fosse algo tão fácil
quanto pegar comida da geladeira.
Os recrutas olharam um para o outro. Carter não era conhecido pelo seu
senso de humor, mas eles deviam ter imaginado se ele estava brincando.
— Você quer dizer o deus do sol — disse Felix. — O velho rei dos deuses.
Carter assentiu.
— Vocês conhecem a história. Há milhares de anos atrás, Rá ficou velho
e fugiu aos céus, deixando Osíris no seu lugar. Então Osíris foi pego por Set.
Então Hórus derrotou Set e se tornou faraó. Então...
Tossi.
— A versão resumida, por favor.
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a escolha certa para sua sanidade. Amós, de todas as pessoas, sabia como era
a necessidade de fugir. Se eu ficasse aqui, se eu partisse em uma busca ime-
diata, mesmo sem tempo para respirar, senti que ia explodir.
Além disso, eu me sentia melhor sabendo que Amós estará cobrindo
para nós a Casa do Brooklyn. Fiquei aliviada por dar as minhas funções de
ensino por um tempo. Verdade seja dita, eu sou uma professora horrível.
Eu simplesmente não tenho paciência para isso.
[Ah, fique quieto, Carter. Você não deveria concordar comigo.]
— Obrigada, Amós. — consegui dizer.
Ele levantou, indicando claramente que a reunião havia terminado.
— Eu acho que é suficiente para uma manhã — disse ele. — O principal é
que todos vocês continuem com seu treinamento, e não se desesperem. Nós
precisamos de vocês na melhor forma para defender a Casa do Brooklyn.
Nós prevaleceremos. Com os deuses do nosso lado, Maat superará o caos,
como sempre fez antes.
Os recrutas ainda pareciam inquietos, mas se levantaram e começaram a
limpar seus pratos. Carter me deu um olhar mais irritado, e depois entrou.
Esse era seu problema. Eu estava determinada a não me sentir culpada.
Eu não teria arruinado o meu aniversário. Ainda assim, enquanto eu olhava
para o meu chá frio e o não consumido pão de chocolate, tive uma sensação
horrível que eu nunca poderia sentar nessa mesa novamente.
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ter um motivo. Nós não tínhamos um histórico muito bom com aniversá-
rios. Uma das minhas primeiras lembranças era de brigar com Carter no
meu sexto aniversário, e meu bolo explodindo com a energia mágica que
despertou. Talvez, considerando que, eu deveria tê-lo deixado bem o sufici-
ente sozinho. Mas eu não conseguia fazer isso.
— Sinto muito — eu disparei. — Sei que você me culpa por apanhar o
pergaminho na noite passada, e por Jaz se machucar, mas sinto como se eu
estivesse caindo aos pedaços...
— Você não é a única — ele replicou.
Um caroço se formou na minha garganta. Eu estava tão preocupada com
Carter estar ficando furioso comigo, que não tinha prestado atenção em seu
tom. Ele parecia absolutamente miserável.
— O que é isso? — eu perguntei. — O que aconteceu?
Ele limpou as mãos engorduradas em sua calça.
— Ontem no museu... um daqueles espíritos... um deles falou comigo.
Ele me contou sobre seu encontro com o estranho bau em chamas, como
o tempo pareceu abrandar e o bau advertiu Carter que nossa missão seria
um fracasso.
— Ele disse... — a voz de Carter quebrou. — Ele disse que Zia estava dor-
mindo no Local das Areias Vermelhas, o que quer que seja. Ele disse que se
eu não desistir da busca e salvá-la, ela iria morrer.
— Carter — falei cuidadosamente — esse espírito mencionou Zia pelo
nome?
— Bem, não...
— Será que ele quis dizer outra coisa?
— Não, eu tenho certeza. Ele quis dizer Zia.
Tentei morder minha língua. Honestamente, eu mordi. Mas o assunto
de Zia Rashid tornou-se uma obsessão doentia por meu irmão.
— Carter, não quero ser cruel. — falei — Mas nos últimos meses você tem
visto mensagens sobre Zia em toda parte. Duas semanas atrás, você achava
que ela estava enviando uma chamada de socorro em seu purê de batatas.
— Era um Z! Esculpido direto nas batatas!
Eu levantei minhas mãos.
— Tudo bem. E o seu sonho na última noite?
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5. Aprendo a realmente odiar besouros
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modo geral, sendo irritante. Durante a luta na Pirâmide Vermelha, até ex-
perimentei uma mistura perfeita de seus pensamentos e os meus. Eu virei o
que os egípcios chamam de Olho do deus – todo o seu poder a meu co-
mando, nossas memórias se misturando juntas, humano e deus trabalhando
como um. Mas eu ainda estava em meu próprio corpo.
Dessa vez, as coisas se inverteram. Eu era um hóspede no corpo de Hó-
rus, de pé na proa de um barco em um rio mágico que atravessava o Duat.
Minha visão era tão perspicaz quanto à de um falcão. Através do nevoeiro,
eu conseguia ver formas se mexendo na água – costas escamosas de répteis e
barbatanas monstruosas. Vi fantasmas dos mortos flutuando ao longo de
cada margem. Muito acima, o teto da caverna brilhava em um tom de ver-
melho, como se nós estivéssemos navegando na garganta de um animal vivo.
Meus braços eram de bronze e musculosos, circulados com bandas de
ouro de lápis-lazúli. Eu estava vestido para batalha em armadura de couro,
uma lança em uma mão e um khopesh na outra. Eu me sentia forte e pode-
roso como... Bem, um deus.
Olá, Carter, disse Hórus, que parecia falar sozinho.
— Hórus, o que foi?
Eu não disse que estava irritado pela intromissão no meu sono. Não pre-
cisei. Eu estava compartilhando sua mente.
Eu respondi suas perguntas, Hórus falou. Eu te disse onde encontrar o primeiro
rolo. Agora você precisa fazer uma coisa para mim. Tem uma coisa que eu gostaria
de te mostrar.
O barco cambaleou para frente. Eu agarrei o corrimão da plataforma do
navegador. Olhando para trás, poderia ver que o barco foi de um faraó, cerca
de vinte metros de comprimento e formato de uma canoa grande. No meio,
um pavilhão esfarrapado coberto por um estrado vazio onde uma vez talvez
houvesse um trono. Um único mastro detinha uma vela retangular que uma
vez tinha sido decorada, mas agora estava desbotada e pendurada em peda-
ços. À bombordo e à estibordo, conjuntos de remos quebrados pendiam
inutilmente.
O barco deveria estar abandonado por séculos. O cordame estava co-
berto de teias de aranha. As linhas estavam podres. As tábuas do casco ge-
miam e rangiam conforme o barco pegava velocidade.
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O TRONO DE FOGO
Isso é velho, como Rá, Hórus disse. Você quer mesmo colocar o barco novamente
em serviço? Deixe-me mostrar a ameaça que enfrentam.
O leme virou o curso. De repente, nós estávamos correndo rio abaixo.
Eu já havia navegado no Rio da Noite antes, mas dessa vez nós parecíamos
estar indo muito mais profundamente no Duat. O ar estava mais frio, as
corredeiras mais rápidas. Pulamos uma catarata e fomos transportados pelo
ar. Quando descemos de novo, monstros começaram a atacar. Rostos horrí-
veis se levantaram – um dragão marinho com olhos felinos, um crocodilo
com pelos espinhosos, uma serpente com a cabeça de um homem mumifi-
cado. Cada vez que um se erguia, eu levantava minha espada e cortava, ou
espetava-os com minha lança para deixá-los longe do barco. Mas eles conti-
nuavam vindo, mudando de formas, e eu sabia que se eu não fosse Hórus,
o Vingador – se eu fosse apenas Carter Kane tentando lidar com esses hor-
rores – eu iria enlouquecer, ou morrer, ou os dois.
Toda noite, essa era a jornada, Hórus disse. Não era Rá que se defendia das
criaturas do Caos. Nós, outros deuses, que o deixavam a salvo. Nós detivemos Apófis
e seus lacaios.
Nós despencamos sobre outra queda d'água e aterrissamos de frente com
um redemoinho. De alguma forma, conseguimos não virar. O barco saiu da
correnteza e flutuou em direção a margem.
O rio ali era um campo de pedras pretas brilhantes – ou assim eu pensei.
Quando nos aproximamos, eu percebi que eram cascos de besouro – mi-
lhões e milhões de carapaças secas de besouro, estendidas pela escuridão
pelo tanto que eu podia ver. Alguns escaravelhos vivos se mexiam lenta-
mente entre as carapaças vazias, então parecia que toda a paisagem estava
rastejando. Eu nem mesmo vou tentar descrever o cheiro de vários milhões
de escaravelhos mortos.
A prisão da Serpente, Hórus disse.
Procurei na escuridão por uma cela, correntes ou fosso. Tudo que vi foi
um mar sem fim de escaravelhos mortos.
— Onde? — eu perguntei.
Eu estou te mostrando esse lugar de um jeito que você possa entender, Hórus
disse. Se você estivesse aqui em pessoa, se reduziria a cinzas. Se visse esse lugar como
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A escolha deve ser sua, Hórus disse. Acredito em você, Carter Kane. Indepen-
dente do que decidir, eu vou te ajudar. Mas muitos dos outros deuses não sentem o
mesmo. Eles acham que nossas chances podem ser melhores comigo como seu rei e
general, liderando-os na batalha contra a Serpente. Eles veem seu plano de acordar
Rá como tolo e perigoso. É tudo o que posso fazer para evitar uma rebelião. Eu posso
não ser capaz de impedir que te ataquem e tentem te impedir.
— Justo o que precisamos. — falei — De mais inimigos.
Não tem que ser assim, Hórus disse. Agora você viu o inimigo. Quem você acha
que tem chances melhores de enfrentar o Senhor do Caos, Rá ou Hórus?
O barco se afastou da costa escura. Hórus libertou meu ba, e minha cons-
ciência flutuou de volta ao mundo mortal como um balão de hélio. No resto
da noite, eu sonhei com uma paisagem de escaravelhos mortos, e um olho
vermelho brilhante das profundezas de uma prisão enfraquecida.
Se agi um pouco abalado na manhã seguinte, agora você sabe por quê.
Eu perdi muito tempo me perguntando por que Hórus tinha me mos-
trado aquela visão. A resposta era óbvia: Hórus agora era rei dos deuses. Ele
não queria que Rá voltasse para desafiar sua autoridade. Os deuses tendem
a ser egoístas. Mesmo quando são cooperativos, sempre têm seus próprios
motivos. É por isso que você precisa ser cuidadoso ao acreditar neles.
Por outro lado, Hórus tinha um ponto. Rá tinha cinco mil anos de idade.
Ninguém sabia que tipo de forma ele tinha agora. Mesmo se nós conseguís-
semos acordá-lo, não havia garantia de que ele seria de ajuda. Se ele parecesse
tão ruim quanto seu barco, eu não vejo como Rá poderia derrotar Apófis.
Hórus tinha me perguntado quem tinha a melhor chance de enfrentar o
Senhor do Caos. A estranha verdade: quando eu procurei no meu coração,
a resposta era nenhum de nós. Nem os deuses. Nem os magos. Nem mesmo
todos nós trabalhando juntos. Hórus queria ser o rei e liderar os deuses na
batalha, mas seu inimigo era mais poderoso que tudo o que ele tinha enfren-
tado. Apófis era tão antigo quanto o universo, e ele só temia um inimigo:
Rá.
Trazer Rá de volta poderia não funcionar, mas meus instintos me disse-
ram que era nossa única chance. E francamente, o fato de que todo mundo
ficava me dizendo que era uma má ideia – Bastet, Hórus, até Sadie – me
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CARTER
fazia ter mais certeza que era a coisa certa a fazer. Eu sou teimoso desse jeito.
A escolha certa dificilmente é a escolha fácil, meu pai me dizia.
Papai desafiou toda a Casa da Vida. Ele tinha sacrificado sua própria
vida para libertar os deuses porque tinha certeza que era o único jeito de
salvar o mundo. Agora era a minha vez de fazer a escolha difícil.
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O TRONO DE FOGO
Ela estava vestida para viagem. Sobre sua roupa de pele de leopardo
usual, ela usava um casaco preto comprido bordado com hieróglifos de pro-
teção. Quando ela se mexeu, o tecido brilhou, fazendo-a desaparecer de vista.
— Tenha cuidado — eu disse a ela.
Ela sorriu.
— Eu sou uma gata, Carter. Posso cuidar de mim mesma. Estou mais
preocupada com você e Sadie enquanto eu estiver fora. Se sua visão estiver
correta e a prisão de Apófis estiver se quebrando... Bem, eu vou voltar assim
que puder.
Não tinha muito que eu pudesse dizer. Se minha visão estivesse correta,
nós todos estávamos em apuros.
— Posso estar fora de contato por uns dois dias — ela continuou. — Meu
amigo vai chegar aqui antes de você e Sadie partirem em sua missão amanhã.
Ele vai fazer com que os dois fiquem vivos.
— Você não pode pelo menos me dizer o nome dele?
Bastet me deu um olhar divertido, ou nervoso – possivelmente os dois.
— Ele é um pouco difícil de explicar. Acho melhor deixá-lo se apresentar.
Com isso, Bastet me beijou na testa.
— Se cuide, meu filhote.
Eu estava muito surpreso para responder. Eu pensava em Bastet como
protetora de Sadie. Eu era só um tipo de acréscimo. Mas sua voz tinha tanto
carinho que provavelmente corei. Ela correu para a beira do telhado e pulou.
Eu não estava preocupado com ela. Tinha certeza absoluta de que ela
cairia com os pés no chão.
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de educação escolar em casa com meu pai, aprendi com meu próprio ritmo.
Quando eu terminasse meus trabalhos para a satisfação de meu pai, o dia
escolar acabava. Esse sistema funcionava para mim, e os recrutas pareciam
gostar, também.
Eu pensei também que Zia Rashid aprovaria. Na primeira vez que Sadie
e eu treinamos com Zia, ela nos disse que o mago não poderia aprender em
salas de aula e livros. Você tinha que aprender na prática. Então de Resol-
vendo Problemas Mágicos 1, nos dirigimos para a sala de treinamento e ex-
plodimos coisas.
Hoje eu tinha quatro estudantes. O resto dos recrutas estaria fora procu-
rando seus próprios caminhos de magia, praticando encantamentos ou fa-
zendo trabalhos escolares regulares sob supervisão de nossos iniciados de
mais idade. Como nossa principal acompanhante adulta enquanto Amós
estava fora, Bastet tinha insistido em ensinar também as matérias normais
como matemática e leitura, apesar de ela às vezes acrescentar suas próprias
disciplinas seletivas, como Higiene Avançada de Gato ou Cochilo. Havia
uma fila de espera para Cochilo.
Bom, a sala de treinamento toma a maior parte do segundo piso. Era
aproximadamente do tamanho de uma quadra de basquete, que é para o
que a usamos também à noite. Havia um piso de madeira, estátuas de deuses
alinhadas nas paredes, e um teto abobadado com figuras do Egito Antigo
andando de lado, como sempre eram desenhados. Na base das paredes,
prendemos estátuas de cabeça de falcão de Rá perpendiculares no piso, dez
pés acima, e abrimos suas coroas de disco solar de um modo que pudéssemos
usá-las como cestas de basquete. Provavelmente era ofensivo – mas ei, se Rá
não tem senso de humor, era problema dele.
Walt estava esperando por mim, junto de Julian, Felix e Alyssa. Jaz tam-
bém aparecia naquelas sessões, mas é claro que Jaz ainda estava em coma...
e era um problema que nenhum de nós sabia como resolver.
Eu tentei usar minha cara de professor confiante.
— Certo, pessoal, hoje nós vamos tentar algumas simulações de combate.
Vamos começar pelo mais simples.
Eu puxei quatro estatuetas shabti de minha bolsa e coloquei-as em dife-
rentes cantos da sala. Coloquei um recruta em frente de cada uma. Então
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Nada pareceu acontecer com o guerreiro, mas quando ele tornou a ata-
car, Alyssa só ficou ali. Eu estava prestes a gritar para ela, mas o shabti a es-
queceu completamente. A lâmina atingiu o chão, e o guerreiro tropeçou. Ele
atacou novamente, balançando meia dúzia de vezes, mas sua lâmina nunca
atingia Alyssa. Finalmente o guerreiro ficou confuso e cambaleou para o
canto da sala, onde bateu sua cabeça conta a parede e estremeceu até parar.
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O TRONO DE FOGO
Eu corri para ajudar, mas estava muito longe. A mão de Walt já estava
levantada instintivamente para bloquear o golpe. A lâmina de cerâmica en-
cantada era tão afiada quanto um metal de verdade. Machucaria Walt razo-
avelmente, mas ele a agarrou, e o shabti congelou. Debaixo dos dedos de
Walt, a lâmina ficou cinza e cheia de rachaduras. O “cinza” se espalhou
como o gelo por todo o guerreiro, e o shabti se desintegrou em uma pilha de
poeira.
Walt parecia surpreso. Ele abriu a sua mão, que estava perfeitamente
bem.
— Isso foi legal! — Felix disse. — Que amuleto foi esse?
Walt me deu um olhar nervoso, e eu sabia a resposta. Não foi um amu-
leto. Walt não tinha ideia de como fez aquilo.
Aquilo tinha sido agitação demais para um dia. Sério. Mas a bizarrice só
estava começando. Antes que qualquer um de nós pudesse dizer alguma
coisa, o chão sacudiu.
Pensei que talvez a magia de Walt estivesse se espalhando pelo prédio, o
que não era nada bom. Ou talvez alguém embaixo de nós estivesse experi-
mentando explodir maldições burras novamente.
Alyssa gritou.
— Pessoal...
Ela apontou para a estátua de Rá sobressaindo da parede, dez pés acima
de nós. Nossa cesta de basquete divina estava desmoronando.
Primeiro eu não tinha certeza do que estava vendo. A estátua de Rá não
estava virando pó como um shabti. Estava se rompendo, caindo no chão aos
pedaços. Então meu estômago se apertou. As peças não eram de pedra. A
estátua estava virando cascas de escaravelhos.
A última estátua desmoronou, e a pilha de escaravelho começou a se
mexer. Três cabeças de serpente levantaram-se do meio.
Eu não ligo de te falar: entrei em pânico. Pensei na minha visão de Apó-
fis virando realidade bem ali. Eu tropecei para trás, corri para Alyssa. A única
razão para eu não fugir do quarto era porque os quatro recrutas estavam me
olhando procurando segurança.
Não pode ser Apófis, eu disse para mim mesmo.
As cobras emergiram, e eu percebi que não eram três animais diferentes.
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Você vai fazer uma escolha, Carter Kane, a garota ou o deus. Abandone sua
missão tola, ou em breve você vai ser só outra casca seca como os escaravelhos de Rá.
Minha raiva me salvou. Sacudi a paralisia e gritei:
— Matem-no!
Assim que a serpente abriu suas bocas explodindo três colunas de cha-
mas.
Levantei um escudo verde de magia para desviar o fogo. Julian lançou
sua espada como um machado. Alyssa gesticulou com sua mão e três estátuas
de pedra saltaram de seus pedestais, voando para a serpente. Walt disparou
um parafuso de luz cinzenta de sua varinha. E Felix tirou seu sapato es-
querdo e arremessou no monstro.
Nesse momento, era ruim ser uma serpente. A espada de Julian cortou
uma de suas cabeças. O sapato de Felix ricocheteou na outra. A explosão da
varinha de Walt transformou a outra em poeira. Então as estátuas de Alyssa
bateram nele, esmagando o monstro debaixo de uma tonelada de pedra.
O que restou do corpo da serpente se dissolveu em areia.
O quarto ficou quieto de repente. Meus quatro recrutas olharam para
mim. Eu abaixei e peguei uma das carapaças de escaravelhos.
— Carter, isso era parte da lição, certo? — Felix perguntou. — Me diga que
era parte da lição.
Eu pensei na voz da serpente – a mesma voz do bau no Museu do Bro-
oklyn. Percebi porque parecia tão familiar. Eu tinha ouvido durante a bata-
lha na Pirâmide Vermelha.
— Carter? — Felix parecia prestes a chorar.
Ele era um desordeiro, às vezes eu esquecia que ele só tinha nove anos
de idade.
— Sim, só um teste — menti. Eu olhei para Walt, e nós fizemos um acordo
silencioso.
Precisamos falar sobre isso mais tarde. Mas primeiro, tinha alguém para in-
terrogar.
— Classe dispensada.
Eu corri para encontrar Amós.
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6. Uma banheira de pássaros quase me mata
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— A'max.
Queime.
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isso para te desencorajar, mas você perguntou por que Rá queria que paras-
sem de acordá-lo. O Livro de Rá foi dividido por uma razão. Foi feito, inten-
cionalmente, para ser difícil encontrar, então só o merecedor conseguiria.
Você pode esperar desafios e obstáculos em sua missão. Os outros dois rolos
vão ser no mínimo tão protegidos quanto o primeiro. E você pode perguntar
para si mesmo: O que acontece se você acordar um deus que não quer ser
acordado?
As portas da biblioteca foram abertas, e eu quase pulei da minha cadeira.
Cleo e outras três garotas entraram, conversando e rindo com seus braços
cheios de rolos.
— Aqui está minha classe de pesquisa — Amós agitou a mão, e a hologra-
fia de Rá desapareceu. — Nós falaremos novamente, Carter, talvez depois do
almoço.
Eu assenti, mas mesmo assim tinha uma suspeita de que nunca termina-
ríamos nossa conversa. Quando olhei para trás, para a porta da biblioteca,
Amós estava cumprimentando seus estudantes e casualmente limpando as
cinzas da carapaça de escaravelho da mesa.
Eu fui para o meu quarto e encontrei Khufu caído na cama, surfando pelos
canais de esportes. Ele estava vestindo sua camiseta favorita dos Lakers e
tinha uma vasilha de Cheetos sobre seu estômago. Desde que os nossos re-
crutas se mudaram, o Grande Salão ficou muito barulhenta para Khufu ver
TV em paz, então ele decidiu virar meu companheiro de quarto.
Acho que isso foi uma honra, mas dividir espaço com um babuíno não
era fácil. Você acha que cães e gatos soltam pelos? Tente tirar pelo de macaco
de suas roupas.
— O que foi? — perguntei.
— Agh!
Isso é basicamente o que ele sempre diz.
— Ótimo — eu disse a ele. — Vou estar na varanda.
Ainda estava frio e chovendo lá fora. O vento do Rio East faria os pin-
guins de Felix se arrepiarem, mas eu não liguei. Pela primeira vez no dia,
finalmente podia ficar sozinho.
Desde que nossos recrutas vieram para a Mansão do Brooklyn, eu me
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CARTER
que seu antigo professor, Iskandar, tinha colocado ela em um sono mágico
e a escondido em algum lugar, substituindo-a por um shabti para deixá-la a
salvo; mas eu não tinha ideia de onde a Zia verdadeira estava dormindo.
Tentei algo novo. Eu passei minha mão sobre o pires e imaginei o Lugar
de Areias Vermelhas. Nada aconteceu. Eu nunca estivera lá, não tinha ideia
de como parecia além de possivelmente ser vermelho e arenoso. O óleo só
mostrou meu próprio reflexo.
Certo, então eu não podia ver Zia. Eu fiz a melhor coisa depois. Me con-
centrei em sua sala secreta no Primeiro Nomo. Eu estive lá só uma vez, mas
lembrava cada detalhe. Foi o primeiro lugar onde eu me senti próximo de
Zia. A superfície do óleo ondulou e virou um vídeo mágico.
Nada tinha mudado na sala. Velas mágicas ainda queimavam na mesa
pequena. As paredes estavam cobertas de fotografias de Zia – fotos da vila,
de sua família no Nilo, sua mãe e seu pai, Zia como uma criança pequena.
Zia havia me contado a história de como seu pai tinha desenterrado uma
relíquia egípcia e acidentalmente soltou um monstro na vila. Magos vieram
derrotar o monstro, mas não antes da cidade inteira ser destruída. Só Zia,
escondida por seus pais, tinha sobrevivido. Iskandar, o antigo Sacerdote-Lei-
tor Chefe, levou-a para o Primeiro Nomo e a treinou. Ele era como um pai
para ela.
Então, no último Natal, os deuses foram soltos no Museu Britânico. Um
deles – Néftis – havia escolhido Zia como hospedeira. Já que um “deus me-
nor” era punido por morte no Primeiro Nomo, quer você hospede o espírito
do deus ou não, Iskandar escondeu Zia longe. Ele provavelmente a traria de
volta depois de resolver as coisas, mas havia morrido antes de isso acontecer.
A Zia que eu havia conhecido era uma réplica, mas eu tinha que acreditar
que o shabti e a Zia verdadeira compartilhavam pensamentos. Onde quer
que a verdadeira Zia estivesse, ela se lembraria de mim quando acordasse.
Ela saberia que nós compartilhávamos uma conexão – talvez o começo de
uma grande relação. Eu não podia aceitar que eu havia me apaixonado por
nada mais que um pedaço de cerâmica. E definitivamente não podia aceitar
que Zia estava além do meu poder de resgate.
Me concentrei na imagem no óleo. Ampliei uma fotografia de Zia nos
ombros de seu pai. Ela era jovem na foto, mas você podia dizer que ela seria
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bonita quando crescesse. Seu cabelo preto brilhante estava cortado curto,
como quando eu a conheci. Seus olhos eram âmbar brilhantes. O fotógrafo
a pegou no meio da risada, tentando cobrir os olhos de seu pai com suas
mãos. Seu sorriso irradiava uma travessura brincalhona.
Eu vou destruir a garota que você procura, a cobra de três cabeças disse, assim
como destruí sua vila.
Eu tinha certeza de que ele falava da vila de Zia. Mas o que um ataque
de seis anos atrás tinha a ver com a ascensão de Apófis agora? Se não foi só
um acidente qualquer, se Apófis quis destruir a casa de Zia, então por quê?
Eu tinha que encontrar Zia. Não era mais pessoal. Ela estava conectada
de algum jeito com a batalha que estava vindo com Apófis. E se o aviso da
cobra fosse verdade, se eu tivesse que escolher entre encontrar o Livro de Rá
ou salvar Zia? Bem, eu já tinha perdido minha mãe, meu pai, e minha antiga
vida pelo objetivo de parar Apófis. Eu não iria perder Zia também.
Estava pensando o quão forte Sadie me chutaria se ela me ouvisse di-
zendo isso, quando alguém bateu na porta da varanda de vidro.
— Ei.
Walt estava no vão da porta, segurando a mão de Khufu.
— Hã, espero que você não ligue. Khufu me deixou entrar.
— Agh! — Khufu confirmou.
Ele levou Walt para fora, então pulou da grade, desconsiderando a queda
de cem pés no rio abaixo.
— Sem problemas — respondi.
Não que eu tivesse escolha. Khufu adorava Walt, provavelmente porque
jogava basquete melhor que eu.
Walt apontou para a tigela de cristalomancia.
— Como isso está funcionando pra você?
A imagem do quarto de Zia ainda tremeluzia no óleo. Eu acenei minha
mão sobre a tigela e mudei para outra coisa. Desde que estive pensando so-
bre Sadie, eu escolhi a sala do vovô e dá vovó.
— Funcionando bem.
Me virei para Walt.
— Como você se sente?
Por alguma razão, todo o seu corpo ficou tenso. Ele olhou para mim
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7. Um presente do garoto com cabeça de
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cachorro
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e de couro, com unhas grandes como garras de uma ave. Quando a mulher
desceu o suficiente para mostrar seu corpo inteiro, soltei um gemido in-
digno.
Ela parecia ter cem anos, encurvada e magra. Seu rosto, orelhas e pescoço
vergavam com pele rosada enrugada e dobrada, como se ela tivesse se fun-
dido com uma lâmpada ultravioleta. Seu nariz era um bico inclinado. Seus
olhos brilhavam em órbitas cavernosas, e ela estava quase careca – só alguns
tufos pretos oleosos como ervas daninhas nasciam por seu couro cabeludo.
Seu vestido, no entanto, era absolutamente feito de pelos. Era meio es-
curo, peludo, e enorme como um casaco de pele seis vezes maior que ela.
Quando ela deu um passo em minha direção, o material mudou, e eu per-
cebi que não era pelo. O vestido era feito de penas pretas.
Suas mãos apareciam sob suas mangas – dedos parecidos com garras me
chamando para perto. Seu sorriso revelou dentes como pedaços de vidro.
Eu mencionei o cheiro? Não só cheiro de pessoa velha – era cheiro de pessoa
velha morta.
— Estive esperando por você — disse a bruxa. — Felizmente, sou muito
paciente.
Agarrei o ar à procura de minha varinha. Claro, eu não tive sorte. Sem
Ísis na minha cabeça, eu não podia mais simplesmente falar palavras de po-
der. Eu teria que ter meus truques. Minha única chance era ganhar tempo e
esperar poder reunir meus pensamentos o bastante pra acessar o Duat.
— Quem é você? — perguntei. — Cadê meus avós?
A bruxa alcançou o pé da escada. A dois metros de distância, seu vestido
emplumado parecia estar coberto com pedaços de... ah, meu Deus, aquilo
era carne?
— Não me reconhece, querida?
Sua imagem tremulou. Seu vestido se transformou em um roupão flo-
rido. Suas sandálias viraram chinelos verdes distorcidos. Ela tinha cabelo
curto grisalho, olhos azuis lacrimosos, e uma expressão de um coelho assus-
tado. Era o rosto da minha avó.
— Sadie? — Sua voz soava frágil e confusa.
— Vovó!
Sua imagem voltou para a bruxa emplumada de preto, seu terrível rosto
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Fui para o outro lado da rua quando nossa porta da frente explodiu.
Olhando para trás, vi alguma coisa emergir das ruínas e poeira – uma forma
escura peluda grande demais para ser meu avô.
Eu não esperei para ter uma visão melhor.
Corri ao virar a esquina da South Colonnade e dei de cara com Liz e
Emma.
— Sadie! — Liz gritou, derrubando um presente de aniversário. — O que
há de errado?
— Não temos tempo para isso! — fale — Vamos!
— É bom ver você também. — Emma resmungou. — Para onde você está
correndo...
A criatura atrás de mim berrou, muito próxima agora.
— Explico depois — respondi. — A não ser que vocês queiram ser rasgadas
por um deus chamado Bobby, me sigam!
Olhando para trás, pude apreciar apenas o miserável aniversário que eu es-
tava tendo, mas naquela hora estava muito em pânico para sentir pena de
mim mesma devidamente.
Corremos pela South Colonnade, o rugido atrás de nós quase abafado
pelas reclamações de Liz e Emma.
— Sadie! — Emma disse. — Essa é uma das suas pegadinhas?
Ela tinha ficado um pouco mais alta, mas ainda parecia a mesma, com
seu tamanho desproporcional, óculos reluzentes e cabelo curto espetado. Ela
vestia uma minissaia de couro preta, uma blusa rosa e ridículas sandálias de
plataforma em que ela mal conseguia andar, muito menos correr. Quem é
aquele cara do rock ’n’ roll extravagante dos anos 70... Elton John? Se ele
tivesse uma filha indiana, deveria ser parecida com Emma.
— Não é uma pegadinha — jurei. — E pelo amor de Deus, joga esses sapa-
tos fora!
Emma parecia assustada.
— Você sabe quanto isso custou?
— Honestamente, Sadie — Liz interveio. — Para onde você está nos arras-
tando?
Ela estava vestida mais sensatamente com jeans e tênis de corrida, um
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O TRONO DE FOGO
top branco e jaqueta de brim, mas parecia tão sem fôlego quanto Emma.
Escondido debaixo de seu braço, meu presente de aniversário estava ficando
um pouco achatado. Liz era ruiva com muitas sardas, e quando ficava com
vergonha ou cansada, seu rosto pálido ficava tão vermelho, que suas sardas
desapareciam. Sob circunstâncias normais, Emma e eu teríamos provocado
ela por isso, mas não hoje.
Atrás de nós, a criatura rugiu novamente. Eu olhei para trás, o que foi
um erro. Vacilei até parar, e minhas amigas correram até mim.
Por um breve momento, pensei “meu Deus, é Khufu”.
Mas Khufu não era do tamanho de um urso-pardo. Ele não tinha pelo
prateado brilhante, garras como cimitarras ou um olhar sedento de sangue.
O babuíno devastava o Canary Wharf parecendo que comeria qualquer
coisa, não só comidas terminadas com um O, e não teria dificuldade em me
rasgar membro a membro.
A única boa notícia: a atividade na rua havia distraído ele. Carros desvi-
avam para evitar a besta. Pedestres gritavam e corriam. O babuíno começou
a derrubar táxis, esmagar vitrines, e causar um tumulto geral. Assim que se
aproximou de nós, vi um pedaço de pano vermelho em seu braço esquerdo
– as sobras do casaco de lã favorito do vovô. Preso em sua testa estavam os
óculos do vovô.
Até aquele momento, o choque não havia me atingido em cheio. Aquela
coisa era meu avô, que nunca tinha usado magia, nunca fez nada para irritar
os deuses egípcios.
Tinha vezes que eu não gostava dos meus avós, especialmente quando
eles diziam coisas ruins sobre meu pai, ou ignoravam Carter, ou quando
deixaram Amós me levar embora no Natal sem uma luta. Mas ainda assim,
eles me criaram por seis anos. Vovô tinha me colocado em seu colo e lido
para mim suas histórias velhas e empoeiradas de criança. Tinha me vigiado
no parque e me levou ao zoológico inúmeras vezes. Tinha me comprado
doces, embora vovó desaprovasse. Ele pode ter tido um temperamento ruim,
mas era razoavelmente um velho aposentado inofensivo. Ele certamente não
merecia ter seu corpo possuído desse jeito.
O babuíno arrancou a porta de um bar e cheirou lá dentro. Fregueses
bêbados em pânico quebraram uma janela e saíram correndo pela rua, ainda
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SADIE
Nós ziguezagueamos pelos becos, abraçando paredes para nos cobrir sempre
que o vulto da deusa mergulhava do alto. Ouvi Babi rugindo atrás de nós,
arruinando as noites das pessoas e esmagando a vizinhança; mas ele parecia
ter perdido nosso cheiro no momento.
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O TRONO DE FOGO
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O TRONO DE FOGO
— O quê?
— Nada. Continue.
— Posso me manifestar em lugares de morte, como esse cemitério, mas
há muito pouco que eu possa fazer fora do meu território. Agora, se você já
estiver morta e quiser um bom funeral, posso te ajudar, mas...
— Oh, obrigada!
Em algum lugar próximo, o deus babuíno rugiu. Vidros quebraram e
tijolos desmoronaram. Minhas amigas gritaram para mim, mas os sons eram
distorcidos e abafados, como se estivesse ouvindo debaixo d’água.
— Se eu for sem minhas amigas — perguntei para Anúbis — os deuses vão
deixá-las em paz?
Anúbis sacudiu a cabeça.
— Nekhbet ataca os fracos. Ela sabe que machucar seus amigos vai te
enfraquecer. Quanto a Babi, ele representa as qualidades escuras de vocês
primatas: fúria assassina, força incontrolável...
— Nós primatas? — eu disse. — Desculpa, você me chamou de uma ba-
buína?
Anúbis me estudou com uma espécie de admiração confusa.
— Eu esqueci do quão irritante você é. Meu ponto é que ele vai te matar
só por matar.
— E você não pode me ajudar.
Ele me deu um olhar choroso com aqueles magníficos olhos castanhos.
— Eu te disse sobre São Petersburgo.
Deus, ele tinha uma boa aparência, e era tão irritante.
— Bem, então, deus de praticamente nada de útil — eu disse — qualquer
outra coisa antes de eu me matar?
Ele levantou sua mão. Um estranho tipo de faca se materializou em seu
punho. Tinha a forma de uma navalha: longa, curvada e perversamente afi-
ada ao longo da extremidade, feita de metal escuro.
— Pegue isso — Anúbis falou. — Vai ajudar.
— Você viu o tamanho do babuíno? Eu tenho que fazer a barba dele?
— Não é para a luta com Babi ou Nekhbet. Mas você vai precisar disso
em breve para alguma coisa ainda mais importante. É uma lâmina netjeri,
feito de ferro de meteoro. É usado para uma cerimônia que eu te disse uma
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SADIE
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O TRONO DE FOGO
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S
A
8. Grandes atrasos na estação de Waterloo
D
(desculpem-nos pelo babuíno gigante)
I
E
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O TRONO DE FOGO
— Sadie Kane — Emma ofegou. — Você vai, por favor, nos dizer o que está
acontecendo?
Minhas pobres amigas. Eu nunca tinha colocado-as em tantos proble-
mas, nem mesmo quando ficamos presas no vestiário masculino na escola.
(Longa história, envolvendo uma aposta de cinco libras, cuecas de Dylan
Quinn, e um esquilo. Talvez eu te conte mais tarde).
Os pés de Emma estavam com cortes e cheios de bolhas por correr des-
calça. Seu suéter rosa parecia uma pele de poodle mutilada, e seus óculos
haviam perdido várias lantejoulas.
O rosto de Liz estava vermelho como se houvesse recebido um cartão de
dia dos namorados. Ela tinha tirado sua jaqueta jeans, o que nunca fazia, já
que ela estava sempre com frio. Seu top branco estava manchado de suor.
Seus braços eram tão sardentos, que me lembrou das constelações de Nut,
deusa do céu.
Das duas, Emma parecia mais irritada, esperando pela minha explicação.
Liz parecia horrorizada, sua boca se movia como se quisesse falar, mas tivesse
perdido suas cordas vocais. Eu pensei que ela faria algum comentário sobre
os malditos deuses nos perseguindo, mas quando ela finalmente encontrou
sua voz, ela disse:
— Aquele garoto te beijou!
Liz tem suas prioridades bem definidas.
— Eu vou explicar — prometi. — Sei que fui uma amiga horrível por arras-
tar vocês duas para isso. Mas, por favor, me deem um minuto. Preciso me
concentrar.
— Concentrar-se em quê? — Emma perguntou.
— Emma, silêncio! — Liz censurou. — Ela disse para deixá-la se concentrar.
Fechei os olhos, tentando acalmar os meus nervos. Não foi fácil, especi-
almente com público. Sem o meu material, no entanto, eu estava indefesa,
e não era provável que eu tivesse outra chance de recuperá-los. Pensei: Você
pode fazer isso, Sadie. É só alcançar a outra dimensão. Só abrir um rasgo no tecido
da realidade.
Estendi a mão. Nada aconteceu. Tentei de novo, e minha mão desapare-
ceu no Duat. Liz gritou. Felizmente, não perdi minha concentração (ou mi-
nha mão). Meus dedos se fecharam em torno da alça de minha bolsa mágica
104
SADIE
e puxei-a.
Emma arregalou os olhos.
— Isso foi incrível. Como você fez isso?
Fiquei me perguntando a mesma coisa, na verdade. Dadas as circunstân-
cias, eu não podia acreditar que tinha conseguido apenas em minha segunda
tentativa.
— É, hum... magia — respondi.
Minhas colegas me encararam, confusas e assustadas, e a enormidade dos
meus problemas de repente desabou sobre mim.
Um ano atrás, Liz, Emma e eu teríamos subido neste trem para ir ao
shopping ou ao cinema. Nós teríamos rido dos ridículos toques do telefone
da Liz ou das fotos editadas das meninas que Emma detestava na escola. As
coisas mais perigosas na minha vida tinham sido a culinária da vovó e o
temperamento do vovô quando via minhas notas do trimestre.
Agora, vovô era um babuíno gigante e vovó era um abutre do mal. Mi-
nhas amigas me olhavam como se eu tivesse caído de outro planeta, o que
não estava longe da verdade.
Mesmo com o meu material mágico na mão, eu não tinha ideia do que
ia fazer. Eu não tinha mais os plenos poderes de Ísis ao meu comando. Se
tentasse lutar com Babi e Nekhbet, eu poderia ferir meus avós e provavel-
mente me matar. Mas se eu não impedi-los, quem o faria? Possessão divina
eventualmente mata o hospedeiro humano. Isso quase aconteceu com o tio
Amós, que era um mago e sabia como se defender. Vovó e Vovô eram ido-
sos, frágeis e muito “não-mágicos”. Eles não tinham muito tempo.
Desespero, muito pior do que as asas da deusa abutre, despencou sobre
mim. Eu não sabia que estava chorando até Liz colocar a mão no meu om-
bro.
— Sadie, querida, desculpa. É apenas... um pouco estranho, sabe? Diga-
nos qual é o problema. Deixe-nos ajudar.
Minha respiração estava instável. Eu sentia tanta falta das minhas cole-
gas. Eu sempre as achei um pouco estranhas, mas agora elas pareciam alegres
e normais, parte de um mundo que não era mais meu. Ambas estavam ten-
tando bancar as corajosas, mas eu sabia que elas estavam apavoradas por
dentro. Eu gostaria de deixá-las, escondê-las, mantê-las fora de perigo, mas
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O TRONO DE FOGO
me lembrei do que tinha dito Nekhbet: Elas vão se tornar aperitivos encantado-
res. Anúbis tinha advertido que a deusa abutre ia caçar as minhas amigas e
machucá-las apenas para me atingir. Pelo menos se elas estivessem comigo,
eu poderia tentar protegê-las. Eu não queria arruinar suas vidas do jeito que
a minha foi arruinada, mas eu devia a elas a verdade.
— Isso pode soar absolutamente maluco — avisei.
Eu contei-lhes a versão mais curta possível de porque eu deixei Londres,
como os deuses egípcios tinham escapado no mundo e como eu descobri
minha ascendência como uma maga. Eu disse a elas sobre a nossa luta com
Set, a ascensão de Apófis, e nossa ideia insana para despertar o deus Rá.
Duas estações passaram, mas eu me senti tão bem ao contar a história às
minhas amigas que perdi a noção do tempo.
Quando eu terminei, Liz e Emma se entreolharam, sem dúvida, procu-
rando como dizer delicadamente que eu estava maluca.
— Eu sei que parece impossível, mas...
— Sadie, acreditamos em você — disse Emma.
Eu pisquei incrédula.
— Acreditam?
— Claro que sim.
O rosto de Liz estava corado, do jeito que ela fica depois de vários pas-
seios de montanha russa.
— Eu nunca ouvi você falar sobre qualquer coisa tão a sério. Você... você
mudou.
— É só que eu sou uma maga agora, e... e eu não posso acreditar no
quanto isso soa estúpido.
— É mais do que isso — Emma estudava meu rosto como se eu estivesse
me transformando em algo assustador — você parece mais velha. Mais ma-
dura.
A voz dela estava com um toque de tristeza, e eu percebi que minhas
amigas e eu estávamos nos distanciando. Era como se nós estivéssemos em
lados opostos de um largo abismo, e eu tinha a triste certeza de que a fenda
estava grande demais para que eu pulasse para o outro lado.
— Seu namorado é maravilhoso — Liz acrescentou, provavelmente pra me
animar.
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SADIE
Devo descrever a Estação de Waterloo como ela era antes ou depois de des-
truirmos ela? O pátio principal era enorme, tinha um piso de mármore po-
lido, várias lojas, quiosques e um teto de vidro com vigas que era alto o sufi-
ciente para que um helicóptero voasse tranquilamente sob ele.
Rios de pessoas entravam e saiam, misturavam-se, separavam-se e ocasio-
nalmente colidiam enquanto iam em direção as diversas escadas rolantes e
plataformas.
Quando eu era pequena, a estação me apavorava. Eu temia que o gigante
relógio vitoriano suspenso no teto caísse e me esmagasse. As vozes dos locu-
tores eram muito altas (eu prefiro ser a coisa mais barulhenta no ambiente
em que estou, obrigada). As massas de trabalhadores embaixo das tabuas de
partida, procurando por seus trens me lembravam uma multidão em um
filme de zumbi que, eu admito, não devia ter assistido ainda criança, mas eu
sempre fui muito precoce.
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— Ísis foi tola ao escolher você — Nekhbet gritou — eu vou comer suas
entranhas!
ROOOAR!, concordou Babi vigorosamente.
— O trem das 8:14 para Brighton está atrasado — disse o locutor — Nós pedi-
mos desculpas pela inconveniência.
Babi nos viu. Seus olhos ardiam em uma fúria primitiva, mas eu também
vi algo do vovô em sua expressão. O jeito que ele enrugou as sobrancelhas e
projetou o queixo do mesmo jeito que o vovô fazia quando ficava zangado
com a televisão e gritava com os jogadores de rúgbi. Ver essa expressão no
deus babuíno quase me fez perder a coragem.
Eu não iria morrer aqui. Não iria deixar esses dois deuses repulsivos ma-
chucarem minhas amigas e matarem meus avós.
Babi veio devagar em nossa direção. Agora que ele nos achara, não tinha
nenhuma pressa em nos matar. Ele deu um profundo latido da esquerda
para a direita, como se estivesse convidando, chamando amigos para o jan-
tar. Emma cravou os dedos em meu braço e Liz sussurrou:
— Sadie...?
A multidão já tinha se dispersado quase completamente. Nenhum poli-
cial a vista. Talvez tenham fugido ou talvez estivessem todos indo para Ca-
nary Wharf sem perceber que o problema estava aqui agora.
— Nós não vamos morrer — prometi às minhas colegas — Emma, segure
meu cajado.
— Seu... ah, certo!
Ela pegou o cajado cautelosamente como se eu a tivesse dado um lança-
foguetes, o que eu suponho que poderia ser com a magia adequada.
— Liz — ordenei — fique de olho no babuíno.
— Vigiando o babuíno — ela disse. — Meio difícil perder isso de vista.
Eu vasculhei minha bolsa mágica, fazendo um inventário desesperado.
Varinha... Boa para defesa, mas para dois deuses de uma vez eu precisava de
algo melhor. Filhos de Hórus e um giz mágico... esse não era o melhor lugar
para desenhar um círculo de proteção. Eu tinha que chegar até a ponte.
Precisava arrumar tempo pra sair do terminal.
— Sadie... — Liz avisou.
Babi pulou no telhado de uma loja de produtos de beleza. Ele rugiu e
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O TRONO DE FOGO
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SADIE
Uma oscilante luz dourada ondulou pelo pátio. A tropa de babuínos he-
sitou. Babi tropeçou no telhado da loja. Até Nekhbet piou e hesitou sobre
as vigas do teto.
Por toda estação, objetos inanimados começaram a se mover. Mochilas
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O TRONO DE FOGO
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SADIE
Ele tinha metade do meu tamanho, era mais robusto que meu tio Amós
e mais feio que qualquer um na Terra. Seu rosto parecia o de um Neander-
tal. Abaixo de sua única sobrancelha, havia um olho maior que o outro.
Parecia que sua barba havia sido usada para limpar panelas engorduradas.
Sua pele estava cheia de espinhas e verrugas, seu cabelo parecia um ninho
de pássaros que fora queimado e então pisoteado.
Quando ele me viu, franziu a testa, o que não ajudou a melhorar sua
aparência.
— Bem a tempo.
Seu sotaque era americano. Ele cuspiu em seu punho, e o cheiro de curry
quase me fez desmaiar.
— A amiga de Bastet? Sadie Kane?
— Hum... Possivelmente.
Decidi ter uma conversa séria com Bastet sobre seu círculo de amizades.
— A propósito, há dois deuses tentando nos matar.
O homenzinho verruguento estalou os lábios, claramente não estava im-
pressionado.
— Imagino que você queira chegar a uma ponte, então.
Ele se virou para o meio-fio e gritou:
— BOO!
Uma limusine Mercedes preta surgiu do nada.
O chofer olhou para trás e arqueou a sua sobrancelha.
— Bem, entrem!
Eu nunca estive um uma limusine antes. Espero que a maioria delas seja
melhor que a nossa. O banco de trás estava repleto de recipientes de curry,
papéis velhos, sacos de batatas fritas e várias meias sujas. Mesmo assim,
Emma, Liz e eu nos amontoamos no lado de trás, já que nenhuma se atreveu
a ir na frente.
Você pode pensar que eu estava louca por entrar num carro com um
homem estranho. Você está certo, é claro. Mas Bastet me prometeu ajuda e
Anúbis me disse para esperar meu motorista. O fato de que nossa ajuda era
um baixinho de higiene ruim e com uma limusine mágica não foi muito
surpreendente. Eu já vi coisas mais estranhas.
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O TRONO DE FOGO
Além do mais, eu não tinha muita escolha. O efeito da poção havia pas-
sado, e o esforço de usar tanta magia me deixou enjoada e de pernas bambas.
Eu não tinha certeza se poderia ir andando até a Ponte de Waterloo sem
desmaiar.
O chofer pisou fundo e saímos da estação. A polícia a havia cercado, mas
nossa limusine passou pelas barricadas, um grupo de vans de canais de notí-
cias, uma multidão de espectadores e ninguém prestou nenhuma atenção
em nós.
O chofer começou a assobiar uma melodia que parecia com a de Short
People. Sua cabeça mal chegava ao apoio de cabeça do banco. Tudo o que eu
podia ver dele era um ninho de cabelo sujo e um conjunto de mãos peludas
no volante.
Preso no quebra-sol estava um cartão de identificação com sua imagem...
ou algo parecido. Ela havia sido tirada de qualquer jeito, mostrando apenas
um nariz fora-de-foco e uma boca horrível, como se ele tivesse tentado comer
a câmera. O cartão dizia: Seu motorista é BES.
— Você é Bes, posso supor — falei.
— Sim — disse ele.
— Seu carro tem um fedor — murmurou Liz.
— Eu vou vomitar — Emma resmungou.
— É Sr. Bes? — perguntei, tentando colocar o seu nome da mitologia egíp-
cia.
Eu tinha quase certeza de que não tinha um deus dos motoristas.
— Lorde Bes? Bes, o Extremamente Baixo?
— Só Bes — ele resmungou. — Com um s. E não, esse NÃO é um nome
feminino. Chame-me de Bessie, e eu vou ter que matar vocês. Quanto a ser
pequeno, eu sou o deus anão, então o que você esperava? Oh, há uma garrafa
d’agua lá atrás se você estiver com sede.
Olhei para baixo. Rolando sobre os meus pés estavam duas garrafas par-
cialmente vazias de água. Uma delas tinha batom na tampa. A outra parecia
que tinha sido mastigada.
— Não estou com sede — decidi.
Liz e Emma murmuraram em acordo. Fiquei surpresa, elas não estavam
absolutamente catatônicas após os eventos da noite, mas, novamente, elas
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SADIE
eram minhas colegas. Eu não saio com meninas de vontade fraca, saio?
Mesmo antes de eu descobrir a magia, era necessária uma constituição forte
e uma quantidade razoável de adaptação para ser minha amiga. [Nem uma
palavra, Carter.]
Veículos da polícia estavam bloqueando a Ponte de Waterloo, mas Bes
desviou deles, pulou no pavimento e continuou dirigindo. A polícia nem
piscou.
— Estamos invisíveis? — perguntei.
— Para a maioria dos mortais — Bes arrotou. — Eles são muito estúpidos,
não são? Exceto a companhia presente e etc.
— Você é realmente um deus? — Liz perguntou.
— Enorme — disse Bes. — Sou enorme no mundo dos deuses.
— Um enorme deus dos anões — Emma ficou admirada. — Você quer
dizer como na Branca de Neve, ou...
— Todos os anões.
Bes acenou com a mão efusivamente, o que me deixou um pouco ner-
vosa.
— Egípcios eram inteligentes. Eles honravam pessoas que nasciam inco-
muns. Anões eram considerados extremamente mágicos. Então sim, eu sou
o deus dos anões.
Liz limpou a garganta.
— Não há um termo mais educado que é suposto que se use hoje em dia?
Como... pessoa pequena, verticalmente deficiente ou...
— Eu não vou chamar a mim mesmo de o deus das pessoas verticalmente
deficientes — resmungou Bes. — Eu sou um anão! Agora, aqui estamos nós,
na hora certa.
Ele virou o carro em uma parada no meio da ponte. Olhando para trás,
quase perdi o conteúdo de meu estômago. Uma forma de asas negras estava
sobrevoando o rio. No final da ponte, Babi estava cuidando da barricada do
seu próprio modo. Ele estava jogando carros da polícia no Rio Tâmisa, en-
quanto os oficiais se dispersavam e disparavam suas armas, embora as balas
parecessem não ter efeito sobre o pelo de aço do deus babuíno.
— Por que paramos? — Emma perguntou.
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O TRONO DE FOGO
Bes levantou-se no seu assento e esticou-se, o que ele podia fazer facil-
mente.
— É um rio — disse ele. — Bom local para combater os deuses. Toda a
força da natureza que corre sob os nossos pés torna difícil ficar ancorados
no mundo mortal.
Olhando mais de perto, pude ver o que ele queria dizer. Seu rosto estava
brilhando como uma miragem.
Um caroço se formou na minha garganta. Este era o momento da ver-
dade. Eu me senti mal por causa da poção e do medo. Não tinha certeza se
eu tinha magia suficiente para combater esses dois deuses. Mas eu não tinha
escolha.
— Liz, Emma — eu disse. — Nós estamos saindo.
— Sa...indo? — Liz choramingou.
Emma engoliu a seco.
— Tem certeza?
— Eu sei que vocês estão com medo, mas precisam fazer exatamente o
que eu digo.
Elas acenaram hesitantes e abriram as portas do carro. Coitadas. Mais
uma vez eu gostaria de tê-las deixado para trás, mas, honestamente, depois
de ver os meus avós sendo possuídos, eu não podia suportar a ideia de deixar
as minhas amigas fora da minha vista.
Bes reprimiu um bocejo.
— Precisa da minha ajuda?
— Hum...
Babi estava cambaleando em nossa direção. Nekhbet descrevia círculos
em cima dele, gritando ordens. Se o rio estava lhes afetando, eles não mos-
tram isso.
Eu não vejo como um deus anão poderia ficar contra os dois, mas eu
disse:
— Sim. Preciso de ajuda.
— Certo. — Bes estalou seus dedos. — Então saia.
— O quê?
— Eu não posso trocar de roupa com você no carro, posso? Eu tenho que
colocar minha roupa feia.
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SADIE
— Roupa feia?
— Vão! — O anão ordenou. — Eu sairei em um minuto.
Não precisou de muito estímulo. Nenhuma de nós queria ver mais de
Bes do que o necessário. Saímos, e Bes fechou as portas atrás de nós. A pelí-
cula das janelas era muito escura, então eu não podia ver o que acontecia
dentro do carro, mas aposto que Bes deveria estar relaxando e ouvindo mú-
sica enquanto nós éramos massacradas. Eu certamente não tinha muita es-
perança que mudar de roupa fosse ajudar para derrotar Nekhbet e Babi.
Olhei para minhas companheiras assustadas, então os dois deuses inves-
tiram em nossa direção.
— Nós vamos fazer a nossa resistência final aqui.
— Oh, não, não — disse Liz. — Eu realmente não gosto do termo “resis-
tência final”.
Eu vasculhei minha bolsa e tirei um pedaço de giz e as estátuas dos qua-
tro Filhos de Hórus.
— Liz, ponha as estátuas nos pontos cardeais Norte, Sul, e assim por di-
ante. Emma pegue o giz. Desenhe um círculo conectando as estátuas. Temos
apenas alguns segundos.
Eu troquei o giz pelo meu cajado, então tive uma sensação horrível de
déjà vu. Eu tinha acabado de dar ordens para minhas amigas agirem, exata-
mente como Zia Rashid tinha me ordenado na primeira vez que tínhamos
enfrentado um deus inimigo juntas. Eu não queria ser como Zia. Por outro
lado, percebi pela primeira vez, quanta coragem ela deve ter tido para en-
frentar uma deusa protegendo ao mesmo tempo dois completos novatos. Eu
odeio dizer isso, mas me deu um novo respeito por ela. Queria ter sua cora-
gem.
Eu levantei meu cajado e minha varinha e tentei me concentrar. O
tempo pareceu desacelerar. Estendi meus sentidos até que eu estava consci-
ente de tudo ao meu redor. Emma rabiscando com giz para terminar o cír-
culo, o coração de Liz batendo muito rápido, os maciços pés de Babi batendo
na ponte enquanto corria em direção a nós, o Tâmisa fluindo debaixo da
ponte, e as correntes do Duat fluindo ao meu redor poderosamente.
Bastet me disse uma vez que o Duat era como um oceano de magia sob
a superfície do mundo mortal. Se isso era verdade, então este lugar – uma
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O TRONO DE FOGO
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soprou as penas Nekhbet e drenou toda a cor de seu rosto. Ele arrancou a
essência da deusa como papel de seda em uma tempestade. A única coisa
que sobrou foi uma mulher velha tonta em um vestido estampado de flores,
de cócoras sobre o poste.
— Oh, querida... — Vovó desmaiou.
Bes pulou e a pegou antes que ela pudesse cair no rio. O rosto do anão
voltou ao normal – bem, pelo menos seu nível normal de feiura – quando
ele deitou a vovó na calçada ao lado do vovô.
— Obrigada — agradeci a Bes. — Agora, por favor você poderia colocar
uma roupa?
Ele me deu um sorriso cheio de dentes, eu poderia viver sem isso.
— Está tudo bem, Sadie Kane. Vejo porque Bastet gosta de você.
— Sadie? — Meu avô gemeu, as suas pálpebras abertas tremulando.
— Estou aqui, vovô. — Acariciei sua testa. — Como você se sente?
— Com um estranho desejo de comer mangas. — Ele ficou vesgo. — E,
possivelmente, insetos. Você... que nos salvou?
— Não realmente — admiti. — Meu amigo aqui...
— Certamente ela te salvou — disse Bes. — Menina corajosa que é esta
aqui. Uma ótima maga.
Vovô focou-se em Bes e fez uma careta.
— Malditos deuses egípcios em suas malditas roupas de banho revelado-
ras demais. É por isso que não fazemos magia.
Eu suspirei de alívio. Depois que vovô começou a reclamar, eu sabia que
ia dar tudo certo. Vovó ainda estava desmaiada, mas a respiração dela pare-
cia estável. A cor foi voltando ao seu rosto.
— Nós devemos ir — Bes falou. — Os mortais estão prontos para invadir
a ponte.
Olhei para as barricadas e vi o que ele quis dizer. Uma equipe estava
reunida – homens armados com fuzis, lança-granadas e provavelmente mui-
tos outros brinquedos divertidos que poderiam nos matar.
— Liz, Emma! — chamei. — Ajudem-me com os meus avós.
Minhas amigas correram e começaram a ajudar vovô a sentar, mas Bes
disse:
— Eles não podem vir.
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C
A
9. Fazemos um passeio com o deficiente
R
vertical pela Rússia
T
E
R
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CARTER
magia.
— Você foi ótima — eu disse a ela.
Sadie olhou ressentidamente para a faca negra em seu colo – a lâmina
cerimonial que Anúbis tinha dado a ela.
— Eu estaria morta se não fosse por Bes.
— Que nada — disse Bes. — Bem, certo, você provavelmente estaria. Mas
você teria morrido em grande estilo.
Sadie virou a estranha faca negra como se pudesse encontrar instruções
escritas nela.
— É uma netjeri — falei. — Uma lâmina de serpente. Sacerdotes a usavam
para...
— A cerimônia-da-abertura-da-boca — ela disse. — Mas como isso pode nos
ajudar?
— Não sei — admiti. — Bes?
— Rituais da morte. Tento evitá-los.
Olhei para Walt. Itens mágicos eram sua especialidade, mas ele não pa-
recia estar prestando atenção. Desde que Sadie tinha nos contado sobre sua
conversa com Anúbis, Walt esteve muito quieto. Ele se sentou ao lado dela,
mexendo em seus anéis.
— Você está bem? — Perguntei a ele.
— Sim... só pensando — ele olhou para Sadie. — Sobre lâminas netjeri,
quero dizer.
Sadie puxou seu cabelo, como se estivesse tentando fazer uma cortina
entre ela e Walt. A tensão entre eles era tão densa, eu duvidava que mesmo
uma faca mágica conseguisse cortá-la.
— Maldito Anúbis — ela murmurou. — Se dependesse dele, eu poderia
ter morrido.
Dirigimos em silêncio por um tempo depois disso. Finalmente, Bes virou
na ponte Westminster e dobrou por trás do Rio Tâmisa.
Sadie franziu a testa.
— Onde estamos indo? Precisamos de um portal. Todos os melhores ar-
tefatos estão no Museu Britânico.
— É — Bes disse. — E todos os outros magos sabem disso.
— Outros magos? — Perguntei.
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O TRONO DE FOGO
— Criança, a Casa da Vida tem clãs por todo o mundo. Londres é o Nono
Nomo. Com aquela façanha em Waterloo, a senhorita Sadie só mandou um
grande sinalizador dizendo aos seguidores de Desjardins, Eu estou aqui! Pode
apostar que eles vão estar te caçando agora. Eles estarão guardando o museu
no caso de vocês correrem para lá. Felizmente, conheço um lugar diferente
onde podemos abrir um portal.
Ensinado por um anão. Devia ter ocorrido para mim que Londres tinha
outros magos. A Casa da Vida estava em todo lugar. Fora da segurança da
casa no Brooklyn, não havia um continente onde estaríamos a salvo.
Rodamos pelo sul de Londres. A cena ao longo da Rodovia Camberwell
estava quase tão depressiva quanto meus pensamentos. Fileiras de aparta-
mentos construídos com tijolos e lojas de baixa renda se alinhavam na rua.
E uma idosa fez uma careta para nós de um ponto de ônibus. Na porta de
uma mercearia, uns caras durões olharam a Mercedes como se quisessem
roubá-la. Me perguntei se eram deuses ou magos disfarçados, porque a mai-
oria das pessoas não notou o carro.
Não podia imaginar onde Bes estava nos levando. Não parecia com o
tipo de bairro onde você vá encontrar muitos artefatos egípcios.
Finalmente um parque amplo apareceu à nossa esquerda: campos verdes
nebulosos, caminhos de árvores enfileiradas e algumas paredes arruinadas
como aquedutos, cobertos de vinhas. O terreno inclinou para o topo de uma
colina com uma torre de rádio.
Bes pulou o meio-fio e dirigiu reto pela grama, atropelando uma placa
que dizia PERMANEÇA NO CAMINHO. A noite estava cinzenta e chuvosa, en-
tão não havia muitas pessoas ao redor. Um casal de corredores próximos ao
caminho nem mesmo olhou para nós, como se vissem limusines Mercedes
atravessarem o parque todo dia.
— Onde estamos indo? — Perguntei.
— Veja e aprenda, criança — Bes respondeu.
Ser chamado de criança por um cara menor que eu era um pouco irri-
tante, mas deixei minha boca fechada. Próximo ao topo estava uma escada
de pedra, talvez 10 metros de altura, construída ao lado da colina. Parecia
levar a lugar nenhum. Bes pisou nos freios e paramos. A colina era mais alta
que eu tinha percebido. Atrás de nós, estava o resto de Londres.
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Então olhei a escada mais de perto. Duas esfinges feitas de pedra estavam
prostradas em cada lado da escada, observando a cidade. Cada uma tinha
cerca de três metros de comprimento com o típico corpo de leão e cabeça de
faraó, mas elas pareciam totalmente fora do lugar em um parque em Lon-
dres.
— Elas não são reais — falei.
Bes bufou.
— Claro que são reais.
— Quero dizer que não são do Egito Antigo. Elas não são antigas o sufi-
ciente.
— Exigente, exigente — Bes disse. — Essas são escadas para o Palácio de
Cristal. Um salão grande de exposição de vidro e aço do tamanho de uma
catedral costumava ficar bem aqui nessa colina.
Sadie franziu a testa.
— Li sobre isso na escola. A Rainha Vitória teve uma festa aqui ou algo
do tipo.
— Uma festa ou algo do tipo? — Bes grunhiu. — Foi a Grande Exibição
de 1851. Mostra do Império Britânico, etc. Eles tinham maçãs carameladas
deliciosas.
— Você esteve lá? — perguntei.
Bes deu de ombros.
— O palácio queimou na década de 1930, graças a alguns magos, mas isso
é outra história. Tudo o que está aqui agora são algumas relíquias, como
essas escadas e as esfinges.
— Uma escada para lugar nenhum — repliquei.
— Não para lugar nenhum — Bes corrigiu. — Essa noite vai nos levar para
São Petersburgo.
Walt se levantou. Seu interesse nas estátuas tinha aparentemente o ti-
rado da melancolia.
— Mas se as esfinges não são realmente egípcias — ele disse — como pode-
mos abrir um portal?
Bes deu a ele um sorriso cheio de dentes.
— Depende do que quer dizer realmente egípcio, criança. Todo grande im-
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pério é um aspirante ao Egito. Ter coisas egípcias ao redor os faz sentir im-
portante. É por isso que vocês têm artefatos egípcios novos em Roma, Paris,
Londres... se chama assim. Aquele obelisco em Washington...
— Não mencione esse, por favor — Sadie disse.
— De qualquer maneira — Bes continuou — estas ainda são esfinges egíp-
cias. Foram construídos para manter a conexão entre o Império Britânico e
o Império Egípcio. Então sim, podem canalizar magia. Especialmente
se eu estou fazendo isso. E agora... — ele olhou para Walt. — Acho que é hora
de você ir.
Fiquei tão surpreso para dizer alguma coisa, mas Walt olhou para baixo
como se estivesse esperando isso.
— Espera aí — Sadie interviu. — Por que Walt não pode vir com a gente?
Ele é um mago. Ele pode ajudar.
A expressão de Bes ficou séria.
— Walt, você não falou pra eles?
— Falou para a gente o quê? — Sadie exigiu.
Walt segurou os amuletos, como se pudesse ter um que o ajudaria a evi-
tar essa conversa.
— Não é nada. Sério. É só... eu deveria ajudar na casa do Brooklyn. E Jaz
acha que...
Ele hesitou, provavelmente percebendo que não deveria ter mencionado
o nome dela.
— Sim? — O tom de Sadie estava perigosamente calmo. — O que Jaz acha?
— Ela está... ela ainda está em coma — Walt disse. — Amós disse que ela
provavelmente vai melhorar, mas não é que eu...
— Bom — Sadie disse. — Fico feliz que ela melhore. Você precisa voltar,
então. Isso é brilhante. Vai logo. Anúbis disse que devemos nos apressar.
Não foi muito sutil o jeito com que ela atirou o nome para ele. Walt
pareceu ter sido golpeado por ela no peito.
Eu sabia que Sadie não estava sendo justa com ele. Pela minha conversa
com Walt na casa do Brooklyn, sabia que ele gostava de Sadie. O que quer
que estivesse o incomodando, não houve qualquer tipo de coisa romântica
com Jaz. Por outro lado, se eu tentasse tomar partido dele, Sadie só me diria
para cair fora. Eu poderia até piorar as coisas entre Sadie e ele.
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parecia surreal, como uma das imagens fantasmagóricas no Salão das Eras
do Primeiro Nomo.
— O palácio do príncipe Menshikov — Bes murmurou.
Sua voz estava cheia de repugnância. Eu quase achei que ele iria gritar
BOO para o prédio, mas ele só cerrou os dentes.
Sadie olhou para mim para uma explicação, mas eu não era um Wikipé-
dia ambulante como ela parecia achar. Eu sabia coisas sobre o Egito, mas
Rússia? Nem tanto.
— Você quer dizer Menshikov como Vlad, o Inalador? — Perguntei.
— Ele é um descendente.
Bes contraiu os lábios com desgosto. Ele disse uma palavra em russo que
eu estava disposto a apostar que era um insulto muito ruim.
— No século dezessete, o príncipe Menshikov deu uma festa para Pedro,
o Grande, o czar que construiu essa cidade. Pedro adorava anões. Ele era
muito parecido com os egípcios desse ponto de vista. Ele achava que davam
sorte, então sempre deixava alguns de nós em sua corte. De qualquer ma-
neira, Menshikov quis entreter o czar, então ele achou que seria engraçado
encenar um casamento anão. Ele forçou-os... ele nos forçou a vestir, casar e
dançar. Todo o grande povo estava rindo, zombando...
Sua voz vacilou.
Bes descreveu a festa como se fosse ontem. Então lembrei que esse cara
pequeno estranho era um deus. Ele esteve por aí por eras. Sadie colocou a
mão em seu ombro.
— Sinto muito, Bes. Deve ter sido terrível.
Ele fez uma careta.
— Magos russos... eles amavam capturar deuses, nos usar. Ainda posso
ouvir aquela música de casamento, e o czar rindo...
— Como você fugiu? — Perguntei.
Bes me encarou. Obviamente, tinha feito uma pergunta ruim.
— Chega — Bes arrumou sua blusa. — Estamos desperdiçando tempo.
Ele seguiu em frente, mas tive um pressentimento que ele não fugiu re-
almente do palácio de Menshikov. De repente as alegres paredes amarelas e
janelas iluminadas pareceram sinistras.
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10. A visita de um velho amigo vermelho
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onze dias para procurar. Em menos de setenta e duas horas, Apófis estaria
livre. Eu lembrava daqueles olhos vermelhos que brilhavam sob conchas de
escaravelhos – uma força do caos tão poderosa que podia derreter os senti-
dos humanos. Três dias, e essa coisa iria estar solta pelo mundo.
Sadie conjurou seu cajado e o apontou para a câmera de segurança mais
próxima. As lentes racharam e começaram a chiar. Mesmo na melhor das
situações, tecnologia e magia não andavam juntas. Um dos feitiços mais fá-
ceis do mundo era fazer aparelhos eletrônicos terem um mau-funciona-
mento. Eu só precisava olhar de um jeito engraçado para um celular para
fazê-lo explodir. E computadores? Esquece. Acho que Sadie poderia mandar
apenas um pulso mágico para o sistema de segurança e conseguiria fritar
todas as câmeras e sensores da rede.
Ainda assim, havia outras coisas para a vigilância – coisas mágicas. Eu
puxei um pedaço de pano feito de linho preto e um par de shabti feitos de
cera crua de minha mochila. Enrolei os shabti no pano e falei a palavra de
comando:
— L'mun.
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Sadie suspirou.
— Bem… está melhor do que da última vez. A nuvem parecia uma lâm-
pada de lava. E naquela outra vez, quando cheirava a ovo podre...
— Podemos apenas continuar andando? — eu perguntei. — Por onde de-
vemos começar?
Seus olhos foram para uma das exibições. Ela estava andando a deriva,
olhando na direção dela, em transe.
— Sadie? — eu a segui até uma lápide de pedra calcária – uma estela – que
tinha cerca de meio metro por um metro. A descrição ao lado dela estava
em russo e em inglês.
— “Túmulo do escriba Ipi” — li em voz alta. — “Trabalhou na corte do
Rei Tut”. Porque você está interessada… oh.
Como eu sou idiota. A imagem da lápide mostrava o escriba falecido
honrando Anúbis. Depois de falar com Anúbis em pessoa, Sadie deve ter
achado estranho vê-lo em uma pintura de um túmulo de três mil anos de
idade, especialmente porque ele estava retratado com a cabeça de chacal,
vestindo uma saia.
— Walt gosta de você.
Eu não tinha a menor ideia de porque balbuciei isso. Essa não era a hora
nem o lugar. Eu sabia que não estava fazendo nenhum favor a Walt pas-
sando para o lado dele. Mas comecei a me sentir mal por ele depois que Bes
o chutou da limusine. O cara havia vindo de Londres para me ajudar a salvar
Sadie, e nós o abandonamos no Parque Crystal Palace como uma carona
indesejada.
Eu estava um pouco bravo com Sadie por ela tê-lo tratado com indife-
rença e ter tido uma queda tão grande por Anúbis, que era uns cinco mil
anos mais velho que ela e nem ao menos era humano. Aliás, a forma como
ela esnobou Walt me lembrou muito a forma como Zia havia me tratado
primeiro. E talvez, sendo honesto comigo mesmo, eu também estava irritado
com Sadie porque ela resolveu os próprios problemas em Londres sem pre-
cisar da nossa ajuda.
Uau. Isso soou realmente egoísta. Mas eu suponho que fosse verdade. É
incrível de quantas maneiras diferentes uma irmã mais nova consegue te
irritar.
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tentando entorná-lo.
— Um vaso malaquita? — O deus parecia irritado. — Sério, Vladimir. Pen-
sei que estávamos em condições mais amigáveis do que isso.
A risada de Menshikov parecia alguém esganando um gato.
— Excelente para prender espíritos malignos, não é? E este quarto tem
mais malaquita do que qualquer outro lugar do planeta. A Imperatriz Ale-
xandra foi bastante prudente em ter isso construído em sua sala de estar.
A jarra tilintou.
— Mas cheira moedas antigas aqui, e é muito frio. Você um dia já ficou
preso em um vaso malaquita, Vlad? Eu não sou um gênio. Eu ficaria muito
mais conversável se pudesse me sentar frente a frente, talvez tomando chá.
— Temo que não — disse Menshikov. — Agora, você vai responder minhas
perguntas.
— Oh, é claro — Set respondeu. — Eu gosto do Brasil na Copa do Mundo.
Eu o aconselho a fazer um investimento em platina e em fundos de pequena-
cobertura. E os seus números da sorte desta semana são 2, 13...
— Não estas perguntas! — disparou Menshikov.
Sadie puxou um pedaço de cera de sua bolsa e começou a trabalhar ar-
duamente, formando uma espécie de forma animal. Eu sabia que ela ia testar
a mesa para magias defensivas. Ela era melhor neste tipo de magia do que
eu, mas eu não tinha certeza de como ela o faria. Magia egípcia é bastante
ampla. Há sempre mil maneiras diferentes para realizar uma tarefa. O truque
é ser criativo com o que se tem de material e escolher um caminho que não
vá te matar.
— Você vai me dizer o que eu preciso saber — Menshikov pediu — ou essa
jarra vai ficar ainda mais desconfortável.
— Meu querido Vladimir. — A voz de Set era cheia de um divertimento
maléfico. — O que você precisa saber pode ser bem diferente do que
você quer saber. O seu lamentável acidente não te ensinou isso?
Menshikov tocou os seus óculos escuros, como se para ter certeza de que
eles não haviam caído.
— Você vai me dizer a ligação para Apófis — ele disse em um tom de aço.
— E depois vai me dizer como neutralizar os encantamentos da Casa do Bro-
oklyn. Você conhece as defesas dos Kane melhor do que ninguém. Uma vez
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A dica não foi muito sutil, mas sério, ele realmente acreditava que nós
íamos soltá-lo depois de ele estragar nosso disfarce? Sadie encarou Menshi-
kov, sua varinha e seu cajado prontos.
— Você está trabalhando para Apófis. Está do lado errado.
Menshikov tirou os óculos. Seus olhos eram poços de cicatrizes arruina-
dos, a pele queimada e as córneas brilhantes. Acredite em mim, essa é a
forma menos nojenta de descrevê-lo.
— Do lado errado? — Menshikov perguntou. — Garota, você não tem nem
ideia do tanto de poder que está em jogo. Há cinco mil anos, sacerdotes
egípcios profetizaram o modo como o mundo iria acabar. Rá iria ficar velho
e cansado, e Apófis iria engoli-lo e mergulharia o mundo em trevas. O Caos
iria governar para sempre. Essa é a hora! Você não pode deter isso. Só pode
escolher se vai ser destruído ou se vai se curvar ao poder do caos e sobreviver.
— Certo — Set comentou. — É muito ruim eu estar preso neste vaso. Porque
senão eu poderia tomar um partido e ajudar alguém.
— Cale-se, Set — repreendeu Menshikov. — Ninguém seria louco o sufici-
ente para confiar em você. E quanto a vocês, crianças, claramente não são a
ameaça que eu imaginava que fossem.
— Ótimo — falei. — Então podemos ir?
Menshikov riu.
— Para vocês irem correndo à Desjardins e dizerem tudo o que ouviram?
Ele não acreditaria em vocês. Ele iria julgá-los e depois executá-los. Mas eu
vou poupá-los do constrangimento. Vou matá-los agora.
— Que divertido! — disse Set. — Eu queria poder ver, mas estou preso nesse
vaso.
Eu tentei pensar. Menshikov ainda estava dentro do círculo de proteção,
o que significava que ele tinha uma grande vantagem defensiva. Eu não es-
tava muito certo que poderia acabar com ele, mesmo se pudesse invocar o
meu avatar de combate. Enquanto isso, Menshikov tomava seu tempo ten-
tando encontrar maneiras diferentes de nos destruir. Será que ele iria nos
explodir com magia elementar? Nos transformar em besouros?
Ele jogou seu cajado no chão, e eu xinguei.
Jogar o seu cajado no chão deveria parecer algo como um sinal de rendi-
ção, mas na magia egípcia, é uma má notícia. Geralmente significa Ei, eu vou
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convocar uma coisa enorme e desagradável para te matar, enquanto fico seguro den-
tro do meu círculo e dou risadas!
Como eu já imaginava, o cajado de Menshikov começou a se contorcer
e a crescer.
Ótimo, pensei. Outra serpente.
Mas algo estava errado com esta. Em vez de uma cauda, ela tinha cabeças
em ambas as extremidades. No começo pensei que nós havíamos tido um
pouco de sorte e que Menshikov invocara um monstro com um defeito ge-
nético raro. Então, da coisa, brotaram quatro pernas de dragão. Seu corpo
cresceu até que ele ficasse do tamanho de um cavalo, curvado como um U,
com tons em escalas de verde e vermelho e uma cabeça de cascavel em ambos
os lados. Isso me lembrou o animal de duas cabeças de Doutor Dolittle.
Sabe, o mimpurra-tupuxa? Só que Doutor Dolittle nunca iria querer falar
com essa coisa, e mesmo que quisesse, ela provavelmente diria Olá, eu vou te
comer.
As duas cabeças se viraram na nossa direção e sibilaram.
— Eu realmente já tive a minha dose de cobras por uma semana — mur-
murei.
Menshikov sorriu.
— Ah, mas serpentes são a minha especialidade, Carter Kane!
Ele tocou em um pingente de prata que estava pendurado em seu colar
– um amuleto em forma de serpente.
— E essa criatura em especial é a minha favorita: a tjesu heru. Duas bocas
famintas para alimentar. Duas crianças travessas. Perfeito!
Sadie e eu nos entreolhamos. Tivemos um daqueles momentos em que
podíamos ler as expressões um do outro perfeitamente.
Nós dois sabíamos que não conseguiríamos derrotar Menshikov. Ele fa-
ria com que a cobra mimpurra-tupuxa nos desgastasse e depois, se sobrevi-
vêssemos a isso, iria apenas nos explodir como qualquer outra coisa. O cara
era profissional. Nós iríamos morrer, ou então, seríamos capturados, e Bes
havia nos avisado sobre não sermos capturados com vida. Depois de ver o
que havia acontecido com aquele demônio Morte-às-Rolhas, eu levei a ad-
vertência de Bes à sério.
Para sobreviver, nós teríamos que fazer algo maluco, algo tão suicida que
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heru!
Eu queria estrangular Set, mas tinha problemas maiores. Como se enco-
rajado pela conversa de Set, o tjesu heru investiu contra nós. Sadie e eu cor-
remos para a porta mais próxima.
Corríamos pelo Palácio de Inverno com a risada de Set ecoando atrás de
nós.
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11. Carter faz algo incrivelmente estúpido (e
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ninguém se surpreende)
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parar, mas Carter estava indo rápido demais. Ele caiu sobre seu traseiro e
escorregou. Sua espada deslizou para o lado.
O tjesu heru pousou bem em cima dele. Se não tivesse uma forma de U,
Carter seria esmagado; mas aquilo se curvou ao redor dele como um enorme
par de fones de ouvido, uma cabeça olhando abaixo para ele dos dois lados.
Como alguma coisa tão grande podia saltar tão longe? Tarde demais,
percebi que poderíamos ter ficado lá dentro onde era mais difícil para o
monstro se mexer. Lá fora, não tínhamos chance de ultrapassá-lo.
— Carter — falei. — Fique totalmente parado.
Ele congelou na posição de caranguejo. As duas cabeças do monstro pin-
gavam veneno que sibilaram e cozinharam as pedras de gelo.
— Oi! — gritei.
Não tendo nenhuma pedra, peguei um pedaço grosso de gelo quebrado
e arremessei no tjesu heru. Certamente acertei as costas de Carter ao invés
disso. Mesmo assim, peguei a atenção do tjesu heru.
As duas cabeças se viraram na minha direção, as duas línguas tremu-
lando. Primeira etapa concluída: distrair o monstro.
Segunda etapa: encontrar algum jeito inteligente de afastar aquilo de
Carter. Essa parte estava me dando um pouco mais de trabalho.
Eu tinha usado minha única poção. A maioria dos meus suprimentos
mágicos se foi. Meu cajado e minha varinha não melhorariam a situação
com as minhas reservas mágicas drenadas. A faca de Anúbis? De algum jeito
eu duvidava que aquela fosse a situação certa para abrir a boca de alguém.
O amuleto de Walt? Eu não tinha a menor ideia de como usar.
Pela milionésima vez, me arrependi de ter aberto mão do espírito de Ísis.
Eu sem dúvida podia ter usado o arsenal mágico completo da deusa. Mas, é
claro, aquilo foi exatamente o porquê que eu tive que me separar dela.
Aquele tipo de poder é embriagante, perigosamente viciante. Pode destruir
sua vida, bem rápido.
E se eu pudesse criar um elo limitado? Na Sala Malaquita, eu dominei a
magia Ha-di pela primeira vez em meses. E embora tivesse sido difícil, não
foi impossível.
Certo, Ísis, pensei. Aqui está o que eu preciso...
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Não pense Sadie, sua voz sussurrou de volta quase imediatamente, o que
foi um choque muito grande. A magia divina tem que ser involuntária, como
respirar.
Você quer dizer... Parei.
Não pense.
Bem, aquilo não poderia ser tão difícil. Levantei meu cajado e um hieró-
glifo dourado brilhou no ar. Um tyet de um metro de altura iluminou o pá-
tio como uma estrela de árvore de Natal.
O tjesu heru rosnou, seus olhos amarelos fixos no hieróglifo.
— Não gosta disso, hein? — gritei. — O símbolo de Ísis, seu vira-lata feio.
Agora, fique longe do meu irmão!
Foi um blefe total, é claro. Eu duvidava que um sinal brilhante pudesse
fazer algo de útil. Mas esperava que a criatura cobra não fosse inteligente o
suficiente para saber disso.
Lentamente, Carter se moveu para trás. Ele olhou para sua espada, mas
ela estava a dez metros de distância – muito fora de alcance.
Mantive meus olhos no monstro. Usei o topo do meu cajado para traçar
um círculo mágico na neve ao meu redor. Isso não daria muita proteção,
mas era melhor que nada.
— Carter — gritei — quando eu disser vai, corra para cá.
— Essa coisa é muito rápida! — ele disse.
— Vou tentar detonar o hieróglifo e cegá-lo.
Eu ainda acho que o plano teria funcionado, mas não tive chance de
tentar. Em algum lugar à minha esquerda, botas esmagaram o gelo. O mons-
tro se virou na direção do som.
Um homem jovem corria para a luz do hieróglifo. Ele estava vestido em
um casaco de lã pesado e um chapéu de policial, com uma espingarda em
suas mãos, mas não podia ser muito mais velho que eu. Ele estava pratica-
mente se afogando em seu uniforme. Quando ele viu o monstro, seus olhos
se arregalaram. Ele tropeçou para trás, quase derrubando sua arma.
Ele gritou alguma coisa para mim em russo, provavelmente, “Por que
tem um monstro serpente de duas cabeças sem traseiro?”
O monstro sibilou para nós dois – o que ele podia fazer, tendo duas
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cabeças.
— Isso é um monstro — eu disse ao guarda.
Eu tinha quase certeza que ele não conseguia entender, mas tentei man-
ter meu tom firme.
— Fique calmo e não atire. Estou tentando salvar meu irmão.
O guarda engoliu. Suas orelhas largas eram as únicas coisas que apare-
ciam sob seu chapéu. Ele olhou do monstro para Carter e para o tyet bri-
lhando acima de minha cabeça. Então ele fez algo que eu não esperava.
Ele disse uma palavra do Egito Antigo:
— Heqat — o comando que eu sempre usava para invocar meu cajado. Sua
espingarda virou um bastão de carvalho de dois metros de altura com uma
cabeça de falcão esculpida.
Que maravilha, pensei. Os guardas de segurança eram magos em se-
gredo.
Ele se dirigiu a mim em russo – algum tipo de aviso. Reconheci o
nome Menshikov.
— Deixe-me adivinhar — eu disse. — Você quer me levar para seu líder.
O tjesu heru estalou as mandíbulas. Ele estava perdendo medo do
meu tyet brilhante muito rápido. Carter não estava longe o suficiente para
correr dele.
— Olha — falei ao guarda — seu chefe, Menshikov, é um traidor. Ele in-
vocou essa coisa para nos matar, assim não iríamos atrapalhar seus planos
de libertar Apófis. Entende a palavra Apófis? Cobra má. Cobra muito má!
Agora, ou me ajude a matar esse monstro ou fique fora do meu caminho!
O guarda-mago hesitou. Ele apontou para mim nervoso.
— Kane.
Não era uma pergunta.
— Sim — concordei. — Kane.
Sua expressão era uma mistura de emoções – medo, incredulidade, até
mesmo respeito. Eu não sabia o que ele tinha ouvido sobre nós, mas antes
de poder decidir entre nos ajudar ou lutar contra nós, a situação saiu do
controle.
O tjesu heru investiu. Meu irmão ridículo, em vez de rolar para fora do
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O Nevsky Prospekt seria um belo lugar para fazer compras se não tivesse
uma tempestade de neve durante as primeiras horas da manhã. E se eu não
estivesse carregando meu irmão desmaiado e envenenado. A rua tinha gran-
des calçadas, perfeito para ambulantes, alinhados com uma variedade im-
pressionante de boutiques, cafeterias, igrejas e mansões. Com todas as placas
em russo, eu não via como encontraríamos a loja de chocolates. Não conse-
gui localizar a Mercedes preta de Bes em lugar nenhum.
Set se voluntariou para carregar Carter, mas eu não estava disposta a
deixar o deus do caos se encarregar de meu irmão, então ele se arrastou entre
nós. Set decidiu conversar amigavelmente sobre o veneno do tjesu heru.
— Completamente incurável! Fatal em cerca de doze horas. É uma coisa
incrível!
E sua luta com Menshikov:
— Seis vasos se quebraram sobre sua cabeça, e ele ainda sobreviveu! Eu
invejo seu crânio duro.
E minhas perspectivas de viver o bastante para encontrar Bes:
— Oh, você está frita, minha querida! Uma dúzia de magos mais velhos
estavam se juntando a Menshikov quando eu fiz minha... er... saída estraté-
gica. Eles vão te alcançar em pouco tempo. Eu poderia ter destruído todos
eles, é claro, mas não podia arriscar que Vladimir usasse meu nome secreto
de novo. Talvez ele fique com amnésia e esqueça. Então se vocês morrerem
seriam dois problemas resolvidos. Oh, desculpe, suponho que soou insensí-
vel. Venha!
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A cabeça de Carter pendeu. Sua respiração soava quase tão ruim quanto
a de Vlad, o Inalador.
Agora, por favor não pense que eu fui estúpida. Claro que me lembrei
da mini figura de cera de Carter que Jaz me deu. Reconheci que aquele era
o tipo de emergência onde isso poderia vir a calhar. Como Jaz tinha previsto
que Carter precisaria de cura, eu não tinha ideia. Mas era possível que a
figura podia extrair o veneno dele, apesar do que Set disse sobre isso ser
incurável. O que um deus do mal sabia sobre cura, de qualquer jeito?
Havia problemas, no entanto. Primeiro, eu sabia muito pouco sobre ma-
gia de cura. Eu precisava de tempo para descobrir a fusão adequada, e como
só tinha uma estátua de cera, não podia me dar ao luxo de errar. Segundo,
eu não podia fazer isso muito bem enquanto estava sendo perseguida por
Menshikov e seu pelotão de magos russos valentões, nem queria baixar mi-
nha guarda com Set em algum lugar perto de mim. Eu não sabia por que ele
decidiu ser útil de repente, mas o quanto mais rápido eu pudesse perdê-lo,
melhor. Precisava encontrar Bes e fugir para um lugar seguro – se houvesse
um lugar assim.
Set ficou falando de todos os jeitos animadores que os magos deveriam
me matar assim que me pegarem. Finalmente vi uma fonte à frente sobre
um lago congelado. Estacionada no meio estava a Mercedes preta. Bes estava
encostado ao capô, comendo peças de um tabuleiro de xadrez de chocolate.
Próximo a ele estava uma bolsa grande de plástico – felizmente com mais
chocolate para mim.
Gritei para ele, mas ele estava tão ocupado comendo chocolate (acho que
eu poderia entender) que ele não nos notou até estarmos a alguns metros de
distância. Então ele olhou para cima e viu Set.
Eu comecei a dizer:
— Bes, não...
Tarde demais. Como um gambá, o deus anão ativou seu modo de defesa.
Seus olhos incharam. Sua boca se abriu incrivelmente grande. Ele gritou
“BOO!” tão alto, que meu cabelo se arrepiou e pingentes de gelo choveram
dos postes da ponte.
Set não pareceu nem um pouco intimidado.
— Olá, Bes — ele cumprimentou. — Sério, você não é tão assustador com
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— Não temos tempo para discutir — eu disse. — Set, você está se ofere-
cendo para parar os magos?
Ele riu.
— Não, não. Ainda estou esperando eles matarem vocês, sabe. Mas estou
oferecendo a vocês a localização do último pergaminho do Livro de Rá.
É isso que vocês estão procurando, não é?
Achei que ele estivesse mentindo. Ele normalmente estaria, mas se esti-
vesse falando sério... Olhei para Bes.
— É possível que ele saiba a localização?
Bes grunhiu.
— Mais que possível. Os sacerdotes de Rá deram a ele o pergaminho para
manter a salvo.
— Por que diabos eles fizeram isso?
Set tentou parecer modesto.
— Convenhamos, Sadie. Eu era um tenente leal de Rá. Se você fosse Rá,
e não quisesse ser incomodado por qualquer mago velho tentando te inco-
modar, você não confiaria a chave da sua localização com seu servo mais
assustador?
Ele tinha um ponto.
— Onde está o pergaminho, então?
— Não tão rápido. Vou te dar a localização se você me der de volta meu
nome secreto.
— Nem sonhando!
— É bem simples. É só você dizer “eu devolvo seu nome”. Você vai se
esquecer da forma adequada de dizê-lo...
— E então não vou mais ter poder sobre você! Você vai me matar!
— Você tem minha palavra que não vou.
— Certo. É uma pena. E se eu usar seu nome secreto para te forçar a me
dizer?
Set deu de ombros.
— Com alguns dias de procura pelo encantamento correto, você deve
conseguir. Infelizmente...
Ele colocou sua orelha na mão. À distância, pneus de dois carros guin-
charam, viajando rápido, chegando mais perto.
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O TRONO DE FOGO
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SADIE
— Sim — Set sorriu. — Isso pode ser interessante! Por quanto tempo você
consegue segurar seu fôlego, Sadie Kane?
— O que você quer dizer?
— Não se preocupe, não se preocupe. Agora, acredito que você me deve
um nome secreto.
— Eu devolvo seu nome — falei.
No mesmo instante, senti a magia me deixar. Eu ainda sabia o nome de
Set: Dia do Mal. Mas de algum jeito, eu não conseguia lembrar como costu-
mava dizer isso, ou como isso funcionava em um encantamento. A memória
foi apagada.
Para a minha surpresa, Set não me matou instantaneamente. Ele só sor-
riu e me jogou os óculos de Vlad Menshikov.
— Espero que sobreviva, apesar de tudo, Sadie Kane. Você é muito diver-
tida. Mas se eles te matarem, pelo menos aproveite a experiência!
— Puxa, obrigada.
— E só porque eu gosto muito de você, vou te dar uma peça gratuita de
informação para seu irmão. Diga a ele que a vila de Zia Rashid era chamada
de al-Hamrah Makan.
— Por que é que...
— Boa viagem!
Set desapareceu em uma nuvem de névoa cor de sangue. Há um quartei-
rão de distância, os dois carros esportivos embarrilavam em nossa direção.
Um mago enfiou a cabeça para fora do teto solar do carro líder e apontou
seu cajado na nossa direção.
— Hora de ir — Bes afirmou. — Entre!
Eu vou dizer isso de Bes: ele dirigiu como um maluco. E quero dizer isso do
melhor jeito possível. As ruas congeladas não o incomodavam. Nem os sinais
de trânsito, calçadas de pedestres ou canais, que ele pulou duas vezes sem se
importar de encontrar uma ponte. Felizmente, a cidade estava mais vazia na
hora da manhã, ou tenho certeza que teríamos atropelado um bom número
de russos.
Nós traçamos o centro de São Petersburgo enquanto os dois carros es-
portivos cerravam atrás de nós. Eu tentava segurar Carter firme perto de
167
O TRONO DE FOGO
mim no banco de trás. Seus olhos estavam meio abertos, a parte branca de
seus olhos se tornando um verde terrível. Apesar do frio, ele estava quei-
mando de febre. Eu tirei seu casaco de inverno e encontrei sua camisa en-
charcada de suor. Em seu ombro, as feridas estavam escorrendo como...
Bem, acho que é melhor eu não descrever essa parte.
Olhei para trás. O mago no teto solar apontou seu cajado – não é uma
tarefa fácil em uma perseguição de carro em alta velocidade – e uma lança
brilhante branca disparou da ponta, zunindo na nossa direção como um
míssil teleguiado.
— Abaixe! — gritei, e empurrei Carter contra o assento.
A lança quebrou na janela traseira e voou direto pelo para-brisa. Se Bes
tivesse uma altura normal, ele teria conseguido um furo na cabeça. Como
era assim, o projétil o errou completamente.
— Eu sou um anão — ele grunhiu. — Eu não abaixo!
Ele guinou para a direita. Atrás de nós, uma loja explodiu. Olhando para
trás, vi a parede toda dissolver em uma pilha de cobras vivas. Nossos perse-
guidos ainda estavam atrás de nós.
— Bes, tira a gente daqui! — gritei.
— Estou tentando, criança. A Ponte Egípcia está vindo. Ela foi original-
mente construída nos oitocentos, mas...
— Não estou nem aí! Só dirija!
Realmente, era incrível quantas entradas e saídas egípcias haviam em São
Petersburgo, e o pouco que eu ligava para elas. Ser perseguida por magos
demoníacos atirando lanças e bombas de cobra tende a esclarecer as priori-
dades.
É o bastante dizer: Sim, realmente havia uma Ponte Egípcia sobre o Ca-
nal Fontanka, ao sul do centro de São Petersburgo. Por quê? Não tenho
ideia. Não ligo. Enquanto corríamos na direção dela, eu vi esfinges escuras
de pedra – senhoras esfinges com coroas douradas de faraó – mas a única
coisa que importava para mim era se elas podiam invocar um portal.
Bes ladrou alguma coisa em egípcio. No topo da ponte, uma luz azul
brilhou. Um turbilhão de areia apareceu.
— O que Set quis dizer — perguntei — sobre prender minha respiração?
— Esperemos que não seja por muito tempo — Bes disse. — Só vamos
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S
A
12. Domino a fina arte de dizer nomes
D
I
E
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SADIE
preto simples amarrado em sua cintura. Não era um visual que eu reco-
mendo para a maioria dos caras, mas Anúbis era exceção. Sempre imaginei
que ele ficaria um pouco magro sem camisa (não que eu imaginasse muito
isso, você sabe), mas ele estava em ótima forma. Deviam ter uma boa acade-
mia no submundo, banco de prensagem de lápides e tudo mais.
De qualquer forma, após o choque de vê-los juntos, meu primeiro pen-
samento foi de que algo terrível tivesse acontecido a Jaz.
— O que é isso? — perguntei, não tinha certeza se eles podiam me ouvir.
— O que aconteceu?
Walt não reagiu, mas Anúbis olhou para cima. Como de costume, o meu
coração fez uma dancinha feliz completamente sem a minha permissão. Seus
olhos eram tão fascinantes, esqueci completamente como usar meu cérebro.
Eu disse:
— Hum.
Eu sei, Liz teria ficado orgulhosa.
— Sadie — disse Anúbis. — Você não deveria estar aqui. Carter está mor-
rendo.
Aquilo trouxe de volta meus sentidos.
— Eu sei disso, garoto chacal! Eu não pedi para estar... Espere, por que es-
tou aqui?
Anúbis apontou para a porta da enfermaria.
— Acredito que o espírito de Jaz chamou por você.
— Ela está morta? Eu estou morta?
— Nenhuma das duas — Anúbis disse. — Mas vocês duas estão à beira da
morte, o que significa que suas almas podem falar uma com a outra com
bastante facilidade. Apenas não fique muito tempo.
Walt ainda não havia me reconhecido. Ele murmurou:
— Não podia dizer a ela. Por que eu não podia dizer a ela?
Ele abriu suas mãos. Encaixado em suas palmas estava um amuleto dou-
rado shen exatamente igual ao que ele me deu.
— Anúbis, o que há de errado com ele? — perguntei. — Ele não consegue
me ouvir?
Anúbis colocou a mão no ombro de Walt.
— Ele não pode ver qualquer um de nós, embora eu ache que ele consiga
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O TRONO DE FOGO
sentir a minha presença. Ele me chamou para orientá-lo. É por isso que es-
tou aqui.
— Orientação de você? Por quê?
Acho que pareceu mais grosseiro do que pretendia, mas de todos os deu-
ses que Walt poderia ter chamado, Anúbis parecia ser a opção menos possí-
vel.
Anúbis olhou para mim, seus olhos até mais melancólicos que o normal.
— Você deve ir agora, Sadie. Tem muito pouco tempo. Prometo que farei
o meu melhor para aliviar a dor de Walt.
— Sua dor? — perguntei. — Espere...
Mas a porta da enfermaria se abriu, e as correntes do Duat me puxaram
para dentro.
A enfermaria era o melhor centro médico que já estive, mas isso não era
dizer muito. Eu odiava hospitais. Meu pai costumava brincar que nasci gri-
tando e que não parei até eles me tirarem da maternidade. Ficava morrendo
de medo de agulhas, comprimidos, e acima de tudo, o cheiro de pessoas
doentes. Os mortos e os cemitérios? Esses não me incomodam. Mas a do-
ença... bem, me desculpe, mas ela tem que cheirar tão malditamente doentia?
Minha primeira visita a Jaz na enfermaria tinha tomado toda a minha
coragem. Esta segunda vez, mesmo na forma de ba, não estava nada fácil.
A sala era do tamanho do meu quarto. As paredes eram grossas de pedra
calcária. Grandes janelas deixavam entrar o brilho noturno de Nova York.
Armários de cedro foram cuidadosamente etiquetados com medicamentos,
provisões de primeiros socorros, encantos e poções mágicas. E num canto
havia uma fonte com uma estátua em tamanho natural da deusa leão Sekh-
met, patrona dos curandeiros. Eu tinha ouvido falar que a água que verte
através das mãos de Sekhmet poderia curar uma gripe ou resfriado instanta-
neamente, e fornecem a maioria das nossas vitaminas diárias e ferro, mas
nunca tive a coragem de tomar um gole.
O borbulhar da fonte era pacífico o suficiente. Em vez de antisséptico, o
ar cheirava a velas encantadas com aroma de baunilha que flutuavam ao
redor da sala. Mas, ainda assim, o lugar me deixou nervosa.
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O TRONO DE FOGO
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O TRONO DE FOGO
as cordas. Como faziam isso sem as mãos, eu não sei, mas não foi a primeira
vez que vi uma tripulação tão mágica.
O casco estava incrustado com metais preciosos – cobre, prata, ouro com
desenhos mostrando imagens da viagem do barco através do Duat e hieró-
glifos invocando o poder do sol.
No meio do barco, um abrigo azul e dourado sombreava o trono do deus
sol, que era sem dúvida a mais impressionante e desconfortável cadeira que
eu já tinha visto. No começo eu achei que era de ouro derretido. Então per-
cebi que era formado a partir do fogo aceso – chamas amarelas, que de al-
guma forma tinham sido esculpidas na forma de um trono. Gravado em suas
pernas e braços, hieróglifos branco-ardentes brilhavam tão intensamente
que queimavam meus olhos.
O ocupante do trono não era tão impressionante. Rá era um velho cur-
vado como um ponto de interrogação, sua cabeça calva com manchas hepá-
ticas e seu rosto tão flácido e enrugado que parecia uma máscara. Somente
seus olhos delineados com kohl davam alguma indicação de que ele estava
vivo, porque estavam cheios de dor e cansaço. Ele vestia um saiote e colar,
que não combinavam com ele tão bem como em Anúbis. Até agora, a pessoa
mais velha que eu já vi era Iskandar, o ex-chefe Sacerdote-Leitor chefe, que
havia sido por dois mil anos. Mas Iskandar jamais teria parecido tão mal,
mesmo quando estava prestes a morrer. Para piorar, a perna esquerda de Rá
estava envolvida em ataduras e inchada com o dobro do tamanho adequado.
Ele gemeu e apoiou o pé sobre uma pilha de almofadas. Duas feridas de
picada escorriam através das ataduras em sua canela, muito parecido com o
sinal das presas no ombro de Carter. Enquanto Rá movia a perna, o veneno
verde espalhou-se pelas veias da coxa. Só olhar fez meu ba arrepiar as penas
com repulsa.
Rá olhou para os céus. Seus olhos ficaram amarelo derretido como seu
trono.
— Ísis — ele exclamou. — Muito bem! Eu cedo!
Uma sombra ondulava sob o abrigo. Uma mulher apareceu e ajoelhou-
se diante do trono. Eu a reconheci, claro. Ela tinha cabelos longos e escuros,
cortado ao estilo Cleópatra e usava um vestido de linho branco que comple-
tava sua figura graciosa. Suas asas luminosas de arco-íris brilhavam como as
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SADIE
luzes do norte.
Com a cabeça baixa e as palmas das mãos levantadas implorando, ela
olhou com humildade, mas eu conhecia Ísis muito bem. Podia ver o sorriso
que ela estava tentando esconder. Eu podia sentir a sua alegria.
— Lorde Rá — disse ela. — Vivo para servi-lo.
— Há! — Rá disse. — Você vive pelo poder, Ísis. Não tente me enganar.
Eu sei que você criou a cobra que me mordeu! É por isso que ninguém mais
pode encontrar uma cura. Você deseja meu trono para seu marido, o arro-
gante Osíris.
Ísis começou a protestar.
— Meu senhor...
— Chega! Se eu fosse um deus jovem...
Rá cometeu o erro de mexer a perna. Ele gritou de dor. O veneno verde
espalhou-se mais subindo pelas suas veias.
— Não se preocupe — suspirou miseravelmente. — Estou cansado deste
mundo. Chega de conspiração e armações. Apenas cure o veneno.
— Com prazer, meu rei. Mas vou precisar de...
— Meu nome secreto — terminou Rá. — Sim, eu sei. Prometa me curar, e
terá tudo o que deseja... e muito mais.
Ouvi a advertência na voz de Rá, mas ou Ísis não percebeu, ou ela não
se importou.
— Juro curá-lo — disse ela.
— Então se aproxime, deusa.
Ísis se inclinou para frente. Eu pensei que Rá iria sussurrar seu nome no
ouvido dela, mas ele agarrou a sua mão e colocou-a na testa enrugada. Seus
dedos estavam ardendo. Ela tentou se afastar, mas Rá prendeu-a pela mão.
Toda a forma do deus sol brilhava com imagens de fogo de sua longa vida:
a primeira aurora; seu barco de sol brilhando sobre as terras recém-nascidas
do Egito, a criação dos outros deuses e dos homens; batalhas intermináveis
de Rá contra Apófis quando este atravessava o Duat a cada noite, mantendo
o Caos à distância. Era demais, séculos se passavam com cada batimento
cardíaco. Seu nome secreto era a soma de suas experiências e, mesmo assim,
naqueles tempos antigos, Rá era inimaginavelmente velho. A aura intensa
espalhou-se para a mão de Ísis, viajando pelo seu braço até que todo o seu
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O TRONO DE FOGO
corpo foi envolto em chamas. Ela gritou uma vez. Em seguida, o fogo mor-
reu. Ísis desabou, fumaça saindo de seu vestido.
— Então — disse Rá. — Você sobreviveu.
Eu não podia dizer se ele sentiu decepção ou relutante respeito.
Ísis levantou-se cambaleante. Ela parecia em estado de choque, como se
tivesse andado através de uma zona de guerra, mas levantou a mão. Um
hieróglifo ardente gravado na palma da mão – o nome secreto de Rá, resu-
mido em uma única palavra incrivelmente poderosa.
Ela colocou a mão na perna envenenada de Rá e falou um feitiço. O
veneno verde sumiu de suas veias. O inchaço diminuiu. Os curativos caíram,
e as duas marcas de presas fecharam.
Rá reclinou sobre seu trono e suspirou de alívio.
— Até que enfim. Sem dor.
— Meu senhor precisa descansar — Ísis sugeriu. — Um longo, longo des-
canso.
O deus sol abriu seus olhos. Não havia fogo neles agora. Pareciam os
olhos leitosos de um velho.
— Bastet! — ele chamou.
A deusa gato se materializou ao seu lado. Ela estava vestida com arma-
dura egípcia de couro e ferro e parecia mais jovem, embora talvez fosse ape-
nas porque ela ainda não tinha sobrevivido a séculos de prisão em um
abismo, lutando contra Apófis. Fiquei tentada a gritar para ela e avisá-la so-
bre o que estava por vir, mas minha voz não iria funcionar.
Bastet fez Ísis olhar para os lados.
— Meu senhor, esta... mulher está o incomodando?
Rá balançou a cabeça.
— Nada mais me incomodará, minha gata fiel. Venha comigo agora. Te-
mos assuntos importantes para discutir antes de eu partir.
— Meu senhor? Onde o senhor está indo?
— Para uma aposentadoria forçada. — Rá olhou para Ísis. — É isso que
você quer, deusa da magia?
Ísis fez uma reverência.
— Nunca, meu senhor!
Bastet puxou suas facas e foi em direção a Ísis, mas Rá estendeu o braço.
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SADIE
— Chega, Bastet — disse ele. — Tenho outra luta em mente para você,
uma última, uma luta crucial. Quanto a você, Ísis, pode pensar que ganhou
porque domina o meu nome secreto. Percebe o que você começou? Osíris
pode tornar-se faraó, mas o seu reinado será curto e amargo. Sua sede real
será um reflexo pálido do meu trono de fogo. Este barco não mais voltará
ao Duat. O equilíbrio entre o Maat e o caos desaparecerá lentamente. O
próprio Egito vai cair. Os nomes de seus deuses desaparecerão para uma
memória distante. Então um dia, o mundo inteiro vai ficar à beira da des-
truição. Você vai clamar por Rá, e eu não estarei lá. Quando esse dia chegar,
lembre-se como sua ganância e ambição fizeram isso acontecer.
— Meu senhor.
Ísis inclinou-se respeitosamente, mas eu sabia que ela não estava pen-
sando em um futuro distante. Ela estava embriagada com sua vitória. Ela
pensou que Osíris iria governar o Egito para sempre, e que Rá era apenas
um velho tolo. Não sabia que em pouco tempo, sua vitória se voltaria para
a tragédia. Osíris seria assassinado pelo seu irmão, Set. E um dia, outras
previsões de Rá se tornariam verdade.
— Vamos, Bastet — Rá chamou. — Não somos mais queridos.
O trono explodiu em uma coluna de chamas, queimando o abrigo azul
e dourado. Uma bola de fogo subiu aos céus, até que foi perdido no brilho
do sol.
Quando a fumaça se dissipou, Ísis ficou sozinha e riu com prazer.
— Consegui! — exclamou. — Osíris, você será rei! Dominei o nome secreto
de Rá!
Queria lhe dizer que ela não havia dominado nada, mas só pude ver
como Ísis dançou por todo o barco. Ela ficou tão satisfeita com seu próprio
sucesso que não prestou atenção nos servos mágicos luminosos desapare-
cendo. As cordas caíram. A vela foi folgada. Remos arrastaram na água, e o
barco Sol caiu no rio, não tripulado.
Minha visão falhou, e mergulhei na escuridão.
Acordei em uma cama macia. Por um momento feliz, pensei que eu estava
de volta ao meu quarto na Casa do Brooklyn. Eu poderia me levantar e ter
um café da manhã com meus amigos, Amós, Filipe da Macedônia, e Khufu,
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você entendesse uma pessoa, mais poder o seu nome poderia render. Você
só poderá aprender um nome secreto da própria pessoa ou da pessoa mais
próxima ao seu coração.
E que o céu me ajude, para mim Carter era essa pessoa.
Carter, pensei. Qual é seu nome secreto?
Mesmo doente, sua mente resistia a mim. Você não cede apenas seu
nome secreto. Todo ser humano tinha um, assim como Deus fez cada um,
mas a maioria das pessoas passava toda a sua vida não sabendo que jamais
se deve pôr em palavras sua identidade mais particular. É compreensível, na
verdade. Tentar resumir toda sua existência em cinco palavras ou menos.
Não é exatamente fácil, não é?
— Você consegue fazer isso — murmurei. — Você é meu irmão. Eu te amo.
Todas as partes constrangedoras, todas as partes irritantes que imagino que
seja a maior parte você... mil Zias poderiam fugir de você, se soubessem a
verdade. Mas eu não vou. Eu ainda estarei aqui. Agora, me diga o seu nome,
seu grande idiota, para que eu possa salvar sua vida.
Minha mão formigava em sua testa. Sua vida passou por entre meus de-
dos – lembranças fantasmagóricas de quando éramos crianças, vivendo com
nossos pais, em Los Angeles. Vi minha festa de aniversário de quando eu fiz
seis anos e o bolo explodiu. Vi a nossa mãe lendo histórias de ninar para nós
a partir de um livro de ciências da faculdade; nosso pai tocando jazz e dan-
çando comigo em volta da sala, enquanto Carter tapava os ouvidos e gritava:
“Papai!” Vi momentos que eu não tinha compartilhado com meu irmão
também: Carter e meu pai presos em um tumulto em Paris; Carter e Zia
conversando à luz de velas no Primeiro Nomo; Carter sozinho na biblioteca
da Casa do Brooklyn, olhando para seu amuleto Olho de Hórus e lutando
contra a tentação de reivindicar o poder de um deus. Ele nunca me falou
sobre isso, mas me fez sentir aliviada. Achei que eu era a única que tinha
estado tão tentada.
Lentamente, Carter relaxou. Seus piores temores passaram por mim,
seus segredos mais constrangedores. Sua força estava falhando quando o ve-
neno tomou conta de seu coração. Com o sua última gota de força de von-
tade, ele me disse seu nome.
[Naturalmente eu não vou te dizer o que é. Você não pode usá-lo de
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O TRONO DE FOGO
qualquer maneira, ouvindo-o de uma gravação, mas não vou correr riscos.]
Levantei a estatueta de cera e falei o nome secreto de Carter. Imediata-
mente, o veneno recuou de suas veias. A estátua de cera ficou verde e derre-
tida em minhas mãos. A febre de Carter sumiu. Ele estremeceu, respirou
fundo e abriu os olhos.
— Certo — falei com firmeza. — Nunca monte em outra porcaria de mons-
tro-cobra novamente!
— Desculpe... — ele resmungou — Você acabou de...
— Sim.
— Com o meu nome secreto...
— Sim.
— E todos os meus segredos...
— Sim.
Ele gemeu e cobriu o rosto como se quisesse voltar a cair em coma, mas
honestamente, eu não tinha intenção de provocá-lo. Há uma diferença entre
manter seu irmão em seu lugar e ser cruel. Eu não era cruel. Além disso,
depois de ver os mais profundos cantos da mente de Carter, eu estava um
pouco envergonhada, possivelmente até mesmo com medo. Não havia real-
mente muita coisa lá. Comparado com os meus medos e segredos constran-
gedores... ah, cara. Ele estava calmo. Eu esperava que nossa situação nunca
se revertesse e ele tivesse que me curar.
Bes veio com a cabeça de Lênin escondida na curva do braço. Ele obvia-
mente tinha dado uma mordida, a testa de Lênin estava faltando – vítima
de uma choco-lobotomia frontal.
— Bom trabalho, Sadie! — Ele quebrou o nariz de Lênin e ofereceu a
Carter. — Aqui, rapaz. Você merece isso.
Carter fez uma careta.
— O chocolate tem propriedades curativas mágicas?
Bes bufou.
— Se isso fosse verdade, eu seria o mais saudável anão no mundo. Não.
Ele só tem um gosto bom.
— E você vai precisar de sua força — acrescentei. — Temos muito que
conversar.
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SADIE
Apesar de nosso curto prazo – a partir de amanhã, somente mais dois dias
até o equinócio e o fim do mundo – Bes insistiu que nós descansássemos
até a manhã seguinte. Ele avisou que, se Carter se excedesse física ou magi-
camente tão cedo depois de ser envenenado, isto poderia muito bem matá-
lo.
Perder tempo me deixou bastante agitada, mas depois de ter tantas difi-
culdades para reanimar o meu irmão, eu queria muito mantê-lo vivo. E ad-
mito que não estava em condições muito melhores. Estava esgotada magica-
mente. Não acho que poderia ter me movido mais longe do que até a va-
randa.
Bes ligou para a recepção e pediu uma atendente para nos comprar algu-
mas roupas e mantimentos na cidade. Eu não tenho certeza de qual é a pa-
lavra árabe para coturnos, mas a senhora das compras conseguiu encontrar
um novo par. Quando entregou nossas coisas, ela tentou dar as botas para
Carter, em seguida, olhou horrorizada quando Bes apontou para mim. Eu
também consegui um pouco de tintura para cabelo, um confortável par de
jeans, um top de algodão em cores de camuflagem do deserto e um lenço na
cabeça que era, provavelmente, a última moda para as mulheres egípcias,
mas que eu decidi não usar, porque ele provavelmente iria esconder com o
novo roxo realçado que eu queria para o meu cabelo.
Carter ficou com jeans, botas e uma camiseta que dizia Propriedade da
Universidade de Alexandria, em inglês e árabe. Claramente, até mesmo a aten-
dente tinha tachado ele de nerd completo.
A compradora também conseguiu encontrar alguns materiais para a
nossa bolsa de magia – blocos de cera, barbante, até mesmo alguns papiros
e tinta – embora eu duvidasse que Bes explicou-lhe para que fossem.
Depois que ela saiu, Bes, Carter e eu pedimos mais comida do serviço de
quarto. Sentamos na varanda e vimos a tarde passar. A brisa do Mediterrâ-
neo estava fresca e agradável. A Moderna Alexandria estendia-se à nossa es-
querda – uma estranha mistura de reluzentes arranha-céus, sujeira, desmo-
ronamento de edifícios e ruínas antigas. A autoestrada costeira estava lotada
com palmeiras e com todo tipo de veículos desde BMWs até burros. De
nossa suíte, tudo parecia um pouco irreal – a energia bruta da cidade, a agi-
tação e os congestionamentos abaixo – enquanto nós nos sentávamos na
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O TRONO DE FOGO
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SADIE
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O TRONO DE FOGO
Mas alguns dos túmulos mais antigos... bem, teremos que ver. Com duas
partes do Livro de Rá, você deve ser capaz de rastrear a terceira parte uma
vez que você chegar perto o suficiente.
— Como, exatamente? — perguntei.
Bes deu de ombros.
— Quando os itens mágicos se rompem, as peças são como ímãs. Quanto
mais próximos elas ficam, mais atraem umas as outras.
Isso não necessariamente me fez sentir melhor. Imaginei-me correndo
em um túnel em chamas com pergaminhos presos às duas mãos.
— Certo. Então tudo o que teremos que fazer é rastejar através de uma
rede de tumbas de dez mil múmias douradas, que provavelmente, quase ao
certo, não virão à vida nos matar.
— Sim — disse Bes. — Bem, elas não são realmente de ouro maciço. A
maioria delas são apenas pintadas de dourado. Mas, sim.
— Isso faz uma diferença enorme.
— Então está decidido — Carter soou positivamente entusiasmado. — Po-
demos sair de manhã. Qual é a distância?
— Um pouco mais de 320 quilômetros — Bes respondeu — mas as estradas
são duvidosas. E portais... bem, como eu disse, o oásis é amaldiçoado contra
eles. E mesmo se não fosse, estamos de volta ao Primeiro Nomo. Seria sábio
usar tão pouca magia quanto possível. Se vocês forem descobertos no pró-
prio território de Desjardins...
Ele não precisou terminar a frase.
Olhei para o horizonte de Alexandria sumindo ao longo da costa do Me-
diterrâneo brilhante. Eu tentei imaginá-la como pode ter sido em tempos
remotos, antes de Cleópatra, ultima faraó do Egito, que escolheu o lado er-
rado em uma guerra civil romana e perdeu sua vida e seu reino. Esta foi a
cidade onde o Antigo Egito tinha morrido. Não parecia um lugar muito
favorável para começar uma busca.
Infelizmente, eu não tinha escolha. Teria que viajar 320 quilômetros
através do deserto para algum oásis isolado e encontrar uma agulha de um
pergaminho em um palheiro de múmias. Eu não vejo como poderíamos fa-
zer isso no tempo que restava.
Pior, eu ainda não havia dito a Carter minha última gota de informações
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SADIE
sobre a vila de Zia. Poderia apenas manter minha boca fechada. Isso seria
uma coisa egoísta. Podia até ser a coisa certa, como eu precisava de sua ajuda,
e eu não podia dar ao luxo detê-lo distraído.
Mas eu não podia esconder dele. Invadi sua mente e aprendi seu nome
secreto. O mínimo. O mínimo que eu podia fazer era ser sincera com ele.
— Carter... há outra coisa. Set queria que você soubesse. A vila de Zia era
chamada de al-Hamrah Makan.
Carter ficou um pouco verde de novo.
— Você simplesmente esqueceu de mencionar isso?
— Lembre-se, Set é um mentiroso — falei. — Ele não estava sendo útil. Ele
ofereceu a informação porque queria causar o caos entre nós.
Eu poderia dizer que já estava perdendo ele. Sua mente estava presa em
uma corrente forte que estava puxando-o junto desde janeiro – a ideia de
que ele poderia salvar Zia. Agora que eu havia estado em sua mente, eu sabia
que ele não iria descansar – ele não podia descansar – até que a tivesse en-
contrado. Ele foi além de gostar da garota. Se convenceu de que ela era parte
de seu destino.
Um de seus segredos sombrios? No fundo, Carter continua ressentido
por nosso pai não salvar nossa mãe, embora ela tivesse morrido por uma
causa nobre, e mesmo que tenha sido escolha dela se sacrificar. Carter sim-
plesmente não podia falhar com Zia da mesma forma, não importa qual o
perigo. Ele precisava de alguém para acreditar nele, alguém para salvar – e
estava convencido de que Zia era essa pessoa. Desculpe, uma irmã mais nova
simplesmente não faria.
Me machucou, especialmente porque eu não concordei com ele, mas eu
sabia que não adiantava discutir. Iria apenas empurrá-lo para mais longe.
— Al-Hamrah Makan... — ele disse. — Meu árabe não é muito bom. Mas
Makan é vermelho.
— Sim — concordou Bes. — Al-Hamrah significa as areias.
Carter arregalou os olhos.
— O Lugar das Areias Vermelhas! A voz no Museu do Brooklyn, disse
que Zia estava dormindo no Lugar de Areias Vermelhas.
Ele me olhou implorando.
— Sadie, são as ruínas da aldeia natal dela. Foi onde Iskandar a escondeu.
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Eu respirei profundamente.
— Vamos ter que nos separar. Você e Bes vão atrás de Zia. Eu vou achar
o pergaminho.
Bes tossiu.
— Falando em ideias ruins...
Carter não podia me olhar nos olhos. Eu sabia que ele se importava co-
migo. Ele não queria se livrar de mim, mas podia sentir o seu alívio. Ele
queria ser liberado de suas responsabilidades para que ele pudesse procurar
Zia.
— Você salvou minha vida — disse ele. — Eu não posso deixar você ir
sozinha ao deserto.
Eu soltei meu colar shen.
— Não vou sozinha. Walt se ofereceu para ajudar.
— Ele não pode — Bes interrompeu.
— Mas você não vai me dizer o porquê — falei.
— Eu... — Bes vacilou. — Olha, eu prometi a Bastet cuidar de vocês, mantê-
los a salvo.
— E espero que você cuide de Carter muito bem. Ele vai precisar de você
para encontrar essa vila. Quanto a mim, Walt e eu podemos conseguir.
— Mas...
— Seja qual for o segredo obscuro de Walt, o que você está tentando
proteger, está fazendo-o infeliz. Ele quer ajudar. E eu vou deixar.
O anão olhou para mim, talvez se perguntando se ele poderia gri-
tar BOO! E vencer a discussão. Acho que ele percebeu que eu era muito tei-
mosa.
Ele suspirou, resignado.
— Dois jovens viajando sozinhos pelo Egito... um menino e uma menina.
Vai parecer estranho.
— Eu só vou dizer que Walt é meu irmão.
Carter fez uma careta. Eu não tinha a intenção de ser dura, mas acho
que o comentário foi um pouco doloroso. Olhando para trás, sinto muito
por isso, mas na época eu estava apavorada e com raiva. Carter estava me
colocando em uma posição impossível.
— Vão — disse com firmeza. — Salvem Zia.
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O TRONO DE FOGO
Carter tentou ler a minha expressão, mas evitei olhar para ele. Este não
era o momento para que tivéssemos uma de nossas conversas em silêncio.
Ele realmente não ia querer saber o que eu estava pensando.
— Como vamos nos encontrar? — ele perguntou.
— Vamos nos encontrar novamente aqui — sugeri. — Vamos sair ao ama-
nhecer. Nos dê 24 horas, nada mais, para eu achar o livro, você achar a vila
de Zia, e nós dois voltamos para Alexandria.
Bes resmungou.
— Não há tempo suficiente. Mesmo se tudo correr perfeitamente, isso vai
deixar você com cerca de 12 horas para montar o Livro de Rá e usá-lo antes
da véspera do equinócio.
Ele estava certo. Era impossível.
No entanto, Carter concordou.
— É nossa única chance. Temos que tentar.
Ele olhou para mim esperançoso, mas acho que eu sabia ainda assim que
não nos encontraríamos em Alexandria. Éramos os Kane, o que significava
que tudo ia dar errado.
— Tudo bem — murmurei. — Agora, se vocês me dão licença, devo ir
arrumar as malas.
Caminhei para dentro antes que eu pudesse começar a chorar.
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13. Um demônio entra em meu nariz
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NESTE PONTO, EU DEVERIA MUDAR meu nome secreto para Morrendo de Ver-
gonha da Minha Irmã, porque isso praticamente resumia a minha existência.
Vou pular nossos preparativos para a viagem, como Sadie convocou Walt
e explicou a situação, como Bes e eu nos despedimos ao amanhecer e aluga-
mos um carro de um dos “amigos de confiança” de Bes, e como o carro
quebrou a meio caminho para o Cairo.
Basicamente, vou pular para a parte onde Bes e eu estávamos nos mo-
vendo ruidosamente por uma estrada empoeirada na parte traseira de uma
caminhonete dirigida por alguns beduínos, procurando por uma aldeia que
já não existia.
Era fim de tarde, e eu estava começando a achar que a estimativa de Bes
de precisar de um dia para encontrar al-Hamrah Makan era muito otimista.
A cada hora que perdíamos, meu coração se sentia mais pesado. Arrisquei
tudo para ajudar Zia. Deixei Amós e nossos iniciados sozinhos na casa no
Brooklyn para se defenderem contra o mago mais maligno no mundo. Dei-
xei minha irmã continuar a busca pelo último pergaminho sem mim. Se eu
falhasse em encontrar Zia... bem, eu não posso falhar.
Viajar com nômades profissionais tinha algumas vantagens. Os beduínos
conheciam todas as aldeias, fazendas e encruzilhadas empoeiradas do Egito.
Eles estavam felizes em parar e perguntar aos habitantes locais sobre a aldeia
desaparecida que nós buscávamos.
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O TRONO DE FOGO
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CARTER
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O TRONO DE FOGO
corpo e meu ombro começava a doer onde a tjesu heru tinha me mordido.
Em torno de seis horas da tarde chegamos à nossa primeira pista. Um
velho felá, um camponês fazendeiro vendendo tâmaras à beira da estrada,
disse que conhecia a aldeia que nós estávamos procurando. Quando ouviu
o nome de al-Hamrah Makan, ele fez um sinal de proteção contra o Mau-
Olhado, mas já que Bes era quem havia perguntando, o velho nos contou o
que sabia.
Ele disse que Areias Vermelhas era um mau lugar, muito amaldiçoado.
Ninguém o visitava atualmente. Mas o velho se lembrava da aldeia antes de
ter sido destruída. Nós a acharíamos a dez quilômetros ao sul, numa curva
do rio onde a areia tornava-se vermelho vivo.
Bem, isso é obvio, eu pensei, mas eu não podia deixar de ficar animado.
Os beduínos decidiram fazer acampamento para passar a noite. Eles não
iriam conosco o resto do caminho, mas disseram que ficariam honrados se
tomássemos emprestada sua caminhonete.
Alguns minutos depois, Bes e eu estávamos viajando na picape. Bes usava
um chapéu flexível quase tão feio quanto sua camiseta havaiana. Ele estava
sentado tão para baixo, que eu não tinha certeza se ele podia ver alguma
coisa, principalmente porque ele estava com o painel quase no nível do olho.
Cada vez que atingíamos um obstáculo, bugigangas beduínas chocalha-
vam no espelho retrovisor – um disco de metal gravado com caligrafia árabe,
uma árvore de natal – purificadores de ar em forma de pinheiro, alguns den-
tes de animal em uma tira de couro e um pequeno ícone de Elvis Presley,
por razões que eu desconhecia. A caminhonete não tinha nenhuma suspen-
são e dificilmente algum estofo nos assentos. Me senti como se estivesse
montando um touro mecânico. Mesmo sem os balanços, meu estômago já
teria se revirado. Depois de meses de procura e espera, eu não podia acredi-
tar que estava tão perto de encontrar Zia.
— Você parece horrível — Bes disse.
— Obrigado.
— Quero dizer magicamente falando. Você não parece pronto para uma
luta. O que quer que seja que está esperando por nós, entende que não vai
ser amigável?
Sob a aba de seu chapéu, seu queixo se projetava como se ele estivesse se
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CARTER
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O TRONO DE FOGO
com um mago como esse. Foi a primeira vez que fui capturado.
— Mas os magos não prenderam todos os deuses no Duat depois que o
Egito caiu?
— A maioria de nós — Bes concordou. — Alguns dormiram dois milênios
inteiros, até seu pai nos soltar. Outros acordaram ao longo do tempo e a
Casa da Vida pôde encontrá-los e colocá-los de volta no Duat. Sekhmet es-
capou em 1918. Grande epidemia de gripe. Mas alguns deuses como eu es-
tiveram no mundo mortal o tempo todo. Nos dias antigos, eu era só, você
sabe, um cara simpático. Eu assustava espíritos. Os plebeus gostaram de
mim. Então, quando o Egito caiu, os romanos me adotaram como um de
seus deuses. Depois, na Idade Média, os cristãos moldaram gárgulas seme-
lhantes a mim, para proteger suas catedrais e outras coisas mais. Fizeram
lendas sobre gnomos, anões, duendes prestativos, tudo baseado em mim.
— Duendes prestativos?
Ele fez uma careta.
— Você não acha que eu sou prestativo? Eu fico bem em uniformes ver-
des.
— Eu não preciso dessa imagem.
Bes bufou.
— De qualquer modo, a Casa da Vida nunca se preocupou em ir atrás de
mim. Eu só mantive discrição e fiquei longe de problemas. Nunca havia sido
capturado até a Rússia. Provavelmente ainda seria um prisioneiro lá se não
fosse por...
Ele parou a si próprio, como se tivesse percebido que tinha falado de-
mais.
Ele saiu da estrada. A caminhonete sacudindo-se passando sobre mais
areia e rochas, indo em direção ao rio.
— Alguém te ajudou a escapar? — adivinhei. — Bastet?
O pescoço do anão ficou vermelho.
— Não... não Bastet. Ela estava presa no abismo combatendo Apófis.
— Então...
— A questão é, estou livre, e tenho minha vingança. Eu consegui fazer
Alexander Menshikov ser condenado por acusações de corrupção. Ele ficou
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CARTER
humilhado, despojado de sua riqueza e títulos. Sua família inteira foi despa-
chada para a Sibéria. O melhor dia da minha vida. Infelizmente, seu neto
Vladimir retornou. Por fim, ele voltou para São Petersburgo, reconstruiu a
fortuna de seu avô, e assumiu o Décimo Oitavo Nomo. Se Vlad tivesse a
chance de me capturar...
Bes se mexeu no lugar do motorista, como se as molas estivessem ficando
desconfortáveis.
— Eu acho que estou te contando isso porque... você é bom, garoto. A
maneira como você se levantou pela sua irmã sobre a ponte de Waterloo,
pronto para lutar comigo... aquilo precisou de muita coragem. E tentando
montar um tjesu heru? Aquilo foi muito valente. Estúpido, mas valente.
— Hum, Obrigado.
— Você faz eu me lembrar de mim — Bes continuou — quando eu era um
jovem anão. Você é teimoso. E quando se trata de problemas com garotas,
você está completamente perdido.
— Problemas com garotas?
Eu pensei que ninguém poderia me envergonhar tanto como Sadie fez
quando descobriu meu nome secreto, mas Bes estava fazendo um ótimo tra-
balho.
— Isso não é só um problema com uma garota.
Ele me olhou como se eu fosse um pobre cachorro perdido.
— Você deseja salvar Zia. Eu entendo isso. Quer que ela goste de você.
Mas quando você salva alguém... isso complica as coisas. Não fique deslum-
brado por alguém que não pode ter, especialmente se ela te deixa cego para
alguém que é realmente importante. Não... não cometa meus erros.
Eu ouvi a dor em sua voz. Eu sabia que ele estava tentando ajudar, mas
ainda me sentia esquisito recebendo conselhos de um deus de um-metro-e-
vinte-de-altura em um chapéu feio.
— A pessoa que lhe resgatou — eu disse. — Era uma deusa, não era? Al-
guém além de Bastet... Alguém com quem você estava envolvido?
Os dedos do anão ficaram brancos no volante.
— Criança.
— Sim?
— Estou contente que tivemos esta conversa. Agora, se você valoriza os
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O TRONO DE FOGO
seus dentes...
— Eu vou calar a boca.
— Isso é bom — Bes colocou o pé no freio. — Porque acho que chegamos.
O sol estava se pondo nas nossas costas. Tudo a nossa frente estava ba-
nhado em luz vermelha, a areia, a água do Nilo, as montanhas no horizonte.
Mesmo as folhas das palmeiras pareciam que estavam tingidas de sangue.
Set iria amar esse lugar, pensei.
Não havia nenhum sinal de civilização, apenas algumas garças-reais vo-
ando no alto e uma pequena ondulação ocasional no rio: talvez um peixe ou
um crocodilo. Imaginei que essa parte do Nilo não estava muito diferente
do tempo dos faraós.
— Vamos lá — disse Bes. — Traga suas coisas.
Bes não esperou por mim. Quando eu o alcancei, ele estava de pé na
beira do rio, peneirando areia por entre os dedos.
— Não é apenas a luz — percebi. — Essa areia é realmente vermelha.
Bes assentiu com a cabeça.
— Você sabe por quê?
Minha mãe teria dito óxido de ferro ou algo parecido. Ela tinha uma
explicação científica para tudo. Mas algo me disse que Bes não estava procu-
rando por esse tipo de resposta.
— Vermelho é a cor do mal — respondi. — O deserto. Caos. Destruição.
Bes espanou suas mãos.
— Este foi um lugar ruim para se construir uma vila.
Olhei em volta em busca de qualquer sinal de um povoado. A areia ver-
melha estendida em ambos os sentidos por cerca de uma centena de metros.
Árvores frondosas e salgueiros de grama delimitavam a área, mas a areia era
completamente estéril. Do jeito que brilhava e transformava-se debaixo dos
meus pés, lembrou-me dos montes de conchas secas de escaravelho no Duat,
segurando Apófis. Eu realmente desejei que não tivesse pensado nisso.
— Não há nada aqui — falei. — Sem ruínas. Nada.
— Olhe novamente.
Bes apontou para o rio. Juncos velhos e mortos presos aqui e ali em uma
área do tamanho de um campo de futebol. Então que percebi que os juncos
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O TRONO DE FOGO
eu nos arrastamos pelas águas rasas, tentando encontrar algo de útil. Nós
chutamos alguns tijolos, descobrindo alguns trechos de paredes intactas, e
trouxe até alguns fragmentos de cerâmica. Pensei sobre a história que Zia
tinha me contado – como seu pai causou a destruição da aldeia por desen-
terrar um demônio preso em um jarro. Pelo que eu sabia, podia ser fragmen-
tos desse mesmo jarro.
Nada nos atacou com exceção de mosquitos. Nós não encontramos ne-
nhuma armadilha. Mas cada splash no rio me fazia pensar nos crocodilos (e
não o tipo albino simpático como o Filipe no Brooklyn) ou o grande peixe-
tigre dentuço que Zia havia me mostrado uma vez no Primeiro Nomo. Eu
os imaginei nadando em torno de meus pés, tentando decidir qual das per-
nas parecia mais apetitosa.
Com o canto do olho, eu ficava vendo ondinhas e pequenos redemoi-
nhos como se alguma coisa estivesse me seguindo. Quando eu golpeei a água
com minha vara, não havia nada ali.
Depois de uma hora de busca, o sol já estava quase desaparecendo. Nós
devíamos voltar para Alexandria para nos encontrar com Sadie pela manhã,
o que nos deixou quase tempo nenhum para encontrar Zia. E vinte e quatro
horas a contar de agora, na próxima vez que o sol se pusesse, o equinócio
começaria.
Continuamos procurando, mas não encontramos nada mais interessante
do que uma bola de futebol murcha e lamacenta e um conjunto de denta-
duras. [Sim, Sadie, elas eram ainda mais nojentas que a do vovô.] Parei para
esmagar os mosquitos do meu pescoço. Bes pegou algo de dentro d’água –
um peixe se contorcendo ou um sapo – e enfiou-o em sua boca.
— Você tem que fazer isso?
— O quê? — perguntou, ainda mastigando. — É hora do jantar.
Eu me virei com nojo e cutuquei minha vara na água.
Tum.
Eu atingi alguma coisa mais dura que tijolos de barro ou madeira. Aquilo
era uma pedra.
Tracei o fundo com a minha vara. Não era uma rocha. Era uma fileira
plana de blocos talhados. A borda descia para outra fileira de pedras cerca
de um pé menor: como escadas, levando para baixo.
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CARTER
— Bes — chamei.
Ele nadou cuidadosamente até onde eu estava. A água chegou quase até
seus ombros. Sua forma tremeluzia na corrente como se ele pudesse desapa-
recer a qualquer momento.
Mostrei a ele o que eu tinha encontrado.
— Hum.
Ele mergulhou sua cabeça abaixo d’água. Quando voltou, sua barba es-
tava coberta de ervas daninhas.
— Escadas, tudo bem. Me lembra a entrada de uma tumba.
— Uma tumba — repeti — no meio de uma aldeia?
À minha esquerda, houve outro splash.
Bes franziu a testa.
— Você viu isso?
— Sim. Desde que entramos na água. Você não tinha percebido?
Bes colocou o dedo na água como se estivesse testando a temperatura.
— Nós devemos nos apressar.
— Por quê?
— Provavelmente nada. — Ele mentia ainda pior do que o meu pai. —
Vamos dar uma olhada nesta tumba. Divida o rio.
Ele disse isso como se fosse um pedido perfeitamente normal,
como Passe o sal.
— Eu sou um mago de combate — falei. — Eu não sei como dividir um
rio.
Bes pareceu ofendido.
— Ah, vamos lá. Isso é uma coisa normal. Nos dias de Khufu, soube de
um mago que dividiu o Nilo para que pudesse ir no fundo e recuperar o
colar de uma garota. Então houve aquele camarada israelita, Mickey.
— Moisés?
— Sim, ele — Bes disse. — De qualquer modo, você é totalmente capaz de
dividir a água. Nós temos pressa.
— Se é tão fácil, porque você não faz?
— Agora ele toma uma atitude. Eu te disse, garoto, água corrente interfere
no poder divino. Provavelmente é uma das razões de Iskandar ter escondido
sua amiga lá embaixo, se é onde ela está. Você pode fazer isso. Apenas...
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O TRONO DE FOGO
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CARTER
começar me matando.
Minha concentração vacilou. A coisa avançou em mim, destruindo meu
escudo e me puxando para debaixo d’água.
Já entrou água pelo seu nariz? Imagine uma onda inteira entrar no seu
nariz – uma onda inteligente que sabe exatamente como te afogar. Eu perdi
minha varinha. Meus pulmões estavam cheios de líquido. Todos os pensa-
mentos racionais se dissolveram no pânico.
Eu me debati e chutei, sabendo que estava à apenas um metro debaixo
água, mas eu não conseguia me levantar. Eu não conseguia ver nada através
da escuridão. Minha cabeça rompeu à superfície, e vi uma vaga imagem de
Bes se lançando em cima de uma tromba d’água, gritando:
— Boo... Já! Seja mais medroso!
Então eu fui para baixo de novo, minhas mãos tentando agarrar a lama.
Meu coração batia forte. Minha visão começou a escurecer. Mesmo se eu
pudesse ter pensado em uma magia, não poderia tê-la dito. Gostaria de ter
poderes de deus do mar, mas eles não eram exatamente especialidade de
Hórus.
Eu estava perdendo a consciência quando algo agarrou meu braço. Eu
dei socos freneticamente, e meu punho atingiu um rosto barbudo.
Rompi à superfície de novo, ofegando. Bes estava meio-afogado próximo
de mim, gritando:
— Estúpido... tentando salvar sua...
O demônio me puxou para baixo novamente, mas de repente, meus pen-
samentos ficaram claros. Talvez esse último bocado de oxigênio tenha feito
isso. Ou talvez esmurrar Bes tenha me tirado do pânico.
Lembrei que Hórus tinha vivido uma situação como essa antes. Set tinha
tentado afogá-lo uma vez, puxando-o para o Nilo.
Eu me conectei a essa memória e fiz dela minha própria.
Alcancei o Duat e canalizei o poder do deus da guerra para dentro de
meu corpo. A fúria me preencheu. Eu não seria encurralado. Eu segui o
Caminho de Hórus. Eu não deixaria uma estúpida múmia líquida me afogar
em 90 centímetros de água.
Minha visão ficou vermelha. Eu gritei, expulsando a água de meus pul-
mões em uma grande explosão.
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O TRONO DE FOGO
WHOOOM!
O Nilo explodiu. Eu desmoronei em um campo de lama.
A princípio, eu estava cansado demais para fazer qualquer coisa além de
tossir. Quando me controlei e consegui parar de cambalear, limpei o lodo
dos meus olhos e pude ver que o rio tinha mudado seu curso. Ele agora
contornava as ruínas da aldeia. Expostos na lama vermelho-brilhante esta-
vam tijolos e placas, lixo, roupas velhas, o para-lama de um carro e ossos que
poderiam ter sido de um animal ou de um ser humano. Alguns peixes se
debatiam ao redor, se perguntando aonde o rio tinha ido. Não havia ne-
nhum sinal de demônios aquáticos. A cerca de três metros de distância, Bes
estava olhando zangado para mim. Ele tinha um nariz sangrando e estava
enterrado na lama até a cintura.
— Geralmente, quando você divide um rio — ele murmurou — isso não
implica esmurrar um anão. Agora, me tire daqui!
Eu consegui livrá-lo, o que causou um ruído de sucção tão impressio-
nante que desejei que eu o tivesse gravado. [E não, Sadie, eu não vou tentar
fazê-lo pelo microfone.]
— Sinto muito — gaguejei. — Eu não pretendia...
Ele acenou de lado as desculpas.
— Você lidou com os demônios aquáticos. Isso é o que importa. Agora
nós temos que ver se você pode lidar com isso.
Eu me virei e vi a tumba.
Era uma sepultura retangular do tamanho de um closet grande demais,
alinhado com blocos de pedra. Degraus conduziam até uma porta fechada
de pedra gravada com hieróglifos. O maior deles era o símbolo da Casa da
Vida:
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14. Na tumba de Zia Rashid
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O TRONO DE FOGO
um pedaço de madeira com três correntes pontudas no final. Eles não bri-
lhavam ou diziam propriedade de Rá.
— Por que eles estariam aqui? — perguntei.
— Não sei — disse Bes — mas são eles. Ouvi dizer que eles foram trancados
nos cofres do Primeiro Nomo. Só o Sacerdote-leitor Chefe tinha acesso. Eu
acho que Iskandar enterrou com sua amiga aqui.
— Para protegê-la?
Bes deu de ombros, claramente confuso.
— Isso seria como conectar seu sistema de segurança a um míssil nuclear.
Um exagero completo. Não admira que o Apófis não tenha sido capaz de
atacá-la. Isso é uma proteção séria contra o Caos.
— O que acontece se eu acordá-la?
— As magias que a estão protegendo serão quebradas. Pode ser por isso
que Apófis o conduziu até aqui. Uma vez fora do sarcófago, ela é um alvo
mais fácil. Quanto ao porquê de Apófis querer que ela morra, ou porque
Iskandar se deu ao trabalho de guardá-la, eu sei tanto quanto você.
Estudei o rosto de Zia. Durante três meses, eu sonhei em encontrá-la.
Agora, eu estava quase com medo de acordá-la. Ao quebrar o feitiço do sono,
eu poderia acidentalmente machucá-la, ou deixá-la exposta a um ataque de
Apófis. Mesmo se eu conseguisse, e se ela acordasse e decidisse que me odi-
ava? Eu queria acreditar que ela possuía memórias guardadas em seu shabti,
para que ela pudesse recordar os tempos que passamos juntos. Mas se ela
não tivesse, eu não tinha certeza se poderia suportar a rejeição.
Eu toquei o caixão de água.
— Cuidado, garoto — alertou Bes.
Energia mágica ondulou através de mim. Foi sutil, como olhar no rosto
do demônio da água, mas eu podia sentir os pensamentos de Zia. Ela estava
presa em um sonho de afogamento. Ela estava tentando se agarrar à sua
última boa memória: a face gentil de Iskandar quando ele colocou o cajado
e o mangual em suas mãos: Fique com isso, minha cara. Você vai precisar deles.
E não tenha medo. Sonhos não a incomodarão.
Mas Iskandar estava errado. Pesadelos invadiram seu sono. A voz de Apó-
fis sibilou das trevas: eu destruí sua família. E estou indo atrás de você. Zia viu a
demolição de sua aldeia de novo e de novo, enquanto Apófis ria, e o espírito
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CARTER
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O TRONO DE FOGO
— Olá, Bes.
Sua voz era suave e sussurrante, como uma brisa na relva.
— Néftis — disse o anão. — Há quanto tempo.
A deusa da água olhou para Zia, que tremia em meus braços, ainda ofe-
gante.
— Lamento por usá-la como hospedeira — disse Néftis. — Foi uma má
escolha, que quase nos destruiu a ambas. Guarde-a bem, Carter Kane. Ela
tem um bom coração e um destino importante.
— Qual destino? — perguntei. — Como faço para protegê-la?
Em vez de responder, o espírito de Néftis derreteu-se no Nilo. Bes gru-
nhiu com aprovação.
— O Nilo é o lugar onde ela deveria estar. Essa é sua forma apropriada.
Zia ofegava e se contorcia.
— Ela ainda não pode respirar!
Eu fiz a única coisa que eu conseguia pensar. Tentei reanimação boca-a-
boca.
Sim, ok, eu sei como isso soa, mas eu não estava pensando direito.
[Pare de rir, Sadie.]
Honestamente, eu não estava tentando tirar proveito. Eu só estava ten-
tando ajudar.
Zia não viu isso dessa forma. Ela me deu um soco forte no peito, e fiz um
som como um brinquedo estridente. Então ela se virou para o lado e vomi-
tou.
Eu não acho que a minha respiração era tão ruim assim.
Quando ela se concentrou em mim novamente, seus olhos brilhavam
com raiva, como nos velhos tempos.
— Não se atreva a me beijar! — ela conseguiu dizer.
— Eu não estava... eu não...
— Onde está Iskandar? — ela exigiu. — Eu pensei... — Seus olhos perderam
o foco. — Eu tive um sonho que...
Ela começou a tremer.
— Egito Eterno, ele não está... Ele não pode estar...
— Zia...
Eu tentei colocar minha mão no ombro dela, mas ela me empurrou. Ela
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de mim. Tudo o que tínhamos partilhado tinha desintegrado com sua ré-
plica de cerâmica. Mas como eu já mencionei, eu sou teimoso quando dizem
que eu não posso fazer alguma coisa.
— Eu não vou te deixar — apontei para as ruínas de sua aldeia. — Zia, o
local foi destruído por Apófis. Não foi um acidente. Não foi culpa do seu
pai. A serpente estava mirando em você. Iskandar te ajudou porque sentiu
que você tinha um destino importante. Escondeu-a com o cajado do faraó e
mangual pela mesma razão, não apenas porque você estava hospedando uma
deusa, mas porque ele estava morrendo e teve medo de que não seria mais
capaz de protegê-la. Eu não sei o que seu destino é, exatamente, mas...
— Pare! — Ela reacendeu a ponta de seu cajado. Ele brilhou mais intensa-
mente dessa vez. — Você está confundindo os meus pensamentos. Você é
como os pesadelos.
— Você sabe que eu não sou.
Eu provavelmente deveria ter me calado, mas eu não podia acreditar que
Zia iria realmente incinerar-me.
— Antes de morrer, Iskandar percebeu que os velhos métodos tinham
que ser trazidos de volta. Por isso que ele deixou Sadie e eu vivos. Os deuses
e os magos têm de trabalhar juntos. Você... seu shabti... percebeu isso
quando lutamos juntos na Pirâmide Vermelha.
— Garoto — Bes chamou com mais urgência. — Nós realmente devería-
mos ir.
— Venha com a gente — falei à Zia. — Eu sei que você sempre se sentiu
sozinha. Você nunca teve ninguém além de Iskandar, mas eu sou seu amigo.
Nós podemos protegê-la.
— Ninguém me protege! — Ela se pôs de pé. — Eu sou uma escriba da Casa
da Vida!
Chamas dispararam de seu cajado. Procurei por minha varinha, mas é
claro que eu tinha perdido no rio. Instintivamente minhas mãos se fecharam
em torno dos símbolos do faraó, o Cajado de pastor e o mangual de guerra.
Segurei-os em um X na defensiva, e o cajado de Zia quebrou-se imediata-
mente. O fogo se dissipou.
Zia cambaleou para trás, fumaça ondulando de suas mãos.
Ela olhou para mim em um estado de choque absoluto.
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CARTER
o meu avô me ensinou uma magia excelente para prender essa criatura em
especial. Meu avô também me ensinou muitas magias de tormento, que fo-
ram... bastante eficazes no deus anão. Eu sempre quis experimentar.
Desjardins torceu o nariz em desagrado, mas eu não poderia dizer se era
por minha causa ou de Menshikov.
— Carter Kane — disse o Sacerdote-leitor Chefe — eu sabia que você de-
sejava o trono do faraó. Eu sabia que você estava conspirando com Hórus.
Mas agora encontro você segurando o cajado e o mangual de Rá, que desco-
brimos recentemente estarem sumidos de nossos cofres. Mesmo para você,
este é um ato imprudente de agressão.
Eu olhei para as armas em minhas mãos.
— Não é assim. Eu só os encontrei... — parei.
Eu não poderia dizer-lhe que os símbolos tinham sido enterrados com
Zia. Mesmo que ele acreditasse em mim, isso podia colocar Zia em apuros.
Desjardins assentiu como se eu tivesse confessado. Para minha surpresa,
ele parecia um pouco triste com isso.
— Como eu pensei. Amós assegurou-me de que você era um servo hon-
roso do Maat. Em vez disso, descubro que você é um deus menor e um la-
drão.
— Zia — eu me virei para ela. — Você tem que ouvir. Você está em perigo.
Menshikov está trabalhando para Apófis. Ele vai te matar.
Menshikov fez um bom trabalho em parecer ofendido.
— Por que eu iria querer prejudicá-la? Eu sinto que ela está livre de Néftis
agora. Não é culpa dela que a deusa invadiu a sua forma. — Ele estendeu a
mão para Zia. — Estou contente de vê-la segura, criança. Você não tem culpa
da decisão estranha de Iskandar, em seus últimos dias de lhe esconder aqui,
suavizando sua atitude para com estes criminosos Kane. Venha para longe
do traidor. Venha para casa com a gente.
Zia hesitou.
— Eu tinha... Eu tinha sonhos estranhos...
— Você está confusa — disse gentilmente Desjardins. — Isso é natural.
Seu shabti transmitia suas memórias para você. Você viu Carter Kane e sua
irmã fazerem um pacto com Set na Pirâmide Vermelha. Ao invés de destruir
o Lorde Vermelho, deixaram-no ir. Você se lembra?
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S
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15. Camelos são maus...
D
I
E
SIM CARTER, TODO O NEGÓCIO com os demônios aquáticos deve ter sido
horrível. Mas eu não sinto simpatia alguma por você, porque 1) você mesmo
quis fazer essa viagem sozinho e 2) porque enquanto você estava resgatando
Zia, eu estava lidando com camelos.
Camelos são nojentos.
Você deve pensar: Mas, Sadie, eram camelos mágicos, convocados por um dos
amuletos do Walt. Que cara inteligente, esse Walt! Sem dúvida, camelos mágicos
são melhores que os camelos normais.
Eu posso agora atestar que camelos mágicos cospem, defecam, babam,
mordem, comem e o pior, cheiram como camelos normais. Na verdade, a
sujeira deles é magicamente realçada.
Não começamos com os camelos, claro. Começamos nosso caminho até
eles com uma série de horríveis e progressivas maneiras de se transportar.
Primeiro pegamos um ônibus para uma pequena cidade a oeste de Alexan-
dria – um ônibus sem ar condicionado, no meio de homens que ainda não
haviam descoberto os benefícios do desodorante. Então alugamos um mo-
torista para nos levar a Bahariya – um motorista que primeiro teve a coragem
de tocar as melhores do Abba e comer cebolas, e que depois nos levou para
o meio do nada e... surpresa! Nos apresentou para seus amigos, os bandidos,
que estavam entusiasmados para roubar adolescentes americanos indefesos.
Adorei mostrar a eles como meu cajado se transforma em um leão grande e
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a ele sobre nossos apuros. Com um pouco mais, eu seria capaz de literal-
mente trazê-lo através do Duat para o meu lado. Que item mágico cômodo:
garoto gostoso instantâneo.
Aqui, porém, ele foi se tornando cada vez mais quieto e desconfortável.
Estava vestido como um adolescente americano normal numa excursão ao
ar livre – uma regata preta que caía muito bem nele, calças de caminhada e
botas. Se você olhasse melhor, veria que ele trouxe muitos equipamentos
mágicos que fez. Ao redor de seu pescoço estava um verdadeiro zoológico de
amuletos animais. Três anéis brilhando em cada mão, e em sua cintura havia
um cinto de corda que eu não tinha visto antes, então imaginei que tivesse
poderes mágicos. Ele também carregava uma mochila, sem dúvida estufada
com mais artefatos. Apesar de seu arsenal pessoal, Walt parecia terrivel-
mente nervoso.
— Tempo ótimo — eu disse.
Ele franziu a testa, saindo de seus pensamentos.
— Desculpe, eu estava pensando.
— Sabe, às vezes falar ajuda. Por exemplo, ah, sei lá. Se eu tivesse um
grande problema, algo que oferece risco de vida e eu tivesse confiado apenas
em Jaz... e se Bes soubesse o que estava acontecendo, mas não falasse... e se
eu tivesse concordado em começar uma aventura com uma boa amiga, e
tivesse horas para conversar enquanto atravessássemos o deserto, talvez eu
me sentisse tentada a dizer a ela o que estava errado.
— Hipoteticamente falando — ele disse.
— Sim. E se essa garota fosse a última pessoa na Terra a saber o que estava
errado comigo, e se realmente se importasse... Bem, eu posso imaginar que
ela ficaria bem frustrada por ficar tanto tempo no escuro. E ela poderia,
hipoteticamente, estrangular você... quero dizer eu. Hipoteticamente.
Walt deu um sorriso fraco. Apesar de eu não poder dizer que os olhos
dele me derreteram tanto quando os de Anúbis, ele tinha um rosto maravi-
lhoso. Não parecia nada com meu pai, mas ele tinha o mesmo tipo de força
e beleza rude – um tipo de gravidade suave que me faz sentir mais segura, e
com um pouco mais de pé no chão.
— É difícil pra mim falar disso — ele disse — não tinha intenção alguma
de esconder nada de você.
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perto de gatos. Pelo jeito, esse gato vai precisar de uma recarga quando eu
for embora. Algum peixe bom, talvez, ou um pouco de leite...
— Bastet — interrompi. — Você disse que tinha uma mensagem?
— Certo. Apófis está acordando.
— Nós sabíamos!
— Mas é pior do que pensamos — ela continuou. — Ele tem uma legião
de demônios trabalhando em sua prisão, e planeja se libertar ao mesmo
tempo em que você acordar Rá. Na verdade, ele está contando com que você
liberte Rá. É parte de seu plano.
Minha cabeça parecia ter virado geleia, mas deve ter sido porque Katrina,
o camelo, estava mastigando meu cabelo.
— Apófis quer que libertemos seu arqui-inimigo? Isso não faz sentido.
— Não posso explicar — Bastet disse — mas quanto mais perto chego de
sua prisão, eu posso captar seus pensamentos. Acho que por termos lutado
tantos séculos, temos algum tipo de conexão. De qualquer jeito, o equinócio
começa amanhã ao pôr-do-sol, como eu disse. Na alvorada seguinte, a manhã
de 21 de março, Apófis pretende erguer-se do Duat. Ele planeja engolir o sol
e destruir o mundo. E acredita que seu plano de acordar Rá o ajudará a fazer
isso.
Walt franziu a testa.
— Se Apófis quer que o façamos, porque está tentando tanto nos impe-
dir?
— Está mesmo? — perguntei.
Dúzias de pequenos detalhes que me intrigaram durante dias de repente
fizeram sentido. Porque Apófis apenas assustou Carter no Museu do Bro-
oklyn, quando as Flechas de Sekhmet poderiam tê-lo destruído? Como esca-
pamos tão facilmente de São Petersburgo? Por que Set tinha dito voluntari-
amente a localização do terceiro pergaminho?
— Apófis deseja o caos — lembrei. — Ele quer dividir seus inimigos. Se Rá
retornar, isso poderia nos deixar no meio de uma guerra civil. Os magos já
estão divididos. Os deuses estariam brigando entre eles. Não haveria regra
clara. Se Rá não renascer numa nova forma forte... se ele é tão velho e frágil
quanto eu vi em minha visão...
— Então não devemos acordar Rá? — perguntou Walt.
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céu e batia na areia dura abaixo. Não havia muito mais à vista exceto palmei-
ras, algumas ferramentas manchadas e um compensado jogado no chão. O
símbolo estava pintado de spray em árabe e inglês, provavelmente em alguma
tentativa do dono de vender seus artigos em marketing. O inglês dizia: En-
contros, o melhor breço. Bebsi gelada.
— Bebsi? — perguntei.
— Pepsi — disse Walt. — Li sobre isso na internet. Não existe “p” em
árabe. Todo mundo chama de Bebsi.
— Então você brecisa comer Bebsi com bizza?
— Brovavelmente.
Limpei a garganta.
— Se é um terreno de escavação, não deveria ter mais atividade? Arqueó-
logos? Cabines de ingresso? Vendedores de lembrancinhas?
— Talvez Bastet nos mandou a uma entrada secreta — disse Walt. — Me-
lhor que passar escondido no meio de um monte de guardas e zeladores.
Uma entrada secreta parecia bem intrigante, mas a não ser que a torre
fosse um ponto de teleporte, ou uma das árvores tivesse uma porta escon-
dida, eu não tinha certeza que era tão ah-que-grande-ajuda-de-entrada-deve-ser.
Eu chutei o símbolo da Bebsi. Não havia mais nada a não ser a areia, tor-
nando-se lama lentamente, conforme a água pingava no chão.
Então olhei com mais atenção para a mancha de umidade no chão.
— Espere aí — falei.
A água estava empoçada como um pequeno canal, como se a areia tivesse
uma fissura subterrânea. A fenda tinha mais ou menos um metro de largura
e não mais espessa que um lápis, mas muito reta para ser natural. Eu toquei
a areia. Seis centímetros abaixo, minhas unhas arranharam pedra.
— Ajude-me a limpar isso — pedi a Walt.
Um minuto depois, desenterramos uma pedra pavimentada de mais ou
menos um metro quadrado. Tentei puxar pelas bordas molhadas, mas a pe-
dra era grande e pesada demais para levantar.
— Podemos usar algo como alavanca — Walt sugeriu. — Para erguê-la.
— Ou... — falei — vá pra trás.
Walt parecia prestes a protestar, mas quando peguei meu cajado, ele en-
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tendeu que era melhor sair do meu caminho. Com o meu novo entendi-
mento da magia dos deuses, eu não pensei muito sobre o que eu precisava,
apenas senti uma conexão com Ísis. Lembrei-me de uma situação que ela en-
controu o caixão de seu marido dentro de um tronco de cipreste, e em sua
raiva e desespero ela partiu a árvore. Canalizei aquelas emoções e apontei
para a pedra:
— Ha-di!
Notícia boa: o feitiço funcionou melhor que em São Petersburgo. O hi-
eróglifo brilhou no final do meu cajado, e a pedra explodiu, revelando um
buraco escuro abaixo dela.
Notícia ruim: não foi só isso que eu destruí. Em volta do buraco, o chão
começou a se desfazer. Walt e eu nos arrastamos para trás enquanto mais
pedras caíam na fissura, e reparei que eu desestabilizei toda a entrada de um
cômodo subterrâneo. O buraco alargou-se até que alcançou os suportes da
torre. A torre começou a rachar.
— Corre! — gritou Walt.
Não paramos até que estivéssemos escondidos atrás de uma palmeira
treze metros longe. A torre tinha centenas de diferentes rachaduras, e sacu-
dia-se para frente e para trás como um bêbado, e então se inclinou em nossa
direção e caiu, encharcando-nos da cabeça aos pés e inundando as fileiras de
palmeiras.
O barulho foi tão ensurdecedor que deve ter sido ouvido através do oá-
sis.
— Oops — eu disse.
Walt olhou para mim como se eu estivesse louca. Eu estava me sentindo
tão culpada quanto era. Mas é tão tentador fazer as coisas voarem pelos ares,
não é?
Corremos para A Cratera Memorável de Sadie Kane. Agora era do tama-
nho de uma piscina. Cinco metros abaixo, sobre uma pilha de areia e rochas,
havia fileiras de múmias, todas enroladas em roupas antigas e acamadas em
pedra. As múmias agora estavam achatadas. Estava com medo, mas pude
dizer que elas estavam pintadas de vermelho, azul e dourado.
— Múmias douradas.
Walt pareceu horrorizado.
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— Parte do sistema da tumba que não havia sido escavado ainda. Você
acabou de arruinar...
— Eu disse Oops. Agora, me ajude aqui, antes que o dono dessa torre apa-
reça com uma espingarda.
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S
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16. ... Mas não tão maus quanto os romanos
D
I
E
PARA SER JUSTA, AS MÚMIAS naquela sala já estavam bem arruinadas, graças
à umidade da torre vazando acima. Adicionar água em múmias causa um
cheiro realmente horrível.
Descemos pelos escombros e encontramos um corredor levando mais
para o subsolo. Eu não podia dizer se era natural ou feito pelo homem, mas
serpenteamos uns bons quarenta metros pela rocha sólida antes de chegar-
mos à outra câmara funerária. Essa sala não tinha sido danificada pela água.
Tudo estava extraordinariamente bem preservado. Walt trouxera lanternas,
e na luz opaca, nas placas de pedra e nos nichos esculpidos ao longo das
paredes, múmias pintadas de ouro brilhavam. Elas eram pelo menos cem só
naquela sala, e mais corredores levavam a todas as direções.
Walt colocou a luz em três múmias deitadas juntas em um trono do cen-
tro. Seus corpos estavam completamente enrolados em linho, então elas se
pareciam bastante com pinos de boliche. Suas semelhanças foram pintadas
no linho em detalhes meticulosos – mãos cruzadas sobre seus peitos, joias
enfeitando seus pescoços, saias egípcias e sandálias, e um esquadrão de hie-
róglifos protetores e imagens de deuses na borda de cada lado. Tudo isso era
arte egípcia, mas seus rostos foram feitos em um estilo completamente dife-
rente – retratos realistas que pareciam recortar-e-colar nas cabeças das mú-
mias. Na esquerda estava um homem com um rosto barbado e fino e tristes
olhos escuros. Na direita estava uma mulher bonita com cabelo curto ruivo.
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O que realmente puxou meu coração, acho, foi à múmia do meio. Seu corpo
era muito pequeno – obviamente uma criança. Seus retratos mostravam um
garoto de cerca de sete anos de idade. Ele tinha os olhos do homem e o
cabelo da mulher.
— Uma família — Walt adivinhou. — Enterrada junta.
Havia alguma coisa dobrada debaixo do cotovelo direito da criança – um
cavalo de madeira pequeno, provavelmente seu brinquedo favorito. Mesmo
que essa família estivesse morta por milhares de anos, não consegui não ficar
com lágrimas nos olhos. Era tão cruel e triste.
— Como eles morreram? — perguntei.
Do corredor bem na nossa frente, uma voz ecoou.
— Da doença do desperdício.
Meu cajado estava instantaneamente na minha mão. Walt apontou sua
lanterna para a porta, e um fantasma entrou na sala. Pelo menos eu achei
que fosse um fantasma, pois ele era transparente. Era um homem gordo e
velho com cabelo branco curto, bochechas de buldogue, e uma expressão
intrigada. Ele vestia roupas do estilo romano e delineador Kohl, então se pa-
recia bastante com Winston Churchill – se o antigo primeiro ministro ves-
tisse uma toga de festa selvagem e pintasse seu rosto.
— Recém-mortos? — Ele olhou para nós com cuidado. — Não vejo recém-
chegados há muito tempo. Onde estão seus corpos?
Walt e eu olhamos um para o outro.
— Na verdade — eu disse — estamos vestindo eles.
As sobrancelhas do fantasma levantaram.
— Di immortales! Vocês estão vivos?
— Por enquanto — Walt respondeu.
— Então vocês trouxeram oferendas? — o homem esfregou as mãos. —
Oh, eles disseram que vocês viriam, mas eu esperei eras! Onde estiveram?
— Hmm...
Eu não queria desapontar o fantasma, especialmente enquanto ele estava
começando a brilhar mais intensamente, o que na magia geralmente é um
prelúdio de explosão.
— Talvez devêssemos nos apresentar. Eu sou Sadie Kane. Esse é Walt...
— Claro! Vocês precisam de meu nome para o encanto — o fantasma
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muito antes de nós romanos viermos. Seus bas todos se mudaram agora. Não
há problemas para entrar no Duat para eles. Mas seus locais escondidos
ainda estão intactos, muitas relíquias e assim por diante.
— Você está disposto a nos mostrar? — Walt perguntou, com mais empol-
gação que eu podia ter controlado.
— Oh, sim — Cláudio Maluco nos deu seu melhor sorriso de “vendedor
de bigas”. — E depois, vamos conversar sobre uma recompensa apropriada,
hein? Venham, meus amigos. Não é longe.
Nota pessoal: Quando um fantasma oferece para te guiar para mais fundo
em uma escavação escondida e seu nome inclui a palavra Maluco, é melhor
dizer não.
Enquanto passávamos pelos túneis e câmaras, Cláudio Maluco nos dava
comentários rápidos das várias múmias. Sobre Calígula, o comerciante da
época:
— Nome horrível! Mas uma vez vocês o nomearam para um imperador,
mesmo um psicótico, vocês não podem fazer muito sobre isso. Ele morreu
apostando com alguém que podia beijar um escorpião.
Varens, o traficante de escravos:
— Homem nojento. Tentou entrar para o negócio de gladiador. Se você
desse a um escravo uma espada, bem... você pode imaginar como ele morreu!
Otávia, a mulher do comandante da legião:
— Era completamente nativa! Teve seu gato mumificado. Ela até acredi-
tava ter o sangue dos faraós e tentou canalizar o espírito de Ísis. Sua morte,
desnecessário dizer, foi dolorosa.
Ele sorriu para mim como se fosse extremamente engraçado. Tentei não
parecer horrorizada.
O que mais me atingiu foi o grande número e variedade de múmias.
Algumas estavam embrulhadas em ouro de verdade. Seus retratos pareciam
tão naturais, seus olhos pareciam me seguir enquanto passávamos. Elas sen-
tavam em esculturas de mármore cercadas de objetos de valor: joias, vasos,
até alguns shabti. Outras múmias pareciam como se as crianças da creche
tivessem feito na aula de artes. Elas estavam grosseiramente enroladas, pin-
tadas com hieróglifos fracos e pequenas figuras de deuses de palitos. Seus
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retratos não eram muito melhores do que eu teria feito – o que quer dizer,
medonho. Seus corpos foram cheios profundamente em três nichos superfi-
ciais, ou simplesmente empilhados nos cantos do quarto.
Quando perguntei sobre eles, Cláudio Maluco foi desdenhoso.
— Plebeus. Imitadores. Não tem dinheiro para artistas e rituais fúnebres,
então tentaram a abordagem faça-você-mesmo.
Olhei para baixo para o retrato mais próximo da múmia, seu rosto era
uma imagem pintada a dedo brutamente. Me perguntei se seus filhos de luto
tinham feito isso – um único presente para sua mãe. Apesar de sua qualidade
ruim, percebi que era bem encantador. Eles não tinham dinheiro e nem
habilidade artística, mas fizeram o seu melhor para carinhosamente mandá-
la para a pós-vida. Da próxima vez que visse Anúbis, pediria a ele sobre isso.
Uma mulher como essa merecia uma chance de felicidade no próximo
mundo, mesmo que ela não pudesse pagar. Tivemos esnobismo o suficiente
nesse mundo sem exportá-lo para o além.
Walt se arrastava atrás de nós, sem falar. Ele colocava sua luz em uma
múmia ou outra, como se pensasse no destino de cada uma. Me perguntei
se ele estava pensando no rei Tut, seu ancestral famoso, cuja tumba tinha
sido uma caverna não muito diferente dessa.
Depois de vários túneis mais longos e lotados de salas de múmias, chega-
mos a uma câmara funerária que era claramente muito velha. As pinturas
na parede tinham desbotado, mas elas pareciam mais autenticamente egíp-
cias, com pessoal andando de lado e hieróglifos que na verdade formavam
palavras, ao invés de simplesmente oferecer decoração. Em vez de retratos
faciais realistas, as múmias tinham genéricos com olhos arregalados, rostos
sorridentes que eu tinha visto na maioria das máscaras de morte egípcias.
Algumas tinham desintegrado em poeira. Outras estavam envoltas em sar-
cófagos de pedra.
— Nativos — Cláudio Maluco confirmou. — Nobres egípcios de antes de
Roma assumir. O que vocês estão procurando pode estar em algum lugar
dessa área.
Vasculhei a sala. A única outra porta estava bloqueada com pedras e es-
combros. Enquanto Walt começava a procurar, lembrei do que Bes tinha
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— Esse é o símbolo was — Walt disse. — Quer dizer poder. Muitos deuses
tinham cajados como esse, mas nunca percebi que parecia...
— Sim, sim — Cláudio disse impaciente. — A faca cerimonial dos sacerdo-
tes para a abertura da boca da morte. Honestamente, vocês sacerdotes egíp-
cios estão sem solução. Não é à toa que nós os conquistamos com tanta
facilidade.
Minha mão agiu por conta própria, vasculhando minha bolsa e tirando
a lâmina netjeri escura que Anúbis tinha me dado.
Os olhos de Cláudio Maluco brilharam.
— Ah, então vocês não são sem solução. Isso é perfeito! Com essa faca e
o encanto apropriado, vocês devem conseguir tocar minha múmia e me li-
bertar para o Duat.
— Não — eu disse. — Não, é mais que isso. A faca, o Livro de Rá, essa
estátua do deus do cuspe. Tudo isso se encaixa de algum jeito.
O rosto de Walt se iluminou.
— Sadie, Ptá era mais que o deus artesão, certo? Ele não era chamado de
Deus da Abertura?
— Hmm... é possível.
— Acho que você nos ensinou isso. Ou talvez fosse Carter.
— Esse tipo de informação chata? Provavelmente Carter.
— Mas é importante — Walt insistiu. — Ptá era um deus da criação. Em
algumas lendas, ele criou as almas da humanidade só falando uma palavra.
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Eu nasci para fazer magia, então a maldição progride em mim, não importa
o que eu faça. Em alguns dias isso não é tão ruim. Quando eu faço magia,
ela piora.
— E quanto mais você fazer...
— Mais rápido eu morro.
Eu dei um soco em seu peito. Não podia ajudar nisso. Todo o meu so-
frimento e culpa virou raiva.
— Seu idiota! Por que você está aqui, então? Você deveria ter me falado
para dar o fora! Bes te avisou para ficar no Brooklyn. Por que você não ou-
viu?
O que eu te disse mais cedo sobre os olhos de Walt não me fazerem
derreter? Retiro o que disse. Quando ele olhou para mim naquela tumba
empoeirada, seus olhos estavam tão escuros, sensíveis e tristes quanto os de
Anúbis.
— Vou morrer de qualquer jeito, Sadie. Eu quero que minha vida signi-
fique alguma coisa. E... quero perder todo tempo que puder com você.
Isso me machucou mais que um soco no peito. Muito mais.
Acho que eu deveria ter beijado ele. Ou possivelmente dado um tapa.
Cláudio Maluco, no entanto, não era uma audiência simpática.
— Muito meigo, tenho certeza, mas vocês me prometeram um paga-
mento! Voltar para as tumbas romanas. Libertar meu espírito da múmia.
Então libertar os outros. Depois disso, vocês podem fazer o que bem-enten-
derem.
— Os outros? — perguntei. — Você ficou maluco?
Ele me encarou.
— Pergunta idiota — admiti. — Mas há milhares de múmias. Só temos
uma faca.
— Vocês prometeram!
— Não prometemos — eu disse. — Você disse que iria discutir uma taxa de-
pois de encontrarmos o pergaminho. Não encontramos nada além de um
beco sem saída aqui.
O fantasma rosnou, mais como um lobo que um humano.
— Se vocês não vierem conosco — ele disse — teremos que ir com vocês.
Seu espírito brilhou, então desapareceu em um clarão.
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Apesar de nossos melhores esforços, nada pareceu acontecer tão rápido. Não
conseguimos mexer os detritos. Havia muitos pedregulhos. Não consegui-
mos cavar em volta, por cima, ou por baixo. Eu não arrisquei a magia Ha-
di ou usei a magia da lâmina escura. Walt não tinha amuletos que ajudariam.
Eu estava francamente confusa. A estátua de Ptá sorria para nós, mas não
ofereceu qualquer sugestão útil, não que ele parecesse interessado em sua
carne seca e suco.
Finalmente, coberta de poeira, encharcada de suor, sentei em um sarcó-
fago de pedra e examinei meus dedos cheios de bolhas.
Walt se sentou perto de mim.
— Não desista. Tem que haver um jeito.
— Mesmo? — perguntei, me sentindo especialmente ressentida. — Como
tem que haver uma cura para você? E se não tiver? E se...
Minha voz falhou. Walt virou seu rosto escondido na sombra.
— Me desculpe — eu disse. — Isso é terrível. Mas eu não poderia suportar
se...
Eu estava tão confusa, não sabia o que dizer, ou como me sentia. Tudo
o que sabia era que não queria perder Walt.
— Você quis dizer aquilo? — perguntei. — Quando você disse que queria
perder tempo... você sabe.
Walt deu de ombros.
— Não é óbvio?
Não respondi, mas, por favor – nada é óbvio com garotos. Para criaturas
tão simples, eles são bem desorientadores.
Imaginei que estivesse corando ferozmente, então decidi mudar de as-
sunto.
— Cláudio disse que sentia o espírito de Anúbis em você. Você esteve
falando muito com Anúbis?
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uma ligação. Mas mexer alguma coisa tão grande com alguma coisa tão pe-
quena é sempre complicado. Se não fizéssemos isso com cuidado, podíamos
destruir aquela sala. Eu não sabia o quanto no fundo estávamos, mas imagi-
nei que tinha pedra o suficiente e nos enterrar sob nossas cabeças para sem-
pre.
— Pronto? — perguntei.
Walt assentiu e puxou sua varinha.
— Oh, não, garoto amaldiçoado — eu disse. — Você só me dar cobertura.
Se o teto começar a cair e precisarmos de um escudo, esse é seu trabalho.
Mas você não vai fazer nenhuma magia a não ser que seja absolutamente
necessário. Vou limpar a porta.
— Sadie, eu não sou fraco — ele se queixou. — Não preciso de uma prote-
tora.
— Burrice — eu disse. — Isso é arrogância machista, e todos os garotos
gostam de ser cuidados.
— O quê? Deus, você é irritante!
Sorri suavemente.
— Você que queria perder tempo comigo.
Antes que ele pudesse protestar, levantei minha varinha e comecei o en-
canto.
Imaginei uma ligação entre nossa pequena pilha de escombro e os detri-
tos na porta. Imaginei isso no Duat, eles eram um e o mesmo. Falei um
comando de unir.
— Hi-nehm.
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— Isso de um garoto que está disposto a morrer para perder tempo co-
migo?
Walt fez uma saudação exagerado.
— Retiro o que disse, senhorita Kane. Por favor, continue tentando se
matar.
— Obrigada.
Olhei para os três pergaminhos em minhas mãos – o Livro de Rá inteiro,
junto provavelmente pela primeira vez desde que Cláudio Maluco vestiu pe-
quenas fraldas romanas. Eu tinha coletado os pergaminhos, feito o impossí-
vel, triunfado sobre todas as expectativas. No entanto, não seria suficiente
até que conseguíssemos encontrar Rá e acordá-lo antes de Apófis se levantar.
— Não temos tempo para desperdiçar — eu disse. — Vamos...
Um gemido profundo ecoou pelos corredores, como se alguma coisa –
ou uma série de algumas coisas – tivesse acordado em um mau humor da-
nado.
— Sair daqui — Walt disse. — Ótima ideia.
Enquanto corríamos pela câmara anterior, olhei para a estátua de Ptá. Fiquei
tentada a pegar de volta a carne e o suco, só para ser má, mas decidi evitar.
Acho que não é sua culpa, pensei. Não deve ser fácil ter um nome como Ptá.
Aproveite o lanche, mas eu gostaria que você nos ajudasse.
Corremos. Não foi fácil lembrar nosso caminho. Duas vezes tivemos que
voltar antes de encontrar a sala com a família de múmias onde tínhamos
conhecido Cláudio Maluco.
Eu estava prestes a disparar cegamente pela câmara e entrar no último
túnel, mas Walt me segurou e salvou minha vida. Ele apontou sua lanterna
para a saída distante, então nos corredores de cada lado.
— Não — eu disse. — Não, não, não.
Todas as três portas estavam entupidas com figuras humanas enroladas
em linho. Elas se apertaram juntas na medida em que eu podia ver para
baixo em cada corredor. Algumas ainda estavam completamente delimita-
das. Elas pularam e se embaralharam e gingavam para frente como se fossem
casulos gigantes envolvidos em uma corrida de saco. Outras múmias tinham
parcialmente se libertado. Elas se perduravam nas pernas magras, mãos
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como ramos secos arranhando suas roupas. Mas ainda vestiam seus retratos
de rosto pintado, e o efeito foi macabro – máscaras realistas sorrindo sere-
namente no topo de espantalhos vivos de ossos e linho pintado.
— Odeio múmias — choraminguei.
— Talvez um encanto de fogo — Walt disse. — Elas devem queimar fácil.
— Vamos nos queimar, também! Aqui é muito fechado.
— Tem uma ideia melhor?
Eu queria chorar. A liberdade tão perto... assim como eu temia, estáva-
mos presos por um aglomerado de múmias. Mas essas eram piores que mú-
mias de filme. Elas eram silenciosas e lentas, pateticamente coisas arruinadas
que uma vez foram humanas.
Uma das múmias no chão agarrou minha perna. Antes de eu mesmo
poder gritar, Walt estendeu a mão e bateu a coisa no pulso. A múmia virou
pó na hora.
Eu o encarei com espanto.
— É esse o poder que você estava preocupado? Isso é brilhante! Faça isso
de novo!
Imediatamente me senti terrível por sugerir isso. O rosto de Walt estava
tenso com pânico.
— Não posso fazer isso mais mil vezes — ele disse lamentavelmente. —
Quem sabe se...
Então, do trono central, a família de múmias começou a se mexer.
Não vou mentir. Quando a múmia do tamanho de uma criança do pe-
queno Purpens levantou, eu quase tive um acidente que teria arruinado
meus novos jeans. Se meu ba pudesse ter deixado minha pele e voado longe,
ele faria isso.
Agarrei o braço de Walt.
No fim longe da sala, o fantasma de Cláudio Maluco entrou à vista. En-
quanto ele caminhava na nossa direção, o resto das múmias começou a se
mexer.
— Vocês devem ser honrados, meus amigos — ele nos deu um sorriso
maluco. — É preciso muita emoção para o ba voltar para seus antigos corpos
murchos. Mas nós simplesmente não podemos deixar vocês irem até nos
libertarem para a pós-vida. Usem a faca, façam seus encantos, e podem ir.
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de garras. Não tão ruim, você deve achar, mas você já esteve em pé e pisote-
ado por um exército de ratos imundos? Não pague para a experiência.
Os ratos fluíram da câmara funerária. Eles rasgaram as múmias, agar-
rando e mastigando e guinchando em sua minúscula batalha. As múmias se
contorciam debaixo do ataque, mas não tiveram uma chance. O quarto es-
tava em um furacão de pelos, dentes e linho picado. Era como os desenhos
animados antigos de cupins fervilhando sobre a madeira e dissolvendo-a a
nada.
— Não! — gritou Cláudio Louco. — Não!
Mas ele era o único gritando. As múmias murcharam silenciosamente
debaixo da fúria dos ratos.
— Vou acabar com vocês! — Cláudio rosnou enquanto seu espírito come-
çava a tremeluzir. — Vou ter minha vingança!
E com um brilho final do mal, sua imagem desvaneceu e se foi.
Os ratos dividiram suas forças e correram pelos três corredores, masti-
gando as múmias enquanto elas fugiam, até a sala ficar silenciosa e vazia, o
chão cheio de poeira, farrapos de linho, e alguns ossos.
Walt parecia abalado. Caí contra ele e o abracei. Eu provavelmente cho-
rei de alívio. Estava tão feliz de segurar um ser humano vivo e quente.
— Está tudo bem — ele acariciou meus cabelos, que me fez sentir bem. —
Essa... essa foi a história sobre ratos.
— O quê? — Me controlei.
— Eles... eles salvaram Mênfis. Um exército inimigo sitiou a cidade, e as
pessoas rezaram por ajuda. Seu deus patrono mandou uma horda de ratos.
Eles comeram as cordas de arco dos inimigos, suas sandálias, tudo o que
conseguiam mastigar. Os atacantes tiveram que se retirar.
— O deus patrono... você quer dizer...
— Eu.
Da saída do corredor da sala, um fazendeiro egípcio entrou em vista. Ele
vestia roupas sujas, uma cabeça envolvida e sandálias. Segurava uma espin-
garda ao seu lado. Ele sorriu para nós, e enquanto se aproximava, vi que seus
olhos eram completamente brancos. Sua pele tinha um tom levemente azu-
lado, como se ele estivesse sufocando e realmente aproveitando experiência.
— Desculpe por não ter respondido mais cedo — disse o fazendeiro. — Eu
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pouco para chegar aqui do Duat. Também, posso abrir só uma única porta
por cliente. Pensei que tinham aquele corredor bloqueado bem na mão. Mas
há uma porta muito mais importante da qual vocês precisam.
— Como é? — perguntei.
— Seu irmão — Ptá disse. — Ele está em sérios problemas.
Estava tão exausta, suja, e coberta de arranhões de ratos, que as novida-
des fizeram meus nervos formigarem. Carter precisava de ajuda. Eu tinha
que salvar o ridículo do meu irmão.
— Você pode nos mandar para lá? — perguntei.
Ptá sorriu.
— Pensei que nunca pediria.
Ele apontou para a parede mais próxima. As pedras dissolveram em um
portal de turbilhão de areia.
— E, minha querida, algumas palavras de aviso.
Os olhos leitosos de Ptá me estudaram.
— Coragem. Esperança. Sacrifício.
Não tinha certeza se ele estava lendo aquelas qualidades em mim, ou me
dando uma conversa estimulante, ou talvez criando as características que eu
precisava, do jeito que ele criou o ba e o ornitorrinco. Qualquer que fosse o
caso, de repente me senti mais quente, cheia de energia nova.
— Você está começando a entender — ele me disse. — Palavras são a fonte
de todo o poder. E nomes são mais que uma coleção de letras. Muito bem,
Sadie. Você ainda pode ter sucesso.
Olhei para o funil de areia.
— Com o que vamos dar de cara no outro lado?
— Inimigos e amigos — Ptá disse. — Mas quem é quem, não posso dizer.
Se sobreviverem, vão para o topo da Grande Pirâmide. Pode ser um bom
ponto de entrada para o Duat. Quando você ler o Livro de Rá...
Ele engasgou, se dobrando e derrubando sua espingarda.
— Tenho que ir — ele disse, se endireitando com um grande esforço. —
Esse hospedeiro não consegue mais aguentar. Mas, Walt... — ele sorriu sua-
vemente. — Obrigado pela carne seca e o suco. Há uma resposta para você.
Não é uma que irá gostar, mas é o melhor jeito.
— Do que você está falando? — Walt perguntou. — Que resposta?
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17. Menshikov contrata um esquadrão da
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combate lutou para manter sua forma, mas a magia de Menshikov era forte.
As vinhas de incandescência branca continuavam subindo, circundando
meu peito.
Eu abati Menshikov com meu cajado. A força invisível agarrou-o pelo
pescoço e o levantou do chão.
— Faça isto! — ele ofegou. — Mostre-me... o seu poder... deus menor!
Eu levantei meu mangual. Uma boa batida, e eu poderia destruir Vlad
Menshikov como um inseto.
— Não vai importar! — ele engasgou, arranhando seu pescoço. — O feitiço
vai te derrotar de qualquer maneira. Mostre-nos que você é um assassino,
Kane!
Olhei para o rosto aterrorizado de Zia, e hesitei por muito tempo. As
vinhas brancas cercaram meus braços. O avatar de combate dobrou os joe-
lhos, e eu deixei Menshikov cair.
Dor aniquilou o meu corpo. Meu sangue gelou. Os membros do avatar
se encolheram, a cabeça do falcão lentamente se transformou em uma ca-
beça de uma serpente. Eu podia sentir meu coração desacelerando, minha
visão escurecendo. O gosto do veneno encheu minha boca.
Zia gritou.
— Pare! Isso é demais!
— Pelo contrário — Menshikov respondeu, esfregando o pescoço irritado.
— Ele merece coisa pior. Sacerdote-leitor Chefe, você viu como esse garoto
te ameaçou. Ele quer o trono do faraó. Ele deve ser destruído.
Zia tentou correr para mim, mas Desjardins a deteve.
— Interrompa o feitiço, Vladimir — ordenou. — O rapaz pode ser contido
de formas mais humanas.
— Humanas, meu senhor? Ele mal é humano!
Os dois magos travaram os olhos. Eu não sei o que teria acontecido, mas
então um portal se abriu sob a jaula de Bes.
Já vi muitos portais, mas nenhum como este. O vórtice abriu-se ao nível
do solo, sugando uma área de tamanho de um trampolim de areia vermelha,
peixes mortos, madeiras velhas, cacos de cerâmica e a brilhante jaula fluores-
cente contendo um deus anão. Enquanto a jaula entrava no vórtice, as barras
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Sadie e Walt caíram direto no sono, mas eu olhei para as estrelas por um
tempo. Eu estava dolorosamente ciente de que Zia – a verdadeira Zia – dor-
mia irrequieta bem ao meu lado, e as armas mágicas de Rá, o cajado e o
mangual, estavam agora escondidos na minha bolsa. Meu corpo ainda estava
zunindo da batalha. O feitiço de Menshikov havia sido quebrado, mas eu
ainda podia ouvir sua voz em minha cabeça, tentando me transformar em
um réptil de sangue frio – algo como ele.
Finalmente consegui fechar os olhos. Sem proteção mágica, meu ba flu-
tuou à deriva logo que adormeci.
Eu me encontrei no Salão das Eras, em frente ao trono do faraó. Entre
as colunas de ambos os lados, imagens holográficas brilhavam. Assim como
Sadie havia descrito, a borda da cortina mágica estava se transformando de
vermelho para roxo profundo – indicando uma nova era. As imagens em
púrpura eram difíceis de decifrar, mas eu pensei ter visto duas figuras lu-
tando em frente a uma cadeira em chamas.
— Sim — disse a voz de Hórus. — A batalha se aproxima.
Ele apareceu em uma onda de luz, de pé sobre os degraus do tablado
onde o Sacerdote-leitor Chefe costumava sentar. Ele estava na forma hu-
mana, um jovem homem musculoso, pele bronzeada e cabeça raspada. Joias
brilhavam em sua armadura de batalha de couro, sua khopesh pendurada ao
seu lado. Seus olhos brilharam – um ouro, um prata.
— Como você chegou até aqui? — perguntei. — Este local não é protegido
contra os deuses?
— Eu não estou aqui, Carter. Você está. Mas nós estivemos juntos uma
vez. Eu sou um eco em sua mente, uma parte de Hórus que nunca te deixou.
— Eu não entendo.
— Basta ouvir. Sua situação mudou. Você está no limiar da grandeza.
Ele apontou para meu peito. Olhei para baixo e percebi que não estava
na minha forma de ba habitual. Ao invés de um pássaro, eu era um humano,
vestido como Hórus numa armadura egípcia. Em minhas mãos estavam o
cajado e o mangual.
— Não são meus — falei. — Eles estavam enterrados com Zia.
— Eles poderiam ser seus — Hórus replicou. — Eles são os símbolos do
faraó, como o cajado e a varinha, só que cem vezes mais poderosos. Mesmo
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sem prática, você foi capaz de canalizar seus poderes. Imagine o que poderí-
amos fazer juntos.
Ele apontou para o trono vazio.
— Você poderia unir a Casa da Vida como seu líder. Poderíamos esmagar
nossos inimigos.
Eu não vou negar: parte de mim sentiu um arrepio. Meses atrás, a ideia
de ser um líder me aterrorizava até a morte. Agora as coisas mudaram. Mi-
nha própria compreensão da magia tinha crescido. Eu passei três meses en-
sinando e transformando nossos iniciados em uma equipe. Entendi a ame-
aça que estávamos enfrentando de forma mais clara, e eu estava começando
a compreender como canalizar o poder de Hórus sem ser oprimido. E se
Hórus estivesse certo, e eu pudesse liderar os deuses e os magos contra Apó-
fis? Eu gostei da ideia de esmagar nossos inimigos, voltar-me contra as forças
do Caos que virou as nossas vidas de cabeça para baixo.
Então me lembrei do modo que Zia olhou para mim quando eu estava
prestes a matar Vlad Menshikov, como se eu fosse o monstro. Lembrei o
que Desjardins havia dito sobre os maus velhos tempos, quando magos lu-
tavam contra magos. Se Hórus era um eco em minha mente, talvez eu esti-
vesse sendo afetado por seu desejo de governar. Eu conhecia Hórus muito
bem agora. Ele era um bom sujeito de muitas maneiras – corajoso, honrado,
justo. Mas também era ambicioso, ganancioso, invejoso e determinado no
que dizia respeito a seus objetivos. E seu maior desejo era governar os deuses.
— O cajado e o mangual pertencem a Rá — eu disse. — Nós temos que
acordá-lo.
Hórus inclinou a cabeça.
— Mesmo que Apófis deseje que isso aconteça? Mesmo que Rá esteja
fraco e velho? Eu o adverti sobre as divisões entre os deuses. Você viu como
Nekhbet e Babi tentaram eles próprios resolverem o assunto. O conflito só
vai piorar. O Caos se alimenta de líderes fracos, lealdades divididas. É disto
que Vladimir Menshikov está atrás.
O Salão das Eras tremeu. Ao longo de duas paredes, a cortina de luz
púrpura expandiu. À medida que a cena holográfica se alargava, eu pude
dizer que a cadeira era um trono de fogo, como a que Sadie tinha descrito
em sua visão do barco de Rá. Duas figuras sombrias estavam atracadas em
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combate, agarradas corpo a corpo como lutadores, mas eu não poderia dizer
se eles estavam tentando empurrar o adversário na cadeira ou tentando man-
ter o outro longe dela.
— Menshikov realmente tentou destruir o Livro de Rá? — perguntei.
O olho prata de Hórus cintilou. Ele sempre pareceu um pouco mais bri-
lhante do que o dourado, o que fazia eu me sentir desorientado, como se o
mundo inteiro tivesse escolhido um lado.
— Como a maioria das coisas Menshikov diz, é uma verdade parcial.
Certa vez ele pensava como você. Ele pensou que poderia trazer de volta Rá
e restaurar o Maat. Ele se imaginou como o sumo sacerdote de um novo e
glorioso templo, muito mais poderoso do que seus antepassados. Em seu
orgulho, pensou que poderia reconstruir o Livro de Rá do pergaminho em
sua posse. Ele estava errado. Rá fez um enorme esforço para não ser desper-
tado. As maldições no pergaminho queimaram os olhos de Menshikov. Fogo
solar cauterizou sua garganta porque ele se atreveu a ler as palavras do feitiço.
Depois disso, Menshikov se tornou amargo. Inicialmente, ele conspirou
para destruir o Livro de Rá, mas ele não tinha o poder. Em seguida, criou
um novo plano. Ele iria despertar Rá, mas por vingança. É pelo o que ele
espera por todos estes anos. É por isso que ele quer que você reúna os per-
gaminhos e reconstrua o Livro de Rá. Menshikov quer ver o velho deus en-
golido por Apófis. Ele quer ver o mundo mergulhado na escuridão e no
caos. Ele está completamente louco.
— Oh.
[Grande resposta, eu sei. Mas o que você diz depois de uma história como
essa?]
No tablado, ao lado de Hórus, o trono vazio do faraó parecia ondular na
luz púrpura. Aquela cadeira sempre me intimidou. Há muito tempo atrás, o
faraó tinha sido o governante mais poderoso do mundo. Ele havia contro-
lado um império que durou vinte vezes mais do que meu próprio país, os
EUA, tinha de existência. Como eu poderia ser digno de estar lá?
— Você pode fazer isso, Carter — Hórus insistiu. — Você pode tomar o
controle. Por que correr o risco de invocar Rá? Sua irmã terá que ler o livro,
você sabe. Você viu o que aconteceu com Menshikov quando apenas um
pergaminho saiu pela culatra. Você consegue imaginar se três vezes mais
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paleta, com lugares para a tinta preta e vermelha. A figura reta, ao lado era
uma caneta de escrita presa a uma corda.
— Sim, meu senhor — disse Menshikov. — Que... interessante.
— Era o símbolo favorito do meu avô — disse Desjardins. — Jean-François
Champollion, você sabe. Ele decifrou o código dos hieróglifos usando a Pe-
dra de Roseta... o primeiro homem fora da Casa da Vida a fazer isso.
— De fato, meu senhor. Eu ouvi a história.
Umas mil vezes, sua expressão parecia dizer.
— Ele ascendeu do nada para se tornar um grande cientista — Desjardins
continuou — e um grande mago, respeitado pelos mortais e também pelos
magos.
Menshikov sorriu como se ele estivesse achando graça uma criança que
estava se tornando irritante.
— E agora você é o Sacerdote-leitor Chefe. Ele ficaria orgulhoso.
— Ele ficaria? — Desjardins perguntou. — Quando Iskandar aceitou a mi-
nha família na Casa da Vida, ele disse dar boas-vindas ao novo sangue e
novas ideias. Ele tinha esperanças de revigorar a Casa. Contudo, com o que
nós contribuímos? Nós não mudamos nada. Não questionamos nada. A
Casa enfraqueceu. Temos menos iniciantes a cada ano.
— Ah, meu senhor — Menshikov arreganhou os dentes. — Deixe-me mos-
trar que não somos fracos. Sua força de ataque está reunida.
Ele bateu palmas. No final do salão, as portas enormes de bronze se abri-
ram. No começo, eu não pude acreditar nos meus olhos, mas enquanto o
pequeno exército marchava em nossa direção, eu ficava cada vez mais alar-
mado.
A dúzia de magos era a parte menos assustadora do grupo. Eles eram na
sua maioria velhos homens e mulheres em vestes de linho tradicional. Mui-
tos tinham em torno de seus olhos uma pintura preta e tatuagens de hieró-
glifos nas mãos e rostos. Alguns usavam mais amuletos que Walt. Os ho-
mens tinham a cabeça rapada, as mulheres usavam cabelo curto ou preso em
rabo de cavalo. Todos tinham expressões sombrias, como uma multidão en-
furecida de camponeses indo queimar o monstro Frankenstein, exceto que
em vez de forquilhas eles estavam armados com cajados e varinhas. Vários
tinham espadas também.
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18. Jogando na véspera do Juízo Final
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Ela parecia incrível – calma e descansada. Seu cabelo recém lavado estava
ajeitado por trás de suas orelhas, e ela usava um vestido branco novo sem
mangas que fazia sua pele bronzeada brilhar.
Acho que eu a estava encarando demais, porque ela desviou o olhar. Seu
pescoço ficou vermelho.
— São três da tarde — disse ela. — Eu estou acordada desde as dez da
manhã.
— Você parece...
— Melhor? — Ela levantou as sobrancelhas, como se estivesse me desafi-
ando a negá-lo. — Você perdeu toda a agitação. Eu tentei lutar. Tentei esca-
par. Este é o nosso terceiro quarto de hotel.
— O primeiro pegou fogo — disse Bes.
— O segundo explodiu — completou Walt.
— Eu já pedi desculpas — Zia fechou a cara. — De qualquer forma, sua
irmã finalmente me acalmou.
— O que levou várias horas — disse Sadie — e toda minha habilidade
diplomática.
— Você tem uma habilidade diplomática? — perguntei.
Sadie revirou os olhos.
— Como se você fosse notar, Carter!
— Sua irmã é muito inteligente — Zia afirmou. — Ela me convenceu a
aguardar meu julgamento para seus planos até que você acordasse e nós pu-
déssemos conversar. Ela é bastante persuasiva.
— Obrigada — disse Sadie presunçosamente.
Olhei para ambas e um sentimento de terror despertou.
— Vocês estão se dando bem? Vocês não podem se dar bem! Você e Sadie
não se suportam.
— Isto era com o shabti, Carter — Zia disse, embora o pescoço dela ainda
estivesse vermelho brilhante. — Eu acho Sadie... admirável.
— Ouviu? — Sadie falou. — Eu sou admirável!
— Isto é um pesadelo.
Sentei-me e os cobertores caíram. Olhei para baixo e vi que estava usando
um pijama do Pokémon.
— Sadie. — falei — Eu vou te matar.
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(“Oh, desculpe, nós não guardamos nada para você”) e as grandes barganhas
que conseguiram ao fazer compras no souk, o mercado local ao ar livre.
— Vocês foram fazer compras? — falei
— Bem, é claro — respondeu ela. — Nós não podemos fazer nada até o
pôr do sol de qualquer maneira. Foi o que Bes disse.
— O que você quer dizer?
Bes jogou as varetas e moveu uma de suas peças para uma das bordas.
— O equinócio, garoto. Estamos perto o suficiente agora. Todos os por-
tais do mundo fecharão, exceto em duas ocasiões: o pôr e o nascer do sol,
quando dia e noite estão perfeitamente equilibrados.
— De qualquer forma — Sadie disse — se quisermos encontrar Rá, vamos
ter que fazer sua jornada, o que significa entrar no Duat ao pôr do sol e
voltar ao nascer do sol.
— Como você sabe disso? — perguntei.
Ela puxou um pergaminho de sua sacola – um cilindro de papiro muito
mais espesso do que aqueles que eu havia reunido. As bordas brilhavam
como fogo.
— O Livro de Rá — disse ela. — Eu o juntei. Você pode me agradecer
agora.
Minha cabeça começou a girar. Lembrei-me do que Hórus havia dito em
minha visão sobre o pergaminho queimando o rosto de Menshikov.
— Você quer dizer que você o leu sem... sem nenhum problema?
Ela deu de ombros.
— Apenas a introdução: avisos, instruções, esse tipo de coisa. Eu não vou
ler o verdadeiro feitiço até encontrarmos Rá, mas sei para onde vamos.
— Se decidirmos ir — falei.
Aquilo chamou a atenção de todos.
— Se? — Zia perguntou.
Ela estava tão perto que era doloroso, mas eu pude sentir a distância que
ela estava colocando entre nós: se inclinando para longe de mim, de ombros
tensos, advertindo-me a respeitar o seu espaço.
— Sadie me disse que você estava bastante determinado.
— Eu estava. — falei — Até que saber o que Menshikov está planejando.
Contei a eles o que tinha visto – sobre a força de ataque de Menshikov
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se dirigindo para o Brooklyn ao pôr do sol e seus planos de nos seguir pes-
soalmente através do Duat. Eu expliquei o que Hórus disse sobre os perigos
de acordar Rá, e como eu poderia usar o cajado e o mangual em vez de lutar
contra Apófis.
— Mas esses são os símbolos sagrados de Rá — Zia afirmou.
— Eles pertencem a qualquer faraó forte o suficiente para manejá-los —
repliquei. — Se nós não ajudarmos Amós no Brooklyn...
— Seu tio e todos os seus amigos serão destruídos — disse Bes. — Pelo que
você descreveu, Menshikov reuniu um pequeno e desagradável exér-
cito. Uraei, as serpentes com chamas, são notícias muito ruins. Mesmo se
Bastet voltar a tempo de ajudar...
— Precisamos avisar Amós — disse Walt. — Pelo menos alertá-lo.
— Você tem uma bacia de vidência? — perguntei.
— Melhor.
Walt retirou um telefone celular do bolso.
— O que eu digo a ele? Vamos voltar?
Hesitei. Como eu poderia deixar Amós e meus amigos sozinhos contra
um exército do mal? Parte de mim estava se coçando para pegar as armas do
faraó e esmagar nossos inimigos. A voz de Hórus ainda estava dentro de
mim, incitando-me para que eu me encarregasse disso.
— Carter, você não pode ir para o Brooklyn.
Zia encontrou meus olhos e eu percebi que o medo e o pânico não a
tinham abandonado. Ela estava controlando aqueles sentimentos, mas eles
ainda estavam borbulhando sob a superfície.
— O que eu vi nas Areias Vermelhas... aquilo me perturbou muito.
Eu me senti como se ela tivesse acabado de pisotear o meu coração.
— Olha, eu sinto muito sobre essa coisa de avatar, cajado e mangual. Eu
não queria te apavorar, mas...
— Carter, você não me perturbou. Vlad Menshikov sim.
— Ah... Certo.
Ela tomou um fôlego incerto.
— Eu nunca confiei naquele homem. Quando me formei no treino de
iniciante, Menshikov solicitou que eu fosse atribuída ao seu Nomo. Feliz-
mente, Iskandar recusou.
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ao Brooklyn. Assim, Amós vai saber que ela vem em paz. Vamos tentar parar
o ataque, segurá-los até o amanhecer para que vocês possam voltar com Rá.
Além disso... — Ele deu de ombros. — Se vocês falharem e não pararmos
Apófis, todos nós vamos morrer amanhã de qualquer maneira.
— Isto é que é olhar pelo lado positivo — eu disse.
Então algo me ocorreu: um pensamento tão chocante que era como uma
pequena reação nuclear em minha cabeça.
— Espere. Menshikov disse que ele era descendente dos sacerdotes de
Amon-Rá.
Bes bufou com desprezo.
— Eu odiava aqueles caras. Eles eram tão cheios de si. Mas o que isso tem
a ver com qualquer coisa?
— Não foram os mesmos sacerdotes que lutaram contra Aquenáton e
amaldiçoaram os antepassados de Walt? — perguntei. — E se Menshikov tiver
o segredo da maldição? E se ele puder curar...
— Pare.
A raiva na voz de Walt me pegou de surpresa. Suas mãos tremiam.
— Carter, eu já aceitei o meu destino. Eu não vou criar esperanças por
nada. Menshikov é o inimigo. Mesmo que ele pudesse ajudar, ele não iria.
Se o seu caminho se cruzar com o dele, não tente fazer qualquer acordo.
Não tente argumentar com ele. Faça o que precisa fazer. Acabe com ele.
Olhei para Sadie. Seus olhos estavam brilhando como se eu finalmente
tivesse feito algo certo.
— Ok, Walt — respondi. — Eu não vou falar sobre isso novamente.
Mas Sadie e eu tivemos uma conversa muito diferente em silêncio. Pela
primeira vez, estávamos de total acordo. Nós íamos visitar o Duat. E en-
quanto estivéssemos lá, nós viraríamos a mesa sobre Vlad Menshikov. Nós
o encontraríamos, acabaríamos com ele e o forçaríamos a nos dizer como
curar Walt. De repente, eu me senti muito melhor a respeito dessa missão.
— Então partiremos ao pôr do sol — Zia afirmou. — Walt e eu para o
Brooklyn. Você e Sadie para o Duat. Está resolvido.
— Exceto por uma coisa — Bes olhou para as varetas de senet que Sadie
havia deixado cair no chão. — Você não tirou isto. É impossível!
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Sadie olhou para baixo. Um sorriso se espalhou pelo seu rosto. Ela aci-
dentalmente tirou um três, exatamente o que precisava para vencer.
Ela movimentou sua última peça para o fim do tabuleiro, em seguida
pegou os óculos brancos de Menshikov e os experimentou. Eles pareciam
assustadores nela. Não pude deixar de pensar na voz arruinada de Menshi-
kov e nos seus olhos cicatrizados, e no que poderia acontecer com a minha
irmã se ela tentasse ler o Livro de Rá.
— Impossível é a minha especialidade — disse ela. — Vamos, querido ir-
mão. Vamos nos preparar para a Grande Pirâmide.
Se você alguma vez visitar as pirâmides, aqui vai uma dica: o melhor lugar
para vê-las é de longe, como o horizonte. Quanto mais perto você chegar,
mais decepcionado você vai ficar.
Isso pode soar duro, mas em primeiro lugar, de perto as pirâmides vão
parecer menores do que você pensava. Todos que as veem dizem isso. Claro,
elas foram as estruturas mais altas na terra por milhares de anos, mas em
comparação com edifícios modernos, elas não parecem tão impressionantes.
Foram despojadas do revestimento de pedras brancas e do topo de ouro que
as tornavam muito legais nos tempos antigos. Elas ainda são bonitas, especi-
almente quando reluzem ao pôr do sol, mas você pode apreciá-las melhor de
bem longe sem ser pego no cenário turístico.
Essa é a segunda questão: a multidão de turistas e vendedores. Não im-
porta onde você passe as férias: Times Square, Piccadilly Circus ou no Coli-
seu Romano. É sempre a mesma coisa, com vendedores oferecendo camise-
tas e bugigangas baratas, e hordas de turistas suados reclamando e se amon-
toando tentando tirar fotos. As pirâmides não são diferentes, exceto que a
multidão é maior e os vendedores são realmente, realmente insistentes. Eles
conhecem um monte de palavras em inglês, mas “não” não é uma delas.
Enquanto nos espremíamos entre multidão, os vendedores tentaram nos
vender três passeios de camelo, uma dúzia de camisetas, mais amuletos do
que Walt estava usando (Preço especial! Boa magia!), e onze dedos genuínos
de múmia, os quais eu imaginei provavelmente serem feitos na China.
Eu perguntei a Bes se ele poderia assustar a multidão, mas ele apenas riu.
— Não vale a pena, garoto. Os turistas têm estado por aqui há quase tanto
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tempo quanto as pirâmides. Vou me certificar de que eles não nos notem.
Vamos apenas chegar ao topo.
Seguranças patrulhavam a base da Grande Pirâmide, mas ninguém ten-
tou nos deter. Talvez Bes tenha nos tornado invisíveis de algum modo, ou
talvez os guardas apenas preferissem ignorar, pois estávamos com o deus
anão. De qualquer maneira, eu logo descobri porque escalar as pirâmides
não era permitido: é difícil e perigoso. A Grande Pirâmide tem por volta de
130 metros de altura. As laterais de pedra não eram feitas para se escalar.
Enquanto subíamos, eu quase caí duas vezes. Walt torceu o tornozelo. Al-
guns dos blocos estavam soltos e se despedaçavam. Alguns dos “degraus”
tinham um metro e meio de altura, e tivemos de nos içar uns aos outros.
Finalmente, depois de vinte minutos de trabalho difícil e suado, chegamos
ao topo. A nuvem de poeira sobre o Cairo fazia tudo ao leste parecer uma
grande mancha difusa, mas a oeste tínhamos uma boa visão do sol se pondo
no horizonte, tingindo o deserto de carmesim.
Tentei imaginar como era a vista aqui há cerca de cinco mil anos, quando
a pirâmide era recém-construída. Teria o faraó Khufu subido até aqui no
topo de sua própria tumba e admirado o seu império? Provavelmente não.
Ele provavelmente era inteligente demais para fazer essa escalada.
— Certo — Sadie atirou sua bolsa no bloco de pedra calcária mais pró-
ximo. — Bes, fique de olho. Walt, ajude-me com o portal, certo?
Zia tocou no meu braço, o que me fez pular.
— Podemos conversar? — ela perguntou.
Ela desceu um pouco na pirâmide. Meu pulso estava acelerado, mas con-
segui acompanhar sem dar nenhum tropeção e parecer um idiota.
Zia olhou para o deserto. Seu rosto ficou corado com luz do pôr do sol.
— Carter, não me entenda mal. Eu aprecio que você tenha me acordado.
Eu sei que seu coração estava no lugar certo.
Meu coração não se sentia no lugar certo. Ele se sentia como se estivesse
preso no meu esôfago.
— Mas...? — perguntei.
Ela se abraçou.
— Eu preciso de tempo. Isto é muito estranho para mim. Talvez nós pos-
samos ser... mais próximos algum dia, mas por enquanto...
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Dei mais uma olhada em Zia, perguntando-me se esta poderia ser a úl-
tima vez que eu a veria. Então, Sadie e eu pulamos para o agitado portal
roxo.
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Ela marchou direto para os degraus até ficarmos cara a cara com as ima-
gens brilhantes de nossos avós.
— Caíam fora — disse-lhes Sadie.
— Minha querida — os olhos da Vovó brilhavam. — Esses são modos de
se dirigir à sua avó?
— Oh, me perdoe — disse Sadie. — Esta deve ser a parte onde eu digo
“Meu Deus, que dentes grandes você tem”. Você não é minha avó, Nekhbet!
Agora, saia do nosso caminho!
A imagem da vovó brilhou. Seu roupão florido se transformou em um
manto de penas pretas oleosas. Seu rosto murchou transformando-se em
uma máscara flácida e enrugada, e a maioria de seus cabelos caíram, o que a
colocou em um 9,5 na escala de feiura, bem no topo ao lado de Bes.
— Mostre-me mais respeito, querida — a deusa cantarolou. — Estamos
aqui apenas para lhe dar um aviso amigável. Você está prestes a passar do
Ponto Sem Retorno. Se pisar no barco, não haverá como voltar atrás – sem
paradas até você ter passado por todas as Doze Casas da Noite, ou até você
morrer.
Vovô concordou:
— Aghh!
Ele coçou a axila, o que poderia significar que ele estava possuído pelo
deus babuíno Babi – ou não, já que esse comportamento não era tão estra-
nho para o vovô.
— Ouça Babi — Nekhbet insistiu. — Vocês não têm ideia do que os espera
no rio. Você mal pôde manter os dois de nós afastados em Londres, menina.
Os exércitos do Caos são muito piores!
— Ela não está sozinha desta vez.
Dei um passo em frente com o cajado e o mangual.
— Agora, sumam.
Vovô rosnou e se afastou.
Os olhos de Nekhbet se estreitaram.
— Você poderia empunhar as armas do faraó? — Seu tom tinha uma pi-
tada de relutante admiração. — Uma jogada ousada, criança, mas isso não
vai te salvar.
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CARTER
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19. A vingança de Alceu, o deus Alce
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tivesse passado.
Eu estremeci. E se nós saltássemos do outro lado do rio da noite e cons-
tatássemos que várias eras haviam passado? Eu tinha acabado de completar
treze anos. Eu não estava pronta para ter mil e trezentos anos.
Também desejei que não estivesse pensado em Anúbis. Toquei o amu-
leto Shen no meu colar. Depois de tudo o que tinha acontecido com Walt,
a ideia de ver Anúbis me fez sentir estranhamente culpada, mas também um
pouco animada. Talvez Anúbis nos ajudasse em nossa jornada. Talvez ele
levasse-me embora para algum lugar privado para um bate-papo como ele
havia feito da última vez que tinha visitado o Duat – um pequeno cemitério
romântico, jantar para dois na Cafeteria Caixão...
Saia dessa, Sadie, pensei. Concentre-se.
Puxei o Livro de Rá da minha bolsa e verifiquei novamente as instruções.
Eu já tinha lido várias vezes, mas elas eram enigmáticas e confusas, como um
livro de matemática. O pergaminho estava repleto de termos como “pri-
meiro do Caos”, “sopro na argila”, “rebanho da noite”, “renascer no fogo”,
“os acres do sol”, “o beijo da faca”, “o jogador de luz” e “o último escarave-
lho” – a maioria das quais não faziam sentido para mim.
Deduzi que enquanto passávamos através das doze etapas do rio, eu teria
que ler as três seções do Livro de Rá em três locais distintos, provavelmente,
para reviver os diferentes aspectos do deus do sol, e cada um dos três aspec-
tos iria nos apresentar algum tipo de desafio. Eu sabia que se eu falhasse –
se eu sequer tropeçasse em uma palavra enquanto lesse os feitiços – eu aca-
baria pior do que Vlad Menshikov. A ideia me aterrorizava, mas eu não po-
dia me debruçar sobre a possibilidade de falha. Simplesmente tinha a espe-
rança de que quando chegasse a hora, os rabiscos do pergaminho fariam
sentido.
A corrente acelerou. Assim fez o vazamento do barco. Carter demons-
trou sua habilidade em magia de combate e convocou um balde e começou
a tirar a água, enquanto eu me concentrava em manter a equipe na linha.
Quanto mais fundo nós navegávamos pelo Duat, mais rebeldes as esferas
brilhantes ficavam. Elas se irritaram contra a minha vontade, lembrando o
quanto eles queriam me queimar.
É irritante flutuar em um rio de magia com vozes sussurrando em sua
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um teste tão fácil. Eu tinha certeza agora que reconheci o homem carneiro.
Nós tínhamos visto a sua estátua no Museu de Brooklyn.
— É ele, não é? — perguntei para Carter. — O cara que se parece com
Alceu?
— Não o chame de Alceu! — Carter assobiou. Ele olhou para o homem
carneiro gigante e disse: — Você é Khnum, não é?
O homem carneiro fez um som surdo no fundo de sua garganta. Ele
raspou uma de suas facas contra a amurada do navio.
— Isso é uma pergunta? Ou isso é sua resposta final?
Carter piscou.
— Hum...
— Não é nossa resposta final! — Eu gritei, percebendo que quase tínha-
mos entrado em uma armadilha. — Nem de perto. Khnum é o seu nome
comum, não é? Você quer nos dizer seu nome verdadeiro, seu ren.
Khnum inclinou a cabeça, os sinos em seus chifres tilintando.
— Isso seria bom. Mas, infelizmente, ninguém sabe. Mesmo eu esqueci.
— Como você pode esquecer seu próprio nome? — Carter perguntou. —
E, sim, essa é uma pergunta.
— Eu sou parte de Rá — o deus carneiro esclareceu. — Sou o seu aspecto
no submundo, um terço de sua personalidade. Mas quando Rá parou de
fazer sua jornada noturna, ele já não precisava de mim. Me deixou aqui às
portas da quarta casa, descartado como um casaco velho. Agora eu guardo
os portões... não tenho nenhuma outra finalidade. Se eu pudesse recuperar
o meu nome, eu poderia render o meu espírito a quem me libertasse. Eles
poderiam reunir-me com Rá, mas até então, não posso deixar este lugar.
Ele parecia terrivelmente deprimido, como uma ovelha um pouco per-
dida, ou melhor, uma ovelha de dez metros de altura perdida com facas
muito grandes. Eu queria ajudá-lo. Ainda mais do que isso, eu queria encon-
trar uma maneira para não ficar cortada aos pedaços.
— Se você não se lembra do seu nome — falei — por que não podemos
apenas dizer-lhe qualquer nome antigo? Como você saberia se era a resposta
certa ou não?
Khnum deixou seu rastro de facas na água.
— Eu não tinha pensado nisso.
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Carter olhou para mim como se dissesse Por que você disse a ele?
O deus carneiro baliu.
— Acho que vou reconhecer meu ren quando ouvi-lo — ele decidiu — em-
bora eu não possa ter certeza. Sendo apenas parte de Rá, eu não tenho cer-
teza de muita coisa. Perdi a maioria de minhas memórias, a maioria do meu
poder e identidade. Eu não sou mais do que uma casca de meu antigo eu.
— Seu antigo eu deve ter sido enorme — murmurei.
O deus poderia ter sorrido, embora fosse difícil dizer com a cara de car-
neiro.
— Lamento que você não tenha o meu ren. Você é uma menina brilhante.
Você é a primeira a chegar tão longe. A primeira e melhor.
O carneiro gigante suspirou tristemente.
— Ah, bem. Acho que devemos começar a matança.
A primeira e melhor. Minha mente começou a correr.
— Espere — eu disse. — Eu sei o seu nome.
Carter gritou.
— Você sabe? Diga a ele!
Pensei em uma linha do Livro de Rá – primeiro do Caos. Baseei-me nas
memórias de Ísis, a única deusa que já tinha conhecido o nome secreto de
Rá, e eu comecei a entender a natureza do deus sol.
— Rá foi o primeiro deus a sair do Caos — falei.
Khnum franziu a testa.
— Esse é o meu nome?
— Não, apenas ouça. — eu disse — Você disse que não está completo sem
Rá, apenas uma casca de seu antigo eu. Mas isso é verdade para todos os
outros deuses egípcios também. Rá é mais velho, mais poderoso. Ele é a
fonte original do Maat, como...
— Como a raiz principal dos deuses — Carter ofereceu.
— Certo — eu disse. — Não tenho ideia do que é uma raiz principal, mas,
certo. Todas essas eras, os outros deuses foram enfraquecendo lentamente,
perdendo poder, porque Rá está faltando. Eles podem não admitir, mas Rá
é seu coração. Eles são dependentes dele. Todo esse tempo, fomos pergun-
tando se vale a pena trazer Rá de volta. Nós não sabíamos por que era tão
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Ceramista Divino. Mas isso não fazia sentido, a menos que Khnum tivesse
poderes mágicos que eu não queria conhecer. Felizmente, me lembrei de
algo do Museu do Brooklyn. Khnum tinha sido descrito como um ceramista
esculpindo um humano de argila.
— O Oleiro Divino. Eu nomeio você Khnum, protetor do Quarto portão.
Eu devolvo seu nome. Retorno a sua essência para Rá.
Os enormes olhos do deus dilataram. As narinas inflaram.
— Sim — ele embainhou sua faca. — Muito bem, minha dama. Você pode
passar para a Quarta Casa. Mas cuidado com as fogueiras, e esteja preparada
para a segunda forma de Rá. Ele não vai estar muito grato por sua ajuda.
— O que você quer dizer? — perguntei.
Mas o corpo do deus carneiro se dissolveu em névoa. O Livro de Rá
sugou os tufos de fumaça e fechou. Khnum e sua ilha tinham ido embora.
O barco derivava em um túnel estreito.
— Sadie — disse Carter — isso foi incrível.
Normalmente, eu teria ficado feliz de surpreender-lhe com o meu brilho.
Mas meu coração estava disparado. Minhas mãos suavam, e pensei que eu
poderia vomitar. Além disso, eu podia sentir a tripulação de esferas brilhan-
tes saindo do seu choque, começando a lutar comigo de novo.
Nenhum corte, eles se queixaram. Nenhum corte!
Pensem em nossos próprios negócios, repeti. E mantenham o barco no curso.
— Hum, Sadie? — Carter perguntou. — Por que seu rosto ficou vermelho?
Pensei que ele estava me acusando de corar. Então eu percebi que ele
também estava vermelho. O barco inteiro estava inundado de luz rubi. Eu
me virei para olhar para frente, e fiz um som na minha garganta não muito
diferente do balido de Khnum.
— Oh, não — eu disse. — Não este lugar de novo.
Cerca de uma centena de metros a frente de nós, o túnel abria em uma
caverna enorme. Eu reconheci o enorme fervente Lago de Fogo, mas da úl-
tima vez, eu não tinha visto por esse ângulo.
Estávamos ganhando velocidade, descendo uma série de corredeiras
como uma lâmina de água. No final das corredeiras, a água se transformou
em uma cachoeira de fogo e caia em linha reta para dentro do lago, aproxi-
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por que tínhamos nos dado muito bem no Cairo [Oh, pare de fazer beici-
nho, Carter. Não é minha culpa que ela percebeu que eu sou a incrível da
família], mas porque Zia era uma especialista com símbolos de fogo, e isso
era o que precisávamos.
— Levante seu cabelo — falei para Carter. — Eu preciso pintar a sua testa.
— Eu não estou mergulhando na minha morte com perdedor pintado na
minha cabeça!
— Eu estou tentando salvá-lo. Depressa!
Ele tirou os cabelos para fora do caminho. Eu pintei os hieróglifos de
fogo e escudo na testa, e imediatamente meu irmão explodiu em chamas.
Eu sei, era como um sonho realizado e um pesadelo de uma só vez. Ele
dançou, vomitando alguns palavrões muito criativos antes de perceber que
o fogo não estava machucando-o. Ele estava simplesmente envolto em uma
folha de proteção de chamas.
— O que, exatamente... — seus olhos se arregalaram. — Segure-se em al-
guma coisa!
O barco inclinou enjoativamente sobre a borda das cataratas. Desenhei
os hieróglifos sobre a palma da minha mão, mas não era uma boa cópia. As
chamas balbuciaram fracamente ao meu redor. Infelizmente, eu não tinha
tempo para nada melhor. Passei meus braços em torno da grade, e nós des-
pencamos direto para o lago.
Estranho como muitas coisas podem passar por sua mente enquanto você
cai para determinada desgraça. De cima, o lago de fogo parecia muito bo-
nito, como a superfície do sol. Eu me perguntava se eu sentiria qualquer dor
no momento do impacto, ou se simplesmente evaporaria. Era difícil ver
qualquer coisa à medida que despencamos através das cinzas e fumaça, mas
achei que vi uma ilha familiar cerca de uma milha de distância – o templo
negro, onde conheci Anúbis. Me perguntei se ele podia me ver de lá, e se ele
correria em meu socorro. Gostaria de saber se minhas chances de sobrevi-
vência seriam melhores se fosse para longe do barco e caísse como um mer-
gulhador de penhasco, mas eu não podia me forçar a fazê-lo. Agarrei-me à
grade com todas as minhas forças. Eu não tinha certeza se o escudo de fogo
mágico estava me protegendo, mas eu estava suando intensamente, e estava
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bastante segura de que tinha deixado minha garganta e a maioria dos meus
órgãos internos no topo da cachoeira.
Finalmente, atingimos o fundo com um discreto whoooooooom.
Como descrever a sensação de mergulhar em um lago de fogo líquido?
Bem... isso queimava. E ainda era de alguma forma molhado, também. Eu
não ousava respirar. Após um momento de hesitação, abri meus olhos. Tudo
que eu podia ver eram chamas vermelhas e amarelas girando. Ainda estáva-
mos debaixo d'água... ou debaixo de fogo? Percebi duas coisas: eu não estava
queimando até a morte, e o barco estava em movimento.
Eu não podia acreditar que meus hieróglifos de proteção loucos tinham
realmente funcionado. Enquanto o barco deslizava pelas correntes de turbi-
lhão de calor, as vozes da tripulação sussurraram em minha mente – mais
alegres do que com raiva agora.
Renovar, eles disseram. Nova vida. Nova luz.
Isso parecia promissor, até que eu compreendi alguns fatos menos agra-
dáveis. Eu ainda não conseguia respirar. Meu corpo gostava de respirar.
Além disso, ele estava ficando muito mais quente. Eu podia sentir meu hie-
róglifo de proteção falhando, a tinta queimando contra minha mão. Estendi
a mão cegamente e peguei um braço – Carter, assumi. Ficamos de mãos
dadas, e mesmo que eu não pudesse vê-lo, foi reconfortante saber que ele
estava lá. Talvez tenha sido minha imaginação, mas o calor pareceu dimi-
nuir.
Há muito tempo, Amós tinha-nos dito que éramos mais poderosos jun-
tos. Nós aumentamos a magia do outro apenas por estarmos próximos. Eu
esperava que fosse verdade agora. Tentei enviar meus pensamentos para Car-
ter, pedindo-lhe para me ajudar a manter o escudo de fogo.
O navio navegou através das chamas. Pensei que estávamos começando
a subir, mas poderia ter sido ilusão. Minha visão começou a escurecer. Meus
pulmões estavam gritando. Se eu inalasse fogo, eu me perguntava se eu iria
acabar como Vlad Menshikov.
Justamente quando eu sabia que ia desmaiar, o barco subiu, e nós que-
bramos a superfície.
Eu engasguei – e não apenas porque eu precisava do ar. Nós tínhamos
ancorado na costa do lago fervente, na frente de um portal de calcário de
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grande porte, como a entrada do templo antigo que eu tinha visto em Luxor.
Eu ainda estava segurando a mão de Carter. Tanto quanto eu poderia dizer,
estávamos bem.
O barco sol estava melhor do que bem. Ele havia sido renovado. Sua vela
brilhava branca, o símbolo do sol brilhava dourado em seu centro. Os remos
foram reparados e polidos. A pintura estava lustrada, preto, dourado e verde.
O casco já não tinha buracos e a barraca era mais uma vez um pavilhão bo-
nito. Não havia trono, e nem Rá, mas a tripulação brilhava intensa e alegre-
mente à medida que amarravam as cordas no cais.
Eu não poderia culpá-la. Joguei meus braços ao redor de Carter e ele
deixou escapar um soluço.
— Você está bem?
Ele se afastou e balançou a cabeça sem jeito. O hieróglifo na testa tinha
queimado.
— Graças a você — disse ele. — Onde...
— Acres Ensolarados — disse uma voz familiar.
Bes desceu os degraus para a doca. Ele vestia uma nova, ainda maior,
camisa havaiana e somente sua sunga na parte de baixo, por isso não posso
dizer que ele era um colírio para os olhos. Agora que ele estava no Duat,
brilhava com bastante energia. Seu cabelo tinha virado mais escuro e crespo,
e seu rosto parecia décadas mais jovens.
— Bes! — exclamei. — Por que você demorou tanto? Como estão Walt e
Zia?
— Eles estão bem. E eu lhe disse que ia encontrá-los na quarta casa.
Ele apontou o dedo polegar em um sinal esculpido no arco de pedra
calcária.
— Costumava ser chamada de Casa de Repouso. Aparentemente, eles
mudaram o nome.
O sinal estava em hieróglifos, mas eu não tinha problemas de lê-lo.
— Casa de Retiro Acres Ensolarados — eu li. — “Antigamente a Casa de
Repouso. Sob nova direção”. O que exatamente...
— Devemos ir — disse Bes. — Antes do seu perseguidor chegar.
— Perseguidor? — Carter perguntou.
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20. Visitamos a casa da hipopótama
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prestativa
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Eu olhei mais de perto a enfermeira, que ainda estava de costas para nós.
Ela parecia um pouco grandiosa, com braços maciços musculosos, um pes-
coço mais grosso que a minha cintura e uma estranha cor de pele arroxeada.
Mas não consegui entender por que ela incomodava tanto Bes.
Virei-me para perguntar a ele, mas Bes tinha se abaixado atrás da planta
de vaso mais próxima. Não era grande o suficiente para escondê-lo, e certa-
mente não camuflava sua camisa havaiana.
— Bes, pare com isso — chamei.
— Shhh! Eu sou invisível!
Carter suspirou.
— Não temos tempo para isso. Vamos, Sadie.
Ele abriu caminho para a estação de enfermagem.
— Com licença — ele chamou através da mesa.
A enfermeira se virou e eu gritei. Tentei conter meu choque, mas isso foi
difícil, sendo que a mulher era um hipopótamo.
Eu não quero dizer como uma comparação pouco lisonjeira. Ela era real-
mente um hipopótamo. Seu focinho longo tinha a forma de um coração de
cabeça para baixo, com bigodes eriçados, narinas pequenas e uma boca com
dois dentes inferiores enormes. Seus olhos eram pequenos e redondos. Ela
vestia seu avental de enfermeira aberto, revelando uma parte superior de
biquíni... como colocar isso delicadamente... que estava tentando cobrir algo
muito grande com muito pouco tecido. Sua barriga roxo-rosada era incrivel-
mente inchada, como se ela estivesse grávida de nove meses.
— Posso ajudar? — ela perguntou.
Sua voz era agradável e gentil – não o que poderia se esperar de um hi-
popótamo. Pensando bem, eu não esperava voz alguma vindo de um hipo-
pótamo.
— Hum, hipo... quer dizer, olá! — gaguejei. — Meu irmão e eu estamos
procurando por...
Olhei para Carter e descobri que ele não estava olhando para o rosto da
enfermeira.
— Carter!
— O quê? — Ele se sacudiu para sair de seu transe. — Certo. Desculpe.
Hã, você não é uma deusa? Taueret, ou algo do tipo?
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serão fechadas antes de poderem chegar lá. Vocês ficarão presos no Duat até
amanhã à noite.
— E se não pararmos Apófis — completei — não haverá um amanhã à
noite. Essa parte eu entendi.
— Então você pode nos ajudar? — Carter perguntou para Taueret. — Onde
está Rá?
A deusa mexia no seu cabelo. Suas mãos eram um cruzamento entre hu-
mano e hipopótamo, com pequenos dedos como tocos e unhas espessas.
— Esse é o problema, querido. Eu não sei. A Quarta Casa é enorme. Rá
está provavelmente aqui em algum lugar, mas os corredores e portas conti-
nuam para sempre. Nós temos muitos pacientes.
— Você não mantém um controle sobre eles? — Carter perguntou. — Não
há um mapa ou algo do tipo?
Taueret balançou sua cabeça lamentavelmente.
— Faço o meu melhor, mas só há eu, os shabti e as luzes servidoras... E
aqui tem milhares de deuses velhos.
Meu coração afundou. Eu mal podia acompanhar os dez ou os maiores
deuses que eu conheci, mas milhares? Só nessa sala, contei uma dúzia de pa-
cientes, seis corredores que conduziam a direções diferentes, duas escadas e
três elevadores. Talvez fosse minha imaginação, mas parecia que alguns dos
corredores tinham aparecido desde que entramos na sala.
— Todos esses velhos são deuses? — perguntei.
Taueret assentiu.
— A maioria eram divindades menores mesmo nos tempos antigos. Os
magos não consideravam que valia a pena prendê-los. Ao passar dos séculos,
eles foram deixados de lado, abandonados e esquecidos. Ás vezes eles fazem
seu caminho até aqui. Eles simplesmente esperam.
— Para morrer? — perguntei.
Taueret ficou com um olhar distante em seus olhos.
— Eu queria saber. Ás vezes eles desaparecem, mas não sei se eles simples-
mente se perdem passeando pelos salões, encontram uma nova sala para se
esconder ou realmente desaparecem do nada. A triste verdade é que é tudo
a mesma coisa. Seus nomes ficam esquecidos pelo mundo acima. Uma vez
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Vagamos pelos salões do lar de infinita magia, liderados por uma enfermeira
hipopótama com uma tocha. Realmente, apenas uma noite comum para os
Kane.
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Passamos tantos quartos que eu perdi a conta. A maioria das portas es-
tava fechada, mas algumas estavam abertas, mostrando deuses velhos frágeis
em suas camas, olhando a luz oscilante das televisões ou simplesmente dei-
tados no escuro chorando. Depois de vinte ou trinta dessas salas, parei de
procurar. Era tão depressivo.
Segurei o Livro de Rá, esperando que aquecesse quando nos aproximás-
semos do deus sol, mas sem sorte. Taueret hesitava a cada intersecção. Podia
dizer que ela não tinha certeza para onde estava nos levando.
Depois de alguns corredores e ainda sem nenhuma mudança do rolo,
comecei a me sentir agitada. Carter deveria ter notado.
— Está tudo bem — ele prometeu. — Nós vamos encontrá-lo.
Lembrei o quão rápido o relógio de sol se movendo na estação de enfer-
magem. E pensei sobre Vlad Menshikov. Queria acreditar que ele tinha vi-
rado fritas russas quando caiu no Lago de Fogo, mas provavelmente era
muito para se esperar. Se ele ainda estivesse nos caçando, não poderia estar
muito atrás.
Descemos outro corredor e Taueret franziu a testa.
— Oh, queridos.
Na nossa frente, uma mulher idosa com a cabeça de um sapo estava pu-
lando ao redor. E quando eu disse pulando, quis dizer que ela saltava três
metros, coaxando algumas vezes, então saltou contra a parede e se prendeu
antes de saltar para a parede oposta. Seu corpo e membros pareciam huma-
nos, vestida em um roupão de hospital verde, mas sua cabeça era totalmente
anfíbia – marrom, úmida, e cheia de verrugas. Seus olhos bulbosos viravam
para toda direção e pelo som distraído de seu coaxar, supus que ela estava
perdida.
— Heket saiu de novo — Taueret disse. — Me deem licença por um mo-
mento.
Ela correu para a mulher sapo.
Bes puxou um lenço do bolso de sua camisa havaiana. Ele enxugou sua
testa nervosamente.
— Me perguntava o que tinha acontecido com Heket. Ela é a deusa sapo,
sabe.
— Eu nunca teria adivinhado — Carter disse.
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levei muito tempo para perceber isso. Estava tão obcecado, eu não fui muito
bom com Taueret ao passar dos anos.
— Mas ela foi te resgatar na Rússia — lembrei.
Ele assentiu.
— Mandei pedidos de socorro. Pensei que Bastet viria me ajudar. Ou
Hórus. Ou alguém. Eu não sabia onde estavam todos eles, entende, mas eu
tinha muitos amigos nos dias antigos. Achei que alguém apareceria. A única
que fez isso foi Taueret. Ela arriscou sua vida entrando furtivamente no pa-
lácio durante o casamento anão. Ela viu a coisa toda... me viu sendo humi-
lhado na frente do grande povo. Durante a noite, ela quebrou minha jaula
e me libertou. Devo tudo a ela. Mas uma vez que estive livre... eu apenas
fugi. Fiquei tão envergonhado, não conseguia olhar para ela. Toda hora pen-
sava nela, pensava sobre aquela noite e ouvia os risos.
O pânico em sua voz era bruto, como se ele estivesse descrevendo algo
que tivesse acontecido ontem, não três séculos atrás.
— Bes, não é culpa dela — falei gentilmente. — Ela se preocupa com você.
É óbvio.
— É tarde demais — ele disse. — Eu a machuquei muito. Queria voltar no
tempo, mas...
Ele hesitou. Taueret estava andando na nossa direção, levando a deusa
sapo pelo braço.
— Agora, querida — Taueret disse — só venha conosco, e nós vamos en-
contrar a sua sala. Não há necessidade de pular.
— Mas é um pulo de fé — Heket coaxou. — Meu templo está aqui em
algum lugar. Ficava em Qus. Cidade adorável.
— Sim, querida — Taueret disse. — Mas seu templo se foi agora. Todos os
templos se foram. Você tem um ótimo quarto, apesar...
— Não — Heket murmurou. — Os sacerdotes terão sacrifícios para mim.
Eu tenho que...
Ela fixou seus olhos amarelos enormes em mim, e entendi como uma
mosca deve se sentir antes de ser arrebatada por uma língua de sapo.
— Essa é minha sacerdotisa! — Heket disse. — Ela veio me visitar.
— Não, querida — Taueret disse. — Essa é Sadie Kane.
— Minha sacerdotisa.
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O TRONO DE FOGO
Heket afagou meu ombro com sua mão úmida e cheia de membranas, e
fiz o meu melhor para não me encolher.
— Diga ao templo para começarem sem mim, tudo bem? Vou me juntar
a eles depois. Você vai dizer a eles?
— Hum, sim. Claro, Lady Heket.
— Bom, bom — seus olhos saíram de foco. — Estou com muito sono agora.
Trabalho duro, lembrando...
— Sim, querida — Taueret concordou. — Por que você não vai se deitar
em um daqueles quartos agora?
Ela guiou Heket para dentro do quarto vago mais próximo.
Bes seguiu-a com os olhos tristes.
— Sou um anão horrível.
Talvez eu devesse ter tranquilizado-o, mas minha mente estava correndo
em outros assuntos. Comecem sem mim, Heket havia dito. Um pulo de fé.
De repente achei difícil respirar.
— Sadie? — Carter perguntou. — O que há de errado?
— Sei por que o pergaminho não está nos guiando — eu disse. — Tenho
que começar da segunda parte do encantamento.
— Mas não estamos lá ainda — Carter disse.
— E não vamos chegar lá a menos que eu comece o encantamento. É a
parte de encontrar Rá.
— O que é?
Taueret apareceu ao lado de Bes e quase assustou o anão para fora de
sua camisa havaiana.
— O encantamento — falei. — Tenho que dar um pulo de fé.
— Acho que a deusa sapo te infectou — Carter atormentou.
— Não, seu burro! — falei — Esse é o único jeito de encontrar Rá. Tenho
certeza disso.
— Ei, criança — Bes disse — se você começar esse encantamento, e não
encontrarmos Rá no momento em que você terminar de ler isso...
— Eu sei. O encantamento vai sair pela culatra.
Quando eu disse sair pela culatra, quis dizer literalmente. Se o encanta-
mento não achasse o alvo apropriado, o poder do Livro de Rá poderia ex-
plodir na minha cara.
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— É o único jeito — insisti. — Não temos tempo para passear pelos salões
para sempre, e Rá só vai aparecer se o invocarmos. Temos que tomar o risco.
Vocês vão ter que me levar. Não posso tropeçar nas palavras.
— Você tem coragem, querida — Taueret segurou sua tocha. — Não se
preocupe, vou te guiar. Só faça a sua leitura.
Abri o pergaminho na segunda seção. As linhas de hieróglifos, que outra
vez pareciam frases soltas, agora faziam todo sentido.
— Eu invoco o nome de Rá — li alto — o rei adormecido, senhor do Sol
do meio dia, que se senta sobre o trono de fogo...
Bem, essa é a ideia. Eu descrevi como Rá se ergueu do mar do Caos.
Lembrei de sua luz brilhando sobre a terra original do Egito, trazendo vida
ao Vale do Nilo. Enquanto eu lia, me sentia aquecida.
— Sadie — Carter disse — você está fumegando.
É difícil não ficar em pânico quando alguém faz um comentário como
esse, mas percebi que Carter estava certo. A fumaça estava ondulando para
fora do meu corpo, formando uma coluna de cinza que descia pelo corredor.
— É minha imaginação — Carter perguntou — ou a fumaça está nos mos-
trando o caminho? Ai!
Ele disse essa última parte porque eu pisei no pé dele, que eu podia fazer
muito bem sem quebrar minha concentração. Ele captou a mensagem: Cale
a boca e comece a andar.
Taueret pegou meu braço e me guiou para frente. Bes e Carter nos acom-
panharam como guardas de segurança. Seguimos a trilha de fumaça por mais
dois corredores e subimos um lance de escadas. O Livro de Rá ficou descon-
fortavelmente quente em minhas mãos. A fumaça do meu corpo começou a
ocultar as letras.
— Você está indo bem, Sadie — Taueret disse. — Esse corredor me parece
familiar.
Eu não sabia como ela poderia dizer, mas fiquei focada no pergaminho.
Descrevi o barco do sol de Rá navegando por todo o céu. Falei de sua sabe-
doria majestosa e das batalhas que ele venceu contra Apófis.
Uma gota de suor escorreu por meu rosto. Meus olhos começaram a ar-
der. Esperava que eles não estivessem literalmente em chamas.
Quando cheguei à linha “Rá, o apogeu do sol...” percebi que havíamos
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parado em frente a uma porta. Ela não parecia nada diferente das outras
portas, mas a abri e entrei. Eu fiquei lendo, embora estivesse chegando perto
do fim do encantamento bem rápido.
Lá dentro, a sala estava escura. Sob a luz crepitante da tocha de Taueret,
eu vi o homem mais velho do mundo dormindo na cama – seu rosto enru-
gado, seus braços como gravetos, sua pele tão translúcida que eu conseguia
ver cada veia. Algumas múmias de Bahariya pareciam mais vivas que essa
casca velha.
— A luz de Rá retorna — li.
Acenei a cabeça para a janela de cortinas pesadas e felizmente Bes e Car-
ter pegaram a mensagem. Eles puxaram as cortinas, e a luz vermelha do Lago
de Fogo inundou a sala. O velho não se mexeu. Sua boca estava com os
lábios franzidos como se tivessem sido costurados.
Me movi para sua cabeceira e fiquei lendo. Descrevi Rá acordando ao
amanhecer, se sentando em seu trono enquanto seu barco subia o céu, as
plantas se virando na direção do calor do sol.
— Não está funcionando — Bes murmurou.
Fiquei em pânico. Só faltavam duas linhas. Eu podia sentir o poder do
encanto aumentando, começando a superaquecer meu corpo. Eu ainda es-
tava fumegando, e não gostava do cheiro de Sadie grelhada. Tinha que acor-
dar Rá ou eu queimaria viva.
A boca do deus... É claro.
Coloquei o rolo na cama de Rá e fiz o possível para deixá-lo aberto com
uma mão.
— Eu canto os louvores do deus sol.
Estiquei minha mão livre para Carter e estalei os dedos.
Graças a Deus, Carter entendeu.
Ele vasculhou minha bolsa e me passou a lâmina netjeri de obsidiana de
Anúbis. Se havia um momento para a Abertura da Boca, era aquele.
Toquei a faca nos lábios do velho e falei a última linha do encantamento:
— Acorde, meu rei, com o novo dia.
O velho ofegou. Fumaça espiralava de sua boca como se ele tivesse virado
um aspirador de pó, e a magia do encantamento canalizou dentro dele. Mi-
nha temperatura voltou ao normal. Eu quase desmaiei de alívio.
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SADIE
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C
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21. Ganhamos algum tempo
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T
E
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DEPOIS DE DIZER ADEUS À ZIA na Grande Pirâmide, eu não pensava que po-
deria ficar mais deprimido. Eu estava errado.
Parado no cais do Lago de Fogo, eu senti que poderia muito bem fazer
uma bala de canhão na lava. Não era justo. Nós tínhamos chegado até aqui
e nos arriscamos demais só para sermos derrotados por um limite de
tempo. Game over. Como alguém teria sucesso em trazer Rá de volta? Era im-
possível.
Carter, isso não é um jogo, a voz de Hórus disse de dentro de minha ca-
beça. Não é suposto que seja possível. Você deve continuar.
Eu não vejo por que. Os portões da Oitava Casa já estavam fechados.
Menshikov havia partido e nos deixado para trás.
Talvez esse fosse seu plano o tempo todo. Ele nos tinha deixado acordar
Rá apenas parcialmente, então o deus do sol permaneceria velho e fraco.
Então Menshikov nos deixaria presos no Duat, enquanto usava qualquer
magia maligna que tinha planejado para libertar Apófis. Quando o amanhe-
cer viesse, não haveria sol, nem retorno de Rá. Ao invés disso, Apófis subiria
e destruiria a civilização.
Nossos amigos teriam lutado durante a noite toda por nada. Vinte e qua-
tro horas a partir de agora, quando finalmente conseguíssemos sair do Duat,
encontraríamos o mundo nas trevas, um deserto gelado, governado por Apó-
fis. Tudo que importa para nós não existiria mais. Apófis poderia engolir Rá
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CARTER
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— Sadie, Carter.
Papai nos puxou para um abraço como se nós ainda fôssemos crianças,
mas nenhum de nós protestou. Ele aparentava ser sólido e humano, tão pa-
recido com sua natureza antiga que tomou toda a minha força de vontade
para não cair em lágrimas. Seu cavanhaque estava bem aparado. Sua cabeça
careca cintilava. Até mesmo seu perfume cheirava igual: o cheiro fraco de
âmbar.
Ele nos colocou a distância dos braços para nos examinar, seus olhos
brilhando. Eu quase podia acreditar que ele ainda era um mortal comum,
mas se eu olhasse de perto, podia ver uma outra camada de sua aparência,
como uma imagem difusa, sobreposta: um homem de pele azul em vestes
brancas e uma coroa de faraó. Em volta de seu pescoço tinha um amu-
leto djed, o símbolo de Osíris.
— Papai — falei. — Nós falhamos.
— Shh — ele respondeu. — Nada disso. Este é um tempo para descansar e
renovar.
Mamãe sorriu.
— Nós estivemos assistindo seu progresso. Vocês dois foram tão corajo-
sos.
Vê-la era ainda mais difícil do que ver papai. Eu não podia abraçá-la,
porque ela não tinha nenhuma substância física, e quando tocou o meu
rosto, parecia nada mais que uma brisa morna. Ela aparentava exatamente
como eu me lembrava – cabelos loiros soltos na altura dos ombros, olhos
azuis cheios de vida – mas ela era apenas um espírito agora. Seu vestido
branco parecia ser tecido a partir de neblina. Se eu olhasse diretamente para
ela, ela parecia se dissolver à luz da Barca Solar.
— Estou tão orgulhosa de vocês dois — ela falou. — Venha, nós prepara-
mos um banquete.
Eu estava em um transe quando eles nos levaram para terra firme. Bes
encarregou-se de levar o deus-sol, que parecia de bom humor depois de bater
a cabeça no mastro e tirar um cochilo. Rá deu a todos um sorriso desdentado
e disse:
— Oh, excelente. Banquete? Zebras?
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— Não é Anúbis, mas tenho certeza que ele estaria aqui, se pudesse.
O ânimo de Sadie caiu como se alguém tivesse tirado o ar dela. [Sim,
Sadie, estava óbvio.]
— Onde está ele, então? — Ela perguntou.
Papai hesitou apenas o tempo suficiente para eu sentir seu desconforto.
— Longe. Vamos comer, ok?
Sentei-me e aceitei uma fatia de bolo de aniversário de um criado fantas-
magórico. Você não pensaria que eu tivesse fome, com o fim do mundo e
nossa missão fracassada, sentando na Terra dos Mortos em uma mesa de
jantar do meu passado com o fantasma da minha mãe ao meu lado e meu
pai com a cor de um mirtilo. Mas meu estômago não se preocupava com
isso. Ele me deixou saber que eu estava vivo e precisava de comida. O bolo
era de chocolate com sorvete de baunilha. Tinha um gosto perfeito. Antes
que eu percebesse, eu tinha acabado minha fatia e estava carregando meu
prato com pizza de pepperoni. As estátuas dos deuses estavam atrás de nós –
Hórus, Ísis, Thot, Sobek – mantinham-se em silêncio enquanto nós comía-
mos. Fora do pavilhão, as terras de Aaru se espalhavam como se a caverna
fosse infinita, colinas verdejantes e campinas, rebanhos de gado gordo, cam-
pos de cereais, pomares cheios de tamareiras. Córregos cortavam os pânta-
nos em uma colcha de retalhos de ilhas, como o Delta do Nilo, com as vilas
de aparência perfeita para os mortos abençoados. Veleiros cruzavam o rio.
— Assim é como parece para os Antigos Egípcios — papai disse, como se
estivesse lendo meus pensamentos. — Mas cada alma vê Aaru de uma ma-
neira diferente.
— Como a nossa casa em Los Angeles? — perguntei. — Nossa família junta
em torno de uma mesa de jantar? Isso é mesmo real?
Os olhos de papai ficaram tristes, do modo que costumavam ficar sempre
que eu perguntava sobre a morte de mamãe.
— O bolo de aniversário é bom, né? — perguntou. — Minha garotinha,
com treze anos. Nem posso acreditar...
Sadie varreu com a mão o prato da mesa. Ele quebrou contra o chão.
— O que isso importa? — ela gritou. — O relógio de sol, os estúpidos por-
tões, nós falhamos!
Ela escondeu seu rosto nos braços e começou a soluçar.
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CARTER
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O TRONO DE FOGO
— Estou magoado!
Khonsu sentou-se à minha direita e se inclinou para mim, conspirador.
— Pobre Bes, apostou comigo há séculos atrás. Ele queria mais tempo
com Bastet. Ele apostou alguns centímetros de altura. Receio que ele tenha
perdido.
— Não foi isso o que aconteceu! — Bes rugiu.
— Cavalheiros — papai falou em seu tom de pai severo. — Vocês dois
foram convidados à minha mesa. Eu não terei nenhuma luta.
— Absolutamente, Osíris — Khonsu sorriu para ele. — Estou honrado de
estar aqui. E estes são seus famosos filhos? Maravilhoso! Vocês estão prontos
para jogar, crianças?
— Julius, eles não entendem os riscos — nossa mãe protestou. — Nós não
podemos deixá-los fazer isso.
— Pera aí — Sadie disse. — Fazer o quê, exatamente?
Khonsu estalou os dedos, e toda a comida na mesa desapareceu, substi-
tuída por um tabuleiro de prata brilhante de Senet.
— Você não ouviu sobre mim, Sadie? Ísis não te contou algumas histó-
rias? Ou Nut? Aquela sim era uma jogadora. A deusa do céu não parou de
jogar até que ela tivesse ganhado de mim cinco dias inteiros. Você sabe as
chances de ganhar assim tanto tempo? Astronômica! É claro, ela está coberta
de estrelas, então eu suponho que ela seja astronômica.
Khonsu riu de sua própria piada. Ele não pareceu se incomodar por nin-
guém ter se juntado a ele.
— Eu me lembro — intervi — você jogou com Nut, e ela ganhou luar sufi-
ciente para criar cinco dias extras, os Dias do Demônio. Isso permitiu que
ela contornasse a ordem de Rá de que seus cinco filhos não poderiam nascer
em nenhum dia do ano.
— Nut — Rá murmurou. — Nut ruim.
O deus da lua ergueu uma sobrancelha.
— Pobre de mim, Rá está com uma aparência ruim, não é? Mas sim, Car-
ter Kane. Você está absolutamente certo. Eu sou o deus da lua, mas também
tenho alguma influência sobre o tempo. Eu posso alongar ou encurtar a vida
dos mortais. Até mesmo os deuses podem ser afetados pelos meus poderes.
A lua é mutável. Sua luz aumenta e diminui. Você precisa de... o quê? Cerca
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CARTER
de três horas extras? Eu posso fazer que isso saia do luar, se você e sua irmã
estão dispostos a jogar por ele. Posso fazer com que as portas da Oitava Casa
ainda não tenham fechado.
Eu não entendia como ele poderia fazer isso de voltar no tempo, inserir
três horas extras na noite, mas pela primeira vez desde os Acres Ensolarados,
senti uma pequena centelha de esperança.
— Se você pode ajudar, porque simplesmente não nos dá o tempo extra?
O destino do mundo está em jogo.
Khonsu riu.
— Essa é boa! Te dar tempo! Não, sério. Se eu começasse a dar algo tão
valioso, o Maat desabaria. Além disso, você não pode jogar Senet sem apos-
tar. Bes pode te dizer isso.
Bes cuspiu uma perna de gafanhoto de chocolate de sua boca.
— Não faça isso, Carter. Você sabe o que eles diziam sobre Khonsu nos
velhos tempos? Algumas das pirâmides tem um poema sobre ele esculpidas
nas pedras. É chamado de “Hino Canibal”. Por um preço, Khonsu ajudaria
o faraó a matar qualquer deus que o estivesse incomodando. Khonsu iria
devorar sua alma e ganhar sua força.
O deus da lua revirou os olhos.
— História Antiga, Bes! Eu não tenho devorado uma alma desde... que
mês é esse? Março? De qualquer forma, estou completamente adaptado a
este mundo moderno. Eu sou muito civilizado agora. Você deveria ver mi-
nha cobertura no Luxor em Las Vegas. Quero dizer, Obrigado! A América
tem uma excelente civilização!
Ele sorriu pra mim, piscando os olhos de prata como de um tubarão.
— Então, o que você me diz, Carter? Sadie? Joguem comigo no Senet.
Três peças para mim, três para vocês. Vocês vão precisar de três horas de
luar, então vão precisar de uma pessoa adicional para participar da aposta.
Para cada peça que sua equipe conseguir mover para fora do tabuleiro, vou
conceder-lhes uma hora extra. Se ganharem, são três horas extras... apenas o
suficiente para passar os portões da Oitava Casa.
— E se nós perdermos? — perguntei.
— Ah... você sabe — Khonsu acenou com a mão como se isso fosse um
detalhe técnico chato. — Para cada peça que eu mover para fora do tabuleiro,
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O TRONO DE FOGO
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CARTER
sobre isso!
Mamãe se virou desesperadamente para meu pai.
— Julius, diga a eles! É muito perigoso.
Meu pai ainda estava segurando um prato com bolo de aniversário meio-
comido. Ele olhou para o sorvete derretendo como se fosse a coisa mais triste
do mundo.
— Carter e Sadie — disse ele, finalmente — eu trouxe Khonsu aqui para
que vocês tivessem de escolher. Mas o que quer que vocês façam, eu ainda
terei orgulho de vocês dois. Se o mundo acabar hoje à noite, isso não vai
mudar.
Ele encontrou meus olhos, e eu pude ver o quanto o machucava pensar
em nos perder. No último Natal, no Museu Britânico, ele tinha sacrificado
sua vida para libertar Osíris e restaurar a balança no Duat. Tinha deixado
Sadie e eu sozinhos, e eu tinha ficado ressentido com ele por um longo
tempo por isso. Agora percebi como era estar em sua posição. Ele estava
disposto a desistir de tudo, até mesmo de sua vida, por um propósito maior.
— Eu entendo, pai. — disse a ele — Somos Kane. Nós não fugimos de
escolhas difíceis.
Ele não respondeu, mas balançou a cabeça lentamente. Seus olhos ar-
diam com um orgulho feroz.
— Pela primeira vez — Sadie falou — Carter está certo. Khonsu, vamos
jogar seu maldito jogo.
— Excelente! — Khonsu exclamou. — São duas almas. Duas horas pra ga-
nhar. Ah, mas você vai precisar de três horas para atravessar as portas na
hora certa, não vai? Humm. Receio que não possam usar Rá. Ele não está
em seu juízo perfeito. Sua mãe já está morta. Seu pai é o juiz do mundo dos
mortos, então ele está desclassificado de apostar a alma...
— Eu jogo — Bes anunciou.
Seu rosto estava triste, mas determinado.
— Velho amigo! — Khonsu se expressou. — Estou encantado.
— Quer saber, deus da lua? — Bes disse. — Eu não gosto disso, mas vou
jogar.
— Bes — chamei — você já fez o bastante por nós. Bastet nunca esperaria
que você...
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O TRONO DE FOGO
— Eu não estou fazendo isso pela Bastet! — ele rosnou. Então ele respirou
fundo. — Olhe, vocês, crianças, são o que importa. Nos últimos dois dias,
pela primeira vez em anos, me senti querido de novo. Importante. Não como
uma atração secundária. Se as coisas forem mal, apenas digam a Taueret... —
ele pigarreou e deu a Sadie um olhar significativo. — Diga a ela que eu tentei
voltar o relógio.
— Oh, Bes.
Sadie se levantou e correu em volta da mesa. Ela abraçou o deus anão e
beijou sua bochecha.
— Tudo bem, tudo bem — ele murmurou. — Não vá ser sentimental co-
migo. Vamos jogar essa partida.
— Tempo é dinheiro — Khonsu concordou.
Nossos pais se levantaram.
— Nós não podemos ficar pra isso — papai disse — mas, crianças...
Ele não parecia saber como concluir o pensamento. Boa sorte provavel-
mente era muito clichê. Eu podia ver a culpa e a preocupação em seus olhos,
mas ele estava se esforçando para não mostrá-las. Um bom general, Hórus di-
ria.
— Nós amamos vocês — nossa mãe finalizou. — Vocês vão prevalecer.
Com isso, nossos pais viraram névoa e desapareceram. O lado de fora do
pavilhão escureceu, como um cenário. O jogo Senet começou a brilhar mais.
— Brilhante — Rá disse.
— Três peças azuis para vocês — Khonsu disse. — Três peças prateadas
para mim. Agora, quem está com sorte?
O jogo começou bem. Sadie tinha habilidade para jogar as varetas. Bes tinha
milhares de anos de experiência no jogo. E eu tinha o trabalho de mover as
peças e ter certeza de que Rá não iria comê-las.
No começo não era óbvio quem estava ganhando. Nós apenas jogamos
e movemos, e era difícil acreditar que estávamos jogando pelas nossas almas,
ou nomes verdadeiros, ou o que quer que seja que você queira chamá-los.
Fizemos uma das peças de Khonsu voltar ao começo, mas ele não parecia
chateado. Ele parecia encantado com quase tudo.
— Não te incomoda? — perguntei em certo momento. — Devorar almas
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CARTER
inocentes?
— Na verdade não — ele poliu seu amuleto de crescente. — Porque deve-
ria?
— Mas nós estamos tentando salvar o mundo — Sadie disse — Maat, os
deuses... tudo. Você não se importa se o mundo se desfizer em Caos?
— Oh, isso não seria tão ruim — Khonsu respondeu. — A mudança vem
em fases, Maat e Caos, Caos e Maat. Sendo o deus da lua, eu aprecio a vari-
ação. Agora, Rá, coitado, ele está sempre preso a uma rotina. Mesmo cami-
nho todas as noites. Tão previsível e chato. Se aposentar foi a coisa mais
interessante que ele já fez. Se Apófis assumir e engolir o sol, bem... suponho
que a lua ainda estará lá.
— Você é louco — Sadie replicou.
— Há! Aposto cinco minutos extras de luar que sou perfeitamente são.
— Esqueça. — disse Sadie — Só jogue.
Khonsu jogou as varetas. A má notícia: ele fez um progresso alarmante.
Ele tirou um cinco e tinha uma de suas peças quase no fim do tabuleiro. A
boa notícia: a peça ficou presa na Casa das Três Verdades, o que significava
que só tirando um três para movê-la de lá.
Bes estudou o tabuleiro atentamente. Ele não pareceu gostar do que viu.
Tivemos uma peça de volta ao início e duas peças na última fileira do tabu-
leiro.
— Cuidado agora — advertiu Khonsu. — Aqui é onde fica interessante.
Sadie tirou um quatro, o que nos deu duas opções. A nossa peça poderia
sair do tabuleiro. Ou nossa segunda peça poderia bater na peça de Khonsu
na Casa das Três Verdades e enviá-la de volta ao começo.
— Bata nele — eu disse. — É mais seguro.
Bes balançou a cabeça.
— E então nós ficamos presos na Casa das Três Verdades. As chances de
ele tirar um três são mínimas. Tire sua primeira peça. Dessa forma, pelo
menos uma hora extra estará segura.
— Mas uma hora extra não vai mudar nada — Sadie respondeu.
Khonsu parecia estar gostando de nossa indecisão. Ele tomou um gole
de vinho de uma taça prateada e sorriu. Enquanto isso, Rá se entretinha
tentando pegar as pontas de seu mangual.
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nós viajamos ao longo da margem do Nilo. Sua última lembrança: duas cri-
anças, Sadie e eu, olhando para ele com amor e preocupação. Então a ima-
gem desvaneceu e Bes se foi. Até sua camisa Havaiana tinha desaparecido.
— Você tirou tudo dele! — gritei. — Seu corpo, tudo. Esse não era o
acordo!
Khonsu abriu seus olhos e suspirou profundamente.
— Isso foi amável. — Ele sorriu para nós como se nada tivesse acontecido.
— Acredito que seja a sua vez.
Seus olhos de prata estavam frios e luminosos, e eu tive a sensação de
que pelo resto da minha vida, eu odiaria olhar para a lua.
Talvez fosse raiva, ou a estratégia de Bes, ou talvez nós apenas tivéssemos
sorte, mas o resto do jogo Sadie e eu acabamos com Khonsu facilmente. Nós
batemos em suas peças em cada oportunidade. Dentro de cinco minutos, a
nossa última peça estava fora do tabuleiro.
Khonsu estendeu suas mãos.
— Bem jogado! As três horas são suas. Se vocês se apressarem, poderão
passar pelos portões da Oitava Casa.
— Eu te odeio — Sadie disse. Foi a primeira vez que ela tinha falado desde
que Bes desapareceu. — Você é frio, calculista, horrível...
— E sou tudo o que você precisava — Khonsu tirou seu relógio de platina
e voltou o tempo: uma, duas, três horas. Tudo ao nosso redor, as estátuas
dos deuses tremeluziram e saltaram como se o mundo estivesse sendo girado
ao contrário.
— Agora — Khonsu disse — vocês gostariam de gastar seu tempo ganho
arduamente reclamando? Ou você quer salvar esse pobre, velho e tolo rei?
— Zebras? — Rá murmurou, esperançoso.
— Onde estão nossos pais? — perguntei. — Pelo menos nos deixe dizer
adeus.
Khonsu balançou a cabeça.
— O tempo é precioso, Carter Kane. Você já deveria ter aprendido essa
lição. É melhor eu te mandar para o seu caminho; mas se vocês quiserem
jogar comigo novamente, por segundos, horas, até dias, é só me avisar. Seu
crédito é bom.
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Segunda Casa, a última parte do Duat antes de sairmos para um novo ama-
nhecer.
Eu esperava ver uma luz no fim do túnel, literalmente, mas ao invés
disso, nosso caminho tinha sido sabotado. Eu podia ver aonde o rio suposta-
mente iria. O túnel continuava em frente, lentamente em curvas saindo do
Duat. Eu podia até mesmo sentir cheiro de ar fresco – o cheiro do mundo
mortal. Mas o fim do túnel tinha sido drenado em um campo de lama. Di-
ante de nós, o rio mergulhava em um buraco enorme, como se um asteroide
tivesse feito um buraco na terra e desviado a água para baixo. Nós estávamos
correndo em direção à queda.
— Podemos pular — Sadie falou. — Abandonar o navio...
Mas acho que chegamos à mesma conclusão. Precisávamos da Barca So-
lar. Precisávamos de Rá. Teríamos que seguir o curso do rio, onde quer que
ele levasse.
— É uma armadilha — Sadie disse. — Trabalho de Apófis.
— Eu sei — disse. — Vamos dizer a ele que não gostamos de seu trabalho.
Nós nos agarramos ao mastro enquanto o navio afundava no redemoi-
nho.
Pareceu como se tivéssemos caído para sempre. Sabe a sensação quando
você mergulha fundo em um poço profundo, como se seu nariz e ouvidos
fossem explodir, e seus olhos fossem saltar da cabeça? Imagine essa sensação
uma centena de vezes pior. Nós estávamos afundando no Duat mais pro-
fundo do que já tínhamos ido – mais profundo que qualquer mortal era
suposto a ir. As moléculas do meu corpo pareciam estar aquecendo, zum-
bindo tão rápido que elas poderiam se separar.
Nós não nos espatifamos. Não batemos no fundo. A Barca simplesmente
mudou de direção, como em vez de para baixo virasse para o lado, e navega-
mos por uma caverna que brilhava com uma luz vermelha desagradável. A
pressão mágica era tão intensa que meus ouvidos soaram. Eu estava enjoado
e mal conseguia pensar direito, mas reconheci o litoral à frente: uma praia
feita de milhões de cascas de escaravelhos mortos, mudando e surgindo
como se uma força embaixo – uma maciça forma de serpente lutando para
se libertar. Dezenas de demônios estavam vasculhando as cascas de escarave-
lhos com pás. E de pé na praia, esperando pacientemente por nós, estava
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22. Amigos nos lugares mais estranhos
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PARECIA QUE MENSHIKOV TINHA NADADO pelo Lago de Fogo sem um es-
cudo mágico. Seus cabelos grisalhos cacheados tinham sido reduzidos a pa-
lha negra. Seu terno branco estava em farrapos e cheio de furos queimados.
Seu rosto inteiro estava com bolhas, os olhos arruinados não parecerem fora
do lugar. Como Bes devia ter dito, Menshikov estava vestindo suas roupas
feias.
A memória de Bes me fez ficar com raiva. Tudo que tínhamos passado,
tudo que tínhamos perdido, era tudo culpa de Vlad Menshikov.
A Barca do Sol parou na praia de conchas de escaravelho.
Rá berrou:
— Olá-á-á-á-á-á
E tropeçou em seus pés. Ele começou a perseguir um servo de esfera azul
ao redor do convés como se fosse uma borboleta bonita.
Os demônios derrubaram suas pás e se reuniram na margem. Eles olha-
ram uns aos outros incertos, sem dúvida se perguntando se esse era algum
tipo de pegadinha. Com certeza esse velho caduco boboca não podia ser o
deus sol.
— Maravilha — Menshikov disse. — Vocês trouxeram Rá, afinal de contas.
Isso me deu um momento para perceber o que tinha de diferente em sua
voz. A respiração rouca se fora. Seu tom era barítono, profundo e suave.
— Fiquei preocupado — ele continuou. — Vocês demoraram tanto tempo
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CARTER
na Quarta Casa, achei que estariam presos para passar a noite. Podíamos ter
libertado Lorde Apófis sem vocês, é claro, mas teria sido tão inconveniente
caçar vocês mais tarde. Isso é muito melhor. Lorde Apófis vai estar faminto
quando acordar. Ele vai ficar mais feliz por vocês terem trazido um lanche
para ele.
— Wheee, lanche — Rá riu.
Ele mancava ao redor do barco, tentando esmagar o servo de luz com seu
mangual.
Os demônios começaram a rir. Menshikov deu a eles um sorriso indul-
gente.
— Sim, muito engraçado — ele disse. — Meu avô divertiu Pedro, o Grande,
com um casamento anão. Vou fazer melhor. Vou entreter o próprio Senhor
do Caos com o deus sol senil!
A voz de Hórus falou urgente na minha mente: Pegue de volta as armas do
faraó. Essa é a sua última chance!
Lá no fundo, eu sabia que era uma péssima ideia. Se eu reclamasse as
armas do faraó agora, nunca as devolveria. E os poderes que eu ganharia não
seriam suficientes para derrotar Apófis. Ainda assim, fiquei tentado. Eu me
sentiria tão bem em pegar o cajado e o mangual daquele Rá velho e estúpido
e esmagar Menshikov no chão.
Os olhos do russo brilharam com malícia.
— Uma revanche, Carter Kane? Certamente. Percebi que você não tem
seu anão babá dessa vez. Vamos ver o que consegue fazer por si próprio.
Minha visão ficou vermelha, e isso não tinha nada a ver com a luz na
caverna. Eu saí do barco e invoquei o avatar do deus falcão. Eu nunca havia
tentado o feitiço tão fundo no Duat antes. Consegui mais do que pedi. Em
vez de ficar envolto em uma holografia brilhante, me senti mais alto e mais
forte. Minha visão aumentou, mais nítida.
Sadie fez um som estrangulado.
— Carter?
— Pássaro grande! — Rá disse.
Olhei para baixo e descobri que eu era um gigante de carne e osso, quatro
metros e meio de altura, vestido na armadura de batalha de Hórus. Levei
minhas mãos enormes para a cabeça e afaguei penas em vez de cabelo. Minha
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boca era um bico afiado. Gritei com alegria, e saiu como um guincho, eco-
ando pela caverna. Os demônios se afastaram nervosos. Olhei para baixo,
para Menshikov, que agora parecia tão insignificante quanto um rato. Eu
estava pronto para pulverizá-lo, mas Menshikov zombou e apontou seu ca-
jado.
Seja lá o que ele estava planejando, Sadie foi mais rápida. Ela atirou seu
próprio cajado, que se transformou em um papagaio (da espécie da ave de
rapina) tão grande quanto um pterodátilo.
Típico. Eu viro algo bem legal como um guerreiro falcão, e Sadie tem
que me acompanhar. Seu papagaio bofeteava o ar com suas asas pesadas.
Menshikov e seus demônios foram dar cambalhotas do outro lado da praia.
— Dois pássaros grandes! — Rá começou a aplaudir.
— Carter, me dê cobertura! — Sadie puxou o Livro de Rá. — Preciso co-
meçar o encanto.
Achei que o papagaio gigante estava fazendo um ótimo trabalho em fun-
ção de guarda, mas dei um passo à frente e fiquei pronto para lutar.
Menshikov ficou de pé.
— Certamente, Sadie Kane, comece seu encanto. Você não entende? O
espírito de Khepri criou essa prisão. Rá deu parte de sua própria alma, sua
habilidade de renascer, para manter Apófis acorrentado.
Pareceu que ele tinha dado um tapa no rosto de Sadie.
— “O último escaravelho”...
— Exatamente — Menshikov concordou. — Todos esses escaravelhos se
multiplicaram de um – Khepri, a terceira alma de Rá. Meus demônios vão
encontrá-lo, eventualmente, vasculhando pelas conchas. É um dos únicos
escaravelhos que ainda estão vivos agora, e uma vez que eu esmagá-lo, Apófis
irá se libertar. Mesmo se vocês invocarem Rá de volta, Apófis ainda vai ficar
livre! De qualquer maneira, Rá está muito fraco para lutar. Apófis vai devorá-
lo, como as profecias antigas previram, e o Caos vai destruir o Maat de uma
vez por todas. Vocês não podem vencer.
— Você é louco — falei, minha voz muito mais profunda que o normal.
— Você vai ser destruído também.
Vi a luz fraturada em seus olhos, e percebi alguma coisa que me chocou
no estômago. Menshikov não queria isso mais que nós. Ele tinha vivido com
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tanta tristeza e desespero que Apófis tinha bagunçado sua alma, feito dele
um prisioneiro de seus próprios sentimentos detestáveis. Vladimir Menshi-
kov pretendia se alegrar, mas ele não sentia nenhuma sensação de triunfo.
Por dentro, ele estava aterrorizado, derrotado, miserável. Ele estava escravi-
zado por Apófis. Quase senti pena por ele.
— Já estamos mortos, Carter Kane — ele disse. — Esse lugar nunca foi feito
para humanos. Você não sente? O poder do Caos está infiltrando nossos
corpos, murchando nossas almas. Mas eu tenho planos maiores. Um hospe-
deiro pode viver indefinidamente, não importa que doença pode ter, não im-
porta o quanto possa ser ferido. Apófis já curou minha voz. Em breve vou
estar inteiro novamente. Vou viver para sempre!
— Um hospedeiro...
Quando percebi o que ele estava falando, quase perdi o controle da mi-
nha nova forma gigante.
— Você não está falando sério. Menshikov, pare isso antes que seja tarde
demais.
— E morrer? — ele perguntou.
Atrás de mim, uma nova voz disse:
— Há coisas piores que morrer, Vladimir.
Virei-me e vi um segundo barco deslizando em direção à margem – um
bote cinza pequeno com um simples remo mágico que remava sozinho. O
olho de Hórus estava pintado na proa do barco, e seu passageiro solitário
era Michel Desjardins. O cabelo e barba do Sacerdote-leitor Chefe estavam
agora tão brancos quanto a neve. Hieróglifos brilhantes flutuavam de suas
vestes cor de creme, fazendo uma trilha de palavras divinas atrás dele.
Desjardins pisou em terra firme.
— Você é brinquedo de alguma coisa muito pior que a morte, meu velho
amigo. Reze para que eu te mate antes que tenha sucesso.
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O TRONO DE FOGO
Sadie como se não fossem grande coisa, e plantou seu cajado nos escarave-
lhos mortos.
— Renda-se, Vladimir.
Menshikov riu.
— Você tem olhado para si mesmo recentemente, meu senhor? Minhas
maldições estiveram minando suas forças por meses, e você nem mesmo per-
cebeu. Está quase morto agora. Eu sou o mago mais poderoso do mundo.
Era verdade que Desjardins não parecia bem. Seu rosto estava quase tão
magro e enrugado quanto o do deus sol. Mas a nuvem de hieróglifos parecia
forte ao seu redor. Seus olhos brilhavam com intensidade, assim como meses
atrás no Novo México, quando ele tinha batalhado contra nós nas ruas de
Las Cruces e jurado nos destruir. Ele deu um passo a frente, e a ralé de
demônios se afastou. Acho que eles reconhecerem a pele de leopardo ao
redor de seus ombros como uma marca de poder.
— Eu falhei em muitas coisas — Desjardins admitiu. — Mas não vou falhar
nisso. Não vou deixar você destruir a Casa da Vida.
— A Casa? — A voz de Menshikov ficou aguda. — Ela morreu séculos atrás!
Devia ter sido dissolvida quando o Egito caiu.
Ele chutou as cascas secas de escaravelho.
— A Casa tem tanta vida quanto essas cascas ocas de inseto. Acorde, Mi-
chel! O Egito se foi, está sem sentido, a história antiga. É hora de destruir o
mundo e começar outra vez. O Caos sempre vence.
— Nem sempre — Desjardins se virou para Sadie. — Comece o encanto.
Vou cuidar desse desgraçado.
O chão subiu debaixo de nós, tremendo enquanto Apófis tentava ascen-
der.
— Pense primeiro, criança — Menshikov avisou. — O mundo vai acabar,
não importa o que faça. Os mortais não podem deixar essa caverna vivos,
mas dois de vocês foram possuídos por deuses. Combinem com Hórus e Ísis
de novo, se comprometam a servir Apófis, e podem sobreviver essa noite.
Desjardins sempre foi seu inimigo. Mate-o para mim agora e apresente seu
corpo como um presente para Apófis! Vou garantir a ambos posições de
honra em um novo mundo comandado pelo Caos, sem restrições de quais-
quer regras. Posso te dar o segredo da cura de Walt Stone.
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escaravelho?
Sadie puxou o escaravelho dourado se contorcendo de sua bolsa. Juntos,
nos aproximamos de Rá.
— Pegue — eu disse a ele.
Rá enrugou seu nariz já enrugado.
— Não quero um inseto.
— É a sua alma! — Sadie disse. — Você vai pegar, e vai gostar!
Rá parecia intimidado. Ele pegou o inseto, e para o meu terror, o enfiou
na boca.
— Não! — Sadie gritou.
Tarde demais. Rá tinha engolido.
— Oh, Deus — Sadie disse. — Ele deveria fazer isso? Talvez ele devesse
fazer isso.
— Não gosto de insetos — Rá murmurou.
Esperamos ele mudar para um rei jovem e poderoso. Em vez disso, ele
arrotou. Ele ficou velho, estranho e detestável.
Em um transe, caminhei com Sadie de volta à frente do barco. Tínhamos
feito tudo que pudemos, e ainda senti como se tivéssemos perdido. En-
quanto navegávamos, a pressão da magia pareceu aliviar. O rio pareceu ali-
sar, mas eu podia sentir que estávamos ascendendo rapidamente pelo Duat.
Apesar disso, eu ainda sentia como se minhas entranhas estivessem derre-
tendo. Sadie não parecia melhor.
As palavras de Menshikov ecoaram na minha cabeça: Mortais não podem
deixar essa caverna vivos.
— É a doença do Caos — Sadie disse. — Não vamos fazer isso, não é?
— Temos que continuar. — falei — Pelo menos até amanhecer.
— Tudo aquilo — Sadie disse — e o que aconteceu? Recuperamos um deus
senil. Perdemos Bes e o Sacerdote-leitor Chefe. E estamos morrendo.
Peguei a mão de Sadie.
— Talvez não. Olhe.
Na nossa frente, o túnel estava ficando mais brilhante. As paredes da
caverna se dissolveram, e o rio se alargou. Dois pilares se levantavam da água
– duas estátuas gigantes de escaravelhos douradas. Além delas o amanhecer
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23. Damos uma festa louca em casa
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Você deveria ver os noticiários sobre o estranho duplo nascer do sol sobre o
Brooklyn na manhã de vinte e um de março. Houve muitas teorias: névoa
por causa da poluição do ar, queda de temperatura na atmosfera baixa, alie-
nígenas, ou talvez apenas mais um vazamento gás do esgoto causando uma
histeria em massa. Amamos gás de esgoto no Brooklyn!
Eu posso confirmar, no entanto, que houve brevemente dois sóis no céu.
Eu sei disso porque estava em um deles. O sol subiu normal, como sempre.
Mas também houve o barco de Rá, queimando como um nascer do sol do
Duat, até o Porto de Nova York no céu do mundo mortal.
Para os observadores de baixo, o segundo sol pareceu se misturar com a
luz do primeiro. O que realmente aconteceu? O barco do sol escureceu en-
quanto descia perto da Casa no Brooklyn, onde a camuflagem antimortal o
estava envolvendo e fazendo-o desaparecer.
Nossas defesas mágicas já estavam fazendo hora extra, com uma guerra
plena em andamento. Freak, o grifo, estava mergulhando no ar, atacando
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direção das paredes até que o mago ficou azul. Felix tinha soltado um esqua-
drão de pinguins em outro mago, que se encolhia em um círculo mágico
com algum tipo de estresse pós-traumático, gritando:
— Sem Antártida de novo! Tudo menos isso!
Alyssa estava convocando os poderes de Geb para reparar um buraco que
o inimigo tinha feito em uma parede distante. Julian tinha convocado um
avatar de combate pela primeira vez, e foi cortando os demônios com sua
espada brilhante. Até mesmo Cleo saiu correndo pela sala, puxando perga-
minhos de sua bolsa e lendo palavras aleatórias de poder como “Cegos!”,
“Horizontal!” e “Tagarela!” (que, aliás, fez maravilhas para incapacitar o ini-
migo). Para onde quer que eu olhasse, nossos iniciados estavam mandando
ver. Eles lutaram como se estivessem esperando a noite toda para ter a
chance de descansar, o que suponho que era exatamente o caso. E lá estava
Jaz – Jaz! Parecendo muito saudável! – jogando um shabti do inimigo direto
na lareira, onde ele se quebrou em mil pedaços.
Senti uma enorme sensação de orgulho, e não uma pequena quantidade
de espanto. Eu estava tão preocupada com a sobrevivência dos nossos jovens
iniciados, mas eles estavam simplesmente dominando um grupo de magos
muito mais experientes.
O mais impressionante, porém, foi Amós. Eu já o tinha visto fazer magia,
mas nunca desta forma. Ele estava na base da estátua de Thot, convocando
raios e trovões com seu cajado, derrubando magos inimigos, e transfor-
mando-os em nuvens de tempestade em miniatura. Uma mulher maga o
atacou com seu cajado brilhante com chamas vermelhas, mas Amós simples-
mente bateu no chão e as telhas de mármore viraram areia aos seus pés, e a
mulher afundou até o pescoço.
Carter e eu nos olhamos, sorrimos, e nos juntamos à luta.
Foi uma derrota completa. Logo os demônios tinham sido reduzidos a
montes de areia, e os magos inimigos começaram a se dispersar em pânico.
Sem dúvida, eles estavam esperando lutar contra um bando de crianças inex-
perientes. Eles não contavam com o tratamento Kane completo.
Uma das mulheres conseguiu abrir um portal em uma parede distante.
Pare-os, a voz de Ísis falou em minha mente, que foi um choque após um
silêncio tão longo. Eles devem ouvir a verdade.
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leitor Chefe e nos contam essa história maluca. São Kane! Traidores! Prova-
velmente eles mesmos mataram Desjardins e Menshikov.
A voz de Amós soou por toda a Grande Sala:
— Sarah Jacobi! Você de todas as pessoas sabe que não é verdade. Você
dedicou sua vida para estudar os caminhos do Caos. Você pode sentir o de-
sencadeamento de Apófis, não é? E o retorno de Rá.
Amós apontou para as portas de vidro que conduziam ao convés. Eu não
sei como ele o sentiu sem olhar, mas o barco do sol estava descendo, vindo
para ancorar na piscina de Filipe da Macedônia. Foi uma aterrissagem bas-
tante impressionante. Zia e Walt estavam cada um de um lado do trono de
fogo. Eles conseguiram sustentar Rá para que ele parecesse um pouco mais
majestoso, com seu cajado e seu mangual em suas mãos, embora ele ainda
tivesse um sorriso bobo no rosto.
Bastet, que estava parada na plataforma congelada em estado de choque,
caiu de joelhos.
— Meu rei!
— Olá-á-á-á-á — Rá disse. — Adeee-us!
Eu não tinha certeza do que ele queria dizer, mas Bastet se atirou aos pés
dele, de repente alarmada.
— Ele vai subir para os céus! — disse. — Walt, Zia, saiam!
Eles saíram bem na hora certa. O barco do sol começou a brilhar. Bastet
se virou para mim e falou:
— Eu vou acompanhá-lo até os outros deuses! Não se preocupe. Voltarei
em breve!
Ela pulou a bordo, e o barco do sol flutuava no céu, se transformando
em uma bola de fogo. Então combinado com a luz do sol, desapareceu.
— Aqui está sua prova — Amós anunciou. — Os deuses e a Casa da Vida
devem trabalhar juntos. Sadie e Carter estão certos. A Serpente não vai ficar
no Duat por muito tempo, agora que quebrou suas correntes. Quem irá se
juntar a nós?
Vários magos inimigos baixaram seus cajados e varinhas. A mulher de
branco, Sarah Jacobi, rosnou:
— Os outros nomos nunca irão reconhecer seu pedido, Kane. Você está
contaminado com o poder de Set! Vamos espalhar a palavra. Vamos deixá-
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los saber que você assassinou Desjardins. Eles nunca vão segui-lo!
Ela saltou através do portal. O homem de azul, Kwai, nos estudou com
desprezo e seguiu Jacobi. Outros três o seguiram também, mas deixamos eles
saírem em paz.
Reverentemente, Amós tomou a capa de pele de leopardo das mãos de
Carter.
— Pobre Michel.
Todos estavam reunidos em torno da estátua de Thot. Pela primeira vez,
percebi o quanto o Grande Salão havia sido danificado. Paredes tinham sido
quebradas, janelas estilhaçadas, as relíquias esmagadas, e a metade dos ins-
trumentos musicais de Amós foram derretidos. Pela segunda vez em três me-
ses, quase tínhamos destruído a Casa do Brooklyn. Isso tinha que ser um
recorde. E ainda assim eu queria dar a todos no salão um grande abraço.
— Vocês foram brilhantes — falei. — Destruíram o inimigo em segundos!
Se vocês podem lutar tão bem, como eles foram capazes de mantê-los presos
a noite toda?
— Mas nós mal conseguimos mantê-los fora! — disse Felix. Ele olhou in-
trigado para seu próprio sucesso. — De madrugada, eu estava, tipo, total-
mente sem energia.
Os outros concordaram severamente.
— E eu estava em coma — disse uma voz familiar.
Jaz atravessou a multidão e abraçou Carter e eu. Era tão bom vê-la, que
me senti ridícula por já ter sentido ciúmes dela e de Walt.
— Você está bem agora?
Eu segurei seus ombros e estudei seu rosto procurando qualquer sinal de
doença, mas ela parecia habitualmente normal.
— Eu estou bem! — disse. — No meio da madrugada, acordei me sentindo
ótima. Acho que logo que você chegou... Eu não sei. Alguma coisa aconte-
ceu.
— O poder de Rá — disse Amós. — Quando ele acordou, ele trouxe nova
vida, nova energia para todos nós. Ele revitalizou nosso espírito. Sem isso,
teríamos falhado.
Me virei para Walt, sem ousar perguntar. Seria possível que ele tivesse
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O TRONO DE FOGO
sido curado também? Mas o olhar em seus olhos me disse que a ora-
ção não foi respondida. Suponho que ele podia sentir a dor em seus mem-
bros depois de fazer tanta magia.
Os wallabies estão doentes, Rá repetiu muitas vezes. Eu não tinha certeza
por que Rá estava tão interessado na condição de Walt, mas aparentemente
ele estava até mesmo além do poder do deus sol para se curar.
— Amós — disse Carter, interrompendo meus pensamentos — o que Ja-
cobi quis dizer com os outros nomos não reconhecerem seu pedido?
Eu não podia ajudá-lo. Suspirei e revirei os olhos para ele. Meu irmão
consegue ser muito grosseiro às vezes.
— O quê? — perguntou ele.
— Carter, você se lembra de nossa conversa sobre os magos mais podero-
sos do mundo? Desjardins era o primeiro. Menshikov era o terceiro. E você
estava preocupado com quem poderia ser o segundo?
— Sim — admitiu. — Mas...
— E agora que Desjardins está morto, o segundo mago mais poderoso é o
mago mais poderoso. E quem você acha que é?
Lentamente, os neurônios de seu cérebro devem ter disparado, que era
a prova de que milagres podem acontecer. Ele se virou para olhar para Amós.
Nosso tio assentiu solenemente.
— Temo que sim, crianças — Amós colocou a capa de pele de leopardo
em torno de seus ombros. — Goste ou não, a responsabilidade da liderança
cabe a mim. Eu sou o novo Sacerdote-leitor Chefe.
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24. Faço uma promessa impossível
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EU NÃO GOSTO DE DESPEDIDAS, e ainda tenho que contar a você sobre mui-
tas delas.
[Não Carter, isto não foi um convite para pegar o microfone. Solte!]
Ao entardecer, a Casa no Brooklin estava de volta à ordem. Alyssa con-
sertou quase toda a alvenaria sozinha, com o poder do deus da terra. Nossos
iniciantes sabiam usar muito bem o feitiço Hi-nehm, que era o suficiente para
consertar a maioria das coisas quebradas. Khufu mostrou muita destreza
com trapos e líquidos de limpeza como ele fazia com uma bola de basquete,
e é realmente incrível o quanto polimento e limpeza que pode-se realizar
pendurando grandes panos nas asas de um grifo.
Tivemos várias reuniões durante o dia. Filipe da Macedônia ficou de
guarda na piscina, enquanto nosso exército shabti patrulhava o terreno, mas
ninguém tentou atacar – nem as forças de Apófis e nem nossos colegas ma-
gos. Eu quase podia sentir o choque coletivo espalhado por todos os trezen-
tos e sessenta nomos quando eles souberam das notícias: Desjardins estava
morto, Apófis se reergueu, Rá voltou e Amós Kane era o novo Sacerdote-
leitor Chefe. Esse fato foi o mais alarmante de todos, e eu não sei, mas penso
que vou ter um tempo para descansar enquanto os outros nomos processam
esta rodada de eventos e decidem o que vão fazer.
Logo antes pôr-do-sol, eu e Carter voltamos ao telhado, onde Zia abriu
um portal para o Cairo para ela e Amós.
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Assim que o sol estava se pondo, uma exausta Bastet apareceu no Grande
Salão. Em vez de seu traje de costume, ela usava um vestido formal e joias
egípcias pesadas que pareciam muito desconfortáveis.
— Eu tinha esquecido o quanto é difícil guiar o barco sol através do céu
— disse ela, limpando a testa. — E quente. Da próxima vez, vou trazer um
pires e uma geladeira cheia de leite.
— Rá está bem? — perguntei.
A deusa gato contraiu os lábios.
— Bem... ele é o mesmo. Eu guiei o barco para a sala do trono dos deuses.
Eles estão recebendo uma nova tripulação para a jornada desta noite. Mas
você deve ir vê-lo antes que ele saia.
— Jornada desta noite? — Carter perguntou. — Pelo Duat? Nós justamente
o trouxemos de volta!
Bastet estendeu as mãos.
— O que você esperava? Você reiniciou o ciclo antigo. Rá vai gastar os
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O TRONO DE FOGO
dias no céu e as noites no rio. Os deuses terão que protegê-lo como antiga-
mente. Venham, temos apenas alguns minutos.
Eu estava prestes a perguntar como ela planejava nos levar a sala do trono
dos deuses. Bastet nos disse várias vezes que não é boa na convocação de
portais. Então, uma porta de sombras se abriu no meio do ar. E Anúbis
atravessou-a. Parecia irritantemente lindo, como sempre, em sua calça jeans
preta e em sua jaqueta de couro, com uma camisa de algodão branco, que
abraçou seu peito tão bem que eu perguntei se ele estava mostrando de pro-
pósito. Suspeitei que não. Ele provavelmente pulou da cama de manhã pa-
recendo perfeito.
Certo... esta imagem não me ajuda a manter a concentração.
— Olá, Sadie — ele disse.
[Sim, Carter. Ele me cumprimentou primeiro. O que eu posso dizer? Eu
sou importante assim.]
Eu tentei cruzar o olhar com ele.
— Então é você. Não notei você no submundo enquanto nós estávamos
apostando nossas almas.
— Sim, estou feliz por você ter sobrevivido. Seu elogio fúnebre teria sido
muito difícil de escrever.
— Ah, ha-ha. Onde você estava?
Uma dose de tristeza extra apareceu em seus olhos castanhos.
— Em um projeto paralelo — ele disse. — Mas agora, devemos nos apres-
sar.
Ele apontou para a porta das trevas. E só para mostrar a ele que eu não
estava com medo, fui primeiro. Do outro lado era a sala do trono dos deuses.
Uma multidão de deuses reunidos virou-se para nós. O palácio parecia ainda
maior do que da última vez que estive lá. As colunas estavam mais altas e a
pintura era mais rica. No piso de mármore polido, estavam rodopiando vá-
rias constelações. Era como se estivéssemos pisando em toda a galáxia. O
teto brilhava como um painel fluorescente gigante. O estrado e o trono de
Hórus tinham sido transferidos para um dos lados, de modo que agora pa-
recia mais como uma cadeira de observador, em vez de ser a principal do
evento.
No centro da sala, o barco sol brilhava na doca seca. Esferas de luz faziam
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Hórus voltou-se para os deuses reunidos. Eu percebi que ele não estava
mais usando a coroa do faraó.
— Eis — disse à multidão. — Carter e Sadie Kane, que despertaram o nosso
rei! Que não haja dúvida: Apófis tem um inimigo muito maior agora. Deve-
mos nos unir a Rá.
Rá murmurou em seu sono
— Peixe, bolinho, wallaby
E então voltou para o ronco.
Hórus pigarreou.
— Eu juro minha lealdade! Espero que todos façam o mesmo. Protegerei
o barco de Rá, enquanto passamos a noite no Duat. Cada um de vocês deve
se revezar com este dever até o deus sol... estar totalmente recuperado.
Ele parecia absolutamente convencido que isso nunca aconteceria.
— E nós encontraremos uma maneira de derrotar Apófis! — disse. —
Agora, para comemorarmos o retorno de Rá, eu abraçarei Carter Kane como
a um irmão!
Música começou a tocar, ecoando pelos corredores. Rá, no trono de seu
barco, acordou e começou a bater palmas. Ele sorriu enquanto os deuses
giravam em torno dele, alguns em forma humana, alguns se dissolvendo em
tufos de nuvem, fogo ou luz.
Ísis tomou minhas mãos.
— Espero que você saiba o que fez, Sadie — disse ela em uma voz gelada.
— Nosso maior inimigo se reergueu, e você destronou o meu filho e fez um
deus senil nosso líder.
— Dê a ele uma chance — eu disse, apesar de sentir meus tornozelos vi-
rando manteiga.
Hórus apertou os ombros de Carter. E suas palavras não foram amigá-
veis.
— Eu sou seu aliado, Carter — Hórus prometeu. — Vou te emprestar a
minha força sempre que pedir. Você pode reviver o caminho da minha ma-
gia na Casa da Vida, e vamos lutar juntos para destruir a serpente. Mas não
se engane: você me custou um trono. Se a sua escolha nos custar a guerra,
juro que meu último ato antes de Apófis me engolir será esmagá-lo como
um mosquito. Se ganharmos esta guerra sem a ajuda de Rá, se isso vier a
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soro, batendo nas paredes e cantando hinos antigos, enquanto eles procura-
vam em vão os templos que não existiam mais.
Um novo paciente tinha se juntado a eles. Bes estava sentado com uma
camisola de hospital em uma cadeira de vime, olhando pela janela para o
Lago de Fogo.
Taueret se ajoelhou ao seu lado, e seus pequenos olhos de hipopótamo
estavam vermelhos de tanto chorar. Estava tentando fazê-lo beber com um
copo de vidro.
A água escorria pelo queixo de Bes. Ele olhava fixamente na cachoeira
de fogo à distância, com seu rosto inundado de luz vermelha. Seus cabelos
encaracolados haviam sido recém-penteados, e estava vestindo uma camisa
azul nova, havaiana e shorts, então parecia bastante confortável. Mas seu
rosto estava franzido. Seus dedos seguravam os braços, como se ele soubesse
que deveria se lembrar de algo, mas não conseguia.
— Está tudo bem, Bes — A voz de Taueret tremeu quando ela limpou seu
queixo com um guardanapo. — Nós vamos trabalhar nisto. Eu vou cuidar de
você.
Então nos notou. Sua expressão endureceu. Para uma deusa bondosa do
parto, Taueret poderia parecer bem assustadora quando quisesse.
Ela deu um tapinha no joelho do deus anão.
— Eu já volto, querido Bes.
Ela se levantou, o que foi um grande feito com sua barriga inchada, e
dirigiu-nos para longe de sua cadeira.
— Como você se atreve a vir aqui! Como se você não tivesse feito o sufi-
ciente!
Eu estava prestes a romper em lágrimas e me desculpar quando percebi
que sua raiva não se destinava a Carter ou a mim. Ela estava olhando para
Bastet.
— Taueret... — Bastet estendeu as mãos. — Eu não queria isso. Ele era
meu amigo.
— Ele foi um dos seus brinquedos de gato! — Taueret gritou tão alto que
alguns dos pacientes começaram a chorar. — Você é tão egoísta como todos
da sua espécie, Bastet. Você o usou e o descartou. Você sabia que ele te
amava, e se aproveitou disso. Você brincava com ele como um rato sob sua
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pata.
— Isso não é justo — Bastet murmurou, mas o cabelo dela começou a
eriçar como ela faz quando está com medo.
Eu não podia culpá-la. Não há quase nada mais assustador do que um
hipopótamo enfurecido.
Taueret pisou com força, e seu salto quebrou.
— Bes merecia mais do que isso. Ele merecia mais do que você. Tinha um
bom coração. Eu...eu nunca mais me esquecerei dele!
Senti uma luta muito violenta entre uma gata e uma hipopótama prestes
a começar. Eu não sei se eu fiz isso para salvar Bastet, ou para poupar os
pacientes de serem traumatizados ou para amenizar minha culpa, mas fiquei
entre as deusas.
— Nós vamos corrigir isso — disparei. — Taueret, eu juro pela minha vida.
Nós vamos encontrar uma maneira de curar Bes.
Ela olhou para mim, e sua raiva fora drenada de seus olhos até que não
restou nada além de pena.
— Criança, oh criança... Eu sei o que você quer dizer. Mas não me dê
falsas esperanças. Eu tenho vivido com falsas esperanças por muito tempo.
Vá vê-lo, se necessário. Veja o que aconteceu com o melhor anão do mundo.
Então, nos deixe em paz. Não prometa-me o que não pode cumprir.
Ela se virou e saiu mancando em seu salto quebrado para a sala das en-
fermeiras. Bastet abaixou a cabeça. Ela expressava um sentimento muito es-
tranho para um gato: vergonha.
— Eu vou esperar aqui — anunciou.
Eu poderia dizer que foi a sua resposta final, assim, eu e Carter nos apro-
ximamos de Bes sozinhos.
O deus anão não se moveu. Ele se sentou em sua cadeira de vime, com
a boca ligeiramente aberta, os olhos fixos no Lago de Fogo.
— Bes?
Eu coloquei minha mão em seu braço.
— Você pode me ouvir?
Ele não respondeu, é claro. Ele usava uma pulseira com seu nome escrito
em hieróglifos, carinhosamente decorados, provavelmente feitos pela pró-
pria Taueret.
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— Sinto muito. — falei — Nós vamos pegar seu ren de volta. Nós vamos
encontrar uma maneira de curá-lo. Não vamos, Carter?
— Sim.
Ele limpou a garganta, e posso garantir que ele não estava agindo muito
macho naquele momento.
— Sim, eu juro, Bes. Mesmo se for...
Ele provavelmente ia dizer mesmo se for a última coisa que nós faremos, mas
decidiu não dizer nada. Atendendo à guerra eminente com Apófis, era me-
lhor não pensar em como tão rápido nossas vidas podiam acabar.
Inclinei-me e beijei a testa de Bes. Me lembrei de como nós tínhamos
nos encontrado na Estação de Waterloo, quando ele levou Liz, Emma e eu
em segurança. Me lembrei de como ele assustou Nekhbet e Babi em sua
ridícula sunga. Pensei sobre a boba cabeça de Lênin de chocolate que ele
comprou em São Petersburgo, e como ele colocou Walt e eu em segurança
no portal nas Areias Vermelhas. Não consegui pensar nele como pequeno.
Ele tinha uma enorme, colorida, engraçada e maravilhosa personalidade –
parecia impossível que ele se fora para sempre. Ele deu sua vida imortal para
comprar para nós uma hora extra.
Não pude deixar de chorar. Carter me puxou para longe. Eu não me
lembro de como chegamos de volta em casa, mas lembro de me sentir como
se estivéssemos caindo ao invés de subir, como se o mundo mortal tivesse se
tornado um lugar mais profundo e mais triste do que qualquer lugar do
Duat.
Naquela noite, sentei sozinha no meu quarto com as janelas abertas. A pri-
meira noite de primavera estava surpreendentemente quente e agradável.
Luzes brilhavam ao longo das margens do rio. A fábrica de bagel do bairro
encheu o ar com o cheiro de pão. Eu ouvia a minha playlist de músicas tristes
e me perguntava como era possível que meu aniversário tivesse sido apenas
alguns dias atrás.
O mundo mudou. O deus sol retornou. Apófis estava livre de sua jaula
e, embora tivesse sido banido a uma parte muito profunda do Duat, estaria
trabalhando em seu caminho de volta muito rapidamente. A guerra estava
chegando. Nós ainda tínhamos muito trabalho a fazer. No entanto, eu estava
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outro, nós vamos fazer este trabalho. Eu não estou deixando você.
Aquilo soou tão bem, tão excelente e tão impossível.
— Como você pode prometer isso?
Ele deslocou os olhos para a imagem de Anúbis, em seguida, de volta
para mim.
— Apenas tente não se preocupar comigo. Temos de nos concentrar em
derrotar Apófis.
— Alguma ideia de como?
Ele gesticulou em direção à minha mesa de cabeceira, onde o meu velho
gravador estava – um presente de meus avós anos atrás.
— Conte as pessoas o que realmente aconteceu — ele disse. — Não deixe
Jacobi e os outros espalharem mentiras sobre sua família. Eu vim para o
Brooklyn porque peguei sua mensagem, a gravação sobre a pirâmide verme-
lha e sobre o amuleto djed. Você pediu por ajuda, e nós respondemos. Está
na hora de pedir ajuda de novo.
— Mas quantos magos nós conseguimos da primeira vez... vinte?
— Ei, nós fomos muito bem na noite passada.
Walt olhou em meus olhos. Eu pensei que ele poderia me beijar, mas
algo nos fez hesitar – um senso que só iria tornar as coisas mais incertas,
mais frágeis.
— Mande outra fita, Sadie. Basta dizer a verdade. Quando você fala... —
Ele deu de ombros e, em seguida levantou-se para sair. — Bem, você é muito
difícil de ignorar.
Poucos momentos depois que ele saiu, Carter entrou, com um livro de-
baixo do braço. Ele me encontrou escutando música triste, e olhando para
o gravador na cômoda.
— Isso foi Walt saindo do seu quarto? — perguntou.
Um pouco de protecionismo fraterno penetrou em sua voz.
— O que aconteceu?
— Oh, apenas...
Meus olhos estavam fixos no livro que ele estava carregando. Era um
livro esfarrapado, e me perguntei se ele queria me dar uma espécie de lição
de casa. Mas a capa parecia tão familiar: o desenho de um diamante. A capa
tinha letras multicoloridas.
383
O TRONO DE FOGO
— O que é isso?
Carter sentou ao meu lado. Nervoso, ele me ofereceu o livro.
— É, hum... não é um colar de ouro. Nem mesmo uma faca mágica. Mas
eu disse que tinha um presente de aniversário para você. Este...
Corri meus dedos sobre o título: Levantamento Blackley de Ciências
Para o Primeiro Ano de Faculdade, Décima Edição. Então eu abri o livro.
Na capa interna, estava escrito o nome em uma bonita letra cursiva: Ruby
Kane.
Era o livro da mamãe na faculdade – o mesmo que ela costumava ler
para nós na hora de dormir. A mesma cópia.
Pisquei, em lágrimas.
— Como você conseguiu...
— Um shabti de recuperação da biblioteca — disse Carter. — Eles podem
encontrar qualquer livro. Eu sei que é... uma espécie de presente imperfeito.
Não me custou nada, e eu não fiz isso, mas...
— Cale a boca, seu idiota! — atirei meus braços ao redor dele. — É um
presente de aniversário maravilhoso. E você é um irmão maravilhoso!
[Ótimo, Carter. Aí está, gravado para sempre. Basta não ter uma imagi-
nação grande. Falei num momento de fraqueza.]
Nós viramos as páginas, sorrindo para o bigode que Carter tinha dese-
nhado na cara de Isaac Newton e os diagramas desatualizados do sistema
solar. Encontramos uma velha mancha de comida que foi provavelmente
uma das minhas maçãs. Eu adorava maçãs. Corremos nossas mãos sobre as
notas nas margens, feitas em letra cursiva pela mamãe.
Eu me senti mais perto de minha mãe apenas segurando o livro, e espan-
tado pela consideração de Carter. Eu aprendi seu nome secreto e achava que
eu sabia tudo sobre ele, e ele ainda conseguiu me surpreender.
— Então, o que você estava dizendo sobre Walt? — ele perguntou. — O
que está acontecendo?
Relutantemente, eu fechei o Levantamento Blackley de Ciências. E sim, essa
foi provavelmente a única vez em minha vida que eu tinha fechado um livro
com relutância. Levantei-me e coloquei o livro no meu armário. Então pe-
guei o meu gravador antigo de fitas cassete.
— Temos trabalho a fazer — disse a Carter.
384
SADIE
E atirei-lhe o microfone.
385
NOTA DO AUTOR
– A’max (Queimar)
– Ha-di (Quebrar)
388
GLOSSÁRIO
– Heh-sieh (Retornar)
– Hi-nehm (Juntar)
– L’mun (Esconder)
– N’dah (Proteger)
389
O TRONO DE FOGO
– Sa-per (Enganar)
– W’peh (Abrir)
390
OUTROS TERMOS EGÍPCIOS
391
O TRONO DE FOGO
392
DEUSES EGÍPCIOS MENCIONADOS EM “O
TRONO DE FOGO”
393
O TRONO DE FOGO
394
SOBRE O AUTOR
Livro Extra
CROSSOVER
Livro Crossover
(Percy Jackson e os Olimpianos, Os
Heróis do Olimpo e As Crônicas dos
Kane)
OUTRAS SÉRIES DO AUTOR
Livro Extra
OUTRAS SÉRIES DO AUTOR