2 - O Trono de Fogo

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 404

SINOPSE: O TRONO DE FOGO

OS DEUSES DO EGITO ANTIGO foram libertados no mundo atual, e desde


então Carter Kane e sua irmã, Sadie, vivem mergulhados em problemas in-
comuns à maioria dos mortais. Descendentes da Casa da Vida, ordem se-
creta que remonta à época dos faraós, os dois têm poderes especiais, mas
ainda não os dominam por completo — refugiados na Casa do Brooklin, que
se tornou um local de aprendizado para novos magos, eles correm contra o
tempo. Seu inimigo mais ameaçador, Apófis, a serpente do caos, está se er-
guendo. Se eles não conseguirem impedi-lo, em poucos dias o mundo en-
contrará um final trágico.
Para que tenham alguma chance de derrotar as forças do caos, eles pre-
cisarão da ajuda de Rá, o deus sol. Despertá-lo, porém, não será tarefa fácil:
nenhum mago jamais conseguiu. Primeiro, Carter e Sadie terão que rodar o
mundo em busca das três partes do Livro de Rá, para só então começarem a
decifrar seus encantamentos. E, é claro, não podemos deixar de mencionar
que ninguém — ninguém — tem ideia de onde está o deus.
Narrado alternadamente por Carter e por Sadie, com uma gama enorme
de novos personagens e aventuras em diversos cenários do planeta, este se-
gundo volume de As Crônicas dos Kane fará os leitores se segurarem na ca-
deira enquanto viram as páginas.
Em caso de erros enviar e-mail para:
[email protected]
Com
Livro:
Página:
Erro:
Copyright © 2011 Rick Riordan
Edição em português negociada por intermédio de Gallt and Zacker Literary Agency LLC e Sandra Bruna Agencia
Literaria, SL.

TÍTULO ORIGINAL
The Throne of Fire

404p.: 23 cm. (As Crônicas dos Kane; 2)


ISBN:978-85-8057-092-2

1. História de aventuras - Literatura infanto-juvenil. 2. Mitologia egípcia - Literatura infanto-juvenil. 3.


Literatura infanto-juvenil americana.

[2011]

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA INTRÍNSECA LTDA.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 3° andar
22451-041 - Gávea
Rio de Janeiro - RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
Para Conner e Maggie, a grande equipe de irmãos da família Riordan.
Sumário
Aviso 9
1. Diversão com combustão espontânea 11
2. Domesticamos um beija-flor de três mil quilos 23
3. O sorveteiro trama a nossa morte 35
4. Um convite de aniversário para o Armagedom 49
5. Aprendo a realmente odiar besouros 66
6. Uma banheira de pássaros quase me mata 79
7. Um presente do garoto com cabeça de cachorro 90
8. Grandes atrasos na estação de Waterloo
(desculpem-nos pelo babuíno gigante) 103
9. Fazemos um passeio com o deficiente vertical
pela Rússia 125
10. A visita de um velho amigo vermelho 139
11. Carter faz algo incrivelmente estúpido
(e ninguém se surpreende) 156
12. Domino a fina arte de dizer nomes 170
13. Um demônio entra em meu nariz 193
14. Na tumba de Zia Rashid 208
15. Camelos são maus... 219
16. ... Mas não tão maus quanto os romanos 231
17. Menshikov contrata um esquadrão da
morte alegre 256
18. Jogando na véspera do Juízo Final 273
19. A vingança de Alceu, o deus Alce 289
20. Visitamos a casa da hipopótama prestativa 306
21. Ganhamos algum tempo 323
22. Amigos nos lugares mais estranhos 346
23. Damos uma festa louca em casa 362
24. Faço uma promessa impossível 371
Nota do autor 387
Glossário 388
Outros termos egípcios 391
Deuses egípcios mencionados em
“O Trono de Fogo” 393
AVISO

Esta é uma transcrição de uma gravação. Carter e Sadie Kane foram conhecidos,
primariamente, em uma gravação que recebi no ano passado, que transcrevi como A
Pirâmide Vermelha. Este segundo arquivo de áudio chegou a minha residência pouco
depois que o livro foi publicado, então posso assumir que os Kane confiaram em mim
para continuar a contar sua história. Se os relatos deste segundo áudio são verdadei-
ros, o rumo dos acontecimentos só pode ser descrito como alarmante. E, por causa dos
Kane e do mundo, eu espero que o que se segue seja ficção. Do contrário, todos nós
estamos com sérios problemas.
C
A
1. Diversão com combustão espontânea R
T
E
R

AQUI É CARTER. Olhe, não temos tempo para longas introduções. Preciso
contar essa história logo, ou vamos todos morrer.
Se você não ouviu a nossa primeira gravação, bem... Prazer em conhecê-
lo: os deuses egípcios estão correndo soltos no mundo moderno; um grupo
de magos chamado de Casa da Vida está tentando pará-los; todos odeiam
Sadie e eu; e uma cobra gigante está prestes a engolir o sol e destruir o
mundo.
[Ai! O que foi isso?]
Sadie acabou de me dar um soco. Ela diz que vou assustar muito vocês.
Eu deveria me acalmar, e voltar desde o começo.
Certo. Mas pessoalmente, acho que você deveria se assustar.
O objetivo dessa gravação é informá-lo do que está realmente aconte-
cendo e como as coisas deram errado. Você vai ouvir um monte de pessoas
dizendo horrores sobre a gente, mas nós não causamos aquelas mortes.
Quanto à cobra, aquela também não foi a nossa culpa.
Bem... não exatamente. Todos os magos no mundo têm que se unir. É a
nossa única chance.
Então, essa é a história. Decida por si só. Começou quando colocamos
fogo no Brooklyn.

O trabalho deveria ser simples: entrar discretamente no Museu do Brooklyn,

11
O TRONO DE FOGO

pegar emprestado um artefato particularmente egípcio e sair sem sermos pe-


gos.
Não, não era roubo. Devolveríamos o artefato no final. Mas acho que a
gente pareceu suspeito: quatro crianças em roupas pretas de ninja no te-
lhado do museu. Ah, e um babuíno também vestido como um ninja. Defini-
tivamente isso é suspeito.
A primeira coisa que fizemos foi mandar os nossos recrutas Jaz e Walt
abrir a janela lateral, enquanto Khufu, Sadie e eu examinávamos a grande
cúpula de vidro no meio do telhado, que devia ser a nossa saída estratégica.
A nossa saída estratégica não estava parecendo tão boa.
Depois de escurecer deveria ficar tudo bem, e o museu estaria fechado.
Em vez disso, a cúpula de vidro brilhava com uma luz vinda de dentro. Doze
metros abaixo, centenas de pessoas em smokings e vestidos se misturavam e
dançavam num salão de baile do tamanho de um hangar de avião. Uma
orquestra tocava, mas com o vento zumbindo nas minhas orelhas e os meus
dentes batendo, não pude ouvir a música. Eu estava congelando no meu
pijama de linho.
Magos tinham que usar linho porque ele não interfere com magia, o que
é provavelmente uma grande tradição no deserto egípcio, onde dificilmente
fica frio ou chove. No Brooklyn, em março – nem tanto.
A minha irmã, Sadie, não parecia incomodada pelo frio. Ela estava que-
brando as travas na cúpula enquanto alguma coisa tocava no seu iPod. Digo,
é sério – quem é que fica ouvindo música quando vai arrombar um museu?
Ela usava roupas como as minhas, com exceção de seus coturnos. O seu
cabelo loiro estava tingido com mechas vermelhas – bastante sutil para uma
missão de furto. Com seus olhos azuis e sua cor clara, ela não tinha absolu-
tamente nada de parecido comigo, algo que ambos concordamos que estava
tudo bem. É sempre bom ter a opção de negar que a garota maluca ao meu
lado é a minha irmã.
— Você disse que o museu estaria vazio — reclamei.
Sadie não me ouviu até eu puxar os fones de ouvido e repetir.
— Bem, deveria estar vazio.
Ela vai negar isso, mas depois de viver nos Estados Unidos pelos últimos
três meses, ela estava começando a perder o sotaque britânico.

12
CARTER

— O site do museu disse que fechava às cinco. Como eu ia saber que


tinha um casamento?
Um casamento? Abaixei o olhar e vi que Sadie tinha razão. Algumas das
mulheres usavam vestidos de damas de honra cor de pêssego. Uma das mesas
tinha um grande bolo branco em camadas. Dois grupos separados de convi-
dados haviam levantado a noiva e o noivo nas cadeiras e os carregavam pela
sala enquanto os amigos giravam em volta deles, dançando e batendo pal-
mas. A coisa toda parecia que ia dar em uma iminente colisão frontal de
mobília.
Khufu deu um tapa no vidro. Mesmo nas suas roupas pretas, era difícil
para ele se misturas às sombras com o pelo dourado, sem mencionar o seu
nariz da cor do arco-íris e a traseira vermelha.
— Agh! — grunhiu.
Já que ele era um babuíno, aquilo poderia significar algo de Olhe, tem
comida ali embaixo, ou Esse vidro está sujo e até Ei, aquelas pessoas estão fazendo
coisas estúpidas com cadeiras.
— Khufu tem razão — interpretou Sadie. — Será difícil para a gente passar
despercebido por essa festa. Quem sabe se fingíssemos que somos a equipe
de manutenção.
— Certo — falei. — Me desculpe. Quatro crianças passando com uma es-
tátua de três toneladas. Só vamos fazê-la flutuar pelo telhado. Não se impor-
tem conosco.
Sadie revirou os olhos. Ela sacou a varinha – uma extensão curvada de
marfim esculpida com imagens de monstros – e apontou-a para a base da
cúpula. Um hieróglifo dourado reluziu e o último cadeado abriu com um
estouro.
— Bem, se nós não vamos usar isso como saída — ela disse — por que
estou abrindo? Não poderíamos simplesmente sair pelo caminho em que
entramos, pela janela lateral?
— Eu te disse. A estátua é imensa. Não vai passar pela janela lateral. E
ainda tem as armadilhas.
— Que tal tentarmos novamente amanhã à noite? — perguntou ela.
Sacudi a cabeça.

13
O TRONO DE FOGO

— Amanhã a exibição inteira será encaixotada e despachada de navio para


viagem.
Ela ergueu as sobrancelhas naquele jeito irritante que fazia.
— Talvez se alguém tivesse nos dado mais informações para roubar essa
estátua...
— Esqueça.
Eu percebi onde aquela conversa ia chegar, e não ajudaria nada se Sadie
e eu discutíssemos no telhado a noite toda. Naturalmente, ela estava certa.
Eu não dera a ela muitas informações. Mas cara, as minhas fontes não eram
exatamente confiáveis. Depois de semanas pedindo ajuda, eu finalmente ar-
ranjei uma pista do meu amigo, o deus falcão da guerra Hórus, falando nos
meus sonhos: Ah, a propósito, aquele artefato que você queria? Aquele que pode
ter a chave para salvar o planeta? Esteve exposto lá no fim da rua, no Museu do
Brooklyn, pelos últimos trinta anos, mas amanhã ele parte para a Europa, então é
melhor você se apressar! Terá cinco dias para descobrir como usá-lo, ou estaremos
todos condenados. Boa sorte!
Eu poderia ter berrado com ele, perguntando o porquê de não ter me
falar mais cedo, mas não faria nenhuma diferença. Os deuses só falam
quando estão prontos e, eles não têm um bom senso do tempo mortal. Eu
sabia disso, porque Hórus compartilhou um espaço da minha cabeça há al-
guns meses atrás. Eu ainda tinha alguns dos seus hábitos antissociais – como
o impulso ocasional de caçar pequenos roedores peludos ou desafiar pessoas
à morte.
— Vamos apenas seguir o plano — disse Sadie. — Entrar pela janela lateral,
encontrar a estátua e passá-la flutuando pelo salão do baile. Descobriremos
como lidar com a festa de casamento quando chegar a hora. Quem sabe até
criar uma distração.
Franzi a testa.
— Uma distração?
— Carter, você se preocupa demais — ela disse. — Será brilhante. A menos
que você tenha outra ideia!
Esse era o problema: eu não tinha.
Você acha que magia deixa as coisas mais simples? Na verdade, ela geral-

14
CARTER

mente deixa as coisas mais complicadas. Havia sempre um milhão de moti-


vos do por que desse ou daquele feitiço não funcionar em certas situações.
Ou poderia haver outra magia a impedindo – como os feitiços de proteção
nesse museu.
Não sabíamos ao certo quem os lançara. Talvez um dos membros do
museu fosse um mago disfarçado, algo que não seria anormal. O nosso pró-
prio pai usara o seu PhD em egiptologia como uma cobertura para ganhar
acesso a artefatos. E mais, o Museu do Brooklyn também tem a maior cole-
ção de rolos de pergaminho mágicos egípcios do mundo. Por isso que o
nosso tio Amós estabeleceu o seu quartel-general no Brooklyn. Muitos ma-
gos teriam motivos para guardar ou camuflar os tesouros do museu.
Seja qual fosse o caso, as portas e janelas tinham algumas maldições bas-
tante chatas. Não podíamos abrir um portal mágico na exibição, nem usar o
nosso shabti de busca – as estátuas mágicas de argila que nos serviam na
nossa biblioteca – para nos trazer o artefato que precisávamos.
Teríamos que entrar e sair do jeito difícil; e se cometêssemos algum erro,
não havia como saber qual tipo de maldição seria liberada: guardiões mons-
tros, pragas, chamas, jumentos que explodem (não ria; eles são má notícia).
A única saída que não estava protegida era a cúpula no topo do salão de
baile. Aparentemente, os guardiões do museu não se preocuparam com la-
drões levitando artefatos para fora, por uma abertura a doze metros no ar.
Ou talvez tivesse uma armadilha na cúpula, e era simplesmente boa demais
para percebermos.
De um jeito ou de outro, tínhamos de tentar. Só tínhamos aquela noite
para roubar... desculpe, pegar o artefato emprestado. Aí tínhamos cinco dias
para descobrir como usá-lo. Eu simplesmente adoro prazos.
— Então a gente vai em frente e improvisa? — perguntou Sadie.
Olhei para a festa de casamento, esperando que não estivéssemos prestes
a arruinar a noite especial deles.
— Acho que sim.
— Encantador — disse Sadie. — Khufu, fique aqui e monte guarda. Abra
a cúpula quando nos vir voltando, certo?
— Agh! — disse o babuíno.
A parte de trás do meu pescoço formigou. Tive a sensação que esse roubo

15
O TRONO DE FOGO

não ia ser nada encantador.


— Vamos — falei para Sadie. — Vamos ver como Jaz e Walt estão se saindo.
Descemos pela beirada do lado de fora do terceiro andar, onde estava a
coleção egípcia. Jaz e Walt trabalharam perfeitamente. Eles passaram fita
adesiva sobre quatro estátuas dos Filhos de Hórus em volta das bordas da
janela e pintaram hieróglifos no vidro para neutralizar as maldições e o sis-
tema de alarme mortal.
Enquanto eu e Sadie pousávamos ao lado deles, eles pareciam estar no
meio de uma séria conversa. Jaz estava segurando as mãos de Walt. Aquilo
me surpreendeu, mas surpreendeu Sadie ainda mais. Ela fez um som como
um guinchar de um rato sendo pisado.
[Ah sim, você fez. Eu estava lá.]
Por que Sadie se importaria? Certo, logo depois do Ano Novo, quando
Sadie e eu colocamos nosso amuleto djed para atrair crianças com potencial
em magia ao nosso quartel-general, Jaz e Walt foram os primeiros a respon-
der. Eles treinaram conosco por sete semanas, mais tempo do que qualquer
outra criança; então conseguimos conhecê-los muito bem.
Jaz era uma líder de torcida de Nashville. Jaz era o apelido de Jasmine,
mas nunca a chame assim a menos que queira ser transformado num ar-
busto. Ela é bonita como uma líder de torcida loira seria – não realmente o
meu tipo – mas você não podia evitar gostar dela, porque ela era legal com
todos e sempre pronta a ajudar. Tinha também um talento para magia cura-
tiva, e era a pessoa perfeita para se trazer em caso de alguma coisa dar errado,
o que sempre acontecia com Sadie e eu em quase noventa e nove por cento
do tempo.
Nessa noite, ela cobriu o cabelo com uma bandana preta. Amarrado no
seu ombro estava sua mochila de mago, marcada com o símbolo da deusa
leoa Sekhmet. Ela estava falando para Walt: “Vamos descobrir” quando Sa-
die e eu caímos ao lado deles.
Walt pareceu envergonhado.
Ele era... Bem, como eu descrevo Walt?
[Não, obrigado Sadie. Eu não vou descrevê-lo como gostoso. Espere a sua
vez.]
Walt tinha catorze anos, o mesmo que eu, mas ele era alto o suficiente

16
CARTER

para jogar como atacante em um time de universidade. Ele tinha o corpo


certo para isso – forte e musculoso, e os pés do garoto eram imensos. A pele
dele era castanha da cor de café, um pouco mais escura que a minha, e o
cabelo dele era raspado para que parecesse uma sombra no seu couro cabe-
ludo. Apesar do frio, ele estava vestido com uma camiseta preta sem mangas
e um short de exercício – nada de roupa padrão de mago – mas ninguém
discutia com Walt. Ele foi o nosso primeiro recruta a chegar vindo de Seattle
– e o cara era um sau natural – um criador de talismãs. Ele usava umas cor-
rentes douradas de pescoço com amuletos mágicos que ele mesmo fizera.
De qualquer jeito, eu tinha certeza absoluta que Sadie tinha ciúmes de
Jaz e gostava de Walt, contudo ela nunca admitiu isso porque gastou os últi-
mos meses se esfregando em outro cara – na verdade um deus que ela se
apaixonara.
[Sim, tá certo Sadie. Vou esquecer isso por enquanto. Mas noto que você
não está negando.]
Quando interrompemos a conversa deles, Walt soltou as mãos de Jaz
com uma incrível velocidade e se afastou. Os olhos de Sadie se mexiam de
um para o outro, tentando entender o que estava acontecendo.
Walt deu uma tossidela.
— A janela está pronta.
— Brilhante — Sadie olhou para Jaz. — O que você quis dizer com, “Vamos
descobrir”?
A boca de Jaz se agitou como um peixe tentando respirar.
Walt respondeu por ela:
— Você sabe. O Livro de Rá. Vamos descobrir.
— Sim! — falou Jaz. — O Livro de Rá.
Percebi que eles estavam mentindo, mas calculei que não era da minha
conta se eles se gostavam. Não tínhamos tempo para drama.
— Certo — falei antes de Sadie poder exigir uma explicação melhor. —
Vamos começar a distração.
A janela abriu facilmente. Sem explosões mágicas. Sem alarmes. Soltei
um suspiro de alívio e pisei dentro da ala egípcia, imaginando se conseguirí-
amos sair dessa.

17
O TRONO DE FOGO

Os artefatos egípcios trouxeram de volta todos os tipos de memórias. Até o


ano passado, eu gastei a maior parte da minha vida viajando pelo mundo
com o meu pai, enquanto ele ia de museu a museu, fazendo conferências
sobre o Egito Antigo. Isso foi antes de eu descobrir que ele era um mago –
antes dele libertar alguns deuses, e as nossas vidas ficarem complicadas.
Agora, eu não podia olhar para uma ilustração egípcia sem sentir uma
conexão pessoal. Estremeci quando passei por uma estátua de Hórus – o
deus com cabeça de falcão que habitou o meu corpo no último Natal. Pas-
samos por um sarcófago e, lembrei-me como um deus maligno Set, aprisio-
nara o nosso pai num caixão dourado no Museu Britânico. Em todos os
lugares havia pinturas de Osíris, o deus dos mortos de pele azul, e pensei
sobre como papai se sacrificara para se tornar o novo hospedeiro de Osíris.
Agora mesmo, em algum lugar no reino mágico do Duat, o nosso pai era o
rei do mundo inferior. Não consigo sequer descrever como pareceu estra-
nho, ver uma pintura de cinco milhões de anos de um deus azul egípcio e
pensar, “É, esse é o meu pai”.
Todos os artefatos pareciam como lembranças de família: uma varinha
igual a de Sadie; a imagem de Serpopardos que uma vez atacou a gente; uma
página do Livro dos Mortos mostrando demônios que nós conhecemos pes-
soalmente. Depois havia os shabti, estatuetas de argila mágicas que deviam
vir à vida quando convocados. Alguns meses atrás, eu me apaixonei por uma
garota chamada Zia Rashid, que no fim era uma shabti.
Se apaixonar pela primeira vez havia sido muito difícil. Mas quando a
garota que você gosta na verdade é feita de cerâmica e se quebra em pedaços
diante dos seus olhos, bem, isso dá um significado novo à “coração partido”.
Abrimos caminho pela primeira sala, passando debaixo de um grande
mural do zodíaco ao estilo egípcio, pintado no teto. Pude ouvir a celebração
acontecendo no grande salão de baile no fim do corredor à nossa direita.
Música e risadas ecoavam pelo prédio.
Na segunda sala egípcia, paramos na frente de uma laje de pedra do ta-
manho de uma porta de garagem. Esculpida na rocha estava uma ilustração
de um monstro esmagando alguns humanos.
— É um grifo? — perguntou Jaz.
Assenti.

18
CARTER

— É, essa é a versão egípcia.


O animal tinha o corpo de um leão e a cabeça de um falcão, mas as suas
asas não eram como a maioria das pinturas de grifo que você vê. No lugar
de asas de pássaro, as asas do monstro corriam ao longo de seu dorso, longas,
horizontais, eriçadas como um par de escovas de dente viradas para baixo.
Se o monstro pudesse pelo menos flutuar com aquelas asas grossas, calculei
que deveria voar erraticamente como uma borboleta. A pintura não havia
sido retocada. Eu podia distinguir manchas de vermelho e ouro na pele da
criatura; mas até sem cor, o grifo parecia misteriosamente vivo. Os seus olhos
grandes e redondos pareciam me seguir.
— Grifos eram protetores — eu falei lembrando uma coisa que meu pai
me disse uma vez. — Eles guardavam tesouros e outras coisas.
— Fabuloso — disse Sadie. — Então você quer dizer que eles atacavam...
ah, ladrões, por exemplo, arrombando museus e roubando artefatos?
— É só uma pedra — falei.
Mas duvido que alguém se sentiu melhor. A magia egípcia se resumia em
transformar palavras e pinturas em realidade.
— Ali — Walt apontou pela sala. — É aquilo, não é?
Fizemos um largo arco em volta do grifo e nos aproximamos da estátua
no centro da sala.
O deus se erguia em quase dois metros e meio de altura. Ele era esculpido
de pedra negra e estava vestido num típico estilo egípcio, de peito nu, com
um saiote e sandálias. Ele tinha o rosto de um carneiro e chifres que parci-
almente se quebraram ao longo dos séculos. Na cabeça dele havia uma coroa
em forma de frisbee – um disco do sol entrelaçado com serpentes. Em sua
frente havia uma figura humana muito menor. O deus estava com as mãos
sobre a cabeça do pequeno rapaz, como se lhe estivesse abençoando.
Sadie olhou de soslaio a inscrição em hieróglifos. Desde que hospedara
o espírito de Ísis, a deusa da magia, Sadie tinha uma habilidade misteriosa
de ler hieróglifos.
— KNM — leu ela. — Seria pronunciado Khnum, acho. Rima com cabum?
— Sim — concordei. — Essa é a estátua que precisamos. Hórus me disse
que ela guarda o segredo para encontrar o Livro de Rá.
Infelizmente Hórus não foi muito específico. Agora que encontramos a

19
O TRONO DE FOGO

estátua, eu não tinha ideia alguma de como ela nos ajudaria. Examinei os
hieróglifos esperando por uma pista.
— Quem é o garotinho na frente? — Walt perguntou. — Uma criança?
Jaz estalou os dedos.
— Não, eu me lembro disso! Khnum fez os humanos num vaso de argila.
É o que ele está fazendo aqui, aposto, formando um humano da argila.
Ela olhou para mim em confirmação. A verdade era que eu mesmo es-
quecera aquela história. Sadie e eu devíamos ser os professores, mas Jaz fre-
quentemente lembrava-se de mais detalhes que eu.
— É, bem — falei. — Tirar os homens da argila. Exato.
Sadie franziu a testa para a cabeça de carneiro de Khnum.
— Parece um pouco com aquele desenho animado antigo... As aventuras
de Alceu e Dentinho, não é? Poderia ser o deus alce.
— Ele não é o deus alce — falei.
— Mas se estamos procurando pelo Livro de Rá — ela disse — e Rá é o
deus do sol, então por que estamos procurando um alce?
Sadie pode ser muito irritante. Eu já mencionei isso?
— Khnum era um aspecto do deus do sol — falei. — Rá tinha três perso-
nalidades diferentes. Ele era Khepri, o deus escaravelho, na parte da manhã;
Rá durante o dia; e Khnum, o deus de cabeça de carneiro no pôr do sol,
quando ele descia ao mundo inferior.
— É confuso — falou Jaz.
— Não é não — disse Sadie. — Carter tem diferentes personalidades. Ele
vai de zumbi pela manhã para lesma à tarde, e de...
— Sadie — chamei — cale a boca.
Walt coçou o queixo.
— Acho que Sadie está certa. É um alce.
— Obrigada — disse Sadie.
Walt deu a ela um sorriso relutante, mas ainda parecia preocupado,
como se alguma coisa o incomodasse. Peguei Jaz estudando-o com uma ex-
pressão preocupada, e fiquei imaginando o que eles haviam conversado mais
cedo.
— Já chega de alce — falei a eles. — Temos que levar essa estátua de volta
à casa do Brooklyn. Tem algum tipo de pista aí.

20
CARTER

— Mas como encontramos? — perguntou Walt. — E vocês ainda não nos


contaram por que precisamos desse Livro de Rá com tanta urgência.
Hesitei. Havia um monte de coisas que ainda não havíamos contado aos
nossos recrutas, nem a Walt e Jaz – como o modo em que o mundo poderia
acabar em cinco dias. Esse tipo de coisa pode distrair você do seu treino.
— Vou explicar quando voltarmos — prometi. — Agora, vamos descobrir
como mover a estátua.
Jaz uniu as sobrancelhas.
— Acho que não vai caber na minha mochila.
— Ah, que preocupação — falou Sadie. — Olhem, lançamos um feitiço de
levitação na estátua. Criamos alguma grande distração para limpar o salão
de baile.
— Aguenta aí.
Walt se inclinou para frente e examinou a figura menor do humano. O
garotinho estava sorrindo, como se ser moldado de argila fosse incrivelmente
divertido.
— Ele está usando um amuleto. Um escaravelho.
— É um símbolo comum — eu disse.
— É... — Walt pegou a sua própria coleção de amuletos. — Mas o escara-
velho é um símbolo do renascimento de Rá, certo? E essa estátua mostra
Khnum criando uma nova vida. Talvez não precisemos da estátua inteira.
Talvez a pista seja...
— Ah! — Sadie sacou a varinha. — Brilhante.
Eu estava prestes a dizer, “Sadie, não!” naturalmente aquilo seria algo
sem sentido. Sadie nunca me ouvia.
Ela tocou o amuleto do garotinho. As mãos de Khnum brilharam. A
cabeça da estátua menor abriu-se em quatro seções como o topo de um pro-
jétil, e desprendendo-se do seu pescoço estava um rolo de papiro amarelado.
— Voilà — disse Sadie, orgulhosa.
Ela deslizou a varinha para a mochila e pegou o pergaminho na hora em
que eu falei:
— Pode ser uma armadilha!
Como eu disse, ela nunca me ouvia.

21
O TRONO DE FOGO

Assim que ela arrancou o rolo da estátua, a sala inteira tremeu. Racha-
duras apareceram nas vitrines.
Sadie deu um berro quando o rolo na sua mão explodiu em chamas. Elas
não pareceram consumir o papiro ou ferir Sadie; mas quando ela tentou
sacudir o fogo a fim de apagá-lo, chamas brancas espectrais pularam para a
vitrine mais próxima e correram em volta da sala como se seguissem uma
trilha de gasolina. O fogo tocou as janelas e hieróglifos brancos inflamaram
no vidro, provavelmente disparando uma tonelada de alarmes e maldições
protetoras. Então o fogo fantasmagórico ondulou pelo grande friso na en-
trada da sala. A placa de pedra sacudiu violentamente. Eu não podia ver os
sinais esculpidos no outro lado, mas ouvi um ruído estridente – como um
papagaio grande e realmente zangado.
Walt puxou o cajado das costas. Sadie balançava o rolo flamejante como
se estivesse preso na mão dela.
— Tire essa coisa de mim! Isso tudo não é só a minha culpa!
— Hã... — Jaz puxou a varinha. — Que som foi aquele?
Meu coração afundou.
— Eu acho — falei — que Sadie acabou de arranjar uma grande distração
para nós.

22
C
A
2. Domesticamos um beija-flor de três mil
R
quilos
T
E
R

HÁ ALGUNS MESES, as coisas teriam sido diferentes. Sadie poderia ter dito
uma única palavra e causado uma explosão de nível militar. Eu poderia ter
me revestido de um avatar mágico de combate, e quase nada teria sido capaz
de me derrotar.
Mas isso foi quando éramos totalmente mesclados com os deuses – Hó-
rus para mim, Ísis para Sadie. Nós desistimos desse poder porque era dema-
siado perigoso. Até termos um melhor controle de nossas próprias capacida-
des, encarnar deuses egípcios poderia nos deixar loucos ou, literalmente ser-
mos incinerados.
Agora tudo o que sobrou foi a nossa própria magia limitada. Isso tornou
mais difícil de fazer coisas importantes – como sobreviver quando um mons-
tro ganha vida e quer nos matar.
O grifo apareceu pronto para lutar. Era o dobro do tamanho de um leão
normal, seu pelo dourado-avermelhado revestido com pó de calcário. Sua
cauda era repleta de plumas espetadas que pareciam tão duras e afiadas como
punhais. Com um simples toque, ele pulverizou a laje de pedra de onde saiu.
Suas asas estavam eriçadas em linha reta, e até agora alinhadas sobre o seu
dorso. Quando o grifo se movia, elas se agitavam tão rápido que se turvavam
e zumbiam como as asas do maior e mais cruel beija-flor do mundo.

23
O TRONO DE FOGO

O grifo fixou seus olhos famintos em Sadie. Chamas brancas ainda en-
volviam sua mão e o pergaminho, e o grifo pareceu encarar isso como uma
espécie de desafio. Eu já ouvi um monte de gritos de falcão – ei, eu fui um
falcão uma ou duas vezes – mas quando isso abriu o bico, ele soltou um grito
que sacudiu as janelas e arrepiou os meus cabelos.
— Sadie — eu disse — solte o pergaminho.
— Oláaa? Está preso na minha mão! — ela protestou. — E eu estou pe-
gando fogo! Eu mencionei isso?
Chamas do fogo fantasma estavam agora queimando em todas as janelas
e artefatos. O pergaminho parecia ter disparado cada reserva de magia egíp-
cia na sala, e eu tinha certeza que era ruim. Walt e Jaz ficaram congelados
em estado de choque. Suponho que não poderia culpá-los. Este foi o pri-
meiro monstro real deles.
O grifo deu um passo em direção à minha irmã.
Eu estava ombro a ombro com ela e fiz o único truque mágico que eu
conhecia bem. Alcancei o Duat e puxei minha espada fora do ar rarefeito –
uma khopesh egípcia com uma lâmina perversamente afiada, em forma de
gancho.
Sadie parecia muito boba com a mão e o pergaminho pegando fogo,
como a Estátua da Liberdade entusiasmada demais, mas com a mão livre,
ela conseguiu chamar sua principal arma ofensiva – um cajado de um metro
e meio de comprimento esculpido com hieróglifos.
Sadie perguntou:
— Alguma dica de como lutar com grifos?
— Evite as partes afiadas? — chutei.
— Brilhante. Obrigada por isso.
— Walt — chamei. — Verifique as janelas. Veja se pode abri-las.
— M-mas elas estão amaldiçoadas.
— Eu sei — respondi. — Mas se tentarmos sair pelo salão de baile, o grifo
vai nos comer antes de chegarmos lá.
— Vou verificar as janelas.
— Jaz, ajude Walt — falei.
— Essas marcas no vidro — Jaz murmurou. — E-eu as vi antes...
— Apenas faça! — falei.

24
CARTER

O grifo avançou com suas asas zumbindo como serras elétricas. Sadie
lançou seu cajado e em pleno voo, ele se transformou em um tigre com as
garras afiadas prontas para o ataque.
O grifo não ficou impressionado. Ele bateu o tigre de lado, em seguida
atacou com velocidade anormal, abrindo impossivelmente seu bico. SNAP.
O grifo mordeu e o tigre sumiu, restando um cajado quebrado.
— Esse era meu cajado favorito! — Sadie lamentou.
O grifo virou seus olhos para mim.
Segurei firme minha espada. A lâmina começou a brilhar. Eu desejei que
ainda tivesse a voz de Hórus dentro da minha cabeça, aconselhando-me. Ter
um deus da guerra pessoal torna mais fácil fazer as coisas estupidamente
corajosas.
— Walt! — chamei — Como está indo com essa janela?
— Ainda tentando — disse ele.
— E-espere — Jaz disse nervosamente. — Esses são os símbolos da deusa
Sekhmet. Walt pare!
Então, várias coisas aconteceram de uma vez. Walt abriu a janela, e uma
onda de fogo branco rugiu por cima dele, derrubando-o ao chão.
Jaz correu para seu lado. O grifo logo perdeu o interesse em mim. Como
todo bom predador, ele se concentra no alvo móvel – Jaz – e investiu contra
ela.
Eu investi. Mas, em vez de atacar nossos amigos, o grifo passou por Walt
e Jaz e bateu na janela. Jaz puxou Walt para fora do caminho enquanto o
grifo ficou louco, batendo e mordendo as chamas brancas.
Ele estava tentando atacar o fogo. O grifo ficou fora de controle. Ele gi-
rou, batendo em um sarcófago com um shabti exposto. Sua cauda quebrou
o sarcófago em pedaços.
Eu não tenho certeza do que se apossou de mim, mas eu gritei:
— Pare com isso!
O grifo congelou. Ele se virou para mim, grasnando em irritação. Uma
cortina de fogo branco correu para longe e queimou o canto da sala, quase
como se ele estivesse se reagrupando. Então eu observei outras chamas se
unindo, formando contornos lembrando vagamente humanos. Um olhou
para mim, e eu senti uma aura inconfundível de malícia.

25
O TRONO DE FOGO

— Carter, fique atento.


Sadie, aparentemente, não tinha notado as formas de fogo. Seus olhos
ainda estavam fixos no grifo, enquanto puxava um pedaço de fio mágico do
seu bolso.
— Se eu pudesse apenas chegar perto o suficiente...
— Espere Sadie.
Tentei processar o que estava acontecendo. Walt estava deitado de costas
tremendo. Seus olhos estavam com um brilho branco, como se o fogo tivesse
entrado neles. Jaz se ajoelhou ao seu lado, murmurando um feitiço de cura.
RAAAWK!
O grifo grasnou melancolicamente como se estivesse pedindo permissão
– como se tivesse obedecido à minha ordem para parar, mas não tivesse gos-
tado nada disso.
Os contornos ardentes estavam ficando mais brilhantes e mais sólidos.
Eu contei sete figuras em chamas, lentamente formando pernas e braços.
Sete figuras... Jaz tinha dito algo sobre os símbolos da deusa Sekhmet.
Pavor pairou sobre mim quando eu percebi que tipo de maldição estava re-
almente protegendo o museu. A libertação do grifo havia sido acidental. Ele
não era o real problema.
Sadie jogou seu fio.
— Espere! — Eu gritei, mas já era tarde demais.
O fio mágico chicoteou através do ar, prolongando-se em uma corda en-
quanto correu em direção ao grifo.
O grifo gritou indignado e pulou em direção às formas de fogo. As cria-
turas de fogo se espalharam, e um jogo de pega-pega de total aniquilação
começou.
O grifo zumbia ao redor da sala, agitando suas asas. Vitrines destruídas.
Alarmes mortais soando. Gritei para o grifo parar, mas desta vez não adian-
tou.
Com o canto do meu olho, eu vi Jaz cair, talvez por causa do esforço do
seu feitiço de cura.
— Sadie — eu gritei. — Ajude-a!
Sadie correu para o lado de Jaz. Eu persegui o grifo. Eu provavelmente

26
CARTER

parecia um idiota total de pijama preto com minha espada brilhante, trope-
çando em artefatos quebrados e gritando ordens para um beija-flor-gato gi-
gante.
Justamente quando eu pensei que as coisas não poderiam ficar piores,
meia dúzia dos convidados da festa apareceram para ver o que o era o baru-
lho. Suas bocas se abriram. Uma senhora com um vestido cor de pêssego
gritou.
As sete criaturas de fogo branco dispararam em linha reta na direção dos
convidados do casamento, que imediatamente desabaram. Os incêndios
continuaram, girando em torno da sala para o salão de baile. O grifo voou
atrás deles.
Olhei para trás para Sadie, que estava ajoelhado sobre Jaz e Walt.
— Como eles estão?
— Walt está acordando — disse ela — mas Jaz está inconsciente.
— Sigam-me quando puderem. Eu acho que posso controlar o grifo.
— Carter, você está louco? Nossos amigos estão feridos e eu tenho um
pergaminho em chamas preso na minha mão. A janela está aberta. Ajude-
me a tirar Jaz e Walt daqui!
Ela tinha um bom argumento. Esta poderia ser nossa única chance de
tirar os nossos amigos de lá vivos. Mas eu também sabia o que aqueles sete
incêndios eram agora, e eu sabia que se não fosse atrás deles, muitas pessoas
inocentes iriam se machucar.
Murmurei uma maldição egípcia – do tipo xingando, não do tipo mágica
– e corri para participar da festa de casamento.
O salão principal estava em caos. Os convidados estavam correndo por
toda parte, gritando e derrubando mesas. Um cara em um smoking tinha
caído no bolo de casamento e estava rastejando com uma decoração plástica
de noivinhos preso à sua traseira. Um músico estava tentando fugir com um
tambor de corda em seu pé.
Os fogos brancos se solidificaram o suficiente para que eu pudesse en-
xergar as suas formas – em algum lugar entre caninos e humanos, com bra-
ços compridos e pernas tortas. Elas brilhavam como gasolina superaquecida
enquanto corriam pelo salão, circundando os pilares que rodeavam a pista
de dança. Um atravessou uma dama de honra. Os olhos da senhora ficaram

27
O TRONO DE FOGO

branco leitosos, e ela caiu no chão, tremendo e tossindo.


Eu me senti perdido dentro do baile. Não sabia qualquer magia que po-
deria lutar contra essas coisas, e se uma delas me tocasse...
De repente, o grifo desceu do nada, seguido de perto pela corda mágica
de Sadie que ainda estava tentando laçá-lo. O grifo abocanhou uma das cri-
aturas de fogo em um único gole e continuou voando. Nuvens de fumaça
saíam de suas narinas, mas por outro lado, comer o fogo branco não pareceu
incomodá-lo.
— Ei! — Eu gritei.
Tarde demais, percebi o meu erro.
O grifo se virou para mim, o que reduziu a sua velocidade o suficiente
para a corda mágica de Sadie se embrulhar em torno de suas patas traseiras.
SQUAWWWWK!
O grifo caiu em uma mesa de Buffet. A corda cresceu mais, enrolando
em torno do corpo do monstro, enquanto suas asas retalhavam em alta ve-
locidade a mesa, o chão e os pratos de sanduíches, como um picador de
madeira fora de controle.
Os convidados do casamento começaram a desobstruir o salão. A maio-
ria correu para os elevadores, mas dezenas ficaram inconscientes ou agitados
em acessos, seus olhos brancos brilhando. Outros ficaram presos sob pilhas
de escombros. Alarmes estavam tocando, e as chamas brancas – seis delas
agora – estavam ainda completamente fora de controle.
Corri para o grifo, que estava rolando, tentando em vão cortar a corda.
— Calma! — Eu gritei. — Deixe-me ajudá-lo, estúpido!
FREEEEK!
O rabo do grifo se impulsionou sobre a minha cabeça e por pouco não
me decapitou.
Eu respirei fundo. A princípio, eu era um mago de combate. Nunca ti-
nha sido bom em feitiços com hieróglifos, mas apontei minha espada para
o monstro e disse:
— Ha-tep.
Um hieróglifo verde – o símbolo de Esteja em paz – queimou no ar, à
direita na ponta da lâmina:

28
CARTER

O grifo parou de se debater. O zumbido de suas asas abrandou. Caos e


gritos ainda enchiam o salão de baile, mas eu tentei manter a calma en-
quanto me aproximava do monstro.
— Você me reconhece, não é?
Eu estendi minha mão, e outro símbolo ardia em cima da minha palma,
um símbolo que eu sempre poderia invocar, o Olho de Hórus:

— Você é um animal sagrado de Hórus, não é? É por isso que me obedece.


O grifo piscou para marca do deus da guerra. Ele agitou seu pescoço
emplumado e gritou em reclamação, contorcendo-se sob a corda que estava
lentamente envolvendo seu corpo.
— Sim, eu sei. — falei — Minha irmã é uma perdedora. Aguente firme.
Vou desamarrar você.
Em algum lugar atrás de mim, Sadie gritou:
— Carter!
Eu me virei e vi Walt e ela tropeçando, vindo em minha direção, trans-
portando Jaz entre eles. Sadie ainda dava impressão de ser a Estátua da Li-
berdade, mantendo o pergaminho flamejante em uma mão. Walt estava em
pé e seus olhos não estavam mais brilhantes, mas Jaz estava caída como se
todos os ossos de seu corpo tivessem se transformado em geleia.
Eles se esquivaram de um espírito de fogo e de alguns convidados loucos
do casamento e de alguma forma atravessaram o salão.
Walt olhou o grifo.
— Como você o acalmou?
— Grifos são servos de Hórus — respondi. — Eles puxavam sua carruagem
na batalha. Eu acho que ele reconheceu minha conexão com ele.
O grifo gritou impaciente e debateu a sua cauda, derrubando uma coluna
de pedra.

29
O TRONO DE FOGO

— Não muito calmo — Sadie observou.


Ela olhou para a cúpula de vidro quarenta metros acima, onde a pequena
figura de Khufu estava acenando freneticamente para nós.
— Precisamos tirar Jaz daqui, agora — disse ela.
— Estou bem — Jaz murmurou.
— Não, você não está — Walt replicou. — Carter, ela tirou esse espírito de
mim, mas isso quase a matou. É um tipo de doença demônio.
— Um bau — eu disse. — Um espírito maligno. Estes sete são chamados...
— As Flechas de Sekhmet — Jaz completou, confirmando os meus medos.
— Eles são espíritos praga, nascidos da deusa. Eu posso pará-los.
— Você pode descansar — Sadie interviu.
— Certo — eu disse. — Sadie, tire a corda fora do grifo e...
— Não há tempo — Jaz apontou.
Os bau estavam ficando maiores e mais brilhantes. Mais convidados do
casamento estavam caindo enquanto os espíritos chicoteavam ao redor da
sala indisputados.
— Eles vão morrer se eu não parar os bau. — disse Jaz — Sou capaz de
canalizar o poder da deusa Sekhmet e forçá-los a voltar ao Duat. É para o
que eu venho treinando.
Eu hesitei. Jaz nunca tinha experimentado magia tão grande. Ela já estava
fraca por curar Walt. Mas ela foi treinada para isso. Pode parecer estranho
que os curandeiros estudem o caminho de Sekhmet, mas desde que Sekh-
met era a deusa da destruição, pragas e fome, fazia sentido que os curandei-
ros aprendessem a controlar suas forças – incluindo bau.
Além disso, mesmo que eu libertasse o grifo, eu não estava cem por cento
certo de que poderia controlá-lo. Havia uma boa chance de que ele iria ficar
animado e engolir-nos, em vez dos espíritos.
Lá fora, as sirenes da polícia estavam ficando mais altas. Nós estávamos
correndo contra o tempo.
— Não temos escolha — Jaz insistiu.
Ela puxou a varinha e então – em grande parte para o choque da minha
irmã – deu um beijo na bochecha de Walt.
— Vai ficar tudo bem, Walt. Não desista.

30
CARTER

Jaz pegou algo mais de seu saco mágico – uma estátua de cera – e apertou
isso na mão livre da minha irmã.
— Você vai precisar disso em breve, Sadie. Desculpe-me, eu não posso te
ajudar mais. Você saberá o que fazer quando chegar a hora.
Eu não acho que eu já vi Sadie perder as palavras desta forma.
Jaz correu para o centro do salão de baile e tocou sua varinha no chão,
desenhando um círculo de proteção em torno de seus pés. De sua bolsa, ela
retirou uma pequena estátua da deusa Sekhmet, a sua deusa patrona, e se-
gurou no alto.
Ela começou a cantar. Uma luz vermelha brilhava ao seu redor. Gavinhas
da energia se espalharam a partir do círculo, enchendo a sala como os galhos
de uma árvore. As gavinhas começaram a girar, primeiro lentamente, então
aumentando a velocidade até que a mágica arrastou os bau, forçando-os a
voar na mesma direção e atraindo-os para o centro. Os espíritos gritaram,
tentando lutar contra o feitiço. Jaz cambaleou, mas continuou cantando,
com o rosto pontilhado com o suor.
— Nós não podemos ajudá-la? — Walt perguntou.
RAWWWWK! gritou o grifo, o que provavelmente signifi-
cava Oláaaaaaaa! Eu ainda estou aqui!
As sirenes soaram agora como se estivessem à porta do edifício. No final
do corredor, perto dos elevadores, alguém gritava em um megafone, orde-
nando à última leva de convidados do casamento que saíssem do prédio,
como se eles precisassem de incentivo. A polícia chegou e se nós fossemos
presos, esta situação iria ser difícil de explicar.
— Sadie. — falei — Prepare-se para soltar a corda do grifo. Walt, você ainda
tem seu amuleto barco?
— Meu...? Sim. Mas não há água.
— Apenas convoque o barco!
Eu busquei nos meus bolsos e encontrei meu próprio fio mágico. Falei
um encanto e de repente estava segurando uma corda de vinte metros de
comprimento. Fiz uma laçada solta no meio, como uma gravata enorme e
cuidadosamente aproximei-me do grifo.
— Eu só vou colocar isso em seu pescoço — falei. — Não perca o controle.
FREEEEK! Disse o grifo

31
O TRONO DE FOGO

Eu me aproximei consciente de quão rápido o bico poderia agarrar-me


se quisesse, mas consegui fazer um laço da corda em volta do pescoço do
grifo.
Então algo deu errado. O tempo desacelerou. O turbilhão de gavinhas
vermelhas do feitiço de Jaz mudou lentamente, como se o ar tivesse se trans-
formado em calda. Os gritos e sirenes desbotaram para um rugido distante.
Você não terá sucesso, uma voz assobiou.
Virei-me e encontrei-me cara a cara com um ba.
Pairando no ar a poucos centímetros de distância, sua chama branca ca-
racterística quase entrando em foco, parecia sorrir, e eu podia jurar que ti-
nha visto seu rosto antes.
O caos é muito poderoso, rapaz, disse. O mundo gira fora de seu controle. De-
sista de sua missão!
— Cale a boca — murmurei, mas meu coração estava batendo a mil.
Você nunca vai encontrá-la, o espírito escarneceu. Ela dorme no Lugar de
Areia Vermelha, mas ela vai morrer lá se você seguir com sua busca inútil.
Eu senti como se uma tarântula se arrastasse nas minhas costas. O espí-
rito estava falando sobre Zia Rashid – a Zia real, que eu estava procurando
desde o Natal.
— Não — eu disse. — Você é um demônio, um mentiroso.
Você pode fazer melhor, garoto. Nós já nos conhecemos antes.
— Cale a boca!
Convoquei o Olho de Hórus, e o espírito sibilou. O tempo acelerou no-
vamente. As gavinhas vermelhas do feitiço de Jaz estavam envolvidas em
torno dos bau e puxou-os gritando para o turbilhão.
Ninguém parecia ter notado o que aconteceu.
Sadie estava jogando na defensiva, golpeando um bau com seu pergami-
nho chamejante, sempre que se aproximava. Walt arrumou o seu amuleto
de barco no chão e falou a palavra de comando. Em questão de segundos,
como um daqueles loucos brinquedos de esponja que expandem na água, o
amuleto cresceu para um barco de junco de tamanho egípcio, em frente às
ruínas da mesa do buffet.
Com as mãos tremendo, tomei as duas extremidades da nova gravata do

32
CARTER

grifo e amarrei uma extremidade na proa do bote e outro na popa.


— Carter olha! — Sadie chamou.
Eu me virei a tempo de ver um relâmpago de ofuscante luz vermelha. O
vórtice interior desmoronou, sugando todos os seis bau dentro do círculo de
Jaz. A luz morreu. Jaz desmaiou, a varinha e a estátua Sekhmet se esmigalha-
ram em poeira em suas mãos.
Nós corremos para ela. Suas roupas estavam emitindo fumaça. Eu não
pude dizer se ela estava respirando.
— Leve-a para o barco — ordenei. — Temos que sair daqui.
Eu ouvi um grunhido minúsculo longe acima de nós. Khufu tinha aberto
a cúpula. Ele apontava urgentemente enquanto holofotes varriam o céu
acima dele. O museu estava provavelmente cercado por veículos de emer-
gência.
Todos ao redor do salão, os convidados aflitos estavam começando a re-
cuperar a consciência. Jaz tinha os salvado, mas a que custo? Nós a transpor-
tamos para o barco e subimos.
— Segurem-se firme — avisei. — Essa coisa não é estável. Se virar...
— Ei! — uma voz masculina gritou atrás de nós. — O que vocês estão... Ei!
Parem!
— Sadie, a corda, agora! — eu disse.
Ela estalou os dedos, e a corda emaranhada no grifo se dissolveu.
— VAI! — gritei. — SUBA!
FREEEEK!
O grifo bateu suas asas. Nós balançamos no ar, o barco balançando lou-
camente, e disparamos em linha reta para a cúpula aberta. O grifo mal pare-
ceu notar o nosso peso extra. Ele subiu muito rápido, Khufu teve que dar
um salto voador para chegar a bordo. Puxei-o para o barco, e nós nos segu-
ramos desesperadamente, tentando não capotar.
— Agh! — Khufu reclamou.
— Sim — concordei. — Tanta coisa para um trabalho fácil.
Então novamente, nós somos a família Kane. Este foi o dia mais fácil
que iríamos ter por um bom tempo.
De alguma forma, nosso grifo sabia o caminho certo a seguir. Ele gritou
em triunfo e subiu para a noite fria e chuvosa. Enquanto voávamos para

33
O TRONO DE FOGO

casa, o pergaminho de Sadie queimou brilhante. Quando olhei para baixo,


fantasmagóricas chamas brancas ardiam em todos os telhados do Brooklyn.
Comecei a me perguntar exatamente o que tínhamos roubado – se foi
mesmo o objeto certo, ou se ele só tornara nossos problemas ainda piores.
De qualquer maneira, eu tinha a sensação de que nossa sorte seria final-
mente empurrada para bem longe.

34
S
A
3. O sorveteiro trama a nossa morte
D
I
E

ESTRANHO COMO VOCÊ PODE FACILMENTE ESQUECER que sua mão está em
chamas.
Ah, desculpe. Sadie, aqui. Você não acha que eu deixaria meu irmão
tagarelar para sempre, não é? Por favor, ninguém merece uma maldi-
ção tão horrível.
Chegamos de volta na Casa do Brooklyn, e todos se aglomeraram em
minha volta porque a minha mão estava presa a um pergaminho flamejante.
— Estou bem — insisti. — Cuidem de Jaz!
Honestamente, eu aprecio um pouco de atenção de vez em quando, mas
eu estava longe de ser a coisa mais interessante acontecendo. Nós pousamos
no telhado da mansão, que em si é de um estranho encanto – um cubo de
cinco andares de pedra calcária e aço, como um cruzamento entre um tem-
plo egípcio e um museu de arte, empoleirado no topo de um armazém aban-
donado no cais do Brooklyn. Sem mencionar que a mansão brilha com ma-
gia e é invisível para os mortais normais.
Abaixo de nós, todo o Brooklyn estava pegando fogo. Meu irritante per-
gaminho mágico pintou uma ampla faixa de fogo fantasmagórico pelo cami-
nho. Nada esteva queimando verdadeiramente, e as chamas não eram quen-
tes; mas nós ainda causamos bastante pânico. Sirenes soavam. As pessoas
lotaram as ruas, curiosos pelos telhados em chamas. Helicópteros circularam
com holofotes.

35
O TRONO DE FOGO

Se isso não fosse emocionante o bastante, meu irmão estava disputando


com um grifo, tentando desatar um barco de pesca de seu pescoço e detendo
o animal de comer os nossos alunos.
Em seguida, houve Jaz, nossa verdadeira causa de preocupação. Nós ve-
rificamos que ela ainda estava respirando, mas ela parecia estar numa espécie
de coma. Quando abrimos seus olhos, eles estavam brancos brilhantes – nor-
malmente não é um bom sinal.
Durante o passeio de barco, Khufu tinha tentado alguma de sua famosa
magia de babuíno nela – acariciando sua testa, fazendo barulhos selvagens,
e tentando inserir jujubas em sua boca. Tenho certeza que ele pensou que
ele estava sendo útil, mas não fez muito para melhorar sua condição.
Agora Walt estava cuidando dela. Ele a pegou com cuidado e colocou-a
em uma maca, cobrindo-a com cobertores e acariciando seus cabelos en-
quanto os nossos outros alunos se reuniam em volta. E isso foi bom. Com-
pletamente bom.
Eu não estava totalmente interessada em quão bonito o seu rosto parecia
ao luar, ou seus braços musculosos em camisetas sem mangas, ou o fato de
que ele estava de mãos dadas com Jaz, ou...
Sinto muito. Perdi minha linha de pensamento.
Eu sentei no canto do telhado, sentindo-me absolutamente exausta. Mi-
nha mão direita coçava de segurar o rolo de papiro tanto tempo. As chamas
mágicas coçavam meus dedos.
Tateei em torno do meu bolso esquerdo e tirei a pequena estátua de cera
que Jaz tinha me dado. Era uma de suas estátuas de cura, usada para expelir
doenças ou maldições. Em geral, estátuas de cera não se parecem com nin-
guém em particular, mas Jaz tinha tomado seu tempo com esta. Era clara-
mente destinada para curar uma pessoa específica, o que significava que teria
mais poder e provavelmente seria guardada para uma situação de vida ou
morte. Eu reconheci o cabelo crespo da estatueta, seus traços faciais, a es-
pada pressionada em suas mãos. Jaz tinha mesmo escrito o seu nome em
hieróglifos no peito: CARTER.
Você vai precisar disso em breve, ela me disse.
Até onde eu sabia, Jaz não era uma adivinha. Ela não podia dizer o fu-
turo. Então, o que ela quis dizer? Como eu supostamente saberia quando

36
SADIE

usar a estatueta? Olhando para o mini Carter, eu tive a horrível sensação de


que a vida de meu irmão tinha sido literalmente colocada em minhas mãos.
— Você está bem? — Perguntou uma voz de mulher.
Eu rapidamente guardei a estatueta.
Minha velha amiga Bastet estava em cima de mim. Com seu sorriso dis-
creto e olhos amarelos brilhantes, ela podia estar preocupada ou se diver-
tindo. É difícil dizer com uma deusa gata. Seu cabelo negro estava puxado
para trás em um rabo de cavalo. Ela vestia o conjunto de pele de leopardo
usual, como se ela estivesse prestes a realizar uma cambalhota. Por tudo que
eu sabia, ela poderia estar. Como eu disse, você nunca podia esperar algo
dos gatos.
— Estou bem — menti. — Só...
Mexi minha mão em chamas sem auxílio.
— Mmm. — O pergaminho parecia causar desconforto em Bastet. —
Deixe-me ver o que posso fazer.
Ela ajoelhou-se ao meu lado e começou a cantar.
Eu pensava em como era estranho ter o meu antigo animal de estimação
lançando um feitiço sobre mim. Durante anos, Bastet foi minha gata, Muf-
fin. Eu nem tinha percebido que tinha uma deusa dormindo no meu traves-
seiro durante a noite. Então, depois que nosso pai soltou uma série de deu-
ses no Museu Britânico, Bastet se fez conhecer.
Ela tinha estado cuidando de mim durante seis anos, ela nos disse, desde
que nossos pais a soltaram de uma cela no Duat, onde tinha sido enviada
para lutar para sempre contra a caótica cobra Apófis.
É uma longa história, mas minha mãe tinha previsto que Apófis acabaria
por escapar de sua prisão, o que seria basicamente igual ao Dia do Juízo
Final. Se Bastet continuasse a lutar com ele sozinha, ela seria destruída. No
entanto, se Bastet fosse libertada, minha mãe acreditava que ela poderia de-
sempenhar um papel importante na batalha vindoura com o Caos. Então
meus pais a livraram antes que Apófis pudesse dominá-la. Minha mãe tinha
morrido ao selar a prisão de Apófis, naturalmente Bastet se sentiu em dívida
para com nossos pais. Bastet tornou-se minha guardiã.
Agora ela também é a nossa acompanhante, companheira de viagem, e
às vezes cozinheira pessoal. (Dica: se ela lhe oferecer o especial do dia, diga

37
O TRONO DE FOGO

não, é ração para gato).


Mas eu ainda sentia falta de Muffin. Às vezes eu tinha que resistir à von-
tade de coçar atrás da orelha de Bastet e alimentá-la com delícias crocantes,
embora eu estivesse feliz que não tentasse dormir no meu travesseiro durante
a noite. Isso teria sido um pouco estranho.
Ela terminou seu canto, e as chamas do pergaminho apagaram. Minha
mão se abriu. O papiro caiu no meu colo.
— Deus, obrigado — eu disse.
— Deusa — Bastet corrigiu. — De nada. Nós não podemos ter o poder de
Rá iluminando a cidade, podemos?
Eu olhei em volta para todo o bairro. As chamas foram embora. O hori-
zonte da noite do Brooklyn voltou ao normal, exceto pelas luzes de emer-
gência e as multidões de gritos mortais nas ruas. Pensando sobre isso, eu
acho que foi bastante normal.
— O poder de Rá? — perguntei. — Eu pensei que o pergaminho fosse uma
pista. É este o verdadeiro Livro de Rá?
O rabo de cavalo de Bastet se inchou como faz quando ela está nervosa.
Eu cheguei a pensar que ela prendia o seu cabelo em um rabo de cavalo para
que a cabeça inteira não eriçasse cada vez que ela fica assustada.
— O pergaminho é... parte do livro — disse ela. — E eu te avisei. O poder
de Rá é quase impossível de controlar. Se você insistir em tentar acordá-lo,
os incêndios seguintes que você disparar podem não ser tão inofensivos.
— Mas ele não é o seu faraó? — perguntei. — Você não quer que ele
acorde?
Ela baixou o olhar. Eu percebi o quão tolo foi meu comentário. Rá era
o senhor e mestre de Bastet. Eras atrás, ele a tinha escolhido para ser sua
campeã. Mas também foi aquele que a tinha enviado para aquela prisão para
manter seu arqui-inimigo Apófis ocupado por toda a eternidade, assim Rá
poderia se aposentar com a consciência limpa. Algo muito egoísta, se você
me perguntar.
Graças aos meus pais, Bastet escapou de sua prisão, mas isso também
significava que ela abandonou seu posto de combate contra Apófis. Não é à
toa que ela tenha sentimentos mistos sobre o antigo chefe vê-la novamente.
— É melhor falarmos de manhã — disse Bastet. — Você precisa descansar,

38
SADIE

e esse pergaminho só deve ser aberto durante o dia, quando o poder de Rá


é mais fácil de controlar.
Eu olhei para meu colo. O papiro ainda estava fumegante.
— Mais fácil de controlar... como, não vai atear fogo em mim?
— É seguro tocar agora — Bastet me assegurou. — Após ser preso na escu-
ridão por alguns milênios, isso está apenas muito sensível, reagindo a qual-
quer tipo de energia: mágica, elétrica, emocional. Eu tenho, ah, reduzi a
sensibilidade então isso não vai explodir em chamas novamente.
Peguei o pergaminho. Felizmente, Bastet estava certa. Ele não grudou na
minha mão ou iluminou a cidade com chamas.
Bastet me ajudou a ficar de pé.
— Durma um pouco. Vou deixar Carter saber que está tudo bem. Além
disso... — Ela conseguiu dar um sorriso. — Você tem um grande dia amanhã.
Certo, eu pensei miseravelmente. Uma pessoa se lembra, e é meu gato.
Olhei para meu irmão, que ainda estava tentando controlar o grifo. Ele
tinha os laços de Carter em seu bico e não parecia inclinado a soltar.
A maioria dos nossos vinte recrutas estava cercando Jaz, tentando acordá-
la. Walt não havia deixado o seu lado. Ele olhou para mim rapidamente,
inquieto, em seguida, voltou sua atenção para Jaz.
— Talvez você esteja certa — murmurei para Bastet. — Eu não sou neces-
sária aqui.

Meu quarto era um lugar adorável para estar de mau humor. Nos últimos
seis anos, eu vivi em um sótão da vovó e do vovô no apartamento em Lon-
dres, e embora eu tenha perdido a minha antiga vida, minhas companheiras
Liz e Emma, e quase tudo da Inglaterra, eu não podia negar que o meu
quarto no Brooklyn era muito mais bacana.
Da minha varanda dava para ver o Rio East. Eu tinha uma confortável
cama enorme, meu próprio banheiro e um closet com inúmeras roupas no-
vas que magicamente apareciam e limpavam-se quando necessário. O realce
da cômoda era a geladeira embutida com minha bebida favorita refrigerante
de groselha, importada do Reino Unido, e os chocolates refrigerados (bem,
uma garota tem que tratar a si mesma). O sistema de som era absolutamente

39
O TRONO DE FOGO

de ponta, e as paredes eram magicamente à prova de som para que eu pu-


desse ouvir minha música tão alto sem me preocupar com o meu irmão
chato na porta ao lado. Na penteadeira estava uma das únicas coisas que eu
trouxe do meu quarto de Londres: um gravador de cassetes velho que meus
avós tinham me dado há muito tempo. É irremediavelmente antiquado, sim,
mas eu mantive isso por perto por razões sentimentais. Carter e eu tínhamos
gravado as nossas aventuras na Pirâmide Vermelha nele, depois de tudo.
Encaixei meu iPod e rolei através da minha playlist. Escolhi uma lista
marcada como triste, pois era assim que eu me sentia.
Adele começou a tocar. Deus, eu não tinha ouvido esse álbum desde...
Inesperadamente, comecei a chorar. Eu estava ouvindo essa mistura na
véspera de Natal, quando meu pai e Carter me pegaram para o nosso passeio
no Museu Britânico – a noite que nossas vidas mudaram para sempre.
Adele cantou como se alguém estivesse rasgando seu coração. Ela cantou
sobre o menino que gostava, imaginando o que ela devia fazer para com que
ele a notasse devidamente. Eu poderia me relacionar com isso. Mas no úl-
timo Natal, a música me fez pensar na minha família também: minha mãe,
que morreu quando eu era bem pequena, e meu pai e Carter, que viajavam
pelo mundo juntos, me deixando em Londres com os meus avós, e não pa-
reciam precisar de mim em suas vidas.
Claro que eu sabia que era mais complicado que isso. Tinha havido uma
batalha de custódia desagradável envolvendo advogados e ataques com espá-
tula, e meu pai queria manter Carter e eu separados e então não agitaríamos
a magia um do outro antes que nós pudéssemos manipular o poder. E sim,
nós todos crescemos mais desde então. Meu pai estava de volta na minha
vida um pouco mais, mesmo que ele fosse o deus do submundo agora.
Quanto à minha mãe... bem, eu conheci o seu fantasma. Suponho que con-
tou para alguma coisa.
Ainda assim, a música trouxe de volta toda a dor e a raiva que senti no
Natal. Suponho que não tinha me livrado dela tão completamente como eu
pensava.
Meu dedo pairou sobre a tecla de avanço rápido, mas decidi deixar a
canção tocar. Joguei minhas coisas na cômoda, o papiro, o mini Carter de
cera, a minha bolsa mágica, minha varinha. Eu virei para meu cajado, então

40
SADIE

lembrei que eu não tinha mais. O grifo tinha comido.


— Cabeça de pássaro nojento — murmurei.
Comecei a colocar o pijama. Eu encapei o interior da porta do meu ar-
mário com fotos, a maioria das minhas amigas e eu na escola no ano pas-
sado. Havia uma de Liz, Emma e eu fazendo caras em uma cabine de foto
em Piccadilly. Nós parecíamos tão jovens e ridículas.
Eu não podia acreditar que eu poderia vê-las amanhã, pela primeira vez
em meses. Vovô e vovó tinham me convidado para visitá-los, e eu tinha pla-
nos de sair só com minhas amigas – pelo menos, esse tinha sido o plano antes
de Carter deixar escapar o surpreendente “cinco-dias-para-salvar-o-mundo”.
Agora, quem sabia o que iria acontecer? Apenas duas fotos sem Liz e
Emma decoravam a porta do meu armário. Uma delas mostrava Carter e eu
com o tio Amós no dia que ele partiu para o Egito em sua... hmm, o que
você chama quando alguém vai para a cura depois de ter sido possuído por
um deus do mal? Não são férias, eu suponho.
A última foto era uma pintura de Anúbis. Talvez você já tenha visto: o
sujeito com a cabeça do chacal, o deus dos funerais, a morte e assim por
diante. Ele está em toda a arte egípcia – liderando almas falecidas no Salão
de Julgamento, ajoelhado nas escalas cósmicas, pesando um coração contra
a pena da verdade.
Por que eu tenho a foto dele?
[Ótimo, Carter. Eu admito, só para te calar.]
Eu tinha uma pequena paixão por Anúbis. Eu sei que soa ridículo, uma
garota moderna tendo sonhos com um garoto de cinco mil anos com cabeça
de cachorro, mas não foi isso que eu vi quando olhei a foto dele. Lembrei-
me de Anúbis como ele apareceu em Nova Orleans quando nos conhecemos
cara-a-cara – um garoto de cerca de dezesseis anos, com blusa de couro preto
e jeans, cabelos negros desgrenhados e lindos olhos tristes, como chocolate
derretido. Não muito como um garoto com cabeça de cachorro.
Ainda ridículo, eu sei. Ele era um deus. Não tínhamos absolutamente
nada em comum. Eu não tinha ouvido falar dele nenhuma vez desde a nossa
aventura com a Pirâmide Vermelha, o que não deveria ter me surpreendido.
Mesmo que ele parecesse interessado em mim no momento e possivelmente
até mesmo jogou algumas dicas... Não, certamente eu estava imaginando

41
O TRONO DE FOGO

isso.
Nas últimas sete semanas, desde que Walt Stone chegou à Casa do Bro-
oklyn, pensei que poderia ser capaz de superar Anúbis. Claro, Walt era meu
recruta, e eu não deveria pensar nele como um possível namorado, mas eu
tinha quase certeza de que houve uma faísca entre nós na primeira vez que
vimos um ao outro. Agora, no entanto, Walt parecia estar se afastando. Ele
estava agindo de modo secreto, parecendo sempre tão culpado e conver-
sando com Jaz.
Minha vida era um lixo.
Eu puxei meu pijama enquanto Adele continuou cantando. Todas as
suas canções eram sobre não ser notada por garotos? De repente, eu achei
isso muito chato.
Desliguei a música e caí na cama.
Infelizmente, uma vez que adormeci a minha noite só piorou.

Na Casa do Brooklyn, dormimos com todos os tipos de feitiços para nos


proteger contra os sonhos mal-intencionados, espíritos invadindo e os oca-
sionais impulsos de nossas almas poderem partir para perambular para fora.
Eu até tenho um travesseiro mágico para me certificar que minha alma –
ou ba, se você precisar tratar com egípcios sobre isso – mantenha-se ancorada
ao meu corpo.
Não é um sistema perfeito, no entanto. De vez em quando eu posso sen-
tir um pouco de força me puxando para fora de minha mente, tentando
chamar minha atenção. Ou a minha alma vai me deixar sabendo que tem
algum outro lugar para ir, alguma cena importante que precisa para me mos-
trar.
Eu tive uma dessas sensações imediatamente quando adormeci. Pense
nisso como uma chamada, com o meu cérebro me dando a opção de aceitar
ou recusar. Na maioria das vezes, é melhor recusar, especialmente quando
meu cérebro está informando um número desconhecido.
Mas às vezes essas ligações são importantes. E meu aniversário será ama-
nhã. Talvez meu pai e minha mãe estejam tentando me alcançar do sub-
mundo. Imaginei-os no Salão de Julgamento, meu pai sentado em seu trono,

42
SADIE

como o deus Osíris de pele azul, a minha mãe em suas vestes brancas fantas-
magóricas. Eles podiam estar usando chapéus de festa e cantando “Feliz Ani-
versário”, enquanto Ammit o Devorador, seu extremamente pequeno mons-
tro de estimação, saltava para cima e para baixo, latindo.
Ou poderia ser, talvez, Anúbis chamando. Oi, hum, pensei que você poderia
querer ir a um funeral ou algo assim?
Bem... isso era possível.
Então eu aceitei o convite. Eu deixei meu espírito ir para onde isso que-
ria me levar, e o meu ba flutuou acima do meu corpo.
Se você nunca viajou como ba, eu não recomendo – a menos que você
goste de se transformar em uma galinha fantasma e fazer um passeio descon-
trolado através das correntes do Duat.
Os ba são normalmente invisíveis aos outros, o que é bom, já que têm a
forma de uma ave gigante com a cabeça normal em anexo. Uma vez, eu fui
capaz de manipular a minha forma de ba em algo menos constrangedor, mas
desde que Ísis desocupou a minha cabeça, eu não tenho essa capacidade.
Agora, quando eu me levantei, eu estava presa no modo padrão de aves.
As portas da varanda se abriram. Uma brisa mágica varreu-me para a
noite. As luzes de Nova York borraram e desbotaram, e eu me encontrei em
uma câmara subterrânea familiar: o Salão das Eras, na sede principal da Casa
da Vida debaixo de Cairo.
A sala era tão longa, poderia ter hospedado uma maratona. No meio
estava um tapete azul que brilhava como um rio. Havia imagens entre as
colunas de cada lado, cortinas de luz brilhantes – holografias da longa histó-
ria do Egito. A luz mudou de cor para refletir diferentes épocas, desde o
brilho branco da Era dos Deuses para a luz vermelha dos tempos modernos.
O telhado era ainda maior do que o do salão de baile no Museu de Bro-
oklyn, o enorme espaço brilhava com esferas de energia brilhantes e hieró-
glifos flutuantes. Era como se alguém tivesse detonado alguns quilos de ce-
reais para crianças em gravidade zero, todos os pedaços coloridos açucarados
vagando e colidindo em câmera lenta.
Flutuei até o fim da sala, logo acima da plataforma com o trono do faraó.
Era um lugar de honra, vazio desde a queda do Egito, mas no degrau abaixo

43
O TRONO DE FOGO

sentava o Sacerdote-leitor Chefe, comandante do Primeiro Nomo, líder da


Casa da Vida, e o meu mago menos favorito: Michel Desjardins.
Eu não tinha visto o Sr. Encantador desde o nosso ataque à Pirâmide
Vermelha, e fiquei surpresa com o quanto ele havia envelhecido. Ele só se
tornou Sacerdote-leitor Chefe alguns meses atrás, mas seu cabelo preto liso
e barba bifurcada estavam agora rajados de cinza. Ele apoiava-se cansado em
seu cajado, como se a capa de Sacerdote-leitor Chefe de pele de leopardo em
seus ombros pesasse como chumbo.
Eu não posso dizer que senti pena dele. Nós não nos éramos amigos.
Tínhamos combinado forças (mais ou menos) para derrotar o deus Set, mas
ele ainda nos considerava magos desonestos e perigosos. Ele nos alertou que,
se continuássemos a estudar o caminho dos deuses (o que nós continuamos)
ele iria nos destruir na próxima vez que nos encontrássemos. Isso não nos
deu muito incentivo para convidá-lo para o chá.
Seu rosto estava magro, mas seus olhos ainda brilhavam malignamente.
Ele estudou as imagens sangrentas nas cortinas de luz, como se estivesse es-
perando por algo.
— Est-il allé? — Ele perguntou, e as aulas de francês da minha escola me
levaram a acreditar que significava tanto “Ele já foi?” ou possivelmente
“Você reparou na ilha?”
Bom... provavelmente foi o primeiro.
Por um momento eu tive medo que ele estivesse falando comigo. Então,
por trás do trono, uma voz rouca respondeu:
— Sim, meu senhor.
Um homem saiu das sombras. Ele estava vestido totalmente de branco –
terno, lenço, até mesmo óculos de sol brancos espelhados. Meu primeiro
pensamento foi: Meu Deus, ele é um vendedor mal de sorvete.
Ele tinha um sorriso agradável e rosto gordinho enquadrado em cabelos
grisalhos encaracolados. Eu poderia tê-lo confundido como inofensivo, até
simpático – até que ele tirou os óculos.
Seus olhos estavam em ruínas.
Eu admito que sou receosa sobre os olhos. Um vídeo de cirurgia de re-
tina? Eu saio correndo da sala. Mesmo a ideia de lentes de contato me faz
estremecer.

44
SADIE

O homem de branco parecia como se ácido tivesse espirrado nos seus


olhos, então repetidamente arranhado por gatos. Suas pálpebras eram mas-
sas de tecido cicatricial que não fechavam corretamente. Suas sobrancelhas
eram queimadas e inclinadas com sulcos profundos. A pele acima das maçãs
do rosto era uma máscara de vergões vermelhos, e os olhos eram como uma
combinação horrível de vermelho sangue e branco leitoso que eu não podia
acreditar que ele era capaz de ver.
Ele inalou, ofegando tão perversamente, o som fez meu peito doer. Res-
plandecendo contra sua camisa estava um pingente de prata com um amu-
leto em forma de serpente.
— Ele usou o portal momentos atrás, meu senhor — disse o homem com
voz áspera. — Finalmente, ele se foi.
Aquela voz era tão horrível quanto seus olhos. Se ácido espirrou nele,
um pouco deve ter entrado em seus pulmões. No entanto, o homem conti-
nuava a sorrir, parecendo calmo e feliz em seu terno branco enrugado como
se ele não pudesse esperar para vender sorvetes para as crianças bem peque-
nas.
Ele se aproximou de Desjardins, que ainda estava olhando para as corti-
nas de luz. O sorveteiro seguiu seu olhar. Eu fiz o mesmo e percebi o que o
Sacerdote-leitor Chefe estava olhando. No último pilar, mesmo ao lado do
trono, a luz estava mudando. O tom avermelhado da idade moderna estava
escurecendo para um fundo roxo, da cor de contusões. Em minha primeira
visita ao Salão das Eras, me falaram que a sala ficava mais longa enquanto
os anos se passavam, e agora eu pude realmente ver isso acontecendo. O piso
e as paredes ondulavam como uma miragem, expandindo-se muito lenta-
mente, e as tiras da luz roxa se ampliavam.
— Ah — disse o sorveteiro. — É muito mais claro agora.
— Uma nova era — murmurou Desjardins. — A idade escura. A cor da luz
não se alterou durante mil anos, Vladimir.
Um sorveteiro do mal chamado Vladimir? Tudo bem, então.
— São os Kane, é claro — disse Vladimir. — Você deveria ter matado o
mais velho enquanto estava em nosso poder.
Minhas penas de ba se eriçaram. Eu percebi que ele estava falando sobre
o tio Amós.

45
O TRONO DE FOGO

— Não — disse Desjardins. — Ele estava sob nossa proteção. Todos os que
buscam a cura deve ser dado santuário, até mesmo um Kane.
Vladimir tomou uma respiração profunda, o que parecia um aspirador
entupido.
— Mas com certeza agora que ele partiu, precisamos agir. Você ouviu a
notícia do Brooklyn, meu senhor. As crianças encontraram o primeiro per-
gaminho. Se eles acharem os outros dois...
— Eu sei, Vladimir.
— Eles humilharam a Casa da Vida no Arizona. Fizeram a paz com Set
ao invés de destruí-lo. E agora eles procuram o Livro de Rá. Se você me
permitir lidar com eles...
O topo da vara de Desjardins explodiu em uma chama roxa.
— Quem é o Sacerdote-leitor Chefe? — perguntou.
A agradável expressão de Vladimir vacilou.
— Você, meu senhor.
— E eu vou lidar com os Kane no devido tempo, mas Apófis é a nossa
maior ameaça. Temos que desviar todo o nosso poder para manter a Ser-
pente presa. Se há alguma chance de os Kane poderem nos ajudar a restaurar
a ordem...
— Mas, Sacerdote-leitor Chefe — Vladimir interrompeu.
Seu tom de voz tinha uma nova intensidade, uma força quase mágica
para isso.
— Os Kane são parte do problema. Eles alteraram o equilíbrio do Maat,
despertando os deuses. Estão ensinando magia proibida. Agora irão reviver
Rá, que não se pronunciou desde o início do Egito! Eles vão lançar o mundo
em desordem. Isso só vai ajudar o Caos.
Desjardins piscou, como se confuso.
— Talvez você esteja certo. Eu... Eu devo pensar sobre isso.
Vladimir se inclinou.
— Como quiser, meu senhor. Vou reunir nossas forças e aguardar suas
ordens para destruir a Casa do Brooklyn.
— Destruir... — Desjardins franziu a testa. — Sim, você vai aguardar as
minhas ordens. Eu vou escolher a hora de atacar, Vladimir.
— Muito bom, meu senhor. E se as crianças Kane buscarem os outros

46
SADIE

dois pergaminhos para despertar Rá? Um deles está além de seu alcance, é
claro, mas o outro...
— Vou deixar isso para você. Guarde-o como achar melhor.
Os olhos de Vladimir ficaram ainda mais horríveis quando ele ficou ani-
mado, viscosos e brilhantes por trás daquelas pálpebras arruinadas. Isso me
lembrou do café da manhã favorito de vovô: ovos quentes com molho Ta-
basco.
[Bem, desculpe se é nojento, Carter. Você não deveria tentar comer en-
quanto estou narrando, de qualquer maneira!]
— Meu senhor é sábio — disse Vladimir. — As crianças procuram os per-
gaminhos, meu senhor. Elas não têm escolha. Se elas deixarem seu reduto e
entrarem em meu território...
— Eu não acabei de dizer que nós vamos eliminá-las? — Desjardins falou
categoricamente. — Agora, deixe-me. Eu tenho que pensar.
Vladimir recuou para as sombras. Para alguém vestido de branco, ele
conseguiu desaparecer completamente bem.
Desjardins voltou sua atenção para a cortina de luz brilhante.
— Uma nova era... — ele meditou. — A idade das trevas...
Meu ba rodou nas correntes do Duat, correndo de volta para minha
forma dormindo.

— Sadie? — chamou uma voz.


Sentei-me na cama, meu coração batendo. A luz cinza da manhã enchia
a janela. Sentado ao pé da minha cama estava...
— Tio Amós? — gaguejei.
Ele sorriu.
— Feliz aniversário, minha querida. Desculpe-me se te assustei. Você não
respondeu à porta. Eu estava preocupado.
Ele parecia de volta à sua saúde integral e estava elegantemente vestido
como sempre. Usava óculos de aros finos, um chapéu fedora e um terno
preto de lã italiana que o fez parecer um pouco menos baixo e robusto. Seus
longos cabelos estavam trançados em trancinhas decoradas com pedrinhas
pretas brilhantes – obsidiana, talvez. Ele poderia ter passado por um músico
de jazz (o que ele era) ou um afro-americano Al Capone (que ele não era).

47
O TRONO DE FOGO

Comecei a perguntar:
— Como...
Então, minha visão do Salão das Eras – as implicações do que eu tinha
visto – me deterioraram.
— Está tudo bem. — disse Amós. — Acabei de voltar do Egito.
Tentei engolir, minha respiração quase tão ruim quanto à daquele ho-
mem medonho, Vladimir.
— Eu também, Amós. E não está tudo certo. Eles estão vindo para nos
destruir.

48
S
A
4. Um convite de aniversário para o
D
Armagedom
I
E

DEPOIS DE EXPLICAR MINHA HORRÍVEL VISÃO, só uma coisa poderia ser feita:
um café da manhã adequado.
Amós parecia abalado, mas insistiu em esperar para discutir assuntos até
que tivéssemos reunido todo o Vigésimo Primeiro Nomo (como o nosso
ramo da Casa da Vida era chamado). Ele prometeu atender-me na varanda
em 20 minutos.
Depois que ele se foi, tomei banho e considerei o que vestir. Normal-
mente, eu ensinaria Magia às segundas-feiras, o que exigiria o característico
linho mágico. No entanto, o meu aniversário era suposto para ser um dia de
folga.
Dadas as circunstâncias, eu duvidava que Amós, Carter e Bastet iriam
me deixar ir para Londres, mas eu decidi pensar positivo. Coloquei um jeans
rasgado, meus coturnos, uma camiseta regata e minha jaqueta de couro –
nada bom para a magia, mas eu estava me sentindo rebelde.
Enfiei minha varinha e a imagem do mini Carter na bolsa de magia. Eu
estava prestes a lançá-los sobre o meu ombro quando eu pensei “Não, eu
não vou ficar carregando isso para cá e para lá no meu aniversário”.
Eu respirei fundo e concentrei-me em abrir um espaço no Duat. Eu
odeio admitir isso, mas sou uma droga neste truque. Simplesmente não é

49
O TRONO DE FOGO

justo que Carter poder puxar coisas do ar a qualquer momento, mas eu nor-
malmente preciso de cinco ou dez minutos de foco absoluto, e mesmo assim
o esforço me dá náuseas. Na maioria das vezes, é mais simples apenas manter
a minha bolsa sobre meu ombro. Se eu saísse com minhas amigas, no en-
tanto, eu não queria estar carregando isso, e não queria deixar completa-
mente para trás.
Por fim, o ar brilhava quando o Duat se inclinou à minha vontade. Eu
joguei minha bolsa na minha frente, e ela desapareceu. Excelente, supondo
que eu pudesse descobrir como obtê-la novamente mais tarde.
Eu peguei o pergaminho que tinha roubado do deus alce na noite ante-
rior e desci as escadas.

Com todos no café da manhã, a mansão estava estranhamente silenciosa.


Cinco níveis de piso encaravam o Grande Salão, então normalmente o lugar
era tumultuado com barulho e atividade; mas me lembro de como era vazio
quando Carter e eu chegamos no último Natal.
O Grande Salão ainda tinha vários dos mesmos retoques: a sólida estátua
de Thot no meio, a coleção de armas e instrumentos de jazz de Amós na
parede, o tapete de pele de cobra na frente da lareira do tamanho de uma
garagem. Mas você também podia dizer que vinte jovens magos viviam aqui
agora. Uma abundância de controles remotos, varinhas, iPads, papéis de co-
mida e estatuetas shabti se empilhavam na mesa de café. Alguém com pés
grandes – provavelmente Julian – deixara os tênis enlameados nas escadas.
E um de nossos aprendizes – acho que Felix – magicamente converteu a
lareira num país das maravilhas antártico, completo com neve e um pinguim
vivo. Felix adora pinguins.
Esfregões e vassouras mágicas corriam pela casa, tentando limpar tudo.
Tive que me curvar para evitar ser varrida. Por algum motivo, as vassouras
acham que meu cabelo é uma questão de limpeza.
[Sem comentários seus, Carter.]
Como era esperado, todos estavam reunidos na varanda, que servia
como a nossa área de refeições e habitat do crocodilo albino. Filipe da Ma-
cedônia pulava alegremente na sua piscina, saltando por pedaços de bacon
quando um recruta jogava um para ele. A manhã estava fria e chuvosa, mas

50
SADIE

o fogo nos braseiros da varanda nos mantinha aquecidos.


Peguei um pão ao chocolate e uma xícara de chá da mesa e me sentei.
Então percebi que os outros não estavam comendo. Eles olhavam fixamente
para mim.
Na ponta da mesa, Amós e Bastet pareciam sérios. Na minha frente, Car-
ter não tocara no prato de waffles, o que não era muito a cara dele. À minha
direita, a cadeira de Jaz estava vazia. (Amós me disse que ela ainda estava na
enfermaria, nenhuma alteração). À minha esquerda Walt se sentava, pare-
cendo bem como sempre, mas dei o melhor de mim para ignorá-lo.
Os outros recrutas pareciam estar em vários estados de choque. Era um
grupo variado de todas as idades de todo o mundo. Uma parte era mais
velha que Carter e eu – velhos a ponto de ir para a universidade, na verdade
– o que era bom para acompanhar os mais jovens, mas isso também sempre
me deixava um pouco desconfortável quando tentava agir como a professora
deles. A maioria possuía entre dez e quinze anos. Felix tinha apenas nove.
Havia Julian de Boston, Alyssa da Carolina, Sean de Dublin e Cleo do Rio
de Janeiro (sim, eu sei, Cleo do Rio, mas eu não estou inventando!). A única
coisa que tínhamos em comum: o sangue dos faraós. Todos nós descendía-
mos das famílias reais do Egito, o que nos dava uma capacidade natural para
magia e hospedar o poder dos deuses.
O único que não parecia afetado pelo clima sério era Khufu. Por motivos
que nunca entendemos, nosso babuíno só come alimentos que terminam
em O. Recentemente, ele descobriu o Jell-O, uma marca de gelatina, e o re-
cebeu como uma substância milagrosa. Acho que o O maiúsculo deixa tudo
mais gostoso. Agora ele comia quase tudo envolto em geleia ou gelatina –
frutas, nozes, insetos, pequenos animais. No momento ele estava com a cara
enfiada numa montanha vermelha tremendo de café da manhã e fazia baru-
lhos rudes enquanto procurava por uvas.
Todos os demais me observavam, como se esperassem uma explicação.
— Bom dia — murmurei. — Dia adorável. Pinguim na lareira, se alguém
estiver interessado.
— Sadie — disse Amós gentilmente — conte a todos o que você me contou.
Bebi um pouco do chá para acalmar os nervos. Então tentei não parecer
aterrorizada ao descrever minha visita ao Salão das Eras.

51
O TRONO DE FOGO

Quando terminei, o único barulho era o fogo crepitando nos braseiros e


Filipe da Macedônia fazendo splash na piscina.
Finalmente, Felix, de nove anos, perguntou o que estava na cabeça de
todos:
— Então vamos todos morrer?
— Não — Amós se sentou ereto na cadeira. — Absolutamente não. Crian-
ças, eu sei que acabei de chegar. Mal conheci a maioria de vocês, mas pro-
meto que faremos tudo o que for possível para mantê-los em segurança. Essa
casa é coberta por proteção mágica. Vocês têm uma deusa ao seu lado — ele
gesticulou para Bastet, que abria uma lata de comida para gato com as unhas
— e a família Kane para protegê-los. Carter e Sadie são mais poderosos do
que vocês podem achar, e já lutei com Michel Desjardins antes, se chegarmos
a esse ponto.
Dada toda a encrenca que tivemos no último natal, o discurso de Amós
pareceu um tanto otimista, mas os recrutas pareceram aliviados.
— Se chegarmos a esse ponto? — Perguntou Alyssa. — Parece quase certo
que eles vão nos atacar.
Amós franziu a testa.
— Talvez, mas me irrita que Desjardins vá concordar em realizar uma
ação tão tola. Apófis é o verdadeiro inimigo e ele sabe disso. Desjardins deve
perceber que precisa de toda a ajuda que conseguir. A menos que...
Ele não terminou a frase. O que quer que estivesse pensando, aparente-
mente o preocupou bastante.
— De qualquer forma, se Desjardins decidir vir atrás da gente, planejará
cuidadosamente. Ele sabe que essa mansão não perecerá facilmente. Não
pode se dar ao luxo de se envergonhar novamente frente à família Kane. Ele
vai estudar o problema, considerar as opções e reunir as forças. Deve levar
vários dias para ele se preparar; tempo que devia estar usando para impedir
Apófis.
Walt levantou um dedo indicador. Não sei o que é, mas ele tem um tipo
de gravidade que chama a atenção do grupo quando está para falar. Até
Khufu tirou os olhos do Jell-O.
— Se Desjardins nos atacar — disse Walt — ele estará bem preparado, com
magos que são muito mais experientes do que nós. Ele pode passar pelas

52
SADIE

nossas defesas?
Amós encarou as portas deslizantes de vidro, possivelmente lembrando-
se da última vez que as nossas defesas foram violadas. O resultado não foi
nada bom.
— Devemos nos certificar de não chegarmos a isso — falou. — Desjardins
sabe o que estamos tentando, e que só temos cinco dias... bem, quatro dias
a partir de agora. Segundo a visão de Sadie, Desjardins está ciente do nosso
plano e tentará nos impedir por causa de uma crença enganosa que estamos
trabalhando com as forças do Caos. Mas se conseguirmos o que queremos,
teremos poder de barganhar para fazer Desjardins recuar.
Cleo levantou a mão.
— Hã... nós não conhecemos o plano. Quatro dias para fazer o quê?
Amós gesticulou para Carter, convidando-o a explicar. Estava tudo bem
para mim. Honestamente, eu achava o plano um pouco maluco.
Meu irmão sentou-se torto. Preciso dar crédito a ele. Nos últimos meses,
ele progredira em parecer um adolescente normal. Depois de seis anos de
educação em casa e viagens com nosso pai, Carter estivera fora de contato.
Ele se vestia como um executivo júnior, em camisas brancas e calças compri-
das. Agora pelo menos aprendera a vestir jeans, camisetas e o ocasional ca-
puz. Ele deixou o cabelo crescer numa bagunça cacheada – o que parecia
muito melhor. Se continuasse progredindo, o garoto até poderia namorar
algum dia.
[O que foi? Não me empurre. Foi um elogio!]
— Vamos acordar o deus Rá — disse Carter, como se fosse algo tão fácil
quanto pegar comida da geladeira.
Os recrutas olharam um para o outro. Carter não era conhecido pelo seu
senso de humor, mas eles deviam ter imaginado se ele estava brincando.
— Você quer dizer o deus do sol — disse Felix. — O velho rei dos deuses.
Carter assentiu.
— Vocês conhecem a história. Há milhares de anos atrás, Rá ficou velho
e fugiu aos céus, deixando Osíris no seu lugar. Então Osíris foi pego por Set.
Então Hórus derrotou Set e se tornou faraó. Então...
Tossi.
— A versão resumida, por favor.

53
O TRONO DE FOGO

Carter me deu um olhar cruzado.


— A questão é, Rá foi o primeiro e mais poderoso rei dos deuses. Acredi-
tamos que Rá ainda esteja vivo. Ele está apenas adormecido em algum lugar
fundo no Duat. Se pudermos acordá-lo...
— Mas se ele se retirou porque estava velho — disse Walt — isso não sig-
nifica que está muito mais velho agora?
Eu perguntei a mesma coisa quando Carter me contou pela primeira vez
a ideia. A última coisa que precisávamos era um deus todo poderoso que
não conseguia lembrar-se do próprio nome, tinha cheiro de gente velha e
babava no sono. E como um ser imortal podia envelhecer, em primeiro lu-
gar? Ninguém me deu uma resposta satisfatória.
Amós e Carter olharam para Bastet, o que fazia sentido, já que ela era o
único deus egípcio presente.
Ela franziu para a comida de gato desperdiçada.
— Rá é o deus do sol. Nos tempos antigos, ele envelhecia como o dia
envelhecia, então passava pelo Duat no seu barco durante cada noite e re-
nascia com o nascer do sol a cada manhã.
— Mas o sol não renasce — interferi. — É só a rotação da terra...
— Sadie — alertou-me Bastet.
Certo, certo. Mito e ciência eram ambos verdade – apenas versões dife-
rentes da mesma realidade, blá, blá, blá. Ouvi essa lição uma centena de
vezes, e não queria ouvir de novo.
Bastet apontou para o rolo de pergaminho, que ela colocara ao lado de
minha xícara de chá.
— Quando Rá parou de fazer sua jornada noturna, o ciclo foi quebrado,
e Rá enfraqueceu a um crepúsculo permanente... pelo menos, é assim que
achamos. Ele queria dormir para sempre. Mas se você pudesse encontrá-lo
no Duat, e esse é um grande se, é possível que ele possa ser trazido de volta
e renascer com a magia certa. O Livro de Rá descreve como isso pode ser
feito. Os sacerdotes de Rá criaram o livro nos tempos antigos e o mantiveram
em segredo, dividindo-o em três partes, para ser usado só se o mundo estiver
acabando.
— Se... o mundo estiver acabando? — perguntou Cleo. — Você quer dizer
que Apófis vai mesmo... engolir o sol?

54
SADIE

Walt olhou para mim.


— Isso é possível? Na sua história sobre a Pirâmide Vermelha, você con-
tou que Apófis estava por trás do plano de Set para destruir a América do
Norte. Ele estava tentando causar tanto caos que pudesse fugir da prisão.
Estremeci, lembrando da visão que aparecera no céu sobre Washington,
D.C. – uma cobra gigante que se torcia.
— Apófis é o verdadeiro problema — concordei. — O impedimos uma vez,
mas a prisão está enfraquecendo. Se ele conseguir escapar...
— Ele irá — disse Carter. — Em quatro dias. A menos que a gente o im-
peça. E então ele destruirá a civilização, tudo que os humanos construíram
desde o amanhecer no Egito.
Aquilo colocou um calafrio sobre a mesa de café da manhã.
Carter e eu tínhamos conversado em particular a respeito do prazo de
quatro dias, é claro. Hórus e Ísis estiveram ambos discutindo conosco. Mas
isso parecia como uma possibilidade horrível e não a certeza absoluta. Agora,
Carter parecia certo. Estudei seu rosto e percebi que ele tinha visto algo du-
rante a noite – possivelmente, uma visão ainda pior que a minha. Sua ex-
pressão dizia, Não aqui. Eu vou te dizer mais tarde.
Bastet estava cravando suas garras na mesa de jantar. Seja qual for o se-
gredo, ela devia estar ciente sobre ele.
Na outra extremidade da mesa, Felix contou com os dedos.
— Por quatro dias? O que há de tão especial em... hum, vinte e um de
março?
— O equinócio de primavera — explicou Bastet. — Um tempo poderoso
para a magia. As horas do dia e da noite são exatamente balanceadas, ou
seja, as forças do Caos e Maat podem ser facilmente inclinadas de um jeito
ou de outro. É o momento perfeito para despertar Rá. Na verdade, é a
nossa única chance até o equinócio de outono, daqui a seis meses. Mas não
podemos esperar tanto tempo.
— Porque, infelizmente — acrescentou Amós — o equinócio é também o
momento perfeito para Apófis escapar de sua prisão e invadir o mundo dos
mortais. Você pode ter certeza que ele tem servos trabalhando nisso agora.
Segundo nossas fontes, entre os deuses, Apófis irá ter sucesso, e é por isso
que temos que despertar Rá primeiramente.

55
O TRONO DE FOGO

Eu ouvi tudo isso antes, mas discuti-lo em campo aberto, na frente de


todos os nossos recrutas, e vendo os olhares devastados em seus rostos, tudo
parecia muito mais assustador e real.
Limpei a garganta.
— Certo... então quando Apófis surgir, ele vai tentar destruir o Maat, a
ordem do universo. Ele vai engolir o sol, mergulhar a Terra em trevas eter-
nas, e de outra forma, nós teremos um dia muito ruim.
— É por isso que precisamos de Rá — Amós ajustou seu tom de voz, tor-
nando-o calmo e reconfortante para os nossos recrutas.
Ele projetou tanta compostura, que mesmo eu me senti um pouco me-
nos apavorada. Eu me perguntei se isso era um tipo de magia, ou se ele era
melhor explicando o Apocalipse do que eu.
— Rá foi o arqui-inimigo de Apófis — ele continuou. — Rá é o Senhor da
Ordem, enquanto Apófis é o Senhor do Caos. Desde o início dos tempos,
estas duas forças têm feito uma batalha perpétua para destruir um ao outro.
Se Apófis retornar, nós temos que ter certeza que temos Rá do nosso lado
para neutralizá-lo. Então temos uma chance.
— Uma chance — disse Walt. — Assumindo que podemos encontrar Rá
e acordá-lo, e que o resto da Casa da Vida não nos destruirá primeiro.
Amós assentiu.
— Mas se pudermos despertar Rá, que seria uma façanha mais difícil do
que qualquer mago jamais realizou. Isso não faria Desjardins pensar duas
vezes. Um Sacerdote-leitor Chefe... bem, parece que ele não está pensando
claramente, mas ele não é bobo. Ele reconhece o perigo de Apófis subindo.
Temos de convencê-lo de que estamos do mesmo lado, que o caminho dos
deuses é a única forma de derrotar Apófis. Eu prefiro fazer isso a lutar com
ele.
Pessoalmente, eu queria dar um soco na cara de Desjardins e colocar sua
barba em chamas, mas eu admiti que Amós tinha um bom argumento.
Cleo, coitada, estava tão verde como um sapo. Ela veio toda a distância
do Brasil para o Brooklyn para estudar o caminho de Thot, o deus do co-
nhecimento, e nós já a identificamos como nossa futura bibliotecária, mas
quando os perigos eram reais, e não apenas nas páginas dos livros... bem, ela
tinha um estômago fraco. Eu esperava que ela pudesse chegar até a borda do

56
SADIE

terraço, se ela precisasse.


— O... pergaminho — ela começou — você disse que há duas outras partes?
Eu peguei o pergaminho. À luz do dia parecia mais frágil – quebradiço e
amarelo e provavelmente desintegrando-se. Meus dedos tremeram. Eu podia
sentir a magia zumbindo no papiro como uma corrente de baixa tensão.
Senti uma imensa vontade de abri-lo.
Comecei a desenrolar o cilindro. Carter ficou tenso.
Amós disse:
— Sadie...
Não há dúvida que eles esperavam que o Brooklyn pegasse fogo de novo,
mas nada aconteceu. Eu abri o pergaminho e descobri que estava escrito em
rabiscos – não hieróglifos, nem qualquer língua que eu pudesse reconhecer.
O fim do papiro era uma linha irregular, como se tivesse sido rasgado.
— Eu imagino que os pedaços devem trabalhar juntos. Vai ser legível ape-
nas quando todas as três seções forem combinadas.
Carter parecia impressionado. Mas, honestamente, eu sei algumas coisas.
Durante a nossa última aventura eu li um pergaminho para banir Set, e isso
havia funcionado da mesma maneira.
Khufu levantou os olhos do Jell-O.
— Agh!
Ele colocou três uvas viscosas sobre a mesa.
— Exatamente — Bastet concordou. — Como diz Khufu, as três seções do
livro representam os três aspectos de Rá, manhã, tarde e noite. Esse livro
não é a magia de Khnum. Vocês terão que encontrar os outros dois agora.
Como Khufu encaixou tudo isso em um único gemido, eu não sei, mas
eu gostaria de ter todas as minhas aulas com professores babuíno. Eu teria
concluído o ensino fundamental e o ensino médio em uma semana.
— Então as outras duas uvas — eu disse — quer dizer, pergaminhos... se-
gundo a minha visão da noite passada, eles não serão fáceis de encontrar.
Amós assentiu.
— A primeira parte foi perdida há muito tempo. A seção do meio está na
posse da Casa da Vida. Ele foi transferido várias vezes, e sempre é mantido
sob forte esquema de segurança. A julgar pela sua visão, eu diria que o livro
está agora nas mãos de Vladimir Menshikov.

57
O TRONO DE FOGO

— O sorveteiro — eu imaginei. — Quem é ele?


Amós traçou algo sobre a mesa – talvez um hieróglifo de proteção.
— O terceiro mago mais poderoso do mundo. Ele é também um dos mais
fortes defensores de Desjardins. Ele segue o Décimo Oitavo Nomo, na Rús-
sia.
Bastet assobiou. Sendo um gato, ela era muito boa nisso.
— Vlad, o Inalador. Ele tem uma má reputação.
Lembrei-me de seus olhos arruinados e da voz ofegante.
— O que aconteceu com seu rosto?
Bastet estava prestes a responder, mas Amós cortou.
— Basta compreender que ele é muito perigoso — alertou. — O talento
principal de Vlad é silenciar magos desonestos.
— Você quer dizer que ele é um assassino? — eu perguntei. — Maravilhoso.
E Desjardins apenas deu-lhe permissão para caçar Carter e eu se nós deixar-
mos o Brooklyn.
— O que vocês vão ter que fazer — disse Bastet — se quiserem procurar as
outras partes do Livro de Rá. Vocês têm apenas quatro dias.
— Sim — eu murmurei — você deveria ter mencionado isso. Você estará
indo conosco, não estará?
Bastet olhou para sua comida.
— Sadie... — Ela parecia triste. — Carter e eu estávamos conversando e...
bem, alguém tem que verificar a prisão de Apófis. Temos que saber o que
está acontecendo, o quão próximo está para quebrar, e se há uma maneira
de pará-lo. Isso exige olhar na fonte original.
Eu não podia acreditar que estava ouvindo isso.
— Você vai voltar lá? Depois de tudo o que os meus pais fizeram para livrá-
la?
— Eu só vou abordar a prisão de fora — prometeu. — E vou ter cuidado.
Sou uma criatura de ações secretas, depois de tudo. Além disso, sou a única
que sabe como encontrar a sua cela, e aquela parte do Duat seria letal para
um mortal. Eu... eu devo fazer isso.
Sua voz tremeu. Ela me disse uma vez que os gatos não eram corajosos,
mas voltar à sua antiga prisão parecia uma coisa muito corajosa para fazer.
— Eu não vou deixá-la indefesa — prometeu. — Eu tenho um... um amigo.

58
SADIE

Ele deve chegar do Duat amanhã. Pedi-lhe para encontrá-la e protegê-la.


— Um amigo? — perguntei.
Bastet se contorceu.
— Bem... mais ou menos.
Isso não soou encorajador. Eu olhei para minhas roupas de rua. Um
gosto azedo encheu minha boca. Carter e eu tínhamos uma missão a realizar,
e era improvável que eu voltaria viva. Outra responsabilidade sobre meus
ombros, outra demanda razoável para eu sacrificar minha vida para o bem
maior. Feliz aniversário para mim.
Khufu arrotou e afastou o prato vazio. Ele arreganhou os dentes man-
chados de Jell-O como se dissesse: Bem, isso está resolvido! Bom café da manhã!
— Vou fazer as malas — anunciou Carter. — Podemos sair em uma hora.
— Não — eu disse.
Eu não sei quem ficou mais surpreso – eu ou meu irmão.
— Não? — Carter perguntou.
— É meu aniversário — eu disse, o que provavelmente me fez soar como
uma criança de sete anos de idade, mas no momento eu não me importei.
Os recrutas olharam espantados. Vários resmungaram parabéns. Khufu
me ofereceu sua taça vazia de Jell-O como um presente. Felix indiferente-
mente começou a cantar “Parabéns pra você”, mas ninguém se juntou a ele,
então ele desistiu.
— Bastet disse que seu amigo não chegará até amanhã — continuei. —
Amós disse que Desjardins levaria algum tempo para preparar qualquer tipo
de ataque. Além disso, eu estou planejando minha viagem a Londres por
eras. Acho que tenho tempo para sair por um maldito dia antes de o mundo
acabar.
Os outros olharam para mim. Eu estava sendo egoísta? Tudo bem, sim.
Irresponsável? Talvez. Então, por que me sinto tão forte sobre colocar meus
pés no chão?
Isto pode vir como um choque para você, mas eu não gosto de me sentir
controlada. Carter estava ditando o que faríamos, mas como de costume, ele
não tinha me contado tudo. Ele obviamente consultou Amós e Bastet e fez
um plano de jogo. Os três haviam decidido o que era melhor sem se preocu-

59
O TRONO DE FOGO

par em me perguntar. Minha única constante companhia, Bastet, estava dei-


xando-me para embarcar em uma missão terrivelmente perigosa. E eu estaria
presa com meu irmão no meu aniversário, rastreando outro pergaminho
mágico que poderá atear fogo em mim ou pior.
Sinto muito. Não, obrigada. Se eu ia morrer, então isso poderia esperar
até amanhã de manhã.
A expressão de Carter era parte de raiva, parte de descrença. Normal-
mente, tentamos manter as coisas civilizadas na frente de nossos recrutas.
Agora eu estava envergonhando-o. Ele sempre reclamava como eu corria
para as coisas sem pensar. Ontem à noite ele estava irritado comigo por pe-
gar o pergaminho, e eu suspeito que no fundo de sua mente, ele me culpava
pelas coisas acontecendo de errado, como Jaz se machucando. Sem dúvida,
ele viu isso como um exemplo da minha natureza imprudente.
Eu estava bem preparada para uma luta, mas Amós intercedeu.
— Sadie, uma visita a Londres é perigosa. — Ele ergueu a mão antes que
eu pudesse protestar. — No entanto, se você precisa...
Ele tomou uma respiração profunda, como se ele não gostasse do que
ele estava prestes a dizer.
— ...então, pelo menos, prometa que vai ser cuidadosa. Duvido que Vlad
Menshikov estará pronto para se mover contra nós tão rapidamente. Deve
ficar tudo certo contanto que você não use magia, nem faça nada para atrair
a atenção.
— Amós! — Carter protestou.
Amós o interrompeu com um olhar severo.
— Apesar de Sadie estar indo, nós podemos começar o planejamento.
Amanhã de manhã, vocês dois podem começar sua busca. Eu vou assumir
as suas funções de ensino com os nossos recrutas e supervisionar a defesa da
Casa do Brooklyn.
Eu podia ver nos olhos de Amós que ele não queria que eu fosse. Era
ridículo, perigoso e precipitado. Em outras palavras, mais típico de mim.
Mas eu também podia sentir a sua simpatia para com minha situação. Lem-
brei-me de quão frágil Amós pareceu depois que Set assumiu seu corpo no
último Natal. Quando ele foi para o Primeiro Nomo para se curar, eu sabia
que ele se sentia culpado por te nos deixado a sós. Ainda assim, tinha sido

60
SADIE

a escolha certa para sua sanidade. Amós, de todas as pessoas, sabia como era
a necessidade de fugir. Se eu ficasse aqui, se eu partisse em uma busca ime-
diata, mesmo sem tempo para respirar, senti que ia explodir.
Além disso, eu me sentia melhor sabendo que Amós estará cobrindo
para nós a Casa do Brooklyn. Fiquei aliviada por dar as minhas funções de
ensino por um tempo. Verdade seja dita, eu sou uma professora horrível.
Eu simplesmente não tenho paciência para isso.
[Ah, fique quieto, Carter. Você não deveria concordar comigo.]
— Obrigada, Amós. — consegui dizer.
Ele levantou, indicando claramente que a reunião havia terminado.
— Eu acho que é suficiente para uma manhã — disse ele. — O principal é
que todos vocês continuem com seu treinamento, e não se desesperem. Nós
precisamos de vocês na melhor forma para defender a Casa do Brooklyn.
Nós prevaleceremos. Com os deuses do nosso lado, Maat superará o caos,
como sempre fez antes.
Os recrutas ainda pareciam inquietos, mas se levantaram e começaram a
limpar seus pratos. Carter me deu um olhar mais irritado, e depois entrou.
Esse era seu problema. Eu estava determinada a não me sentir culpada.
Eu não teria arruinado o meu aniversário. Ainda assim, enquanto eu olhava
para o meu chá frio e o não consumido pão de chocolate, tive uma sensação
horrível que eu nunca poderia sentar nessa mesa novamente.

Uma hora depois, eu estava pronta para Londres.


Tinha escolhido um novo cajado do arsenal e guardei-o no Duat junto
com meus outros suprimentos. Deixei o pergaminho mágico do Alceu com
Carter, que não iria falar comigo mesmo, então verifiquei Jaz na enfermaria
e encontrei-a ainda em coma. Um pano encantado mantinha sua testa fria.
Hieróglifos de cura flutuavam em torno de sua cama, mas ela ainda estava
tão frágil. Sem o seu habitual sorriso, ela parecia uma pessoa diferente.
Eu me sentei ao lado dela e segurei sua mão. Meu coração se sentiu tão
pesado como uma bola de boliche. Jaz tinha arriscado sua vida para nos pro-
teger. Ela tinha ido contra uma multidão de bau com apenas algumas sema-
nas de treinamento. Ela tirou energia de dentro de sua patrona, Sekhmet,
assim como nós lhe ensinamos, e o esforço quase a destruiu.

61
O TRONO DE FOGO

O que eu tinha sacrificado ultimamente? Tinha feito uma birra porque


eu poderia perder minha festa de aniversário.
— Sinto muito, Jaz.
Eu sabia que ela não podia me ouvir, mas minha voz tremeu.
— Eu só... eu vou enlouquecer se não fugir. Nós já tivemos que salvar a
porcaria do mundo uma vez, e agora eu tenho que fazer isso de novo...
Imaginei o que Jaz diria – algo reconfortante, sem dúvida: Não é culpa
sua, Sadie. Você merece algumas horas.
Isso me fez sentir pior. Eu nunca deveria ter permitido que Jaz se colo-
casse em perigo. Seis anos atrás, minha mãe tinha morrido canalizando
muita magia. Ela queimou selando a porta para a prisão de Apófis. Eu sabia
disso, e ainda permiti que Jaz, que tinha muito menos experiência, arriscasse
sua vida para salvar a nossa.
Como eu disse... sou uma professora horrível.
Finalmente, eu não aguentava mais. Apertei a mão de Jaz, disse a ela para
melhorar logo e deixei a enfermaria. Subi para o telhado, onde mantivemos
nossa relíquia para a abertura de portais – uma esfinge de pedra das ruínas
de Heliópolis.
Enrijeci quando notei Carter na outra extremidade do telhado, alimen-
tando o grifo com uma pilha de perus assados. Desde a noite passada, ele
havia construído um estábulo bastante estável para o monstro, então imagi-
nei que fosse ficar conosco. Pelo menos, isso iria manter os pombos fora do
telhado.
Eu quase esperava que Carter fosse me ignorar. Não estava com disposi-
ção para outro argumento. Mas quando ele me viu, ele franziu a testa, lim-
pou a gordura de peru de suas mãos, e se aproximou.
Eu me preparei para uma repreensão.
Em vez disso, ele resmungou.
— Tenha cuidado. Eu peguei para você um presente de aniversário, mas
vou esperar até você voltar...
Ele não acrescentou a palavra viva, mas achei que a ouvi em seu tom.
— Olha, Carter...
— Apenas vá. — disse ele — Discutir não vai ajudar.
Eu não tinha certeza se me sentia culpada ou com raiva, mas eu deveria

62
SADIE

ter um motivo. Nós não tínhamos um histórico muito bom com aniversá-
rios. Uma das minhas primeiras lembranças era de brigar com Carter no
meu sexto aniversário, e meu bolo explodindo com a energia mágica que
despertou. Talvez, considerando que, eu deveria tê-lo deixado bem o sufici-
ente sozinho. Mas eu não conseguia fazer isso.
— Sinto muito — eu disparei. — Sei que você me culpa por apanhar o
pergaminho na noite passada, e por Jaz se machucar, mas sinto como se eu
estivesse caindo aos pedaços...
— Você não é a única — ele replicou.
Um caroço se formou na minha garganta. Eu estava tão preocupada com
Carter estar ficando furioso comigo, que não tinha prestado atenção em seu
tom. Ele parecia absolutamente miserável.
— O que é isso? — eu perguntei. — O que aconteceu?
Ele limpou as mãos engorduradas em sua calça.
— Ontem no museu... um daqueles espíritos... um deles falou comigo.
Ele me contou sobre seu encontro com o estranho bau em chamas, como
o tempo pareceu abrandar e o bau advertiu Carter que nossa missão seria
um fracasso.
— Ele disse... — a voz de Carter quebrou. — Ele disse que Zia estava dor-
mindo no Local das Areias Vermelhas, o que quer que seja. Ele disse que se
eu não desistir da busca e salvá-la, ela iria morrer.
— Carter — falei cuidadosamente — esse espírito mencionou Zia pelo
nome?
— Bem, não...
— Será que ele quis dizer outra coisa?
— Não, eu tenho certeza. Ele quis dizer Zia.
Tentei morder minha língua. Honestamente, eu mordi. Mas o assunto
de Zia Rashid tornou-se uma obsessão doentia por meu irmão.
— Carter, não quero ser cruel. — falei — Mas nos últimos meses você tem
visto mensagens sobre Zia em toda parte. Duas semanas atrás, você achava
que ela estava enviando uma chamada de socorro em seu purê de batatas.
— Era um Z! Esculpido direto nas batatas!
Eu levantei minhas mãos.
— Tudo bem. E o seu sonho na última noite?

63
O TRONO DE FOGO

Seus ombros ficaram tensos.


— O que você quer dizer?
— Ah, vamos lá. No café da manhã, você disse que Apófis poderia escapar
de sua prisão no equinócio. Você parecia completamente certo, como se ti-
vesse visto a prova. Você já conversou com Bastet e convenceu-a a verificar
a prisão de Apófis. Tudo o que viu... deve ter sido ruim.
— Eu... eu não sei. Eu não tenho certeza.
— Posso perceber.
Minha irritação aumentou. Então, Carter não queria me dizer. Nós está-
vamos de volta a manter segredos um do outro? Excelente.
— Nós vamos continuar mais tarde, então. — falei — Vejo você à noite.
— Você não acredita em mim — disse ele. — Sobre Zia.
— E você não confia em mim. Então, estamos quites.
Nós olhamos um para o outro. Então, Carter voltou-se e foi em direção
ao grifo.
Quase o chamei de volta. Eu não tinha a intenção de estar tão irritada
com ele. Por outro lado, desculpar-me não é meu forte, e ele era pratica-
mente impossível.
Virei-me para a esfinge e convoquei uma passagem. Eu fiquei bastante
boa nisso. Imediatamente um turbilhão de funil de areia apareceu na minha
frente e eu pulei dentro dele.
Um batimento cardíaco depois, caí perto da Agulha da Cleópatra na
margem do Rio Tâmisa.
Seis anos antes, minha mãe tinha morrido aqui. Não era o meu monu-
mento egípcio favorito. Mas a agulha era o portal mágico mais próximo para
o apartamento de vovó e vovô.
Felizmente, o tempo estava ruim e não havia ninguém por perto, então
eu escovei a areia das minhas roupas e fui para a estação de metrô.
Trinta minutos depois, eu estava na escadaria do apartamento dos meus
avós. Parecia tão estranho estar em... casa? Não tinha certeza se eu poderia
chamá-la mais disso. Há meses que eu tinha saudades de Londres – as ruas
familiares da cidade, minhas lojas favoritas, meus amigos, meu antigo
quarto. Eu nunca tinha sido saudosa pelo tempo ruim. Mas agora tudo pa-
recia tão diferente, tão estranho.

64
SADIE

Nervosa, eu bati na porta.


Nenhuma resposta. Eu tinha certeza de que eles estavam me esperando.
Bati novamente.
Talvez eles estivessem escondidos, me esperando chegar. Eu imaginei
meus avós, Liz e Emma agachados atrás dos móveis, prontos para saltar e
gritar “Surpresa!”
Hmm... vovó e vovô agachando e saltando. De jeito nenhum.
Eu peguei a minha chave e abri a porta.
A sala estava escura e vazia. A luz da escadaria estava apagada, o que vovó
jamais permitiria. Ela tinha um medo mortal de quedas em escadas. Até
mesmo a televisão de vovô estava desligada, o que não estava certo. Vovô
sempre deixava nas partidas de rúgbi, mesmo que ele não estivesse prestando
atenção.
Cheirei o ar. Seis horas no entardecer de Londres, mas nenhum cheiro
de biscoitos assando na cozinha. Vovó deveria ter assado pelo menos uma
bandeja de biscoitos para a hora do chá. Era uma tradição.
Eu peguei o meu telefone para ligar para Liz e Emma, mas o telefone sem
bateria. Eu sabia que tinha carregado.
Minha mente estava apenas começando a processar o pensamento – eu
estou em perigo – quando a porta se fechou atrás de mim. Eu me virei, ten-
tando agarrar a minha varinha, que eu não tinha.
Acima de mim, no topo da escadaria escura, uma voz que definitiva-
mente não era humana assobiou.
— Bem-vinda ao lar, Sadie Kane.

65
C
A
5. Aprendo a realmente odiar besouros
R
T
E
R

MUITO OBRIGADO, SADIE.


Me passa o microfone quando você chega a uma parte boa.
Sim, Sadie fez um passeio de aniversário em Londres. O mundo estava
acabando em quatro dias, nós tínhamos uma busca para terminar e ela sai
para festejar com seus amigos. Realmente tinha suas prioridades no lugar
certo, hein? Não que eu fique amargurado, nem nada.
Pelo lado positivo, a Casa do Brooklyn estava bem quieta quando ela
saiu, pelo menos até a cobra de três cabeças aparecer. Mas primeiro eu deve-
ria contar a vocês sobre a minha visão.
Sadie pensava que eu estava escondendo alguma coisa dela no café da
manhã, certo? Bem, era verdade. Honestamente, o que eu vi durante a noite
me assustou tanto que eu não queria falar sobre isso, especialmente em seu
aniversário. Eu tinha experimentado algumas coisas bizarras desde que co-
mecei a aprender magia, mas aquilo ganharia o Prêmio Nobel de Esquisitice.
Depois do nosso passeio pelo Museu do Brooklyn, tive uma hora difícil
para dormir. Quando eu finalmente consegui, acordei em um corpo dife-
rente.
Não era uma viagem com a alma ou um sonho. Eu era Hórus, o Vinga-
dor.
Eu já tinha compartilhado um corpo com Hórus antes. Ele esteve na
minha cabeça por quase uma semana no Natal, sussurrando sugestões e de

66
CARTER

modo geral, sendo irritante. Durante a luta na Pirâmide Vermelha, até ex-
perimentei uma mistura perfeita de seus pensamentos e os meus. Eu virei o
que os egípcios chamam de Olho do deus – todo o seu poder a meu co-
mando, nossas memórias se misturando juntas, humano e deus trabalhando
como um. Mas eu ainda estava em meu próprio corpo.
Dessa vez, as coisas se inverteram. Eu era um hóspede no corpo de Hó-
rus, de pé na proa de um barco em um rio mágico que atravessava o Duat.
Minha visão era tão perspicaz quanto à de um falcão. Através do nevoeiro,
eu conseguia ver formas se mexendo na água – costas escamosas de répteis e
barbatanas monstruosas. Vi fantasmas dos mortos flutuando ao longo de
cada margem. Muito acima, o teto da caverna brilhava em um tom de ver-
melho, como se nós estivéssemos navegando na garganta de um animal vivo.
Meus braços eram de bronze e musculosos, circulados com bandas de
ouro de lápis-lazúli. Eu estava vestido para batalha em armadura de couro,
uma lança em uma mão e um khopesh na outra. Eu me sentia forte e pode-
roso como... Bem, um deus.
Olá, Carter, disse Hórus, que parecia falar sozinho.
— Hórus, o que foi?
Eu não disse que estava irritado pela intromissão no meu sono. Não pre-
cisei. Eu estava compartilhando sua mente.
Eu respondi suas perguntas, Hórus falou. Eu te disse onde encontrar o primeiro
rolo. Agora você precisa fazer uma coisa para mim. Tem uma coisa que eu gostaria
de te mostrar.
O barco cambaleou para frente. Eu agarrei o corrimão da plataforma do
navegador. Olhando para trás, poderia ver que o barco foi de um faraó, cerca
de vinte metros de comprimento e formato de uma canoa grande. No meio,
um pavilhão esfarrapado coberto por um estrado vazio onde uma vez talvez
houvesse um trono. Um único mastro detinha uma vela retangular que uma
vez tinha sido decorada, mas agora estava desbotada e pendurada em peda-
ços. À bombordo e à estibordo, conjuntos de remos quebrados pendiam
inutilmente.
O barco deveria estar abandonado por séculos. O cordame estava co-
berto de teias de aranha. As linhas estavam podres. As tábuas do casco ge-
miam e rangiam conforme o barco pegava velocidade.

67
O TRONO DE FOGO

Isso é velho, como Rá, Hórus disse. Você quer mesmo colocar o barco novamente
em serviço? Deixe-me mostrar a ameaça que enfrentam.
O leme virou o curso. De repente, nós estávamos correndo rio abaixo.
Eu já havia navegado no Rio da Noite antes, mas dessa vez nós parecíamos
estar indo muito mais profundamente no Duat. O ar estava mais frio, as
corredeiras mais rápidas. Pulamos uma catarata e fomos transportados pelo
ar. Quando descemos de novo, monstros começaram a atacar. Rostos horrí-
veis se levantaram – um dragão marinho com olhos felinos, um crocodilo
com pelos espinhosos, uma serpente com a cabeça de um homem mumifi-
cado. Cada vez que um se erguia, eu levantava minha espada e cortava, ou
espetava-os com minha lança para deixá-los longe do barco. Mas eles conti-
nuavam vindo, mudando de formas, e eu sabia que se eu não fosse Hórus,
o Vingador – se eu fosse apenas Carter Kane tentando lidar com esses hor-
rores – eu iria enlouquecer, ou morrer, ou os dois.
Toda noite, essa era a jornada, Hórus disse. Não era Rá que se defendia das
criaturas do Caos. Nós, outros deuses, que o deixavam a salvo. Nós detivemos Apófis
e seus lacaios.
Nós despencamos sobre outra queda d'água e aterrissamos de frente com
um redemoinho. De alguma forma, conseguimos não virar. O barco saiu da
correnteza e flutuou em direção a margem.
O rio ali era um campo de pedras pretas brilhantes – ou assim eu pensei.
Quando nos aproximamos, eu percebi que eram cascos de besouro – mi-
lhões e milhões de carapaças secas de besouro, estendidas pela escuridão
pelo tanto que eu podia ver. Alguns escaravelhos vivos se mexiam lenta-
mente entre as carapaças vazias, então parecia que toda a paisagem estava
rastejando. Eu nem mesmo vou tentar descrever o cheiro de vários milhões
de escaravelhos mortos.
A prisão da Serpente, Hórus disse.
Procurei na escuridão por uma cela, correntes ou fosso. Tudo que vi foi
um mar sem fim de escaravelhos mortos.
— Onde? — eu perguntei.
Eu estou te mostrando esse lugar de um jeito que você possa entender, Hórus
disse. Se você estivesse aqui em pessoa, se reduziria a cinzas. Se visse esse lugar como

68
CARTER

ele realmente é, seus sentidos mortais limitados derreteriam.


— Ótimo — murmurei. — Eu simplesmente adoro ter meus sentidos der-
retidos.
O barco raspou contra a margem, agitando alguns escaravelhos vivos. A
praia inteira parecia sofrer e se contorcer.
Uma vez, todos esses escaravelhos estavam vivos, Hórus disse, o símbolo do re-
nascimento diário de Rá, retendo o inimigo. Agora só restam alguns. A Serpente
lentamente devora seu caminho para fora da cela.
— Espera — eu disse. — Você quer dizer...
Na minha frente, a costa se expandiu enquanto algo era empurrado para
cima – uma forma imensa se esforçando para se libertar.
Agarrei minha espada e minha lança; mas mesmo com toda a força e
coragem de Hórus, eu estava tremendo. A luz vermelha brilhava sobre os
cascos dos escaravelhos. Eles estalavam e se moviam enquanto a coisa de-
baixo subia para a superfície. Através da fina camada de besouros mortos,
um círculo vermelho de três metros de largura olhou para mim – um olho
de serpente, cheio de ódio e fome. Mesmo na minha forma divina, eu senti
o poder do Caos derramando sobre mim como radiação letal, me cozi-
nhando por dentro, alimentando-se da minha alma – e acreditei no que Hó-
rus tinha dito. Se eu estivesse neste lugar em carne e osso, eu seria reduzido
a cinzas.
— Está se libertando. — Minha garganta começou a se fechar com pânico.
— Hórus, ele está saindo.
Sim, ele disse. Em breve...
Hórus guiou meu braço. Eu levantei minha lança e a enfiei dentro do
olho da Serpente. Apófis uivou com raiva. O rio tremeu. Então Apófis afun-
dou sob os cascos de escaravelhos mortos, e a luz vermelha desvaneceu.
Mas não hoje, Hórus disse. No equinócio, os laços vão enfraquecer o suficiente
para a Serpente finalmente se libertar. Seja meu avatar novamente, Carter. Ajude-
me a liderar os deuses na batalha. Juntos, nós podemos ser capazes de parar a ascen-
são de Apófis. Mas se você despertar Rá e ele voltar ao trono, terá ele forças para
governar? Esse barco está bom o suficiente para navegar no Duat novamente?
— Por que você me ajudou a encontrar o pergaminho, então? — pergun-
tei. — Se você não quer Rá acordado?

69
O TRONO DE FOGO

A escolha deve ser sua, Hórus disse. Acredito em você, Carter Kane. Indepen-
dente do que decidir, eu vou te ajudar. Mas muitos dos outros deuses não sentem o
mesmo. Eles acham que nossas chances podem ser melhores comigo como seu rei e
general, liderando-os na batalha contra a Serpente. Eles veem seu plano de acordar
Rá como tolo e perigoso. É tudo o que posso fazer para evitar uma rebelião. Eu posso
não ser capaz de impedir que te ataquem e tentem te impedir.
— Justo o que precisamos. — falei — De mais inimigos.
Não tem que ser assim, Hórus disse. Agora você viu o inimigo. Quem você acha
que tem chances melhores de enfrentar o Senhor do Caos, Rá ou Hórus?
O barco se afastou da costa escura. Hórus libertou meu ba, e minha cons-
ciência flutuou de volta ao mundo mortal como um balão de hélio. No resto
da noite, eu sonhei com uma paisagem de escaravelhos mortos, e um olho
vermelho brilhante das profundezas de uma prisão enfraquecida.

Se agi um pouco abalado na manhã seguinte, agora você sabe por quê.
Eu perdi muito tempo me perguntando por que Hórus tinha me mos-
trado aquela visão. A resposta era óbvia: Hórus agora era rei dos deuses. Ele
não queria que Rá voltasse para desafiar sua autoridade. Os deuses tendem
a ser egoístas. Mesmo quando são cooperativos, sempre têm seus próprios
motivos. É por isso que você precisa ser cuidadoso ao acreditar neles.
Por outro lado, Hórus tinha um ponto. Rá tinha cinco mil anos de idade.
Ninguém sabia que tipo de forma ele tinha agora. Mesmo se nós conseguís-
semos acordá-lo, não havia garantia de que ele seria de ajuda. Se ele parecesse
tão ruim quanto seu barco, eu não vejo como Rá poderia derrotar Apófis.
Hórus tinha me perguntado quem tinha a melhor chance de enfrentar o
Senhor do Caos. A estranha verdade: quando eu procurei no meu coração,
a resposta era nenhum de nós. Nem os deuses. Nem os magos. Nem mesmo
todos nós trabalhando juntos. Hórus queria ser o rei e liderar os deuses na
batalha, mas seu inimigo era mais poderoso que tudo o que ele tinha enfren-
tado. Apófis era tão antigo quanto o universo, e ele só temia um inimigo:
Rá.
Trazer Rá de volta poderia não funcionar, mas meus instintos me disse-
ram que era nossa única chance. E francamente, o fato de que todo mundo
ficava me dizendo que era uma má ideia – Bastet, Hórus, até Sadie – me

70
CARTER

fazia ter mais certeza que era a coisa certa a fazer. Eu sou teimoso desse jeito.
A escolha certa dificilmente é a escolha fácil, meu pai me dizia.
Papai desafiou toda a Casa da Vida. Ele tinha sacrificado sua própria
vida para libertar os deuses porque tinha certeza que era o único jeito de
salvar o mundo. Agora era a minha vez de fazer a escolha difícil.

Voltando ao café da manhã e minha discussão com Sadie. Depois de ela


pular pelo portal, eu fiquei na casa sem nenhuma companhia, mas com meu
novo amigo, o grifo psicótico.
Ele gritava tanto FREEEEK! que eu decidi chamá-lo de Freak; além do
mais, se encaixava com sua personalidade. Eu esperava que ele desaparecesse
durante a noite – voar para longe ou voltar para o Duat – mas ele parecia
feliz em sua nova pousada. Eu tinha juntado uma pilha de jornais da manhã,
todos eles com manchetes sobre a erupção bizarra de gás no esgoto que tinha
varrido todo o Brooklyn na noite anterior. De acordo com os relatórios, o
gás tinha acendido fogos fantasmas por todo o bairro, causando danos ex-
tensos ao museu, e deixando algumas pessoas com náusea, tonturas, e até
alucinações de rinocerontes do tamanho de beija-flores. Gás de esgoto idi-
ota.
Eu estava jogando para Freak mais perus torrados (caramba, ele tinha
um apetite) quando Bastet apareceu perto de mim.
— Normalmente, eu apreciaria pássaros — ela disse. — Mas essa coisa é
perturbadora.
FREEEEK!, respondeu Freak.
Ele e Bastet se consideravam como se estivessem imaginando que sabor
o outro teria no almoço.
Bastet fungou.
— Você não vai ficar com ele, não é?
— Bem, ele não está amarrado ou coisa parecida — respondi. — Ele pode-
ria partir se quisesse. Acho que ele gosta daqui.
— Magnífico — Bastet murmurou. — Só mais uma coisa que pode matá-
lo enquanto eu estiver fora.
Pessoalmente, eu pensava que Freak e eu estávamos nos dando bem, mas
percebi que nada que eu dissesse iria tranquilizar Bastet.

71
O TRONO DE FOGO

Ela estava vestida para viagem. Sobre sua roupa de pele de leopardo
usual, ela usava um casaco preto comprido bordado com hieróglifos de pro-
teção. Quando ela se mexeu, o tecido brilhou, fazendo-a desaparecer de vista.
— Tenha cuidado — eu disse a ela.
Ela sorriu.
— Eu sou uma gata, Carter. Posso cuidar de mim mesma. Estou mais
preocupada com você e Sadie enquanto eu estiver fora. Se sua visão estiver
correta e a prisão de Apófis estiver se quebrando... Bem, eu vou voltar assim
que puder.
Não tinha muito que eu pudesse dizer. Se minha visão estivesse correta,
nós todos estávamos em apuros.
— Posso estar fora de contato por uns dois dias — ela continuou. — Meu
amigo vai chegar aqui antes de você e Sadie partirem em sua missão amanhã.
Ele vai fazer com que os dois fiquem vivos.
— Você não pode pelo menos me dizer o nome dele?
Bastet me deu um olhar divertido, ou nervoso – possivelmente os dois.
— Ele é um pouco difícil de explicar. Acho melhor deixá-lo se apresentar.
Com isso, Bastet me beijou na testa.
— Se cuide, meu filhote.
Eu estava muito surpreso para responder. Eu pensava em Bastet como
protetora de Sadie. Eu era só um tipo de acréscimo. Mas sua voz tinha tanto
carinho que provavelmente corei. Ela correu para a beira do telhado e pulou.
Eu não estava preocupado com ela. Tinha certeza absoluta de que ela
cairia com os pés no chão.

Eu queria continuar as coisas o mais normalmente possível para os recrutas,


então eu liderei minha aula de manhã como sempre. A chamei de Resol-
vendo Problemas Mágicos 1. Os recrutas chamaram-na de Qualquer Coisa
Que Funcione Serve.
Eu dei aos recrutas um problema. Eles poderiam resolver do jeito que
quisessem. Assim que conseguissem, poderiam ir.
Acho que não era muito como uma escola de verdade, onde você tem
que ficar até o fim do dia mesmo se você só estiver fazendo um trabalho
inútil, mas eu nunca estive em uma escola de verdade. Todos aqueles anos

72
CARTER

de educação escolar em casa com meu pai, aprendi com meu próprio ritmo.
Quando eu terminasse meus trabalhos para a satisfação de meu pai, o dia
escolar acabava. Esse sistema funcionava para mim, e os recrutas pareciam
gostar, também.
Eu pensei também que Zia Rashid aprovaria. Na primeira vez que Sadie
e eu treinamos com Zia, ela nos disse que o mago não poderia aprender em
salas de aula e livros. Você tinha que aprender na prática. Então de Resol-
vendo Problemas Mágicos 1, nos dirigimos para a sala de treinamento e ex-
plodimos coisas.
Hoje eu tinha quatro estudantes. O resto dos recrutas estaria fora procu-
rando seus próprios caminhos de magia, praticando encantamentos ou fa-
zendo trabalhos escolares regulares sob supervisão de nossos iniciados de
mais idade. Como nossa principal acompanhante adulta enquanto Amós
estava fora, Bastet tinha insistido em ensinar também as matérias normais
como matemática e leitura, apesar de ela às vezes acrescentar suas próprias
disciplinas seletivas, como Higiene Avançada de Gato ou Cochilo. Havia
uma fila de espera para Cochilo.
Bom, a sala de treinamento toma a maior parte do segundo piso. Era
aproximadamente do tamanho de uma quadra de basquete, que é para o
que a usamos também à noite. Havia um piso de madeira, estátuas de deuses
alinhadas nas paredes, e um teto abobadado com figuras do Egito Antigo
andando de lado, como sempre eram desenhados. Na base das paredes,
prendemos estátuas de cabeça de falcão de Rá perpendiculares no piso, dez
pés acima, e abrimos suas coroas de disco solar de um modo que pudéssemos
usá-las como cestas de basquete. Provavelmente era ofensivo – mas ei, se Rá
não tem senso de humor, era problema dele.
Walt estava esperando por mim, junto de Julian, Felix e Alyssa. Jaz tam-
bém aparecia naquelas sessões, mas é claro que Jaz ainda estava em coma...
e era um problema que nenhum de nós sabia como resolver.
Eu tentei usar minha cara de professor confiante.
— Certo, pessoal, hoje nós vamos tentar algumas simulações de combate.
Vamos começar pelo mais simples.
Eu puxei quatro estatuetas shabti de minha bolsa e coloquei-as em dife-
rentes cantos da sala. Coloquei um recruta em frente de cada uma. Então

73
O TRONO DE FOGO

falei uma palavra de comando. As quatro estatuetas cresceram completa-


mente do tamanho de guerreiros egípcios com espadas e escudos. Eles não
eram super-realistas. Sua pele parecia ser de cerâmica vidrada, e eles se mo-
viam mais lentamente que homens reais, porém eram bons o suficiente para
iniciantes.
— Felix? — chamei. — Sem pinguins.
— Ah, qual é!
Felix acreditava que a resposta para todos os problemas envolvia pin-
guins; mas não era justo para os pássaros, e eu estava ficando cansado de
teleportá-los de volta para casa. Em algum lugar da Antártica, um bando de
pinguins de Magalhães estava fazendo tratamento psicológico.
— Comecem! — eu gritei, e os shabti atacaram.
Julian, um aluno da sétima série que já tinha se decidido pelo caminho
de Hórus, foi direto para a batalha. Ele não tinha dominado completamente
a invocação de um avatar de combate, mas ele revestiu seus punhos em ener-
gia dourada como uma bola de demolição e socou o shabti. A estatueta voou
para a parede, partindo em pedaços. Um a menos.
Alyssa estava estudando sobre o caminho de Geb, o deus da terra. Nin-
guém na Casa do Brooklyn era um especialista em magia terrestre, mas
Alyssa raramente precisava de ajuda. Ela tinha crescido em uma família de
artesãos na Carolina do Norte, e esteve trabalhando com argila desde que
era uma menina.
Ela se esquivou do balanço desajeitado do shabti e o tocou nas costas.
Um hieróglifo brilhou contra sua armadura de barro:

Nada pareceu acontecer com o guerreiro, mas quando ele tornou a ata-
car, Alyssa só ficou ali. Eu estava prestes a gritar para ela, mas o shabti a es-
queceu completamente. A lâmina atingiu o chão, e o guerreiro tropeçou. Ele
atacou novamente, balançando meia dúzia de vezes, mas sua lâmina nunca
atingia Alyssa. Finalmente o guerreiro ficou confuso e cambaleou para o
canto da sala, onde bateu sua cabeça conta a parede e estremeceu até parar.

74
CARTER

Alyssa sorriu para mim.


— Sa-per — ela explicou. — Hieróglifo de Esquecimento.
— Muito bom — eu disse.
Enquanto isso, Felix achou uma solução sem pinguim. Eu não tinha
ideia de qual tipo de magia ele poderia finalmente se especializar, mas hoje
ele foi simples e violento. Ele pegou uma bola de basquete do banco, esperou
o shabti dar um passo, então tacou a bola em sua cabeça. Seu lançamento foi
perfeito. O shabti perdeu seu equilíbrio e caiu, sua espada se quebrando. Fe-
lix caminhou e pisoteou o shabti até ele quebrar em pedaços.
Ele olhou para mim com satisfação.
— Você não me disse que tinha que usar magia.
— Justo.
Fiz uma nota mental de nunca jogar basquete com Felix.
Walt era o mais interessante de assistir. Ele era um sau, um criador de
encantamentos, então ele tendia lutar com qualquer item mágico que tinha
em mãos. Eu nunca sabia o que ele ia fazer.
Quanto ao seu caminho, Walt não decidiu qual magia deveria estudar.
Ele era um bom pesquisador, como Thot, deus da sabedoria. Podia usar per-
gaminhos e poções quase tão bem quanto Sadie, então talvez escolhesse o
caminho de Ísis. Ele poderia escolher até o caminho de Osíris, porque Walt
era natural em trazer coisas inanimadas à vida.
Hoje ele estava tomando seu tempo, manejando seus amuletos e consi-
derando suas opções. Enquanto o shabti se aproximava, Walt recuava. Se
Walt tivesse uma fraqueza, era sua cautela. Ele gostava de pensar muito antes
de agir. Em outras palavras, ele era exatamente o oposto de Sadie.
[Não me dê um murro, Sadie. É verdade!]
— Vamos lá, Walt — Julian chamou. — Mate-o agora.
— Você consegue — Alyssa disse.
Walt alcançou um de seus anéis. Então ele deu um passo para trás e
tropeçou nos restos do shabti quebrado de Felix. Eu gritei:
— Cuidado!
Mas Walt escorregou e caiu duro. Seu oponente shabti correu, bran-
dindo sua espada.

75
O TRONO DE FOGO

Eu corri para ajudar, mas estava muito longe. A mão de Walt já estava
levantada instintivamente para bloquear o golpe. A lâmina de cerâmica en-
cantada era tão afiada quanto um metal de verdade. Machucaria Walt razo-
avelmente, mas ele a agarrou, e o shabti congelou. Debaixo dos dedos de
Walt, a lâmina ficou cinza e cheia de rachaduras. O “cinza” se espalhou
como o gelo por todo o guerreiro, e o shabti se desintegrou em uma pilha de
poeira.
Walt parecia surpreso. Ele abriu a sua mão, que estava perfeitamente
bem.
— Isso foi legal! — Felix disse. — Que amuleto foi esse?
Walt me deu um olhar nervoso, e eu sabia a resposta. Não foi um amu-
leto. Walt não tinha ideia de como fez aquilo.
Aquilo tinha sido agitação demais para um dia. Sério. Mas a bizarrice só
estava começando. Antes que qualquer um de nós pudesse dizer alguma
coisa, o chão sacudiu.
Pensei que talvez a magia de Walt estivesse se espalhando pelo prédio, o
que não era nada bom. Ou talvez alguém embaixo de nós estivesse experi-
mentando explodir maldições burras novamente.
Alyssa gritou.
— Pessoal...
Ela apontou para a estátua de Rá sobressaindo da parede, dez pés acima
de nós. Nossa cesta de basquete divina estava desmoronando.
Primeiro eu não tinha certeza do que estava vendo. A estátua de Rá não
estava virando pó como um shabti. Estava se rompendo, caindo no chão aos
pedaços. Então meu estômago se apertou. As peças não eram de pedra. A
estátua estava virando cascas de escaravelhos.
A última estátua desmoronou, e a pilha de escaravelho começou a se
mexer. Três cabeças de serpente levantaram-se do meio.
Eu não ligo de te falar: entrei em pânico. Pensei na minha visão de Apó-
fis virando realidade bem ali. Eu tropecei para trás, corri para Alyssa. A única
razão para eu não fugir do quarto era porque os quatro recrutas estavam me
olhando procurando segurança.
Não pode ser Apófis, eu disse para mim mesmo.
As cobras emergiram, e eu percebi que não eram três animais diferentes.

76
CARTER

Era uma cobra maciça com três cabeças.


Ainda mais estranho, ela tinha um par de asas de falcão. O tronco da
coisa era tão grosso quanto a minha perna. Era tão alta quanto eu, mas não
era grande o suficiente para ser Apófis. Seus olhos não estavam brilhando
com um tom de vermelho. Eles eram olhos verdes arrepiantes normais de
cobra.
Mesmo assim... com todas as três cabeças olhando para mim, eu não
posso dizer que relaxei.
— Carter? — Felix perguntou desconfortavelmente. — Isso é parte da lição?
A serpente sibilou em uma harmonia de três. Sua voz parecia falar dentro
da minha cabeça – e soava exatamente como o bau no Museu do Brooklyn.
Seu último aviso, Carter Kane, ela disse. Me dê o pergaminho.
Meu coração pulou uma batida. O pergaminho – Sadie tinha dado para
mim depois do café da manhã. Idiota. Eu podia ter trancado o pergaminho,
colocado em um de nossos cubículos seguros na livraria; mas ainda estava
na bolsa no meu ombro.
O que você é? Eu perguntei para a cobra.
— Carter — Julian sacou a espada. — Não vamos atacar?
Meus recrutas não tinham indício de que tinham escutado a cobra ou eu
falando.
Alyssa levantou suas mãos como se estivesse pronta para pegar uma bola
de queimada. Walt se posicionou entre a cobra a Felix, e Felix se inclinou
para o lado para ver por ele.
Dê para mim.
A serpente se curvou para atacar, esmagando escaravelhos mortos de-
baixo de seu corpo. Suas asas ficaram tão largas, que elas poderiam ter en-
volvido a todos nós.
Abandone sua missão, ou eu vou destruir a garota que você procura, assim como
eu destruí sua vila.
Eu tentei puxar minha espada, mas meus braços não se mexiam. Senti-
me paralisado, como se esses três conjuntos de olhos tivessem me colocado
em transe.
Sua vila, eu pensei. A vila de Zia.
Cobras não podiam rir, mas o silvo da coisa soou como uma risada.

77
O TRONO DE FOGO

Você vai fazer uma escolha, Carter Kane, a garota ou o deus. Abandone sua
missão tola, ou em breve você vai ser só outra casca seca como os escaravelhos de Rá.
Minha raiva me salvou. Sacudi a paralisia e gritei:
— Matem-no!
Assim que a serpente abriu suas bocas explodindo três colunas de cha-
mas.
Levantei um escudo verde de magia para desviar o fogo. Julian lançou
sua espada como um machado. Alyssa gesticulou com sua mão e três estátuas
de pedra saltaram de seus pedestais, voando para a serpente. Walt disparou
um parafuso de luz cinzenta de sua varinha. E Felix tirou seu sapato es-
querdo e arremessou no monstro.
Nesse momento, era ruim ser uma serpente. A espada de Julian cortou
uma de suas cabeças. O sapato de Felix ricocheteou na outra. A explosão da
varinha de Walt transformou a outra em poeira. Então as estátuas de Alyssa
bateram nele, esmagando o monstro debaixo de uma tonelada de pedra.
O que restou do corpo da serpente se dissolveu em areia.
O quarto ficou quieto de repente. Meus quatro recrutas olharam para
mim. Eu abaixei e peguei uma das carapaças de escaravelhos.
— Carter, isso era parte da lição, certo? — Felix perguntou. — Me diga que
era parte da lição.
Eu pensei na voz da serpente – a mesma voz do bau no Museu do Bro-
oklyn. Percebi porque parecia tão familiar. Eu tinha ouvido durante a bata-
lha na Pirâmide Vermelha.
— Carter? — Felix parecia prestes a chorar.
Ele era um desordeiro, às vezes eu esquecia que ele só tinha nove anos
de idade.
— Sim, só um teste — menti. Eu olhei para Walt, e nós fizemos um acordo
silencioso.
Precisamos falar sobre isso mais tarde. Mas primeiro, tinha alguém para in-
terrogar.
— Classe dispensada.
Eu corri para encontrar Amós.

78
C
A
6. Uma banheira de pássaros quase me mata
R
T
E
R

AMÓS VIROU A CARAPAÇA DE ESCARAVELHO em seus dedos.


— Uma cobra de três cabeças, você disse.
Me senti culpado por ele. Ele tinha passado por tanta coisa desde o Na-
tal. Então ele finalmente se curou e veio para casa, e boom, um monstro in-
vade sua sala de práticas. Mas eu não sabia com quem falar. Era um tipo de
situação em que Sadie deveria estar por perto.
[Tudo bem, Sadie, não olhe para mim. Eu não estava arrependido.]
— É — eu disse — com asas e lança-chamas. Já viu algo como aquela coisa
antes?
Amós colocou a concha de escaravelho na mesa. Ele cutucou-a, como se
esperasse que viesse à vida. Tínhamos a biblioteca só para nós, o que era
incomum. Às vezes, a câmara grande e redonda ficava cheia de recrutas pro-
curando por rolos pelas fileiras de cubículos, ou enviando shabti de busca
pelo mundo para artefatos, livros ou pizza. Pintada no piso estava uma figura
de Geb, o deus da terra, seu corpo pontilhado de árvores e rios. Acima de
nós, a deusa do céu de pele estrelada, Nut, se estendia por todo o teto. Eu
geralmente me sentia seguro naquela sala, protegido por dois deuses que
foram amigáveis conosco. Mas agora eu olhava para os shabti de busca pos-
tados ao redor da biblioteca e me perguntava se eles se dissolveriam em es-
caravelhos ou decidiriam nos atacar.
Finalmente Amós disse uma palavra de comando:

79
O TRONO DE FOGO

— A'max.
Queime.

Um pequeno hieróglifo vermelho brilhou sobre o escaravelho. A casca


explodiu em chamas e se desfez em um pequeno monte de cinzas.
— Eu me lembro de uma pintura — Amós relatou — na tumba de Tutmés
III. Mostrava uma cobra de três cabeças e asas como essa que você descreveu.
Mas o que isso significa... — Ele balançou a cabeça. — Cobras podem ser
boas ou ruins na lenda egípcia. Podem ser inimigas de Rá, ou suas proteto-
ras.
— Aquela não era uma protetora — eu disse. — Ela queria o pergaminho.
— E ainda tinha três cabeças, que deve simbolizar os três aspectos de Rá.
E nasceu dos cascalhos da estátua de Rá.
— Não era de Rá — eu insisti. — Por que Rá queria que parássemos de
procurá-lo? Além disso, eu reconheci a voz da cobra. Era a voz do seu...
Mordi minha língua.
— Quer dizer, era a voz do criado de Set da Pirâmide Vermelha, o que
foi possuído por Apófis.
Os olhos de Amós ficaram confusos.
— Rosto do Terror — ele lembrou. — Você acha que Apófis estava falando
com você pela serpente?
Eu assenti.
— Acho que ele colocou aquelas armadilhas no Museu do Brooklyn. Ele
falou comigo através do bau. Se ele é tão poderoso, pode se infiltrar nessa
mansão.
— Não, Carter. Mesmo se estiver certo, não era Apófis em pessoa. Se ele
quebrou sua prisão, a causa seria ondulações através do Duat muito podero-
sas, todo mago poderia senti-las. Mas possuir as mentes dos seus servos, até
mesmo enviá-los a lugares protegidos para entregar uma mensagem é muito
mais fácil. Eu não acho que a cobra poderia ter feito muito dano a você.
Teria ficado muito fraca depois de romper nossas defesas. Ela foi enviada

80
CARTER

principalmente para te avisar e te assustar.


— Funcionou — eu disse.
Não perguntei a Amós como ele sabia tanto sobre possessões e os cami-
nhos do Caos. Ter seu corpo assumido por Set, o deus do mau, tinha dado
a ele um curso intensivo de coisas assim. Agora ele pareceu voltar ao normal,
mas eu sabia pela minha própria experiência de compartilhar uma mente
com Hórus: uma vez que hospeda um deus – de modo voluntário ou não –
você nunca é exatamente o mesmo. Retém as memórias, até alguns traços
do poder do deus. Eu não podia ajudar notando que a cor da magia de Amós
ter mudado. Ela costumava ser azul. Agora quando ele convocava hierógli-
fos, eles brilhavam em vermelho – a cor de Set.
— Vou reforçar o encanto ao redor da casa — ele prometeu. — É hora de
atualizar nossa segurança. Vou me certificar de que Apófis não possa enviar
mensageiros novamente.
Eu assenti, mas sua promessa não me fez sentir melhor.
Amanhã, se Sadie voltasse a salvo, nós ficaríamos fora em uma missão
para encontrar os outros dois pergaminhos do Livro de Rá.
Claro, nós sobrevivemos na nossa última aventura lutando contra Set,
mas Apófis era um inimigo totalmente diferente. E nós não estávamos mais
hospedando deuses. Éramos só crianças, enfrentando magos do mal, demô-
nios, monstros, espíritos, e o eterno Senhor do Caos. Na melhor das hipó-
teses, eu tinha uma irmã excêntrica, uma espada, um babuíno e um grifo
com uma desordem pessoal. Eu não estava gostando dessas chances.
— Amós, e se estivermos errados? E se acordar Rá não funcionar?
Fazia muito tempo desde que eu vi meu tio sorrir. Ele não parecia muito
com meu pai, mas quando sorria, ele tinha as mesmas rugas ao redor dos
olhos.
— Meu garoto, veja o que você realizou. Você e Sadie têm redescoberto
um caminho da magia que não era praticado em milênios. Vocês consegui-
ram mais de seus recrutas em dois meses do que a maioria dos iniciantes do
Primeiro Nomo conseguiu em dois anos. Vocês batalharam com deuses.
Conseguiram mais que qualquer mago vivo conseguiu, até eu, ou Michael
Desjardins. Acredite em seus instintos. Se eu fosse um homem de apostas,
meu dinheiro estaria em você e sua irmã todas as vezes.

81
O TRONO DE FOGO

Um nó se formou em minha garganta. Eu não tinha começado uma con-


versa como aquela desde que meu pai ainda estava vivo, e acho que não
tinha percebido do quanto precisava de uma.
Infelizmente, ouvir o nome de Desjardins me lembrou que tínhamos ou-
tros problemas além de Apófis. Assim que começássemos nossa missão, um
mago russo, vendedor de sorvete, chamado Vlad, o Inalador tentaria nos
assassinar. E se Vlad era o terceiro mago mais poderoso do mundo...
— Quem é o segundo? — eu perguntei.
Amós franziu a testa.
— Do que você está falando?
— Você disse que esse cara russo, Vlad Menshikov, é o terceiro mago
mais poderoso vivo. Desjardins é o mais poderoso. Quem é o segundo? Eu
quero saber se temos outros inimigos para ficar de olho.
A ideia pareceu divertir Amós.
— Não se preocupe com isso. E apesar de suas relações passadas com
Desjardins, eu não diria que ele é verdadeiramente um inimigo.
— Diga isso a ele — murmurei.
— Eu disse, Carter. Nos falamos algumas vezes enquanto eu estava no
Primeiro Nomo. Acho que o que você e Sadie conseguiram na Pirâmide
Vermelha abalou-o profundamente. Ele sabe que não teria derrotado Set
sem vocês. Ele ainda se opõe a vocês, mas se tivéssemos mais tempo, eu po-
deria ser capaz de convencê-lo...
Aquilo soou tão provável quanto Apófis e Rá virarem amigos no Face-
book, mas eu decidi não dizer nada. Amós passou sua mão sobre a mesa e
disse um encantamento. Uma holografia de Rá, vermelha, apareceu – uma
réplica em miniatura da estátua da sala de práticas.
O deus do sol se parecia com Hórus: um homem com cabeça de falcão.
Mas não como Hórus, Rá usava um disco solar como uma coroa e segurava
um cajado de pastor e um mangual de guerra – os dois símbolos do faraó.
Ele estava vestido com trajes em vez de armadura, sentado calmamente e
majestosamente em seu trono, como se estivesse feliz de assistir os outros
lutando. A imagem do deus parecia estranha em vermelho, brilhando com
a cor do Caos.
— Outra coisa que você deve considerar — Amós advertiu. — Eu não digo

82
CARTER

isso para te desencorajar, mas você perguntou por que Rá queria que paras-
sem de acordá-lo. O Livro de Rá foi dividido por uma razão. Foi feito, inten-
cionalmente, para ser difícil encontrar, então só o merecedor conseguiria.
Você pode esperar desafios e obstáculos em sua missão. Os outros dois rolos
vão ser no mínimo tão protegidos quanto o primeiro. E você pode perguntar
para si mesmo: O que acontece se você acordar um deus que não quer ser
acordado?
As portas da biblioteca foram abertas, e eu quase pulei da minha cadeira.
Cleo e outras três garotas entraram, conversando e rindo com seus braços
cheios de rolos.
— Aqui está minha classe de pesquisa — Amós agitou a mão, e a hologra-
fia de Rá desapareceu. — Nós falaremos novamente, Carter, talvez depois do
almoço.
Eu assenti, mas mesmo assim tinha uma suspeita de que nunca termina-
ríamos nossa conversa. Quando olhei para trás, para a porta da biblioteca,
Amós estava cumprimentando seus estudantes e casualmente limpando as
cinzas da carapaça de escaravelho da mesa.

Eu fui para o meu quarto e encontrei Khufu caído na cama, surfando pelos
canais de esportes. Ele estava vestindo sua camiseta favorita dos Lakers e
tinha uma vasilha de Cheetos sobre seu estômago. Desde que os nossos re-
crutas se mudaram, o Grande Salão ficou muito barulhenta para Khufu ver
TV em paz, então ele decidiu virar meu companheiro de quarto.
Acho que isso foi uma honra, mas dividir espaço com um babuíno não
era fácil. Você acha que cães e gatos soltam pelos? Tente tirar pelo de macaco
de suas roupas.
— O que foi? — perguntei.
— Agh!
Isso é basicamente o que ele sempre diz.
— Ótimo — eu disse a ele. — Vou estar na varanda.
Ainda estava frio e chovendo lá fora. O vento do Rio East faria os pin-
guins de Felix se arrepiarem, mas eu não liguei. Pela primeira vez no dia,
finalmente podia ficar sozinho.
Desde que nossos recrutas vieram para a Mansão do Brooklyn, eu me

83
O TRONO DE FOGO

senti como se estivesse no centro do palco. Eu tinha que agir confiante


mesmo quando tinha dúvidas. Não podia perder minha calma com ninguém
(bem, tirando Sadie de vez em quando), e quando as coisas davam errado,
não podia reclamar muito alto. As crianças vieram de longe para treinar com
a gente. Muitas delas tinham lutado com monstros e magos no caminho. Eu
não podia admitir que não tinha ideia do que estava fazendo, ou me pergun-
tar se essa coisa de caminho-de-deus iria matar a todos nós. Eu não podia
dizer, Agora que vocês estão aqui, talvez isso não seja uma boa ideia.
Mas teve muitos momentos que foi assim que me senti. Com Khufu ocu-
pando meu quarto, a varanda era o único lugar que eu podia ficar deprimido
na solidão.
Olhei do rio para Manhattan. Era uma ótima vista. Quando Sadie e eu
tínhamos chegado à Mansão do Brooklyn, Amós tinha nos dito que magos
tentavam ficar longe de Manhattan. Disse que Manhattan tinha outros pro-
blemas, seja lá o que significava. E às vezes, quando eu olhava através da
água, eu podia jurar que estava vendo coisas. Sadie riu sobre isso, mas uma
vez eu vi cavalos voadores. Provavelmente eram só as barreiras mágicas da
mansão causando ilusões de ótica, mas ainda assim, era estranho.
Eu me virei para a única mobília da varanda: minha tigela de cristalo-
mancia. Parecia uma banheira de pássaros – só um pires de bronze em um
pedestal de pedra – mas era meu item mágico favorito. Walt fez para mim
assim que chegou.
Um dia, eu mencionei que seria bom saber o que estava acontecendo em
outros lugares, então ele me fez essa tigela.
Eu via iniciantes usá-las no Primeiro Nomo, mas eles sempre pareciam
ter dificuldade para dominá-la. Felizmente, Walt era um especialista em en-
cantamentos. Se minha tigela de cristalomancia fosse um carro, seria um
Cadillac, com direção hidráulica, transmissão automática e assentos mais
quentes. Tudo que eu tinha que fazer era limpá-lo com óleo de oliva e falar
uma palavra de comando. A tigela me mostraria tudo, contanto que eu pu-
desse visualizá-lo mentalmente e não estivesse protegido por magia. Pessoas
ou lugares que vi pessoalmente ou que significou muito para mim, esses ge-
ralmente eram fáceis.
Eu procurei por Zia centenas de vezes sem sorte. Tudo o que eu sabia era

84
CARTER

que seu antigo professor, Iskandar, tinha colocado ela em um sono mágico
e a escondido em algum lugar, substituindo-a por um shabti para deixá-la a
salvo; mas eu não tinha ideia de onde a Zia verdadeira estava dormindo.
Tentei algo novo. Eu passei minha mão sobre o pires e imaginei o Lugar
de Areias Vermelhas. Nada aconteceu. Eu nunca estivera lá, não tinha ideia
de como parecia além de possivelmente ser vermelho e arenoso. O óleo só
mostrou meu próprio reflexo.
Certo, então eu não podia ver Zia. Eu fiz a melhor coisa depois. Me con-
centrei em sua sala secreta no Primeiro Nomo. Eu estive lá só uma vez, mas
lembrava cada detalhe. Foi o primeiro lugar onde eu me senti próximo de
Zia. A superfície do óleo ondulou e virou um vídeo mágico.
Nada tinha mudado na sala. Velas mágicas ainda queimavam na mesa
pequena. As paredes estavam cobertas de fotografias de Zia – fotos da vila,
de sua família no Nilo, sua mãe e seu pai, Zia como uma criança pequena.
Zia havia me contado a história de como seu pai tinha desenterrado uma
relíquia egípcia e acidentalmente soltou um monstro na vila. Magos vieram
derrotar o monstro, mas não antes da cidade inteira ser destruída. Só Zia,
escondida por seus pais, tinha sobrevivido. Iskandar, o antigo Sacerdote-Lei-
tor Chefe, levou-a para o Primeiro Nomo e a treinou. Ele era como um pai
para ela.
Então, no último Natal, os deuses foram soltos no Museu Britânico. Um
deles – Néftis – havia escolhido Zia como hospedeira. Já que um “deus me-
nor” era punido por morte no Primeiro Nomo, quer você hospede o espírito
do deus ou não, Iskandar escondeu Zia longe. Ele provavelmente a traria de
volta depois de resolver as coisas, mas havia morrido antes de isso acontecer.
A Zia que eu havia conhecido era uma réplica, mas eu tinha que acreditar
que o shabti e a Zia verdadeira compartilhavam pensamentos. Onde quer
que a verdadeira Zia estivesse, ela se lembraria de mim quando acordasse.
Ela saberia que nós compartilhávamos uma conexão – talvez o começo de
uma grande relação. Eu não podia aceitar que eu havia me apaixonado por
nada mais que um pedaço de cerâmica. E definitivamente não podia aceitar
que Zia estava além do meu poder de resgate.
Me concentrei na imagem no óleo. Ampliei uma fotografia de Zia nos
ombros de seu pai. Ela era jovem na foto, mas você podia dizer que ela seria

85
O TRONO DE FOGO

bonita quando crescesse. Seu cabelo preto brilhante estava cortado curto,
como quando eu a conheci. Seus olhos eram âmbar brilhantes. O fotógrafo
a pegou no meio da risada, tentando cobrir os olhos de seu pai com suas
mãos. Seu sorriso irradiava uma travessura brincalhona.
Eu vou destruir a garota que você procura, a cobra de três cabeças disse, assim
como destruí sua vila.
Eu tinha certeza de que ele falava da vila de Zia. Mas o que um ataque
de seis anos atrás tinha a ver com a ascensão de Apófis agora? Se não foi só
um acidente qualquer, se Apófis quis destruir a casa de Zia, então por quê?
Eu tinha que encontrar Zia. Não era mais pessoal. Ela estava conectada
de algum jeito com a batalha que estava vindo com Apófis. E se o aviso da
cobra fosse verdade, se eu tivesse que escolher entre encontrar o Livro de Rá
ou salvar Zia? Bem, eu já tinha perdido minha mãe, meu pai, e minha antiga
vida pelo objetivo de parar Apófis. Eu não iria perder Zia também.
Estava pensando o quão forte Sadie me chutaria se ela me ouvisse di-
zendo isso, quando alguém bateu na porta da varanda de vidro.
— Ei.
Walt estava no vão da porta, segurando a mão de Khufu.
— Hã, espero que você não ligue. Khufu me deixou entrar.
— Agh! — Khufu confirmou.
Ele levou Walt para fora, então pulou da grade, desconsiderando a queda
de cem pés no rio abaixo.
— Sem problemas — respondi.
Não que eu tivesse escolha. Khufu adorava Walt, provavelmente porque
jogava basquete melhor que eu.
Walt apontou para a tigela de cristalomancia.
— Como isso está funcionando pra você?
A imagem do quarto de Zia ainda tremeluzia no óleo. Eu acenei minha
mão sobre a tigela e mudei para outra coisa. Desde que estive pensando so-
bre Sadie, eu escolhi a sala do vovô e dá vovó.
— Funcionando bem.
Me virei para Walt.
— Como você se sente?
Por alguma razão, todo o seu corpo ficou tenso. Ele olhou para mim

86
CARTER

como se eu estivesse tentando encurralá-lo.


— Do que você está falando?
— O acidente na sala de treinamento. A cobra de três cabeças. Do que
você acha que eu estou falando?
Os tendões de seu pescoço relaxaram.
— Certo... desculpe, só uma manhã estranha. Amós deu uma explicação?
Me perguntei o que eu disse para chateá-lo, mas decidi deixar isso passar.
Eu o enchi com minha conversa com Amós. Walt era geralmente calmo com
as coisas. Era um bom ouvinte. Mas ele ainda parecia cauteloso, nervoso.
Quando eu terminei de falar, ele passou por cima da grade onde Khufu
estava empoleirado.
— Apófis soltou aquela coisa na casa? Se não tivéssemos parado aquilo...
— Amós acha que a serpente não tinha muito poder. Estava aqui só para
entregar uma mensagem e nos assustar.
Walt balançou a cabeça em desespero.
— Bem... agora conhece nossas habilidades, eu acho. Sabe que Felix arre-
messa um sapato bem.
Eu não podia ajudar, mas sorri.
— Sim. Só que não era essa habilidade que eu estava pensando. Aquela
luz cinza com que você explodiu a cobra... e o jeito como manipulou
o shabti de prática e o transformou em pó...
— Como eu fiz isso? — Walt deu de ombros impotente. — Sinceramente,
Carter, eu não sei. Estive pensando sobre isso desde então, e... foi só ins-
tinto. Primeiro eu pensei que talvez o shabti tivesse algum tipo de feitiço de
autodestruição colocado nele, e eu sem querer eu acionei. Às vezes eu posso
fazer isso com itens mágicos, fazer com que eu os ative ou os desligue.
— Mas isso não explicaria como você fez isso de novo com a serpente.
— Não — ele concordou.
Ele parecia até mais distraído pelo incidente do que eu. Khufu começou
a arrumar o cabelo de Walt, procurando por piolhos, e Walt nem mesmo
tentou pará-lo.
— Walt... — hesitei, não querendo pressioná-lo. — Essa nova habilidade,
transformar as coisas em pó, não teria nada a ver com... você sabe, o que
você estava dizendo para Jaz?

87
O TRONO DE FOGO

Lá estava ele de novo: o olhar de um animal enjaulado.


— Eu sei — falei rapidamente — não é da minha conta. Mas ultimamente
tenho agido perturbado. Se tiver alguma coisa que eu possa fazer...
Ele olhou para baixo para o rio. Ele parecia muito deprimido, Khufu
grunhiu e bateu em seu ombro.
— Às vezes me pergunto por que vim pra cá — Walt disse.
— Você está brincando? — perguntei. — Você é ótimo em magia. Um dos
melhores! Você tem um futuro aqui.
Ele puxou alguma coisa de sua bolsa – um dos escaravelhos mortos da
sala de práticas.
— Obrigado. Mas o momento... é como uma piada de mau gosto. As coisas
são complicadas pra mim, Carter. E o futuro... eu não sei.
Senti que ele estava falando sobre mais do que o nosso prazo de quatro
dias para salvar o mundo.
— Olha, se tiver um problema... — comecei. — Se é alguma coisa sobre o
jeito que Sadie e eu ensinamos...
— Claro que não. Você tem sido ótimo. E Sadie...
— Ela gosta muito de você — falei. — Eu sei que ela pode ser um pouco
insistente. Se você quiser que ela se afaste...?
[Certo, Sadie. Talvez eu não devesse dizer aquilo. Mas você não é exata-
mente sutil quando gosta de alguém. Isso pode estar fazendo o cara ficar
desconfortável.]
Walt na verdade riu.
— Não, não é nada com Sadie. Eu gosto dela, também. Eu só...
— Agh!
Khufu grunhiu tão alto que me fez pular. Ele arreganhou os dentes. Me
virei e percebi que ele estava rosnando para a tigela de cristalomancia.
A cena ainda estava na sala do vovô e da vovó. Mas enquanto eu investi-
gava mais de perto, percebi que algo estava errado. As luzes da TV estavam
desligadas. O sofá estava tombado.
Senti um gosto metálico na boca.
Me concentrei em mover a imagem até poder ver a porta da frente. Tinha
sido esmagada em pedaços.
— O que há de errado? — Walt se aproximou de mim. — O que é isso?

88
CARTER

— Sadie... — foquei toda a minha força de vontade em encontrá-la.


Eu sabia bem que podia localizá-la instantaneamente, mas dessa vez o
óleo ficou preto. Uma dor aguda me apunhalou por trás dos olhos, e a su-
perfície do óleo pegou fogo.
Walt me puxou para trás antes de meu rosto ser queimado. Khufu gritou
em alarme e derrubou a tigela de bronze sobre a grade, arremessando-a em
direção ao Rio East.
— O que aconteceu? — Walt perguntou. — Eu nunca vi uma tigela fazer...
— Portal para Londres.
Eu tossi, minhas narinas ardendo com o óleo de oliva queimado.
— O mais próximo. Agora!
Walt pareceu entender. Sua expressão endureceu com determinação.
— Nosso portal ainda está em resfriamento. Vamos precisar voltar ao Mu-
seu do Brooklyn.
— O grifo — falei.
— Sim. Estou indo também.
Me virei para Khufu.
— Diga a Amós que estamos saindo. Sadie está encrencada. Sem tempo
para explicações.
Khufu grunhiu e pulou direto para o lado da balaustrada, pegando o
elevador expresso para baixo.
Walt e eu disparamos do meu quarto, correndo nas escadas para o te-
lhado.

89
S
A
7. Um presente do garoto com cabeça de
D
cachorro
I
E

BEM, VOCÊ JÁ FALOU O SUFICIENTE, querido irmão.


Enquanto você estava tagarelando, todo mundo me imaginou congelada
no vão da porta do apartamento do vovô e da vovó, gritando “AAHHHHH!”
E o fato de você e Walt saírem para Londres, assumindo que eu precisava
ser resgatada, cara!
É, bem justo. Eu precisava de ajuda. Mas aquele não era o momento.
Voltando a história: eu só ouvi uma voz sibilando de cima:
— Bem-vinda ao lar, Sadie Kane.
Claro, eu sabia que era má notícia. Minhas mãos formigavam como se
eu tivesse enfiado meus dedos em uma tomada elétrica. Tentei convocar
meu cajado e minha varinha, mas como já mencionei, sou um lixo em recu-
perar coisas do Duat em um pequeno espaço de tempo. Xinguei por não vir
preparada, mas sério, eu não podia esperar estar vestida de pijama de linho
e arrastar por toda a parte uma bolsa mágica para uma noite na cidade com
minhas colegas.
Pensei em fugir, mas vovô e vovó poderiam estar em perigo. Eu não po-
dia sair sem saber que eles estavam a salvo.
A escada rangia. No topo, a bainha de um vestido preto apareceu, junto
com pés calçados que não eram bem humanos. Os sapatos eram deformados

90
SADIE

e de couro, com unhas grandes como garras de uma ave. Quando a mulher
desceu o suficiente para mostrar seu corpo inteiro, soltei um gemido in-
digno.
Ela parecia ter cem anos, encurvada e magra. Seu rosto, orelhas e pescoço
vergavam com pele rosada enrugada e dobrada, como se ela tivesse se fun-
dido com uma lâmpada ultravioleta. Seu nariz era um bico inclinado. Seus
olhos brilhavam em órbitas cavernosas, e ela estava quase careca – só alguns
tufos pretos oleosos como ervas daninhas nasciam por seu couro cabeludo.
Seu vestido, no entanto, era absolutamente feito de pelos. Era meio es-
curo, peludo, e enorme como um casaco de pele seis vezes maior que ela.
Quando ela deu um passo em minha direção, o material mudou, e eu per-
cebi que não era pelo. O vestido era feito de penas pretas.
Suas mãos apareciam sob suas mangas – dedos parecidos com garras me
chamando para perto. Seu sorriso revelou dentes como pedaços de vidro.
Eu mencionei o cheiro? Não só cheiro de pessoa velha – era cheiro de pessoa
velha morta.
— Estive esperando por você — disse a bruxa. — Felizmente, sou muito
paciente.
Agarrei o ar à procura de minha varinha. Claro, eu não tive sorte. Sem
Ísis na minha cabeça, eu não podia mais simplesmente falar palavras de po-
der. Eu teria que ter meus truques. Minha única chance era ganhar tempo e
esperar poder reunir meus pensamentos o bastante pra acessar o Duat.
— Quem é você? — perguntei. — Cadê meus avós?
A bruxa alcançou o pé da escada. A dois metros de distância, seu vestido
emplumado parecia estar coberto com pedaços de... ah, meu Deus, aquilo
era carne?
— Não me reconhece, querida?
Sua imagem tremulou. Seu vestido se transformou em um roupão flo-
rido. Suas sandálias viraram chinelos verdes distorcidos. Ela tinha cabelo
curto grisalho, olhos azuis lacrimosos, e uma expressão de um coelho assus-
tado. Era o rosto da minha avó.
— Sadie? — Sua voz soava frágil e confusa.
— Vovó!
Sua imagem voltou para a bruxa emplumada de preto, seu terrível rosto

91
O TRONO DE FOGO

derretido sorrindo maliciosamente.


— Sim, querida. Sua família é sangue dos faraós, afinal de contas, perfei-
tos anfitriões para os deuses. Não me cause esforço, no entanto. O coração
de sua avó não é o que costumava ser.
Meu corpo inteiro começou a tremer. Eu fui possuída antes, e sempre
foi medonho. Mas isso – a ideia de alguma bruxa egípcia tomar posse da
minha pobre e velha vovó – era horripilante. Se eu tivesse mesmo sangue
dos faraós, estava virando gelo.
“Deixe-a em paz!”, eu queria gritar, mas tinha medo que minha voz saísse
mais como um grito apavorado.
— Saia dela!
A bruxa gargalhou.
— Oh, eu não posso fazer isso. Entenda, Sadie Kane, alguns de nós duvi-
damos de sua força.
— Alguns de quem, dos deuses?
Seu rosto enrugou, momentaneamente mudando em uma cabeça de pás-
saro horrível, careca, escamosa e rosa com um bico afiado longo. Então ela
se transformou de volta na bruxa gargalhando. Eu realmente desejava que
ela ajustasse sua mente.
— Não me preocupo com a força, Sadie Kane. Nos dias antigos, eu
mesma protegia o faraó se ele se provasse digno. Mas os fracos... Ah, uma
vez que eles caíam sob as sombras de minhas asas, eu nunca deixei-os sair.
Esperei eles morrerem. Esperei para me alimentar. E acho, minha querida,
que você vai ser minha próxima refeição.
Pressionei minha costa na porta.
— Eu te conheço — menti.
Desesperadamente, corri minha lista mental de deuses egípcios, ten-
tando identificar a bruxa velha. Eu ainda não era tão boa quanto Carter em
lembrar todos aqueles nomes estranhos. [E não, Carter. Isso não é um elo-
gio. Simplesmente significa que você é o maior nerd.] Mas depois de semanas
ensinando nossos recrutas, eu tinha ficado melhor.
Nomes tinham poder. Se eu pudesse descobrir o nome da minha ini-
miga, era um bom primeiro passo para derrotá-la. Um pássaro preto horrí-
vel... Um pássaro que se alimenta de morte...

92
SADIE

Para o meu espanto, eu na verdade lembrei de alguma coisa.


— Você é a deusa abutre — eu disse triunfante. — Neckbutt, não é?
A bruxa velha rosnou.
— Nekhbet!
Tudo bem, então eu cheguei perto.
— Mas é pra você ser supostamente uma deusa boa! — protestei.
A deusa abriu os braços. Eles viraram asas pretas, de plumagem emara-
nhada, zumbindo com moscas e cheirando a morte.
— Abutres são muito bons, Sadie Kane. Nós removemos os fracos e frá-
geis. Nós os rodeamos até morrerem, então nos alimentamos de suas carca-
ças, limpando o mundo de seu cheiro podre. Você poderia trazer Rá de
volta, uma carcaça velha de um deus do sol. Ele seria um faraó fraco no
trono dos deuses. Vai contra a natureza! Só a força pode viver. A fraqueza
tem que ser devorada.
Seu hálito cheirava a carniça.
Criaturas desprezíveis, abutres: sem dúvida as aves mais nojentas. Supus
que serviam a seu propósito, mas eles tinham que ser tão sujos e feios? Não
podíamos ser coelhos fofos ao invés de abutres?
— Certo — falei — Primeiro, saia da minha avó. Então, se você for um
bom abutre, vou te comprar algumas balas de hortelã.
Deveria ser um assunto delicado para Nekhbet. Ela se jogou em cima de
mim. Eu mergulhei de lado, subindo no sofá e derrubando-a no processo.
Nekhbet varreu a coleção chinesa da vovó para fora da estante.
— Você vai morrer, Sadie Kane! — ela disse. — Vou me limpar com seus
ossos. Então os outros deuses vão ver que você não era digna!
Esperei por outro ataque, mas ela só olhou para mim do outro lado do
sofá. Me ocorreu que os abutres geralmente não matavam. Eles esperavam a
sua presa morrer.
As asas de Nekhbet cobriram a sala. Sua sombra caiu sobre mim, me
envolvendo na escuridão. Comecei a me sentir encurralada, perdida como
um pequeno animal fraco.
Não tinha testado minha força de vontade contra os deuses antes, não
deveria reconhecer isso como magia – insistia incomodando no fundo da
minha mente, me incentivando a desistir em desespero. Mas eu tinha ficado

93
O TRONO DE FOGO

contra qualquer número de deuses horríveis no submundo. Eu podia aguen-


tar um pássaro velho sujo.
— Boa tentativa — eu disse. — Mas eu não vou deitar e morrer.
Os olhos de Nekhbet brilharam.
— Talvez isso leve algum tempo, minha querida, mas como eu te disse,
sou paciente. Se você não vai sucumbir, suas amigas mortais estarão aqui em
breve. Quais eram seus nomes... Liz e Emma?
— Deixe-as fora disso!
— Ah, elas fariam adoráveis aperitivos. E você nem mesmo disse olá para
seu querido e velho vovô ainda.
Sangue rugia em minhas orelhas.
— Onde ele está? — pedi.
Nekhbet olhou para o teto.
— Oh, ele estará junto em breve. Nós, abutres, gostamos de seguir um
grande e bom predador, você sabe, e esperamos por ele para fazer a matança.
Do andar de cima veio um som abafado – como se uma peça grande da
mobília fosse arremessada pela janela.
Vovô gritou:
— Não! Nã-ã-ã-ão!
Então sua voz mudou para um rugido de um animal furioso.
— NOOOOOOAHHH!
O fim da minha coragem derreteu em meus coturnos.
— O que... o que...
— Sim — Nekhbet disse. — Babi está acordando.
— B-bobby? Vocês têm um deus chamado Bobby?
— B-A-B-I — a deusa abutre rosnou. — Você é realmente muito estúpida,
não é querida?
O teto de gesso rachou sob o peso dos passos. Alguma coisa estava pi-
sando fundo na escada.
— Babi vai cuidar bem de você — Nekhbet prometeu. — E haverá muita
sobra para mim.
— Adeus — eu disse, e disparei pela porta.
Nekhbet não tentou me parar. Ela gritou atrás de mim:
— Uma caçada! Excelente!

94
SADIE

Fui para o outro lado da rua quando nossa porta da frente explodiu.
Olhando para trás, vi alguma coisa emergir das ruínas e poeira – uma forma
escura peluda grande demais para ser meu avô.
Eu não esperei para ter uma visão melhor.
Corri ao virar a esquina da South Colonnade e dei de cara com Liz e
Emma.
— Sadie! — Liz gritou, derrubando um presente de aniversário. — O que
há de errado?
— Não temos tempo para isso! — fale — Vamos!
— É bom ver você também. — Emma resmungou. — Para onde você está
correndo...
A criatura atrás de mim berrou, muito próxima agora.
— Explico depois — respondi. — A não ser que vocês queiram ser rasgadas
por um deus chamado Bobby, me sigam!

Olhando para trás, pude apreciar apenas o miserável aniversário que eu es-
tava tendo, mas naquela hora estava muito em pânico para sentir pena de
mim mesma devidamente.
Corremos pela South Colonnade, o rugido atrás de nós quase abafado
pelas reclamações de Liz e Emma.
— Sadie! — Emma disse. — Essa é uma das suas pegadinhas?
Ela tinha ficado um pouco mais alta, mas ainda parecia a mesma, com
seu tamanho desproporcional, óculos reluzentes e cabelo curto espetado. Ela
vestia uma minissaia de couro preta, uma blusa rosa e ridículas sandálias de
plataforma em que ela mal conseguia andar, muito menos correr. Quem é
aquele cara do rock ’n’ roll extravagante dos anos 70... Elton John? Se ele
tivesse uma filha indiana, deveria ser parecida com Emma.
— Não é uma pegadinha — jurei. — E pelo amor de Deus, joga esses sapa-
tos fora!
Emma parecia assustada.
— Você sabe quanto isso custou?
— Honestamente, Sadie — Liz interveio. — Para onde você está nos arras-
tando?
Ela estava vestida mais sensatamente com jeans e tênis de corrida, um

95
O TRONO DE FOGO

top branco e jaqueta de brim, mas parecia tão sem fôlego quanto Emma.
Escondido debaixo de seu braço, meu presente de aniversário estava ficando
um pouco achatado. Liz era ruiva com muitas sardas, e quando ficava com
vergonha ou cansada, seu rosto pálido ficava tão vermelho, que suas sardas
desapareciam. Sob circunstâncias normais, Emma e eu teríamos provocado
ela por isso, mas não hoje.
Atrás de nós, a criatura rugiu novamente. Eu olhei para trás, o que foi
um erro. Vacilei até parar, e minhas amigas correram até mim.
Por um breve momento, pensei “meu Deus, é Khufu”.
Mas Khufu não era do tamanho de um urso-pardo. Ele não tinha pelo
prateado brilhante, garras como cimitarras ou um olhar sedento de sangue.
O babuíno devastava o Canary Wharf parecendo que comeria qualquer
coisa, não só comidas terminadas com um O, e não teria dificuldade em me
rasgar membro a membro.
A única boa notícia: a atividade na rua havia distraído ele. Carros desvi-
avam para evitar a besta. Pedestres gritavam e corriam. O babuíno começou
a derrubar táxis, esmagar vitrines, e causar um tumulto geral. Assim que se
aproximou de nós, vi um pedaço de pano vermelho em seu braço esquerdo
– as sobras do casaco de lã favorito do vovô. Preso em sua testa estavam os
óculos do vovô.
Até aquele momento, o choque não havia me atingido em cheio. Aquela
coisa era meu avô, que nunca tinha usado magia, nunca fez nada para irritar
os deuses egípcios.
Tinha vezes que eu não gostava dos meus avós, especialmente quando
eles diziam coisas ruins sobre meu pai, ou ignoravam Carter, ou quando
deixaram Amós me levar embora no Natal sem uma luta. Mas ainda assim,
eles me criaram por seis anos. Vovô tinha me colocado em seu colo e lido
para mim suas histórias velhas e empoeiradas de criança. Tinha me vigiado
no parque e me levou ao zoológico inúmeras vezes. Tinha me comprado
doces, embora vovó desaprovasse. Ele pode ter tido um temperamento ruim,
mas era razoavelmente um velho aposentado inofensivo. Ele certamente não
merecia ter seu corpo possuído desse jeito.
O babuíno arrancou a porta de um bar e cheirou lá dentro. Fregueses
bêbados em pânico quebraram uma janela e saíram correndo pela rua, ainda

96
SADIE

segurando suas bebidas. Um policial correu em direção ao tumulto, viu o


babuíno, então se virou e correu para o outro lado, gritando em seu rádio
por reforços.
Quando enfrentavam eventos mágicos, os olhos mortais tendiam a en-
trar em curto circuito, mandando para o cérebro só imagens que podiam
entender. Eu não tinha ideia do que aquelas pessoas pensavam que estavam
vendo – possivelmente um animal de zoológico solto ou um pistoleiro enfu-
recido – mas eles sabiam o suficiente para fugir. Eu imaginei o que as câme-
ras de segurança de Londres fariam depois da cena.
— Sadie — Liz perguntou em uma voz muito baixa — o que é isso?
— Babi — eu disse. — A droga do deus dos babuínos. Ele é meu avô pos-
suído. E quer nos matar.
— Dá licença — Emma interviu. — Você acabou de dizer que um deus
babuíno quer nos matar?
O babuíno rugiu piscando e apertando os olhos como se tivesse esque-
cido do que estava fazendo. Talvez ele tenha herdado a distração do vovô e
a vista ruim. Talvez ele não tenha percebido que seus óculos estavam em sua
cabeça. Ele cheirou o chão, então berrou de frustração e esmagou a janela
de uma padaria.
Eu quase acreditei que ganhamos um pouco de sorte. Talvez pudéssemos
fugir. Então uma forma escura deslizou por cima, abrindo suas asas negras e
gritando:
— Aqui! Aqui!
Que maravilha. O babuíno tinha suporte aéreo.
— Dois deuses, na verdade — falei para as minhas amigas. — Agora, a não
ser que tenham mais perguntas, corram!
Dessa vez, Liz e Emma não precisaram de incentivo. Emma tirou seus
sapados, Liz deixou meu presente de lado – que pena – e descemos outra
rua.

Nós ziguezagueamos pelos becos, abraçando paredes para nos cobrir sempre
que o vulto da deusa mergulhava do alto. Ouvi Babi rugindo atrás de nós,
arruinando as noites das pessoas e esmagando a vizinhança; mas ele parecia
ter perdido nosso cheiro no momento.

97
O TRONO DE FOGO

Nós paramos em um T na rua enquanto decidíamos que caminho tomar.


Na nossa frente estava uma pequena igreja, um tipo de prédio antigo que
você as vezes encontra em Londres – sombrio de pedra medieval firmada
entre uma cafeteria e uma farmácia com sinais de neon oferecendo produtos
capilares de um por três. A igreja tinha um pequeno cemitério fechado com
uma cerca enferrujada, mas eu não teria prestado muita atenção se uma voz
de dentro do cemitério não tivesse sussurrado.
— Sadie.
Foi um milagre meu coração não ter pulado para fora da minha garganta.
Virei-me e me encontrei cara-a-cara com Anúbis. Ele estava em sua forma
mortal, como um garoto adolescente com cabelo preto soprado pelo vento
e olhos castanhos calorosos. Vestia uma camiseta Morte ao Tempo e jeans
escuros que serviram extremamente bem nele.
Liz e Emma não eram conhecidas por serem boas ao redor de rapazes
com boa aparência. Na verdade, seus cérebros mais ou menos param de fun-
cionar.
Liz gaguejou palavras de uma sílaba.
— Oh... ah... oi... quem... o quê...?
Emma perdeu o controle de suas pernas e tropeçou em mim.
Mandei um olhar severo para as duas, então me virei para Anúbis.
— Era a vez de alguém amigável se apresentar — reclamei. — Tem um
babuíno e um abutre tentando nos matar. Você poderia, por favor, nos aju-
dar?
Anúbis mordeu os lábios, e eu senti que ele não me trouxe boas notícias.
— Venha ao meu território — ele disse, abrindo o portão do cemitério. —
Precisamos conversar, e não há muito tempo.
Emma tropeçou em mim de novo.
— Seu, hum, território?
Liz gaguejou.
— Quem... ah...?
— Shhh — disse a elas, tentando ficar calma, como se conhecesse caras
quentes em cemitérios todo dia.
Olhei para a rua e não vi sinais de Babi ou Nekhbet, mas ainda podia
ouvi-los – um deus babuíno rugindo, a deusa abutre gritando com a voz da

98
SADIE

minha avó (se vovó tivesse comido pedregulhos e tomado esteroides).


— Por aqui! Por aqui!
— Esperem aqui — falei para minhas amigas, e entrei no portão.
Imediatamente, o ar ficou mais frio. Névoa subia do solo encharcado. As
lápides brilhavam, e tudo do lado de fora da cerca ficou levemente fora de
foco. Anúbis me faz sentir desequilibrada de várias maneiras, claro, mas eu
reconheci esse efeito. Estávamos deslizando para o Duat, passando o cemi-
tério em dois níveis de uma vez: o mundo de Anúbis e o meu.
Ele me levou a um sarcófago de pedra em ruínas e curvou-se respeitosa-
mente.
— Beatrice, você liga se nós nos sentarmos?
Nada aconteceu. A inscrição no sarcófago foi desgastada séculos atrás,
mas eu supus que era o lugar do repouso final de Beatrice.
— Obrigado.
Anúbis gesticulou para eu me sentar.
— Ela não liga.
— O que acontece se ela ligar? — me sentei um pouco apreensiva.
— O Décimo Oitavo Nomo — Anúbis disse. — É onde você deve ir. Vlad
Menshikov tem a segunda parte do Livro de Rá na gaveta no topo de sua
mesa, em seu quartel-general em São Petersburgo. É uma armadilha, é claro.
Ele está esperando te atrair. Mas se você quer o pergaminho, não tem esco-
lha. Você pode ir essa noite, antes que ele tenha tempo de reforçar suas
defesas ainda mais. E Sadie, se os outros deuses descobrirem que estou te
falando isso, vou estar em um grande problema.
Eu olhei para ele. Às vezes ele agia tanto como um adolescente, que era
difícil acreditar que ele tinha milhares de anos. Acho que vinha de viver uma
vida protegido no País da Morte, não afetado pela passagem do tempo. O
garoto realmente precisava sair mais.
— Você está preocupado em arrumar problemas? — perguntei. — Anúbis,
não que eu seja ingrata, mas nós temos problemas maiores no momento.
Dois deuses possuíram meus avós. Se você quiser dar uma mão...
— Sadie, não posso intervir. — Ele virou as palmas das mãos de frustração.
— Eu te disse isso quando nos conhecemos, isso não é um corpo físico real.
— Que desperdício — murmurei.

99
O TRONO DE FOGO

— O quê?
— Nada. Continue.
— Posso me manifestar em lugares de morte, como esse cemitério, mas
há muito pouco que eu possa fazer fora do meu território. Agora, se você já
estiver morta e quiser um bom funeral, posso te ajudar, mas...
— Oh, obrigada!
Em algum lugar próximo, o deus babuíno rugiu. Vidros quebraram e
tijolos desmoronaram. Minhas amigas gritaram para mim, mas os sons eram
distorcidos e abafados, como se estivesse ouvindo debaixo d’água.
— Se eu for sem minhas amigas — perguntei para Anúbis — os deuses vão
deixá-las em paz?
Anúbis sacudiu a cabeça.
— Nekhbet ataca os fracos. Ela sabe que machucar seus amigos vai te
enfraquecer. Quanto a Babi, ele representa as qualidades escuras de vocês
primatas: fúria assassina, força incontrolável...
— Nós primatas? — eu disse. — Desculpa, você me chamou de uma ba-
buína?
Anúbis me estudou com uma espécie de admiração confusa.
— Eu esqueci do quão irritante você é. Meu ponto é que ele vai te matar
só por matar.
— E você não pode me ajudar.
Ele me deu um olhar choroso com aqueles magníficos olhos castanhos.
— Eu te disse sobre São Petersburgo.
Deus, ele tinha uma boa aparência, e era tão irritante.
— Bem, então, deus de praticamente nada de útil — eu disse — qualquer
outra coisa antes de eu me matar?
Ele levantou sua mão. Um estranho tipo de faca se materializou em seu
punho. Tinha a forma de uma navalha: longa, curvada e perversamente afi-
ada ao longo da extremidade, feita de metal escuro.
— Pegue isso — Anúbis falou. — Vai ajudar.
— Você viu o tamanho do babuíno? Eu tenho que fazer a barba dele?
— Não é para a luta com Babi ou Nekhbet. Mas você vai precisar disso
em breve para alguma coisa ainda mais importante. É uma lâmina netjeri,
feito de ferro de meteoro. É usado para uma cerimônia que eu te disse uma

100
SADIE

vez, a abertura da boca.


— Sim, bem, se eu sobreviver à essa noite, vou garantir de aproveitar essa
navalha para abrir a boca de alguém. Muito obrigada.
Liz gritou:
— Sadie!
Através da neblina do cemitério, eu vi Babi a alguns quarteirões de dis-
tância, estorvando em direção da igreja. Ele nos viu.
— Vá para o subterrâneo — Anúbis sugeriu, me pondo em pé. — Há uma
estação na metade do quarteirão ao sul. Eles não vão ser capazes de te seguir
estando bem debaixo da terra. Água corrente também é boa. As criaturas do
Duat são enfraquecidas ao atravessar um rio. Se você lutar contra elas, en-
contre uma ponte pelo Tâmisa. Oh, e eu disse ao seu motorista para vir te
buscar.
— Meu motorista?
— Sim. Ele não estava planejando te conhecer até amanhã, mas...
Uma caixa vermelha do Correio Real foi arremessada no ar e colidiu
com o prédio ao lado. Minhas amigas gritavam para eu me apressar.
— Vá — Anúbis disse. — Me desculpe, não posso fazer mais nada. Mas
feliz aniversário, Sadie.
Ele deu um passo para frente e me beijou. Então ele derreteu em névoa
e desapareceu. O cemitério ficou normal de novo – uma parte do mundo
normal não cintilante.
Eu deveria ter ficado nervosa com Anúbis. Me beijar sem permissão, que
nervos! Mas eu fiquei ali, paralisada, olhando para o sarcófago desintegrado
de Beatrice, até Emma gritar:
— Sadie, vamos!
Minhas amigas agarraram meus braços, e eu lembrei como correr.
Nós disparamos para a estação de metrô Canary Wharf. O babuíno rugia
e esmagava através do tráfego atrás de nós. Acima, Nekhbet guinchava:
— Lá vão elas! Mate-as!
— Quem era aquele garoto? — Emma perguntou enquanto mergulháva-
mos na estação. — Deus, ele era quente.
— Um deus — murmurei. — Sim.
Enfiei a navalha negra em minha bolsa e desci a escada rolante, meus

101
O TRONO DE FOGO

lábios ainda formigando pelo meu primeiro beijo.


E se eu estava cantarolando “Parabéns pra você” e sorrindo estupida-
mente enquanto fugia pela minha vida – bem, não era da conta de ninguém,
não é?

102
S
A
8. Grandes atrasos na estação de Waterloo
D
(desculpem-nos pelo babuíno gigante)
I
E

O METRÔ DE LONDRES tinha uma acústica encantadora. O som ecoava atra-


vés dos túneis, assim, enquanto nós descíamos, eu podia ouvir o barulho
dos trens, dos músicos tocando por moedas e, claro, o deus babuíno assas-
sino que rugia por sangue enquanto pulverizava as catracas atrás de nós.
Com as ameaças de terrorismo e segurança intensificada, podia-se ter es-
perado alguns policiais à disposição, mas, infelizmente, não a esta hora da
noite, e não nesse tipo de estação relativamente pequena. Sirenes tocaram
na rua acima, mas estaríamos mortas há muito tempo quando a ajuda mortal
chegasse. E se a polícia tentasse atirar no babuíno enquanto ele possuía o
corpo do vovô... não. Eu me forcei a não pensar sobre isso.
Anúbis tinha sugerido que eu viajasse pelo subterrâneo. E que se eu ti-
vesse de lutar, deveria encontrar uma ponte. Eu tive que ficar com esse
plano.
Não havia muita escolha de trens em Canary Wharf. Felizmente, a Linha
Jubilee estava rodando em tempo. Fomos para a plataforma, pulamos a
bordo do último vagão quando as portas estavam se fechando e desabamos
em um banco.
O trem seguiu para dentro do túnel escuro. Atrás de nós, eu não vi ne-
nhum sinal de Babi ou Nekhbet perseguindo-nos.

103
O TRONO DE FOGO

— Sadie Kane — Emma ofegou. — Você vai, por favor, nos dizer o que está
acontecendo?
Minhas pobres amigas. Eu nunca tinha colocado-as em tantos proble-
mas, nem mesmo quando ficamos presas no vestiário masculino na escola.
(Longa história, envolvendo uma aposta de cinco libras, cuecas de Dylan
Quinn, e um esquilo. Talvez eu te conte mais tarde).
Os pés de Emma estavam com cortes e cheios de bolhas por correr des-
calça. Seu suéter rosa parecia uma pele de poodle mutilada, e seus óculos
haviam perdido várias lantejoulas.
O rosto de Liz estava vermelho como se houvesse recebido um cartão de
dia dos namorados. Ela tinha tirado sua jaqueta jeans, o que nunca fazia, já
que ela estava sempre com frio. Seu top branco estava manchado de suor.
Seus braços eram tão sardentos, que me lembrou das constelações de Nut,
deusa do céu.
Das duas, Emma parecia mais irritada, esperando pela minha explicação.
Liz parecia horrorizada, sua boca se movia como se quisesse falar, mas tivesse
perdido suas cordas vocais. Eu pensei que ela faria algum comentário sobre
os malditos deuses nos perseguindo, mas quando ela finalmente encontrou
sua voz, ela disse:
— Aquele garoto te beijou!
Liz tem suas prioridades bem definidas.
— Eu vou explicar — prometi. — Sei que fui uma amiga horrível por arras-
tar vocês duas para isso. Mas, por favor, me deem um minuto. Preciso me
concentrar.
— Concentrar-se em quê? — Emma perguntou.
— Emma, silêncio! — Liz censurou. — Ela disse para deixá-la se concentrar.
Fechei os olhos, tentando acalmar os meus nervos. Não foi fácil, especi-
almente com público. Sem o meu material, no entanto, eu estava indefesa,
e não era provável que eu tivesse outra chance de recuperá-los. Pensei: Você
pode fazer isso, Sadie. É só alcançar a outra dimensão. Só abrir um rasgo no tecido
da realidade.
Estendi a mão. Nada aconteceu. Tentei de novo, e minha mão desapare-
ceu no Duat. Liz gritou. Felizmente, não perdi minha concentração (ou mi-
nha mão). Meus dedos se fecharam em torno da alça de minha bolsa mágica

104
SADIE

e puxei-a.
Emma arregalou os olhos.
— Isso foi incrível. Como você fez isso?
Fiquei me perguntando a mesma coisa, na verdade. Dadas as circunstân-
cias, eu não podia acreditar que tinha conseguido apenas em minha segunda
tentativa.
— É, hum... magia — respondi.
Minhas colegas me encararam, confusas e assustadas, e a enormidade dos
meus problemas de repente desabou sobre mim.
Um ano atrás, Liz, Emma e eu teríamos subido neste trem para ir ao
shopping ou ao cinema. Nós teríamos rido dos ridículos toques do telefone
da Liz ou das fotos editadas das meninas que Emma detestava na escola. As
coisas mais perigosas na minha vida tinham sido a culinária da vovó e o
temperamento do vovô quando via minhas notas do trimestre.
Agora, vovô era um babuíno gigante e vovó era um abutre do mal. Mi-
nhas amigas me olhavam como se eu tivesse caído de outro planeta, o que
não estava longe da verdade.
Mesmo com o meu material mágico na mão, eu não tinha ideia do que
ia fazer. Eu não tinha mais os plenos poderes de Ísis ao meu comando. Se
tentasse lutar com Babi e Nekhbet, eu poderia ferir meus avós e provavel-
mente me matar. Mas se eu não impedi-los, quem o faria? Possessão divina
eventualmente mata o hospedeiro humano. Isso quase aconteceu com o tio
Amós, que era um mago e sabia como se defender. Vovó e Vovô eram ido-
sos, frágeis e muito “não-mágicos”. Eles não tinham muito tempo.
Desespero, muito pior do que as asas da deusa abutre, despencou sobre
mim. Eu não sabia que estava chorando até Liz colocar a mão no meu om-
bro.
— Sadie, querida, desculpa. É apenas... um pouco estranho, sabe? Diga-
nos qual é o problema. Deixe-nos ajudar.
Minha respiração estava instável. Eu sentia tanta falta das minhas cole-
gas. Eu sempre as achei um pouco estranhas, mas agora elas pareciam alegres
e normais, parte de um mundo que não era mais meu. Ambas estavam ten-
tando bancar as corajosas, mas eu sabia que elas estavam apavoradas por
dentro. Eu gostaria de deixá-las, escondê-las, mantê-las fora de perigo, mas

105
O TRONO DE FOGO

me lembrei do que tinha dito Nekhbet: Elas vão se tornar aperitivos encantado-
res. Anúbis tinha advertido que a deusa abutre ia caçar as minhas amigas e
machucá-las apenas para me atingir. Pelo menos se elas estivessem comigo,
eu poderia tentar protegê-las. Eu não queria arruinar suas vidas do jeito que
a minha foi arruinada, mas eu devia a elas a verdade.
— Isso pode soar absolutamente maluco — avisei.
Eu contei-lhes a versão mais curta possível de porque eu deixei Londres,
como os deuses egípcios tinham escapado no mundo e como eu descobri
minha ascendência como uma maga. Eu disse a elas sobre a nossa luta com
Set, a ascensão de Apófis, e nossa ideia insana para despertar o deus Rá.
Duas estações passaram, mas eu me senti tão bem ao contar a história às
minhas amigas que perdi a noção do tempo.
Quando eu terminei, Liz e Emma se entreolharam, sem dúvida, procu-
rando como dizer delicadamente que eu estava maluca.
— Eu sei que parece impossível, mas...
— Sadie, acreditamos em você — disse Emma.
Eu pisquei incrédula.
— Acreditam?
— Claro que sim.
O rosto de Liz estava corado, do jeito que ela fica depois de vários pas-
seios de montanha russa.
— Eu nunca ouvi você falar sobre qualquer coisa tão a sério. Você... você
mudou.
— É só que eu sou uma maga agora, e... e eu não posso acreditar no
quanto isso soa estúpido.
— É mais do que isso — Emma estudava meu rosto como se eu estivesse
me transformando em algo assustador — você parece mais velha. Mais ma-
dura.
A voz dela estava com um toque de tristeza, e eu percebi que minhas
amigas e eu estávamos nos distanciando. Era como se nós estivéssemos em
lados opostos de um largo abismo, e eu tinha a triste certeza de que a fenda
estava grande demais para que eu pulasse para o outro lado.
— Seu namorado é maravilhoso — Liz acrescentou, provavelmente pra me
animar.

106
SADIE

— Ele não é meu... — Eu parei.


Não havia como convencer Liz. Além disso, eu estava tão confusa sobre
Anúbis que nem sabia por onde começar.
O trem desacelerou. Eu vi o letreiro da estação de Waterloo.
— Oh deus. — falei — Eu devia ter saído na Ponte de Londres, eu preciso
de uma ponte!
— Não podemos voltar? — Liz perguntou.
Um rugido no túnel atrás de nós respondeu a pergunta. Eu vi um corpo
enorme com um pelo prateado brilhante galopando ao longo dos trilhos.
Seu pé tocou o metal do trilho e faíscas voaram, mas o deus babuíno se
moveu pesadamente, inabalado. Quando o trem freou, Babi começou a ga-
nhar terreno.
— Sem volta — falei — vamos ter de fazer isso na Ponte de Waterloo.
— Ela está a quase um quilômetro da estação! — Liz protestou — e se ele
nos alcançar?
Eu vasculhei minha bolsa e peguei meu novo cajado. Instantaneamente
ele se expandiu até sua extensão total. O leão entalhado na ponta resplande-
cia com uma luz dourada.
— Então eu acho que teremos de lutar.

Devo descrever a Estação de Waterloo como ela era antes ou depois de des-
truirmos ela? O pátio principal era enorme, tinha um piso de mármore po-
lido, várias lojas, quiosques e um teto de vidro com vigas que era alto o sufi-
ciente para que um helicóptero voasse tranquilamente sob ele.
Rios de pessoas entravam e saiam, misturavam-se, separavam-se e ocasio-
nalmente colidiam enquanto iam em direção as diversas escadas rolantes e
plataformas.
Quando eu era pequena, a estação me apavorava. Eu temia que o gigante
relógio vitoriano suspenso no teto caísse e me esmagasse. As vozes dos locu-
tores eram muito altas (eu prefiro ser a coisa mais barulhenta no ambiente
em que estou, obrigada). As massas de trabalhadores embaixo das tabuas de
partida, procurando por seus trens me lembravam uma multidão em um
filme de zumbi que, eu admito, não devia ter assistido ainda criança, mas eu
sempre fui muito precoce.

107
O TRONO DE FOGO

De qualquer forma, minhas colegas e eu estávamos correndo pela estação


principal, empurrando todos em nosso caminho até a saída mais próxima,
quando uma escadaria atrás de nós explodiu.
A multidão se dispersou quando Babi saiu dos escombros. Empresários
gritavam, deixando cair suas maletas e correndo por suas vidas. Liz, Emma
e eu nos esprememos contra a parede de um quiosque para evitar sermos
pisoteadas por um grupo de turistas gritando em italiano.
Babi uivou. Seu pelo estava coberto de sujeira e fuligem de sua corrida
pelo túnel. O casaco de malha do vovô estava em frangalhos em seu braço,
mas miraculosamente seus óculos continuavam no rosto.
Ele cheirou o ar, provavelmente tentando captar meu cheiro. Então uma
sombra negra passou por cima de sua cabeça.
— Aonde está indo, Sadie Kane? — Guinchou Nekhbet.
Ela disparou pelo terminal, descendo até a já aterrorizada multidão.
— Você vai fugir da luta? Você não tem honra!
A calma voz de um locutor ecoou pelo terminal.
— O trem das 8:02 para Basingstoke chegará pela plataforma três.
ROOOAR!
Babi bateu numa estátua de bronze de alguém famoso e arrancou sua
cabeça. Um policial correu armado com uma pistola. Antes que eu pudesse
gritar pra que ele parasse, ele atirou em Babi. Liz e Emma gritaram. A bala
ricocheteou no pelo de Babi como se ele fosse feito de titânio e quebrou um
letreiro do Mcdonalds. O policial desmaiou.
Eu nunca tinha visto tantas pessoas esvaziarem o terminal tão rápido.
Cheguei a pensar em segui-los, mas decidi que seria muito perigoso. Eu não
podia deixar esses deuses insanos matarem centenas de pessoas apenas por-
que eu estava entre elas; e se tentássemos segui-las, apenas seriamos presas
ou pisoteadas pelas pessoas em sua fuga desesperada.
— Sadie, olha!
Liz apontou para cima e Emma gemeu.
Nekhbet deslizou pela viga mestra e lá se empoleirou com os pombos.
Ela olhou para baixo e gritou para Babi.
— Ela está aqui, meu caro! Aqui!
— Eu queria que ela se calasse — resmunguei.

108
SADIE

— Ísis foi tola ao escolher você — Nekhbet gritou — eu vou comer suas
entranhas!
ROOOAR!, concordou Babi vigorosamente.
— O trem das 8:14 para Brighton está atrasado — disse o locutor — Nós pedi-
mos desculpas pela inconveniência.
Babi nos viu. Seus olhos ardiam em uma fúria primitiva, mas eu também
vi algo do vovô em sua expressão. O jeito que ele enrugou as sobrancelhas e
projetou o queixo do mesmo jeito que o vovô fazia quando ficava zangado
com a televisão e gritava com os jogadores de rúgbi. Ver essa expressão no
deus babuíno quase me fez perder a coragem.
Eu não iria morrer aqui. Não iria deixar esses dois deuses repulsivos ma-
chucarem minhas amigas e matarem meus avós.
Babi veio devagar em nossa direção. Agora que ele nos achara, não tinha
nenhuma pressa em nos matar. Ele deu um profundo latido da esquerda
para a direita, como se estivesse convidando, chamando amigos para o jan-
tar. Emma cravou os dedos em meu braço e Liz sussurrou:
— Sadie...?
A multidão já tinha se dispersado quase completamente. Nenhum poli-
cial a vista. Talvez tenham fugido ou talvez estivessem todos indo para Ca-
nary Wharf sem perceber que o problema estava aqui agora.
— Nós não vamos morrer — prometi às minhas colegas — Emma, segure
meu cajado.
— Seu... ah, certo!
Ela pegou o cajado cautelosamente como se eu a tivesse dado um lança-
foguetes, o que eu suponho que poderia ser com a magia adequada.
— Liz — ordenei — fique de olho no babuíno.
— Vigiando o babuíno — ela disse. — Meio difícil perder isso de vista.
Eu vasculhei minha bolsa mágica, fazendo um inventário desesperado.
Varinha... Boa para defesa, mas para dois deuses de uma vez eu precisava de
algo melhor. Filhos de Hórus e um giz mágico... esse não era o melhor lugar
para desenhar um círculo de proteção. Eu tinha que chegar até a ponte.
Precisava arrumar tempo pra sair do terminal.
— Sadie... — Liz avisou.
Babi pulou no telhado de uma loja de produtos de beleza. Ele rugiu e

109
O TRONO DE FOGO

babuínos menores começaram a aparecer vindo de todas as direções, esca-


lando as cabeças dos passageiros em fuga, balançando nas vigas e pulando
nas escadarias das lojas. Havia dúzias deles, todos vestindo camisas de bas-
quete pretas e prateadas. O basquete era o esporte internacional dos babuí-
nos?
Até hoje, eu havia encontrado poucos babuínos. Os que eu conheci,
como Khufu e seus sociáveis amigos, eram os animais sagrados de Thot, deus
do conhecimento. Eles geralmente eram sensatos e prestativos. Suspeitei,
entretanto, que a tropa de babuínos de Babi era totalmente diferente. Eles
tinham pelo vermelho-sangue, olhos selvagens e presas que fariam um tigre
dente-de-sabre se sentir humilhado.
Eles se aproximavam, rosnando enquanto se preparavam para atacar.
Tirei um bloco de cera da minha bolsa. Não, não tenho tempo para mol-
dar um shabti. Dois amuletos tyet, a marca sagrada de Ísis – ah, esses podem
ser úteis. Então achei um frasco de vidro fechado com uma rolha que eu
havia me esquecido. Dentro havia uma lama escura: minha primeira tenta-
tiva de fazer uma poção. Isso ficou no fundo da minha bolsa por anos, por-
que eu nunca tinha estado desesperada o suficiente para testá-lo.
Eu sacudi a poção. O liquido brilhou com uma pálida luz verde. A lama
se agitou lá dentro. Eu abri o vidro. Aquilo cheirava pior que Nekhbet.
— O que é isso? — Liz perguntou.
É repugnante — falei — Pergaminho de animação misturado com óleo,
água e alguns ingredientes secretos. Temo que tenha ficado um pouco es-
pesso.
— Animação? — Emma perguntou — Você vai invocar desenhos?
— Seria ótimo — eu admiti. — Mas isso vai ser um pouco mais perigoso.
Se eu fizer isso certo, poderei absorver uma grande quantidade de magia sem
entrar em combustão.
— E se você errar? — Liz perguntou.
Eu entreguei a cada uma delas um amuleto de Ísis.
— Segurem isso. Quando eu disser corram, vão para um ponto de táxi.
Não parem.
— Sadie — Emma protestou — por que diabos...
Antes que eu perdesse a coragem, engoli a poção.

110
SADIE

Acima de nós Nekhbet cacarejou.


— Desista, você não pode se opor a nós!
A sombra de suas asas pareceu se estender até cobrir todo o pátio, fa-
zendo o último dos passageiros fugir e fazendo meu corpo pesar com o
medo. Eu sabia que aquilo era só uma magia, mas a tentação de me entregar
a uma morte rápida era avassaladora.
Alguns babuínos se distraíram com o cheiro de comida e foram para o
McDonald’s. Vários outros estavam perseguindo um condutor de trem, ba-
tendo nele com rolos de revistas de moda.
Infelizmente, a maioria deles ainda estava focada em nós. Eles fizeram
um largo anel ao redor do quiosque. De sua central de comando no topo da
loja de produtos de beleza Babi uivou – um claro comando para atacar.
Então a poção atingiu minhas vísceras. Magia corria pelo meu corpo.
Minha boca estava como se eu tivesse engolido um sapo morto, mas agora
eu entendia porque as poções eram tão populares entre os magos antigos.
O feitiço de animação, que teria me tomado dias para escrever e pelo
menos uma hora para lançar, estava agora ardendo em minha corrente san-
guínea. Energia fluía na ponta dos meus dedos. Meu único problema era
canalizar a magia, me certificando de que ela não me queimasse como uma
batata frita.
Eu chamei Ísis do melhor jeito que pude, tocando seu poder para me
ajudar a dar forma ao encantamento. Eu imaginei o que eu queria e a palavra
de poder adequada surgiu em minha mente: Proteger. N’dah. Eu liberei a ma-
gia. Um hieróglifo dourado apareceu na minha frente, como se estivesse
queimando:

Uma oscilante luz dourada ondulou pelo pátio. A tropa de babuínos he-
sitou. Babi tropeçou no telhado da loja. Até Nekhbet piou e hesitou sobre
as vigas do teto.
Por toda estação, objetos inanimados começaram a se mover. Mochilas

111
O TRONO DE FOGO

e pastas subitamente começaram a voar. Prateleiras de revistas, chicletes, ba-


las e diversas bebidas geladas explodiam das lojas para atacar a tropa de ba-
buínos. A cabeça de bronze decepada disparou do nada e atingiu o peito de
Babi, jogando-o para os fundos da loja. Um tornado rosa de jornais Financial
Times rodou em direção ao teto. Eles enterraram Nekhbet, que tropeçou e
caiu cegamente de sua viga, gritando em um turbilhão de rosa e preto.
— Corram! — Gritei para as minhas amigas.
Nós corremos para a saída, costurando entre os babuínos que estavam
ocupados demais para nos impedir. Um deles estava sendo esmurrado por
meia dúzia de garrafas de água brilhante. Outro estava apanhando de uma
pasta e vários celulares.
Babi tentou se levantar, mas um turbilhão de produtos da loja de cosmé-
ticos surgiu ao redor dele – loções, esponjas e xampus estavam todos o gol-
peando, espirrando nos seus olhos e tentando maquiá-lo. Ele berrou em fú-
ria, escorregou e caiu de volta à loja em ruínas. Eu duvidava que minha ma-
gia fizesse algum dano permanente aos deuses, mas podia deixá-los ocupados
por alguns minutos.
Liz, Emma e eu saímos do terminal. Com a estação completamente eva-
cuada, eu não esperava que houvesse algum táxi no ponto, e realmente o
meio-fio estava deserto. Eu me resignei em correr todo o caminho até a
Ponte de Waterloo, já que Emma estava descalça e a poção tinha me deixado
enjoada.
— Olhem! — disse Liz.
— Oh, muito bem, Sadie — disse Emma.
— O quê? — perguntei. — O que eu fiz?
Então eu vi o chofer – um homem extremamente baixo, malvestido pa-
rado no fim da rua, usando uma roupa preta e segurando um letreiro onde
se lia: KANE.
Eu supus que minhas amigas acharam que eu o havia convocado por
magia. Antes que eu pudesse lhes corrigir, Emma disse “Vamos!” e elas cor-
reram em direção ao homenzinho. Eu não tinha escolha se não segui-las. Eu
me lembrei do que Anúbis disse sobre mandar meu “motorista” me pegar.
Imaginei que este devia ser ele, mas quanto mais perto chegava, menos ansi-
osa estava para conhecê-lo.

112
SADIE

Ele tinha metade do meu tamanho, era mais robusto que meu tio Amós
e mais feio que qualquer um na Terra. Seu rosto parecia o de um Neander-
tal. Abaixo de sua única sobrancelha, havia um olho maior que o outro.
Parecia que sua barba havia sido usada para limpar panelas engorduradas.
Sua pele estava cheia de espinhas e verrugas, seu cabelo parecia um ninho
de pássaros que fora queimado e então pisoteado.
Quando ele me viu, franziu a testa, o que não ajudou a melhorar sua
aparência.
— Bem a tempo.
Seu sotaque era americano. Ele cuspiu em seu punho, e o cheiro de curry
quase me fez desmaiar.
— A amiga de Bastet? Sadie Kane?
— Hum... Possivelmente.
Decidi ter uma conversa séria com Bastet sobre seu círculo de amizades.
— A propósito, há dois deuses tentando nos matar.
O homenzinho verruguento estalou os lábios, claramente não estava im-
pressionado.
— Imagino que você queira chegar a uma ponte, então.
Ele se virou para o meio-fio e gritou:
— BOO!
Uma limusine Mercedes preta surgiu do nada.
O chofer olhou para trás e arqueou a sua sobrancelha.
— Bem, entrem!

Eu nunca estive um uma limusine antes. Espero que a maioria delas seja
melhor que a nossa. O banco de trás estava repleto de recipientes de curry,
papéis velhos, sacos de batatas fritas e várias meias sujas. Mesmo assim,
Emma, Liz e eu nos amontoamos no lado de trás, já que nenhuma se atreveu
a ir na frente.
Você pode pensar que eu estava louca por entrar num carro com um
homem estranho. Você está certo, é claro. Mas Bastet me prometeu ajuda e
Anúbis me disse para esperar meu motorista. O fato de que nossa ajuda era
um baixinho de higiene ruim e com uma limusine mágica não foi muito
surpreendente. Eu já vi coisas mais estranhas.

113
O TRONO DE FOGO

Além do mais, eu não tinha muita escolha. O efeito da poção havia pas-
sado, e o esforço de usar tanta magia me deixou enjoada e de pernas bambas.
Eu não tinha certeza se poderia ir andando até a Ponte de Waterloo sem
desmaiar.
O chofer pisou fundo e saímos da estação. A polícia a havia cercado, mas
nossa limusine passou pelas barricadas, um grupo de vans de canais de notí-
cias, uma multidão de espectadores e ninguém prestou nenhuma atenção
em nós.
O chofer começou a assobiar uma melodia que parecia com a de Short
People. Sua cabeça mal chegava ao apoio de cabeça do banco. Tudo o que eu
podia ver dele era um ninho de cabelo sujo e um conjunto de mãos peludas
no volante.
Preso no quebra-sol estava um cartão de identificação com sua imagem...
ou algo parecido. Ela havia sido tirada de qualquer jeito, mostrando apenas
um nariz fora-de-foco e uma boca horrível, como se ele tivesse tentado comer
a câmera. O cartão dizia: Seu motorista é BES.
— Você é Bes, posso supor — falei.
— Sim — disse ele.
— Seu carro tem um fedor — murmurou Liz.
— Eu vou vomitar — Emma resmungou.
— É Sr. Bes? — perguntei, tentando colocar o seu nome da mitologia egíp-
cia.
Eu tinha quase certeza de que não tinha um deus dos motoristas.
— Lorde Bes? Bes, o Extremamente Baixo?
— Só Bes — ele resmungou. — Com um s. E não, esse NÃO é um nome
feminino. Chame-me de Bessie, e eu vou ter que matar vocês. Quanto a ser
pequeno, eu sou o deus anão, então o que você esperava? Oh, há uma garrafa
d’agua lá atrás se você estiver com sede.
Olhei para baixo. Rolando sobre os meus pés estavam duas garrafas par-
cialmente vazias de água. Uma delas tinha batom na tampa. A outra parecia
que tinha sido mastigada.
— Não estou com sede — decidi.
Liz e Emma murmuraram em acordo. Fiquei surpresa, elas não estavam
absolutamente catatônicas após os eventos da noite, mas, novamente, elas

114
SADIE

eram minhas colegas. Eu não saio com meninas de vontade fraca, saio?
Mesmo antes de eu descobrir a magia, era necessária uma constituição forte
e uma quantidade razoável de adaptação para ser minha amiga. [Nem uma
palavra, Carter.]
Veículos da polícia estavam bloqueando a Ponte de Waterloo, mas Bes
desviou deles, pulou no pavimento e continuou dirigindo. A polícia nem
piscou.
— Estamos invisíveis? — perguntei.
— Para a maioria dos mortais — Bes arrotou. — Eles são muito estúpidos,
não são? Exceto a companhia presente e etc.
— Você é realmente um deus? — Liz perguntou.
— Enorme — disse Bes. — Sou enorme no mundo dos deuses.
— Um enorme deus dos anões — Emma ficou admirada. — Você quer
dizer como na Branca de Neve, ou...
— Todos os anões.
Bes acenou com a mão efusivamente, o que me deixou um pouco ner-
vosa.
— Egípcios eram inteligentes. Eles honravam pessoas que nasciam inco-
muns. Anões eram considerados extremamente mágicos. Então sim, eu sou
o deus dos anões.
Liz limpou a garganta.
— Não há um termo mais educado que é suposto que se use hoje em dia?
Como... pessoa pequena, verticalmente deficiente ou...
— Eu não vou chamar a mim mesmo de o deus das pessoas verticalmente
deficientes — resmungou Bes. — Eu sou um anão! Agora, aqui estamos nós,
na hora certa.
Ele virou o carro em uma parada no meio da ponte. Olhando para trás,
quase perdi o conteúdo de meu estômago. Uma forma de asas negras estava
sobrevoando o rio. No final da ponte, Babi estava cuidando da barricada do
seu próprio modo. Ele estava jogando carros da polícia no Rio Tâmisa, en-
quanto os oficiais se dispersavam e disparavam suas armas, embora as balas
parecessem não ter efeito sobre o pelo de aço do deus babuíno.
— Por que paramos? — Emma perguntou.

115
O TRONO DE FOGO

Bes levantou-se no seu assento e esticou-se, o que ele podia fazer facil-
mente.
— É um rio — disse ele. — Bom local para combater os deuses. Toda a
força da natureza que corre sob os nossos pés torna difícil ficar ancorados
no mundo mortal.
Olhando mais de perto, pude ver o que ele queria dizer. Seu rosto estava
brilhando como uma miragem.
Um caroço se formou na minha garganta. Este era o momento da ver-
dade. Eu me senti mal por causa da poção e do medo. Não tinha certeza se
eu tinha magia suficiente para combater esses dois deuses. Mas eu não tinha
escolha.
— Liz, Emma — eu disse. — Nós estamos saindo.
— Sa...indo? — Liz choramingou.
Emma engoliu a seco.
— Tem certeza?
— Eu sei que vocês estão com medo, mas precisam fazer exatamente o
que eu digo.
Elas acenaram hesitantes e abriram as portas do carro. Coitadas. Mais
uma vez eu gostaria de tê-las deixado para trás, mas, honestamente, depois
de ver os meus avós sendo possuídos, eu não podia suportar a ideia de deixar
as minhas amigas fora da minha vista.
Bes reprimiu um bocejo.
— Precisa da minha ajuda?
— Hum...
Babi estava cambaleando em nossa direção. Nekhbet descrevia círculos
em cima dele, gritando ordens. Se o rio estava lhes afetando, eles não mos-
tram isso.
Eu não vejo como um deus anão poderia ficar contra os dois, mas eu
disse:
— Sim. Preciso de ajuda.
— Certo. — Bes estalou seus dedos. — Então saia.
— O quê?
— Eu não posso trocar de roupa com você no carro, posso? Eu tenho que
colocar minha roupa feia.

116
SADIE

— Roupa feia?
— Vão! — O anão ordenou. — Eu sairei em um minuto.
Não precisou de muito estímulo. Nenhuma de nós queria ver mais de
Bes do que o necessário. Saímos, e Bes fechou as portas atrás de nós. A pelí-
cula das janelas era muito escura, então eu não podia ver o que acontecia
dentro do carro, mas aposto que Bes deveria estar relaxando e ouvindo mú-
sica enquanto nós éramos massacradas. Eu certamente não tinha muita es-
perança que mudar de roupa fosse ajudar para derrotar Nekhbet e Babi.
Olhei para minhas companheiras assustadas, então os dois deuses inves-
tiram em nossa direção.
— Nós vamos fazer a nossa resistência final aqui.
— Oh, não, não — disse Liz. — Eu realmente não gosto do termo “resis-
tência final”.
Eu vasculhei minha bolsa e tirei um pedaço de giz e as estátuas dos qua-
tro Filhos de Hórus.
— Liz, ponha as estátuas nos pontos cardeais Norte, Sul, e assim por di-
ante. Emma pegue o giz. Desenhe um círculo conectando as estátuas. Temos
apenas alguns segundos.
Eu troquei o giz pelo meu cajado, então tive uma sensação horrível de
déjà vu. Eu tinha acabado de dar ordens para minhas amigas agirem, exata-
mente como Zia Rashid tinha me ordenado na primeira vez que tínhamos
enfrentado um deus inimigo juntas. Eu não queria ser como Zia. Por outro
lado, percebi pela primeira vez, quanta coragem ela deve ter tido para en-
frentar uma deusa protegendo ao mesmo tempo dois completos novatos. Eu
odeio dizer isso, mas me deu um novo respeito por ela. Queria ter sua cora-
gem.
Eu levantei meu cajado e minha varinha e tentei me concentrar. O
tempo pareceu desacelerar. Estendi meus sentidos até que eu estava consci-
ente de tudo ao meu redor. Emma rabiscando com giz para terminar o cír-
culo, o coração de Liz batendo muito rápido, os maciços pés de Babi batendo
na ponte enquanto corria em direção a nós, o Tâmisa fluindo debaixo da
ponte, e as correntes do Duat fluindo ao meu redor poderosamente.
Bastet me disse uma vez que o Duat era como um oceano de magia sob
a superfície do mundo mortal. Se isso era verdade, então este lugar – uma

117
O TRONO DE FOGO

ponte sobre a água em movimento – era como um cruzamento de correntes.


Magia flui mais fortemente aqui. Poderia afogar os desavisados. Até mesmo
os deuses poderiam ser varridos.
Eu tentei ancorar-me concentrando na paisagem ao meu redor. Londres
era minha cidade. Daqui eu podia ver tudo – as Casas do Parlamento, o
London Eye e até mesmo a Agulha de Cleópatra no Aterro Victoria, onde
minha mãe tinha morrido. Se falhasse agora, tão perto de onde minha mãe
tinha feito sua última magia... Não. Eu não podia deixar isso chegar a esse
ponto.
Babi estava a apenas um metro de distância quando Emma terminou o
círculo. Eu toquei o giz com meu cajado, e uma luz dourada surgiu do cír-
culo.
O deus babuíno bateu em meu campo de força como se fosse uma parede
de metal. Ele cambaleou para trás. Nekhbet afastou-se no último segundo e
voou em torno de nós, grasnando em frustração.
Infelizmente, o círculo de luz começou a piscar. Minha mãe me ensinou
quando eu era jovem: para cada ação, há uma reação igual e oposta. Que se
aplicam à magia, bem como ciência. A força do ataque de Babi me deixou
vendo manchas pretas. Se ele atacasse novamente, eu não tinha certeza se
poderia manter o círculo.
Eu me perguntava se deveria sair dele, tornando-me o alvo. Se eu canali-
zasse alguma energia para o círculo antes, ele poderia se manter por um
tempo, mesmo se eu morresse. Pelo menos, minhas amigas iam viver.
Zia Rashid tinha provavelmente pensado a mesma coisa no último Natal,
quando ela saiu do seu círculo para proteger Carter e eu. Ela realmente tinha
sido corajosa.
— Aconteça o que acontecer comigo — eu disse às minhas amigas — per-
maneçam dentro do círculo.
— Sadie — Emma disse — eu conheço esse tom de voz. O que quer que
você esteja planejando, não faça.
— Você não pode nos deixar — Liz defendeu. Então ela gritou para Babi
em uma voz esganiçada: — V-vá embora, seu macaco horroroso coberto de
espuma! Minha amiga aqui não quer destruí-lo, mas... mas ela vai!
Babi rosnou. Ele estava coberto de espuma, graças ao ataque na loja de

118
SADIE

produtos de beleza, e seu cheiro estava maravilhoso. Várias cores diferentes


de espuma de xampu e sais de banho estavam emaranhadas na sua pele pra-
teada.
Nekhbet não tinha se saído tão bem. Ela estava empoleirada no topo de
um poste nas proximidades, parecendo como se tivesse sido esmurrada por
todos os pratos da lanchonete do metrô. Pedaços de presunto, queijo e ba-
tata frita estavam presos em seu manto de penas, provas das bravas tortas de
carne encantadas que tinham dado suas breves vidas para atrasá-la. Seu ca-
belo estava decorado com garfos de plástico, guardanapos e pedaços de papel
de jornal rosa. Ela parecia muito interessada em me fazer em pedaços.
A única boa notícia: os capangas de Babi, evidentemente, não tinham
saído da estação de trem. Eu imaginei uma tropa de babuínos empurrados
contra viaturas policiais e algemados. Isso levantou meu ânimo um pouco.
Nekhbet rosnou.
— Você nos surpreendeu na estação, Sadie Kane. Eu admito que fez bem.
E nos trazendo nesta ponte, boa tentativa. Mas nós não somos tão fracos.
Você não tem força para lutar contra nós por mais tempo. Se você não pode
nos derrotar, não tem como levantar Rá.
— Você deveria estar me ajudando — eu disse. — Não tentando me impe-
dir.
— Uhh! — Babi gritou.
— De fato — concordou a deusa abutre. — Os fortes sobrevivem sem
ajuda. Os fracos devem ser abatidos e comidos. Qual deles é você, criança?
Seja honesta.
A verdade? Eu estava prestes a cair. A ponte parecia estar girando abaixo
de mim. Sirenes soavam em ambas as margens do rio. Mais policiais chega-
ram às barricadas, mas por hora, não fizeram nenhum esforço para avançar.
Babi arreganhou os dentes. Ele estava tão perto que eu podia sentir o
cheiro de xampu de seu pelo e seu hálito horrível. Então eu olhei para os
óculos do vovô ainda presos na sua cabeça, e toda a minha raiva voltou.
— Teste-me — eu disse. — Eu sigo o caminho de Ísis. Fique no meu cami-
nho, e eu vou te destruir.
Eu consegui iluminar meu cajado. Babi deu um passo atrás. Nekhbet
vibrou em seu poste. Sua forma brilhou por alguns instantes. O rio os estava

119
O TRONO DE FOGO

enfraquecendo, soltando a sua ligação ao mundo dos mortais, como interfe-


rência em uma linha de celular. Mas não era o suficiente.
Nekhbet deve ter visto o desespero na minha cara. Ela era um abutre.
Era especializada em saber quando a presa estava acabada.
— Uma boa última tentativa criança — falou ela, quase com gratidão —
mas você não tem mais nada. Babi, ataque!
O deus babuíno levantou-se sobre as patas de trás. Eu me preparei para
carregar e liberar uma explosão final de energia – usando minha própria
fonte de vida na esperança de vaporizar os deuses. Eu tinha que ter certeza
que Liz e Emma sobreviveriam.
Então a porta da limusine se abriu atrás de mim. Bes anunciou:
— Ninguém vai atacar ninguém! Exceto por mim, é claro.
Nekhbet gritou alarmada. Virei-me para ver o que estava acontecendo.
Imediatamente, desejei que pudesse queimar meus olhos e arrancá-los.
Liz gaguejou.
— Senhor, não! Isso é crime!
— Agh! — Emma gritou, em uma perfeita fala de babuíno. — Faça-o parar!
Bes tinha realmente vestido a sua roupa feia. Ele subiu no telhado da
limusine e parou ali, pernas retas, braços cruzados, como Superman – exceto
que somente com roupa de baixo.
Para aqueles de coração fraco, não vou entrar em grandes detalhes, mas
Bes, em todo seu um metro de altura, estava mostrando seu físico nojento –
sua barriga proeminente, pernas peludas, os pés horríveis, tudo um pouco
flácido – e vestindo apenas uma sunga azul. Imagine a pessoa mais feia que
você já viu numa praia pública, a pessoa para quem roupa de banho deveria
ser ilegal. Bes parecia pior do que isso.
Eu não sabia o que dizer, exceto:
— Ponha alguma roupa!
Bes riu – o tipo de gargalhada que diz Ha-ha! Eu sou incrível!
— Não até que eles saiam — disse ele. — Ou vou ser obrigado a assustá-los
de volta ao Duat.
— Isso não é da sua conta, deus anão! — Nekhbet rosnou, desviando os
olhos de sua horripilância. — Vá embora!
— Essas crianças estão sob minha proteção — insistiu Bes.

120
SADIE

— Eu não conheço você — falei — eu não te conhecia até hoje.


— Bobagem. Você expressamente pediu por minha proteção.
— Eu não pedi por um segurança de sunga!
Bes saltou da limusine e pousou na frente do meu círculo, colocando-se
entre Babi e eu. O anão era ainda mais terrível por trás. Suas costas eram
tão peludas que parecia um casaco de pelos. E atrás da sunga estava im-
presso orgulho anão.
Bes e Babi circulavam-se, como lutadores. O deus babuíno tentou gol-
pear Bes, mas o anão era ágil. Ele subiu pelo peito Babi e deu-lhe uma cabe-
çada no nariz. Babi cambaleou para trás enquanto o anão continuou marte-
lando-o, usando seu rosto como uma arma mortal.
— Não o machuque! — gritei. — É o meu avô aí!
Babi caiu contra o parapeito. Ele piscou, tentando se orientar, mas Bes
soprou sobre ele, e o cheiro de curry deve ter sido demais. Os joelhos do
babuíno fraquejaram. Seu corpo brilhou e começou a contrair-se. Ele entrou
em colapso na calçada e derreteu-se em um aposentado atarracado de cabe-
los brancos em um casaco esfarrapado.
— Vovô!
Eu não aguentei. Deixei o círculo de proteção e corri para seu lado.
— Ele vai ficar bem — prometeu Bes. Então ele se virou em direção à
deusa abutre. — Agora é sua vez, Nekhbet. Saia!
— Eu roubei esse corpo de forma justa — ela lamentou. — Eu gosto de
estar nele!
— Você pediu por isso.
Bes esfregou as mãos, respirou fundo, e fez algo que nunca serei capaz de
apagar da minha memória.
Eu poderia simplesmente dizer que ele fez uma careta e gritou BOO, o
que seria tecnicamente correto, mas não seria nem o começo de transmitir
o horror que senti.
A cabeça de Bes inchou. Sua mandíbula desarticulou-se até sua boca ter
quatro vezes o tamanho anterior. Seus olhos se arregalaram como laranjas.
Seus cabelos se arrepiaram para cima, como os de Bastet. Ele balançou a
cara, sacudiu sua viscosa língua verde e rugiu BOOO! tão alto que o som
ecoou no Tâmisa como um tiro de canhão. Esta explosão de pura feiura

121
O TRONO DE FOGO

soprou as penas Nekhbet e drenou toda a cor de seu rosto. Ele arrancou a
essência da deusa como papel de seda em uma tempestade. A única coisa
que sobrou foi uma mulher velha tonta em um vestido estampado de flores,
de cócoras sobre o poste.
— Oh, querida... — Vovó desmaiou.
Bes pulou e a pegou antes que ela pudesse cair no rio. O rosto do anão
voltou ao normal – bem, pelo menos seu nível normal de feiura – quando
ele deitou a vovó na calçada ao lado do vovô.
— Obrigada — agradeci a Bes. — Agora, por favor você poderia colocar
uma roupa?
Ele me deu um sorriso cheio de dentes, eu poderia viver sem isso.
— Está tudo bem, Sadie Kane. Vejo porque Bastet gosta de você.
— Sadie? — Meu avô gemeu, as suas pálpebras abertas tremulando.
— Estou aqui, vovô. — Acariciei sua testa. — Como você se sente?
— Com um estranho desejo de comer mangas. — Ele ficou vesgo. — E,
possivelmente, insetos. Você... que nos salvou?
— Não realmente — admiti. — Meu amigo aqui...
— Certamente ela te salvou — disse Bes. — Menina corajosa que é esta
aqui. Uma ótima maga.
Vovô focou-se em Bes e fez uma careta.
— Malditos deuses egípcios em suas malditas roupas de banho revelado-
ras demais. É por isso que não fazemos magia.
Eu suspirei de alívio. Depois que vovô começou a reclamar, eu sabia que
ia dar tudo certo. Vovó ainda estava desmaiada, mas a respiração dela pare-
cia estável. A cor foi voltando ao seu rosto.
— Nós devemos ir — Bes falou. — Os mortais estão prontos para invadir
a ponte.
Olhei para as barricadas e vi o que ele quis dizer. Uma equipe estava
reunida – homens armados com fuzis, lança-granadas e provavelmente mui-
tos outros brinquedos divertidos que poderiam nos matar.
— Liz, Emma! — chamei. — Ajudem-me com os meus avós.
Minhas amigas correram e começaram a ajudar vovô a sentar, mas Bes
disse:
— Eles não podem vir.

122
SADIE

— O quê? — exigi. — Mas você disse...


— Eles são mortais. Não pertencem a essa busca. Se nós vamos obter o
segundo pergaminho de Vlad Menshikov, precisamos ir embora agora.
— Você sabe sobre isso?
Então me lembrei que ele tinha falado com Anúbis.
— Seus avós e amigos estarão mais seguros aqui — disse Bes. — A polícia
vai interrogá-los, mas eles não vão ver pessoas idosas e crianças como uma
ameaça.
— Nós não somos crianças — Emma resmungou.
— Abutres... — vovó sussurrou em seu sono. — Tortas de Carne...
Vovô tossiu.
— O anão está certo, Sadie. Vá. Eu estarei bem em um momento, mas é
uma pena que esse babuíno não me deixou um pouco do seu poder. Não
me sentia tão forte há anos.
Olhei para os meus avós e amigas. Meu coração parecia que estava sendo
esticado em mais direções que o rosto de Bes. Eu percebi que o anão estava
certo: eles estariam mais seguros aqui diante de uma equipe de assalto do
que com a gente. E percebi, também, que eles não pertenciam a uma busca
mágica. Meus avós tinham escolhido há muito tempo não usar suas habili-
dades ancestrais. E minhas amigas eram apenas mortais – corajosas, loucas
e ridículas mortais maravilhosas. Mas elas não podiam ir para onde eu tinha
que ir.
— Sadie, tudo bem. — Emma ajeitou os óculos quebrados e tentou dar
um sorriso — nós podemos lidar com a polícia. Não será a primeira vez que
tive que fazer alguns improvisos, hein?
— Nós vamos cuidar de seus avós — Liz prometeu.
— Não preciso que cuidem de mim — vovô reclamou. Então ele teve um
acesso de tosse. — Apenas vá, minha querida. Esse deus babuíno estava na
minha cabeça. Posso te dizer, ele quer destruí-la. Termine a sua busca antes
que ele venha atrás de você outra vez. Eu não pude impedi-lo. Eu não po-
dia... — Ele olhava com rancor para suas frágeis e velhas mãos. — Eu nunca
teria me perdoado. Agora, fora daqui!
— Sinto muito — eu disse a todos eles. — Eu não queria...
— Sinto muito? — Emma estranhou. — Sadie Kane, esta foi a festa de

123
O TRONO DE FOGO

aniversário mais legal da história! Agora, vá!


Ela e Liz me abraçaram, e antes que eu pudesse começar a chorar, Bes
guiou-me para a Mercedes.
Seguimos em direção ao norte até o Aterro Victoria. Estávamos quase
nas barricadas quando Bes desacelerou.
— O que há de errado? — perguntei. — Não podemos passar invisíveis?
— Não é com os mortais que eu estou preocupado.
Ele apontou. Todos os policiais, repórteres e espectadores em torno das
barricadas tinham adormecido. Vários militares em coletes estavam enrola-
dos no chão, abraçando seus rifles de assalto, como ursos de pelúcia.
Parados na frente das barricadas, bloqueando o nosso carro, estavam
Carter e Walt. Eles estavam desalinhados e respirando pesadamente, como
se tivessem corrido por todo o caminho do Brooklyn até a barricada. Ambos
tinham varinhas de prontidão. Carter adiantou-se, apontando sua espada
contra o para-brisa.
— Deixe-a ir — ele gritou para Bes. — Ou eu vou te destruir!
Bes olhou para mim.
— Eu deveria assustá-lo?
— Não! — respondi rapidamente.
Isso era algo que eu não precisava ver de novo.
— Eu vou lidar com isso.
Eu saí da limusine.
— Olá, meninos. Chegaram na hora certa.
Walt e Carter fizeram uma careta.
— Você não está em perigo? — Walt me perguntou.
— Não mais.
Carter abaixou sua espada com relutância.
— Você quer dizer que o cara feio...
— É um amigo — eu disse. — Amigo de Bastet. Ele também é o nosso
motorista.
Carter parecia igualmente confuso, irritado e inquieto, o que foi um sa-
tisfatório final para minha festa de aniversário.
— E vai dirigir para onde? — perguntou ele.
— Até a Rússia, é claro — falei — para dentro.

124
C
A
9. Fazemos um passeio com o deficiente
R
vertical pela Rússia
T
E
R

COMO DE COSTUME, SADIE DEIXOU DE FORA alguns detalhes importantes,


como a forma que Walt e eu quase nos matamos tentando encontrá-la.
Não foi divertido o voo para o Museu do Brooklyn. Tivemos que nos
pendurar em uma corda sob a barriga do grifo como uma dupla de Tarzans,
nos esquivando de policiais, equipes de emergência, funcionários munici-
pais e várias senhoras de idade que nos perseguiram com guarda-chuvas, gri-
tando: “Ali está o beija-flor! Mate-o!”
Assim que conseguimos abrir um portal, eu queria levar Freak conosco,
mas o portão de areia redemoinhando meio que... bem, o assustou, então
tivemos que deixá-lo para trás.
Quando chegamos a Londres, monitores de televisão nas vitrines esta-
vam mostrando imagens da Estação de Waterloo – algo sobre um estranho
distúrbio dentro do terminal com animais fugidos e vendavais. Nossa, que
maravilha poderia ter sido? Usamos o amuleto de Walt, do deus do ar Shu
para convocar uma rajada de vento e saltar para a ponte de Waterloo. Natu-
ralmente, caímos bem no meio de uma tropa de choque fortemente armada.
Que sorte que me lembrei do feitiço do sono.
Então, finalmente, estávamos prontos para carregar e salvar Sadie e ela
aparece em uma limusine dirigida por um anão feioso em um maiô, e

125
O TRONO DE FOGO

ela nos acusa de estarmos atrasados.


Então, quando ela nos disse que o anão estava nos levando para a Rússia,
eu fiquei tipo, “Que seja”. E entrei no carro.
A limusine atravessou Westminster enquanto Sadie, Walt e eu trocáva-
mos histórias.
Depois de ouvir o que tinha acontecido através de Sadie, eu não me senti
tão mal sobre o meu dia. Um sonho de Apófis e uma cobra de três cabeças
na sala de treinamento não pareciam tão assustadores quanto deuses assu-
mindo o controle de nossos avós. Eu nunca tinha gostado muito de vovô e
vovó, mas ainda assim... caramba.
Também não podia acreditar que nosso chofer era Bes. Meu pai e eu
costumávamos rir de suas imagens nos museus – seus olhos esbugalhados,
balançando a língua e a falta geral de roupas. Supostamente, ele poderia
assustar quase qualquer coisa – espíritos, demônios, até mesmo outros deu-
ses – razão pela qual os plebeus egípcios o tinham adorado. Bes parecia um
pequeno rapaz... hum, o que não significava uma piada de anão. Em carne
e osso, ele parecia exatamente como suas imagens, só que em todas as cores,
com todo o cheiro.
— Te devemos essa — eu disse a ele. — Então você é um amigo de Bastet?
As orelhas dele ficaram vermelhas.
— Sim... com certeza. Ela me pede um favor, de vez em quando. Eu tento
ajudar.
Tive a sensação de que havia alguma história ali que ele não queria con-
tar.
— Quando Hórus falou comigo — falei — Ele avisou que alguns dos deuses
podem tentar nos impedir de acordar Rá. Agora eu acho que sei quem.
Sadie expirou.
— Se eles não gostaram do nosso plano, tivessem mandado uma mensa-
gem de texto com raiva. Nekhbet e Babi quase me rasgaram em pedaços!
Seu rosto estava um pouco verde. Seus coturnos estavam manchados de
xampu e lama, e sua jaqueta de couro favorita tinha uma mancha no ombro
que parecia suspeitosamente com cocô de urubu. Ainda assim, fiquei im-
pressionado que ela estivesse consciente. Poções são difíceis de fazer e ainda
mais difíceis de usar. Existe sempre um preço para a canalização de muita

126
CARTER

magia.
— Você foi ótima — eu disse a ela.
Sadie olhou ressentidamente para a faca negra em seu colo – a lâmina
cerimonial que Anúbis tinha dado a ela.
— Eu estaria morta se não fosse por Bes.
— Que nada — disse Bes. — Bem, certo, você provavelmente estaria. Mas
você teria morrido em grande estilo.
Sadie virou a estranha faca negra como se pudesse encontrar instruções
escritas nela.
— É uma netjeri — falei. — Uma lâmina de serpente. Sacerdotes a usavam
para...
— A cerimônia-da-abertura-da-boca — ela disse. — Mas como isso pode nos
ajudar?
— Não sei — admiti. — Bes?
— Rituais da morte. Tento evitá-los.
Olhei para Walt. Itens mágicos eram sua especialidade, mas ele não pa-
recia estar prestando atenção. Desde que Sadie tinha nos contado sobre sua
conversa com Anúbis, Walt esteve muito quieto. Ele se sentou ao lado dela,
mexendo em seus anéis.
— Você está bem? — Perguntei a ele.
— Sim... só pensando — ele olhou para Sadie. — Sobre lâminas netjeri,
quero dizer.
Sadie puxou seu cabelo, como se estivesse tentando fazer uma cortina
entre ela e Walt. A tensão entre eles era tão densa, eu duvidava que mesmo
uma faca mágica conseguisse cortá-la.
— Maldito Anúbis — ela murmurou. — Se dependesse dele, eu poderia
ter morrido.
Dirigimos em silêncio por um tempo depois disso. Finalmente, Bes virou
na ponte Westminster e dobrou por trás do Rio Tâmisa.
Sadie franziu a testa.
— Onde estamos indo? Precisamos de um portal. Todos os melhores ar-
tefatos estão no Museu Britânico.
— É — Bes disse. — E todos os outros magos sabem disso.
— Outros magos? — Perguntei.

127
O TRONO DE FOGO

— Criança, a Casa da Vida tem clãs por todo o mundo. Londres é o Nono
Nomo. Com aquela façanha em Waterloo, a senhorita Sadie só mandou um
grande sinalizador dizendo aos seguidores de Desjardins, Eu estou aqui! Pode
apostar que eles vão estar te caçando agora. Eles estarão guardando o museu
no caso de vocês correrem para lá. Felizmente, conheço um lugar diferente
onde podemos abrir um portal.
Ensinado por um anão. Devia ter ocorrido para mim que Londres tinha
outros magos. A Casa da Vida estava em todo lugar. Fora da segurança da
casa no Brooklyn, não havia um continente onde estaríamos a salvo.
Rodamos pelo sul de Londres. A cena ao longo da Rodovia Camberwell
estava quase tão depressiva quanto meus pensamentos. Fileiras de aparta-
mentos construídos com tijolos e lojas de baixa renda se alinhavam na rua.
E uma idosa fez uma careta para nós de um ponto de ônibus. Na porta de
uma mercearia, uns caras durões olharam a Mercedes como se quisessem
roubá-la. Me perguntei se eram deuses ou magos disfarçados, porque a mai-
oria das pessoas não notou o carro.
Não podia imaginar onde Bes estava nos levando. Não parecia com o
tipo de bairro onde você vá encontrar muitos artefatos egípcios.
Finalmente um parque amplo apareceu à nossa esquerda: campos verdes
nebulosos, caminhos de árvores enfileiradas e algumas paredes arruinadas
como aquedutos, cobertos de vinhas. O terreno inclinou para o topo de uma
colina com uma torre de rádio.
Bes pulou o meio-fio e dirigiu reto pela grama, atropelando uma placa
que dizia PERMANEÇA NO CAMINHO. A noite estava cinzenta e chuvosa, en-
tão não havia muitas pessoas ao redor. Um casal de corredores próximos ao
caminho nem mesmo olhou para nós, como se vissem limusines Mercedes
atravessarem o parque todo dia.
— Onde estamos indo? — Perguntei.
— Veja e aprenda, criança — Bes respondeu.
Ser chamado de criança por um cara menor que eu era um pouco irri-
tante, mas deixei minha boca fechada. Próximo ao topo estava uma escada
de pedra, talvez 10 metros de altura, construída ao lado da colina. Parecia
levar a lugar nenhum. Bes pisou nos freios e paramos. A colina era mais alta
que eu tinha percebido. Atrás de nós, estava o resto de Londres.

128
CARTER

Então olhei a escada mais de perto. Duas esfinges feitas de pedra estavam
prostradas em cada lado da escada, observando a cidade. Cada uma tinha
cerca de três metros de comprimento com o típico corpo de leão e cabeça de
faraó, mas elas pareciam totalmente fora do lugar em um parque em Lon-
dres.
— Elas não são reais — falei.
Bes bufou.
— Claro que são reais.
— Quero dizer que não são do Egito Antigo. Elas não são antigas o sufi-
ciente.
— Exigente, exigente — Bes disse. — Essas são escadas para o Palácio de
Cristal. Um salão grande de exposição de vidro e aço do tamanho de uma
catedral costumava ficar bem aqui nessa colina.
Sadie franziu a testa.
— Li sobre isso na escola. A Rainha Vitória teve uma festa aqui ou algo
do tipo.
— Uma festa ou algo do tipo? — Bes grunhiu. — Foi a Grande Exibição
de 1851. Mostra do Império Britânico, etc. Eles tinham maçãs carameladas
deliciosas.
— Você esteve lá? — perguntei.
Bes deu de ombros.
— O palácio queimou na década de 1930, graças a alguns magos, mas isso
é outra história. Tudo o que está aqui agora são algumas relíquias, como
essas escadas e as esfinges.
— Uma escada para lugar nenhum — repliquei.
— Não para lugar nenhum — Bes corrigiu. — Essa noite vai nos levar para
São Petersburgo.
Walt se levantou. Seu interesse nas estátuas tinha aparentemente o ti-
rado da melancolia.
— Mas se as esfinges não são realmente egípcias — ele disse — como pode-
mos abrir um portal?
Bes deu a ele um sorriso cheio de dentes.
— Depende do que quer dizer realmente egípcio, criança. Todo grande im-

129
O TRONO DE FOGO

pério é um aspirante ao Egito. Ter coisas egípcias ao redor os faz sentir im-
portante. É por isso que vocês têm artefatos egípcios novos em Roma, Paris,
Londres... se chama assim. Aquele obelisco em Washington...
— Não mencione esse, por favor — Sadie disse.
— De qualquer maneira — Bes continuou — estas ainda são esfinges egíp-
cias. Foram construídos para manter a conexão entre o Império Britânico e
o Império Egípcio. Então sim, podem canalizar magia. Especialmente
se eu estou fazendo isso. E agora... — ele olhou para Walt. — Acho que é hora
de você ir.
Fiquei tão surpreso para dizer alguma coisa, mas Walt olhou para baixo
como se estivesse esperando isso.
— Espera aí — Sadie interviu. — Por que Walt não pode vir com a gente?
Ele é um mago. Ele pode ajudar.
A expressão de Bes ficou séria.
— Walt, você não falou pra eles?
— Falou para a gente o quê? — Sadie exigiu.
Walt segurou os amuletos, como se pudesse ter um que o ajudaria a evi-
tar essa conversa.
— Não é nada. Sério. É só... eu deveria ajudar na casa do Brooklyn. E Jaz
acha que...
Ele hesitou, provavelmente percebendo que não deveria ter mencionado
o nome dela.
— Sim? — O tom de Sadie estava perigosamente calmo. — O que Jaz acha?
— Ela está... ela ainda está em coma — Walt disse. — Amós disse que ela
provavelmente vai melhorar, mas não é que eu...
— Bom — Sadie disse. — Fico feliz que ela melhore. Você precisa voltar,
então. Isso é brilhante. Vai logo. Anúbis disse que devemos nos apressar.
Não foi muito sutil o jeito com que ela atirou o nome para ele. Walt
pareceu ter sido golpeado por ela no peito.
Eu sabia que Sadie não estava sendo justa com ele. Pela minha conversa
com Walt na casa do Brooklyn, sabia que ele gostava de Sadie. O que quer
que estivesse o incomodando, não houve qualquer tipo de coisa romântica
com Jaz. Por outro lado, se eu tentasse tomar partido dele, Sadie só me diria
para cair fora. Eu poderia até piorar as coisas entre Sadie e ele.

130
CARTER

— Não é que eu queira voltar — ele falou.


— Mas você não pode ir conosco — Bes disse firmemente. Pensei que ouvi
preocupação em sua voz, até pena. — Vá, criança. Está tudo bem.
Walt pescou alguma coisa de sua bolsa.
— Sadie, sobre seu aniversário... você, hum, provavelmente não quer mais
nenhum presente. Não é uma faca mágica, mas fiz isso para você.
Ele despejou um colar dourado em sua mão. Era um pequeno símbolo
egípcio.

— É a cesta de basquete da cabeça de Rá — eu disse.


Walt e Sadie franziram a testa para mim, e percebi que eu provavelmente
não estava fazendo o momento mais mágico para eles.
— Quero dizer que é o símbolo que envolve a coroa do sol de Rá — corrigi.
— Um ciclo sem fim, o símbolo da eternidade, certo?
Sadie engoliu como se a poção mágica ainda estivesse borbulhando em
seu estômago.
— Eternidade? — Walt disparou um olhar para mim que claramente sig-
nificava Por favor pare de ajudar. — É — ele disse — hum, se chama shen. Eu só
achei, você sabe, vocês estão procurando por Rá. E coisas boas, coisas im-
portantes, devem ser eternas. Então talvez isso te traga sorte. Quis dar isso
para você essa manhã, mas... eu meio que perdi a cabeça.
Sadie olhou o talismã brilhando em sua mão.
— Walt, eu não... quer dizer, obrigada, mas...
— Só lembre que eu não quis partir — ele disse. — Se precisar de ajuda,
vou estar lá para você.
Ele olhou para mim e se corrigiu:
— Quis dizer para vocês dois, claro.
— Mas agora — Bes disse — você precisa ir.
— Feliz aniversário, Sadie — Walt falou. — E boa sorte.
Ele saiu do carro e marchou colina abaixo. Assistimos até ele ser só uma

131
O TRONO DE FOGO

figura minúscula na escuridão. Então ele sumiu nas árvores.


— Dois presentes de despedida — Sadie murmurou — de dois caras des-
lumbrantes. Eu odeio a minha vida.
Ela prendeu o colar dourado em seu pescoço e tocou o símbolo shen.
Bes olhou para baixo nas árvores onde Walt tinha desaparecido.
— Pobre criança. Nasceu fora do normal, certo. Isso não é justo.
— O que quer dizer? — perguntei. — Por que você estava tão ansioso de
Walt ir embora?
O anão esfregou sua barba desdenhada.
— Não é meu trabalho explicar. Nesse momento temos trabalho a fazer.
Quando mais tempo demoramos, mais tempo damos para Menshikov pre-
para suas defesas, o mais difícil é que isso vai começar.
Eu não estava pronto para deixá-lo, mas Bes olhou para mim com teimo-
sia, e eu soube que não iria ter mais nenhuma resposta dele. Ninguém con-
seguia olhar com teimosia como um anão.
— Então, Rússia — eu disse. — Conduzidos por uma escada vazia.
— Exatamente.
Bes pisou no acelerador. A Mercedes agitou grama, lama e água até as
escadas. Eu tinha certeza que chegaríamos ao topo e não conseguiríamos
nada além de um eixo de rodas quebrado, mas no último segundo, um por-
tal de turbilhão de areia abriu na nossa frente. Nossas rodas deixaram o
chão, e a limusine preta voou de cabeça para o turbilhão.

Batemos no pavimento do outro lado, dispersando um grupo de adolescen-


tes surpresos. Sadie gemeu e tirou a cabeça do encosto.
— Não podemos ir a nenhum lugar suavemente? — ela perguntou.
Bes ligou o limpador de para-brisas e tirou a areia. Lá fora estava escuro
e nevando. Prédios de pedra do século dezoito alinhados em um rio conge-
lado iluminado com postes. Além do rio, mais prédios de contos de fadas
brilhavam: cúpulas douradas, palácios brancos, mansões enfeitadas com
ovos de páscoa pintados de verde e azul. Eu poderia ter acreditado que tí-
nhamos viajado de volta em trezentos anos – exceto pelos carros, as luzes
elétricas e é claro, os adolescentes com piercings no corpo, cabelo colorido
e roupas pretas de couro gritando para nós em russo e batendo no capô da

132
CARTER

Mercedes porque nós quase os tínhamos matado.


— Eles conseguem nos ver? — Sadie perguntou.
— Russos — Bes disse com um tipo de admiração invejosa. — Pessoas
muito supersticiosas. Eles tendem a ver magia pelo que ela é. Temos que ser
cuidadosos aqui.
— Você já esteve aqui antes? — Perguntei.
Ele me deu um olhar isso é obvio, então apontou para o outro lado do
carro. Tínhamos aterrissado entre duas esfinges de pedra em pedestais. Elas
se pareciam com várias esfinges que eu tinha visto – com cabeças humanas
coroadas e corpos de leão – mas eu nunca tinha visto esfinges cobertas de
neve.
— Elas são autênticas?
— Os artefatos egípcios mais longe ao norte do mundo — Bes respondeu.
— Saqueadas de Tebas e trazidas aqui para decorar a nova cidade imperial da
Rússia, São Petersburgo. Como eu disse, todo novo império quer uma peça
do Egito.
As crianças do lado de fora ainda estavam gritando e batendo no carro.
Um quebrou uma garrafa contra nosso para-brisa.
— Hum — Sadie disse — temos que nos mover?
— Não. — disse Bes — As crianças russas sempre passeiam pelas esfinges.
Têm feito isso por centenas de anos.
— Mas é tipo meia noite aqui — eu disse. — E está nevando.
— Mencionei que eles são russos? — Bes falou. — Não se preocupe. Vou
cuidar disso.
Ele abriu a porta. Um vento frio varreu a Mercedes, mas Bes saiu ves-
tindo nada além de sunga. As crianças foram para trás rapidamente. Eu não
podia culpá-las. Bes disse algo em russo, então rugiu como um leão. As cri-
anças gritaram e correram.
A forma de Bes pareceu tremeluzir. Quando ele voltou para dentro do
carro, estava vestindo um casaco de inverno quente, um chapéu forrado e
luvas.
— Viram? — ele disse. — Supersticiosos. Sabem o suficiente para correr de
um deus.
— De um deus peludo e pequeno em uma sunga, sim — Sadie replicou.

133
O TRONO DE FOGO

— Então o que vamos fazer agora?


Bes apontou do outro lado do rio para um palácio brilhante de pedra
branca e dourada.
— Esse é o Hermitage.
— Heróis moram aqui? — Sadie perguntou.
— Não — eu disse. — Já ouvi falar desse lugar. Era o palácio do czar. Agora
é um museu. A melhor coleção egípcia da Rússia.
— Papai te trouxe aqui, suponho? — Sadie perguntou.
Pensei que tínhamos terminado o assunto ciúmes-de-viajar-com-papai,
mas de vez em quando ele aparece de novo.
— Nunca viemos. — Tentei não soar defensivo. — Ele ganhou um convite
para palestrar aqui uma vez, mas recusou.
Bes riu.
— Seu pai era esperto. Magos russos não dão exatamente boas vindas a
forasteiros. Eles protegem seu território violentamente.
Sadie olhou do outro lado do rio.
— Quer dizer que os quartéis generais do Décimo Oitavo Nomo es-
tão dentro do museu?
— Em algum lugar dele — Bes concordou. — Mas está escondido com
magia, porque eu nunca achei a entrada. Essa parte que vocês estão vendo é
o Palácio de Inverno, a antiga casa do czar. Há um complexo de outras man-
sões atrás dele. Ouvi falar que levaria onze dias para ver a coleção inteira do
Hermitage.
— Mas a não ser que acordemos Rá, o mundo acaba em quatro dias — eu
disse.
— Três dias agora — Sadie corrigiu — se é depois da meia-noite.
Eu encolhi.
— Obrigado por lembrar.
— Então peguem o passeio mais curto — Bes disse. — Comecem com a
seção egípcia. Andar térreo, museu principal.
— Não vai vir com a gente? — perguntei
— Ele não pode, não é? — Sadie adivinhou. — Como Bastet não pôde
entrar na casa de Desjardins em Paris. Os magos encantam seus quartéis
generais contra os deuses. Não é isso?

134
CARTER

Bes fez uma cara ainda mais feia.


— Vou com vocês até ponte, mas não posso ir mais longe. Se eu atravessar
o Rio Neva muito perto do Hermitage, vou acionar todos os tipos de alar-
mes. Vocês têm que entrar sorrateiramente de algum jeito...
— Invadindo um museu à noite — Sadie murmurou. — Tivemos sorte com
isso.
— ...e achar a entrada para o Décimo Oitavo Nomo. E não sejam captu-
rados vivos.
— O que você quer dizer? — Perguntei. — É melhor sermos capturados
mortos?
O olhar em seus olhos era severo.
— Acredite em mim. Você não vai querer ser prisioneiro de Menshikov.
Bes estalou os dedos, e de repente estávamos vestindo casacos de lã, cal-
ças de esqui e botas de inverno.
— Vamos lá, malishi — ele incitou. — Vou andar com vocês pela Ponte
Dvortsovyy.

A ponte só estava a algumas centenas de metros de distância, mas parecia


mais longe. Março obviamente não era tempo de primavera em São Peters-
burgo. A escuridão, o vento e a neve faziam sentir mais como janeiro no
Alasca. Pessoalmente, eu preferiria um dia abafado no deserto egípcio.
Mesmo com as roupas quentes que Bes tinha invocado para nós, meus den-
tes não paravam de bater.
Bes não estava com pressa. Ele continuou a desacelerar e nos dar
um tour até eu achar que meu nariz cairia de congelado. Ele nos disse que
estávamos na Ilha de Vassiliev, do outro lado do Rio Neva no centro de São
Petersburgo. Ele apontou para torres de igreja diferentes e monumentos, e
quando ficava empolgado, começava a escorregar em russo.
— Você perdeu muito tempo aqui — eu disse.
Ele caminhou em silêncio por alguns passos.
— A maior parte disso foi há muito tempo. Eu não...
Ele parou tão rapidamente que tropecei nele. Ele olhou para o outro
lado da rua para um grande palácio com paredes amarelo canário e telhado
triangular verde. Iluminado durante a noite com um redemoinho de neve,

135
O TRONO DE FOGO

parecia surreal, como uma das imagens fantasmagóricas no Salão das Eras
do Primeiro Nomo.
— O palácio do príncipe Menshikov — Bes murmurou.
Sua voz estava cheia de repugnância. Eu quase achei que ele iria gritar
BOO para o prédio, mas ele só cerrou os dentes.
Sadie olhou para mim para uma explicação, mas eu não era um Wikipé-
dia ambulante como ela parecia achar. Eu sabia coisas sobre o Egito, mas
Rússia? Nem tanto.
— Você quer dizer Menshikov como Vlad, o Inalador? — Perguntei.
— Ele é um descendente.
Bes contraiu os lábios com desgosto. Ele disse uma palavra em russo que
eu estava disposto a apostar que era um insulto muito ruim.
— No século dezessete, o príncipe Menshikov deu uma festa para Pedro,
o Grande, o czar que construiu essa cidade. Pedro adorava anões. Ele era
muito parecido com os egípcios desse ponto de vista. Ele achava que davam
sorte, então sempre deixava alguns de nós em sua corte. De qualquer ma-
neira, Menshikov quis entreter o czar, então ele achou que seria engraçado
encenar um casamento anão. Ele forçou-os... ele nos forçou a vestir, casar e
dançar. Todo o grande povo estava rindo, zombando...
Sua voz vacilou.
Bes descreveu a festa como se fosse ontem. Então lembrei que esse cara
pequeno estranho era um deus. Ele esteve por aí por eras. Sadie colocou a
mão em seu ombro.
— Sinto muito, Bes. Deve ter sido terrível.
Ele fez uma careta.
— Magos russos... eles amavam capturar deuses, nos usar. Ainda posso
ouvir aquela música de casamento, e o czar rindo...
— Como você fugiu? — Perguntei.
Bes me encarou. Obviamente, tinha feito uma pergunta ruim.
— Chega — Bes arrumou sua blusa. — Estamos desperdiçando tempo.
Ele seguiu em frente, mas tive um pressentimento que ele não fugiu re-
almente do palácio de Menshikov. De repente as alegres paredes amarelas e
janelas iluminadas pareceram sinistras.

136
CARTER

Algumas centenas de metros através do vento severo, e tínhamos alcan-


çado a ponte. Do outro lado, o Palácio de Inverno brilhava.
— Vou levar a Mercedes para longe daqui — Bes disse. — Descendo a
próxima ponte, na circunferência sul do Hermitage. É menos provável aler-
tar os magos que eu estou aqui.
Agora percebi por que ele estava tão paranoico a respeito de acionar alar-
mes. Os magos tinham capturado ele em São Petersburgo uma vez antes.
Lembrei o que ele tinha nos falado no carro: Não sejam capturados vivos.
— Como vamos te encontrar se conseguirmos? — Sadie perguntou.
— Quando conseguirem — Bes disse. — Pense positivo, garota, ou o mundo
acaba.
— Certo — Sadie tremeu em seu novo casaco. — Positivo.
— Vou encontrar vocês no Nevsky Prospekt, a rua principal com todas as
lojas, ao sul do Hermitage. Vou estar no Museu do Chocolate.
— No o quê? — Perguntei.
— Bem, não é realmente um museu. É mais para uma loja... fechada a
essa hora da noite, mas o dono sempre abre para mim. Eles têm tudo de cho-
colate – xadrez, conjuntos, leões, cabeças de Vladimir Lênin...
— O cara comunista? — Perguntei.
— Sim, Professor Brilhante — Bes respondeu. — O cara comunista, de cho-
colate.
— Então deixa ver se entendi — Sadie disse. — Vamos invadir um museu
nacional russo fortemente armado, encontrar o quartel general secreto dos
magos, achar o pergaminho perigoso e escapar. Enquanto isso, você vai estar
comendo chocolate.
Bes assentiu solenemente.
— É um bom plano. Deve funcionar. Se alguma coisa acontecer e eu não
achar vocês no Museu do Chocolate, nosso ponto de saída é a Ponte Egípcia,
no sul do Canal Fontanka. Só tomem...
— Chega — Sadie interrompeu. — Você vai nos encontrar na loja de cho-
colate. E vai me providenciar uma sacola para viagem. Ponto final. Agora,
vai!
Bes deu a ela um sorriso torto.

137
O TRONO DE FOGO

— Você está certa, garota.


Ele marchou de volta para a Mercedes.
Olhei para o outro lado do rio quase congelado do Palácio de Inverno.
De algum jeito, Londres não parecia mais triste e perigosa.
— Estamos mais em apuros do que eu acho? — Perguntei a Sadie.
— Mais — ela concordou. — Vamos arrombar o palácio do czar, ok?

138
C
A
10. A visita de um velho amigo vermelho
R
T
E
R

ENTRAR NAQUELA HABITAÇÃO ISOLADA não foi um problema.


Segurança de ponta não é protegida com magia. Sadie e eu tivemos que
juntar nossas forças para passar do portão, mas com um pouco de concen-
tração, tinta e papiros, e aproveitando um pouco da energia dos nossos ami-
gos deuses Ísis e Hórus, nós conseguimos um pequeno passeio através do
Duat.
Em um minuto nós estávamos no abandonado Palace Square. Então
tudo ficou cinza e místico. Meu estômago formigava como se eu estivesse
numa queda livre. Deslizamos, sem sincronia com o mundo mortal, e passa-
mos através dos portões de ferro e pedra sólida para dentro do museu.
A sala Egípcia era no térreo, assim como Bes havia dito. Nós entramos
novamente no mundo mortal e vimos que estávamos no meio da coleção:
sarcófagos em caixas de vidro, pergaminhos com hieróglifos, estátuas de deu-
ses e faraós. Não era muito diferente de uma centena de outras coleções
Egípcias que eu já vi, mas o cenário era bastante impressionante. A sala pos-
suía um teto abobadado. O chão de mármore polido terminava em um pa-
drão em forma de diamantes branco e cinza, o que fazia com que, quando
você andasse nele, parecesse andar tipo numa ilusão de ótica. Eu imaginei
quantas salas como essa havia no palácio do czar, e se realmente levava onze
dias para vê-lo por inteiro. Eu esperava que Bes estivesse certo sobre a passa-
gem secreta para o Nomo estar em algum lugar nesta sala. Nós não tínhamos

139
O TRONO DE FOGO

onze dias para procurar. Em menos de setenta e duas horas, Apófis estaria
livre. Eu lembrava daqueles olhos vermelhos que brilhavam sob conchas de
escaravelhos – uma força do caos tão poderosa que podia derreter os senti-
dos humanos. Três dias, e essa coisa iria estar solta pelo mundo.
Sadie conjurou seu cajado e o apontou para a câmera de segurança mais
próxima. As lentes racharam e começaram a chiar. Mesmo na melhor das
situações, tecnologia e magia não andavam juntas. Um dos feitiços mais fá-
ceis do mundo era fazer aparelhos eletrônicos terem um mau-funciona-
mento. Eu só precisava olhar de um jeito engraçado para um celular para
fazê-lo explodir. E computadores? Esquece. Acho que Sadie poderia mandar
apenas um pulso mágico para o sistema de segurança e conseguiria fritar
todas as câmeras e sensores da rede.
Ainda assim, havia outras coisas para a vigilância – coisas mágicas. Eu
puxei um pedaço de pano feito de linho preto e um par de shabti feitos de
cera crua de minha mochila. Enrolei os shabti no pano e falei a palavra de
comando:
— L'mun.

O hieróglifo para Esconder brilhou brevemente sobre o pano. Muita es-


curidão veio do pacote, como uma nuvem de tinta de lula. Ela se expandiu
até cobrir Sadie e eu em uma bolha transparente de sombras. Nós podíamos
ver através dela, mas nada podia ver dentro dela. A nuvem seria invisível
para qualquer um que estivesse fora dela.
— Você fez certo dessa vez! — disse Sadie. — Quando foi que dominou
essa magia?
Eu provavelmente corei. Estava obcecado em descobrir a magia da invi-
sibilidade por meses, desde que tinha visto Zia usá-la no Primeiro Nomo.
— Na verdade, eu ainda estou... — uma centelha dourada disparou para
fora da nuvem, como um fogo de artifício em miniatura. — Eu ainda estou
aperfeiçoando-a.

140
CARTER

Sadie suspirou.
— Bem… está melhor do que da última vez. A nuvem parecia uma lâm-
pada de lava. E naquela outra vez, quando cheirava a ovo podre...
— Podemos apenas continuar andando? — eu perguntei. — Por onde de-
vemos começar?
Seus olhos foram para uma das exibições. Ela estava andando a deriva,
olhando na direção dela, em transe.
— Sadie? — eu a segui até uma lápide de pedra calcária – uma estela – que
tinha cerca de meio metro por um metro. A descrição ao lado dela estava
em russo e em inglês.
— “Túmulo do escriba Ipi” — li em voz alta. — “Trabalhou na corte do
Rei Tut”. Porque você está interessada… oh.
Como eu sou idiota. A imagem da lápide mostrava o escriba falecido
honrando Anúbis. Depois de falar com Anúbis em pessoa, Sadie deve ter
achado estranho vê-lo em uma pintura de um túmulo de três mil anos de
idade, especialmente porque ele estava retratado com a cabeça de chacal,
vestindo uma saia.
— Walt gosta de você.
Eu não tinha a menor ideia de porque balbuciei isso. Essa não era a hora
nem o lugar. Eu sabia que não estava fazendo nenhum favor a Walt pas-
sando para o lado dele. Mas comecei a me sentir mal por ele depois que Bes
o chutou da limusine. O cara havia vindo de Londres para me ajudar a salvar
Sadie, e nós o abandonamos no Parque Crystal Palace como uma carona
indesejada.
Eu estava um pouco bravo com Sadie por ela tê-lo tratado com indife-
rença e ter tido uma queda tão grande por Anúbis, que era uns cinco mil
anos mais velho que ela e nem ao menos era humano. Aliás, a forma como
ela esnobou Walt me lembrou muito a forma como Zia havia me tratado
primeiro. E talvez, sendo honesto comigo mesmo, eu também estava irritado
com Sadie porque ela resolveu os próprios problemas em Londres sem pre-
cisar da nossa ajuda.
Uau. Isso soou realmente egoísta. Mas eu suponho que fosse verdade. É
incrível de quantas maneiras diferentes uma irmã mais nova consegue te
irritar.

141
O TRONO DE FOGO

Sadie não tirou seus olhos da estela.


— Carter, você não tem ideia do que está falando.
— Você não deu uma chance pro cara — insisti. — Seja o que for que esteja
acontecendo com ele, não tem nada a ver com você.
— Muito tranquilizador, mas não é disso...
— Além disso, Anúbis é um deus. Você não acha, honestamente, que...
— Carter!
Minha nuvem enfeitiçada deve ser sensível a emoções, porque outra fa-
ísca dourada assobiou e estalou da nossa não-tão-invisível nuvem.
— Eu não estava olhando para esta pedra por causa de Anúbis.
— Não?
— Não. E estou certa de que não tenho que discutir com você sobre Walt.
Ao contrário do que você deve pensar, eu não gasto cada hora do meu dia
pensando em garotos.
— A maior parte das horas do seu dia, então?
Ela revirou os olhos.
— Olhe para a pedra, cérebro de passarinho. Tem uma fresta em volta
dela, como uma janela ou...
— Uma porta — eu disse. — É uma porta falsa. Um monte de tumbas tem
isso. É tipo um portão simbólico para o ba das pessoas mortas, para eles po-
derem ir e voltar do Duat.
Sadie puxou sua varinha e traçou a borda da estela.
— Este sujeito Ipi era um escriba, que é uma outra palavra para mago. Ele
pode ter sido um de nós.
— E?
— E talvez seja por isso que a pedra está brilhando, Carter. E se essa porta
falsa não for falsa?
Olhei para a estela mais de perto, mas não via nenhum brilho. Pensei
que talvez Sadie estivesse tendo alucinações pela exaustão ou por muita po-
ção em seu corpo. Então ela tocou com sua varinha o centro da estela e falou
a primeira palavra de comando que nós havíamos aprendido:
— W'peh.
Abra. Um hieróglifo dourado brilhou na pedra:

142
CARTER

A lápide disparou um feixe de luz, como um projetor de cinema. De


repente, uma porta em tamanho real brilhou diante de nós – um portal re-
tangular mostrando a vaga imagem de uma outra sala.
Eu olhei com espanto para Sadie.
— Como você fez isso? — perguntei. — Você nunca foi capaz de fazer isso
antes.
Ela deu de ombros como se não fosse nada de mais.
— Eu não tinha treze anos antes. Talvez seja isso.
— Mas eu tenho catorze! — protestei. — E eu ainda não consigo fazer isso.
— Garotas amadurecem mais cedo.
Cerrei os dentes. Eu odiava os meses de primavera – março, abril, maio
– porque até o meu aniversário chegar, em junho, Sadie podia dizer que era
apenas um ano mais nova que eu. Ela sempre tomava uma atitude depois de
seu aniversário, como se pudesse me pegar no colo e virar minha irmã mais
velha. Tipo um pesadelo.
Ela apontou para a porta brilhante.
— Depois de você, querido irmão. Você é o com a nuvem brilhante e
invisível.
Antes que pudesse perder a calma, pisei para além do portal.

Eu quase caí e quebrei a cara. Do outro lado da porta estava pendurado um


espelho há um metro e meio do chão. Eu havia pisado em uma cornija de
lareira. Parei Sadie assim que ela veio, exatamente na hora de impedi-la de
cair para fora da borda.
— Obrigada — ela sussurrou. — Alguém andou lendo muito Alice Através
do Espelho.
Eu achei que a sala egípcia era impressionante, mas não era nada com-
parado a esse salão. Enfeites geométricos cor de cobre brilhavam no teto. As
paredes eram revestidas de colunas verde escuro e de portas douradas. No
chão, um padrão octogonal enorme, dourado e branco-mármore. Com um

143
O TRONO DE FOGO

candelabro brilhante em cima, uma pedra de filigrana dourada, verde e


branco-polido brilhava tão fortemente que feria meus olhos.
Então percebi que a maior parte da luz não estava vindo do candelabro.
Estava vindo do mago que lançava um feitiço no outro extremo da sala. Es-
tava de costas, mas eu podia dizer que era Vlad Menshikov. Assim como
Sadie o havia descrito, ele era um homem gorducho, com cabelo encaraco-
lado e cinzento e um terno branco. Estava em um círculo de proteção que
pulsava com uma luz cor de esmeralda. Ele levantou seu cajado e a ponta
ardeu como uma tocha de soldagem. À sua direita, fora do círculo, havia um
vaso verde do tamanho de um homem adulto. À sua esquerda, contorcendo-
se em correntes brilhantes, estava uma criatura que eu reconheci como
sendo um demônio. Ele tinha um corpo humanoide peludo, com a pele
arroxeada, mas ao invés de uma cabeça, um saca-rolhas gigante brotava de
entre os seus ombros.
— Misericórdia! — ele gritou com uma voz metálica e lacrimosa.
Não me pergunte como um demônio pode gritar com uma cabeça de
saca-rolhas, mas o som ressoou e ecoou como se fosse um diapasão gigante.
Vlad Menshikov continuou cantando. O vaso verde vibrava com a luz.
Sadie me cutucou e cochichou:
— Olhe.
— Sim — eu sussurrei de volta. — Algum tipo de ritual de invocação.
— Não — ela cochichou. — Olhe lá!
Ela apontou para a nossa direita. No canto da sala, há seis metros da
lareira, havia uma mesa de mogno fora de moda.
Sadie havia me falado sobre as instruções de Anúbis: Devíamos encon-
trar a mesa de Menshikov. O próximo pedaço do Livro de Rá estaria na
gaveta do meio. Poderia ser essa realmente a mesa? Parecia muito fácil. Tão
silenciosamente quanto podíamos, Sadie e eu escalamos para fora da lareira
e nos arrastamos ao longo da parede. Rezei para a nuvem da invisibilidade
não soltar mais nenhuma faísca.
Estávamos na metade do caminho até a escrivaninha quando Vlad Mens-
hikov terminou seu cântico. Bateu no chão com o cajado, que ficou ali em
pé, a extremidade ainda queimando com um milhão de graus. Menshikov
virou ligeiramente a cabeça, e pude ver parte da armação branca de seus

144
CARTER

óculos de sol. Ele vasculhava os bolsos do paletó enquanto o grande vaso


verde pulsava e o demônio acorrentado gritava.
— Não fique nervoso, Morte-às-Rolhas — Menshikov censurou. Sua voz
era ainda pior do que Sadie havia descrito – como um fumante falando atra-
vés de pás de um ventilador. — Você sabe que eu preciso de um sacrifício
para convocar um deus maior. Não é nada pessoal.
Sadie franziu as sobrancelhas e gesticulou com a boca, deus maior?
Eu balancei a cabeça, confuso. A Casa da Vida não permitia que mortais
convocassem deuses. Esse foi o principal motivo de Desjardins nos odiar.
Menshikov supostamente era o seu melhor amigo. Então o que ele estava
fazendo, quebrando as regras?
— Dói! — o pobre demônio gemeu. — Servi você por cinquenta anos,
mestre. Por favor!
— Chega, chega — Menshikov disse, sem um traço de simpatia. — Eu te-
nho que fazer uma execração. Somente a forma mais dolorosa de banimento
vai gerar energia suficiente.
Do bolso do paletó do terno, Menshikov puxou um saca-rolhas comum
e um caco de cerâmica coberto com hieróglifos vermelhos.
Ele ergueu os itens e começou a cantar novamente.
— Eu te nomeio Morte-às-Rolhas, o Servo de Vladimir, Aquele Que Se
Transformou na Noite.
Enquanto o nome do demônio era dito, as correntes mágicas soltaram
vapor e se apertaram ao redor de seu corpo. Menshikov segurou o saca-rolhas
acima das chamas de seu cajado. O demônio se debulhou e lamentou. Assim
que o pequeno saca-rolhas ficou em brasas, o corpo do demônio começou a
soltar fumaça.
Eu assistia com horror. Sabia sobre a magia empática, é claro. A ideia era
fazer algo pequeno afetar algo grande, ligando-os. Quanto mais parecidos os
itens eram – como o saca-rolhas e o demônio – mais fácil era de ligá-los.
Bonecos de vodu funcionavam na mesma teoria.
Mas a execração era coisa séria. Isso significava destruir uma coisa total-
mente – apagando a sua forma física, e até mesmo o seu nome, da existência.
Precisava de algumas magias sérias para retirar esse tipo de magia. Se feito

145
O TRONO DE FOGO

errado, poderia destruir quem a lançava. Mas, se feita corretamente, a mai-


oria das vítimas não teria a menor chance. Mortais normais, magos, fantas-
mas, até mesmo demônios, poderiam ser varridos da face da terra. Execração
não podia destruir grandes potências, como os deuses, mas ainda assim seria
como detonar uma bomba nuclear nos rostos deles. Eles seriam jogados tão
profundamente no Duat que talvez nunca mais voltassem.
Vlad Menshikov fez essa magia como se a fizesse todos os dias. Ele con-
tinuou cantando enquanto o saca-rolhas começava a derreter, e o demônio
derretia com ele. Menshikov deixou o caco de cerâmica cair no chão – os
hieróglifos vermelhos que descreviam todos os vários nomes dos demônios.
Com uma palavra final de poder, Menshikov pisou no caco e o esmagou aos
pedacinhos. Morte-às-Rolhas havia dissolvido, assim como suas correntes e
todo o resto.
Normalmente, eu não sinto pena de criaturas do submundo, mas não
pude deixar de ficar com um nó na garganta. Eu não conseguia acreditar no
jeito casual com que Menshikov havia extinguido o seu servo, só para poder
ampliar seu feitiço.
Logo que o demônio foi embora, o fogo no cajado de Menshikov mor-
reu. Hieróglifos queimaram ao redor do círculo de invocação. O grande
jarro verde tremeu e uma voz lá do fundo rugiu.
— Olá, Vladimir. Quanto tempo.
Sadie inalou nitidamente. Eu tive que cobrir a boca para impedi-la de
gritar. Nós dois conhecíamos aquela voz. Eu me lembrei de tudo muito bem,
desde a Pirâmide Vermelha.
— Set.
Menshikov não parecia ao menos cansado da convocação. Ele parecia
incrivelmente calmo para alguém que acabara de abordar o deus do mal.
— Nós precisamos conversar.
Sadie empurrou minha mão e sussurrou:
— Ele está louco?
— Mesa — eu disse. — Pergaminho. Fora daqui. Agora.
Pela primeira vez, ela não argumentou comigo. Ela começou a pescar
objetos de sua bolsa.
Enquanto isso, o jarro verde e grande balançava como se Set estivesse

146
CARTER

tentando entorná-lo.
— Um vaso malaquita? — O deus parecia irritado. — Sério, Vladimir. Pen-
sei que estávamos em condições mais amigáveis do que isso.
A risada de Menshikov parecia alguém esganando um gato.
— Excelente para prender espíritos malignos, não é? E este quarto tem
mais malaquita do que qualquer outro lugar do planeta. A Imperatriz Ale-
xandra foi bastante prudente em ter isso construído em sua sala de estar.
A jarra tilintou.
— Mas cheira moedas antigas aqui, e é muito frio. Você um dia já ficou
preso em um vaso malaquita, Vlad? Eu não sou um gênio. Eu ficaria muito
mais conversável se pudesse me sentar frente a frente, talvez tomando chá.
— Temo que não — disse Menshikov. — Agora, você vai responder minhas
perguntas.
— Oh, é claro — Set respondeu. — Eu gosto do Brasil na Copa do Mundo.
Eu o aconselho a fazer um investimento em platina e em fundos de pequena-
cobertura. E os seus números da sorte desta semana são 2, 13...
— Não estas perguntas! — disparou Menshikov.
Sadie puxou um pedaço de cera de sua bolsa e começou a trabalhar ar-
duamente, formando uma espécie de forma animal. Eu sabia que ela ia testar
a mesa para magias defensivas. Ela era melhor neste tipo de magia do que
eu, mas eu não tinha certeza de como ela o faria. Magia egípcia é bastante
ampla. Há sempre mil maneiras diferentes para realizar uma tarefa. O truque
é ser criativo com o que se tem de material e escolher um caminho que não
vá te matar.
— Você vai me dizer o que eu preciso saber — Menshikov pediu — ou essa
jarra vai ficar ainda mais desconfortável.
— Meu querido Vladimir. — A voz de Set era cheia de um divertimento
maléfico. — O que você precisa saber pode ser bem diferente do que
você quer saber. O seu lamentável acidente não te ensinou isso?
Menshikov tocou os seus óculos escuros, como se para ter certeza de que
eles não haviam caído.
— Você vai me dizer a ligação para Apófis — ele disse em um tom de aço.
— E depois vai me dizer como neutralizar os encantamentos da Casa do Bro-
oklyn. Você conhece as defesas dos Kane melhor do que ninguém. Uma vez

147
O TRONO DE FOGO

que eu os destrua, não vou ter opositores.


Assim que o significado das palavras de Menshikov afundou em mim,
uma onda de fúria quase me fez cair. Desta vez, Sadie teve que tampar a
minha boca para ela ficar fechada.
— Calma! — ela sussurrou. — Você vai fazer a nuvem da invisibilidade
começar a estalar de novo!
Empurrei a mão dela e sussurrei:
— Mas ele quer Apófis livre!
— Eu sei.
— E quer atacar Amós...
— Eu sei! Então me ajude a pegar aquela droga de coisa e vamos sair
daqui!
Ela colocou o animal de cera sobre a mesa – um cão, eu acho – e come-
çou a escrever hieróglifos nas costas dele com um estilete.
Eu tomei um fôlego instável. Sadie estava certa, mas ainda assim, Mens-
hikov estava falando sobre como libertar Apófis e matar nosso tio. Que tipo
de mago faz acordos com Set? Com exceção de Sadie e eu. Aquilo foi dife-
rente.
A risada de Set ecoou dentro do vaso verde.
— Então: a ligação para Apófis e os segredos da Casa do Brooklyn. É só
isso, Vladimir? Gostaria de saber o que o seu mestre, Desjardins, pensaria se
descobrisse o seu plano real, e o tipo de amigos que você tem.
Menshikov pegou seu cajado. A ponta esculpida de serpente recomeçou
a queimar.
— Tenha cuidado com suas ameaças, Dia do Mal.
O vaso tremeu. Ao longo da sala, caixas de vidro estremeceram. O can-
delabro fez um som estridente, como se um carrilhão de vento de três tone-
ladas estivesse soprando.
Eu dei um olhar de pânico para Sadie.
— Ele acabou de pronunciar...
— O nome secreto de Set — ela confirmou, ainda escrevendo em seu ca-
chorro de cera.
— Como...
— Eu não sei, Carter. Agora, shh!

148
CARTER

O nome secreto de um deus tinha todo o tipo de poder. Era pratica-


mente impossível de se conseguir. Para realmente aprendê-lo, você não pode
apenas ouvi-lo repetidas vezes de alguma pessoa aleatória. Você tem que ou-
vir diretamente do próprio deus, ou da pessoa mais próxima ao seu coração.
Uma vez que você o tenha, o nome lhe dava uma vantagem mágica séria
sobre esse deus. Sadie tinha aprendido o nome secreto de Set durante a
nossa missão no último Natal, mas como Menshikov o havia conseguido?
Dentro do vaso, Set rosnou com aborrecimento.
— Eu realmente odeio esse nome. Por que não poderia ter sido Dia da
Glória? Ou o Ceifeiro Vermelho que Detona? Isso seria bastante agradável.
Já era ruim o bastante quando você era o único que o conhecia, Vlad. Agora
eu tenho a garota Kane para me preocupar...
— Nos sirva — Menshikov disse — e os Kane serão destruídos. Você será
homenageado o tenente de Apófis. Pode levantar outro templo, ainda maior
do que a Pirâmide Vermelha.
— Aham — Set falou. — Talvez você não tenha notado, mas eu não faço
bem o tipo da coisa de segundo-no-comando. Quanto a Apófis, ele não é o
único a sofrer para chamar a atenção dos outros deuses.
— Nós iremos libertar Apófis, com ou sem a sua ajuda — Menshikov avi-
sou. — No equinócio, ele irá se levantar. Mas se você nos ajudar a fazer as
coisas acontecerem mais rápido, será recompensado. A sua outra opção é a
execração. Oh, eu sei que não vai te destruir completamente, mas com o seu
nome secreto eu consigo te enviar para o abismo da eternidade, e isso será
muito, muito doloroso. Eu te darei trinta segundos para decidir.
Cutuquei Sadie.
— Mais rápido.
Ela bateu no cão de cera, e ele veio à vida. Começou a cheirar em torno
da mesa, olhando para as armadilhas mágicas.
Dentro do vaso, Set suspirou.
— Bem, Vladimir, você sabe como fazer uma oferta atraente. A ligação
para Apófis, você diz? Sim, eu estava lá quando Rá prendeu a Serpente na-
quela prisão de escaravelhos. Suponho que eu devesse lembrar os ingredien-
tes que ele usou para a ligação. Foi há muito tempo! Eu estava vestindo ver-
melho, acho. Na festa da vitória que ele serviu os gafanhotos mais deliciosos,

149
O TRONO DE FOGO

cozidos com mel...


— Você tem dez segundos — disse Menshikov.
— Oh, eu vou ajudar! Espero que você tenha uma caneta e um papel em
mãos. É uma lista realmente longa de ingredientes. Deixe-me ver… o que Rá
usou para a base? Esterco de morcego? Então havia os sapos secos, é claro. E
depois...
Set começou a tagarelar ingredientes, enquanto o cão de cera de Sadie
farejava ao redor da mesa. Por fim, deitou-se sobre o talão e dormiu.
Sadie franziu a testa para mim.
— Sem armadilhas.
— Isso está muito fácil — sussurrei de volta.
Ela abriu a gaveta de cima. Lá estava o rolo de papiro, tal como aquele
que tínhamos encontrado no Brooklyn. Ela o colocou em sua bolsa.
Estávamos na metade do caminho de volta para a lareira quando Set nos
pegou de surpresa.
Ele continuava sua lista de ingredientes ridículos:
— E pele de cobra. Sim, três grandes, com uma pitada de molho quente...
Então ele parou rapidamente, como se tivesse uma revelação. Ele falou
numa voz bem mais alta, que preenchia toda a sala.
— E uma vítima para um sacrifício seria bom! Talvez um mago jovem e
idiota que não consegue fazer um feitiço de invisibilidade adequado, como
CARTER KANE, ali atrás!
Congelei. Vladimir Menshikov se virou, e o meu pânico se tornou
grande demais para a nuvem de invisibilidade.
Meia dúzia de faíscas douradas pularam com um alto e fe-
liz WHEEEEE! A nuvem de escuridão se dissolveu.
Menshikov olhou diretamente para mim.
— Ora, ora... que sorte a de vocês de se entregarem. Muito bem, Set.
— Humm? — Set perguntou inocentemente. — Nós temos visitas?
— Set! — rosnou Sadie. — Eu vou te chutar em forma de ba se precisar,
então me ajude!
A voz no vaso ofegou.
— Sadie Kane? Que emocionante! Pena que estou preso neste vaso e nin-
guém me deixa sair.

150
CARTER

A dica não foi muito sutil, mas sério, ele realmente acreditava que nós
íamos soltá-lo depois de ele estragar nosso disfarce? Sadie encarou Menshi-
kov, sua varinha e seu cajado prontos.
— Você está trabalhando para Apófis. Está do lado errado.
Menshikov tirou os óculos. Seus olhos eram poços de cicatrizes arruina-
dos, a pele queimada e as córneas brilhantes. Acredite em mim, essa é a
forma menos nojenta de descrevê-lo.
— Do lado errado? — Menshikov perguntou. — Garota, você não tem nem
ideia do tanto de poder que está em jogo. Há cinco mil anos, sacerdotes
egípcios profetizaram o modo como o mundo iria acabar. Rá iria ficar velho
e cansado, e Apófis iria engoli-lo e mergulharia o mundo em trevas. O Caos
iria governar para sempre. Essa é a hora! Você não pode deter isso. Só pode
escolher se vai ser destruído ou se vai se curvar ao poder do caos e sobreviver.
— Certo — Set comentou. — É muito ruim eu estar preso neste vaso. Porque
senão eu poderia tomar um partido e ajudar alguém.
— Cale-se, Set — repreendeu Menshikov. — Ninguém seria louco o sufici-
ente para confiar em você. E quanto a vocês, crianças, claramente não são a
ameaça que eu imaginava que fossem.
— Ótimo — falei. — Então podemos ir?
Menshikov riu.
— Para vocês irem correndo à Desjardins e dizerem tudo o que ouviram?
Ele não acreditaria em vocês. Ele iria julgá-los e depois executá-los. Mas eu
vou poupá-los do constrangimento. Vou matá-los agora.
— Que divertido! — disse Set. — Eu queria poder ver, mas estou preso nesse
vaso.
Eu tentei pensar. Menshikov ainda estava dentro do círculo de proteção,
o que significava que ele tinha uma grande vantagem defensiva. Eu não es-
tava muito certo que poderia acabar com ele, mesmo se pudesse invocar o
meu avatar de combate. Enquanto isso, Menshikov tomava seu tempo ten-
tando encontrar maneiras diferentes de nos destruir. Será que ele iria nos
explodir com magia elementar? Nos transformar em besouros?
Ele jogou seu cajado no chão, e eu xinguei.
Jogar o seu cajado no chão deveria parecer algo como um sinal de rendi-
ção, mas na magia egípcia, é uma má notícia. Geralmente significa Ei, eu vou

151
O TRONO DE FOGO

convocar uma coisa enorme e desagradável para te matar, enquanto fico seguro den-
tro do meu círculo e dou risadas!
Como eu já imaginava, o cajado de Menshikov começou a se contorcer
e a crescer.
Ótimo, pensei. Outra serpente.
Mas algo estava errado com esta. Em vez de uma cauda, ela tinha cabeças
em ambas as extremidades. No começo pensei que nós havíamos tido um
pouco de sorte e que Menshikov invocara um monstro com um defeito ge-
nético raro. Então, da coisa, brotaram quatro pernas de dragão. Seu corpo
cresceu até que ele ficasse do tamanho de um cavalo, curvado como um U,
com tons em escalas de verde e vermelho e uma cabeça de cascavel em ambos
os lados. Isso me lembrou o animal de duas cabeças de Doutor Dolittle.
Sabe, o mimpurra-tupuxa? Só que Doutor Dolittle nunca iria querer falar
com essa coisa, e mesmo que quisesse, ela provavelmente diria Olá, eu vou te
comer.
As duas cabeças se viraram na nossa direção e sibilaram.
— Eu realmente já tive a minha dose de cobras por uma semana — mur-
murei.
Menshikov sorriu.
— Ah, mas serpentes são a minha especialidade, Carter Kane!
Ele tocou em um pingente de prata que estava pendurado em seu colar
– um amuleto em forma de serpente.
— E essa criatura em especial é a minha favorita: a tjesu heru. Duas bocas
famintas para alimentar. Duas crianças travessas. Perfeito!
Sadie e eu nos entreolhamos. Tivemos um daqueles momentos em que
podíamos ler as expressões um do outro perfeitamente.
Nós dois sabíamos que não conseguiríamos derrotar Menshikov. Ele fa-
ria com que a cobra mimpurra-tupuxa nos desgastasse e depois, se sobrevi-
vêssemos a isso, iria apenas nos explodir como qualquer outra coisa. O cara
era profissional. Nós iríamos morrer, ou então, seríamos capturados, e Bes
havia nos avisado sobre não sermos capturados com vida. Depois de ver o
que havia acontecido com aquele demônio Morte-às-Rolhas, eu levei a ad-
vertência de Bes à sério.
Para sobreviver, nós teríamos que fazer algo maluco, algo tão suicida que

152
CARTER

Menshikov nunca imaginaria. Nós tivemos que pedir ajuda imediatamente.


— Devo? — perguntou Sadie.
— Faça — concordei.
A tjesu heru mostrou suas presas pingando. Você não pensaria que uma
criatura sem fim poderia se mover tão rápido, mas as duas cabeças vieram
na nossa direção como uma ferradura gigante e atacou.
Puxei minha espada. Sadie foi mais rápida.
Ela apontou seu cajado para o vaso de malaquita de Set e gritou as suas
palavras de comando preferidas:
— Ha-di!
Eu estava com medo que isso não funcionasse. Ela não tentara o feitiço
de destruição desde que se separara de Ísis. Mas pouco antes do monstro
chegar em mim, a jarra verde já havia quebrado.
Menshikov gritou:
— Nyet!
Uma tempestade de areia explodiu pela sala. Ventos quentes empurra-
ram Sadie e eu contra a lareira. A parede de areia vermelha bateu no tjesu
heru e o mandou voando até a coluna de malaquita lateral. Vlad Menshikov
foi jogado para a direita, fora de seu círculo de proteção, e bateu a cabeça na
mesa. Ele caiu no chão, areia vermelha rodopiando sobre si, até que ficou
completamente enterrado.
Quando a tempestade se acalmou, um homem em um terno de seda ver-
melho ficou na nossa frente. Ele tinha cor de um suco de cereja, cabeça
raspada, um cavanhaque escuro e brilhante e olhos pretos e alinhados
com kohl. Parecia um demônio egípcio pronto para uma noite na cidade.
Ele sorriu e estendeu as mãos num gesto de tcharam!
— Assim está melhor! Obrigado, Sadie Kane!
À nossa esquerda, o tjesu heru sibilou e se debateu, tentando ficar em pé
novamente. A pilha de areia vermelha que recobria Vlad Menshikov come-
çou a se mover.
— Faça alguma coisa, Dia do Mal! — Sadie ordenou. — Livre-se deles!
Set estremeceu.
— Não precisa tornar os nomes algo pessoal.

153
O TRONO DE FOGO

— Talvez você prefira Ceifeiro Vermelho que Detona? — perguntei.


Set gesticulou uma moldura com os dedos, como se imaginasse o nome
em sua carteira de motorista.
— Sim... esse monstro é legal, não é?
O tjesu heru cambaleou até ficar de pé. Balançou a cabeça e nos encarou,
mas parecia ignorar Set, mesmo que tenha sido ele o culpado de jogá-lo con-
tra a parede.
— Esse bicho tem uma coloração bonita, não é? — Set perguntou. — Um
espécime lindo.
— Mate-o! — gritei.
Set olhou chocado.
— Oh, eu não posso fazer isso! Eu sou muito afeiçoado a cobras. Além
disso, o CDTEM iria ficar no meu pé.
— CDTEM? — perguntei. — Conselho de Divindades pelo Tratamento
Ético com Monstros.
— Você está inventando!
Set sorriu.
— Ainda assim... temo que tenham de lidar com o tjesu heru vocês mes-
mos.
O monstro sibilou para nós, o que provavelmente significava Ótimo! Er-
gui a espada para mantê-lo afastado.
A pilha de areia vermelha se moveu. O rosto abobalhado de Menshikov
surgiu do topo da areia. Set estalou os dedos e uma grande panela de barro
apareceu no ar, quebrando sobre a cabeça do mago. Menshikov caiu de volta
na areia.
— Eu vou ficar aqui e entreter Vladimir — disse Set.
— Você não pode execrá-lo, ou algo assim? — exigiu Sadie.
— Oh, eu bem que gostaria! Infelizmente, fico muito limitado quando
alguém possui o meu nome secreto, especialmente quando esse alguém me
deu ordens específicas para não matá-lo. — Ele olhou acusatoriamente para
Sadie. — De qualquer forma, posso lhes conseguir alguns minutos, mas Vlad
vai ficar muito bravo quando acordar, então eu teria pressa se fosse vocês.
Boa sorte com o negócio da sobrevivência! E boa sorte em comê-los, tjesu

154
CARTER

heru!
Eu queria estrangular Set, mas tinha problemas maiores. Como se enco-
rajado pela conversa de Set, o tjesu heru investiu contra nós. Sadie e eu cor-
remos para a porta mais próxima.
Corríamos pelo Palácio de Inverno com a risada de Set ecoando atrás de
nós.

155
S
A
11. Carter faz algo incrivelmente estúpido (e
D
ninguém se surpreende)
I
E

EU ENTENDI, CARTER. Eu entendi.


Me deixou contar a parte mais dolorosa, eu não posso te culpar. O que
aconteceu foi ruim o suficiente para mim, mas para você... bem, eu não
quero falar sobre esse assunto.
Nós estávamos no Palácio de Inverno, correndo pelos corredores de már-
more polido que não foram projetados para correr. Atrás de nós, um tjesu
heru de duas cabeças derrapava e batia nas paredes enquanto tentava virar os
cantos, muito parecido como Muffin costumava fazer sempre que a vovó
esfregava o chão. Essa foi a única razão para o monstro não nos pegar ime-
diatamente.
Assim surgimos na Sala Malaquita, eu não tinha ideia de onde ficava a
saída mais próxima. Eu nem tinha certeza se realmente estávamos no Palácio
de Inverno, ou se o escritório de Menshikov tinha alguma cópia que só exis-
tia no Duat. Estava começando a achar que nunca sairíamos quando vira-
mos uma curva, descemos correndo uma escada, e vimos um conjunto de
portas de vidro e ferro que levava para a Praça do Palácio.
O tjesu heru estava bem atrás de nós. Ele escorregou e rolou pela escada,
demolindo uma estátua de gesso de algum czar infeliz.
Estávamos a dez metros da saída quando vi os cadeados entre as portas.

156
SADIE

— Carter — ofeguei, acenando desesperadamente para os cadeados.


Odeio admitir quão fraca eu estava. Eu não tinha forças para outra ma-
gia. Rachar o vaso de Set na Sala Malaquita foi meu último suspiro, que é
um bom exemplo de por que você não deve usar magia para resolver todos
os seus problemas. Invocar a Palavra Divina para quebrar o vaso tinha to-
mado tanta energia, que eu me sentia como se estivesse cavando buracos no
sol ardente. Seria bem mais fácil apenas arremessar uma pedra. Se eu sobre-
vivesse àquela noite, decidiria acrescentar algumas pedras na minha bolsa de
utilidades.
Estávamos a três metros quando Carter empurrou sua mão em direção à
porta. O Olho de Hórus queimou contra o cadeado e as portas explodiram
como se tivessem sido golpeadas por um punho gigante. Eu não tinha visto
Carter fazer nada como isso desde nossa luta na Pirâmide Vermelha, mas
não tive tempo para ficar de boca aberta. Disparamos pela noite de inverno,
o tjesu heru rugindo atrás de nós.
Você vai achar que eu estava louca, mas meu primeiro pensamento
foi: Isso foi muito fácil.
Apesar de o monstro nos perseguir e dos negócios com Set (quem eu
estrangularia na primeira oportunidade – que traidor imbecil!), eu não pude
deixar de sentir que tínhamos violado o santuário de Menshikov e apanhado
o rolo sem problemas o suficiente. Onde estavam as armadilhas? Os alarmes?
As maldições de explodir burros? Eu tinha certeza que tínhamos roubado o
rolo autêntico.
Senti o mesmo formigamento em meus dedos como quando eu tinha
pegado o único do Museu do Brooklyn (sem o incêndio, felizmente). Então
por que o rolo não tinha sido mais bem protegido?
Eu estava tão cansada, que caí alguns passos atrás de Carter, o que pro-
vavelmente salvou a minha vida. Senti uma sensação de arrepio pelo meu
coro cabeludo. Senti a escuridão acima de mim – um sentimento que me
lembrava muito das trevas das asas de Nekhbet. Olhei para cima e vi o tjesu
heru voando por cima de nossas cabeças como uma enorme rã-touro, a
tempo de colocar sua garra para pousar...
— Carter, pare! — gritei.
É mais fácil dizer do que fazer no pavimento congelado. Eu derrapei até

157
O TRONO DE FOGO

parar, mas Carter estava indo rápido demais. Ele caiu sobre seu traseiro e
escorregou. Sua espada deslizou para o lado.
O tjesu heru pousou bem em cima dele. Se não tivesse uma forma de U,
Carter seria esmagado; mas aquilo se curvou ao redor dele como um enorme
par de fones de ouvido, uma cabeça olhando abaixo para ele dos dois lados.
Como alguma coisa tão grande podia saltar tão longe? Tarde demais,
percebi que poderíamos ter ficado lá dentro onde era mais difícil para o
monstro se mexer. Lá fora, não tínhamos chance de ultrapassá-lo.
— Carter — falei. — Fique totalmente parado.
Ele congelou na posição de caranguejo. As duas cabeças do monstro pin-
gavam veneno que sibilaram e cozinharam as pedras de gelo.
— Oi! — gritei.
Não tendo nenhuma pedra, peguei um pedaço grosso de gelo quebrado
e arremessei no tjesu heru. Certamente acertei as costas de Carter ao invés
disso. Mesmo assim, peguei a atenção do tjesu heru.
As duas cabeças se viraram na minha direção, as duas línguas tremu-
lando. Primeira etapa concluída: distrair o monstro.
Segunda etapa: encontrar algum jeito inteligente de afastar aquilo de
Carter. Essa parte estava me dando um pouco mais de trabalho.
Eu tinha usado minha única poção. A maioria dos meus suprimentos
mágicos se foi. Meu cajado e minha varinha não melhorariam a situação
com as minhas reservas mágicas drenadas. A faca de Anúbis? De algum jeito
eu duvidava que aquela fosse a situação certa para abrir a boca de alguém.
O amuleto de Walt? Eu não tinha a menor ideia de como usar.
Pela milionésima vez, me arrependi de ter aberto mão do espírito de Ísis.
Eu sem dúvida podia ter usado o arsenal mágico completo da deusa. Mas, é
claro, aquilo foi exatamente o porquê que eu tive que me separar dela.
Aquele tipo de poder é embriagante, perigosamente viciante. Pode destruir
sua vida, bem rápido.
E se eu pudesse criar um elo limitado? Na Sala Malaquita, eu dominei a
magia Ha-di pela primeira vez em meses. E embora tivesse sido difícil, não
foi impossível.
Certo, Ísis, pensei. Aqui está o que eu preciso...

158
SADIE

Não pense Sadie, sua voz sussurrou de volta quase imediatamente, o que
foi um choque muito grande. A magia divina tem que ser involuntária, como
respirar.
Você quer dizer... Parei.
Não pense.
Bem, aquilo não poderia ser tão difícil. Levantei meu cajado e um hieró-
glifo dourado brilhou no ar. Um tyet de um metro de altura iluminou o pá-
tio como uma estrela de árvore de Natal.
O tjesu heru rosnou, seus olhos amarelos fixos no hieróglifo.
— Não gosta disso, hein? — gritei. — O símbolo de Ísis, seu vira-lata feio.
Agora, fique longe do meu irmão!
Foi um blefe total, é claro. Eu duvidava que um sinal brilhante pudesse
fazer algo de útil. Mas esperava que a criatura cobra não fosse inteligente o
suficiente para saber disso.
Lentamente, Carter se moveu para trás. Ele olhou para sua espada, mas
ela estava a dez metros de distância – muito fora de alcance.
Mantive meus olhos no monstro. Usei o topo do meu cajado para traçar
um círculo mágico na neve ao meu redor. Isso não daria muita proteção,
mas era melhor que nada.
— Carter — gritei — quando eu disser vai, corra para cá.
— Essa coisa é muito rápida! — ele disse.
— Vou tentar detonar o hieróglifo e cegá-lo.
Eu ainda acho que o plano teria funcionado, mas não tive chance de
tentar. Em algum lugar à minha esquerda, botas esmagaram o gelo. O mons-
tro se virou na direção do som.
Um homem jovem corria para a luz do hieróglifo. Ele estava vestido em
um casaco de lã pesado e um chapéu de policial, com uma espingarda em
suas mãos, mas não podia ser muito mais velho que eu. Ele estava pratica-
mente se afogando em seu uniforme. Quando ele viu o monstro, seus olhos
se arregalaram. Ele tropeçou para trás, quase derrubando sua arma.
Ele gritou alguma coisa para mim em russo, provavelmente, “Por que
tem um monstro serpente de duas cabeças sem traseiro?”
O monstro sibilou para nós dois – o que ele podia fazer, tendo duas

159
O TRONO DE FOGO

cabeças.
— Isso é um monstro — eu disse ao guarda.
Eu tinha quase certeza que ele não conseguia entender, mas tentei man-
ter meu tom firme.
— Fique calmo e não atire. Estou tentando salvar meu irmão.
O guarda engoliu. Suas orelhas largas eram as únicas coisas que apare-
ciam sob seu chapéu. Ele olhou do monstro para Carter e para o tyet bri-
lhando acima de minha cabeça. Então ele fez algo que eu não esperava.
Ele disse uma palavra do Egito Antigo:
— Heqat — o comando que eu sempre usava para invocar meu cajado. Sua
espingarda virou um bastão de carvalho de dois metros de altura com uma
cabeça de falcão esculpida.
Que maravilha, pensei. Os guardas de segurança eram magos em se-
gredo.
Ele se dirigiu a mim em russo – algum tipo de aviso. Reconheci o
nome Menshikov.
— Deixe-me adivinhar — eu disse. — Você quer me levar para seu líder.
O tjesu heru estalou as mandíbulas. Ele estava perdendo medo do
meu tyet brilhante muito rápido. Carter não estava longe o suficiente para
correr dele.
— Olha — falei ao guarda — seu chefe, Menshikov, é um traidor. Ele in-
vocou essa coisa para nos matar, assim não iríamos atrapalhar seus planos
de libertar Apófis. Entende a palavra Apófis? Cobra má. Cobra muito má!
Agora, ou me ajude a matar esse monstro ou fique fora do meu caminho!
O guarda-mago hesitou. Ele apontou para mim nervoso.
— Kane.
Não era uma pergunta.
— Sim — concordei. — Kane.
Sua expressão era uma mistura de emoções – medo, incredulidade, até
mesmo respeito. Eu não sabia o que ele tinha ouvido sobre nós, mas antes
de poder decidir entre nos ajudar ou lutar contra nós, a situação saiu do
controle.
O tjesu heru investiu. Meu irmão ridículo, em vez de rolar para fora do

160
SADIE

caminho, enfrentou o monstro.


Ele fechou seus braços ao redor do pescoço direito da criatura e tentou
subir em suas costas, mas o tjesu heru simplesmente virou sua outra cabeça e
o atacou.
O que Carter estava pensando? Talvez ele achasse que podia montar a
besta. Talvez estivesse tentando me comprar alguns segundos para conjurar
um feitiço. Se você perguntar a ele sobre isso agora, ele vai afirmar que não
foi completamente um acidente. Mas se você perguntar para mim, o idiota
estava tentando me salvar, mesmo que isso significasse se sacrificar. Que
raiva!
[Oh, sim, agora você tenta se explicar, Carter. Você acha que eu não me
lembro disso! Só fique quieto e me deixe contar a história.]
Como eu estava dizendo, o tjesu heru atacou Carter, e tudo pareceu desa-
celerar. Eu me lembro de gritar, baixando meu cajado para o monstro. O
soldado-mago gritou alguma coisa em russo. A criatura afundou suas presas
no ombro esquerdo de Carter, e ele caiu no chão.
Esqueci meu círculo improvisado. Corri em direção a ele, e meu cajado
brilhou. Eu não sei como manejei o poder. Como Ísis disse, eu não pensei.
Eu simplesmente canalizei toda a minha raiva para meu cajado.
Ver Carter machucado foi a última ofensa. Meus avós foram possuídos.
Minhas amigas foram atacadas e meu aniversário arruinado. Atacar Carter
passou dos limites. Ninguém podia machucar meu irmão.
Soltei um raio de luz dourada que atingiu o monstro com a força de um
jato de areia. O tjesu heru se desfez em pedaços, até não ter nada restando
além de uma camada de areia fumegando na neve e algumas lascas do cajado
destruído de Menshikov.
Corri para o lado de Carter. Ele estava tremendo, seus olhos girando em
sua cabeça. Dois furos em seu casaco estavam fumegando.
— Kane — o jovem russo disse com um tom de medo.
Peguei uma lasca de madeira e levantei para ele ver.
— Seu chefe Menshikov fez isso. Ele está trabalhando para Apófis. Mens-
hikov: Apófis. Agora, SAIA DAQUI!
O mago não deveria ter entendido minhas palavras, mas ele captou a
mensagem. Virou-se e correu.

161
O TRONO DE FOGO

Aninhei a cabeça de Carter. Eu não conseguia carregá-lo, mas tinha que


tirá-lo de lá. Estávamos em território inimigo. Eu precisava encontrar Bes.
Lutei para colocá-lo de pé. Então alguém pegou o outro braço de Carter
e nos ajudou. Encontrei Set sorrindo para mim, ainda em seu terno de dis-
coteca vermelho ridículo, empoeirado com destroços de malaquita. Os ócu-
los de sol quebrados de Menshikov estavam apoiados em sua cabeça.
— Você — eu disse, muito cheia de nojo para fazer uma ameaça de morte
boa.
— Eu — Set concordou alegremente. — Vamos tirar seu irmão daqui, ok?
Vladimir não está de bom humor.

O Nevsky Prospekt seria um belo lugar para fazer compras se não tivesse
uma tempestade de neve durante as primeiras horas da manhã. E se eu não
estivesse carregando meu irmão desmaiado e envenenado. A rua tinha gran-
des calçadas, perfeito para ambulantes, alinhados com uma variedade im-
pressionante de boutiques, cafeterias, igrejas e mansões. Com todas as placas
em russo, eu não via como encontraríamos a loja de chocolates. Não conse-
gui localizar a Mercedes preta de Bes em lugar nenhum.
Set se voluntariou para carregar Carter, mas eu não estava disposta a
deixar o deus do caos se encarregar de meu irmão, então ele se arrastou entre
nós. Set decidiu conversar amigavelmente sobre o veneno do tjesu heru.
— Completamente incurável! Fatal em cerca de doze horas. É uma coisa
incrível!
E sua luta com Menshikov:
— Seis vasos se quebraram sobre sua cabeça, e ele ainda sobreviveu! Eu
invejo seu crânio duro.
E minhas perspectivas de viver o bastante para encontrar Bes:
— Oh, você está frita, minha querida! Uma dúzia de magos mais velhos
estavam se juntando a Menshikov quando eu fiz minha... er... saída estraté-
gica. Eles vão te alcançar em pouco tempo. Eu poderia ter destruído todos
eles, é claro, mas não podia arriscar que Vladimir usasse meu nome secreto
de novo. Talvez ele fique com amnésia e esqueça. Então se vocês morrerem
seriam dois problemas resolvidos. Oh, desculpe, suponho que soou insensí-
vel. Venha!

162
SADIE

A cabeça de Carter pendeu. Sua respiração soava quase tão ruim quanto
a de Vlad, o Inalador.
Agora, por favor não pense que eu fui estúpida. Claro que me lembrei
da mini figura de cera de Carter que Jaz me deu. Reconheci que aquele era
o tipo de emergência onde isso poderia vir a calhar. Como Jaz tinha previsto
que Carter precisaria de cura, eu não tinha ideia. Mas era possível que a
figura podia extrair o veneno dele, apesar do que Set disse sobre isso ser
incurável. O que um deus do mal sabia sobre cura, de qualquer jeito?
Havia problemas, no entanto. Primeiro, eu sabia muito pouco sobre ma-
gia de cura. Eu precisava de tempo para descobrir a fusão adequada, e como
só tinha uma estátua de cera, não podia me dar ao luxo de errar. Segundo,
eu não podia fazer isso muito bem enquanto estava sendo perseguida por
Menshikov e seu pelotão de magos russos valentões, nem queria baixar mi-
nha guarda com Set em algum lugar perto de mim. Eu não sabia por que ele
decidiu ser útil de repente, mas o quanto mais rápido eu pudesse perdê-lo,
melhor. Precisava encontrar Bes e fugir para um lugar seguro – se houvesse
um lugar assim.
Set ficou falando de todos os jeitos animadores que os magos deveriam
me matar assim que me pegarem. Finalmente vi uma fonte à frente sobre
um lago congelado. Estacionada no meio estava a Mercedes preta. Bes estava
encostado ao capô, comendo peças de um tabuleiro de xadrez de chocolate.
Próximo a ele estava uma bolsa grande de plástico – felizmente com mais
chocolate para mim.
Gritei para ele, mas ele estava tão ocupado comendo chocolate (acho que
eu poderia entender) que ele não nos notou até estarmos a alguns metros de
distância. Então ele olhou para cima e viu Set.
Eu comecei a dizer:
— Bes, não...
Tarde demais. Como um gambá, o deus anão ativou seu modo de defesa.
Seus olhos incharam. Sua boca se abriu incrivelmente grande. Ele gritou
“BOO!” tão alto, que meu cabelo se arrepiou e pingentes de gelo choveram
dos postes da ponte.
Set não pareceu nem um pouco intimidado.
— Olá, Bes — ele cumprimentou. — Sério, você não é tão assustador com

163
O TRONO DE FOGO

chocolate esfregado no seu rosto.


Bes olhou para mim.
— O que ele está fazendo aqui?
— Não foi minha ideia! — jurei.
Dei a ele uma história resumida de nosso encontro com Menshikov.
— E então Carter foi machucado — resumi, o que pareceu bastante óbvio.
— Temos que tirá-lo daqui.
— Mas primeiro — Set interrompeu, apontando para a sacola do Museu
do Chocolate perto de Bes, — Não aguento surpresas. O que tem aí? Um
presente para mim?
Bes franziu a testa.
— Sadie queria uma lembrancinha. Comprei a cabeça de Lênin para ela.
Set deu um tapa na coxa com prazer.
— Bes, que malvado! Há esperança para você ainda.
— Não é sua cabeça de verdade — Bes disse. — É de chocolate.
— Ah... Que vergonha. Posso ter parte de seu tabuleiro de xadrez, então?
Eu simplesmente adoro comer peões.
— Saia daqui, Set! — Bes falou.
— Bem, eu poderia fazer isso, mas já que nossos amigos estão a caminho,
acho que talvez nós possamos fazer um acordo.
Set estalou os dedos e um globo de luz vermelha apareceu em frente a
ele. Nele, havia imagens holográficas de seis homens em uniformes de segu-
ranças amontoados em dois carros esportivos. Seus faróis brilhavam em vida.
Os carros desviaram de um estacionamento, então passaram direto através
de uma parede de pedra como se fosse feita de fumaça.
— Eu diria que vocês têm cerca de dois minutos — Set sorriu, e o globo
de luz desapareceu. — Você se lembra dos servos de Menshikov, Bes. Tem
certeza que quer conhecê-los de novo?
O rosto do deus anão escureceu. Ele esmagou uma peça de xadrez de
chocolate branco na mão.
— Você está mentindo, planejando, assassinando...
— Parem! — gritei.
Carter gemeu em seu envenenamento atordoado. Ou ele estava ficando
mais pesado, ou eu estava ficando cansada de segurá-lo de pé.

164
SADIE

— Não temos tempo para discutir — eu disse. — Set, você está se ofere-
cendo para parar os magos?
Ele riu.
— Não, não. Ainda estou esperando eles matarem vocês, sabe. Mas estou
oferecendo a vocês a localização do último pergaminho do Livro de Rá.
É isso que vocês estão procurando, não é?
Achei que ele estivesse mentindo. Ele normalmente estaria, mas se esti-
vesse falando sério... Olhei para Bes.
— É possível que ele saiba a localização?
Bes grunhiu.
— Mais que possível. Os sacerdotes de Rá deram a ele o pergaminho para
manter a salvo.
— Por que diabos eles fizeram isso?
Set tentou parecer modesto.
— Convenhamos, Sadie. Eu era um tenente leal de Rá. Se você fosse Rá,
e não quisesse ser incomodado por qualquer mago velho tentando te inco-
modar, você não confiaria a chave da sua localização com seu servo mais
assustador?
Ele tinha um ponto.
— Onde está o pergaminho, então?
— Não tão rápido. Vou te dar a localização se você me der de volta meu
nome secreto.
— Nem sonhando!
— É bem simples. É só você dizer “eu devolvo seu nome”. Você vai se
esquecer da forma adequada de dizê-lo...
— E então não vou mais ter poder sobre você! Você vai me matar!
— Você tem minha palavra que não vou.
— Certo. É uma pena. E se eu usar seu nome secreto para te forçar a me
dizer?
Set deu de ombros.
— Com alguns dias de procura pelo encantamento correto, você deve
conseguir. Infelizmente...
Ele colocou sua orelha na mão. À distância, pneus de dois carros guin-
charam, viajando rápido, chegando mais perto.

165
O TRONO DE FOGO

— Vocês não têm alguns dias.


Bes xingou em egípcio.
— Não faça isso, garota. Ele pode não ser confiável.
— Nós podemos achar o pergaminho sem ele?
— Bem... Talvez. Provavelmente não. Não.
Os faróis dos dois carros desviaram para a Nevsky Prospekt, a cerca de
um quilômetro e meio distância. Estávamos fora do tempo. Eu tinha que
tirar Carter dali, mas se Set realmente fosse nosso único jeito de achar o
pergaminho, não podia fugir sem ele.
— Tudo bem, Set. Mas eu vou te dar uma última ordem.
Bes suspirou.
— Não posso suportar ver isso. Dê-me seu irmão. Vou colocá-lo no carro.
O anão pegou Carter e o enfiou no banco de trás da Mercedes.
Eu mantive meus olhos em Set, tentando achar o jeito menos terrível de
fazer esse acordo. Eu não podia simplesmente falar para ele nunca machucar
minha família. Um pacto mágico precisava ser cuidadosamente formulado,
com limites claros e uma data de expiração, ou toda a magia se desvencilha-
ria.
— Dia do mal, você não fará mal para a família Kane. Você vai manter
uma trégua conosco até... até Rá ser acordado.
— Ou até vocês tentarem e falharem em acordá-lo? — Set perguntou ino-
centemente.
— Se isso acontecer — eu disse — o mundo vai acabar. Então por que não?
Vou fazer o que você pede a respeito de seu nome. Em troca, você vai me
dizer a localização do último pergaminho do Livro de Rá, sem trapaça ou
engano. Então vai partir para o Duat.
Set considerou a oferta. Os dois carros esportivos brancos estavam a ape-
nas alguns quarteirões de distância agora. Bes fechou a porta de Carter e
correu de volta.
— Nós temos um acordo — Set concordou. — Você vai encontrar o perga-
minho na Bahariya. Bes conhece o lugar que estou falando.
Bes não pareceu feliz.
— Esse lugar é fortemente protegido. Vamos ter que usar o portal de Ale-
xandria.

166
SADIE

— Sim — Set sorriu. — Isso pode ser interessante! Por quanto tempo você
consegue segurar seu fôlego, Sadie Kane?
— O que você quer dizer?
— Não se preocupe, não se preocupe. Agora, acredito que você me deve
um nome secreto.
— Eu devolvo seu nome — falei.
No mesmo instante, senti a magia me deixar. Eu ainda sabia o nome de
Set: Dia do Mal. Mas de algum jeito, eu não conseguia lembrar como costu-
mava dizer isso, ou como isso funcionava em um encantamento. A memória
foi apagada.
Para a minha surpresa, Set não me matou instantaneamente. Ele só sor-
riu e me jogou os óculos de Vlad Menshikov.
— Espero que sobreviva, apesar de tudo, Sadie Kane. Você é muito diver-
tida. Mas se eles te matarem, pelo menos aproveite a experiência!
— Puxa, obrigada.
— E só porque eu gosto muito de você, vou te dar uma peça gratuita de
informação para seu irmão. Diga a ele que a vila de Zia Rashid era chamada
de al-Hamrah Makan.
— Por que é que...
— Boa viagem!
Set desapareceu em uma nuvem de névoa cor de sangue. Há um quartei-
rão de distância, os dois carros esportivos embarrilavam em nossa direção.
Um mago enfiou a cabeça para fora do teto solar do carro líder e apontou
seu cajado na nossa direção.
— Hora de ir — Bes afirmou. — Entre!

Eu vou dizer isso de Bes: ele dirigiu como um maluco. E quero dizer isso do
melhor jeito possível. As ruas congeladas não o incomodavam. Nem os sinais
de trânsito, calçadas de pedestres ou canais, que ele pulou duas vezes sem se
importar de encontrar uma ponte. Felizmente, a cidade estava mais vazia na
hora da manhã, ou tenho certeza que teríamos atropelado um bom número
de russos.
Nós traçamos o centro de São Petersburgo enquanto os dois carros es-
portivos cerravam atrás de nós. Eu tentava segurar Carter firme perto de

167
O TRONO DE FOGO

mim no banco de trás. Seus olhos estavam meio abertos, a parte branca de
seus olhos se tornando um verde terrível. Apesar do frio, ele estava quei-
mando de febre. Eu tirei seu casaco de inverno e encontrei sua camisa en-
charcada de suor. Em seu ombro, as feridas estavam escorrendo como...
Bem, acho que é melhor eu não descrever essa parte.
Olhei para trás. O mago no teto solar apontou seu cajado – não é uma
tarefa fácil em uma perseguição de carro em alta velocidade – e uma lança
brilhante branca disparou da ponta, zunindo na nossa direção como um
míssil teleguiado.
— Abaixe! — gritei, e empurrei Carter contra o assento.
A lança quebrou na janela traseira e voou direto pelo para-brisa. Se Bes
tivesse uma altura normal, ele teria conseguido um furo na cabeça. Como
era assim, o projétil o errou completamente.
— Eu sou um anão — ele grunhiu. — Eu não abaixo!
Ele guinou para a direita. Atrás de nós, uma loja explodiu. Olhando para
trás, vi a parede toda dissolver em uma pilha de cobras vivas. Nossos perse-
guidos ainda estavam atrás de nós.
— Bes, tira a gente daqui! — gritei.
— Estou tentando, criança. A Ponte Egípcia está vindo. Ela foi original-
mente construída nos oitocentos, mas...
— Não estou nem aí! Só dirija!
Realmente, era incrível quantas entradas e saídas egípcias haviam em São
Petersburgo, e o pouco que eu ligava para elas. Ser perseguida por magos
demoníacos atirando lanças e bombas de cobra tende a esclarecer as priori-
dades.
É o bastante dizer: Sim, realmente havia uma Ponte Egípcia sobre o Ca-
nal Fontanka, ao sul do centro de São Petersburgo. Por quê? Não tenho
ideia. Não ligo. Enquanto corríamos na direção dela, eu vi esfinges escuras
de pedra – senhoras esfinges com coroas douradas de faraó – mas a única
coisa que importava para mim era se elas podiam invocar um portal.
Bes ladrou alguma coisa em egípcio. No topo da ponte, uma luz azul
brilhou. Um turbilhão de areia apareceu.
— O que Set quis dizer — perguntei — sobre prender minha respiração?
— Esperemos que não seja por muito tempo — Bes disse. — Só vamos

168
SADIE

estar a 10 metros debaixo.


— Dez metros debaixo d’água?
BANG! A Mercedes adernou para o lado. Só depois eu percebi que outra
lança deveria ter acertado nosso pneu de trás. Nós giramos pelo gelo e capo-
tamos, deslizando para baixo do turbilhão.
Minha cabeça bateu contra alguma coisa. Eu abri meus olhos, lutando
contra a inconsciência, mas ou eu fiquei cega ou estávamos na escuridão
completa. Ouvi a água entrando pelo vidro quebrado pelo dardo, e o teto
da Mercedes se amassou como um cano de alumínio.
Eu tive tempo de pensar: Uma adolescente por menos de um dia, e vou me
afogar.
Então eu apaguei.

169
S
A
12. Domino a fina arte de dizer nomes
D
I
E

É PERTURBADOR ACORDAR como uma galinha.


Meu ba flutuava pelas águas escuras. Minhas asas brilhantes batiam en-
quanto tentava descobrir como estava subindo. Achei que meu corpo estava
em algum lugar próximo, possivelmente já afogado na parte traseira do Mer-
cedes, mas não consegui descobrir como voltar para ele.
Por que diabos Bes tinha nos levado através de um portal debaixo d’água?
Eu esperava que o pobre Carter tivesse de algum jeito sobrevivido, talvez Bes
fosse capaz de libertá-lo. Mas morrer envenenado, em vez de se afogar não
parecia uma grande melhora.
Uma corrente me pegou e levou para o Duat. A água mudou para névoa
fria. Lamentações e rosnados encheram a escuridão. Minha aceleração dimi-
nuiu, e quando a névoa se dissipou, eu estava do lado de fora da enfermaria.
Em um banco encostado na parede, sentados juntos, como velhos amigos,
estavam Anúbis e Walt Stone. Parecia que estavam esperando más notícias.
As mãos de Walt estavam entrelaçadas sob seu colo. Seus ombros caídos. Ele
tinha mudado de roupa, estava com uma nova camiseta sem mangas e um
novo par de shorts de corrida, mas parecia que ele não tinha dormido desde
que voltou de Londres.
Anúbis falava com ele em tons suaves, como se tentando aliviar seu so-
frimento. Eu nunca havia visto Anúbis em trajes tradicionais do Egito antes:
sem camisa, com um colar de ouro e rubi em volta do pescoço, um saiote

170
SADIE

preto simples amarrado em sua cintura. Não era um visual que eu reco-
mendo para a maioria dos caras, mas Anúbis era exceção. Sempre imaginei
que ele ficaria um pouco magro sem camisa (não que eu imaginasse muito
isso, você sabe), mas ele estava em ótima forma. Deviam ter uma boa acade-
mia no submundo, banco de prensagem de lápides e tudo mais.
De qualquer forma, após o choque de vê-los juntos, meu primeiro pen-
samento foi de que algo terrível tivesse acontecido a Jaz.
— O que é isso? — perguntei, não tinha certeza se eles podiam me ouvir.
— O que aconteceu?
Walt não reagiu, mas Anúbis olhou para cima. Como de costume, o meu
coração fez uma dancinha feliz completamente sem a minha permissão. Seus
olhos eram tão fascinantes, esqueci completamente como usar meu cérebro.
Eu disse:
— Hum.
Eu sei, Liz teria ficado orgulhosa.
— Sadie — disse Anúbis. — Você não deveria estar aqui. Carter está mor-
rendo.
Aquilo trouxe de volta meus sentidos.
— Eu sei disso, garoto chacal! Eu não pedi para estar... Espere, por que es-
tou aqui?
Anúbis apontou para a porta da enfermaria.
— Acredito que o espírito de Jaz chamou por você.
— Ela está morta? Eu estou morta?
— Nenhuma das duas — Anúbis disse. — Mas vocês duas estão à beira da
morte, o que significa que suas almas podem falar uma com a outra com
bastante facilidade. Apenas não fique muito tempo.
Walt ainda não havia me reconhecido. Ele murmurou:
— Não podia dizer a ela. Por que eu não podia dizer a ela?
Ele abriu suas mãos. Encaixado em suas palmas estava um amuleto dou-
rado shen exatamente igual ao que ele me deu.
— Anúbis, o que há de errado com ele? — perguntei. — Ele não consegue
me ouvir?
Anúbis colocou a mão no ombro de Walt.
— Ele não pode ver qualquer um de nós, embora eu ache que ele consiga

171
O TRONO DE FOGO

sentir a minha presença. Ele me chamou para orientá-lo. É por isso que es-
tou aqui.
— Orientação de você? Por quê?
Acho que pareceu mais grosseiro do que pretendia, mas de todos os deu-
ses que Walt poderia ter chamado, Anúbis parecia ser a opção menos possí-
vel.
Anúbis olhou para mim, seus olhos até mais melancólicos que o normal.
— Você deve ir agora, Sadie. Tem muito pouco tempo. Prometo que farei
o meu melhor para aliviar a dor de Walt.
— Sua dor? — perguntei. — Espere...
Mas a porta da enfermaria se abriu, e as correntes do Duat me puxaram
para dentro.

A enfermaria era o melhor centro médico que já estive, mas isso não era
dizer muito. Eu odiava hospitais. Meu pai costumava brincar que nasci gri-
tando e que não parei até eles me tirarem da maternidade. Ficava morrendo
de medo de agulhas, comprimidos, e acima de tudo, o cheiro de pessoas
doentes. Os mortos e os cemitérios? Esses não me incomodam. Mas a do-
ença... bem, me desculpe, mas ela tem que cheirar tão malditamente doentia?
Minha primeira visita a Jaz na enfermaria tinha tomado toda a minha
coragem. Esta segunda vez, mesmo na forma de ba, não estava nada fácil.
A sala era do tamanho do meu quarto. As paredes eram grossas de pedra
calcária. Grandes janelas deixavam entrar o brilho noturno de Nova York.
Armários de cedro foram cuidadosamente etiquetados com medicamentos,
provisões de primeiros socorros, encantos e poções mágicas. E num canto
havia uma fonte com uma estátua em tamanho natural da deusa leão Sekh-
met, patrona dos curandeiros. Eu tinha ouvido falar que a água que verte
através das mãos de Sekhmet poderia curar uma gripe ou resfriado instanta-
neamente, e fornecem a maioria das nossas vitaminas diárias e ferro, mas
nunca tive a coragem de tomar um gole.
O borbulhar da fonte era pacífico o suficiente. Em vez de antisséptico, o
ar cheirava a velas encantadas com aroma de baunilha que flutuavam ao
redor da sala. Mas, ainda assim, o lugar me deixou nervosa.

172
SADIE

Eu sabia que as velas monitoravam as condições dos pacientes. Suas cha-


mas mudavam de cor para indicar problemas. No momento, todas elas pai-
ravam em torno da cama ocupada por Jaz. Suas chamas estavam laranja es-
cura.
As mãos de Jaz estavam cruzadas sobre seu peito. Seu cabelo loiro estava
penteado sobre seu travesseiro. Ela sorriu vagamente, como se estivesse
tendo um sonho agradável.
E, sentada aos pés da cama de Jaz estava... Jaz, ou pelo menos uma ima-
gem verde cintilante da minha amiga. Não era um ba. A forma era comple-
tamente humana. Eu perguntei se ela tinha morrido depois de tudo, e este
era o seu fantasma.
— Jaz...
Uma onda de culpa nova tomou conta de mim. Tudo o que tinha ido
mal nos últimos dois dias havia começado com o sacrifício de Jaz, que foi
por minha culpa.
— Você...
— Morreu? Não, Sadie. Este é o meu ren.
Seu corpo transparente tremeluziu. Quando olhei mais de perto, vi que
era composto de imagens, como um vídeo 3D da vida de Jaz. Jaz bebê sen-
tada em uma cadeira alta, pintando seu rosto com comida de bebê. Jaz ado-
lescente saltando sobre o piso de um ginásio, ensaiando para sua primeira
animação de torcida. A Jaz dos dias atuais abrindo seu armário da escola e
encontrando um amuleto brilhante djed – nosso cartão de visitas mágico que
a levou para o Brooklyn.
— Seu ren — eu disse. — Outra parte da sua alma?
A imagem verde brilhante confirmou com a cabeça.
— Os egípcios acreditavam que havia cinco partes diferentes da alma.
O ba é a personalidade. O ren é...
— Seu nome — lembrei. — Mas como isso pode ser seu nome?
— Meu nome é minha identidade — disse ela. — A soma de minhas expe-
riências. Enquanto meu nome for lembrado, eu ainda existo, mesmo se eu
morrer. Você entendeu?
Eu não entendi, nada mesmo. Mas entendi que ela poderia morrer e que

173
O TRONO DE FOGO

a culpa era minha.


— Eu sinto muito.
Tentei não chorar.
— Se eu não tivesse pegado aquele pergaminho estúpido...
— Sadie, não se desculpe. Fico feliz que você veio.
— Mas...
— Tudo acontece por uma razão, Sadie, até mesmo coisas ruins.
— Isso não é verdade! — eu disse. — É uma injustiça!
Como Jaz podia estar tão calma e agradável, mesmo quando estava em
coma? Eu não queria ouvir que coisas ruins aconteciam como parte de um
grande plano. Eu odiava quando as pessoas diziam isso. Perdi minha mãe.
Perdi meu pai. Minha vida foi virada de cabeça para baixo, e eu quase morri
inúmeras vezes. Agora, até onde eu sabia, estava morta ou morrendo. Meu
irmão foi envenenado e afogado, e eu não podia ajudá-lo.
— Nada vale tudo isso — falei. — A vida é imprevisível. É cruel. É... é...
Jaz ainda estava sorrindo, olhando um pouco distraída.
— Oh — eu disse. — Você quer me deixar louca, não é?
— Essa é a Sadie que todos nós amamos. Sofrimento não é realmente
produtivo. Você faz melhor quando está com raiva.
— Uma ova.
Supus que ela estivesse certa, mas eu não tinha que gostar disso.
— Então por que você me trouxe aqui?
— Duas coisas — começou ela. — Primeiro, você não está morta. Quando
acordar, só terá alguns minutos para curar Carter. Você terá que agir rapi-
damente.
— Usando a estátua de cera — falei. — Sim, imaginei isso. Mas eu não
sei como. Eu não sou boa em cura.
— Há apenas mais um ingrediente necessário. Você sabe o que é.
— Mas eu não sei!
Jaz levantou uma sobrancelha como se eu estivesse apenas sendo teimosa.
— Você está tão perto de compreender, Sadie. Pense sobre Ísis. Pense em
como você canalizou sua energia em São Petersburgo. A resposta virá até
você.
— Mas...

174
SADIE

— Temos de nos apressar. A segunda coisa: você vai precisar da ajuda de


Walt. Eu sei que é arriscado. Sei que Bes advertiu sobre isso. Mas use o
amuleto para chamar Walt de volta para você. É o que ele quer. Alguns riscos
valem a pena correr, mesmo que isso signifique perder uma vida.
— Perder a vida de quem? Sua?
A imagem da enfermaria começou a se dissolver, se transformando em
uma aquarela borrada.
— Pense sobre Ísis — Jaz repetiu. — E Sadie... há um propósito. Você nos
ensinou isso. Escolhemos acreditar no Maat. Criamos ordem do caos, beleza
e significado a partir feiura. Isso é o que tem a ver com o Egito. É por isso
que o seu nome, o ren, tem sofrido por milênios. Não se desespere. Caso
contrário, o caos ganha.
Lembrei-me de dizer algo como isso em uma de nossas aulas, mas mesmo
assim, eu não tinha acreditado.
— Vou te contar um segredo — falei. — Sou uma péssima professora.
A forma de Jaz, todas as suas memórias, transformou-se lentamente em
névoa.
— Vou te contar um segredo — disse ela, sua voz desaparecendo. — Você
foi uma excelente professora. Agora, visite Ísis, e veja como isso começou.
A forma de Jaz, todas as lembranças reunidas, começou a se transformar
em névoa.
— Vou lhe contar um segredo — ela falou, sua voz cada vez mais distante.
— Você foi uma excelente professora. Agora procure Ísis e veja como isso
começou.
A enfermaria desapareceu. De repente eu estava em um barco real, nave-
gando no Rio Nilo. O sol brilhava alto. Um exuberante gramado verde e
palmeiras cobriam as margens do rio. Além, o deserto se espalhava pelo ho-
rizonte – áridas colinas vermelhas tão secas e ameaçadoras que poderiam
muito bem estar em Marte.
O barco era como o que Carter havia descrito de sua visão com Hórus,
embora em melhor condição. Sua vela branca estava estampada com uma
imagem do disco solar, brilhando em vermelho e dourado. Esferas de luz
multicolorida flutuavam ao redor do convés, tripulando os remos e puxando

175
O TRONO DE FOGO

as cordas. Como faziam isso sem as mãos, eu não sei, mas não foi a primeira
vez que vi uma tripulação tão mágica.
O casco estava incrustado com metais preciosos – cobre, prata, ouro com
desenhos mostrando imagens da viagem do barco através do Duat e hieró-
glifos invocando o poder do sol.
No meio do barco, um abrigo azul e dourado sombreava o trono do deus
sol, que era sem dúvida a mais impressionante e desconfortável cadeira que
eu já tinha visto. No começo eu achei que era de ouro derretido. Então per-
cebi que era formado a partir do fogo aceso – chamas amarelas, que de al-
guma forma tinham sido esculpidas na forma de um trono. Gravado em suas
pernas e braços, hieróglifos branco-ardentes brilhavam tão intensamente
que queimavam meus olhos.
O ocupante do trono não era tão impressionante. Rá era um velho cur-
vado como um ponto de interrogação, sua cabeça calva com manchas hepá-
ticas e seu rosto tão flácido e enrugado que parecia uma máscara. Somente
seus olhos delineados com kohl davam alguma indicação de que ele estava
vivo, porque estavam cheios de dor e cansaço. Ele vestia um saiote e colar,
que não combinavam com ele tão bem como em Anúbis. Até agora, a pessoa
mais velha que eu já vi era Iskandar, o ex-chefe Sacerdote-Leitor chefe, que
havia sido por dois mil anos. Mas Iskandar jamais teria parecido tão mal,
mesmo quando estava prestes a morrer. Para piorar, a perna esquerda de Rá
estava envolvida em ataduras e inchada com o dobro do tamanho adequado.
Ele gemeu e apoiou o pé sobre uma pilha de almofadas. Duas feridas de
picada escorriam através das ataduras em sua canela, muito parecido com o
sinal das presas no ombro de Carter. Enquanto Rá movia a perna, o veneno
verde espalhou-se pelas veias da coxa. Só olhar fez meu ba arrepiar as penas
com repulsa.
Rá olhou para os céus. Seus olhos ficaram amarelo derretido como seu
trono.
— Ísis — ele exclamou. — Muito bem! Eu cedo!
Uma sombra ondulava sob o abrigo. Uma mulher apareceu e ajoelhou-
se diante do trono. Eu a reconheci, claro. Ela tinha cabelos longos e escuros,
cortado ao estilo Cleópatra e usava um vestido de linho branco que comple-
tava sua figura graciosa. Suas asas luminosas de arco-íris brilhavam como as

176
SADIE

luzes do norte.
Com a cabeça baixa e as palmas das mãos levantadas implorando, ela
olhou com humildade, mas eu conhecia Ísis muito bem. Podia ver o sorriso
que ela estava tentando esconder. Eu podia sentir a sua alegria.
— Lorde Rá — disse ela. — Vivo para servi-lo.
— Há! — Rá disse. — Você vive pelo poder, Ísis. Não tente me enganar.
Eu sei que você criou a cobra que me mordeu! É por isso que ninguém mais
pode encontrar uma cura. Você deseja meu trono para seu marido, o arro-
gante Osíris.
Ísis começou a protestar.
— Meu senhor...
— Chega! Se eu fosse um deus jovem...
Rá cometeu o erro de mexer a perna. Ele gritou de dor. O veneno verde
espalhou-se mais subindo pelas suas veias.
— Não se preocupe — suspirou miseravelmente. — Estou cansado deste
mundo. Chega de conspiração e armações. Apenas cure o veneno.
— Com prazer, meu rei. Mas vou precisar de...
— Meu nome secreto — terminou Rá. — Sim, eu sei. Prometa me curar, e
terá tudo o que deseja... e muito mais.
Ouvi a advertência na voz de Rá, mas ou Ísis não percebeu, ou ela não
se importou.
— Juro curá-lo — disse ela.
— Então se aproxime, deusa.
Ísis se inclinou para frente. Eu pensei que Rá iria sussurrar seu nome no
ouvido dela, mas ele agarrou a sua mão e colocou-a na testa enrugada. Seus
dedos estavam ardendo. Ela tentou se afastar, mas Rá prendeu-a pela mão.
Toda a forma do deus sol brilhava com imagens de fogo de sua longa vida:
a primeira aurora; seu barco de sol brilhando sobre as terras recém-nascidas
do Egito, a criação dos outros deuses e dos homens; batalhas intermináveis
de Rá contra Apófis quando este atravessava o Duat a cada noite, mantendo
o Caos à distância. Era demais, séculos se passavam com cada batimento
cardíaco. Seu nome secreto era a soma de suas experiências e, mesmo assim,
naqueles tempos antigos, Rá era inimaginavelmente velho. A aura intensa
espalhou-se para a mão de Ísis, viajando pelo seu braço até que todo o seu

177
O TRONO DE FOGO

corpo foi envolto em chamas. Ela gritou uma vez. Em seguida, o fogo mor-
reu. Ísis desabou, fumaça saindo de seu vestido.
— Então — disse Rá. — Você sobreviveu.
Eu não podia dizer se ele sentiu decepção ou relutante respeito.
Ísis levantou-se cambaleante. Ela parecia em estado de choque, como se
tivesse andado através de uma zona de guerra, mas levantou a mão. Um
hieróglifo ardente gravado na palma da mão – o nome secreto de Rá, resu-
mido em uma única palavra incrivelmente poderosa.
Ela colocou a mão na perna envenenada de Rá e falou um feitiço. O
veneno verde sumiu de suas veias. O inchaço diminuiu. Os curativos caíram,
e as duas marcas de presas fecharam.
Rá reclinou sobre seu trono e suspirou de alívio.
— Até que enfim. Sem dor.
— Meu senhor precisa descansar — Ísis sugeriu. — Um longo, longo des-
canso.
O deus sol abriu seus olhos. Não havia fogo neles agora. Pareciam os
olhos leitosos de um velho.
— Bastet! — ele chamou.
A deusa gato se materializou ao seu lado. Ela estava vestida com arma-
dura egípcia de couro e ferro e parecia mais jovem, embora talvez fosse ape-
nas porque ela ainda não tinha sobrevivido a séculos de prisão em um
abismo, lutando contra Apófis. Fiquei tentada a gritar para ela e avisá-la so-
bre o que estava por vir, mas minha voz não iria funcionar.
Bastet fez Ísis olhar para os lados.
— Meu senhor, esta... mulher está o incomodando?
Rá balançou a cabeça.
— Nada mais me incomodará, minha gata fiel. Venha comigo agora. Te-
mos assuntos importantes para discutir antes de eu partir.
— Meu senhor? Onde o senhor está indo?
— Para uma aposentadoria forçada. — Rá olhou para Ísis. — É isso que
você quer, deusa da magia?
Ísis fez uma reverência.
— Nunca, meu senhor!
Bastet puxou suas facas e foi em direção a Ísis, mas Rá estendeu o braço.

178
SADIE

— Chega, Bastet — disse ele. — Tenho outra luta em mente para você,
uma última, uma luta crucial. Quanto a você, Ísis, pode pensar que ganhou
porque domina o meu nome secreto. Percebe o que você começou? Osíris
pode tornar-se faraó, mas o seu reinado será curto e amargo. Sua sede real
será um reflexo pálido do meu trono de fogo. Este barco não mais voltará
ao Duat. O equilíbrio entre o Maat e o caos desaparecerá lentamente. O
próprio Egito vai cair. Os nomes de seus deuses desaparecerão para uma
memória distante. Então um dia, o mundo inteiro vai ficar à beira da des-
truição. Você vai clamar por Rá, e eu não estarei lá. Quando esse dia chegar,
lembre-se como sua ganância e ambição fizeram isso acontecer.
— Meu senhor.
Ísis inclinou-se respeitosamente, mas eu sabia que ela não estava pen-
sando em um futuro distante. Ela estava embriagada com sua vitória. Ela
pensou que Osíris iria governar o Egito para sempre, e que Rá era apenas
um velho tolo. Não sabia que em pouco tempo, sua vitória se voltaria para
a tragédia. Osíris seria assassinado pelo seu irmão, Set. E um dia, outras
previsões de Rá se tornariam verdade.
— Vamos, Bastet — Rá chamou. — Não somos mais queridos.
O trono explodiu em uma coluna de chamas, queimando o abrigo azul
e dourado. Uma bola de fogo subiu aos céus, até que foi perdido no brilho
do sol.
Quando a fumaça se dissipou, Ísis ficou sozinha e riu com prazer.
— Consegui! — exclamou. — Osíris, você será rei! Dominei o nome secreto
de Rá!
Queria lhe dizer que ela não havia dominado nada, mas só pude ver
como Ísis dançou por todo o barco. Ela ficou tão satisfeita com seu próprio
sucesso que não prestou atenção nos servos mágicos luminosos desapare-
cendo. As cordas caíram. A vela foi folgada. Remos arrastaram na água, e o
barco Sol caiu no rio, não tripulado.
Minha visão falhou, e mergulhei na escuridão.

Acordei em uma cama macia. Por um momento feliz, pensei que eu estava
de volta ao meu quarto na Casa do Brooklyn. Eu poderia me levantar e ter
um café da manhã com meus amigos, Amós, Filipe da Macedônia, e Khufu,

179
O TRONO DE FOGO

em seguida, passar o dia ensinando nossos iniciantes como transformar os


outros em répteis. Isso soou brilhante.
Mas é claro que eu não estava em casa. Sentei-me, e minha cabeça come-
çou a girar. Eu estava em uma cama enorme com lençóis de algodão macio
e uma pilha de travesseiros de plumas. O quarto era muito elegante, deco-
rado em branco deslumbrante, que não ajudou a minha tontura. Me senti
como se estivesse de volta à casa da deusa do céu Nut. A qualquer momento,
a sala poderia dissolver-se em nuvens.
Minhas pernas estavam rígidas, mas consegui sair da cama. Eu estava
usando um daqueles roupões de hotel grande e luxuoso, parecia uma idiota
albina. Cambaleei até a porta e encontrei uma linda sala de estar, também
branca. As portas de correr de vidro levavam a uma varanda com vista para
o mar, muito alta – possivelmente quinze ou vinte andares. O céu e o mar
eram de um azul deslumbrante.
Meus olhos demoraram um pouco para se adaptarem à luz. Em uma
mesa próxima, os poucos pertences meus e de Carter foram cuidadosamente
colocados – nossas velhas roupas amassadas, nossas bolsas de magia e os dois
pergaminhos do Livro de Rá, juntamente com o saco de Bes do Museu do
Chocolate.
Carter estava envolvido em um roupão branco como o meu. Ele estava
deitado no sofá com os olhos fechados. Seu corpo inteiro tremia. Bes estava
sentado próximo a ele, enxugando a testa de Carter com um pano frio.
— Como... como ele está? — consegui dizer.
Bes olhou para cima. Ele parecia um turista em miniatura em uma ca-
misa havaiana grande, bermudas cáqui e chinelos. Era um americano feioso
em tamanho extra pequeno.
— Já era tempo — disse ele. — Estava começando a achar que você nunca
mais iria acordar.
Eu dei um passo pra frente, mas o quarto se inclinou para trás e para
frente.
— Cuidado — Bes correu e segurou meu braço. — Você tem um galo hor-
rível na cabeça.
— Não se preocupe — murmurei. — Tenho que ajudar Carter.
— Ele está mal, Sadie. Eu não sei se...

180
SADIE

— Eu posso ajudar. Minha varinha, e a estatueta de cera.


— Sim. Sim, está bem. Vou buscá-los.
Com a ajuda de Bes, sentei ao lado de Carter.
Bes buscou minhas coisas enquanto eu checava a testa de Carter. Sua
febre estava pior do que antes. As veias do seu pescoço tinham ficado verdes
por causa veneno, assim como Rá ficou na minha visão.
Olhei para Bes.
— Quanto tempo estive apagado?
— É quase meio-dia de terça-feira.
Ele espalhou meus objetos mágicos nos pés de Carter.
— Então, cerca de 12 horas.
— Doze horas? Bes, este é o tempo máximo que Set disse que Carter pode-
ria permanecer vivo antes do veneno o matar! Por que você não me acordou
mais cedo?
Seu rosto ficou vermelho como sua camisa havaiana.
— Eu tentei! Puxei vocês dois para fora do Mediterrâneo e trouxe vocês
para o hotel, não é? Usei todos os feitiços de acordar que conheço! Você só
ficava sussurrando em seu sono sobre Walt, Anúbis, nomes secretos...
— Ótimo! — falei. — Basta me ajudar.
A campainha tocou.
Bes fez um gesto para eu ficar calma. Ele gritou em outro idioma, possi-
velmente árabe, e um garçom do hotel abriu a porta. Ele se curvou para Bes,
como se o anão fosse um sultão, então trouxe um carrinho de serviço-de-
quarto carregado com frutas tropicais, pães fresquinhos e garrafas de refrige-
rante.
— Excelente — Bes me disse. — Volto já.
— Você está perdendo tempo! — Respondi.
Naturalmente, Bes me ignorou. Ele pegou sua mochila da mesa de jantar
e trouxe a cabeça de chocolate de Vladimir Lênin. Os olhos do garçom se
arregalaram. Bes colocou a cabeça no meio do carrinho e assentiu como se
fosse colocada no centro perfeito.
Bes deu ao garçom mais algumas ordens em árabe, em seguida, entregou-
lhe algumas moedas de ouro. O garçom obedeceu, no geral parecia aterrori-
zado. Ele saiu de costas, continuando curvado.

181
O TRONO DE FOGO

— Onde estamos exatamente? — eu perguntei. — E por que você é um rei


aqui?
— Alexandria, no Egito — disse Bes. — Desculpe a chegada rude. É um
lugar complicado para se teleportar. Antiga capital de Cleópatra, você sabe,
onde o Império Egípcio se desfez, assim a magia costuma ficar ao redor. Os
portais estão apenas funcionando na cidade antiga, que está fora da costa,
debaixo de dez metros de água.
— E esse lugar? Obviamente, um hotel de luxo, mas como você...
— Suíte, Hotel Quatro Estações de Alexandria — ele parecia um pouco
envergonhado. — As pessoas no Egito ainda se lembram dos antigos deuses,
mesmo que não admitam isso. Eu era popular antigamente, então posso
normalmente pedir favores quando preciso deles. Desculpe-me não ter mais
tempo. Eu poderia ter nos conseguido uma vila privada.
— Como você ousa — eu disse. — Fazendo nos contentar com um hotel
cinco estrelas. Agora, porque você não se certifica de que não seremos inter-
rompidos enquanto eu curo Carter?
Eu agarrei a estatueta de cera que Jaz tinha me dado e ajoelhei ao lado
do meu irmão. A estátua foi deformada ficando amassada perto da minha
bolsa. Então novamente, Carter parecia pior por causa do desgaste, também.
Esperançosamente a conexão mágica ainda funcionaria.
— Carter — chamei. — Eu vou te curar. Mas eu preciso de sua ajuda.
Eu coloquei minha mão sobre a sua testa febril. Agora eu sabia por que
Jaz tinha aparecido a mim como um ren, a parte da alma que representava
seu nome. Eu sabia por que ela havia me mostrado a visão de Ísis e Rá.
Você está tão perto de compreender, Sadie, ela disse.
Eu nunca havia pensado nisso antes, mas um ren era o mesmo que um
nome secreto. Era mais do que apenas uma palavra especial. O nome secreto
é seus pensamentos mais obscuros, seus momentos mais constrangedores,
os seus maiores sonhos, seus piores temores, tudo embrulhado junto. É a
soma de suas experiências, mesmo aquelas que você nunca iria querer com-
partilhar. Seu nome secreto faz você ser quem é.
É por isso que um nome secreto tem poder. E também porque você não
pode simplesmente ouvir alguém repetir um nome secreto e saber como usá-
lo. Você tinha que conhecer essa pessoa e entender sua vida. Quanto mais

182
SADIE

você entendesse uma pessoa, mais poder o seu nome poderia render. Você
só poderá aprender um nome secreto da própria pessoa ou da pessoa mais
próxima ao seu coração.
E que o céu me ajude, para mim Carter era essa pessoa.
Carter, pensei. Qual é seu nome secreto?
Mesmo doente, sua mente resistia a mim. Você não cede apenas seu
nome secreto. Todo ser humano tinha um, assim como Deus fez cada um,
mas a maioria das pessoas passava toda a sua vida não sabendo que jamais
se deve pôr em palavras sua identidade mais particular. É compreensível, na
verdade. Tentar resumir toda sua existência em cinco palavras ou menos.
Não é exatamente fácil, não é?
— Você consegue fazer isso — murmurei. — Você é meu irmão. Eu te amo.
Todas as partes constrangedoras, todas as partes irritantes que imagino que
seja a maior parte você... mil Zias poderiam fugir de você, se soubessem a
verdade. Mas eu não vou. Eu ainda estarei aqui. Agora, me diga o seu nome,
seu grande idiota, para que eu possa salvar sua vida.
Minha mão formigava em sua testa. Sua vida passou por entre meus de-
dos – lembranças fantasmagóricas de quando éramos crianças, vivendo com
nossos pais, em Los Angeles. Vi minha festa de aniversário de quando eu fiz
seis anos e o bolo explodiu. Vi a nossa mãe lendo histórias de ninar para nós
a partir de um livro de ciências da faculdade; nosso pai tocando jazz e dan-
çando comigo em volta da sala, enquanto Carter tapava os ouvidos e gritava:
“Papai!” Vi momentos que eu não tinha compartilhado com meu irmão
também: Carter e meu pai presos em um tumulto em Paris; Carter e Zia
conversando à luz de velas no Primeiro Nomo; Carter sozinho na biblioteca
da Casa do Brooklyn, olhando para seu amuleto Olho de Hórus e lutando
contra a tentação de reivindicar o poder de um deus. Ele nunca me falou
sobre isso, mas me fez sentir aliviada. Achei que eu era a única que tinha
estado tão tentada.
Lentamente, Carter relaxou. Seus piores temores passaram por mim,
seus segredos mais constrangedores. Sua força estava falhando quando o ve-
neno tomou conta de seu coração. Com o sua última gota de força de von-
tade, ele me disse seu nome.
[Naturalmente eu não vou te dizer o que é. Você não pode usá-lo de

183
O TRONO DE FOGO

qualquer maneira, ouvindo-o de uma gravação, mas não vou correr riscos.]
Levantei a estatueta de cera e falei o nome secreto de Carter. Imediata-
mente, o veneno recuou de suas veias. A estátua de cera ficou verde e derre-
tida em minhas mãos. A febre de Carter sumiu. Ele estremeceu, respirou
fundo e abriu os olhos.
— Certo — falei com firmeza. — Nunca monte em outra porcaria de mons-
tro-cobra novamente!
— Desculpe... — ele resmungou — Você acabou de...
— Sim.
— Com o meu nome secreto...
— Sim.
— E todos os meus segredos...
— Sim.
Ele gemeu e cobriu o rosto como se quisesse voltar a cair em coma, mas
honestamente, eu não tinha intenção de provocá-lo. Há uma diferença entre
manter seu irmão em seu lugar e ser cruel. Eu não era cruel. Além disso,
depois de ver os mais profundos cantos da mente de Carter, eu estava um
pouco envergonhada, possivelmente até mesmo com medo. Não havia real-
mente muita coisa lá. Comparado com os meus medos e segredos constran-
gedores... ah, cara. Ele estava calmo. Eu esperava que nossa situação nunca
se revertesse e ele tivesse que me curar.
Bes veio com a cabeça de Lênin escondida na curva do braço. Ele obvia-
mente tinha dado uma mordida, a testa de Lênin estava faltando – vítima
de uma choco-lobotomia frontal.
— Bom trabalho, Sadie! — Ele quebrou o nariz de Lênin e ofereceu a
Carter. — Aqui, rapaz. Você merece isso.
Carter fez uma careta.
— O chocolate tem propriedades curativas mágicas?
Bes bufou.
— Se isso fosse verdade, eu seria o mais saudável anão no mundo. Não.
Ele só tem um gosto bom.
— E você vai precisar de sua força — acrescentei. — Temos muito que
conversar.

184
SADIE

Apesar de nosso curto prazo – a partir de amanhã, somente mais dois dias
até o equinócio e o fim do mundo – Bes insistiu que nós descansássemos
até a manhã seguinte. Ele avisou que, se Carter se excedesse física ou magi-
camente tão cedo depois de ser envenenado, isto poderia muito bem matá-
lo.
Perder tempo me deixou bastante agitada, mas depois de ter tantas difi-
culdades para reanimar o meu irmão, eu queria muito mantê-lo vivo. E ad-
mito que não estava em condições muito melhores. Estava esgotada magica-
mente. Não acho que poderia ter me movido mais longe do que até a va-
randa.
Bes ligou para a recepção e pediu uma atendente para nos comprar algu-
mas roupas e mantimentos na cidade. Eu não tenho certeza de qual é a pa-
lavra árabe para coturnos, mas a senhora das compras conseguiu encontrar
um novo par. Quando entregou nossas coisas, ela tentou dar as botas para
Carter, em seguida, olhou horrorizada quando Bes apontou para mim. Eu
também consegui um pouco de tintura para cabelo, um confortável par de
jeans, um top de algodão em cores de camuflagem do deserto e um lenço na
cabeça que era, provavelmente, a última moda para as mulheres egípcias,
mas que eu decidi não usar, porque ele provavelmente iria esconder com o
novo roxo realçado que eu queria para o meu cabelo.
Carter ficou com jeans, botas e uma camiseta que dizia Propriedade da
Universidade de Alexandria, em inglês e árabe. Claramente, até mesmo a aten-
dente tinha tachado ele de nerd completo.
A compradora também conseguiu encontrar alguns materiais para a
nossa bolsa de magia – blocos de cera, barbante, até mesmo alguns papiros
e tinta – embora eu duvidasse que Bes explicou-lhe para que fossem.
Depois que ela saiu, Bes, Carter e eu pedimos mais comida do serviço de
quarto. Sentamos na varanda e vimos a tarde passar. A brisa do Mediterrâ-
neo estava fresca e agradável. A Moderna Alexandria estendia-se à nossa es-
querda – uma estranha mistura de reluzentes arranha-céus, sujeira, desmo-
ronamento de edifícios e ruínas antigas. A autoestrada costeira estava lotada
com palmeiras e com todo tipo de veículos desde BMWs até burros. De
nossa suíte, tudo parecia um pouco irreal – a energia bruta da cidade, a agi-
tação e os congestionamentos abaixo – enquanto nós nos sentávamos na

185
O TRONO DE FOGO

nossa varanda na cobertura comendo frutas frescas e os últimos pedaços da


cabeça de Lênin.
Eu me perguntava se era assim como os deuses se sentiam, vendo o
mundo mortal de sua sala do trono no Duat.
Enquanto conversávamos, joguei os dois pergaminhos do Livro de Rá
em cima da mesa do pátio. Eles pareciam tão simples e inofensivos, mas nós
quase morremos recuperando-os. Ainda mais que encontrar, então, a verda-
deira diversão iria começar, descobrindo como usá-los para despertar Rá. Pa-
recia impossível que pudéssemos fazer muito em 48 horas, mas ali nós sen-
tamos, isolados e exaustos, em repouso forçado até amanhã. Carter e seu
maldito heroísmo, sendo mordido por essa cobra Doutor Dolittle... e
ele me chama de impulsiva. Enquanto isso, Amós e os nossos novos inicia-
dos foram deixados sozinhos na Casa do Brooklyn, preparando-se para se
defender contra Vlad Menshikov, um mago muito cruel que estava em uma
base de reputação secreta do deus do mal.
Eu contei a Carter o que havia acontecido em São Petersburgo, depois
que ele foi envenenado – como eu tinha desistido do nome de Set em troca
da localização do último pergaminho: um lugar chamado Bahariya. Descrevi
a minha visão de Anúbis e Walt, meu papo com o espírito de Jaz, e minha
viagem de volta ao tempo do barco de Rá. A única coisa que eu detive: O
que Set tinha dito sobre a vila de Zia ter se chamado de al-Hamrah Makan.
E sim, eu sei que foi errado, mas eu tinha acabado de estar dentro da cabeça
de Carter. Agora eu entendia quão importante Zia era para ele. Eu sabia o
quanto qualquer informação sobre ela o abalava.
Carter estava sentado em sua poltrona e ouvia atentamente. Sua cor ti-
nha voltado ao normal. Seus olhos estavam claros e alertas. Era difícil acre-
ditar que ele tinha estado à beira da morte poucas horas antes. Eu queria
crédito pelos meus poderes de cura, mas tive uma sensação de que sua recu-
peração tinha muito a ver com descansarmos, vários refrigerantes de gengi-
bre, um cheeseburger e serviço de quarto com batata-frita.
— Bahariya... — Ele olhou para Bes. — Eu conheço este nome. Por que
conheço este nome?
Bes coçou sua barba. Ele havia ficado sombrio e silencioso desde que

186
SADIE

contei minha conversa com Set. O nome Bahariya pareceu especialmente


incomodá-lo.
— É um oásis — disse ele — saindo do deserto. As múmias estavam enter-
radas ali em segredo até 1996. Então, algum burro bobo colocou a perna em
um buraco no chão e quebrou o topo de uma tumba.
— Certo!
Carter sorriu para mim, tipo Caramba, história é legal! Tinha luz em seus
olhos, então eu sabia que ele devia estar se sentindo melhor.
— É o chamado Vale das Múmias Douradas.
— Eu gosto de ouro — falei. — Múmias, nem tanto.
— Oh, você só não encontrou múmias o suficiente — disse Bes.
Eu não podia dizer se ele estava brincando, e decidi não perguntar.
— Então o último pergaminho está escondido lá?
Bes deu de ombros.
— Não faria sentido. O oásis está fora do caminho. Não foi encontrado
até recentemente. Há também as maldições poderosas no local para evitar
viagens do portal. Os arqueólogos mortais escavaram alguns dos túmulos,
mas ainda há uma imensa rede de túneis e câmaras que ninguém andou em
milhares de anos. Muitas múmias.
Imaginei múmias de filmes de terror com os braços para cima e suas rou-
pas se desfazendo, gemendo quando perseguiam atrizes gritando e arqueólo-
gos estrangulados.
— Quando você diz muitas múmias — arrisquei — quantas são?
— Eles descobriram algumas centenas — Bes disse — talvez umas dez mil.
— Dez mil?
Olhei para Carter, que não parecia incomodado com tudo isso.
— Sadie — disse ele — não é como se eles fossem voltar a vida e te matar.
— Não — Bes concordou. — Provavelmente não. Quase certeza que não.
— Obrigada — murmurei. — Me sinto muito melhor.
[Sim, eu sei o que eu disse antes sobre pessoas mortas e cemitérios não
me incomodarem. Mas dez mil múmias? Isso era forçar.]
— De qualquer forma — Bes continuou — a maioria das múmias é da
época romana. Elas não são propriamente egípcias. Bando de latinos pre-
sunçosos tentando entrar em nossa vida após a morte, porque é mais legal.

187
O TRONO DE FOGO

Mas alguns dos túmulos mais antigos... bem, teremos que ver. Com duas
partes do Livro de Rá, você deve ser capaz de rastrear a terceira parte uma
vez que você chegar perto o suficiente.
— Como, exatamente? — perguntei.
Bes deu de ombros.
— Quando os itens mágicos se rompem, as peças são como ímãs. Quanto
mais próximos elas ficam, mais atraem umas as outras.
Isso não necessariamente me fez sentir melhor. Imaginei-me correndo
em um túnel em chamas com pergaminhos presos às duas mãos.
— Certo. Então tudo o que teremos que fazer é rastejar através de uma
rede de tumbas de dez mil múmias douradas, que provavelmente, quase ao
certo, não virão à vida nos matar.
— Sim — disse Bes. — Bem, elas não são realmente de ouro maciço. A
maioria delas são apenas pintadas de dourado. Mas, sim.
— Isso faz uma diferença enorme.
— Então está decidido — Carter soou positivamente entusiasmado. — Po-
demos sair de manhã. Qual é a distância?
— Um pouco mais de 320 quilômetros — Bes respondeu — mas as estradas
são duvidosas. E portais... bem, como eu disse, o oásis é amaldiçoado contra
eles. E mesmo se não fosse, estamos de volta ao Primeiro Nomo. Seria sábio
usar tão pouca magia quanto possível. Se vocês forem descobertos no pró-
prio território de Desjardins...
Ele não precisou terminar a frase.
Olhei para o horizonte de Alexandria sumindo ao longo da costa do Me-
diterrâneo brilhante. Eu tentei imaginá-la como pode ter sido em tempos
remotos, antes de Cleópatra, ultima faraó do Egito, que escolheu o lado er-
rado em uma guerra civil romana e perdeu sua vida e seu reino. Esta foi a
cidade onde o Antigo Egito tinha morrido. Não parecia um lugar muito
favorável para começar uma busca.
Infelizmente, eu não tinha escolha. Teria que viajar 320 quilômetros
através do deserto para algum oásis isolado e encontrar uma agulha de um
pergaminho em um palheiro de múmias. Eu não vejo como poderíamos fa-
zer isso no tempo que restava.
Pior, eu ainda não havia dito a Carter minha última gota de informações

188
SADIE

sobre a vila de Zia. Poderia apenas manter minha boca fechada. Isso seria
uma coisa egoísta. Podia até ser a coisa certa, como eu precisava de sua ajuda,
e eu não podia dar ao luxo detê-lo distraído.
Mas eu não podia esconder dele. Invadi sua mente e aprendi seu nome
secreto. O mínimo. O mínimo que eu podia fazer era ser sincera com ele.
— Carter... há outra coisa. Set queria que você soubesse. A vila de Zia era
chamada de al-Hamrah Makan.
Carter ficou um pouco verde de novo.
— Você simplesmente esqueceu de mencionar isso?
— Lembre-se, Set é um mentiroso — falei. — Ele não estava sendo útil. Ele
ofereceu a informação porque queria causar o caos entre nós.
Eu poderia dizer que já estava perdendo ele. Sua mente estava presa em
uma corrente forte que estava puxando-o junto desde janeiro – a ideia de
que ele poderia salvar Zia. Agora que eu havia estado em sua mente, eu sabia
que ele não iria descansar – ele não podia descansar – até que a tivesse en-
contrado. Ele foi além de gostar da garota. Se convenceu de que ela era parte
de seu destino.
Um de seus segredos sombrios? No fundo, Carter continua ressentido
por nosso pai não salvar nossa mãe, embora ela tivesse morrido por uma
causa nobre, e mesmo que tenha sido escolha dela se sacrificar. Carter sim-
plesmente não podia falhar com Zia da mesma forma, não importa qual o
perigo. Ele precisava de alguém para acreditar nele, alguém para salvar – e
estava convencido de que Zia era essa pessoa. Desculpe, uma irmã mais nova
simplesmente não faria.
Me machucou, especialmente porque eu não concordei com ele, mas eu
sabia que não adiantava discutir. Iria apenas empurrá-lo para mais longe.
— Al-Hamrah Makan... — ele disse. — Meu árabe não é muito bom. Mas
Makan é vermelho.
— Sim — concordou Bes. — Al-Hamrah significa as areias.
Carter arregalou os olhos.
— O Lugar das Areias Vermelhas! A voz no Museu do Brooklyn, disse
que Zia estava dormindo no Lugar de Areias Vermelhas.
Ele me olhou implorando.
— Sadie, são as ruínas da aldeia natal dela. Foi onde Iskandar a escondeu.

189
O TRONO DE FOGO

Temos que encontrá-la.


Assim: o destino do mundo sai pela janela. Temos que encontrar Zia.
Eu poderia ter apontado várias coisas: Ele acreditava na palavra de um
espírito mau que estava, provavelmente, falando diretamente por Apófis. Se
Apófis sabia onde Zia estava escondida, por que ele nos disse, exceto para
nos atrasar e distrair? E se ele queria Zia morta, por que ele não a havia
matado antes? Além disso, Set tinha nos dado o nome de al-Hamrah Makan.
Set nunca foi bom. Ele estava claramente esperando para nos dividir. Final-
mente, mesmo se tivéssemos o nome da aldeia, que não quer dizer que po-
deríamos encontrá-la. O lugar tinha sido dizimado há quase uma década.
Mas olhando para Carter, eu percebi que não havia nenhuma argumen-
tação com ele. Esta não era uma escolha razoável. Ele viu uma chance de
salvar Zia, e ia usá-la.
Eu simplesmente disse:
— É uma má ideia.
E sim, me senti muito estranha sendo forçada a bancar a irmã responsá-
vel.
Carter voltou-se para Bes.
— Você pode encontrar essa vila?
O deus anão puxou sua camisa havaiana.
— Talvez, mas isso levaria tempo. Você tem um pouco mais de dois dias
restando. O equinócio começa depois de amanhã ao pôr do sol. Chegar ao
oásis de Bahariya é um dia inteiro de viagem. Encontrar estas ruínas da vila...
facilmente outro dia... e se for pelo Rio Nilo, está na direção oposta. Assim
que tiver o Livro de Rá, você precisará de outro dia, pelo menos para desco-
brir como usá-lo. Garanto que despertar Rá vai significar uma viagem ao
Duat, onde o tempo é sempre imprevisível. Você terá que estar de volta com
Rá ao amanhecer do equinócio...
— Não temos tempo suficiente — resumi — ou é o Livro de Rá, ou Zia.
Por que eu pressionei Carter, quando eu sabia o que ele ia dizer?
— Não posso deixá-la. — Ele olhou para o sol, agora, mergulhando na
direção do horizonte. — Ela tem um papel a desempenhar, Sadie. Eu não sei
qual é, mas ela é importante. Não podemos perdê-la.
Esperei. Era óbvio o que tinha que acontecer, mas Carter não ia dizer.

190
SADIE

Eu respirei profundamente.
— Vamos ter que nos separar. Você e Bes vão atrás de Zia. Eu vou achar
o pergaminho.
Bes tossiu.
— Falando em ideias ruins...
Carter não podia me olhar nos olhos. Eu sabia que ele se importava co-
migo. Ele não queria se livrar de mim, mas podia sentir o seu alívio. Ele
queria ser liberado de suas responsabilidades para que ele pudesse procurar
Zia.
— Você salvou minha vida — disse ele. — Eu não posso deixar você ir
sozinha ao deserto.
Eu soltei meu colar shen.
— Não vou sozinha. Walt se ofereceu para ajudar.
— Ele não pode — Bes interrompeu.
— Mas você não vai me dizer o porquê — falei.
— Eu... — Bes vacilou. — Olha, eu prometi a Bastet cuidar de vocês, mantê-
los a salvo.
— E espero que você cuide de Carter muito bem. Ele vai precisar de você
para encontrar essa vila. Quanto a mim, Walt e eu podemos conseguir.
— Mas...
— Seja qual for o segredo obscuro de Walt, o que você está tentando
proteger, está fazendo-o infeliz. Ele quer ajudar. E eu vou deixar.
O anão olhou para mim, talvez se perguntando se ele poderia gri-
tar BOO! E vencer a discussão. Acho que ele percebeu que eu era muito tei-
mosa.
Ele suspirou, resignado.
— Dois jovens viajando sozinhos pelo Egito... um menino e uma menina.
Vai parecer estranho.
— Eu só vou dizer que Walt é meu irmão.
Carter fez uma careta. Eu não tinha a intenção de ser dura, mas acho
que o comentário foi um pouco doloroso. Olhando para trás, sinto muito
por isso, mas na época eu estava apavorada e com raiva. Carter estava me
colocando em uma posição impossível.
— Vão — disse com firmeza. — Salvem Zia.

191
O TRONO DE FOGO

Carter tentou ler a minha expressão, mas evitei olhar para ele. Este não
era o momento para que tivéssemos uma de nossas conversas em silêncio.
Ele realmente não ia querer saber o que eu estava pensando.
— Como vamos nos encontrar? — ele perguntou.
— Vamos nos encontrar novamente aqui — sugeri. — Vamos sair ao ama-
nhecer. Nos dê 24 horas, nada mais, para eu achar o livro, você achar a vila
de Zia, e nós dois voltamos para Alexandria.
Bes resmungou.
— Não há tempo suficiente. Mesmo se tudo correr perfeitamente, isso vai
deixar você com cerca de 12 horas para montar o Livro de Rá e usá-lo antes
da véspera do equinócio.
Ele estava certo. Era impossível.
No entanto, Carter concordou.
— É nossa única chance. Temos que tentar.
Ele olhou para mim esperançoso, mas acho que eu sabia ainda assim que
não nos encontraríamos em Alexandria. Éramos os Kane, o que significava
que tudo ia dar errado.
— Tudo bem — murmurei. — Agora, se vocês me dão licença, devo ir
arrumar as malas.
Caminhei para dentro antes que eu pudesse começar a chorar.

192
C
A
13. Um demônio entra em meu nariz
R
T
E
R

NESTE PONTO, EU DEVERIA MUDAR meu nome secreto para Morrendo de Ver-
gonha da Minha Irmã, porque isso praticamente resumia a minha existência.
Vou pular nossos preparativos para a viagem, como Sadie convocou Walt
e explicou a situação, como Bes e eu nos despedimos ao amanhecer e aluga-
mos um carro de um dos “amigos de confiança” de Bes, e como o carro
quebrou a meio caminho para o Cairo.
Basicamente, vou pular para a parte onde Bes e eu estávamos nos mo-
vendo ruidosamente por uma estrada empoeirada na parte traseira de uma
caminhonete dirigida por alguns beduínos, procurando por uma aldeia que
já não existia.
Era fim de tarde, e eu estava começando a achar que a estimativa de Bes
de precisar de um dia para encontrar al-Hamrah Makan era muito otimista.
A cada hora que perdíamos, meu coração se sentia mais pesado. Arrisquei
tudo para ajudar Zia. Deixei Amós e nossos iniciados sozinhos na casa no
Brooklyn para se defenderem contra o mago mais maligno no mundo. Dei-
xei minha irmã continuar a busca pelo último pergaminho sem mim. Se eu
falhasse em encontrar Zia... bem, eu não posso falhar.
Viajar com nômades profissionais tinha algumas vantagens. Os beduínos
conheciam todas as aldeias, fazendas e encruzilhadas empoeiradas do Egito.
Eles estavam felizes em parar e perguntar aos habitantes locais sobre a aldeia
desaparecida que nós buscávamos.

193
O TRONO DE FOGO

Além disso, eles veneravam Bes. O trataram como um amuleto vivo de


boa sorte. Quando nós paramos para almoçar (o que levou duas horas), os
beduínos nos deram até a melhor parte da cabra. Até onde eu poderia dizer,
a melhor parte não era tão diferente da pior parte da cabra, mas eu suponho
que era uma grande honra.
O ruim sobre viajar com Beduínos? Eles não tinham pressa. Levamos o
dia todo para fazer nosso caminho para o sul ao longo do Vale do Nilo. A
jornada era quente e tediosa. Na traseira da caminhonete, eu não podia
mesmo falar com Bes sem ficar com a boca cheia de areia, então eu tive
muito tempo para pensar.
Sadie descreveu minha obsessão muito bem. No momento em que ela
me deu o nome da aldeia de Zia, eu não consegui me concentrar em mais
nada. É claro que eu achei que fosse algum tipo de truque. Apófis estava
tentando nos dividir e nos impedir de ter sucesso em nossa busca. Mas eu
também acreditei que ele estava contando a verdade, só porque a verdade é
o que me confunde mais. Ele tinha destruído a aldeia de Zia quando ela era
uma criança – por qual razão, eu não sei. Agora ela estava escondida lá em
um sono mágico. A menos que eu a salvasse, Apófis poderia matá-la.
Por que ele não a tinha matado se ele já sabia onde ela estava? Eu não
tinha certeza, e isso me preocupava. Talvez ele não tivesse poder ainda. Tal-
vez ele não quisesse. Afinal, se ele estava tentando me atrair para uma arma-
dilha, ela era a melhor isca. Seja qual fosse o caso, Sadie estava certa: não era
uma escolha racional para mim. Eu tinha que salvar Zia.
Apesar disso, eu me sentia como um verme por deixar Sadie sozinha no-
vamente. Primeiro eu a tinha deixado ir para Londres embora eu soubesse
que era uma má ideia. Agora a tinha enviado para localizar um pergaminho
em uma catacumba cheia de múmias. Com certeza, Walt poderia ajudá-la, e
ela geralmente pode cuidar de si própria. Mas um bom irmão teria ter ficado
com ela. Sadie tinha acabado de salvar minha vida, e eu estava como
“Ótimo. Vejo você depois. Divirta-se com as múmias”.
Apenas vou dizer que Walt é meu irmão. Ai.
Para ser sincero, Zia não foi a única razão para eu estar ansioso para sair
por conta própria. Eu estava em choque porque Sadie havia descoberto meu
nome secreto. De repente, ela me conhecia melhor que qualquer um no

194
CARTER

mundo. Eu me sentia como se ela tivesse me aberto na mesa de cirurgia, me


examinado e me costurado de volta. Meu primeiro instinto foi fugir, por a
maior distância possível entre nós dois.
Me perguntei se Rá tinha se sentido do mesmo jeito quando Ísis apren-
deu seu nome – se esse foi o real motivo de ele ter se exilado: completa
humilhação.
Além do mais, eu precisava de tempo para processar o que Sadie tinha
feito. Há meses que estávamos tentando reaprender o caminho dos deuses.
Tínhamos nos empenhado para descobrir como os antigos magos usavam os
poderes dos deuses sem ficarem possuídos ou serem subjugados. Agora eu
suspeitava que Sadie tivesse encontrado a resposta. Tinha algo a ver com
o ren do deus.
Um nome secreto não era apenas um nome, assim como uma palavra
mágica. Era a soma das experiências de um deus. Quanto mais você entender
o deus, mais perto você fica de saber seu nome secreto, e mais você poderia
canalizar seu poder.
Se isso fosse verdade, então o caminho dos deuses era basicamente magia
empática – encontrando uma semelhança entre duas coisas, como um saca-
rolhas comum e um demônio-cabeça-de-saca-rolhas, e usando essa seme-
lhança para formar um vínculo mágico. Só que aqui, o vínculo era entre o
mago e o deus. Se você pudesse encontrar um traço em comum ou experi-
ência, você poderia utilizar o poder do deus.
Isso pode explicar como eu tinha explodido as portas no Hermitage com
o Punho de Hórus – magia que eu nunca tinha sido capaz de fazer por conta
própria. Sem pensar naquilo, sem precisar combinar a alma com Hórus, eu
tinha aproveitado suas emoções. Nós dois odiávamos nos sentir confinados.
Eu tinha usado essa simples conexão para invocar um feitiço e quebrar as
correntes. Agora, se eu pudesse descobrir como fazer coisas como essa de
forma mais confiável, poderia nos salvar nas batalhas futuras...
Viajamos por quilômetros na caminhonete dos beduínos. O Nilo ser-
penteava através de campos verdes e marrons à nossa esquerda. Nós não
tínhamos nada pra beber, exceto a água de uma jarra velha de plástico que
tinha gosto de vaselina. A carne de cabra não estava assentando bem no meu
estômago. De vez em quando, eu me lembrava do veneno que percorria meu

195
O TRONO DE FOGO

corpo e meu ombro começava a doer onde a tjesu heru tinha me mordido.
Em torno de seis horas da tarde chegamos à nossa primeira pista. Um
velho felá, um camponês fazendeiro vendendo tâmaras à beira da estrada,
disse que conhecia a aldeia que nós estávamos procurando. Quando ouviu
o nome de al-Hamrah Makan, ele fez um sinal de proteção contra o Mau-
Olhado, mas já que Bes era quem havia perguntando, o velho nos contou o
que sabia.
Ele disse que Areias Vermelhas era um mau lugar, muito amaldiçoado.
Ninguém o visitava atualmente. Mas o velho se lembrava da aldeia antes de
ter sido destruída. Nós a acharíamos a dez quilômetros ao sul, numa curva
do rio onde a areia tornava-se vermelho vivo.
Bem, isso é obvio, eu pensei, mas eu não podia deixar de ficar animado.
Os beduínos decidiram fazer acampamento para passar a noite. Eles não
iriam conosco o resto do caminho, mas disseram que ficariam honrados se
tomássemos emprestada sua caminhonete.
Alguns minutos depois, Bes e eu estávamos viajando na picape. Bes usava
um chapéu flexível quase tão feio quanto sua camiseta havaiana. Ele estava
sentado tão para baixo, que eu não tinha certeza se ele podia ver alguma
coisa, principalmente porque ele estava com o painel quase no nível do olho.
Cada vez que atingíamos um obstáculo, bugigangas beduínas chocalha-
vam no espelho retrovisor – um disco de metal gravado com caligrafia árabe,
uma árvore de natal – purificadores de ar em forma de pinheiro, alguns den-
tes de animal em uma tira de couro e um pequeno ícone de Elvis Presley,
por razões que eu desconhecia. A caminhonete não tinha nenhuma suspen-
são e dificilmente algum estofo nos assentos. Me senti como se estivesse
montando um touro mecânico. Mesmo sem os balanços, meu estômago já
teria se revirado. Depois de meses de procura e espera, eu não podia acredi-
tar que estava tão perto de encontrar Zia.
— Você parece horrível — Bes disse.
— Obrigado.
— Quero dizer magicamente falando. Você não parece pronto para uma
luta. O que quer que seja que está esperando por nós, entende que não vai
ser amigável?
Sob a aba de seu chapéu, seu queixo se projetava como se ele estivesse se

196
CARTER

preparando para uma discussão.


— Você acha que isso é um erro — falei. — Acha que eu deveria ter ficado
com Sadie.
Ele deu de ombros.
— Eu acho que se você estivesse prestando atenção, veria que isso tem
escrito ARMADILHA por toda parte. O antigo Sacerdote-Leitor Chefe, Is-
kandar, não teria escondido sua namorada...
— Ela não é minha namorada.
— ...sem colocar algumas magias de proteção em torno dela. Set e Apófis,
aparentemente ambos, querem que você encontre esse lugar, o que significa
que não pode ser bom para você. Você está deixando sua irmã e Walt por
conta própria. E, além de tudo isso, estamos perambulando pelo quintal de
Desjardins, e depois dessa façanha em São Petersburgo, Menshikov não vai
descansar até encontrá-lo. Então, sim, eu diria que esta não é sua ideia mais
brilhante.
Eu olhei para fora pelo para-brisa. Queria ficar bravo com Bes por me
chamar de estúpido, mas eu estava com medo de que ele pudesse estar certo.
Eu estava esperando por um reencontro feliz com Zia. As chances eram de
eu nunca conseguir passar desta noite vivo.
— Talvez Menshikov ainda esteja se recuperando dos ferimentos da ca-
beça — especulei, esperançoso.
Bes riu.
— Vá por mim, garoto. Menshikov já está atrás de você. Ele nunca se
esquece de uma ofensa.
Sua voz estava ardendo de ira, como aconteceu em São Petersburgo,
quando ele nos contou sobre o casamento anão. Eu me perguntava o que
tinha acontecido a Bes naquele palácio, e por que ele ainda estava pensando
nisso trezentos anos depois.
— Foi Vlad? — perguntei. — Foi ele quem capturou você?
Isso não parecia tão absurdo. Eu conheci vários magos que tinham sécu-
los de idade. Mas Bes balançou a cabeça.
— Seu avô, o Príncipe Alexander Menshikov — Bes pronunciou o nome
como se fosse um insulto grave. — Ele era secretamente o chefe do Décimo
Oitavo Nomo. Poderoso. Cruel. Um pouco como seu neto. Eu nunca lidei

197
O TRONO DE FOGO

com um mago como esse. Foi a primeira vez que fui capturado.
— Mas os magos não prenderam todos os deuses no Duat depois que o
Egito caiu?
— A maioria de nós — Bes concordou. — Alguns dormiram dois milênios
inteiros, até seu pai nos soltar. Outros acordaram ao longo do tempo e a
Casa da Vida pôde encontrá-los e colocá-los de volta no Duat. Sekhmet es-
capou em 1918. Grande epidemia de gripe. Mas alguns deuses como eu es-
tiveram no mundo mortal o tempo todo. Nos dias antigos, eu era só, você
sabe, um cara simpático. Eu assustava espíritos. Os plebeus gostaram de
mim. Então, quando o Egito caiu, os romanos me adotaram como um de
seus deuses. Depois, na Idade Média, os cristãos moldaram gárgulas seme-
lhantes a mim, para proteger suas catedrais e outras coisas mais. Fizeram
lendas sobre gnomos, anões, duendes prestativos, tudo baseado em mim.
— Duendes prestativos?
Ele fez uma careta.
— Você não acha que eu sou prestativo? Eu fico bem em uniformes ver-
des.
— Eu não preciso dessa imagem.
Bes bufou.
— De qualquer modo, a Casa da Vida nunca se preocupou em ir atrás de
mim. Eu só mantive discrição e fiquei longe de problemas. Nunca havia sido
capturado até a Rússia. Provavelmente ainda seria um prisioneiro lá se não
fosse por...
Ele parou a si próprio, como se tivesse percebido que tinha falado de-
mais.
Ele saiu da estrada. A caminhonete sacudindo-se passando sobre mais
areia e rochas, indo em direção ao rio.
— Alguém te ajudou a escapar? — adivinhei. — Bastet?
O pescoço do anão ficou vermelho.
— Não... não Bastet. Ela estava presa no abismo combatendo Apófis.
— Então...
— A questão é, estou livre, e tenho minha vingança. Eu consegui fazer
Alexander Menshikov ser condenado por acusações de corrupção. Ele ficou

198
CARTER

humilhado, despojado de sua riqueza e títulos. Sua família inteira foi despa-
chada para a Sibéria. O melhor dia da minha vida. Infelizmente, seu neto
Vladimir retornou. Por fim, ele voltou para São Petersburgo, reconstruiu a
fortuna de seu avô, e assumiu o Décimo Oitavo Nomo. Se Vlad tivesse a
chance de me capturar...
Bes se mexeu no lugar do motorista, como se as molas estivessem ficando
desconfortáveis.
— Eu acho que estou te contando isso porque... você é bom, garoto. A
maneira como você se levantou pela sua irmã sobre a ponte de Waterloo,
pronto para lutar comigo... aquilo precisou de muita coragem. E tentando
montar um tjesu heru? Aquilo foi muito valente. Estúpido, mas valente.
— Hum, Obrigado.
— Você faz eu me lembrar de mim — Bes continuou — quando eu era um
jovem anão. Você é teimoso. E quando se trata de problemas com garotas,
você está completamente perdido.
— Problemas com garotas?
Eu pensei que ninguém poderia me envergonhar tanto como Sadie fez
quando descobriu meu nome secreto, mas Bes estava fazendo um ótimo tra-
balho.
— Isso não é só um problema com uma garota.
Ele me olhou como se eu fosse um pobre cachorro perdido.
— Você deseja salvar Zia. Eu entendo isso. Quer que ela goste de você.
Mas quando você salva alguém... isso complica as coisas. Não fique deslum-
brado por alguém que não pode ter, especialmente se ela te deixa cego para
alguém que é realmente importante. Não... não cometa meus erros.
Eu ouvi a dor em sua voz. Eu sabia que ele estava tentando ajudar, mas
ainda me sentia esquisito recebendo conselhos de um deus de um-metro-e-
vinte-de-altura em um chapéu feio.
— A pessoa que lhe resgatou — eu disse. — Era uma deusa, não era? Al-
guém além de Bastet... Alguém com quem você estava envolvido?
Os dedos do anão ficaram brancos no volante.
— Criança.
— Sim?
— Estou contente que tivemos esta conversa. Agora, se você valoriza os

199
O TRONO DE FOGO

seus dentes...
— Eu vou calar a boca.
— Isso é bom — Bes colocou o pé no freio. — Porque acho que chegamos.
O sol estava se pondo nas nossas costas. Tudo a nossa frente estava ba-
nhado em luz vermelha, a areia, a água do Nilo, as montanhas no horizonte.
Mesmo as folhas das palmeiras pareciam que estavam tingidas de sangue.
Set iria amar esse lugar, pensei.
Não havia nenhum sinal de civilização, apenas algumas garças-reais vo-
ando no alto e uma pequena ondulação ocasional no rio: talvez um peixe ou
um crocodilo. Imaginei que essa parte do Nilo não estava muito diferente
do tempo dos faraós.
— Vamos lá — disse Bes. — Traga suas coisas.
Bes não esperou por mim. Quando eu o alcancei, ele estava de pé na
beira do rio, peneirando areia por entre os dedos.
— Não é apenas a luz — percebi. — Essa areia é realmente vermelha.
Bes assentiu com a cabeça.
— Você sabe por quê?
Minha mãe teria dito óxido de ferro ou algo parecido. Ela tinha uma
explicação científica para tudo. Mas algo me disse que Bes não estava procu-
rando por esse tipo de resposta.
— Vermelho é a cor do mal — respondi. — O deserto. Caos. Destruição.
Bes espanou suas mãos.
— Este foi um lugar ruim para se construir uma vila.
Olhei em volta em busca de qualquer sinal de um povoado. A areia ver-
melha estendida em ambos os sentidos por cerca de uma centena de metros.
Árvores frondosas e salgueiros de grama delimitavam a área, mas a areia era
completamente estéril. Do jeito que brilhava e transformava-se debaixo dos
meus pés, lembrou-me dos montes de conchas secas de escaravelho no Duat,
segurando Apófis. Eu realmente desejei que não tivesse pensado nisso.
— Não há nada aqui — falei. — Sem ruínas. Nada.
— Olhe novamente.
Bes apontou para o rio. Juncos velhos e mortos presos aqui e ali em uma
área do tamanho de um campo de futebol. Então que percebi que os juncos

200
CARTER

não eram juncos, eram placas e postes de madeira em decomposição, os res-


tos de habitações simples. Andei até a beira d'água. A alguns metros, ele
estava calmo e raso o suficiente para que eu pudesse ver uma linha de tijolos
submersos na lama: a fundação de um muro lentamente se dissolvendo em
lama.
— A aldeia inteira afundou?
— Foi engolida — Bes respondeu. — O Nilo está tentando lavar o mal que
aconteceu aqui.
Eu tremi. As feridas das presas no meu ombro começaram a doer nova-
mente.
— Se é um lugar tão mau, porque Iskandar esconderia Zia aqui?
— Boa pergunta — disse Bes. — Se você quer encontrar a resposta, terá
que caminhar por aí afora.
Uma parte de mim queria correr de volta para a caminhonete. A última
vez que eu entrei em um rio – o Rio Grande em El Paso – não tinha ido tão
bem. Nós combatemos o deus crocodilo Sobek e mal saímos com
vida. Este era o Nilo. Deuses e monstros seriam muito mais fortes aqui.
— Você está vindo também, não é? — perguntei a Bes.
O canto de seu olho estremeceu.
— Água corrente não é boa para os deuses. Enfraquece nossa ligação com
o Duat...
Ele deve ter visto o olhar de desespero em meu rosto.
— Sim, tudo bem — ele suspirou. — Estou bem atrás de você.
Antes que eu pudesse desistir, coloquei um pé no rio, e afundei até o
tornozelo.
— Nojento.
Eu entrei no rio, meus pés fazendo sons como uma vaca mascando goma.
Um pouco tarde, percebi o quão mal preparado eu estava. Eu não tinha
minha espada, porque a tinha perdido em São Petersburgo. Não tinha sido
capaz de convocá-la de volta. Pelo que eu sabia, os magos da Rússia a tinham
derretido. Eu ainda tinha minha varinha, mas ela era melhor para feitiços
de defesa. Se eu tivesse que ir para a ofensiva, estaria em uma séria desvan-
tagem.
Eu tirei da lama uma vara velha e a usei para bisbilhotar ao redor. Bes e

201
O TRONO DE FOGO

eu nos arrastamos pelas águas rasas, tentando encontrar algo de útil. Nós
chutamos alguns tijolos, descobrindo alguns trechos de paredes intactas, e
trouxe até alguns fragmentos de cerâmica. Pensei sobre a história que Zia
tinha me contado – como seu pai causou a destruição da aldeia por desen-
terrar um demônio preso em um jarro. Pelo que eu sabia, podia ser fragmen-
tos desse mesmo jarro.
Nada nos atacou com exceção de mosquitos. Nós não encontramos ne-
nhuma armadilha. Mas cada splash no rio me fazia pensar nos crocodilos (e
não o tipo albino simpático como o Filipe no Brooklyn) ou o grande peixe-
tigre dentuço que Zia havia me mostrado uma vez no Primeiro Nomo. Eu
os imaginei nadando em torno de meus pés, tentando decidir qual das per-
nas parecia mais apetitosa.
Com o canto do olho, eu ficava vendo ondinhas e pequenos redemoi-
nhos como se alguma coisa estivesse me seguindo. Quando eu golpeei a água
com minha vara, não havia nada ali.
Depois de uma hora de busca, o sol já estava quase desaparecendo. Nós
devíamos voltar para Alexandria para nos encontrar com Sadie pela manhã,
o que nos deixou quase tempo nenhum para encontrar Zia. E vinte e quatro
horas a contar de agora, na próxima vez que o sol se pusesse, o equinócio
começaria.
Continuamos procurando, mas não encontramos nada mais interessante
do que uma bola de futebol murcha e lamacenta e um conjunto de denta-
duras. [Sim, Sadie, elas eram ainda mais nojentas que a do vovô.] Parei para
esmagar os mosquitos do meu pescoço. Bes pegou algo de dentro d’água –
um peixe se contorcendo ou um sapo – e enfiou-o em sua boca.
— Você tem que fazer isso?
— O quê? — perguntou, ainda mastigando. — É hora do jantar.
Eu me virei com nojo e cutuquei minha vara na água.
Tum.
Eu atingi alguma coisa mais dura que tijolos de barro ou madeira. Aquilo
era uma pedra.
Tracei o fundo com a minha vara. Não era uma rocha. Era uma fileira
plana de blocos talhados. A borda descia para outra fileira de pedras cerca
de um pé menor: como escadas, levando para baixo.

202
CARTER

— Bes — chamei.
Ele nadou cuidadosamente até onde eu estava. A água chegou quase até
seus ombros. Sua forma tremeluzia na corrente como se ele pudesse desapa-
recer a qualquer momento.
Mostrei a ele o que eu tinha encontrado.
— Hum.
Ele mergulhou sua cabeça abaixo d’água. Quando voltou, sua barba es-
tava coberta de ervas daninhas.
— Escadas, tudo bem. Me lembra a entrada de uma tumba.
— Uma tumba — repeti — no meio de uma aldeia?
À minha esquerda, houve outro splash.
Bes franziu a testa.
— Você viu isso?
— Sim. Desde que entramos na água. Você não tinha percebido?
Bes colocou o dedo na água como se estivesse testando a temperatura.
— Nós devemos nos apressar.
— Por quê?
— Provavelmente nada. — Ele mentia ainda pior do que o meu pai. —
Vamos dar uma olhada nesta tumba. Divida o rio.
Ele disse isso como se fosse um pedido perfeitamente normal,
como Passe o sal.
— Eu sou um mago de combate — falei. — Eu não sei como dividir um
rio.
Bes pareceu ofendido.
— Ah, vamos lá. Isso é uma coisa normal. Nos dias de Khufu, soube de
um mago que dividiu o Nilo para que pudesse ir no fundo e recuperar o
colar de uma garota. Então houve aquele camarada israelita, Mickey.
— Moisés?
— Sim, ele — Bes disse. — De qualquer modo, você é totalmente capaz de
dividir a água. Nós temos pressa.
— Se é tão fácil, porque você não faz?
— Agora ele toma uma atitude. Eu te disse, garoto, água corrente interfere
no poder divino. Provavelmente é uma das razões de Iskandar ter escondido
sua amiga lá embaixo, se é onde ela está. Você pode fazer isso. Apenas...

203
O TRONO DE FOGO

De repente, ele ficou tenso.


— Vá para a margem.
— Mas você disse...
— Agora!
Antes que pudéssemos nos mover, o rio explodiu em torno de nós. Três
trombas d’água separadas explodiram para cima, e Bes foi puxado para de-
baixo d’água.
Eu tentei correr, mas meus pés atolaram na lama. As trombas d’água me
rodeavam. Elas espiralavam em formas humanas, ombros e braços feitos de
tiras de águas agitadas, como se fossem múmias criadas a partir do Nilo.
Seis metros abaixo, Bes surgiu para a superfície.
— Demônios aquáticos! — ele balbuciou — Desvie deles!
— Como? — gritei.
Dois dos demônios aquáticos se voltaram para Bes. O deus anão tentou
manter o equilíbrio, mas o rio fervia em corredeiras, e já estava acima de
seus ombros.
— Vamos, garoto! — gritou — todo pastor costumava saber encantos con-
tra demônios aquáticos!
— Bem, me arranje um pastor, então!
Bes gritou:
— BOO!
E o primeiro demônio aquático evaporou. Ele se virou para o segundo,
mas antes que pudesse assustá-lo, o demônio aquático explodiu em seu
rosto.
Bes engasgou e tropeçou, a água atirando-se de suas narinas. O demônio
se chocou contra ele, e Bes afundou novamente.
— Bes! — gritei.
O terceiro demônio surgiu próximo de mim. Ergui minha varinha e fiz
um fraco escudo de luz azul. O demônio bateu contra ele, me jogando para
trás.
Sua boca e olhos giravam como mini redemoinhos. Olhar em seu rosto
era como usar uma bacia de vidência. Eu podia sentir a fome sem fim da-
quela coisa, seu ódio pelos seres humanos. Ele queria quebrar cada barra-
gem, devorar cada cidade, e afogar o mundo em um mar de caos. E iria

204
CARTER

começar me matando.
Minha concentração vacilou. A coisa avançou em mim, destruindo meu
escudo e me puxando para debaixo d’água.
Já entrou água pelo seu nariz? Imagine uma onda inteira entrar no seu
nariz – uma onda inteligente que sabe exatamente como te afogar. Eu perdi
minha varinha. Meus pulmões estavam cheios de líquido. Todos os pensa-
mentos racionais se dissolveram no pânico.
Eu me debati e chutei, sabendo que estava à apenas um metro debaixo
água, mas eu não conseguia me levantar. Eu não conseguia ver nada através
da escuridão. Minha cabeça rompeu à superfície, e vi uma vaga imagem de
Bes se lançando em cima de uma tromba d’água, gritando:
— Boo... Já! Seja mais medroso!
Então eu fui para baixo de novo, minhas mãos tentando agarrar a lama.
Meu coração batia forte. Minha visão começou a escurecer. Mesmo se eu
pudesse ter pensado em uma magia, não poderia tê-la dito. Gostaria de ter
poderes de deus do mar, mas eles não eram exatamente especialidade de
Hórus.
Eu estava perdendo a consciência quando algo agarrou meu braço. Eu
dei socos freneticamente, e meu punho atingiu um rosto barbudo.
Rompi à superfície de novo, ofegando. Bes estava meio-afogado próximo
de mim, gritando:
— Estúpido... tentando salvar sua...
O demônio me puxou para baixo novamente, mas de repente, meus pen-
samentos ficaram claros. Talvez esse último bocado de oxigênio tenha feito
isso. Ou talvez esmurrar Bes tenha me tirado do pânico.
Lembrei que Hórus tinha vivido uma situação como essa antes. Set tinha
tentado afogá-lo uma vez, puxando-o para o Nilo.
Eu me conectei a essa memória e fiz dela minha própria.
Alcancei o Duat e canalizei o poder do deus da guerra para dentro de
meu corpo. A fúria me preencheu. Eu não seria encurralado. Eu segui o
Caminho de Hórus. Eu não deixaria uma estúpida múmia líquida me afogar
em 90 centímetros de água.
Minha visão ficou vermelha. Eu gritei, expulsando a água de meus pul-
mões em uma grande explosão.

205
O TRONO DE FOGO

WHOOOM!
O Nilo explodiu. Eu desmoronei em um campo de lama.
A princípio, eu estava cansado demais para fazer qualquer coisa além de
tossir. Quando me controlei e consegui parar de cambalear, limpei o lodo
dos meus olhos e pude ver que o rio tinha mudado seu curso. Ele agora
contornava as ruínas da aldeia. Expostos na lama vermelho-brilhante esta-
vam tijolos e placas, lixo, roupas velhas, o para-lama de um carro e ossos que
poderiam ter sido de um animal ou de um ser humano. Alguns peixes se
debatiam ao redor, se perguntando aonde o rio tinha ido. Não havia ne-
nhum sinal de demônios aquáticos. A cerca de três metros de distância, Bes
estava olhando zangado para mim. Ele tinha um nariz sangrando e estava
enterrado na lama até a cintura.
— Geralmente, quando você divide um rio — ele murmurou — isso não
implica esmurrar um anão. Agora, me tire daqui!
Eu consegui livrá-lo, o que causou um ruído de sucção tão impressio-
nante que desejei que eu o tivesse gravado. [E não, Sadie, eu não vou tentar
fazê-lo pelo microfone.]
— Sinto muito — gaguejei. — Eu não pretendia...
Ele acenou de lado as desculpas.
— Você lidou com os demônios aquáticos. Isso é o que importa. Agora
nós temos que ver se você pode lidar com isso.
Eu me virei e vi a tumba.
Era uma sepultura retangular do tamanho de um closet grande demais,
alinhado com blocos de pedra. Degraus conduziam até uma porta fechada
de pedra gravada com hieróglifos. O maior deles era o símbolo da Casa da
Vida:

— Aqueles demônios estavam guardando a entrada — Bes disse. — Talvez


seja pior ali dentro.
Debaixo do símbolo, reconheci uma linha de hieróglifos fonéticos:

206
CARTER

— Z – I – A — eu li. — Zia está aí dentro.


— E isso — resmungou Bes — é o que nós chamamos de armadilha nos
negócios da magia. Última chance para mudar de ideia, garoto.
Mas eu não estava realmente escutando. Zia estava lá embaixo. Mesmo
se eu soubesse o que estava prestes a acontecer, não acho que poderia ter me
parado. Desci as escadas e abri a porta.

207
C
A
14. Na tumba de Zia Rashid
R
T
E
R

O SARCÓFAGO ERA FEITO DE ÁGUA.


Era uma figura humana de tamanho grande, com os pés arredondados,
ombros largos, e um sorriso enorme na cara, como outros caixões egípcios
que eu tinha visto, mas a coisa toda fora esculpida a partir de puro líquido
brilhante. Jazia sobre um tablado de pedra no meio de uma câmara qua-
drada. Arte egípcia decorava as paredes, mas eu não dei muita atenção a isso.
Dentro do sarcófago, Zia Rashid flutuava em vestes brancas. Seus braços
estavam cruzados sobre o peito. Em suas mãos ela segurava um cajado curvo
e um mangual de guerra, os símbolos de um faraó. Seu cajado e sua varinha
flutuavam ao seu lado. Seus cabelos pretos e curtos estavam flutuando ao
redor de seu rosto, e eram tão bonitos quanto eu lembrava. Se você já viu a
famosa escultura da Rainha Nefertiti, Zia me lembrava dela, com as sobran-
celhas levantadas, maçãs do rosto salientes, nariz gracioso e perfeitos lábios
vermelhos.
[Sadie diz que eu estou exagerando com a descrição, mas é verdade. Há
uma razão Nefertiti ter sido chamada de a mulher mais bonita do mundo.]
Ao me aproximar do sarcófago, a água começou a tremeluzir. Uma cor-
rente desceu pelos lados, traçando o mesmo símbolo novamente e nova-
mente:

208
CARTER

Bes fez um som estrondoso em sua garganta.


— Você não me disse que ela era uma deusa menor.
Eu não tinha pensado em mencionar isso, mas é claro que foi por isso
que Iskandar tinha escondido Zia. Quando o nosso pai libertou os deuses
no Museu Britânico, um deles, a deusa dos rios, Néftis, tinha escolhido Zia
como sua hospedeira.
— Esse é o símbolo de Néftis? — supus.
Bes assentiu.
— Você não disse que essa garota era uma elementalista do fogo?
— Sim.
— Humpf. Não é uma boa combinação. Não admira que o Sacerdote-
leitor Chefe colocou-a em animação suspensa. Um mago do fogo hospe-
dando uma deusa da água... poderia matá-la, a menos... hum, isso foi muito
inteligente.
— O quê?
— A combinação de água sobre o fogo também pode mascarar os poderes
de Zia. Se Iskandar estava tentando escondê-la de Apófis... — Seus olhos se
arregalaram. — Santa Mãe Nut. Estes são o cajado e o mangual?
— Sim, eu acho.
Eu não sabia porque ele estava tão chocado.
— Um monte de gente importante não é enterrado com isso?
Bes me deu um olhar incrédulo.
— Você não entende, garoto. Esses são os cajado e mangual originais, os
instrumentos reais de Rá.
De repente eu senti como se tivesse engolido uma bola de gude. Eu não
acho que poderia ter ficado mais surpreso se Bes tivesse dito A propósito, você
está encostado em uma bomba de hidrogênio. O cajado e o mangual de Rá eram
os mais poderosos símbolos do deus mais poderoso do Egito. No entanto,
nas mãos de Zia, eles não parecem ser nada de especial. O cajado parecia um
bastão de caramelo azul e dourado de tamanho exagerado. O mangual era

209
O TRONO DE FOGO

um pedaço de madeira com três correntes pontudas no final. Eles não bri-
lhavam ou diziam propriedade de Rá.
— Por que eles estariam aqui? — perguntei.
— Não sei — disse Bes — mas são eles. Ouvi dizer que eles foram trancados
nos cofres do Primeiro Nomo. Só o Sacerdote-leitor Chefe tinha acesso. Eu
acho que Iskandar enterrou com sua amiga aqui.
— Para protegê-la?
Bes deu de ombros, claramente confuso.
— Isso seria como conectar seu sistema de segurança a um míssil nuclear.
Um exagero completo. Não admira que o Apófis não tenha sido capaz de
atacá-la. Isso é uma proteção séria contra o Caos.
— O que acontece se eu acordá-la?
— As magias que a estão protegendo serão quebradas. Pode ser por isso
que Apófis o conduziu até aqui. Uma vez fora do sarcófago, ela é um alvo
mais fácil. Quanto ao porquê de Apófis querer que ela morra, ou porque
Iskandar se deu ao trabalho de guardá-la, eu sei tanto quanto você.
Estudei o rosto de Zia. Durante três meses, eu sonhei em encontrá-la.
Agora, eu estava quase com medo de acordá-la. Ao quebrar o feitiço do sono,
eu poderia acidentalmente machucá-la, ou deixá-la exposta a um ataque de
Apófis. Mesmo se eu conseguisse, e se ela acordasse e decidisse que me odi-
ava? Eu queria acreditar que ela possuía memórias guardadas em seu shabti,
para que ela pudesse recordar os tempos que passamos juntos. Mas se ela
não tivesse, eu não tinha certeza se poderia suportar a rejeição.
Eu toquei o caixão de água.
— Cuidado, garoto — alertou Bes.
Energia mágica ondulou através de mim. Foi sutil, como olhar no rosto
do demônio da água, mas eu podia sentir os pensamentos de Zia. Ela estava
presa em um sonho de afogamento. Ela estava tentando se agarrar à sua
última boa memória: a face gentil de Iskandar quando ele colocou o cajado
e o mangual em suas mãos: Fique com isso, minha cara. Você vai precisar deles.
E não tenha medo. Sonhos não a incomodarão.
Mas Iskandar estava errado. Pesadelos invadiram seu sono. A voz de Apó-
fis sibilou das trevas: eu destruí sua família. E estou indo atrás de você. Zia viu a
demolição de sua aldeia de novo e de novo, enquanto Apófis ria, e o espírito

210
CARTER

de Néftis agitou-se desconfortável dentro dela. A magia de Iskandar tinha


prendido a deusa também em um sono encantado e ela tentou proteger Zia,
convocando o Nilo para cobrir esta câmara e protegê-las da serpente. Ainda
assim, ela não podia parar os sonhos. Zia estava tendo o mesmo pesadelo
caótico durante três meses, e sua sanidade estava desintegrando-se.
— Tenho que libertá-la. — falei — Ela está parcialmente consciente.
Bes sugou o ar através dos dentes.
— Isso não deve ser possível, mas se é verdade...
— Ela está em sérios apuros.
Eu afundei minha mão mais fundo no sarcófago. Canalizei o mesmo tipo
de magia que eu tinha usado para partir o rio, só que em menor escala. Aos
poucos, a água foi perdendo sua forma, derretendo como um cubo de gelo.
Antes que Zia caísse, peguei-a nos meus braços. Ela largou o cajado e o man-
gual. Seu cajado e varinha caíram no chão.
Quando os restos do sarcófago escoaram, os olhos de Zia se abriram. Ela
tentava respirar, mas não parecia conseguir.
— Bes, o que há de errado com ela? — falei O que eu faço?
— A deusa — disse ele. — O corpo de Zia está rejeitando o espírito de
Néftis. Leve-a para o rio!
O rosto de Zia começou a ficar azul. Peguei-a em meus braços e corri com
ela pelas escadas escorregadias, o que não foi fácil com Zia chutando e se
debatendo todo o caminho. Consegui passar pela lama sem cair e deitei-a ao
lado do rio.
Ela arranhou a garganta, os olhos cheios de temor, mas logo que seu
corpo tocou no Nilo, uma aura azul tremulou ao seu redor. Seu rosto voltou
à sua cor normal. A água jorrava de sua boca como se ela tivesse se transfor-
mado em uma fonte humana. Pensando bem, eu acho que foi muito no-
jento, mas na hora estava muito aliviado para pensar nisso.
A partir da superfície do rio, a forma aquosa de uma mulher apareceu
em um vestido azul. A maioria dos deuses egípcios enfraquecia em água cor-
rente, mas Néftis era claramente uma exceção. Ela brilhava com o poder.
Usava uma coroa egípcia de prata nos seus longos cabelos negros. Seu rosto
suntuoso me lembrou Ísis, mas essa mulher tinha um suave sorriso e os olhos
mais gentis.

211
O TRONO DE FOGO

— Olá, Bes.
Sua voz era suave e sussurrante, como uma brisa na relva.
— Néftis — disse o anão. — Há quanto tempo.
A deusa da água olhou para Zia, que tremia em meus braços, ainda ofe-
gante.
— Lamento por usá-la como hospedeira — disse Néftis. — Foi uma má
escolha, que quase nos destruiu a ambas. Guarde-a bem, Carter Kane. Ela
tem um bom coração e um destino importante.
— Qual destino? — perguntei. — Como faço para protegê-la?
Em vez de responder, o espírito de Néftis derreteu-se no Nilo. Bes gru-
nhiu com aprovação.
— O Nilo é o lugar onde ela deveria estar. Essa é sua forma apropriada.
Zia ofegava e se contorcia.
— Ela ainda não pode respirar!
Eu fiz a única coisa que eu conseguia pensar. Tentei reanimação boca-a-
boca.
Sim, ok, eu sei como isso soa, mas eu não estava pensando direito.
[Pare de rir, Sadie.]
Honestamente, eu não estava tentando tirar proveito. Eu só estava ten-
tando ajudar.
Zia não viu isso dessa forma. Ela me deu um soco forte no peito, e fiz um
som como um brinquedo estridente. Então ela se virou para o lado e vomi-
tou.
Eu não acho que a minha respiração era tão ruim assim.
Quando ela se concentrou em mim novamente, seus olhos brilhavam
com raiva, como nos velhos tempos.
— Não se atreva a me beijar! — ela conseguiu dizer.
— Eu não estava... eu não...
— Onde está Iskandar? — ela exigiu. — Eu pensei... — Seus olhos perderam
o foco. — Eu tive um sonho que...
Ela começou a tremer.
— Egito Eterno, ele não está... Ele não pode estar...
— Zia...
Eu tentei colocar minha mão no ombro dela, mas ela me empurrou. Ela

212
CARTER

se virou em direção ao rio e começou a soluçar, com os dedos arranhando a


lama.
Eu queria ajudá-la. Não aguentava vê-la sofrendo. Mas olhei para Bes, e
ele deu uma tapa no próprio nariz ensanguentado, como um aviso: Vá com
calma, ou ela vai te dar um desses.
— Zia, temos muito o que conversar — falei, tentando não transparecer
meu coração partido. — Vamos levá-la para longe do rio.

Ela sentou-se sobre os degraus de seu próprio túmulo e cruzou os braços.


Suas roupas e cabelos estavam começando a secar, mas apesar da noite
quente e do vento seco do deserto, ela ainda tremia.
A meu pedido, Bes havia trazido seu cajado e a varinha do túmulo, junto
com o cajado e o mangual, mas ele não parecia feliz com isso. Ele lidava com
os itens como se fossem tóxicos.
Tentei explicar as coisas para Zia: sobre o shabti, a morte de Iskandar,
Desjardins ter se tornado o Sacerdote-leitor Chefe, e o que havia acontecido
nos últimos três meses desde a batalha com Set, mas eu não sei quanto ela
ouviu. Ela continuou balançando a cabeça, apertando as mãos nos ouvidos.
— Iskandar não pode estar morto — sua voz estava embargada. — Ele não
teria... ele não teria feito isso comigo.
— Ele estava tentando protegê-la — falei. — Ele não sabia que você teria
esses pesadelos. Eu tenho procurado por você.
— Por quê? — Ela exigiu. — O que você quer de mim? Eu me lembro de
você em Londres, mas depois disso...
— Eu conheci seu shabti em Nova York. Ela... você... levou Sadie e eu
para o Primeiro Nomo. Você começou o nosso treinamento. Trabalhamos
juntos no Novo México, em seguida, na Pirâmide Vermelha.
— Não — ela fechou os olhos com força. — Não, não era eu.
— Mas você pode se lembrar do que o shabti fez. Apenas tente...
— Você é um Kane — ela chorou. — Vocês são todos foras da lei. E você
está aqui com isso.
Ela apontou para Bes.

213
O TRONO DE FOGO

— Isso tem um nome — Bes resmungou. — Estou começando a me per-


guntar porque eu dirigi por metade do Egito para acordá-la.
— Você é um deus! — Zia exclamou. Então ela se virou para mim. — E se
você o chamou, vai ser condenado à morte!
— Ouça, menina — disse Bes. — Você estava hospedando o espírito de
Néftis. Então, se alguém vai ser condenado à morte...
Zia pegou seu cajado.
— Vá embora!
Felizmente, ela não estava de volta à sua força total. Ela conseguiu dispa-
rar uma coluna fraca de fogo na cara de Bes, mas o deus anão golpeou facil-
mente as chamas para o lado.
Eu peguei a ponta do seu cajado.
— Zia, pare! Ele não é o inimigo.
— Posso dar um soco nela? — Bes perguntou. — Você me deu um soco,
criança. Parece justo.
— Sem socos — falei. — E sem lançar chamas. Zia, estamos do mesmo
lado. O equinócio será iniciado amanhã ao pôr do sol, e Apófis vai sair da
sua prisão. Ele quer te destruir. Estamos aqui para salvá-la.
O nome Apófis a atingiu em cheio. Ela lutou para respirar, como se seus
pulmões tivessem se enchido de água novamente.
— Não. Não, não é possível. Por que eu deveria acreditar em você?
— Porque... — eu hesitei.
O que eu poderia dizer? Porque nós tínhamos nos apaixonado um pelo
outro, há três meses? Porque nós já passamos por tantas coisas juntos e sal-
vamos a vida um do outro? Essas lembranças não eram dela. Ela lembrou de
mim de certa forma. Mas o nosso tempo juntos era como um filme que ela
assistiu, com uma atriz fazendo seu papel, fazendo coisas que ela nunca tinha
feito.
— Você não me conhece — ela falou amargamente. — Agora, vá, antes que
eu seja forçada a lutar com você. Eu vou sozinha até o Primeiro Nomo.
— Talvez ela esteja certa, garoto — disse Bes. — Devemos sair. Usamos
magia aqui suficiente para ativar todos os tipos de alarme.
Cerrei os punhos. Meus piores temores se confirmaram. Zia não gostava

214
CARTER

de mim. Tudo o que tínhamos partilhado tinha desintegrado com sua ré-
plica de cerâmica. Mas como eu já mencionei, eu sou teimoso quando dizem
que eu não posso fazer alguma coisa.
— Eu não vou te deixar — apontei para as ruínas de sua aldeia. — Zia, o
local foi destruído por Apófis. Não foi um acidente. Não foi culpa do seu
pai. A serpente estava mirando em você. Iskandar te ajudou porque sentiu
que você tinha um destino importante. Escondeu-a com o cajado do faraó e
mangual pela mesma razão, não apenas porque você estava hospedando uma
deusa, mas porque ele estava morrendo e teve medo de que não seria mais
capaz de protegê-la. Eu não sei o que seu destino é, exatamente, mas...
— Pare! — Ela reacendeu a ponta de seu cajado. Ele brilhou mais intensa-
mente dessa vez. — Você está confundindo os meus pensamentos. Você é
como os pesadelos.
— Você sabe que eu não sou.
Eu provavelmente deveria ter me calado, mas eu não podia acreditar que
Zia iria realmente incinerar-me.
— Antes de morrer, Iskandar percebeu que os velhos métodos tinham
que ser trazidos de volta. Por isso que ele deixou Sadie e eu vivos. Os deuses
e os magos têm de trabalhar juntos. Você... seu shabti... percebeu isso
quando lutamos juntos na Pirâmide Vermelha.
— Garoto — Bes chamou com mais urgência. — Nós realmente devería-
mos ir.
— Venha com a gente — falei à Zia. — Eu sei que você sempre se sentiu
sozinha. Você nunca teve ninguém além de Iskandar, mas eu sou seu amigo.
Nós podemos protegê-la.
— Ninguém me protege! — Ela se pôs de pé. — Eu sou uma escriba da Casa
da Vida!
Chamas dispararam de seu cajado. Procurei por minha varinha, mas é
claro que eu tinha perdido no rio. Instintivamente minhas mãos se fecharam
em torno dos símbolos do faraó, o Cajado de pastor e o mangual de guerra.
Segurei-os em um X na defensiva, e o cajado de Zia quebrou-se imediata-
mente. O fogo se dissipou.
Zia cambaleou para trás, fumaça ondulando de suas mãos.
Ela olhou para mim em um estado de choque absoluto.

215
O TRONO DE FOGO

— Você se atreve a usar os símbolos de Rá?


Eu provavelmente parecia surpreso.
— Eu... eu não quis! Eu só quero conversar. Você deve estar com fome.
Nós temos água e comida na traseira da caminhonete...
— Carter! — Bes estava tenso. — Algo está errado...
Ele se virou tarde demais. Uma luz ofuscante branca explodiu ao redor
dele. Quando minha visão voltou ao normal, Bes estava congelado em uma
gaiola de barras brilhantes como lâmpadas fluorescentes. Junto com ele es-
tavam as duas pessoas que eu menos queria ver:
Michel Desjardins e Vlad, o Inalador.
Desjardins parecia ainda mais velho do que eu me lembrava. Seus cabe-
los grisalhos e barba bifurcada estavam longos e despenteados. Suas vestes
de cor creme caíam folgadamente sobre ele. O manto de pele de leopardo
do Sacerdote-leitor Chefe estava escorregando de seu ombro esquerdo.
Vlad Menshikov, por outro lado, parecia bem descansado e pronto para
um bom jogo de Torture-o-Kane. Ele usava um terno de linho branco fresco
e carregava um novo cajado de serpente. Seu colar de prata em forma de
cobra brilhava contra o cordão. Em seu cabelo encaracolado cinzento estava
um chapéu branco, provavelmente para cobrir as lesões na cabeça que Set
lhe dera. Ele sorriu como se ele estivesse feliz em me ver, o que talvez teria
sido convincente – exceto que ele não tinha mais os óculos de sol. No meio
das cicatrizes e ferimentos, aqueles horríveis olhos brilhavam de ódio.
— Como eu lhe disse, Sacerdote-leitor Chefe — Menshikov disse aspera-
mente — o próximo passo do Kane seria encontrar essa pobre menina e ten-
tar corrompê-la.
— Desjardins, ouça — eu disse. — Menshikov é um traidor. Ele convocou
Set. Ele está tentando libertar Apófis...
— Está vendo? — Menshikov exclamou. — Como eu previ, o rapaz tenta
por a culpa de sua magia ilegal em mim.
— O quê? — falei — Não!
O russo voltou a examinar Bes, que ainda estava congelado em sua jaula
brilhante.
— Carter Kane, você afirma ser inocente e, ainda encontramos você aqui
confraternizando com os deuses. O que temos aqui? Bes, o anão! Felizmente,

216
CARTER

o meu avô me ensinou uma magia excelente para prender essa criatura em
especial. Meu avô também me ensinou muitas magias de tormento, que fo-
ram... bastante eficazes no deus anão. Eu sempre quis experimentar.
Desjardins torceu o nariz em desagrado, mas eu não poderia dizer se era
por minha causa ou de Menshikov.
— Carter Kane — disse o Sacerdote-leitor Chefe — eu sabia que você de-
sejava o trono do faraó. Eu sabia que você estava conspirando com Hórus.
Mas agora encontro você segurando o cajado e o mangual de Rá, que desco-
brimos recentemente estarem sumidos de nossos cofres. Mesmo para você,
este é um ato imprudente de agressão.
Eu olhei para as armas em minhas mãos.
— Não é assim. Eu só os encontrei... — parei.
Eu não poderia dizer-lhe que os símbolos tinham sido enterrados com
Zia. Mesmo que ele acreditasse em mim, isso podia colocar Zia em apuros.
Desjardins assentiu como se eu tivesse confessado. Para minha surpresa,
ele parecia um pouco triste com isso.
— Como eu pensei. Amós assegurou-me de que você era um servo hon-
roso do Maat. Em vez disso, descubro que você é um deus menor e um la-
drão.
— Zia — eu me virei para ela. — Você tem que ouvir. Você está em perigo.
Menshikov está trabalhando para Apófis. Ele vai te matar.
Menshikov fez um bom trabalho em parecer ofendido.
— Por que eu iria querer prejudicá-la? Eu sinto que ela está livre de Néftis
agora. Não é culpa dela que a deusa invadiu a sua forma. — Ele estendeu a
mão para Zia. — Estou contente de vê-la segura, criança. Você não tem culpa
da decisão estranha de Iskandar, em seus últimos dias de lhe esconder aqui,
suavizando sua atitude para com estes criminosos Kane. Venha para longe
do traidor. Venha para casa com a gente.
Zia hesitou.
— Eu tinha... Eu tinha sonhos estranhos...
— Você está confusa — disse gentilmente Desjardins. — Isso é natural.
Seu shabti transmitia suas memórias para você. Você viu Carter Kane e sua
irmã fazerem um pacto com Set na Pirâmide Vermelha. Ao invés de destruir
o Lorde Vermelho, deixaram-no ir. Você se lembra?

217
O TRONO DE FOGO

Zia me estudou com cautela.


— Lembre-se por que fizemos isso — implorei. — O caos está crescendo.
Apófis irá se libertar em menos de 24 horas. Zia... eu...
As palavras ficaram presas na minha garganta. Eu queria dizer a ela o
quanto eu sentia por ela, mas seus olhos se endureceram como âmbar.
— Eu não conheço você — ela murmurou. — Sinto muito.
Menshikov sorriu.
— Claro que não, criança. Você não tem nada com traidores. Agora, com
sua permissão senhor Desjardins, vamos levar este jovem herege para o Pri-
meiro Nomo. Onde lhe será dado um julgamento justo.
Menshikov se virou para mim, os olhos arruinados ardendo em triunfo.
— E, em seguida, será executado.

218
S
A
15. Camelos são maus...
D
I
E

SIM CARTER, TODO O NEGÓCIO com os demônios aquáticos deve ter sido
horrível. Mas eu não sinto simpatia alguma por você, porque 1) você mesmo
quis fazer essa viagem sozinho e 2) porque enquanto você estava resgatando
Zia, eu estava lidando com camelos.
Camelos são nojentos.
Você deve pensar: Mas, Sadie, eram camelos mágicos, convocados por um dos
amuletos do Walt. Que cara inteligente, esse Walt! Sem dúvida, camelos mágicos
são melhores que os camelos normais.
Eu posso agora atestar que camelos mágicos cospem, defecam, babam,
mordem, comem e o pior, cheiram como camelos normais. Na verdade, a
sujeira deles é magicamente realçada.
Não começamos com os camelos, claro. Começamos nosso caminho até
eles com uma série de horríveis e progressivas maneiras de se transportar.
Primeiro pegamos um ônibus para uma pequena cidade a oeste de Alexan-
dria – um ônibus sem ar condicionado, no meio de homens que ainda não
haviam descoberto os benefícios do desodorante. Então alugamos um mo-
torista para nos levar a Bahariya – um motorista que primeiro teve a coragem
de tocar as melhores do Abba e comer cebolas, e que depois nos levou para
o meio do nada e... surpresa! Nos apresentou para seus amigos, os bandidos,
que estavam entusiasmados para roubar adolescentes americanos indefesos.
Adorei mostrar a eles como meu cajado se transforma em um leão grande e

219
O TRONO DE FOGO

faminto. Até onde eu sei, os bandidos e o motorista ainda estão correndo.


De qualquer maneira, o carro havia parado, e nenhuma quantidade de ma-
gia faria aparecer outro.
Nessa situação, decidimos que era melhor permanecer longe da estrada.
Eu podia dispensar o estranho estilo local. Podia dispensar a atração que
seria uma menina – americana-inglesa com o cabelo com mechas roxas, via-
jando sozinha com um garoto que não parecia seu irmão. Bem, certamente
isso descrevia minha vida. Mas após o acidente com os bandidos na estrada,
Walt e eu percebemos o quanto os locais estavam vigiando a gente, mar-
cando-nos como alvo. Eu não tinha desejo nenhum de ter problemas com
mais bandidos, ou com a polícia egípcia, ou pior, feiticeiros que podiam
estar escondidos. Decidimos, portanto, convocar camelos mágicos. Encanta-
mos um punhado de areia para mostrar o caminho até Bahariya e nos lan-
çamos para o deserto.
E como era o deserto, Sadie? Você pode se questionar.
Obrigada pela pergunta. Era quente.
E outra coisa: porque desertos tem que ser tão abominavelmente gigan-
tes? Porque eles não podem ter algumas centenas de metros de largura, ape-
nas o suficiente para lhe dar a ideia de areia, seca e miséria, e então ceder a
uma paisagem apropriada, como um hipódromo em um rio ou uma rua com
lojas?
Não tínhamos tanta sorte assim. O deserto continuava para sempre. Eu
podia imaginar Set, o deus das terras devastadas, rindo de nós enquanto nos
arrastávamos pelas dunas. Se essa era a morada dele, não gostei muito do
modo como ele a decorou.
Chamei o meu camelo de Katrina. Ela era um desastre natural. Descan-
sava em qualquer lugar e parecia achar que minha mecha roxa no cabelo era
algum tipo de fruta exótica. Era obcecada em tentar comer minha cabeça.
Nomeei o camelo do Walt de Hindenburg. Ele era quase tão grande quanto
um dirigível e, definitivamente, quase tão cheio de gás.
Enquanto progredíamos, Walt parecia imerso em pensamentos, olhando
para o horizonte. Ele veio em meu socorro em Alexandria sem hesitação.
Como eu suspeitava, nossos amuletos shen estavam conectados. Com um
pouco de concentração, eu seria capaz de mandar uma mensagem telepática

220
SADIE

a ele sobre nossos apuros. Com um pouco mais, eu seria capaz de literal-
mente trazê-lo através do Duat para o meu lado. Que item mágico cômodo:
garoto gostoso instantâneo.
Aqui, porém, ele foi se tornando cada vez mais quieto e desconfortável.
Estava vestido como um adolescente americano normal numa excursão ao
ar livre – uma regata preta que caía muito bem nele, calças de caminhada e
botas. Se você olhasse melhor, veria que ele trouxe muitos equipamentos
mágicos que fez. Ao redor de seu pescoço estava um verdadeiro zoológico de
amuletos animais. Três anéis brilhando em cada mão, e em sua cintura havia
um cinto de corda que eu não tinha visto antes, então imaginei que tivesse
poderes mágicos. Ele também carregava uma mochila, sem dúvida estufada
com mais artefatos. Apesar de seu arsenal pessoal, Walt parecia terrivel-
mente nervoso.
— Tempo ótimo — eu disse.
Ele franziu a testa, saindo de seus pensamentos.
— Desculpe, eu estava pensando.
— Sabe, às vezes falar ajuda. Por exemplo, ah, sei lá. Se eu tivesse um
grande problema, algo que oferece risco de vida e eu tivesse confiado apenas
em Jaz... e se Bes soubesse o que estava acontecendo, mas não falasse... e se
eu tivesse concordado em começar uma aventura com uma boa amiga, e
tivesse horas para conversar enquanto atravessássemos o deserto, talvez eu
me sentisse tentada a dizer a ela o que estava errado.
— Hipoteticamente falando — ele disse.
— Sim. E se essa garota fosse a última pessoa na Terra a saber o que estava
errado comigo, e se realmente se importasse... Bem, eu posso imaginar que
ela ficaria bem frustrada por ficar tanto tempo no escuro. E ela poderia,
hipoteticamente, estrangular você... quero dizer eu. Hipoteticamente.
Walt deu um sorriso fraco. Apesar de eu não poder dizer que os olhos
dele me derreteram tanto quando os de Anúbis, ele tinha um rosto maravi-
lhoso. Não parecia nada com meu pai, mas ele tinha o mesmo tipo de força
e beleza rude – um tipo de gravidade suave que me faz sentir mais segura, e
com um pouco mais de pé no chão.
— É difícil pra mim falar disso — ele disse — não tinha intenção alguma
de esconder nada de você.

221
O TRONO DE FOGO

— Felizmente, não é tarde demais.


Nossos camelos seguiam se arrastando. Katrina tentou beijar, ou possi-
velmente cuspir em Hindenburg, e Hindenburg peidou em resposta. Achei
isso um comentário depressivo sobre relações menino-e-menina.
Finalmente Walt começou a falar.
— Isso tem a ver com o sangue dos faraós. Vocês... quero dizer, os Kane...
vocês combinam duas linhagens reais poderosas, Narmer e Ramsés, o
Grande, certo?
— Foi o que me contaram. Sadie, a Grande, soa bem.
Walt não respondeu a isso. Talvez ele estivesse me imaginando como
faraó, o que eu tinha que admitir que era um conceito aterrorizante.
— Minha linhagem real... — ele hesitou. — O quanto você sabe sobre
Aquenáton?
— Na minha cabeça, ele foi um faraó. Provavelmente do Egito.
Walt riu, o que foi bom. Se eu pudesse manter seu humor não muito
sério, talvez fosse mais fácil para ele se abrir.
— Aquenáton foi o faraó que decidiu acabar com todos os deuses antigos
e adotar apenas Aton, o sol.
— Ah... certo.
A história vagamente ligou um alarme, como se me fizesse sentir quase
como um Geek egípcio como Carter.
— Ele foi o cara que mudou a capital, não?
Walt assentiu.
— Ele construiu uma cidade inteiramente nova em Amarna. Era um cara
meio estranho, mas foi o primeiro a ter a ideia que os deuses antigos eram
maus. Ele tentou banir sua adoração, destruindo seus templos. Ele queria
adorar apenas um deus, mas fez uma escolha estranha para esse deus. Ele
escolheu o sol. Não o deus do sol Rá, o atual disco do sol, Aton. De qualquer
jeito, os antigos magos e sacerdotes, especialmente os sacerdotes de Amon-
Rá...
— Outro nome para Rá? — chutei.
— Mais ou menos — disse Walt. — Então, os sacerdotes do templo de
Amon-Rá não estavam muito felizes com Aquenáton. Depois que ele mor-
reu, eles desfiguraram suas estátuas, tentaram apagar seu nome de todos os

222
SADIE

monumentos, essas coisas. Amarna foi completamente abandonada. O


Egito voltou aos dias antigos.
Eu absorvi aquilo. Milhares de anos antes de Iskandar emitir uma lei
exilando os deuses, um faraó teve a mesma ideia.
— E ele era o que, seu ta-ta-ta-não-sei-o-que avô? — perguntei.
Walt enrolou as rédeas dos camelos em volta de seu punho.
— Sou um dos descendentes de Aquenáton, sim. Temos a mesma aptidão
para magia que a maioria das linhagens reais, mas... temos problemas tam-
bém. Os deuses não ficaram felizes com Aquenáton, como você pode imagi-
nar. O filho dele, Tutancâmon...
— Rei Tut? — perguntei. — Você é parente do rei Tut?
— Infelizmente — Walt concordou. — Tutancâmon foi o primeiro a sofrer
a maldição. Ele morreu aos dezenove anos. E ele foi um dos mais sortudos.
— Espera aí. Que maldição?
Foi aí que Katrina começou um grito alto. Você pode protestar, dizer
que camelos não gritam, mas está extremamente errado. Quando ela alcan-
çou o topo de uma duna maciça, Katrina produziu um som agudo, muito
pior que os freios de carro. Hindenburg estava mais para um som de peido.
Olhei para o outro lado da duna. Abaixo de nós, no meio do deserto,
havia um nebuloso vale de campos verdes e palmeiras esparramadas, quase
o tamanho do centro de Londres. Pássaros voavam acima. Lagos pequenos
brilhavam no sol da tarde. Fumaça rosa subiam de cozinhas em algumas ha-
bitações aqui e ali. Após tanto tempo no deserto, meus olhos doeram de ver
todas aquelas cores, como quando você sai de uma sala de cinema para uma
tarde ensolarada.
Eu entendi como viajantes anciãos devem ter caído, descobrindo um oá-
sis como esse após dias no deserto. Era a coisa mais próxima que eu já tinha
visto do Jardim do Éden.
Nossos camelos pararam para admirar o lindo cenário. Uma trilha de
pegadas meio apagadas serpeava pela areia, em todo o caminho do oásis ao
centro de nossa duna. E acima da colina, havia um gato bem descontente.

— Já era hora — disse o gato.


Desci das costas de Katrina e encarei o gato. Não porque ele falou – eu

223
O TRONO DE FOGO

já tinha visto coisas mais estranhas – mas porque reconheci a voz.


— Bastet? — perguntei — o que você está fazendo nesse... O que é isso,
afinal?
O gato sentou-se nas patas traseiras e estendeu as dianteiras como se dis-
sesse: Voilà!
— Um gato egípcio, claro. Lindas pintas de leopardo, pelo colorido...
— Parece que você acabou de sair de um liquidificador!
Eu não estava só sendo cruel. O gato estava terrivelmente mal. Grandes
tufos de pelo estavam faltando. Deve ter sido bonito antes, mas eu estava
mais inclinada a pensar que ele sempre foi assim. O pouco pelo restante
estava sujo e bagunçado, e seus olhos estavam inchados e marcados como
Vlad Menshikov.
Bastet, ou o gato, ou o que quer que fosse, sentou-se nas quatro patas e
fungou indignadamente.
— Sadie, minha querida, acho que já falamos sobre cicatrizes de batalha
em gatos. Esse Amigo aqui é um guerreiro!
Um guerreiro que perde, pensei, mas decidi não dizer.
Walt escorregou das costas de Hindenburg.
— Bastet, como... onde você está?
— Ainda no Duat — ela suspirou. — Não será hoje que encontrarei meu
caminho de volta. As coisas aqui embaixo estão meio... caóticas.
— Você está bem? — perguntei.
O gato assentiu.
— Eu só preciso ser cuidadosa. O abismo está cheio de inimigos. Todos
os caminhos normais e pelos rios estão guardados. Eu terei um longo cami-
nho a percorrer para voltar a salvo, e assim que o equinócio começar amanhã
ao pôr-do-sol, o tempo será ainda menor. Eu achei melhor te mandar uma
mensagem.
— Então... — Walt uniu as sobrancelhas. — Esse gato não é real?
— É claro que é real — Bastet respondeu. — Apenas controlado por um a
parte do meu ba. Posso falar através de gatos facilmente, sabe, pelo menos
alguns minutos por vez, mas essa é a primeira vez que vocês estiveram perto
de um. Entende isso? Inacreditável! Vocês realmente precisam andar mais

224
SADIE

perto de gatos. Pelo jeito, esse gato vai precisar de uma recarga quando eu
for embora. Algum peixe bom, talvez, ou um pouco de leite...
— Bastet — interrompi. — Você disse que tinha uma mensagem?
— Certo. Apófis está acordando.
— Nós sabíamos!
— Mas é pior do que pensamos — ela continuou. — Ele tem uma legião
de demônios trabalhando em sua prisão, e planeja se libertar ao mesmo
tempo em que você acordar Rá. Na verdade, ele está contando com que você
liberte Rá. É parte de seu plano.
Minha cabeça parecia ter virado geleia, mas deve ter sido porque Katrina,
o camelo, estava mastigando meu cabelo.
— Apófis quer que libertemos seu arqui-inimigo? Isso não faz sentido.
— Não posso explicar — Bastet disse — mas quanto mais perto chego de
sua prisão, eu posso captar seus pensamentos. Acho que por termos lutado
tantos séculos, temos algum tipo de conexão. De qualquer jeito, o equinócio
começa amanhã ao pôr-do-sol, como eu disse. Na alvorada seguinte, a manhã
de 21 de março, Apófis pretende erguer-se do Duat. Ele planeja engolir o sol
e destruir o mundo. E acredita que seu plano de acordar Rá o ajudará a fazer
isso.
Walt franziu a testa.
— Se Apófis quer que o façamos, porque está tentando tanto nos impe-
dir?
— Está mesmo? — perguntei.
Dúzias de pequenos detalhes que me intrigaram durante dias de repente
fizeram sentido. Porque Apófis apenas assustou Carter no Museu do Bro-
oklyn, quando as Flechas de Sekhmet poderiam tê-lo destruído? Como esca-
pamos tão facilmente de São Petersburgo? Por que Set tinha dito voluntari-
amente a localização do terceiro pergaminho?
— Apófis deseja o caos — lembrei. — Ele quer dividir seus inimigos. Se Rá
retornar, isso poderia nos deixar no meio de uma guerra civil. Os magos já
estão divididos. Os deuses estariam brigando entre eles. Não haveria regra
clara. Se Rá não renascer numa nova forma forte... se ele é tão velho e frágil
quanto eu vi em minha visão...
— Então não devemos acordar Rá? — perguntou Walt.

225
O TRONO DE FOGO

— Essa também não é a resposta — falei.


Bastet inclinou a cabeça.
— Estou confusa.
Minha mente trabalhava rápido. Katrina, o camelo, ainda estava masti-
gando meu cabelo, tornando-o uma desordem empapada, mas eu mal repa-
rei.
— Nós temos que prosseguir com o plano. Precisamos de Rá. O Maat e o
Caos precisam de equilíbrio, certo? Se Apófis retornar, Rá precisa retornar
também.
Walt girou seus anéis.
— Mas se Apófis quer Rá acordado, se ele acha que isso vai ajudá-lo a des-
truir o mundo...
— Nós temos que acreditar que Apófis está errado.
Lembrei-me de uma coisa que Jaz me disse: Escolhemos Acreditar no Maat.
— Apófis não imagina que alguém pode unir os magos e os deuses — eu
disse. — Ele pensa que o retorno de Rá irá nos enfraquecer ainda mais. Pre-
cisamos provar que ele está errado. Precisamos criar ordem a partir do caos.
É o que o Egito sempre fez. É um risco, um risco enorme, mas se não fizermos
nada porque temos medo, cairemos, iremos direto para as mãos de Apófis.
É difícil dar um discurso extraordinário com um camelo lambendo seu
cabelo, mas Walt assentiu. O gato não pareceu assim tão entusiasmado. Mas
gatos raramente o fazem.
— Não subestime Apófis. Você não lutou com ele. Eu lutei.
— E é por isso que precisamos de você rapidamente.
Contei a ela sobre a conversa de Vlad Menshikov com Set e seus planos
de destruir a Casa do Brooklyn.
— Bastet, nossos amigos estão em grande perigo. Menshikov é provavel-
mente até mais louco do que Amós acha. Assim que você puder, vá para o
Brooklyn. Sinto que nossa última parada será lá. Conseguiremos o terceiro
pergaminho e encontraremos Rá.
— Não gosto de paradas — disse o gato. — Mas você está certa. Isso soa
mal. Onde estão Bes e Carter?
Ela olhou suspeitosa para os camelos.
— Você não os transformou naquilo ali, transformou?

226
SADIE

— É uma boa ideia — respondi — mas não.


Contei a ela, resumidamente, o que Carter estava fazendo.
Bastet assobiou com desgosto.
— Um desvio tolo! Terei coisas a dizer para aquele anão sobre deixar você
ir sozinha.
— Eu sou o que, invisível? — Walt protestou.
— Desculpe, querido, eu não quis dizer...
Os olhos do gato estremeceram. Tossiu como se tivesse uma bola de pelo.
— Minha conexão está falhando. Boa sorte, Sadie. A melhor entrada para
as tumbas está numa pequena fazenda antiga, a sudeste. Procure por uma
torre negra. E cuidado com os romanos. Eles são bem...
O gato estendeu a cauda. Então piscou e olhou em volta, confuso.
— Que romanos? — perguntei. — Eles são bem o que?
Miau.
O gato me encarou com uma expressão que dizia: Quem é você e onde está
a comida?
Empurrei o nariz do camelo para longe do meu cabelo empapado.
— Vamos, Walt — resmunguei. — Vamos encontrar algumas múmias.

Nós demos ao gato pedaços de carne e um pouco de água de nossos supri-


mentos. Não era tão bom quanto peixe e leite, mas o gato pareceu feliz o
suficiente. Como ele estava no oásis e obviamente sabia seu caminho melhor
que nós, nós o deixamos completar sua refeição. Walt transformou os came-
los novamente em amuletos, graças a Deus, e trilhamos o caminho para Ba-
hariya a pé.
A fazenda não foi difícil de encontrar. A torre negra era vista de longe
da propriedade, e era a maior estrutura à vista. Caminhamos em volta dela,
entrelaçando-nos entre acres de palmeiras, o que causou certa sombra. Uma
casa de fazenda podia ser vista ao longe, mas não vimos ninguém. Provavel-
mente os egípcios sabiam melhor onde ficar no calor da tarde.
Quando alcançamos a torre, eu não vi nenhuma entrada óbvia de tumba.
A torre parecia bem antiga – quatro postes de aço enferrujado segurando
um tanque redondo do tamanho de uma garagem a quinze metros no ar. O
tanque tinha uma fenda pequena. A cada poucos segundos, água vinha do

227
O TRONO DE FOGO

céu e batia na areia dura abaixo. Não havia muito mais à vista exceto palmei-
ras, algumas ferramentas manchadas e um compensado jogado no chão. O
símbolo estava pintado de spray em árabe e inglês, provavelmente em alguma
tentativa do dono de vender seus artigos em marketing. O inglês dizia: En-
contros, o melhor breço. Bebsi gelada.
— Bebsi? — perguntei.
— Pepsi — disse Walt. — Li sobre isso na internet. Não existe “p” em
árabe. Todo mundo chama de Bebsi.
— Então você brecisa comer Bebsi com bizza?
— Brovavelmente.
Limpei a garganta.
— Se é um terreno de escavação, não deveria ter mais atividade? Arqueó-
logos? Cabines de ingresso? Vendedores de lembrancinhas?
— Talvez Bastet nos mandou a uma entrada secreta — disse Walt. — Me-
lhor que passar escondido no meio de um monte de guardas e zeladores.
Uma entrada secreta parecia bem intrigante, mas a não ser que a torre
fosse um ponto de teleporte, ou uma das árvores tivesse uma porta escon-
dida, eu não tinha certeza que era tão ah-que-grande-ajuda-de-entrada-deve-ser.
Eu chutei o símbolo da Bebsi. Não havia mais nada a não ser a areia, tor-
nando-se lama lentamente, conforme a água pingava no chão.
Então olhei com mais atenção para a mancha de umidade no chão.
— Espere aí — falei.
A água estava empoçada como um pequeno canal, como se a areia tivesse
uma fissura subterrânea. A fenda tinha mais ou menos um metro de largura
e não mais espessa que um lápis, mas muito reta para ser natural. Eu toquei
a areia. Seis centímetros abaixo, minhas unhas arranharam pedra.
— Ajude-me a limpar isso — pedi a Walt.
Um minuto depois, desenterramos uma pedra pavimentada de mais ou
menos um metro quadrado. Tentei puxar pelas bordas molhadas, mas a pe-
dra era grande e pesada demais para levantar.
— Podemos usar algo como alavanca — Walt sugeriu. — Para erguê-la.
— Ou... — falei — vá pra trás.
Walt parecia prestes a protestar, mas quando peguei meu cajado, ele en-

228
SADIE

tendeu que era melhor sair do meu caminho. Com o meu novo entendi-
mento da magia dos deuses, eu não pensei muito sobre o que eu precisava,
apenas senti uma conexão com Ísis. Lembrei-me de uma situação que ela en-
controu o caixão de seu marido dentro de um tronco de cipreste, e em sua
raiva e desespero ela partiu a árvore. Canalizei aquelas emoções e apontei
para a pedra:
— Ha-di!
Notícia boa: o feitiço funcionou melhor que em São Petersburgo. O hi-
eróglifo brilhou no final do meu cajado, e a pedra explodiu, revelando um
buraco escuro abaixo dela.
Notícia ruim: não foi só isso que eu destruí. Em volta do buraco, o chão
começou a se desfazer. Walt e eu nos arrastamos para trás enquanto mais
pedras caíam na fissura, e reparei que eu desestabilizei toda a entrada de um
cômodo subterrâneo. O buraco alargou-se até que alcançou os suportes da
torre. A torre começou a rachar.
— Corre! — gritou Walt.
Não paramos até que estivéssemos escondidos atrás de uma palmeira
treze metros longe. A torre tinha centenas de diferentes rachaduras, e sacu-
dia-se para frente e para trás como um bêbado, e então se inclinou em nossa
direção e caiu, encharcando-nos da cabeça aos pés e inundando as fileiras de
palmeiras.
O barulho foi tão ensurdecedor que deve ter sido ouvido através do oá-
sis.
— Oops — eu disse.
Walt olhou para mim como se eu estivesse louca. Eu estava me sentindo
tão culpada quanto era. Mas é tão tentador fazer as coisas voarem pelos ares,
não é?
Corremos para A Cratera Memorável de Sadie Kane. Agora era do tama-
nho de uma piscina. Cinco metros abaixo, sobre uma pilha de areia e rochas,
havia fileiras de múmias, todas enroladas em roupas antigas e acamadas em
pedra. As múmias agora estavam achatadas. Estava com medo, mas pude
dizer que elas estavam pintadas de vermelho, azul e dourado.
— Múmias douradas.
Walt pareceu horrorizado.

229
O TRONO DE FOGO

— Parte do sistema da tumba que não havia sido escavado ainda. Você
acabou de arruinar...
— Eu disse Oops. Agora, me ajude aqui, antes que o dono dessa torre apa-
reça com uma espingarda.

230
S
A
16. ... Mas não tão maus quanto os romanos
D
I
E

PARA SER JUSTA, AS MÚMIAS naquela sala já estavam bem arruinadas, graças
à umidade da torre vazando acima. Adicionar água em múmias causa um
cheiro realmente horrível.
Descemos pelos escombros e encontramos um corredor levando mais
para o subsolo. Eu não podia dizer se era natural ou feito pelo homem, mas
serpenteamos uns bons quarenta metros pela rocha sólida antes de chegar-
mos à outra câmara funerária. Essa sala não tinha sido danificada pela água.
Tudo estava extraordinariamente bem preservado. Walt trouxera lanternas,
e na luz opaca, nas placas de pedra e nos nichos esculpidos ao longo das
paredes, múmias pintadas de ouro brilhavam. Elas eram pelo menos cem só
naquela sala, e mais corredores levavam a todas as direções.
Walt colocou a luz em três múmias deitadas juntas em um trono do cen-
tro. Seus corpos estavam completamente enrolados em linho, então elas se
pareciam bastante com pinos de boliche. Suas semelhanças foram pintadas
no linho em detalhes meticulosos – mãos cruzadas sobre seus peitos, joias
enfeitando seus pescoços, saias egípcias e sandálias, e um esquadrão de hie-
róglifos protetores e imagens de deuses na borda de cada lado. Tudo isso era
arte egípcia, mas seus rostos foram feitos em um estilo completamente dife-
rente – retratos realistas que pareciam recortar-e-colar nas cabeças das mú-
mias. Na esquerda estava um homem com um rosto barbado e fino e tristes
olhos escuros. Na direita estava uma mulher bonita com cabelo curto ruivo.

231
O TRONO DE FOGO

O que realmente puxou meu coração, acho, foi à múmia do meio. Seu corpo
era muito pequeno – obviamente uma criança. Seus retratos mostravam um
garoto de cerca de sete anos de idade. Ele tinha os olhos do homem e o
cabelo da mulher.
— Uma família — Walt adivinhou. — Enterrada junta.
Havia alguma coisa dobrada debaixo do cotovelo direito da criança – um
cavalo de madeira pequeno, provavelmente seu brinquedo favorito. Mesmo
que essa família estivesse morta por milhares de anos, não consegui não ficar
com lágrimas nos olhos. Era tão cruel e triste.
— Como eles morreram? — perguntei.
Do corredor bem na nossa frente, uma voz ecoou.
— Da doença do desperdício.
Meu cajado estava instantaneamente na minha mão. Walt apontou sua
lanterna para a porta, e um fantasma entrou na sala. Pelo menos eu achei
que fosse um fantasma, pois ele era transparente. Era um homem gordo e
velho com cabelo branco curto, bochechas de buldogue, e uma expressão
intrigada. Ele vestia roupas do estilo romano e delineador Kohl, então se pa-
recia bastante com Winston Churchill – se o antigo primeiro ministro ves-
tisse uma toga de festa selvagem e pintasse seu rosto.
— Recém-mortos? — Ele olhou para nós com cuidado. — Não vejo recém-
chegados há muito tempo. Onde estão seus corpos?
Walt e eu olhamos um para o outro.
— Na verdade — eu disse — estamos vestindo eles.
As sobrancelhas do fantasma levantaram.
— Di immortales! Vocês estão vivos?
— Por enquanto — Walt respondeu.
— Então vocês trouxeram oferendas? — o homem esfregou as mãos. —
Oh, eles disseram que vocês viriam, mas eu esperei eras! Onde estiveram?
— Hmm...
Eu não queria desapontar o fantasma, especialmente enquanto ele estava
começando a brilhar mais intensamente, o que na magia geralmente é um
prelúdio de explosão.
— Talvez devêssemos nos apresentar. Eu sou Sadie Kane. Esse é Walt...
— Claro! Vocês precisam de meu nome para o encanto — o fantasma

232
SADIE

pigarreou. — Eu sou Ápio Cláudio Iratus.


Senti que era para eu estar impressionada.
— Certo. Isso não é egípcio, imagino?
O fantasma pareceu ofendido.
— Romano, claro. Por seguir esses malditos costumes egípcios todos nós
acabamos aqui para começar! Como se não bastasse, eu fiquei postado nesse
oásis abandonado por Deus, como se Roma precisasse de uma legião inteira
para guardar só algumas explorações! Então eu tive a má sorte de adoecer.
Disse à minha esposa no meu leito de morte: “Lobélia, um enterro romano
à moda antiga. Não essas coisas sem sentido”. Mas não! Ela nem escutou. Ti-
nha que me mumificar, então meu ba está preso aqui para sempre. Mulhe-
res! Ela provavelmente voltou para Roma e morreu do jeito apropriado.
— Lobélia? — perguntei, porque na verdade não tinha ouvido muito de-
pois disso. Que tipo de pais chamaria sua criança de Lobélia?
O fantasma bufou e cruzou os braços.
— Mas vocês não querem me ouvir continuar, não é? Vocês podem me
chamar de Cláudio Maluco. É a tradução para a sua língua.
Me perguntei como um fantasma romano sabia falar inglês – ou se eu
simplesmente entendesse ele através de algum tipo de telepatia. De qualquer
jeito, não fiquei aliviada de saber que seu nome era Cláudio Maluco.
— Hmm...
Walt levantou a mão.
— Você é maluco como raivoso? Ou maluco como doido?
— Sim — Cláudio disse. — Agora, sobre aquelas oferendas. Vejo cajados,
varinhas, e amuletos, então presumo que sejam sacerdotes com a Casa da
Vida local? Bom, bom. Então saberão o que fazer.
— O que fazer! — concordei com vontade. — Sim, tudo!
Os olhos de Cláudio se estreitaram.
— Oh, Júpiter. Vocês são novatos, não é? O templo explicou mesmo o pro-
blema para vocês?
— Hmm...
Ele disparou para a família de múmias que estávamos olhando.
— Esse é Lúcio, Flávia e o pequeno Purpens. Eles morreram da doença

233
O TRONO DE FOGO

do desperdício. Estive aqui por tanto tempo, podia te dizer praticamente a


história de todo mundo!
— Eles falam com você?
Me afastei da família mumificada. De repente, o pequeno Purpens não
parecia tão fofo.
Cláudio Maluco agitou sua mão impaciente.
— Ás vezes, sim. Não tanto quanto os dias antigos. Seus espíritos dormem
a maior parte do tempo, agora. O ponto é, não importa o quanto ruim a
morte que essas pessoas tiveram, seu destino após a morte é pior! Todos nós,
todos esses romanos vivendo no Egito, tiveram um enterro egípcio. Costu-
mes locais, sacerdotes locais, mumificar os corpos para a próxima vida, etc.
Pensávamos que estávamos ganhando com isso... duas religiões, duas vezes
seguro. O problema era, vocês sacerdotes egípcios tolos não sabiam mais o
que estavam fazendo! No momento em que nós romanos viemos, a maioria
da sua magia de conhecimento se perdeu. Mas vocês nos disseram isso? Não!
Vocês ficaram felizes de pegar nossas moedas e fazer um trabalho de má
qualidade.
— Ah.
Me afastei um pouco mais do Cláudio Maluco, que agora estava bri-
lhando muito perigosamente.
— Bem, tenho certeza que a Casa da Vida tem um número de atendi-
mento ao cliente para isso...
— Vocês não conseguem ir até a metade do caminho com esses rituais
egípcios — ele resmungou. — Nós acabamos com corpos mumificados e almas
eternas presas a eles, e ninguém nos segue! Ninguém disse orações para nos
ajudar a ir para a próxima vida. Ninguém fez oferendas para alimentar os
nossos bas. Vocês sabem o quanto faminto eu estou?
— Temos alguma carne seca — Walt ofereceu.
— Não pudemos ir para o reino de Plutão como bons romanos — Cláudio
Maluco continuou — porque nossos corpos foram preparados para um pós-
vida diferente. Não pudemos ir para o Duat, porque não tivemos os rituais
egípcios apropriados. Nossas almas foram presas aqui, amarradas a esses cor-
pos. Você tem alguma ideia do quanto entediante é aqui embaixo?

234
SADIE

— Então, se você é um ba — perguntei — por que você não tem um corpo


de pássaro?
— Eu te disse! Somos todos misturados, nem fantasma romano puro,
nem ba apropriado. Se eu tivesse asas, acredite, eu teria voado para fora da-
qui! A propósito, que ano é esse? Quem é o imperador agora?
— Oh, seu nome é... — Walt tossiu, então se apressou: — Sabe, Cláudio,
que tenho certeza que podemos te ajudar.
— Podemos? — eu disse. — Ah, certo! Podemos!
Walt assentiu encorajadoramente.
— A coisa é, temos que encontrar alguma coisa primeiro.
— Um pergaminho — intervi. — Parte do Livro de Rá.
Cláudio arranhou suas bochechas consideráveis.
— E isso vai ajudar vocês a mandar nossas almas para a próxima vida?
— Bem... — comecei.
— Sim — Walt respondeu.
— Provavelmente — falei. — Não sabemos realmente até encontrá-lo. É
supostamente para acordar Rá, veja, o que vai ajudar os deuses egípcios.
Acho que melhoraria suas chances de ir para a pós-vida. Além disso, estou
em boas condições com os deuses egípcios. Eles vêm para um chá de vez em
quando. Se você nos ajudasse, eu podia conversar sobre seu caso.
Honestamente, eu só estava inventando coisas para dizer. Tenho certeza
que isso vai te surpreender, mas às vezes eu me perco quando fico nervosa.
[Ah, pare de rir, Carter.]
De qualquer jeito, a expressão de Cláudio Maluco ficou perspicaz. Ele
nos estudou como se acessasse nossas contas bancárias. Me perguntei se o
Império Romano usava vendedores de bigas, e se Cláudio Maluco fora um.
Imaginei ele em um comércio romano em uma toga xadrez barata: Devo ser
louco para estar oferecendo bigas a esses preços!
— Em boas condições com os deuses egípcios — ele refletiu. — Conversar
sobre meu caso, você disse.
Então ele se virou para Walt. A expressão de Cláudio estava tão calcu-
lista, tão ansiosa, que fez minha pele se arrepiar.
— Se o pergaminho que vocês procuram é antigo, poderia estar na seção
mais velha das catacumbas. Alguns nativos estavam escondidos aqui, sabe,

235
O TRONO DE FOGO

muito antes de nós romanos viermos. Seus bas todos se mudaram agora. Não
há problemas para entrar no Duat para eles. Mas seus locais escondidos
ainda estão intactos, muitas relíquias e assim por diante.
— Você está disposto a nos mostrar? — Walt perguntou, com mais empol-
gação que eu podia ter controlado.
— Oh, sim — Cláudio Maluco nos deu seu melhor sorriso de “vendedor
de bigas”. — E depois, vamos conversar sobre uma recompensa apropriada,
hein? Venham, meus amigos. Não é longe.

Nota pessoal: Quando um fantasma oferece para te guiar para mais fundo
em uma escavação escondida e seu nome inclui a palavra Maluco, é melhor
dizer não.
Enquanto passávamos pelos túneis e câmaras, Cláudio Maluco nos dava
comentários rápidos das várias múmias. Sobre Calígula, o comerciante da
época:
— Nome horrível! Mas uma vez vocês o nomearam para um imperador,
mesmo um psicótico, vocês não podem fazer muito sobre isso. Ele morreu
apostando com alguém que podia beijar um escorpião.
Varens, o traficante de escravos:
— Homem nojento. Tentou entrar para o negócio de gladiador. Se você
desse a um escravo uma espada, bem... você pode imaginar como ele morreu!
Otávia, a mulher do comandante da legião:
— Era completamente nativa! Teve seu gato mumificado. Ela até acredi-
tava ter o sangue dos faraós e tentou canalizar o espírito de Ísis. Sua morte,
desnecessário dizer, foi dolorosa.
Ele sorriu para mim como se fosse extremamente engraçado. Tentei não
parecer horrorizada.
O que mais me atingiu foi o grande número e variedade de múmias.
Algumas estavam embrulhadas em ouro de verdade. Seus retratos pareciam
tão naturais, seus olhos pareciam me seguir enquanto passávamos. Elas sen-
tavam em esculturas de mármore cercadas de objetos de valor: joias, vasos,
até alguns shabti. Outras múmias pareciam como se as crianças da creche
tivessem feito na aula de artes. Elas estavam grosseiramente enroladas, pin-
tadas com hieróglifos fracos e pequenas figuras de deuses de palitos. Seus

236
SADIE

retratos não eram muito melhores do que eu teria feito – o que quer dizer,
medonho. Seus corpos foram cheios profundamente em três nichos superfi-
ciais, ou simplesmente empilhados nos cantos do quarto.
Quando perguntei sobre eles, Cláudio Maluco foi desdenhoso.
— Plebeus. Imitadores. Não tem dinheiro para artistas e rituais fúnebres,
então tentaram a abordagem faça-você-mesmo.
Olhei para baixo para o retrato mais próximo da múmia, seu rosto era
uma imagem pintada a dedo brutamente. Me perguntei se seus filhos de luto
tinham feito isso – um único presente para sua mãe. Apesar de sua qualidade
ruim, percebi que era bem encantador. Eles não tinham dinheiro e nem
habilidade artística, mas fizeram o seu melhor para carinhosamente mandá-
la para a pós-vida. Da próxima vez que visse Anúbis, pediria a ele sobre isso.
Uma mulher como essa merecia uma chance de felicidade no próximo
mundo, mesmo que ela não pudesse pagar. Tivemos esnobismo o suficiente
nesse mundo sem exportá-lo para o além.
Walt se arrastava atrás de nós, sem falar. Ele colocava sua luz em uma
múmia ou outra, como se pensasse no destino de cada uma. Me perguntei
se ele estava pensando no rei Tut, seu ancestral famoso, cuja tumba tinha
sido uma caverna não muito diferente dessa.
Depois de vários túneis mais longos e lotados de salas de múmias, chega-
mos a uma câmara funerária que era claramente muito velha. As pinturas
na parede tinham desbotado, mas elas pareciam mais autenticamente egíp-
cias, com pessoal andando de lado e hieróglifos que na verdade formavam
palavras, ao invés de simplesmente oferecer decoração. Em vez de retratos
faciais realistas, as múmias tinham genéricos com olhos arregalados, rostos
sorridentes que eu tinha visto na maioria das máscaras de morte egípcias.
Algumas tinham desintegrado em poeira. Outras estavam envoltas em sar-
cófagos de pedra.
— Nativos — Cláudio Maluco confirmou. — Nobres egípcios de antes de
Roma assumir. O que vocês estão procurando pode estar em algum lugar
dessa área.
Vasculhei a sala. A única outra porta estava bloqueada com pedras e es-
combros. Enquanto Walt começava a procurar, lembrei do que Bes tinha

237
O TRONO DE FOGO

dito – que os primeiros dois pergaminhos de Rá poderiam me ajudar a en-


contrar o terceiro. Puxei-os de minha bolsa, esperando eles apontarem o ca-
minho como um cajado de radiestesia, mas nada aconteceu.
Do outro lado da sala, Walt gritou:
— O que é isso?
Ele estava em pé em frente a algum tipo de santuário um conjunto de
nicho na parede, com a estátua de um homem embrulhado como uma mú-
mia. A figura estava esculpida na madeira, decorada com joias e metais pre-
ciosos. Suas envolturas brilhavam como pérola na luz da tocha. Ele segurava
um cajado dourado com o símbolo djed prateado no topo. Ao redor de seus
pés estavam vários roedores de ouro – ratos, talvez. A pele do seu rosto bri-
lhava azul turquesa.
— É meu pai — adivinhei. — Er... Quis dizer Osíris, não é?
Cláudio Maluco arqueou suas sobrancelhas.
— Seu pai?
Felizmente, Walt me salvou da explicação.
— Não — ele disse. — Olha essa barba.
A barba da estátua era bem incomum. Era fino nas costeletas em torno
das linhas de suas mandíbulas, com um tipo de reta perfeita descendo para
um cavanhaque – como se alguém tivesse traçado a barba com tinta de ca-
neca, então enfiou a caneta em seu queixo.
— E o colar — Walt continuou. — Tem um pendão pendurado nas costas.
Não se parece com Osíris. E esses animais em seus pés... são ratos? Lembro
de alguma história sobre ratos...
— Eu achava que vocês fossem sacerdotes — Cláudio Maluco resmungou.
— Obviamente, o deus é Ptá.
— Ptá? — Eu já tinha ouvido muitos nomes estranhos de deus egípcios,
mas esse era novo para mim. — Ptá, filho de Pitooey? Ele é deus do cuspe?
Cláudio olhou para mim.
— Você é sempre tão desrespeitosa?
— Geralmente, mais.
— Uma novata e desrespeitosa — ele disse. — Que sorte a minha. Bem,
garota, não deveria ter que ensinar a você sobre nossos próprios deuses, mas
como entendo disso, Ptá era o deus dos artesãos. Nós o comparávamos com

238
SADIE

nosso deus romano Vulcano.


— Então o que ele está fazendo em uma tumba? — Walt perguntou.
Cláudio coçou a cabeça inexistente.
— Eu nunca tive certeza, na verdade. Vocês não o veem na maioria dos
ritos funerários.
Walt apontou para o cajado da estátua. Quando olhei mais de perto,
percebi que o símbolo djed estava combinado com algo mais, um topo cur-
vado que parecia estranhamente familiar.

— Esse é o símbolo was — Walt disse. — Quer dizer poder. Muitos deuses
tinham cajados como esse, mas nunca percebi que parecia...
— Sim, sim — Cláudio disse impaciente. — A faca cerimonial dos sacerdo-
tes para a abertura da boca da morte. Honestamente, vocês sacerdotes egíp-
cios estão sem solução. Não é à toa que nós os conquistamos com tanta
facilidade.
Minha mão agiu por conta própria, vasculhando minha bolsa e tirando
a lâmina netjeri escura que Anúbis tinha me dado.
Os olhos de Cláudio Maluco brilharam.
— Ah, então vocês não são sem solução. Isso é perfeito! Com essa faca e
o encanto apropriado, vocês devem conseguir tocar minha múmia e me li-
bertar para o Duat.
— Não — eu disse. — Não, é mais que isso. A faca, o Livro de Rá, essa
estátua do deus do cuspe. Tudo isso se encaixa de algum jeito.
O rosto de Walt se iluminou.
— Sadie, Ptá era mais que o deus artesão, certo? Ele não era chamado de
Deus da Abertura?
— Hmm... é possível.
— Acho que você nos ensinou isso. Ou talvez fosse Carter.
— Esse tipo de informação chata? Provavelmente Carter.
— Mas é importante — Walt insistiu. — Ptá era um deus da criação. Em
algumas lendas, ele criou as almas da humanidade só falando uma palavra.

239
O TRONO DE FOGO

Ele podia reviver qualquer alma, e abrir qualquer porta.


Meus olhos se direcionaram para a porta cheia de entulhos, a única saída
da sala.
— Abrir qualquer porta?
Segurei os dois pergaminhos de Rá e caminhei na direção do túnel des-
moronado. Os pergaminhos ficaram desconfortavelmente quentes.
— O último pergaminho está do outro lado — eu disse. — Precisamos
passar desse pedregulho.
Segurei a faca escura em uma mão e os pergaminhos na outra. Falei o
comando para Abrir. Nada aconteceu. Voltei para a estátua de Ptá e tentei
a mesma coisa. Sem sorte.
— Alô, Ptá? — chamei. — Desculpe pelo comentário do cuspe. Olha, esta-
mos tentando pegar o terceiro pergaminho de Rá, que está no outro lado,
ali. Acho que você está colocado aqui para abrir um caminho. Então você se
importaria?
Ainda assim, nada aconteceu.
Cláudio Maluco agarrou o corte de sua toga como se quisesse nos estran-
gular com isso.
— Olha, eu não sei por que vocês precisam desse pergaminho para nos
libertar se têm essa faca. Mas por que não tentam uma oferenda? Todos os
deuses precisam de oferendas.
Walt vasculhou seus suprimentos. Ele colocou uma jarra de suco e um
tipo de carne seca no pé da estátua. A estátua não fez nada. Até os ratos de
ouro em seus pés aparentemente não queria nossa carne seca.
— Maldito deus do cuspe.
Me atirei no chão empoeirado. Eu tinha uma múmia em cada lado, mas
não ligava mais. Não podia acreditar que nós chegamos tão perto do último
pergaminho, depois de lutar contra demônios, deuses, e assassinos russos, e
agora tínhamos sido parados por uma pilha de rochas.
— Odeio sugerir isso — Walt disse — mas você podia explodir isso com a
magia Ha-di.
— E derrubar o teto em cima de nós? — falei.
— Vocês morreriam — Cláudio concordou. — O que não é uma experiên-
cia que eu recomendo.

240
SADIE

Walt se ajoelhou perto de mim.


— Tem que ter alguma coisa...
Ele fez um balanço de seus amuletos. Cláudio Maluco passeou pela sala.
— Ainda não entendi. Vocês são sacerdotes. Vocês têm uma faca cerimo-
nial. Por que não nos libertam?
— A faca não é para você! — gritei. — É para Rá!
Ambos Walt e Cláudio me encararam. Não tinha percebido antes, mas
assim que falei, soube que era a verdade.
— Desculpe — falei. — Mas a faca é usada para a cerimônia da Abertura
da Boca, para libertar uma alma. Vou precisar disso para acordar Rá. É por
isso que Anúbis me deu isso.
— Você conhece Anúbis! — Cláudio aplaudiu prazeroso. — Ele pode li-
bertar a todos nós! E você... — Ele apontou para Walt. — Você é um dos
escolhidos de Anúbis, não é? Vocês podem nos dar mais facas se precisar!
Senti a presença do deus ao redor assim que nos conhecemos. Vocês pega-
ram seu serviço quando ele percebeu que você estava morrendo?
— Espera... o quê? — perguntei.
Walt não me olhou nos olhos.
— Não sou um sacerdote de Anúbis.
— Mas morrendo? — engasguei. — Como está morrendo?
Cláudio Maluco pareceu incrédulo.
— Quer dizer que não sabe? Ele tem a maldição do antigo faraó. Não
víamos ele nos meus dias, mas reconheço, certamente. Ocasionalmente,
uma pessoa de uma das antigas linhagens reais egípcias...
— Cláudio, cale a boca — falei. — Walt, fale. Como essa maldição funci-
ona?
Na luz ofuscante, ele parecia mais magro e mais velho. Na parede atrás
dele, sua sombra parecia um monstro deformado.
— A maldição de Aquenáton corre pela minha família — ele disse. — Um
tipo de doença genética. Não toda geração, não toda pessoa, mas quando
ataca, é ruim. Tut morreu com dezenove. A maioria dos outros... doze, treze.
Eu tenho dezesseis agora. Meu pai... meu pai tinha dezoito. Eu nunca o co-
nheci.
— Dezoito? — Mas isso só trouxe à tona uma série de perguntas novas,

241
O TRONO DE FOGO

mas tentei ficar focada. — Isso não pode ser curado...?


A culpa tomou conta de mim, e me senti como uma total imbecil.
— Ah, deus. É por isso que você estava falando com Jaz. Ela é uma curan-
deira.
Walt assentiu severamente.
— Achava que ela pudesse conhecer encantos que eu não tinha conse-
guido achar. A família de meu pai... eles perderam anos procurando. Minha
mãe esteve procurando por uma cura desde que nasci. Os médicos de Seattle
não podiam fazer nada.
— Médicos — Cláudio Maluco disse com desgosto. — Eu tinha um na
legião, adorava colocar sanguessugas nas minhas pernas. Só me fez piorar.
Agora, sobre essa conexão com Anúbis, e usando essa faca...
Walt balançou a cabeça.
— Cláudio, vamos tentar te ajudar, mas não com a faca. Conheço itens
mágicos, tenho certeza absoluta que só podem ser usados uma vez, e não
podemos apenas fazer outro. Se Sadie precisa disso para Rá, ela não pode
arriscar usando isso antes.
— Desculpas! — Cláudio rugiu.
— Se você não calar a boca — avisei — vou achar sua múmia e desenhar
um bigode no seu retrato!
Cláudio ficou tão branco quanto... bem, um fantasma.
— Você não ousaria!
— Walt — falei, tentando ignorar o romano — Jaz conseguiu ajudar?
— Ela tentou seu melhor. Mas essa maldição vem desafiando curandeiros
por três mil anos. Médicos modernos acham que está relacionado a anemia
falciforme, mas eles não sabem. Eles têm tentando por décadas descobrir
como rei Tut morreu, e não concordam. Alguns dizem veneno. Alguns di-
zem uma doença genética. É a maldição, mas claro que não dizem isso.
— Não tem outro jeito? Quer dizer, conhecemos deuses. Talvez eu possa
te curar como Ísis fez com Rá. Se eu soubesse de seu nome secreto...
— Sadie, eu já pensei nisso — ele disse — já pensei em tudo. A maldição
não pode ser curada. Ela só pode ser diminuída se... se eu evitar a magia. Por
isso que eu entrei para os talismãs e amuletos. Eles armazenam magia avan-
çada, então não requerem muito do usuário. Mas isso só ajuda um pouco.

242
SADIE

Eu nasci para fazer magia, então a maldição progride em mim, não importa
o que eu faça. Em alguns dias isso não é tão ruim. Quando eu faço magia,
ela piora.
— E quanto mais você fazer...
— Mais rápido eu morro.
Eu dei um soco em seu peito. Não podia ajudar nisso. Todo o meu so-
frimento e culpa virou raiva.
— Seu idiota! Por que você está aqui, então? Você deveria ter me falado
para dar o fora! Bes te avisou para ficar no Brooklyn. Por que você não ou-
viu?
O que eu te disse mais cedo sobre os olhos de Walt não me fazerem
derreter? Retiro o que disse. Quando ele olhou para mim naquela tumba
empoeirada, seus olhos estavam tão escuros, sensíveis e tristes quanto os de
Anúbis.
— Vou morrer de qualquer jeito, Sadie. Eu quero que minha vida signi-
fique alguma coisa. E... quero perder todo tempo que puder com você.
Isso me machucou mais que um soco no peito. Muito mais.
Acho que eu deveria ter beijado ele. Ou possivelmente dado um tapa.
Cláudio Maluco, no entanto, não era uma audiência simpática.
— Muito meigo, tenho certeza, mas vocês me prometeram um paga-
mento! Voltar para as tumbas romanas. Libertar meu espírito da múmia.
Então libertar os outros. Depois disso, vocês podem fazer o que bem-enten-
derem.
— Os outros? — perguntei. — Você ficou maluco?
Ele me encarou.
— Pergunta idiota — admiti. — Mas há milhares de múmias. Só temos
uma faca.
— Vocês prometeram!
— Não prometemos — eu disse. — Você disse que iria discutir uma taxa de-
pois de encontrarmos o pergaminho. Não encontramos nada além de um
beco sem saída aqui.
O fantasma rosnou, mais como um lobo que um humano.
— Se vocês não vierem conosco — ele disse — teremos que ir com vocês.
Seu espírito brilhou, então desapareceu em um clarão.

243
O TRONO DE FOGO

Olhei nervosa para Walt.


— O que ele quis dizer com isso?
— Não sei — ele respondeu. — Mas devemos descobrir como passar pelos
escombros e sair daqui, rápido.

Apesar de nossos melhores esforços, nada pareceu acontecer tão rápido. Não
conseguimos mexer os detritos. Havia muitos pedregulhos. Não consegui-
mos cavar em volta, por cima, ou por baixo. Eu não arrisquei a magia Ha-
di ou usei a magia da lâmina escura. Walt não tinha amuletos que ajudariam.
Eu estava francamente confusa. A estátua de Ptá sorria para nós, mas não
ofereceu qualquer sugestão útil, não que ele parecesse interessado em sua
carne seca e suco.
Finalmente, coberta de poeira, encharcada de suor, sentei em um sarcó-
fago de pedra e examinei meus dedos cheios de bolhas.
Walt se sentou perto de mim.
— Não desista. Tem que haver um jeito.
— Mesmo? — perguntei, me sentindo especialmente ressentida. — Como
tem que haver uma cura para você? E se não tiver? E se...
Minha voz falhou. Walt virou seu rosto escondido na sombra.
— Me desculpe — eu disse. — Isso é terrível. Mas eu não poderia suportar
se...
Eu estava tão confusa, não sabia o que dizer, ou como me sentia. Tudo
o que sabia era que não queria perder Walt.
— Você quis dizer aquilo? — perguntei. — Quando você disse que queria
perder tempo... você sabe.
Walt deu de ombros.
— Não é óbvio?
Não respondi, mas, por favor – nada é óbvio com garotos. Para criaturas
tão simples, eles são bem desorientadores.
Imaginei que estivesse corando ferozmente, então decidi mudar de as-
sunto.
— Cláudio disse que sentia o espírito de Anúbis em você. Você esteve
falando muito com Anúbis?

244
SADIE

Walt virava seus anéis.


— Achava que talvez ele pudesse me ajudar. Talvez me concedesse um
tempo extra antes... antes do fim. Eu queria ficar tempo o suficiente para te
ajudar a derrotar Apófis. Então, senti como se tivesse alguma coisa com mi-
nha vida. E... tinha outras razões que eu quisesse falar com ele. Alguns...
alguns poderes que desenvolvi.
— Que tipo de poderes?
Foi a vez de Walt mudar de assunto. Ele olhou para suas mãos como se
tivessem virado armas perigosas.
— A coisa é, eu quase não vim pro Brooklyn. Quando eu ganhei o amu-
leto djed, aquela gravação que vocês mandaram, minha mãe não queria me
deixar ir. Ela sabia que aprender magia faria a maldição acelerar. Parte de
mim estava preocupada em ir. Parte de mim estava zangada. Parecia uma
piada cruel. Vocês me ofereceram um treinamento de magia quando eu sa-
bia que não sobreviveria muito mais que um ano ou dois.
— Um ano ou dois?
Eu respirava com dificuldade. Sempre achei que um ano era incrivel-
mente longo. Eu esperei para sempre ter treze. E cada ano letivo parecia uma
eternidade. Mas de repente dois anos pareceram muito pouco. Eu só teria
quinze, nem mesmo dirigiria ainda. Não podia imaginar o que seria saber
que morreria em dois anos – possivelmente mais cedo, se eu continuasse
fazendo o que nasci para fazer, praticando magia.
— Por que você veio pro Brooklyn, então?
— Tive que ir — Walt disse. — Vivi toda a vida sob ameaça de morte.
Minha mãe fez tudo tão seriamente, tão imenso. Mas então no Brooklyn,
senti como se tivesse um destino, um propósito. Mesmo se isso fizesse da
maldição mais dolorosa, valeria a pena.
— Mas isso é tão injusto.
Walt olhou para mim, e percebi que ele estava sorrindo.
— Essa é a minha linhagem. Estive dizendo isso por anos. Sadie,
eu quero ficar aqui. Os últimos dois meses eu senti como se estivesse real-
mente vivendo pela primeira vez. E tendo conhecido você...
Ele pigarreou. Ele ficava bem atraente quando ficava nervoso.

245
O TRONO DE FOGO

— Comecei a me preocupar com coisas pequenas. Meu cabelo. Minhas


roupas. Sequer escovar meus dentes. Quer dizer, estou morrendo, e me preo-
cupando com meus dentes.
— Você tem dentes adoráveis.
Ele riu.
— É isso que quis dizer. Alguns comentários como esse, e me sinto me-
lhor. Todas essas coisas pequenas de repente pareceram importantes. Não
sinto como se estivesse morrendo. Me sinto feliz.
Pessoalmente, me senti miserável. Por meses sonhei sobre Walt admitir
que gostava de mim, mas não desse jeito, não como, posso ser honesto com você,
porque estou morrendo de qualquer jeito.
Alguma coisa que ele disse estava me irritando, também. Lembrei de uma
lição que ensinei na casa do Brooklyn, e uma ideia começou a formar na
minha mente.
— “Coisas pequenas de repente pareceram importantes” — repeti.
Olhei para baixo para um pequeno monte de escombro que estava clara-
mente bloqueando a porta.
— Oh, isso não pode ser tão fácil.
— O quê? — perguntou Walt.
— Pedras.
— Eu expus a minha alma, e você está pensando em pedras?
— A porta — eu disse. — Magia empática. Você acha...
Ele piscou.
— Sadie Kane, você é um gênio.
— Bem, eu sei disso. Mas podemos fazer isso funcionar?
Walt e eu começamos recolhendo a maioria dos pedregulhos. Lascamos
algumas peças das bordas largas e adicionamos para nossa pilha. Tentamos
nosso melhor para fazer uma réplica em miniatura da coleção do escombro
bloqueando a porta.
Minha esperança, claro, era criar uma ligação solidária, como eu tinha
feito com Carter e a estatueta de cera em Alexandria. As pedras da nossa
pilha de rochas vieram do túnel destruído, então nossa pilha e a original já
estavam conectadas em substância, que deve ter facilitado para estabelecer

246
SADIE

uma ligação. Mas mexer alguma coisa tão grande com alguma coisa tão pe-
quena é sempre complicado. Se não fizéssemos isso com cuidado, podíamos
destruir aquela sala. Eu não sabia o quanto no fundo estávamos, mas imagi-
nei que tinha pedra o suficiente e nos enterrar sob nossas cabeças para sem-
pre.
— Pronto? — perguntei.
Walt assentiu e puxou sua varinha.
— Oh, não, garoto amaldiçoado — eu disse. — Você só me dar cobertura.
Se o teto começar a cair e precisarmos de um escudo, esse é seu trabalho.
Mas você não vai fazer nenhuma magia a não ser que seja absolutamente
necessário. Vou limpar a porta.
— Sadie, eu não sou fraco — ele se queixou. — Não preciso de uma prote-
tora.
— Burrice — eu disse. — Isso é arrogância machista, e todos os garotos
gostam de ser cuidados.
— O quê? Deus, você é irritante!
Sorri suavemente.
— Você que queria perder tempo comigo.
Antes que ele pudesse protestar, levantei minha varinha e comecei o en-
canto.
Imaginei uma ligação entre nossa pequena pilha de escombro e os detri-
tos na porta. Imaginei isso no Duat, eles eram um e o mesmo. Falei um
comando de unir.
— Hi-nehm.

O símbolo queimou levemente sobre nossa pilha de escombro em mini-


atura.
Lentamente e cuidadosamente, afastei algumas pedras para longe da pi-
lha. Os detritos no corredor tremeram.
— Está funcionando — Walt disse.

247
O TRONO DE FOGO

Não ousei olhar. Fiquei focada na minha tarefa – mover as pedras um


pouco de cada vez, dispersando a pilha em montes menores. Era quase tão
difícil quando mover pedregulhos de verdade. Fiquei atordoada. Quando
Walt colocou a mão no meu ombro, não tinha ideia de quanto tempo tinha
passado. Estava tão exausta que não podia ver direito.
— Está feito — ele disse. — Você foi ótima.
A porta estava limpa. Os escombros tinham sido empurrados para os
cantos do quarto, onde estavam colocadas em pilhas menores.
— Bom trabalho, Sadie.
Walt se inclinou e me beijou. Ele provavelmente só estava expressando
apreciação ou felicidade, mas o beijo não me fez sentir menos tonta.
— Hum — eu disse, de novo com incríveis habilidades verbais.
Walt me ajudou a ficar de pé. Entramos no corredor para o próximo
quarto. Por todo o trabalho que tínhamos feitos para entrar ali, o quarto
não era muito empolgante, só uma câmara de cinco metros quadrados com
nada dentro exceto uma caixa vermelha lacrada em um pedestal de arenito.
No topo da caixa estava uma escultura de madeira em forma de punho como
um cachorro galgo demoníaco com orelhas compridas – o animal Set.
— Oh, isso não pode ser bom — Walt disse.
Mas eu caminhei direto para a caixa, abri a tampa, e peguei o pergami-
nho de dentro.
— Sadie! — Walt gritou.
— O quê? — me virei. — É a caixa de Set. Se ele quisesse me matar, teria
feito isso em São Petersburgo. Ele quer que eu tenha o pergaminho. Prova-
velmente acha que vai ser engraçado ver me matando tentando acordar Rá.
Olhei para cima no teto e gritei:
— Não é mesmo, Set?
Minha voz ecoou através das catacumbas. Eu não tinha mais o poder de
invocar o nome secreto de Set, mas ainda sentia como se tivesse sua atenção.
O ar ficou mais nítido. O chão tremeu como se alguma coisa embaixo, al-
guma coisa muito grande, estivesse rindo.
Walt expirou.
— Gostaria que você não se arriscasse assim.

248
SADIE

— Isso de um garoto que está disposto a morrer para perder tempo co-
migo?
Walt fez uma saudação exagerado.
— Retiro o que disse, senhorita Kane. Por favor, continue tentando se
matar.
— Obrigada.
Olhei para os três pergaminhos em minhas mãos – o Livro de Rá inteiro,
junto provavelmente pela primeira vez desde que Cláudio Maluco vestiu pe-
quenas fraldas romanas. Eu tinha coletado os pergaminhos, feito o impossí-
vel, triunfado sobre todas as expectativas. No entanto, não seria suficiente
até que conseguíssemos encontrar Rá e acordá-lo antes de Apófis se levantar.
— Não temos tempo para desperdiçar — eu disse. — Vamos...
Um gemido profundo ecoou pelos corredores, como se alguma coisa –
ou uma série de algumas coisas – tivesse acordado em um mau humor da-
nado.
— Sair daqui — Walt disse. — Ótima ideia.

Enquanto corríamos pela câmara anterior, olhei para a estátua de Ptá. Fiquei
tentada a pegar de volta a carne e o suco, só para ser má, mas decidi evitar.
Acho que não é sua culpa, pensei. Não deve ser fácil ter um nome como Ptá.
Aproveite o lanche, mas eu gostaria que você nos ajudasse.
Corremos. Não foi fácil lembrar nosso caminho. Duas vezes tivemos que
voltar antes de encontrar a sala com a família de múmias onde tínhamos
conhecido Cláudio Maluco.
Eu estava prestes a disparar cegamente pela câmara e entrar no último
túnel, mas Walt me segurou e salvou minha vida. Ele apontou sua lanterna
para a saída distante, então nos corredores de cada lado.
— Não — eu disse. — Não, não, não.
Todas as três portas estavam entupidas com figuras humanas enroladas
em linho. Elas se apertaram juntas na medida em que eu podia ver para
baixo em cada corredor. Algumas ainda estavam completamente delimita-
das. Elas pularam e se embaralharam e gingavam para frente como se fossem
casulos gigantes envolvidos em uma corrida de saco. Outras múmias tinham
parcialmente se libertado. Elas se perduravam nas pernas magras, mãos

249
O TRONO DE FOGO

como ramos secos arranhando suas roupas. Mas ainda vestiam seus retratos
de rosto pintado, e o efeito foi macabro – máscaras realistas sorrindo sere-
namente no topo de espantalhos vivos de ossos e linho pintado.
— Odeio múmias — choraminguei.
— Talvez um encanto de fogo — Walt disse. — Elas devem queimar fácil.
— Vamos nos queimar, também! Aqui é muito fechado.
— Tem uma ideia melhor?
Eu queria chorar. A liberdade tão perto... assim como eu temia, estáva-
mos presos por um aglomerado de múmias. Mas essas eram piores que mú-
mias de filme. Elas eram silenciosas e lentas, pateticamente coisas arruinadas
que uma vez foram humanas.
Uma das múmias no chão agarrou minha perna. Antes de eu mesmo
poder gritar, Walt estendeu a mão e bateu a coisa no pulso. A múmia virou
pó na hora.
Eu o encarei com espanto.
— É esse o poder que você estava preocupado? Isso é brilhante! Faça isso
de novo!
Imediatamente me senti terrível por sugerir isso. O rosto de Walt estava
tenso com pânico.
— Não posso fazer isso mais mil vezes — ele disse lamentavelmente. —
Quem sabe se...
Então, do trono central, a família de múmias começou a se mexer.
Não vou mentir. Quando a múmia do tamanho de uma criança do pe-
queno Purpens levantou, eu quase tive um acidente que teria arruinado
meus novos jeans. Se meu ba pudesse ter deixado minha pele e voado longe,
ele faria isso.
Agarrei o braço de Walt.
No fim longe da sala, o fantasma de Cláudio Maluco entrou à vista. En-
quanto ele caminhava na nossa direção, o resto das múmias começou a se
mexer.
— Vocês devem ser honrados, meus amigos — ele nos deu um sorriso
maluco. — É preciso muita emoção para o ba voltar para seus antigos corpos
murchos. Mas nós simplesmente não podemos deixar vocês irem até nos
libertarem para a pós-vida. Usem a faca, façam seus encantos, e podem ir.

250
SADIE

— Não vamos libertar vocês todos! — gritei.


— Uma pena — Cláudio replicou. — Então vamos ter que pegar a faca e
libertar a nós mesmos. Acho que mais dois corpos nas catacumbas não farão
diferença.
Ele disse algo em latim, e todas as múmias vaguearam na nossa direção,
se embaralhando e tropeçando, caindo e rolando. Algumas desmoronaram
em pedaços enquanto tentavam caminhar. Outras caíram e foram pisoteadas
por seus parceiros. Mas mais vieram para frente.
Nós voltamos para o corredor. Eu tinha o cajado em uma mão. Com a
outra, apertei firme a mão de Walt. Nunca fui boa em invocar fogo, mas
controlei meu cajado em chamas até o fim.
— Vamos tentar do seu jeito — falei a Walt. — Queime-os e corra.
Eu sabia que era uma má ideia. Em aposentos fechados, uma chama nos
machucaria tanto quanto as múmias. Iríamos morrer por inalar fumaça ou
sufocados ou queimados. Mesmo se conseguíssemos voltar para as catacum-
bas, só iríamos nos perder e correr para mais múmias.
Walt acendeu seu próprio cajado.
— No três — sugeri.
Olhei com horror para a múmia da criança vindo na nossa direção, o
retrato de um garoto de sete anos sorrindo para mim além do túmulo.
— Um, dois — hesitei.
As múmias estavam só a um metro de distância, mas atrás de mim veio
um novo som, como água correndo. Não, algo deslizando. Um conjunto de
coisas vivas indo em nossa direção, possivelmente insetos ou...
— O três vem depois — Walt disse nervoso. — Vamos queimá-los ou não?
— Abrace as paredes! — gritei.
Eu não sabia exatamente o que estava vindo, mas sabia que não queria
estar em seu caminho. Puxei Walt contra a pedra e me achatei perto dele,
nossos rostos pressionados contra a parede, enquanto uma onda de garras e
pelo batia em nós e capotava sobre nossas costas: um exército de roedores
afundando de profundidade ao longo do chão e correndo horizontalmente
pelas paredes, desafiando a gravidade.
Ratos. Milhares de ratos.
Eles correram direto para nós, não fazendo dano exceto pelos arranhões

251
O TRONO DE FOGO

de garras. Não tão ruim, você deve achar, mas você já esteve em pé e pisote-
ado por um exército de ratos imundos? Não pague para a experiência.
Os ratos fluíram da câmara funerária. Eles rasgaram as múmias, agar-
rando e mastigando e guinchando em sua minúscula batalha. As múmias se
contorciam debaixo do ataque, mas não tiveram uma chance. O quarto es-
tava em um furacão de pelos, dentes e linho picado. Era como os desenhos
animados antigos de cupins fervilhando sobre a madeira e dissolvendo-a a
nada.
— Não! — gritou Cláudio Louco. — Não!
Mas ele era o único gritando. As múmias murcharam silenciosamente
debaixo da fúria dos ratos.
— Vou acabar com vocês! — Cláudio rosnou enquanto seu espírito come-
çava a tremeluzir. — Vou ter minha vingança!
E com um brilho final do mal, sua imagem desvaneceu e se foi.
Os ratos dividiram suas forças e correram pelos três corredores, masti-
gando as múmias enquanto elas fugiam, até a sala ficar silenciosa e vazia, o
chão cheio de poeira, farrapos de linho, e alguns ossos.
Walt parecia abalado. Caí contra ele e o abracei. Eu provavelmente cho-
rei de alívio. Estava tão feliz de segurar um ser humano vivo e quente.
— Está tudo bem — ele acariciou meus cabelos, que me fez sentir bem. —
Essa... essa foi a história sobre ratos.
— O quê? — Me controlei.
— Eles... eles salvaram Mênfis. Um exército inimigo sitiou a cidade, e as
pessoas rezaram por ajuda. Seu deus patrono mandou uma horda de ratos.
Eles comeram as cordas de arco dos inimigos, suas sandálias, tudo o que
conseguiam mastigar. Os atacantes tiveram que se retirar.
— O deus patrono... você quer dizer...
— Eu.
Da saída do corredor da sala, um fazendeiro egípcio entrou em vista. Ele
vestia roupas sujas, uma cabeça envolvida e sandálias. Segurava uma espin-
garda ao seu lado. Ele sorriu para nós, e enquanto se aproximava, vi que seus
olhos eram completamente brancos. Sua pele tinha um tom levemente azu-
lado, como se ele estivesse sufocando e realmente aproveitando experiência.
— Desculpe por não ter respondido mais cedo — disse o fazendeiro. — Eu

252
SADIE

sou Ptá. E não, Sadie Kane, não sou o deus do cuspe.


Por favor, se sentem — o deus falou. — Desculpem pela bagunça, mas o
que esperavam dos romanos? Eles nunca se limpam.
Nem Walt nem eu sentamos. Um deus sorridente com uma espingarda
era um pouco desconcertante.
— Ah, muito bem — Ptá piscou com os olhos brancos vazios. — Estão com
pressa.
— Desculpe — eu disse. — Você é um fazendeiro?
Ptá olhou para baixo para suas vestes sujas.
— Só estou pegando emprestado esse pobre coitado por um minuto, en-
tende. Achei que vocês não ligariam, já que ele estava descendo para cá para
atirar em vocês por destruir sua torre de água.
— Não, continue — eu disse. — Mas as múmias... o que vai acontecer com
seus ba?
Ptá riu.
— Não se preocupe com elas. Agora que seus restos estão destruídos, ima-
gino que seus ba vão ir para qualquer lugar pós-vida romano que as esperam.
Como deve ser.
Ele colocou a mão sobre sua boca e arrotou. Uma nuvem de gás branco
ondulou para fora, coalesceu em um ba brilhante, e voou pelo corredor.
Walt apontou para o espírito pássaro.
— Você acabou de...
— Sim — Ptá sorriu. — Eu tento não falar para todos. Como eu os criei,
entende, com palavras. Eles podem me dar problemas. Uma vez por diversão
eu compus a palavra “ornitorrinco” e...
Instantaneamente, uma coisa com bico de pato e peluda apareceu no
chão, arranhando em pânico.
— Oh, queridos — Ptá disse. — Sim, foi exatamente isso que aconteceu.
O deslize da língua. Realmente o único jeito de uma coisa como essa ser
criada.
Ele ondulou a mão, e o ornitorrinco desapareceu.
— De qualquer maneira, tenho que ser cuidadoso, então não posso falar
muito. Estou feliz que tenham encontrado o Livro de Rá! Sempre gostei do
meu velho. Eu teria ajudado mais cedo, quando pediu, mas demorou um

253
O TRONO DE FOGO

pouco para chegar aqui do Duat. Também, posso abrir só uma única porta
por cliente. Pensei que tinham aquele corredor bloqueado bem na mão. Mas
há uma porta muito mais importante da qual vocês precisam.
— Como é? — perguntei.
— Seu irmão — Ptá disse. — Ele está em sérios problemas.
Estava tão exausta, suja, e coberta de arranhões de ratos, que as novida-
des fizeram meus nervos formigarem. Carter precisava de ajuda. Eu tinha
que salvar o ridículo do meu irmão.
— Você pode nos mandar para lá? — perguntei.
Ptá sorriu.
— Pensei que nunca pediria.
Ele apontou para a parede mais próxima. As pedras dissolveram em um
portal de turbilhão de areia.
— E, minha querida, algumas palavras de aviso.
Os olhos leitosos de Ptá me estudaram.
— Coragem. Esperança. Sacrifício.
Não tinha certeza se ele estava lendo aquelas qualidades em mim, ou me
dando uma conversa estimulante, ou talvez criando as características que eu
precisava, do jeito que ele criou o ba e o ornitorrinco. Qualquer que fosse o
caso, de repente me senti mais quente, cheia de energia nova.
— Você está começando a entender — ele me disse. — Palavras são a fonte
de todo o poder. E nomes são mais que uma coleção de letras. Muito bem,
Sadie. Você ainda pode ter sucesso.
Olhei para o funil de areia.
— Com o que vamos dar de cara no outro lado?
— Inimigos e amigos — Ptá disse. — Mas quem é quem, não posso dizer.
Se sobreviverem, vão para o topo da Grande Pirâmide. Pode ser um bom
ponto de entrada para o Duat. Quando você ler o Livro de Rá...
Ele engasgou, se dobrando e derrubando sua espingarda.
— Tenho que ir — ele disse, se endireitando com um grande esforço. —
Esse hospedeiro não consegue mais aguentar. Mas, Walt... — ele sorriu sua-
vemente. — Obrigado pela carne seca e o suco. Há uma resposta para você.
Não é uma que irá gostar, mas é o melhor jeito.
— Do que você está falando? — Walt perguntou. — Que resposta?

254
SADIE

O fazendeiro piscou. De repente seus olhos ficaram normais. Ele olhou


para nós com surpresa, então gritou alguma coisa em árabe e levantou sua
arma.
Agarrei a mão de Walt, e juntos pulamos dentro do portal.

255
C
A
17. Menshikov contrata um esquadrão da
R
morte alegre
T
E
R

EU ACHO QUE ESTAMOS QUITES, SADIE. Primeiro Walt e eu saímos em dispa-


rada para te salvar em Londres. Então, você e Walt saíram em disparada para
me salvar. O único em desvantagem em ambos os casos foi Walt. O pobre
sujeito foi arrastado pelo mundo todo nos tirando de problemas. Mas ad-
mito que eu precisava de ajuda.
Bes estava preso em uma jaula com brilho fluorescente. Zia estava con-
vencida de que nós éramos inimigos. Minha espada e cajado se foram. Eu
estava segurando um cetro e um mangual que eram, aparentemente, propri-
edade roubada, e dois dos mais poderosos magos do mundo, Michel Desjar-
dins e Vlad, o Inalador, estavam prontos para me prender, julgar e me exe-
cutar – não necessariamente nessa ordem.
Eu voltei para a tumba de Zia, porém não havia para onde ir. Lama ver-
melha se espalhava em todas as direções pontilhadas com destroços e peixes
mortos. Eu não podia correr ou me esconder, sobrando-me duas opções:
render-me ou lutar.
Os olhos marcados de Menshikov brilharam.
— Sinta-se à vontade para resistir, Kane. O uso da força letal tornaria o
meu trabalho muito mais fácil.
— Vladimir, pare — Desjardins disse cansado, apoiado em seu cajado. —

256
CARTER

Carter, não seja tolo. Renda-se agora.


Há três meses, Desjardins teria ficado entusiasmado em me explodir em
pedacinhos. Agora ele parecia triste e cansado, como se a minha execução
fosse uma necessidade desagradável. Zia estava ao lado dele. Ela olhava cau-
telosamente para Menshikov, como se ela pudesse sentir algo de mal sobre
ele.
Se eu pudesse usar isso, possivelmente compraria algum tempo...
— Qual é o seu plano, Vlad? — perguntei. — Você nos deixou fugir de São
Petersburgo com muita facilidade. Quase como se você quisesse que desper-
tássemos Rá.
O russo riu.
— É por isso que eu os segui até o outro lado do mundo para impedi-los?
Ele tentou dar um olhar de desprezo, mas um sorriso puxou-lhe os cantos
dos lábios, como se estivéssemos partilhando uma piada particular.
— Você não veio para me impedir — eu imaginei. — Você está contando
conosco para encontrar os pergaminhos para você e juntá-los. Você precisa
que Rá acorde a fim de libertar Apófis?
— Chega, Carter — Desjardins falou em um tom tedioso, como um paci-
ente em cirurgia fazendo contagem regressiva à espera da anestesia fazer
efeito.
Eu não entendia o motivo de ele parecer tão desinteressado, mas Mens-
hikov parecia bastante irritado pelos dois. Pelo ódio nos olhos do russo, eu
pude dizer que eu atingi um nervo.
— É isso, não é? — eu disse. — Maat e Caos estão conectados. Para libertar
Apófis você tem que acordar Rá, mas você quer controlar a invocação, ter
certeza de que Rá voltará velho e fraco.
O novo cajado de carvalho de Menshikov explodiu em chamas verdes.
— Rapaz, você não tem ideia do que está dizendo.
— Set provocou você sobre um erro do passado — eu me lembrei. — Você
tentou despertar Rá uma vez antes, não foi? Usando o quê... somente um
pergaminho que você possuía? Foi assim que você queimou o seu rosto?
— Carter! — Desjardins interrompeu. — Vlad Menshikov é um herói da
Casa da Vida. Ele tentou destruir aquele pergaminho para impedir que qual-
quer um o utilizasse. Foi assim que ele foi ferido.

257
O TRONO DE FOGO

Por um momento eu fiquei muito chocado para falar.


— Isso... não pode ser verdade.
— Você deveria fazer sua lição de casa, rapaz — Menshikov fixou seus
olhos arruinados em mim. — Os Menshikov são descendentes dos sacerdotes
de Amon-Rá. Você já ouviu falar daquele templo?
Tentei me lembrar das histórias que meu pai tinha me dito. Eu sabia que
Amon-Rá era um outro nome para Rá, o Deus Sol. E seu templo...
— Eles praticamente controlaram o Egito por séculos — eu me lembrei. —
Se opuseram Aquenáton quando ele baniu os deuses antigos, talvez até
mesmo o assassinaram.
— De fato — Menshikov concordou. — Meus antepassados foram campe-
ões dos deuses! Foram eles que criaram o Livro de Rá e esconderam seus três
pergaminhos, esperando que um dia um mago valoroso despertasse seu deus
sol.
Eu tentei me concentrar nisso. Eu podia ver totalmente Vlad Menshikov
como um antigo sacerdote sanguinário.
— Mas se você é descendente dos sacerdotes de Rá...
— Por que eu me oponho aos deuses? — Menshikov olhou para o Sacer-
dote-leitor Chefe como se eu estivesse perguntado algo obviamente estúpido.
— Porque os deuses destruíram a nossa civilização! No momento em que o
Egito caiu e Lorde Iskandar proibiu o caminho dos deuses, mesmo a mi-
nha família percebeu a verdade. Os antigos caminhos devem ser proibidos.
Sim, eu tentei destruir o pergaminho para compensar os pecados dos meus
ancestrais. Aqueles que invocarem os deuses devem ser eliminados.
Eu balancei minha cabeça.
— Eu vi você invocar Set. Eu ouvi você falar sobre libertar Apófis. Desjar-
dins, Zia... esse cara está mentindo. Ele vai matar vocês dois.
Desjardins olhou para mim numa espécie de transe. Amós insistiu que
o Sacerdote-leitor Chefe era inteligente, então como ele não percebia a ame-
aça?
— Chega — disse Desjardins. — Venha pacificamente, Carter Kane, ou
será destruído.
Eu dei a Zia mais um olhar de imploração. Eu podia ver a dúvida nos
olhos dela, mas ela não estava em qualquer condição de me ajudar. Ela tinha

258
CARTER

acabado de acordar de um pesadelo de três meses de duração. Ela queria


acreditar que a Casa da Vida ainda era sua casa e Desjardins e Menshikov
eram os mocinhos. Ela não quer ouvir mais nada sobre Apófis.
Eu levantei o cajado e o mangual.
— Eu não vou pacificamente.
Menshikov assentiu.
— Então, será a destruição.
Ele apontou seu cajado para mim, e meus instintos assumiram. Eu ata-
quei com o cajado.
Estava muito longe para alcançá-lo, mas uma força invisível arrancou o
cajado da mão de Menshikov e o mandou voando para o Nilo. Ele estendeu
sua varinha, mas eu cortei o ar novamente, e Menshikov saiu voando. Ele
aterrissou de costas com tanta força que fez um anjo na lama.
— Carter!
Desjardins empurrou Zia para trás dele. Seu próprio cajado aceso com
chamas púrpuras.
— Você se atreve a usar as armas de Rá?
Eu olhei para minhas mãos com espanto. Eu nunca senti tanto poder vir
a mim tão facilmente, como se eu estivesse destinado a ser um rei. No fundo
da minha mente, eu ouvi a voz de Hórus incitando-me:
Este é o seu caminho. Este é o seu direito de nascença.
— Você vai me matar de qualquer jeito — falei a Desjardins.
Meu corpo começou a brilhar. Eu me levantei do chão. Pela primeira vez
desde o Ano Novo, eu estava envolto no avatar do deus-falcão – um guer-
reiro com cabeça de falcão três vezes o meu tamanho normal. Em suas mãos
estavam enormes réplicas holográficas do cajado e do mangual. Eu não havia
prestado muita atenção ao mangual, mas ele era um malvado punidor – um
cabo de madeira com três correntes farpadas, cada uma com uma bola de
metal espinhosa na ponta – como uma combinação entre chicote e amaci-
ante de carne. Dei uma forte pancada no chão, e o guerreiro falcão espelhou
minha ação. O flagelo brilhante pulverizou os degraus de pedra do túmulo
de Zia, mandou blocos de calcário voando pelo ar.
Desjardins levantou um escudo para desviar os cacos. Os olhos de Zia se

259
O TRONO DE FOGO

arregalaram. Eu sabia que provavelmente estava aterrorizando-a e conven-


cendo-a de que eu era o cara mau, mas eu tinha que protegê-la. Eu não po-
deria deixar Menshikov levá-la para longe.
— Combate mágico — Desjardins disse com desprezo. — Assim era a Casa
da Vida quando nós seguíamos o caminho dos deuses, Carter Kane: mago
combatendo mago, traição e duelos entre diferentes templos. Você quer que
esses tempos retornem?
— Não tem que ser assim — respondi. — Eu não quero brigar com você,
Desjardins, mas Menshikov é um traidor. Saia daqui. Deixe-me lidar com
ele.
Menshikov se levantou da lama, sorrindo como se tivesse gostado de ser
jogado lá.
— Lidar comigo? Quão confiante! De qualquer maneira, Sacerdote-leitor
Chefe, deixe o rapaz tentar. Eu vou ter a certeza de pegar os pedaços quando
terminar.
Desjardins começou a dizer:
— Vladimir, não. Não é sua a decisão...
Mas Menshikov não esperou. Ele pisoteou o chão com seu pé, e a lama
ficou seca e branca em volta dele. Linhas gêmeas de terra endurecida serpen-
teavam em minha direção, cruzando-se como uma hélice de DNA. Eu não
tinha certeza do que elas fariam, mas sabia que não queria que elas me to-
cassem. Bati com o meu mangual, arrancando uma porção de lama grande
o suficiente para uma banheira de água quente. As linhas brancas continua-
ram avançando, deixando branco seu caminho abaixo da cratera e subindo
do outro lado, correndo em minha direção. Eu tentei sair do seu caminho,
mas o guerreiro avatar não era exatamente rápido.
As linhas de magia atingiram meus pés. Elas teciam como vinhas nas
pernas do avatar até eu estar enrolado até a cintura. Elas se apertavam contra
meu escudo, drenando minha magia, e eu ouvi a voz de Menshikov forçando
sua entrada em minha mente.
Cobra, a voz sussurrava. Você é um réptil deslizando.
Eu lutei contra o meu terror. Tinha sido transformado em um animal
contra a minha vontade uma vez antes e foi uma das piores experiências da
minha vida. Desta vez estava acontecendo em câmera lenta. O avatar de

260
CARTER

combate lutou para manter sua forma, mas a magia de Menshikov era forte.
As vinhas de incandescência branca continuavam subindo, circundando
meu peito.
Eu abati Menshikov com meu cajado. A força invisível agarrou-o pelo
pescoço e o levantou do chão.
— Faça isto! — ele ofegou. — Mostre-me... o seu poder... deus menor!
Eu levantei meu mangual. Uma boa batida, e eu poderia destruir Vlad
Menshikov como um inseto.
— Não vai importar! — ele engasgou, arranhando seu pescoço. — O feitiço
vai te derrotar de qualquer maneira. Mostre-nos que você é um assassino,
Kane!
Olhei para o rosto aterrorizado de Zia, e hesitei por muito tempo. As
vinhas brancas cercaram meus braços. O avatar de combate dobrou os joe-
lhos, e eu deixei Menshikov cair.
Dor aniquilou o meu corpo. Meu sangue gelou. Os membros do avatar
se encolheram, a cabeça do falcão lentamente se transformou em uma ca-
beça de uma serpente. Eu podia sentir meu coração desacelerando, minha
visão escurecendo. O gosto do veneno encheu minha boca.
Zia gritou.
— Pare! Isso é demais!
— Pelo contrário — Menshikov respondeu, esfregando o pescoço irritado.
— Ele merece coisa pior. Sacerdote-leitor Chefe, você viu como esse garoto
te ameaçou. Ele quer o trono do faraó. Ele deve ser destruído.
Zia tentou correr para mim, mas Desjardins a deteve.
— Interrompa o feitiço, Vladimir — ordenou. — O rapaz pode ser contido
de formas mais humanas.
— Humanas, meu senhor? Ele mal é humano!
Os dois magos travaram os olhos. Eu não sei o que teria acontecido, mas
então um portal se abriu sob a jaula de Bes.
Já vi muitos portais, mas nenhum como este. O vórtice abriu-se ao nível
do solo, sugando uma área de tamanho de um trampolim de areia vermelha,
peixes mortos, madeiras velhas, cacos de cerâmica e a brilhante jaula fluores-
cente contendo um deus anão. Enquanto a jaula entrava no vórtice, as barras

261
O TRONO DE FOGO

quebravam-se em estilhaços de luz. Bes descongelou, encontrou-se meio sub-


merso na areia, e disse alguns xingamentos criativos. Então minha irmã e
Walt foram atirados por cima do portal, suspensos horizontalmente, como
se estivessem correndo na direção do céu. Quando a gravidade assumiu, eles
balançaram os braços e caíram na areia. Eles poderiam ter sido sugados, no
entanto, Bes agarrou os dois e conseguiu transportá-los para fora do vórtice.
Bes depositou-os em terra firme. Então se virou para Vlad Menshikov,
plantou os pés, e arrancou sua camisa havaiana e bermuda como se eles fos-
sem feitos de tecido. Seus olhos brilhavam de raiva. Sua sunga estava bor-
dada com as palavras Orgulho Anão, que era algo que eu realmente não pre-
cisava ver.
Menshikov só teve tempo de dizer:
— Como...
— BOO! — gritou Bes.
O som foi como a explosão de uma bomba-H – ou uma bomba-F, de
Feio. O chão tremeu. O rio ondulou. Meu avatar colapsou, e o feitiço de
Menshikov se dissolveu com ele, o gosto do veneno na minha boca foi ce-
dendo, a pressão diminuindo então eu pude respirar novamente. Sadie e
Walt já estavam no chão. Zia tinha rapidamente se afastado. Mas Menshikov
e Desjardins levaram uma plena explosão de feio direto em seus rostos.
Suas expressões se tornaram de espanto, e eles se desintegraram no local.
Após um momento de choque, Zia, ofegou.
— Você os matou!
— Que nada — Bes espanou suas mãos. — Apenas os assustei de volta para
casa. Eles podem ficar inconscientes por algumas horas, enquanto seus cére-
bros tentam processar o meu físico magnífico, mas eles viverão. O mais im-
portante...
Ele franziu a testa para Sadie e Walt.
— Vocês dois tiveram coragem de ancorar de um portal em mim? Pareço
uma relíquia?
Sadie e Walt sabiamente não responderam. Eles levantaram, sacudindo
a areia.
— Não foi ideia nossa! — Sadie protestou. — Ptá nos enviou aqui para te
ajudar.

262
CARTER

— Ptá — eu disse. — Ptá, o deus?


— Não, Ptá o plantador de tâmaras. Eu te conto mais tarde.
— O que há de errado com seu cabelo? — perguntei. — Parece que um
camelo lambeu.
— Cale a boca. — Então ela notou Zia. — Meu Deus, é ela? A verdadeira
Zia?
Zia cambaleou para trás, tentando levantar seu cajado.
— Vão embora! — O fogo crepitou fraco.
— Nós não vamos te machucar — Sadie prometeu.
As pernas de Zia tremiam. Suas mãos tremiam. Então ela fez a única
coisa lógica para alguém que passou pelo o que ela passou ao longo do dia
depois de um coma de três meses. Seus olhos viraram e ela desmaiou.
Bes resmungou.
— Menina forte. Ela se aguentou sob um BOO frontal completo! Ainda
assim... é melhor a pegarmos e sairmos daqui. Desjardins não se foi para
sempre.
— Sadie — chamei — você conseguiu o pergaminho?
Ela puxou os três pergaminhos de sua bolsa. Parte de mim estava alivi-
ado. Parte de mim estava assustado.
— Precisamos chegar à Grande Pirâmide — ela falou. — Por favor, me diga
que você tem um carro.

Não somente tínhamos um carro, tínhamos também um grupo inteiro de


beduínos. Devolvemos o carro deles logo após escurecer, mas os beduínos
pareciam felizes em nos ver, apesar de trazermos mais três pessoas, uma das
quais inconsciente. De alguma forma Bes fez um acordo com eles para nos
levarem ao Cairo. Depois de alguns minutos conversando na tenda, ele saiu
usando vestes novas. Os beduínos saíram rasgando os restos de sua camisa
havaiana em tiras, que eles cuidadosamente amararam em torno de seus bra-
ços, antena e retrovisor como talismãs de boa sorte.
Subimos na parte traseira do caminhão. Estava muito lotado e baru-
lhento de tanta conversa enquanto nos dirigíamos para Cairo. Bes nos disse
para dormir um pouco enquanto ele vigiava. Ele prometeu que seria gentil
com Zia se ela acordasse.

263
O TRONO DE FOGO

Sadie e Walt caíram direto no sono, mas eu olhei para as estrelas por um
tempo. Eu estava dolorosamente ciente de que Zia – a verdadeira Zia – dor-
mia irrequieta bem ao meu lado, e as armas mágicas de Rá, o cajado e o
mangual, estavam agora escondidos na minha bolsa. Meu corpo ainda estava
zunindo da batalha. O feitiço de Menshikov havia sido quebrado, mas eu
ainda podia ouvir sua voz em minha cabeça, tentando me transformar em
um réptil de sangue frio – algo como ele.
Finalmente consegui fechar os olhos. Sem proteção mágica, meu ba flu-
tuou à deriva logo que adormeci.
Eu me encontrei no Salão das Eras, em frente ao trono do faraó. Entre
as colunas de ambos os lados, imagens holográficas brilhavam. Assim como
Sadie havia descrito, a borda da cortina mágica estava se transformando de
vermelho para roxo profundo – indicando uma nova era. As imagens em
púrpura eram difíceis de decifrar, mas eu pensei ter visto duas figuras lu-
tando em frente a uma cadeira em chamas.
— Sim — disse a voz de Hórus. — A batalha se aproxima.
Ele apareceu em uma onda de luz, de pé sobre os degraus do tablado
onde o Sacerdote-leitor Chefe costumava sentar. Ele estava na forma hu-
mana, um jovem homem musculoso, pele bronzeada e cabeça raspada. Joias
brilhavam em sua armadura de batalha de couro, sua khopesh pendurada ao
seu lado. Seus olhos brilharam – um ouro, um prata.
— Como você chegou até aqui? — perguntei. — Este local não é protegido
contra os deuses?
— Eu não estou aqui, Carter. Você está. Mas nós estivemos juntos uma
vez. Eu sou um eco em sua mente, uma parte de Hórus que nunca te deixou.
— Eu não entendo.
— Basta ouvir. Sua situação mudou. Você está no limiar da grandeza.
Ele apontou para meu peito. Olhei para baixo e percebi que não estava
na minha forma de ba habitual. Ao invés de um pássaro, eu era um humano,
vestido como Hórus numa armadura egípcia. Em minhas mãos estavam o
cajado e o mangual.
— Não são meus — falei. — Eles estavam enterrados com Zia.
— Eles poderiam ser seus — Hórus replicou. — Eles são os símbolos do
faraó, como o cajado e a varinha, só que cem vezes mais poderosos. Mesmo

264
CARTER

sem prática, você foi capaz de canalizar seus poderes. Imagine o que poderí-
amos fazer juntos.
Ele apontou para o trono vazio.
— Você poderia unir a Casa da Vida como seu líder. Poderíamos esmagar
nossos inimigos.
Eu não vou negar: parte de mim sentiu um arrepio. Meses atrás, a ideia
de ser um líder me aterrorizava até a morte. Agora as coisas mudaram. Mi-
nha própria compreensão da magia tinha crescido. Eu passei três meses en-
sinando e transformando nossos iniciados em uma equipe. Entendi a ame-
aça que estávamos enfrentando de forma mais clara, e eu estava começando
a compreender como canalizar o poder de Hórus sem ser oprimido. E se
Hórus estivesse certo, e eu pudesse liderar os deuses e os magos contra Apó-
fis? Eu gostei da ideia de esmagar nossos inimigos, voltar-me contra as forças
do Caos que virou as nossas vidas de cabeça para baixo.
Então me lembrei do modo que Zia olhou para mim quando eu estava
prestes a matar Vlad Menshikov, como se eu fosse o monstro. Lembrei o
que Desjardins havia dito sobre os maus velhos tempos, quando magos lu-
tavam contra magos. Se Hórus era um eco em minha mente, talvez eu esti-
vesse sendo afetado por seu desejo de governar. Eu conhecia Hórus muito
bem agora. Ele era um bom sujeito de muitas maneiras – corajoso, honrado,
justo. Mas também era ambicioso, ganancioso, invejoso e determinado no
que dizia respeito a seus objetivos. E seu maior desejo era governar os deuses.
— O cajado e o mangual pertencem a Rá — eu disse. — Nós temos que
acordá-lo.
Hórus inclinou a cabeça.
— Mesmo que Apófis deseje que isso aconteça? Mesmo que Rá esteja
fraco e velho? Eu o adverti sobre as divisões entre os deuses. Você viu como
Nekhbet e Babi tentaram eles próprios resolverem o assunto. O conflito só
vai piorar. O Caos se alimenta de líderes fracos, lealdades divididas. É disto
que Vladimir Menshikov está atrás.
O Salão das Eras tremeu. Ao longo de duas paredes, a cortina de luz
púrpura expandiu. À medida que a cena holográfica se alargava, eu pude
dizer que a cadeira era um trono de fogo, como a que Sadie tinha descrito
em sua visão do barco de Rá. Duas figuras sombrias estavam atracadas em

265
O TRONO DE FOGO

combate, agarradas corpo a corpo como lutadores, mas eu não poderia dizer
se eles estavam tentando empurrar o adversário na cadeira ou tentando man-
ter o outro longe dela.
— Menshikov realmente tentou destruir o Livro de Rá? — perguntei.
O olho prata de Hórus cintilou. Ele sempre pareceu um pouco mais bri-
lhante do que o dourado, o que fazia eu me sentir desorientado, como se o
mundo inteiro tivesse escolhido um lado.
— Como a maioria das coisas Menshikov diz, é uma verdade parcial.
Certa vez ele pensava como você. Ele pensou que poderia trazer de volta Rá
e restaurar o Maat. Ele se imaginou como o sumo sacerdote de um novo e
glorioso templo, muito mais poderoso do que seus antepassados. Em seu
orgulho, pensou que poderia reconstruir o Livro de Rá do pergaminho em
sua posse. Ele estava errado. Rá fez um enorme esforço para não ser desper-
tado. As maldições no pergaminho queimaram os olhos de Menshikov. Fogo
solar cauterizou sua garganta porque ele se atreveu a ler as palavras do feitiço.
Depois disso, Menshikov se tornou amargo. Inicialmente, ele conspirou
para destruir o Livro de Rá, mas ele não tinha o poder. Em seguida, criou
um novo plano. Ele iria despertar Rá, mas por vingança. É pelo o que ele
espera por todos estes anos. É por isso que ele quer que você reúna os per-
gaminhos e reconstrua o Livro de Rá. Menshikov quer ver o velho deus en-
golido por Apófis. Ele quer ver o mundo mergulhado na escuridão e no
caos. Ele está completamente louco.
— Oh.
[Grande resposta, eu sei. Mas o que você diz depois de uma história como
essa?]
No tablado, ao lado de Hórus, o trono vazio do faraó parecia ondular na
luz púrpura. Aquela cadeira sempre me intimidou. Há muito tempo atrás, o
faraó tinha sido o governante mais poderoso do mundo. Ele havia contro-
lado um império que durou vinte vezes mais do que meu próprio país, os
EUA, tinha de existência. Como eu poderia ser digno de estar lá?
— Você pode fazer isso, Carter — Hórus insistiu. — Você pode tomar o
controle. Por que correr o risco de invocar Rá? Sua irmã terá que ler o livro,
você sabe. Você viu o que aconteceu com Menshikov quando apenas um
pergaminho saiu pela culatra. Você consegue imaginar se três vezes mais

266
CARTER

desse poder for desencadeado sobre sua irmã?


Minha boca ficou seca. Já era ruim o bastante eu ter deixado Sadie sair
para encontrar o último pergaminho sem mim. Como eu poderia deixá-la se
arriscar que aquilo a deformasse como Vlad, o Inalador, ou pior?
— Você vê a verdade agora — disse Hórus. — Reivindique o cajado e o
mangual para si mesmo. Assuma o trono. Juntos, podemos vencer Apófis.
Podemos voltar para o Brooklyn e proteger seus amigos e sua casa.
Casa. Isso soou tão tentador. E os nossos amigos estavam em terrível pe-
rigo. Eu tinha visto em primeira mão o que Vlad Menshikov poderia fazer.
Imaginei o pequeno Felix ou a tímida Cleo tentando lutar contra esse tipo
de magia. Imaginei Menshikov transformando os nossos jovens iniciados em
cobras indefesas. Eu nem sequer tinha certeza se Amós poderia prevalecer
contra ele. Com as armas de Rá, eu poderia proteger a Casa do Brooklyn.
Então olhei para as imagens púrpuras piscando contra a parede – duas
figuras lutando perante o trono em chamas. Esse era o nosso futuro. A chave
para o sucesso não era eu, ou mesmo Hórus – era Rá, o verdadeiro rei dos
deuses egípcios. Perto do trono ardente de Rá, o assento do faraó parecia
tão importante como uma poltrona reclinável.
— Nós não somos o suficiente — revelei a Hórus. — Precisamos de Rá.
O deus me encarou com seus olhos de ouro e prata como se eu fosse
uma pequena presa, quilômetros abaixo dele, e ele estivesse considerando se
eu valia ou não o mergulho.
— Você não entende a ameaça — ele decidiu. — Fique, Carter. E ouça seus
inimigos planejando sua morte.
Hórus desapareceu.
Ouvi passos nas sombras atrás do trono, seguidos de uma familiar respi-
ração rouca. Esperava que meu ba estivesse invisível. Vladimir Menshikov
caminhou para a luz, meio que carregando seu chefe, Desjardins.
— Quase lá, meu senhor — disse Menshikov.
O russo parecia bem descansado em um novo terno branco. O único
sinal de nossa luta recente era uma atadura no pescoço, onde eu o dominei
com o cajado. Desjardins, no entanto, parecia ter envelhecido uma década
em algumas poucas horas. Ele tropeçou, inclinando-se sobre Menshikov. Seu
rosto estava magro. Seu cabelo tinha se tornado branco opaco, e eu não acho

267
O TRONO DE FOGO

que foi tudo devido a ele ter visto a sunga de Bes.


Menshikov tentou colocá-lo com calma sobre o trono do faraó, mas Des-
jardins protestou.
— Nunca, Vladimir. O degrau. O degrau.
— Mas, com certeza, senhor, na sua condição...
— Nunca!
Desjardins sentou-se nos degraus ao pé do trono. Eu não pude acreditar
o quão pior ele parecia.
— O Maat está enfraquecendo.
Desjardins estendeu a mão. Uma nuvem fraca de hieróglifos flutuou das
pontas de seus dedos no ar.
— O poder do Maat uma vez me sustentou, Vladimir. Agora parece estar
absorvendo a minha força vital. É tudo que posso fazer...
Sua voz foi enfraquecendo.
— Não tema, meu senhor — disse Menshikov. — Assim que lidarmos com
os Kane, tudo ficará bem.
— Será mesmo? — Desjardins olhou para cima, e por um momento seus
olhos flamejaram com raiva, como costumavam fazer. — Você nunca tem
dúvidas, Vladimir?
— Não, meu senhor — respondeu o russo. — Eu dei minha vida para lutar
contra os deuses. E continuarei a fazê-lo. Se me permite a ousadia, Sacerdote-
leitor Chefe, você não deveria ter permitido Amós Kane em sua presença.
Suas palavras são como veneno.
Desjardins pegou um hieróglifo do ar e estudou enquanto girava em sua
palma. Eu não reconheci o símbolo, mas ele me lembrava um semáforo com
uma figura reta parecendo um sujeito em pé ao seu lado.

— Menhed — Desjardins disse. — A paleta do escriba.


Eu olhei para o símbolo vagamente tremulo, e podia ver a semelhança
com as ferramentas de escrita em minha bolsa de magia. O retângulo era a

268
CARTER

paleta, com lugares para a tinta preta e vermelha. A figura reta, ao lado era
uma caneta de escrita presa a uma corda.
— Sim, meu senhor — disse Menshikov. — Que... interessante.
— Era o símbolo favorito do meu avô — disse Desjardins. — Jean-François
Champollion, você sabe. Ele decifrou o código dos hieróglifos usando a Pe-
dra de Roseta... o primeiro homem fora da Casa da Vida a fazer isso.
— De fato, meu senhor. Eu ouvi a história.
Umas mil vezes, sua expressão parecia dizer.
— Ele ascendeu do nada para se tornar um grande cientista — Desjardins
continuou — e um grande mago, respeitado pelos mortais e também pelos
magos.
Menshikov sorriu como se ele estivesse achando graça uma criança que
estava se tornando irritante.
— E agora você é o Sacerdote-leitor Chefe. Ele ficaria orgulhoso.
— Ele ficaria? — Desjardins perguntou. — Quando Iskandar aceitou a mi-
nha família na Casa da Vida, ele disse dar boas-vindas ao novo sangue e
novas ideias. Ele tinha esperanças de revigorar a Casa. Contudo, com o que
nós contribuímos? Nós não mudamos nada. Não questionamos nada. A
Casa enfraqueceu. Temos menos iniciantes a cada ano.
— Ah, meu senhor — Menshikov arreganhou os dentes. — Deixe-me mos-
trar que não somos fracos. Sua força de ataque está reunida.
Ele bateu palmas. No final do salão, as portas enormes de bronze se abri-
ram. No começo, eu não pude acreditar nos meus olhos, mas enquanto o
pequeno exército marchava em nossa direção, eu ficava cada vez mais alar-
mado.
A dúzia de magos era a parte menos assustadora do grupo. Eles eram na
sua maioria velhos homens e mulheres em vestes de linho tradicional. Mui-
tos tinham em torno de seus olhos uma pintura preta e tatuagens de hieró-
glifos nas mãos e rostos. Alguns usavam mais amuletos que Walt. Os ho-
mens tinham a cabeça rapada, as mulheres usavam cabelo curto ou preso em
rabo de cavalo. Todos tinham expressões sombrias, como uma multidão en-
furecida de camponeses indo queimar o monstro Frankenstein, exceto que
em vez de forquilhas eles estavam armados com cajados e varinhas. Vários
tinham espadas também.

269
O TRONO DE FOGO

De ambos os lados deles havia demônios marchando – cerca de vinte no


total. Eu lutei com demônios antes, mas havia algo de diferente nesses. Eles
se moviam com mais confiança, como se compartilhassem um senso de pro-
pósito. Eles irradiavam maldade tão fortemente que senti que meu ba estava
ficando bronzeado. A pele deles era de todas as cores, do verde ao preto e
ao violeta. Alguns estavam vestidos com armaduras, alguns com peles de
animais, alguns com pijamas de flanela. Um deles tinha uma motosserra no
lugar da cabeça. Outro tinha uma guilhotina. Um terceiro tinha um pé bro-
tando entre seus ombros.
Ainda mais assustador que os demônios eram as serpentes aladas. Sim,
eu sei, você está pensando: “Chega de cobras!” Acredite em mim, depois de
ser picado pelo tjesu heru em São Petersburgo, eu também não estava feliz em
vê-las. Estas não eram de três cabeças, e não eram nem um pouco maiores
do que as serpentes normais, mas me causavam arrepios só de olhar. Imagine
uma cobra com asas de uma águia. Agora imagine ela silvando pelo ar, exa-
lando longos jatos de fogo como um lança-chamas. Meia dúzia desses mons-
tros circulava em formação de ataque, saindo e voltando para a formação e
cuspindo fogo. Foi um milagre nenhum dos magos ter sido incendiado.
Enquanto o grupo se aproximava, Desjardins lutava para ficar em pé. Os
magos e demônios ajoelharam-se diante dele. Uma das serpentes aladas voou
na frente do Sacerdote-leitor Chefe e Desjardins a agarrou no ar com uma
velocidade surpreendente. A cobra se contorceu em seu punho, mas não
tentou atacar.
— Uma uraeus? — Desjardins perguntou. — Isso é perigoso, Vladimir. Es-
tas são criaturas de Rá.
Menshikov inclinou sua cabeça.
— No passado já serviram o templo de Amon-Rá, Sacerdote-leitor Chefe,
mas não se preocupe. Por causa da minha ascendência, eu posso controlá-
las. Eu pensei que fosse apropriado, usar as criaturas do deus do sol para
destruir aqueles que o acordariam.
Desjardins liberou a serpente, que jorrou fogo e fugiu.
— E os demônios? — Desjardins perguntou. — Desde quando usamos cri-
aturas do Caos?
— Eles estão bem controlados, meu senhor.

270
CARTER

A voz de Menshikov soou tensa, como se ele estivesse ficando cansado


de agradar seu chefe.
— Esses magos conhecem os encantos apropriados de restrição. Escolhi-
os a dedo dos Nomos ao redor do mundo. Eles têm grandes habilidades.
O Sacerdote-leitor Chefe focou em um homem asiático com vestes azuis.
— Kwai, não é?
O homem assentiu.
— Pelo que me lembro — Desjardins disse — você foi exilado para o Tre-
centésimo Nomo na Coreia do Norte por assassinar um companheiro mago.
E você, Sarah Jacobi — ele apontou para uma mulher com vestes brancas e
cabelos pretos repicados — você foi enviada para a Antártida por causar o
tsunami no Oceano Índico.
Menshikov pigarreou.
— Meu senhor, muitos desses magos tiveram problemas no passado,
mas...
— Eles são assassinos e ladrões cruéis — disse Desjardins. — O que há de
pior na nossa Casa.
— Mas eles estão ansiosos para provar suas lealdades — Menshikov asse-
gurou. — Estão felizes por fazer isto!
Ele sorriu para seus lacaios, como se os incentivassem a parecerem felizes.
Nenhum deles o acompanhou.
— Além disso, meu senhor — continuou Menshikov rapidamente — se
você quiser a Casa do Brooklyn destruída, devemos ser implacáveis. É para
o bem do Maat.
Desjardins franziu a testa.
— E você, Vladimir? Você vai liderá-los?
— Não, meu senhor. Tenho plena confiança de que este, ah, ótimo grupo
pode lidar com Brooklyn por conta própria. Eles vão atacar ao entardecer.
Quanto a mim, vou seguir os Kane no Duat e lidar com eles pessoalmente.
Você, meu senhor, deveria ficar aqui e descansar. Vou enviar um vidente
para seus aposentos para que você possa observar o nosso progresso.
— Ficar aqui — Desjardins repetiu amargamente. — E observar.
Menshikov se curvou.
— Nós vamos salvar a Casa da Vida. Eu juro. Os Kane serão destruídos,

271
O TRONO DE FOGO

os deuses serão colocados de volta ao exílio. O Maat será restaurado.


Eu tinha esperanças que Desjardins recobrasse o juízo e cancelasse o ata-
que. Em vez disso, seus ombros caíram. Ele virou as costas para Menshikov
e olhou para o trono vazio do faraó.
— Vá — disse ele, cansado. — Tire essas criaturas fora da minha vista.
Menshikov sorriu.
— Meu senhor.
Virou-se e marchou pelo Salão das Eras, com seu exército pessoal a rebo-
que.
Depois que eles foram embora, Desjardins levantou a mão. Uma esfera
de luz flutuou do teto e repousou em sua palma.
— Traga-me o Livro de Superação de Apófis — Desjardins disse à luz. —
Eu devo consultá-lo.
A esfera mágica se dobrou como se curvando, então partiu.
Desjardins virou em direção à cortina púrpura de luz – a imagem de duas
figuras brigando por um trono de fogo.
— Vou “observar” Vladimir — ele murmurou para si mesmo. — Mas não
vou “ficar e descansar”.
A cena se desvaneceu e meu ba voltou para o meu corpo.

272
C
A
18. Jogando na véspera do Juízo Final
R
T
E
R

PELA SEGUNDA VEZ NESSA SEMANA, eu acordei num sofá em um quarto de


hotel sem ter a mínima ideia de como havia chegado lá.
O quarto não estava nem perto de ser tão agradável como o Four Seasons
Alexandria. As paredes estavam com o gesso quebrado. Vigas expostas ce-
diam ao longo do teto. Um ventilador portátil zumbia na mesa de café, mas
o ar era tão quente como uma fornalha. A luz da tarde passava através das
janelas abertas. Lá de baixo vinham os sons de carros buzinando e comerci-
antes oferecendo suas mercadorias em árabe. A brisa cheirava a exaustor,
estrume de animal e apple sisha – fumo com cheiro de melaço frutado usado
no cachimbo d’água. Em outras palavras, eu sabia que devíamos estar no
Cairo.
Na janela, Sadie, Bes, Walt e Zia estavam sentados ao redor de uma mesa,
jogando um jogo de tabuleiro como velhos amigos. A cena era tão bizarra
que pensei que eu ainda devia estar sonhando.
Então Sadie percebeu que estava acordado.
— Ora, ora. Da próxima vez que você fizer uma viagem prolongada de ba,
Carter, deixe-nos saber com antecedência. Não é divertido te carregar por
três lances de escadas.
Eu esfreguei minha cabeça latejante.
— Quanto tempo estive apagado?
— Mais tempo que eu — afirmou Zia.

273
O TRONO DE FOGO

Ela parecia incrível – calma e descansada. Seu cabelo recém lavado estava
ajeitado por trás de suas orelhas, e ela usava um vestido branco novo sem
mangas que fazia sua pele bronzeada brilhar.
Acho que eu a estava encarando demais, porque ela desviou o olhar. Seu
pescoço ficou vermelho.
— São três da tarde — disse ela. — Eu estou acordada desde as dez da
manhã.
— Você parece...
— Melhor? — Ela levantou as sobrancelhas, como se estivesse me desafi-
ando a negá-lo. — Você perdeu toda a agitação. Eu tentei lutar. Tentei esca-
par. Este é o nosso terceiro quarto de hotel.
— O primeiro pegou fogo — disse Bes.
— O segundo explodiu — completou Walt.
— Eu já pedi desculpas — Zia fechou a cara. — De qualquer forma, sua
irmã finalmente me acalmou.
— O que levou várias horas — disse Sadie — e toda minha habilidade
diplomática.
— Você tem uma habilidade diplomática? — perguntei.
Sadie revirou os olhos.
— Como se você fosse notar, Carter!
— Sua irmã é muito inteligente — Zia afirmou. — Ela me convenceu a
aguardar meu julgamento para seus planos até que você acordasse e nós pu-
déssemos conversar. Ela é bastante persuasiva.
— Obrigada — disse Sadie presunçosamente.
Olhei para ambas e um sentimento de terror despertou.
— Vocês estão se dando bem? Vocês não podem se dar bem! Você e Sadie
não se suportam.
— Isto era com o shabti, Carter — Zia disse, embora o pescoço dela ainda
estivesse vermelho brilhante. — Eu acho Sadie... admirável.
— Ouviu? — Sadie falou. — Eu sou admirável!
— Isto é um pesadelo.
Sentei-me e os cobertores caíram. Olhei para baixo e vi que estava usando
um pijama do Pokémon.
— Sadie. — falei — Eu vou te matar.

274
CARTER

Ela piscou os olhos inocentemente.


— Mas o vendedor de rua nos deu um bom desconto nele. Walt disse
que caberia em você.
Walt levantou as mãos.
— Não me culpe, cara. Eu tentei te defender.
Bes bufou e depois fez uma imitação muito boa da voz de Walt:
— “Pelo menos pegue os extragrandes com o Pikachu”. Carter, as suas
coisas estão no banheiro. Agora, nós estamos jogando senet ou não?
Eu fui aos tropeços para o banheiro e fiquei aliviado de encontrar um
conjunto de roupas normais esperando por mim – cuecas limpas, jeans e
uma camiseta que não tinha o desenho do Pikachu. O chuveiro fez o baru-
lho de um elefante morrendo quando tentei ligá-lo, mas eu consegui um
pouco de água com cheiro de ferrugem na pia e me lavei o melhor que pude.
Quando saí de novo, eu não me sentia exatamente como novo em folha,
mas pelo menos eu não cheirava a peixe morto e carne de bode.
Meus quatro companheiros ainda estavam jogando senet. Eu tinha ou-
vido falar do jogo – supostamente um dos mais antigos do mundo, mas
nunca o vi jogarem. O tabuleiro era um retângulo com quadrados azuis e
brancos, três fileiras de dez espaços cada. As peças do jogo eram círculos
azuis e brancos. Em vez de dados, você atirava quatro varetas de marfim,
como palitos de sorvete, vazias de um lado e marcadas com hieróglifos no
outro.
— Eu pensei que as regras do jogo tinham se perdido. — falei
Bes levantou uma sobrancelha.
— Talvez para vocês, mortais. Os deuses nunca esqueceram.
— É muito fácil — disse Sadie. — Você faz um S em torno do tabuleiro. A
primeira equipe que conseguir colocar todas as suas peças no final ganha.
— Há! — Bes disse. — Há muito mais do que isso. Levam-se anos para
dominar.
— É mesmo, deus anão? — Zia jogou as quatro varetas, e todas caíram com
o lado marcado para cima. — Domine isso!
Sadie e Zia deram um high five uma na outra. Aparentemente, elas eram
uma equipe. Sadie movimentou uma peça azul e bateu uma peça branca de
volta ao começo.

275
O TRONO DE FOGO

— Walt — Bes resmungou, — eu te disse para não movimentar essa peça!


— Não é minha culpa!
Sadie sorriu para mim.
— São meninas contra meninos. Estamos jogando pelos óculos de sol de
Vlad Menshikov.
Ela ergueu a armação branca quebrada que Set lhe dera em São Peters-
burgo.
— O mundo está prestes a acabar — falei — e vocês estão apostando óculos
de sol?
— Ei, cara — disse Walt. — Nós somos totalmente versáteis. Conversamos
em torno de seis horas, mas nós tivemos que esperar você acordar para tomar
qualquer decisão, certo?
— Além disso — disse Sadie — Bes nos garantiu que não se pode jogar
senet sem se apostar. Isso abalaria as estruturas do Maat.
— É verdade — o anão concordou. — Walt jogue, agora.
Walt jogou as varetas e três saíram em branco.
Bes amaldiçoou.
— Precisamos de dois para sair da Casa de Atum-Rá, garoto. Eu não te
expliquei isso?
— Desculpe!
Eu não tinha certeza do que fazer, então puxei uma cadeira.
A vista da janela era melhor do que eu imaginava. A cerca de um quilô-
metro de distância, as Pirâmides de Gizé brilhavam vermelhas na luz da
tarde. Nós devíamos estar na periferia sudoeste da cidade, perto de El Man-
souria. Passei por esse bairro uma dúzia de vezes com meu pai em nossos
caminhos para diversas escavações, mas ainda era confuso ver as pirâmides
tão perto.
Eu tinha um milhão de perguntas. Eu precisava contar a meus amigos
sobre a visão do meu ba. Mas antes que eu tomasse coragem, Sadie lançou
em uma longa explicação do que eles fizeram enquanto eu estava inconsci-
ente. Ela se concentrou principalmente em como eu parecia engraçado en-
quanto dormia e como choraminguei várias vezes quando eles me tiraram
dos dois primeiros quartos de hotel em chamas. Descreveu o excelente pão
sírio recém assado, falafel e carne temperada que tinham comido no almoço

276
CARTER

(“Oh, desculpe, nós não guardamos nada para você”) e as grandes barganhas
que conseguiram ao fazer compras no souk, o mercado local ao ar livre.
— Vocês foram fazer compras? — falei
— Bem, é claro — respondeu ela. — Nós não podemos fazer nada até o
pôr do sol de qualquer maneira. Foi o que Bes disse.
— O que você quer dizer?
Bes jogou as varetas e moveu uma de suas peças para uma das bordas.
— O equinócio, garoto. Estamos perto o suficiente agora. Todos os por-
tais do mundo fecharão, exceto em duas ocasiões: o pôr e o nascer do sol,
quando dia e noite estão perfeitamente equilibrados.
— De qualquer forma — Sadie disse — se quisermos encontrar Rá, vamos
ter que fazer sua jornada, o que significa entrar no Duat ao pôr do sol e
voltar ao nascer do sol.
— Como você sabe disso? — perguntei.
Ela puxou um pergaminho de sua sacola – um cilindro de papiro muito
mais espesso do que aqueles que eu havia reunido. As bordas brilhavam
como fogo.
— O Livro de Rá — disse ela. — Eu o juntei. Você pode me agradecer
agora.
Minha cabeça começou a girar. Lembrei-me do que Hórus havia dito em
minha visão sobre o pergaminho queimando o rosto de Menshikov.
— Você quer dizer que você o leu sem... sem nenhum problema?
Ela deu de ombros.
— Apenas a introdução: avisos, instruções, esse tipo de coisa. Eu não vou
ler o verdadeiro feitiço até encontrarmos Rá, mas sei para onde vamos.
— Se decidirmos ir — falei.
Aquilo chamou a atenção de todos.
— Se? — Zia perguntou.
Ela estava tão perto que era doloroso, mas eu pude sentir a distância que
ela estava colocando entre nós: se inclinando para longe de mim, de ombros
tensos, advertindo-me a respeitar o seu espaço.
— Sadie me disse que você estava bastante determinado.
— Eu estava. — falei — Até que saber o que Menshikov está planejando.
Contei a eles o que tinha visto – sobre a força de ataque de Menshikov

277
O TRONO DE FOGO

se dirigindo para o Brooklyn ao pôr do sol e seus planos de nos seguir pes-
soalmente através do Duat. Eu expliquei o que Hórus disse sobre os perigos
de acordar Rá, e como eu poderia usar o cajado e o mangual em vez de lutar
contra Apófis.
— Mas esses são os símbolos sagrados de Rá — Zia afirmou.
— Eles pertencem a qualquer faraó forte o suficiente para manejá-los —
repliquei. — Se nós não ajudarmos Amós no Brooklyn...
— Seu tio e todos os seus amigos serão destruídos — disse Bes. — Pelo que
você descreveu, Menshikov reuniu um pequeno e desagradável exér-
cito. Uraei, as serpentes com chamas, são notícias muito ruins. Mesmo se
Bastet voltar a tempo de ajudar...
— Precisamos avisar Amós — disse Walt. — Pelo menos alertá-lo.
— Você tem uma bacia de vidência? — perguntei.
— Melhor.
Walt retirou um telefone celular do bolso.
— O que eu digo a ele? Vamos voltar?
Hesitei. Como eu poderia deixar Amós e meus amigos sozinhos contra
um exército do mal? Parte de mim estava se coçando para pegar as armas do
faraó e esmagar nossos inimigos. A voz de Hórus ainda estava dentro de
mim, incitando-me para que eu me encarregasse disso.
— Carter, você não pode ir para o Brooklyn.
Zia encontrou meus olhos e eu percebi que o medo e o pânico não a
tinham abandonado. Ela estava controlando aqueles sentimentos, mas eles
ainda estavam borbulhando sob a superfície.
— O que eu vi nas Areias Vermelhas... aquilo me perturbou muito.
Eu me senti como se ela tivesse acabado de pisotear o meu coração.
— Olha, eu sinto muito sobre essa coisa de avatar, cajado e mangual. Eu
não queria te apavorar, mas...
— Carter, você não me perturbou. Vlad Menshikov sim.
— Ah... Certo.
Ela tomou um fôlego incerto.
— Eu nunca confiei naquele homem. Quando me formei no treino de
iniciante, Menshikov solicitou que eu fosse atribuída ao seu Nomo. Feliz-
mente, Iskandar recusou.

278
CARTER

— Então... por que eu não posso ir para o Brooklyn?


Zia examinou o tabuleiro de senet como se fosse um mapa de guerra.
— Eu acredito que você está dizendo a verdade. Menshikov é um traidor.
O que você descreveu da sua visão... Eu acho que Desjardins está sendo afe-
tado por magia maligna. Não é o enfraquecimento do Maat que está dre-
nando a sua força vital.
— É Menshikov — Sadie adivinhou.
— Eu acredito que sim... — a voz de Zia ficou rouca. — E acredito que o
meu mentor, Iskandar, estava tentando me proteger quando ele me colocou
naquele túmulo. Não foi um erro ele ter me deixado ouvir a voz de Apófis
nos meus sonhos. Era uma espécie de aviso, uma última lição. Ele escondeu
o cajado e o mangual comigo por uma razão. Talvez ele soubesse que você
me encontraria. De qualquer forma, Menshikov deve ser detido.
— Mas você acabou de dizer que não posso ir pro Brooklyn — protestei.
— Eu quis dizer que você não pode abandonar sua missão. Acho que
Iskandar previu esse caminho. Ele acreditava que os deuses devem se unir à
Casa da Vida e eu confio no julgamento dele. Você tem que acordar Rá.
Ao ouvir Zia dizer isto, senti pela primeira vez como se a nossa missão
fosse real. E crucial. E muito, muito louca. Mas também senti uma pequena
centelha de esperança. Talvez ela não me odiasse completamente.
Sadie pegou as varetas de senet.
— Bem, está combinado, então. Ao pôr do sol, nós vamos abrir um portal
no topo da Grande Pirâmide. Seguiremos o velho curso do barco sol des-
cendo o Rio da Noite, encontraremos Rá, o acordaremos, e o traremos no-
vamente ao amanhecer. E, possivelmente, encontrar um lugar para jantar ao
longo do caminho, porque eu estou com fome de novo.
— Vai ser perigoso — disse Bes. — Imprudente. Provavelmente fatal.
— Então, um dia comum para nós — resumi.
Walt franziu a testa, ainda segurando o telefone.
— Então o que devo dizer à Amós? Ele está por conta própria?
— Não é bem assim — Zia afirmou. — Eu vou para o Brooklyn.
Eu quase engasguei.
— Você?
Zia me deu um olhar de esguelha.

279
O TRONO DE FOGO

— Eu sou boa em magia, Carter.


— Não foi isso que eu quis dizer. É só...
— Quero falar com Amós eu mesma — disse ela. — Quando a Casa da
Vida aparecer, talvez eu possa intervir, ganhar tempo. Eu tenho alguma in-
fluência com outros magos... pelo menos tinha quando Iskandar estava vivo.
Alguns deles podem escutar a voz da razão, sobretudo se Menshikov não
estiver lá encorajando-os.
Pensei na multidão enfurecida que eu tinha visto em minha visão. Razo-
ável, não foi a primeira palavra que me veio à mente.
Aparentemente Walt estava pensando a mesma coisa.
— Se você se transportar ao pôr do sol — disse ele — vai chegar ao mesmo
tempo que os invasores. Será o caos, sem muito tempo para conversas. E se
você tiver que lutar?
— Esperemos — afirmou Zia — que não chegue a esse ponto.
Não foi uma resposta muito reconfortante, mas Walt assentiu.
— Eu vou com você.
Sadie deixou cair suas varetas de senet no chão.
— O quê? Walt, não! Na sua condição...
Ela tampou a boca com a mão tarde demais.
— Que condição? — perguntei.
Se Walt tivesse um feitiço Olho do Mal, acho que ele teria usado na
minha irmã naquele momento.
— A história da minha família — disse ele. — Algo que eu contei a Sadie...
em segredo.
Ele não parecia estar feliz com isso, mas explicou a maldição sobre sua
família, a linhagem de Aquenáton e o que isto significava.
Apenas fiquei lá sentado, atordoado. O comportamento secreto de Walt,
suas conversas com Jaz, seu mau humor, tudo isso fazia sentido agora. Meus
próprios problemas de repente pareciam muito menos importantes.
— Oh, cara — murmurei. — Walt...
— Olha, Carter, seja lá o que você vá dizer, eu aprecio o sentimento. Mas
estou cansado de comiseração. Eu tenho vivido com esta doença por anos.
Não quero que as pessoas tenham pena de mim ou me tratem como se pen-
sassem que sou especial. Quero ajudar vocês, pessoal. Vou levar Zia de volta

280
CARTER

ao Brooklyn. Assim, Amós vai saber que ela vem em paz. Vamos tentar parar
o ataque, segurá-los até o amanhecer para que vocês possam voltar com Rá.
Além disso... — Ele deu de ombros. — Se vocês falharem e não pararmos
Apófis, todos nós vamos morrer amanhã de qualquer maneira.
— Isto é que é olhar pelo lado positivo — eu disse.
Então algo me ocorreu: um pensamento tão chocante que era como uma
pequena reação nuclear em minha cabeça.
— Espere. Menshikov disse que ele era descendente dos sacerdotes de
Amon-Rá.
Bes bufou com desprezo.
— Eu odiava aqueles caras. Eles eram tão cheios de si. Mas o que isso tem
a ver com qualquer coisa?
— Não foram os mesmos sacerdotes que lutaram contra Aquenáton e
amaldiçoaram os antepassados de Walt? — perguntei. — E se Menshikov tiver
o segredo da maldição? E se ele puder curar...
— Pare.
A raiva na voz de Walt me pegou de surpresa. Suas mãos tremiam.
— Carter, eu já aceitei o meu destino. Eu não vou criar esperanças por
nada. Menshikov é o inimigo. Mesmo que ele pudesse ajudar, ele não iria.
Se o seu caminho se cruzar com o dele, não tente fazer qualquer acordo.
Não tente argumentar com ele. Faça o que precisa fazer. Acabe com ele.
Olhei para Sadie. Seus olhos estavam brilhando como se eu finalmente
tivesse feito algo certo.
— Ok, Walt — respondi. — Eu não vou falar sobre isso novamente.
Mas Sadie e eu tivemos uma conversa muito diferente em silêncio. Pela
primeira vez, estávamos de total acordo. Nós íamos visitar o Duat. E en-
quanto estivéssemos lá, nós viraríamos a mesa sobre Vlad Menshikov. Nós
o encontraríamos, acabaríamos com ele e o forçaríamos a nos dizer como
curar Walt. De repente, eu me senti muito melhor a respeito dessa missão.
— Então partiremos ao pôr do sol — Zia afirmou. — Walt e eu para o
Brooklyn. Você e Sadie para o Duat. Está resolvido.
— Exceto por uma coisa — Bes olhou para as varetas de senet que Sadie
havia deixado cair no chão. — Você não tirou isto. É impossível!

281
O TRONO DE FOGO

Sadie olhou para baixo. Um sorriso se espalhou pelo seu rosto. Ela aci-
dentalmente tirou um três, exatamente o que precisava para vencer.
Ela movimentou sua última peça para o fim do tabuleiro, em seguida
pegou os óculos brancos de Menshikov e os experimentou. Eles pareciam
assustadores nela. Não pude deixar de pensar na voz arruinada de Menshi-
kov e nos seus olhos cicatrizados, e no que poderia acontecer com a minha
irmã se ela tentasse ler o Livro de Rá.
— Impossível é a minha especialidade — disse ela. — Vamos, querido ir-
mão. Vamos nos preparar para a Grande Pirâmide.

Se você alguma vez visitar as pirâmides, aqui vai uma dica: o melhor lugar
para vê-las é de longe, como o horizonte. Quanto mais perto você chegar,
mais decepcionado você vai ficar.
Isso pode soar duro, mas em primeiro lugar, de perto as pirâmides vão
parecer menores do que você pensava. Todos que as veem dizem isso. Claro,
elas foram as estruturas mais altas na terra por milhares de anos, mas em
comparação com edifícios modernos, elas não parecem tão impressionantes.
Foram despojadas do revestimento de pedras brancas e do topo de ouro que
as tornavam muito legais nos tempos antigos. Elas ainda são bonitas, especi-
almente quando reluzem ao pôr do sol, mas você pode apreciá-las melhor de
bem longe sem ser pego no cenário turístico.
Essa é a segunda questão: a multidão de turistas e vendedores. Não im-
porta onde você passe as férias: Times Square, Piccadilly Circus ou no Coli-
seu Romano. É sempre a mesma coisa, com vendedores oferecendo camise-
tas e bugigangas baratas, e hordas de turistas suados reclamando e se amon-
toando tentando tirar fotos. As pirâmides não são diferentes, exceto que a
multidão é maior e os vendedores são realmente, realmente insistentes. Eles
conhecem um monte de palavras em inglês, mas “não” não é uma delas.
Enquanto nos espremíamos entre multidão, os vendedores tentaram nos
vender três passeios de camelo, uma dúzia de camisetas, mais amuletos do
que Walt estava usando (Preço especial! Boa magia!), e onze dedos genuínos
de múmia, os quais eu imaginei provavelmente serem feitos na China.
Eu perguntei a Bes se ele poderia assustar a multidão, mas ele apenas riu.
— Não vale a pena, garoto. Os turistas têm estado por aqui há quase tanto

282
CARTER

tempo quanto as pirâmides. Vou me certificar de que eles não nos notem.
Vamos apenas chegar ao topo.
Seguranças patrulhavam a base da Grande Pirâmide, mas ninguém ten-
tou nos deter. Talvez Bes tenha nos tornado invisíveis de algum modo, ou
talvez os guardas apenas preferissem ignorar, pois estávamos com o deus
anão. De qualquer maneira, eu logo descobri porque escalar as pirâmides
não era permitido: é difícil e perigoso. A Grande Pirâmide tem por volta de
130 metros de altura. As laterais de pedra não eram feitas para se escalar.
Enquanto subíamos, eu quase caí duas vezes. Walt torceu o tornozelo. Al-
guns dos blocos estavam soltos e se despedaçavam. Alguns dos “degraus”
tinham um metro e meio de altura, e tivemos de nos içar uns aos outros.
Finalmente, depois de vinte minutos de trabalho difícil e suado, chegamos
ao topo. A nuvem de poeira sobre o Cairo fazia tudo ao leste parecer uma
grande mancha difusa, mas a oeste tínhamos uma boa visão do sol se pondo
no horizonte, tingindo o deserto de carmesim.
Tentei imaginar como era a vista aqui há cerca de cinco mil anos, quando
a pirâmide era recém-construída. Teria o faraó Khufu subido até aqui no
topo de sua própria tumba e admirado o seu império? Provavelmente não.
Ele provavelmente era inteligente demais para fazer essa escalada.
— Certo — Sadie atirou sua bolsa no bloco de pedra calcária mais pró-
ximo. — Bes, fique de olho. Walt, ajude-me com o portal, certo?
Zia tocou no meu braço, o que me fez pular.
— Podemos conversar? — ela perguntou.
Ela desceu um pouco na pirâmide. Meu pulso estava acelerado, mas con-
segui acompanhar sem dar nenhum tropeção e parecer um idiota.
Zia olhou para o deserto. Seu rosto ficou corado com luz do pôr do sol.
— Carter, não me entenda mal. Eu aprecio que você tenha me acordado.
Eu sei que seu coração estava no lugar certo.
Meu coração não se sentia no lugar certo. Ele se sentia como se estivesse
preso no meu esôfago.
— Mas...? — perguntei.
Ela se abraçou.
— Eu preciso de tempo. Isto é muito estranho para mim. Talvez nós pos-
samos ser... mais próximos algum dia, mas por enquanto...

283
O TRONO DE FOGO

— Você precisa de tempo — eu disse, minha voz entrecortada. — Supondo


que todos nós não morramos esta noite.
Seus olhos estavam com um brilho dourado. Eu me perguntei se essa era
a última cor que um inseto via quando ficava preso no âmbar, e se o inseto
pensava, “Uau, isso é lindo”, um pouco antes de ser paralisado para sempre.
— Eu vou fazer o meu melhor para proteger a sua casa — ela falou. —
Prometa-me, se você tiver que fazer uma escolha, que você ouvirá seu próprio
coração e não a vontade dos deuses.
— Eu prometo — falei, embora eu duvidasse de mim mesmo.
Eu ainda ouvia Hórus na minha cabeça, incitando-me a reivindicar as
armas do faraó. Queria dizer mais, dizer-lhe como me sentia, mas tudo que
consegui dizerr foi:
— Hum... Sim.
Zia conseguiu dar um sorriso seco.
— Sadie estava certa. Você é... como foi que ela disse? Amavelmente de-
sajeitado.
— Incrível. Obrigado.
Uma luz brilhou sobre nós, e um portal se abriu na ponta da pirâmide.
Diferentemente da maioria dos portais, este não era um turbilhão de areia.
Ele brilhava com a luz púrpura – um portal diretamente para o Duat.
Sadie se virou para mim.
— Esse é para nós. Você vem?
— Tenha cuidado — disse Zia.
— Sim. — falei — Eu não sou muito bom nisso, mas sim.
Enquanto eu marchava para o topo, Sadie puxou Walt para perto e sus-
surrou algo em seu ouvido.
Ele concordou severamente.
— Eu vou.
Antes que eu pudesse perguntar do que se tratava, Sadie olhou para Bes.
— Pronto?
— Eu seguirei vocês — Bes prometeu. — Assim que eu passar Walt e Zia
através do portal deles. Vou encontrá-los no Rio da Noite, na Quarta Casa.
— Quarta o quê? — perguntei.
— Você verá — ele prometeu. — Agora, vão!

284
CARTER

Dei mais uma olhada em Zia, perguntando-me se esta poderia ser a úl-
tima vez que eu a veria. Então, Sadie e eu pulamos para o agitado portal
roxo.

O Duat é um lugar estranho.


[Sadie acabou de me chamar de Capitão Óbvio – mas, ei, vale a pena
dizer.]
As correntes do mundo dos espíritos interagem com seus pensamentos,
puxando você para cá e para lá, moldando o que você vê para se ajustar ao
que você conhece. Assim, ainda que tivéssemos pisado em outro nível de
realidade, parecia o cais do Rio Tâmisa abaixo do apartamento da vovó e do
vovô.
— Isto é grosseiro — disse Sadie.
Eu entendia o que ela queria dizer. Era difícil para ela estar de volta à
Londres depois de sua desastrosa viagem de aniversário. Além disso, no úl-
timo Natal, nós iniciamos nossa primeira viagem para o Brooklyn daqui.
Descemos os degraus para as docas com Amós e embarcamos no seu barco
mágico. Na época, eu estava sofrendo com a perda do meu pai, em estado
de choque que vovó e vovô nos dariam para um tio que eu nem me lem-
brava, e aterrorizado de navegar para o desconhecido. Agora, todos aqueles
sentimentos brotavam dentro de mim, tão fortes e dolorosos como sempre.
O rio estava encoberto com névoa. Não havia as luzes da cidade, apenas
um brilho estranho no céu. A linha do horizonte de Londres parecia fluida
– edifícios se movendo, subindo e derretendo como se eles não pudessem
encontrar um lugar confortável para se estabelecer.
Abaixo de nós, a névoa se afastou das docas.
— Sadie — chamei — olhe.
Na parte inferior da escada, um barco estava atracado, mas não era o de
Amós. Era a barca do deus sol, exatamente como eu tinha visto na minha
visão – outrora um navio régio com uma cabine e lugar para vinte remadores
– mas agora mal conseguia se manter à tona. A vela estava em frangalhos, os
remos quebrados, o cordame coberto com teias de aranha.
No meio dos degraus, bloqueando nosso caminho, estavam vovó e vovô.
— Eles de novo — Sadie resmungou. — Vamos.

285
O TRONO DE FOGO

Ela marchou direto para os degraus até ficarmos cara a cara com as ima-
gens brilhantes de nossos avós.
— Caíam fora — disse-lhes Sadie.
— Minha querida — os olhos da Vovó brilhavam. — Esses são modos de
se dirigir à sua avó?
— Oh, me perdoe — disse Sadie. — Esta deve ser a parte onde eu digo
“Meu Deus, que dentes grandes você tem”. Você não é minha avó, Nekhbet!
Agora, saia do nosso caminho!
A imagem da vovó brilhou. Seu roupão florido se transformou em um
manto de penas pretas oleosas. Seu rosto murchou transformando-se em
uma máscara flácida e enrugada, e a maioria de seus cabelos caíram, o que a
colocou em um 9,5 na escala de feiura, bem no topo ao lado de Bes.
— Mostre-me mais respeito, querida — a deusa cantarolou. — Estamos
aqui apenas para lhe dar um aviso amigável. Você está prestes a passar do
Ponto Sem Retorno. Se pisar no barco, não haverá como voltar atrás – sem
paradas até você ter passado por todas as Doze Casas da Noite, ou até você
morrer.
Vovô concordou:
— Aghh!
Ele coçou a axila, o que poderia significar que ele estava possuído pelo
deus babuíno Babi – ou não, já que esse comportamento não era tão estra-
nho para o vovô.
— Ouça Babi — Nekhbet insistiu. — Vocês não têm ideia do que os espera
no rio. Você mal pôde manter os dois de nós afastados em Londres, menina.
Os exércitos do Caos são muito piores!
— Ela não está sozinha desta vez.
Dei um passo em frente com o cajado e o mangual.
— Agora, sumam.
Vovô rosnou e se afastou.
Os olhos de Nekhbet se estreitaram.
— Você poderia empunhar as armas do faraó? — Seu tom tinha uma pi-
tada de relutante admiração. — Uma jogada ousada, criança, mas isso não
vai te salvar.

286
CARTER

— Você não entendeu — eu disse. — Também estamos te salvando. Esta-


mos salvando a todos nós de Apófis. Quando voltarmos com Rá, você vai
ajudar. Você vai seguir nossas ordens e vai convencer os outros deuses a fazer
o mesmo.
— Ridículo — Nekhbet silvou.
Eu levantei o cajado, e poder fluía por mim – o poder de um rei. O
cajado era o instrumento de um pastor. Um rei conduz o seu povo como
um pastor conduz seu rebanho. Eu impus minha vontade, e os dois deuses
caíram de joelhos.
As imagens de Nekhbet e de vovô evaporaram-se, revelando as formas
verdadeiras dos deuses. Nekhbet era um abutre enorme com uma coroa dou-
rada na cabeça e um elaborado colar de joias em torno de seu pescoço. Suas
asas ainda eram negras e oleosas, mas elas brilhavam como se tivessem sido
envoltas de ouro em pó. Babi era um babuíno cinza gigante com olhos de
fogo vermelhos, caninos em forma de cimitarra, e braços tão grossos como
troncos de árvores.
Ambos me encararam com puro ódio. Eu sabia que se vacilasse por um
único instante, se eu deixasse o poder do cajado esmorecer, eles iriam me
fazer em pedaços.
— Jurem lealdade — ordenei. — Quando voltamos com Rá, vocês o obe-
decerão.
— Você nunca terá sucesso — Nekhbet falou.
— Então não fará nenhum mal jurar a sua lealdade — repliquei. — Jure!
Eu brandi o mangual no ar, e os deuses se encolheram.
— Agh — Babi murmurou.
— Nós juramos — disse Nekhbet. — Mas é uma promessa vazia. Você vai
navegar para sua morte.
Eu cortei o ar com o meu cajado, e os deuses desapareceram na névoa.
Sadie tomou um longo fôlego.
— Muito bem. Você soou confiante.
— Uma completa atuação.
— Eu sei. Agora, a parte difícil: encontrar Rá e acordá-lo. E ter um bom
jantar pelo caminho, de preferência sem morrer.
Olhei para o barco. Thot, o deus do conhecimento, uma vez nos disse

287
O TRONO DE FOGO

que sempre teríamos o poder de invocar um barco quando precisássemos de


um porque nós éramos o sangue dos faraós. Mas eu nunca pensei que seria
este barco, e em estado tão ruim. Duas crianças em uma barcaça quebrada
com vazamentos, sozinhas contra as forças do Caos.
— Todos a bordo — anunciou Sadie.

288
S
A
19. A vingança de Alceu, o deus Alce
D
I
E

DEVO MENCIONAR QUE Carter estava usando uma saia.


[Há! Você não está segurando o microfone. É a minha vez.]
Ele se esqueceu de dizer isso, mas assim que entramos no Duat, a nossa
aparência mudou, e nós nos vimos usando antigos trajes egípcios.
Eles pareciam muito bons em mim. Meu vestido de seda branco brilhava.
Meus braços estavam enfeitados com anéis e pulseiras de ouro. É verdade, o
colar de joias era um pouco pesado, como um daqueles aventais de chumbo
que você pode usar para fazer uma radiografia no dentista, e meu cabelo
estava trançado com spray de cabelo suficiente para petrificar um deus prin-
cipal. Mas por outro lado, eu tenho certeza que eu parecia bastante atraente.
Carter, por outro lado, estava vestido com uma saia masculina, uma sim-
ples capa de linho, com seu cajado e mangual pendurados em uma espécie
de cinto de utilidades de coisas em volta de sua cintura. O peito dele estava
vazio exceto por um colar de ouro no pescoço, como o meu. Seus olhos
estavam delineados com kohl, e ele não usava sapatos.
Para os antigos egípcios, tenho certeza que ele teria parecido nobre e
guerreiro, um belo exemplar da masculinidade. [Você viu? Eu consegui dizer
isso sem rir.] E acho que Carter não estava o pior – parecia um cara sem
camisa, mas isso não significa que eu queria uma aventura pelo submundo
com um irmão que estava vestindo nada além de joias e uma toalha de praia.
À medida que subiu no barco do deus sol, Carter ganhou imediatamente

289
O TRONO DE FOGO

uma lasca em seu pé.


— Por que você está descalço? — perguntei.
— Não foi minha ideia!
Ele estremeceu quando arrancou um pedaço do tamanho de um palito
de dente entre seus dedos.
— Acho que é porque antigos guerreiros lutavam descalços. Sandálias fi-
cavam muito escorregadias de suor e sangue, e tudo mais.
— E a saia?
— Vamos embora, tudo bem?
Isso provou ser mais fácil falar do que fazer.
O barco se afastava do cais, em seguida, ficou preso em um remanso de
alguns metros rio abaixo. Nós começamos a girar em círculos.
— Uma perguntinha. — falei — Você sabe alguma coisa sobre barcos?
— Nada — admitiu Carter.
Nossas velas rasgadas eram tão úteis quanto uma canoa furada. Os remos
estavam quebrados ou arrastando inutilmente na água, e eles pareciam bas-
tante pesados. Eu não via como nós dois poderíamos remar um barco feito
para uma tripulação de vinte mesmo se o rio estivesse calmo. Em nossa úl-
tima viagem através do Duat, o passeio tinha sido mais parecido com uma
montanha russa.
— E quanto àquelas bolas de luz — perguntei. — Gostaria de ter a tripula-
ção que tínhamos no Rainha Egípcia.
— Você pode chamar algumas?
— Certo — eu resmunguei. — Faça as questões difíceis pra mim.
Olhei ao redor do barco, na esperança de detectar um botão que dizia:
“pressione aqui para marinheiros brilhantes!” Não vi nada tão útil. Eu sabia
que o barco do deus Sol uma vez teve uma tripulação de luzes. Eu os tinha
visto na minha visão. Mas como chamá-los?
O pavilhão da barraca estava vazio. O trono de fogo havia desaparecido.
O barco estava em silêncio, exceto pela água borbulhando através das racha-
duras no casco. O giro do navio estava começando a me fazer mal.
Em seguida, uma sensação horrível se apoderou de mim. Uma dúzia de
vozes minúsculas sussurrou na base da minha cabeça: Ísis. Calculista. Envene-
nadora. Traidora.

290
SADIE

Percebi que a minha náusea não era apenas da corrente em espiral. O


navio inteiro estava enviando pensamentos maliciosos para minha cabeça.
As placas debaixo dos meus pés, os trilhos, os remos e equipamento, cada
parte do barco do deus Sol odiava a minha presença.
— Carter, o barco não gosta de mim — eu anunciei.
— Você está dizendo que o barco tem bom gosto?
— Há-há. Quero dizer, ele sente Ísis. Ela envenenou Rá e o forçou ao
exílio, afinal. Este barco se lembra.
— Bem... peça desculpas, ou algo assim.
— Olá, barco — eu disse, sentindo-me tola. — Sinto muito sobre o negócio
do envenenamento. Mas você viu... eu não sou Ísis. Eu sou Sadie Kane.
Traidora, as vozes sussurraram.
— Eu posso ver porque você pensa assim — admiti. — Eu provavelmente
tenho este “cheiro da magia de Ísis” em mim, não é? Mas, honestamente, eu
mandei Ísis empacotada. Ela não mora mais aqui. Meu irmão e eu vamos
trazer Rá de volta.
O barco estremeceu. A dúzia de pequenas vozes se calou, como se pela
primeira vez em suas vidas imortais estivessem verdadeira e devidamente
chocadas. (Bem, eles não tinham me conhecido ainda, tinham?)
— Isso seria bom, não? — arrisquei. — Rá voltar, como nos velhos tempos,
navegando no rio, e assim por diante? Estamos aqui para tornar as coisas
certas, mas para isso precisamos da viagem através das Casas da Noite. Se
vocês pudessem cooperar...
Uma dúzia de brilhantes orbes brilhou para a vida. Eles me rodearam
como um enxame furioso de bolas de fogo, seu calor tão intenso que pensei
que eles iriam queimar o meu vestido novo.
— Sadie — avisou Carter. — Eles não parecem felizes.
E ele se pergunta por que eu o chamava do Capitão Óbvio.
Eu tentei manter a calma.
— Comportem-se — falei severamente para as luzes. — Isso não é por mim.
É por Rá. Se quiserem que o seu faraó volte, vão para as suas posições.
Eu pensei que ia ser assada como um frango tandoori, mas mantive mi-
nha posição. Desde que fui cercada, eu realmente não tive escolha. Exerci
minha magia e tentei dobrar as luzes à minha vontade – do jeito que eu

291
O TRONO DE FOGO

poderia ter feito para transformar alguém em um rato ou um lagarto.


Vocês vão ser úteis, ordenei. Vão fazer os seus trabalhos obedientemente.
Houve um chiado coletivo dentro da minha cabeça, que ou significava
que eu tinha fundido uma junta do cérebro, ou as luzes estavam cedendo.
A tripulação dispersou. Eles assumiram seus postos, transportando cor-
das, consertando as velas, lotando os remos continuamente, e guiando o
leme.
O casco furado gemeu quando o barco virou seu nariz rio abaixo.
Carter exalou.
— Bom trabalho. Você está bem?
Concordei, mas minha cabeça parecia que ainda estava girando em cír-
culos. Eu não tinha certeza se tinha convencido as esferas, ou se estavam
simplesmente passando o tempo, esperando pela vingança. De qualquer ma-
neira, não estava feliz por ter colocado o nosso destino em suas mãos.
Nós navegamos no escuro. A paisagem de Londres se dissolveu. Meu es-
tômago teve aquela sensação de queda livre familiar à medida que passamos
mais fundo no Duat.
— Estamos entrando na Segunda Casa — adivinhei.
Carter agarrou no mastro para se firmar.
— Você quer dizer as Casas da Noite, como mencionou Bes? Quais são
elas, afinal?
Senti-me estranha explicando mitos egípcios para Carter. Eu pensei que
ele poderia estar brincando comigo, mas ele parecia genuinamente confuso.
— Algo que eu li no Livro de Rá. Cada hora da noite é uma casa. Temos
que passar através dos doze estágios do rio, o que representa 12 horas da
noite.
Carter olhou para a escuridão à nossa frente.
— Então, se estamos na Segunda Casa, você quer dizer que uma hora já
passou? Não senti tanto tempo.
Ele estava certo. Isso não aconteceu. Então, novamente, eu não tinha
ideia de como o tempo corria no Duat. Uma Casa da Noite pode não cor-
responder exatamente há uma hora mortal do mundo acima.
Anúbis uma vez me disse que tinha estado na Terra dos Mortos por cinco
mil anos, mas ainda se sentia como um adolescente, como se o tempo não

292
SADIE

tivesse passado.
Eu estremeci. E se nós saltássemos do outro lado do rio da noite e cons-
tatássemos que várias eras haviam passado? Eu tinha acabado de completar
treze anos. Eu não estava pronta para ter mil e trezentos anos.
Também desejei que não estivesse pensado em Anúbis. Toquei o amu-
leto Shen no meu colar. Depois de tudo o que tinha acontecido com Walt,
a ideia de ver Anúbis me fez sentir estranhamente culpada, mas também um
pouco animada. Talvez Anúbis nos ajudasse em nossa jornada. Talvez ele
levasse-me embora para algum lugar privado para um bate-papo como ele
havia feito da última vez que tinha visitado o Duat – um pequeno cemitério
romântico, jantar para dois na Cafeteria Caixão...
Saia dessa, Sadie, pensei. Concentre-se.
Puxei o Livro de Rá da minha bolsa e verifiquei novamente as instruções.
Eu já tinha lido várias vezes, mas elas eram enigmáticas e confusas, como um
livro de matemática. O pergaminho estava repleto de termos como “pri-
meiro do Caos”, “sopro na argila”, “rebanho da noite”, “renascer no fogo”,
“os acres do sol”, “o beijo da faca”, “o jogador de luz” e “o último escarave-
lho” – a maioria das quais não faziam sentido para mim.
Deduzi que enquanto passávamos através das doze etapas do rio, eu teria
que ler as três seções do Livro de Rá em três locais distintos, provavelmente,
para reviver os diferentes aspectos do deus do sol, e cada um dos três aspec-
tos iria nos apresentar algum tipo de desafio. Eu sabia que se eu falhasse –
se eu sequer tropeçasse em uma palavra enquanto lesse os feitiços – eu aca-
baria pior do que Vlad Menshikov. A ideia me aterrorizava, mas eu não po-
dia me debruçar sobre a possibilidade de falha. Simplesmente tinha a espe-
rança de que quando chegasse a hora, os rabiscos do pergaminho fariam
sentido.
A corrente acelerou. Assim fez o vazamento do barco. Carter demons-
trou sua habilidade em magia de combate e convocou um balde e começou
a tirar a água, enquanto eu me concentrava em manter a equipe na linha.
Quanto mais fundo nós navegávamos pelo Duat, mais rebeldes as esferas
brilhantes ficavam. Elas se irritaram contra a minha vontade, lembrando o
quanto eles queriam me queimar.
É irritante flutuar em um rio de magia com vozes sussurrando em sua

293
O TRONO DE FOGO

cabeça: morra traidora, morra. De vez em quando, eu tinha a sensação de que


estávamos sendo seguidos. Eu virava e achava que eu podia ver uma mancha
esbranquiçada contra o negro, como a pós-imagem de um flash, mas decidi
que devia ser a minha imaginação. Ainda mais irritante era a escuridão à
frente – sem litoral, sem marcos, sem visibilidade alguma. A tripulação po-
deria ter nos conduzido direto para uma pedra ou boca de um monstro, e
nós não havíamos tido absolutamente nenhum aviso. Nós apenas continua-
mos a navegar pelo escuro vazio.
— Por que é tão... nada? — Murmurei.
Carter esvaziou seu balde. Ele fazia uma imagem estranha – um rapaz
vestido como um faraó com o cajado real e mangual, tirando a água de um
barco furado.
— Talvez as Casas da Noite sigam padrões do sono humano — sugeriu
ele.
— Padrões o quê?
— Os padrões de sono. Mamãe costumava nos contar sobre eles antes de
dormir. Lembra-se?
Não. Então, novamente, eu só tinha seis anos quando nossa mãe mor-
reu. Ela tinha sido uma cientista, assim como uma maga, e lia as leis de
Newton ou a tabela periódica como histórias para dormir. A maior parte
dela tinha sumido na minha cabeça, mas eu queria lembrar. Sempre me
senti irritada que Carter se lembrasse de minha mãe muito mais que eu.
— O sono tem diferentes etapas — Carter explicou. — Assim como, nas
primeiras horas, o cérebro está quase em um coma, um sono muito pro-
fundo com quase todos os sonhos. Talvez por isso esta parte do rio seja tão
escura e sem forma. Então, mais tarde na noite, o cérebro passa pelo, REM
– movimento rápido dos olhos. Que é quando os sonhos acontecem. Os
sonhos mais loucos e vívidos. Talvez as Casas da Noite sigam um padrão
parecido.
Parecia um pouco forçado para mim. Então, novamente, minha mãe
sempre nos disse que a ciência e a magia não eram mutuamente exclusivas.
Ela as chamou de duas variações da mesma língua. Bastet uma vez nos disse
que havia milhões de diferentes canais e afluentes do rio do Duat. A geogra-
fia pode mudar a cada viagem, respondendo aos pensamentos do viajante.

294
SADIE

Se o rio era moldado por todas as mentes adormecidas no mundo, se o seu


curso ficava mais louco e vívido à medida que a noite seguia, então seria um
passeio difícil.
O rio, eventualmente, se estreitou. A costa apareceu em ambos os lados
– areia vulcânica preta espumando nas luzes da nossa equipe mágica. O ar
ficou mais frio. A parte inferior do barco raspou contra as pedras e bancos
de areia, o que fez o vazamento piorar. Carter desistiu do balde e puxou a
cera de sua bolsa de suprimento. Juntos, nós tentamos concertar o vaza-
mento, recitando magias empáticas para manter o barco em conjunto. Se eu
tivesse qualquer goma de mascar, eu teria usado também.
Não notamos qualquer indicação, agora entrando na terceira casa, de
mudança de Casa, mas nós claramente entramos em uma seção diferente do
rio. O Tempo foi fugindo a um ritmo alarmante, e ainda não tínhamos feito
nada.
— Talvez o primeiro desafio seja o tédio — eu disse. — Quando é que algo
vai acontecer?
Eu deveria saber melhor o que dizer que em voz alta. A nossa frente, uma
forma surgia da escuridão. Um pé de sandálias do tamanho de uma cama de
água plantou-se na proa do nosso navio e nos parou inoperantes na água.
E não era um pé muito bonito. Masculino, definitivamente. Os dedos
estavam sujos de lama, e as unhas eram amarelas, rachadas e compridas. As
tiras da sandália de couro estavam cobertas por líquen e cracas. Resumindo,
o pé tinha aparência e cheiro que sugeriam que ele estivera repousando na
mesma rocha no meio do rio e usando a mesma sandália por vários milhares
de anos.
Infelizmente, o pé estava ligado a uma perna, que estava ligada a um
corpo. O gigante se inclinou para olhar para nós.
— Você está entediada?
A voz trovejou, de uma forma não hostil.
— Eu poderia matá-la, se isso ajudar.
Ele usava uma saia como a de Carter, exceto que a saia do gigante poderia
ter fornecido tecido suficiente para fazer dez velas do navio. Seu corpo era
humanoide e musculoso, coberto com pelos de homem – o tipo de pelo que
me faz querer começar uma fundação de caridade de depilação para homens

295
O TRONO DE FOGO

excessivamente peludos. Ele tinha a cabeça de um carneiro: um focinho


branco com um anel de latão no nariz e chifres longos e encaracolados com
dezenas de sinos de bronze pendurados. Seus olhos eram bem separados,
com luminosas íris vermelhas e fendas verticais. Suponho que tudo soa bem
assustador, mas o homem carneiro não me parecia diabólico. Na verdade,
ele parecia bastante familiar, por algum motivo. Ele parecia mais melancó-
lico do que ameaçador, como se tivesse estado em pé em sua pequena ilha
de pedra no meio do rio por tanto tempo que tinha esquecido por que ele
estava lá.
[Carter perguntou quando me tornei um carneiro sussurrante. Cale a
boca, Carter.]
Eu honestamente senti pena do homem carneiro. Seus olhos estavam
cheios de solidão. Eu não podia acreditar que ele iria nos prejudicar, até que
ele tirou da cintura duas facas com lâminas muito grandes curvas como os
seus chifres.
— Você está calada — ele observou. — Isso é um sim para a morte?
— Não, obrigada! — respondi, tentando soar grata pela oferta. — Uma
palavra e uma pergunta, por favor. A palavra é pedicure. A pergunta é: Quem
é você?
— Ahhh-ha-ha-há — disse ele, berrando como uma ovelha. — Se você sou-
besse meu nome, não precisaríamos de apresentações, e eu poderia deixar
você passar. Infelizmente, ninguém sabe o meu nome. Uma vergonha, tam-
bém. Vejo que você encontrou o Livro de Rá. Você reviveu sua equipe e
conseguiu velejar seu barco para as portas da quarta casa. Ninguém nunca
chegou até aqui antes. Lamento muito que tenho de cortar você em pedaços.
Ele ergueu suas facas, uma em cada mão. Nossas esferas brilhantes enxa-
meavam em um frenesi, sussurrando, Sim! Fatiá-la! Sim!
— Só um segundo — barrei para o gigante. — Se nós nomearmos você,
podemos passar?
— Naturalmente — suspirou. — Mas ninguém pode.
Olhei para Carter. Esta não foi a primeira vez que tínhamos sido inter-
rompidos no rio da Noite e desafiados a nomear um guardião sob pena de
morte. Aparentemente, era uma experiência bastante comum para as almas
egípcias e magos passando pelo Duat. Mas eu não podia acreditar que ia ter

296
SADIE

um teste tão fácil. Eu tinha certeza agora que reconheci o homem carneiro.
Nós tínhamos visto a sua estátua no Museu de Brooklyn.
— É ele, não é? — perguntei para Carter. — O cara que se parece com
Alceu?
— Não o chame de Alceu! — Carter assobiou. Ele olhou para o homem
carneiro gigante e disse: — Você é Khnum, não é?
O homem carneiro fez um som surdo no fundo de sua garganta. Ele
raspou uma de suas facas contra a amurada do navio.
— Isso é uma pergunta? Ou isso é sua resposta final?
Carter piscou.
— Hum...
— Não é nossa resposta final! — Eu gritei, percebendo que quase tínha-
mos entrado em uma armadilha. — Nem de perto. Khnum é o seu nome
comum, não é? Você quer nos dizer seu nome verdadeiro, seu ren.
Khnum inclinou a cabeça, os sinos em seus chifres tilintando.
— Isso seria bom. Mas, infelizmente, ninguém sabe. Mesmo eu esqueci.
— Como você pode esquecer seu próprio nome? — Carter perguntou. —
E, sim, essa é uma pergunta.
— Eu sou parte de Rá — o deus carneiro esclareceu. — Sou o seu aspecto
no submundo, um terço de sua personalidade. Mas quando Rá parou de
fazer sua jornada noturna, ele já não precisava de mim. Me deixou aqui às
portas da quarta casa, descartado como um casaco velho. Agora eu guardo
os portões... não tenho nenhuma outra finalidade. Se eu pudesse recuperar
o meu nome, eu poderia render o meu espírito a quem me libertasse. Eles
poderiam reunir-me com Rá, mas até então, não posso deixar este lugar.
Ele parecia terrivelmente deprimido, como uma ovelha um pouco per-
dida, ou melhor, uma ovelha de dez metros de altura perdida com facas
muito grandes. Eu queria ajudá-lo. Ainda mais do que isso, eu queria encon-
trar uma maneira para não ficar cortada aos pedaços.
— Se você não se lembra do seu nome — falei — por que não podemos
apenas dizer-lhe qualquer nome antigo? Como você saberia se era a resposta
certa ou não?
Khnum deixou seu rastro de facas na água.
— Eu não tinha pensado nisso.

297
O TRONO DE FOGO

Carter olhou para mim como se dissesse Por que você disse a ele?
O deus carneiro baliu.
— Acho que vou reconhecer meu ren quando ouvi-lo — ele decidiu — em-
bora eu não possa ter certeza. Sendo apenas parte de Rá, eu não tenho cer-
teza de muita coisa. Perdi a maioria de minhas memórias, a maioria do meu
poder e identidade. Eu não sou mais do que uma casca de meu antigo eu.
— Seu antigo eu deve ter sido enorme — murmurei.
O deus poderia ter sorrido, embora fosse difícil dizer com a cara de car-
neiro.
— Lamento que você não tenha o meu ren. Você é uma menina brilhante.
Você é a primeira a chegar tão longe. A primeira e melhor.
O carneiro gigante suspirou tristemente.
— Ah, bem. Acho que devemos começar a matança.
A primeira e melhor. Minha mente começou a correr.
— Espere — eu disse. — Eu sei o seu nome.
Carter gritou.
— Você sabe? Diga a ele!
Pensei em uma linha do Livro de Rá – primeiro do Caos. Baseei-me nas
memórias de Ísis, a única deusa que já tinha conhecido o nome secreto de
Rá, e eu comecei a entender a natureza do deus sol.
— Rá foi o primeiro deus a sair do Caos — falei.
Khnum franziu a testa.
— Esse é o meu nome?
— Não, apenas ouça. — eu disse — Você disse que não está completo sem
Rá, apenas uma casca de seu antigo eu. Mas isso é verdade para todos os
outros deuses egípcios também. Rá é mais velho, mais poderoso. Ele é a
fonte original do Maat, como...
— Como a raiz principal dos deuses — Carter ofereceu.
— Certo — eu disse. — Não tenho ideia do que é uma raiz principal, mas,
certo. Todas essas eras, os outros deuses foram enfraquecendo lentamente,
perdendo poder, porque Rá está faltando. Eles podem não admitir, mas Rá
é seu coração. Eles são dependentes dele. Todo esse tempo, fomos pergun-
tando se vale a pena trazer Rá de volta. Nós não sabíamos por que era tão

298
SADIE

importante, mas agora eu entendo.


Carter concordou com a cabeça, lentamente aquecendo com a ideia.
— Rá é o centro do Maat. Ele tem que voltar, se os deuses querer vencer.
— E é por isso que Apófis quer trazer Rá de volta — adivinhei. — Maat e
Caos estão ligados. Se Apófis puder engolir Rá, enquanto o deus-sol está
velho e fraco...
— Todos os deuses morrem — Carter completou. — O mundo se desinte-
gra no Caos.
Khnum virou a cabeça para que ele pudesse me estudar com um olho
vermelho brilhante.
— Isso é tudo bastante interessante — disse ele. — Mas não estou ouvindo
o meu nome secreto. Para acordar Rá, você deve primeiro nomear-me.
Abri o Livro de Rá e respirei fundo. Comecei a ler a primeira parte do
feitiço. Agora, você pode estar pensando: Meu Deus, Sadie. O seu grande teste
foi ler algumas palavras fora de um pergaminho? O que é tão difícil sobre isso?
Se você acha isso, claramente nunca leu um feitiço. Imagine ler em voz
alta no palco na frente de milhares de professores hostis que estão esperando
para lhe dar más notas. Imagine que você só pode ler, olhando para trás do
reflexo em um espelho. Imagine que todas as palavras se misturam ao redor,
e você tem que colocar as sentenças em conjunto na ordem certa que você
lê. Imagine que se cometer um erro, um tropeço, uma pronúncia errada,
você vai morrer. Imagine fazer tudo isso de uma vez, e terá alguma ideia de
como é lançar um feitiço de um pergaminho.
Apesar disso, eu me senti estranhamente confiante. O feitiço de repente
fez sentido.
— Eu nomeio você Primeiro do Caos — recitei. — Khnum, que é Rá, o sol
da tarde. Chamo o seu ba para despertar o Grande, porque eu sou...
Meu erro quase fatal em primeiro lugar: o pergaminho disse algo
como insira o seu nome aqui. E eu quase li em voz alta: “Porque eu sou insira
o seu nome aqui!”
Bem? Teria sido um erro aceitável. Em vez disso, eu consegui dizer:
— Eu sou Sadie Kane, restauradora do trono de fogo. Eu nomeio você
Sopro em Argila, o Carneiro do Rebanho da Noite, o...
Quase perdi novamente. Eu tinha certeza de que o título egípcio dizia o

299
O TRONO DE FOGO

Ceramista Divino. Mas isso não fazia sentido, a menos que Khnum tivesse
poderes mágicos que eu não queria conhecer. Felizmente, me lembrei de
algo do Museu do Brooklyn. Khnum tinha sido descrito como um ceramista
esculpindo um humano de argila.
— O Oleiro Divino. Eu nomeio você Khnum, protetor do Quarto portão.
Eu devolvo seu nome. Retorno a sua essência para Rá.
Os enormes olhos do deus dilataram. As narinas inflaram.
— Sim — ele embainhou sua faca. — Muito bem, minha dama. Você pode
passar para a Quarta Casa. Mas cuidado com as fogueiras, e esteja preparada
para a segunda forma de Rá. Ele não vai estar muito grato por sua ajuda.
— O que você quer dizer? — perguntei.
Mas o corpo do deus carneiro se dissolveu em névoa. O Livro de Rá
sugou os tufos de fumaça e fechou. Khnum e sua ilha tinham ido embora.
O barco derivava em um túnel estreito.
— Sadie — disse Carter — isso foi incrível.
Normalmente, eu teria ficado feliz de surpreender-lhe com o meu brilho.
Mas meu coração estava disparado. Minhas mãos suavam, e pensei que eu
poderia vomitar. Além disso, eu podia sentir a tripulação de esferas brilhan-
tes saindo do seu choque, começando a lutar comigo de novo.
Nenhum corte, eles se queixaram. Nenhum corte!
Pensem em nossos próprios negócios, repeti. E mantenham o barco no curso.
— Hum, Sadie? — Carter perguntou. — Por que seu rosto ficou vermelho?
Pensei que ele estava me acusando de corar. Então eu percebi que ele
também estava vermelho. O barco inteiro estava inundado de luz rubi. Eu
me virei para olhar para frente, e fiz um som na minha garganta não muito
diferente do balido de Khnum.
— Oh, não — eu disse. — Não este lugar de novo.
Cerca de uma centena de metros a frente de nós, o túnel abria em uma
caverna enorme. Eu reconheci o enorme fervente Lago de Fogo, mas da úl-
tima vez, eu não tinha visto por esse ângulo.
Estávamos ganhando velocidade, descendo uma série de corredeiras
como uma lâmina de água. No final das corredeiras, a água se transformou
em uma cachoeira de fogo e caia em linha reta para dentro do lago, aproxi-

300
SADIE

madamente um quilômetro abaixo. Nós estávamos caminhando para o pre-


cipício, com absolutamente nenhuma maneira de parar.
Manter o barco no curso, a tripulação sussurrou com alegria. Manter o barco
no curso!

Nós provavelmente tínhamos menos de um minuto, mas parecia mais. Su-


ponho que se o tempo voa quando você está se divertindo, ele realmente se
arrasta quando você está caminhando para sua morte.
— Temos que virar! — Carter disse. — Mesmo que não fosse o fogo, nós
nunca sobreviveríamos à queda!
Ele começou a gritar com as esferas de luz:
— Vire! Já! Socorro!
Elas alegremente o ignoram.
Olhei da queda de fogo ao esquecimento e ao lago de fogo abaixo. Ape-
sar das ondas de calor rolarem sobre nós como a respiração de um dragão,
eu me senti fria. Percebi que precisava acontecer.
— “Renascer no fogo” — falei.
— O quê? — Carter perguntou.
— É uma linha estabelecida pelo Livro de Rá. Não podemos virar. Temos
de ir adiante, direto para o lago.
— Você está louca? Vamos queimar!
Eu abri minha bolsa mágica e vasculhei meus pertences.
— Temos de levar o barco através do fogo. Essa era parte do renascimento
noturno do sol, certo? Rá teria feito isso.
— Rá não era inflamável!
A cachoeira estava a apenas vinte metros de distância agora. Minhas
mãos tremiam enquanto eu derramava tinta em minha paleta de escrever.
Se você nunca tentou usar um conjunto de caligrafia em pé em um barco,
não é fácil.
— O que você está fazendo? — Carter perguntou. — Escrevendo seus últi-
mos desejos?
Eu respirei fundo e mergulhei minha pena na tinta preta. Visualizei os
hieróglifos que eu precisava. Queria que Zia estivesse conosco. Não apenas

301
O TRONO DE FOGO

por que tínhamos nos dado muito bem no Cairo [Oh, pare de fazer beici-
nho, Carter. Não é minha culpa que ela percebeu que eu sou a incrível da
família], mas porque Zia era uma especialista com símbolos de fogo, e isso
era o que precisávamos.
— Levante seu cabelo — falei para Carter. — Eu preciso pintar a sua testa.
— Eu não estou mergulhando na minha morte com perdedor pintado na
minha cabeça!
— Eu estou tentando salvá-lo. Depressa!
Ele tirou os cabelos para fora do caminho. Eu pintei os hieróglifos de
fogo e escudo na testa, e imediatamente meu irmão explodiu em chamas.
Eu sei, era como um sonho realizado e um pesadelo de uma só vez. Ele
dançou, vomitando alguns palavrões muito criativos antes de perceber que
o fogo não estava machucando-o. Ele estava simplesmente envolto em uma
folha de proteção de chamas.
— O que, exatamente... — seus olhos se arregalaram. — Segure-se em al-
guma coisa!
O barco inclinou enjoativamente sobre a borda das cataratas. Desenhei
os hieróglifos sobre a palma da minha mão, mas não era uma boa cópia. As
chamas balbuciaram fracamente ao meu redor. Infelizmente, eu não tinha
tempo para nada melhor. Passei meus braços em torno da grade, e nós des-
pencamos direto para o lago.

Estranho como muitas coisas podem passar por sua mente enquanto você
cai para determinada desgraça. De cima, o lago de fogo parecia muito bo-
nito, como a superfície do sol. Eu me perguntava se eu sentiria qualquer dor
no momento do impacto, ou se simplesmente evaporaria. Era difícil ver
qualquer coisa à medida que despencamos através das cinzas e fumaça, mas
achei que vi uma ilha familiar cerca de uma milha de distância – o templo
negro, onde conheci Anúbis. Me perguntei se ele podia me ver de lá, e se ele
correria em meu socorro. Gostaria de saber se minhas chances de sobrevi-
vência seriam melhores se fosse para longe do barco e caísse como um mer-
gulhador de penhasco, mas eu não podia me forçar a fazê-lo. Agarrei-me à
grade com todas as minhas forças. Eu não tinha certeza se o escudo de fogo
mágico estava me protegendo, mas eu estava suando intensamente, e estava

302
SADIE

bastante segura de que tinha deixado minha garganta e a maioria dos meus
órgãos internos no topo da cachoeira.
Finalmente, atingimos o fundo com um discreto whoooooooom.
Como descrever a sensação de mergulhar em um lago de fogo líquido?
Bem... isso queimava. E ainda era de alguma forma molhado, também. Eu
não ousava respirar. Após um momento de hesitação, abri meus olhos. Tudo
que eu podia ver eram chamas vermelhas e amarelas girando. Ainda estáva-
mos debaixo d'água... ou debaixo de fogo? Percebi duas coisas: eu não estava
queimando até a morte, e o barco estava em movimento.
Eu não podia acreditar que meus hieróglifos de proteção loucos tinham
realmente funcionado. Enquanto o barco deslizava pelas correntes de turbi-
lhão de calor, as vozes da tripulação sussurraram em minha mente – mais
alegres do que com raiva agora.
Renovar, eles disseram. Nova vida. Nova luz.
Isso parecia promissor, até que eu compreendi alguns fatos menos agra-
dáveis. Eu ainda não conseguia respirar. Meu corpo gostava de respirar.
Além disso, ele estava ficando muito mais quente. Eu podia sentir meu hie-
róglifo de proteção falhando, a tinta queimando contra minha mão. Estendi
a mão cegamente e peguei um braço – Carter, assumi. Ficamos de mãos
dadas, e mesmo que eu não pudesse vê-lo, foi reconfortante saber que ele
estava lá. Talvez tenha sido minha imaginação, mas o calor pareceu dimi-
nuir.
Há muito tempo, Amós tinha-nos dito que éramos mais poderosos jun-
tos. Nós aumentamos a magia do outro apenas por estarmos próximos. Eu
esperava que fosse verdade agora. Tentei enviar meus pensamentos para Car-
ter, pedindo-lhe para me ajudar a manter o escudo de fogo.
O navio navegou através das chamas. Pensei que estávamos começando
a subir, mas poderia ter sido ilusão. Minha visão começou a escurecer. Meus
pulmões estavam gritando. Se eu inalasse fogo, eu me perguntava se eu iria
acabar como Vlad Menshikov.
Justamente quando eu sabia que ia desmaiar, o barco subiu, e nós que-
bramos a superfície.
Eu engasguei – e não apenas porque eu precisava do ar. Nós tínhamos
ancorado na costa do lago fervente, na frente de um portal de calcário de

303
O TRONO DE FOGO

grande porte, como a entrada do templo antigo que eu tinha visto em Luxor.
Eu ainda estava segurando a mão de Carter. Tanto quanto eu poderia dizer,
estávamos bem.
O barco sol estava melhor do que bem. Ele havia sido renovado. Sua vela
brilhava branca, o símbolo do sol brilhava dourado em seu centro. Os remos
foram reparados e polidos. A pintura estava lustrada, preto, dourado e verde.
O casco já não tinha buracos e a barraca era mais uma vez um pavilhão bo-
nito. Não havia trono, e nem Rá, mas a tripulação brilhava intensa e alegre-
mente à medida que amarravam as cordas no cais.
Eu não poderia culpá-la. Joguei meus braços ao redor de Carter e ele
deixou escapar um soluço.
— Você está bem?
Ele se afastou e balançou a cabeça sem jeito. O hieróglifo na testa tinha
queimado.
— Graças a você — disse ele. — Onde...
— Acres Ensolarados — disse uma voz familiar.
Bes desceu os degraus para a doca. Ele vestia uma nova, ainda maior,
camisa havaiana e somente sua sunga na parte de baixo, por isso não posso
dizer que ele era um colírio para os olhos. Agora que ele estava no Duat,
brilhava com bastante energia. Seu cabelo tinha virado mais escuro e crespo,
e seu rosto parecia décadas mais jovens.
— Bes! — exclamei. — Por que você demorou tanto? Como estão Walt e
Zia?
— Eles estão bem. E eu lhe disse que ia encontrá-los na quarta casa.
Ele apontou o dedo polegar em um sinal esculpido no arco de pedra
calcária.
— Costumava ser chamada de Casa de Repouso. Aparentemente, eles
mudaram o nome.
O sinal estava em hieróglifos, mas eu não tinha problemas de lê-lo.
— Casa de Retiro Acres Ensolarados — eu li. — “Antigamente a Casa de
Repouso. Sob nova direção”. O que exatamente...
— Devemos ir — disse Bes. — Antes do seu perseguidor chegar.
— Perseguidor? — Carter perguntou.

304
SADIE

Bes apontou para o alto da cachoeira de fogo, boas centenas de quilôme-


tros distante. No começo, não vi nada. Depois, houve uma sequência de
branco contra as chamas vermelhas – como se um homem em um terno de
sorvete tivesse mergulhado no lago. Aparentemente eu não tinha imaginado
a mancha branca na escuridão. Estávamos sendo seguidos.
— Menshikov? — chutei. — Isso é... Isso é...
— Má notícia — disse Bes. — Agora, vamos lá. Temos de encontrar o deus-
sol.

305
S
A
20. Visitamos a casa da hipopótama
D
prestativa
I
E

HOSPITAIS. SALAS DE AULA. Agora vou adicionar na minha lista de lugares


menos favoritos: casas de pessoas velhas.
Isso pode soar estranho, apesar de eu ter morado com meus avós. Acho
que consideram seu apartamento como uma casa de pessoa velha. Mas eu
quero dizer instituições. Lares de idosos. Esses são os piores. Cheiram como
uma horrível mistura de cantinas, materiais de limpeza e aposentados. Os
presidiários (desculpe, pacientes) sempre parecem tão infelizes. E as casas
têm absurdos nomes felizes, como Acres Ensolarados. Por favor.
Caminhamos pelas portas de calcário em um grande salão aberto – uma
versão egípcia de assistência da vida. Fileiras de colunas pintadas de colorido
estavam repletas de castiçais de ferro segurando tochas em chamas. Palmei-
ras em vasos e plantas floridas de hibisco estavam colocadas aqui e ali em
uma tentativa fracassada de fazer o lugar se sentir alegre. Janelas grandes
tinham vista para o Lago de Fogo, que eu acho que seria uma ótima vista se
você gostasse de enxofre. As paredes foram pintadas da vida egípcia após a
morte, junto com lemas hieroglíficos alegres como imortalidade com segu-
rança e vida começa em 3000!
Empregados de luzes brilhantes e shabti de argila em uniformes médicos

306
SADIE

brancos passavam atarefados, carregando bandejas de medicamentos e em-


purrando cadeiras de rodas. Os pacientes, no entanto, não se agitavam
muito. Uma dúzia de figuras murchas no hospital vestidas de linho sentava
ao redor da sala, olhando distraidamente para o espaço. Alguns vagueavam
pela sala, empurrando suportes de rodinhas com sacos de sangue. Todos
vestiam braceletes com seus nomes em hieróglifos.
Alguns pareciam humanos, mas alguns tinham cabeças de animais. Um
velho com a cabeça de um guindaste balançava para frente e para trás em
uma cadeira dobrável de metal, estragando um jogo de senet em uma mesa
de café. Uma mulher idosa com uma cabeça de leoa grisalha corria ao redor
em uma cadeira de rodas, balbuciando “Miau, miau”. Um homem enrugado
de pele azul não muito mais alto que Bes abraçava uma coluna de calcário e
chorava suavemente, como se estivesse com medo da coluna deixá-lo.
Em outras palavras, a cena era completamente depressiva.
— O que é esse lugar? — perguntei. — São todos deuses?
Carter parecia tão mistificado quanto eu. Bes parecia que estava prestes
a rastejar para fora de sua pele.
— Nunca estive aqui na verdade — ele admitiu. — Ouvi rumores, mas...
Ele engoliu como se estivesse comendo uma colher de manteiga de amen-
doim.
— Vamos lá. Vamos perguntar na estação de enfermagem.
A mesa era um crescente de granito com uma fileira de telefones (embora
eu não pudesse imaginar que eles tinham chamadas do Duat), um computa-
dor, muitas pranchetas e um relógio de sol de pedra, o que parecia estranho,
já que não tinha sol.
Atrás do balcão, uma mulher pequena e gorda estava de costas para nós,
checando uma lousa com nomes e horários de medicações. Seu cabelo preto
brilhante estava trançado em suas costas como uma cauda de castor ex-
tragrande, e seu chapéu de enfermeira mal cabia em sua cabeça larga.
Estávamos no meio do caminho para a mesa quando Bes franziu a testa.
— É ela.
— Quem? — Carter perguntou.
— Isso é ruim — Bes ficou pálido. — Eu devia saber... Maldição! Vocês
terão que ir sem mim.

307
O TRONO DE FOGO

Eu olhei mais de perto a enfermeira, que ainda estava de costas para nós.
Ela parecia um pouco grandiosa, com braços maciços musculosos, um pes-
coço mais grosso que a minha cintura e uma estranha cor de pele arroxeada.
Mas não consegui entender por que ela incomodava tanto Bes.
Virei-me para perguntar a ele, mas Bes tinha se abaixado atrás da planta
de vaso mais próxima. Não era grande o suficiente para escondê-lo, e certa-
mente não camuflava sua camisa havaiana.
— Bes, pare com isso — chamei.
— Shhh! Eu sou invisível!
Carter suspirou.
— Não temos tempo para isso. Vamos, Sadie.
Ele abriu caminho para a estação de enfermagem.
— Com licença — ele chamou através da mesa.
A enfermeira se virou e eu gritei. Tentei conter meu choque, mas isso foi
difícil, sendo que a mulher era um hipopótamo.
Eu não quero dizer como uma comparação pouco lisonjeira. Ela era real-
mente um hipopótamo. Seu focinho longo tinha a forma de um coração de
cabeça para baixo, com bigodes eriçados, narinas pequenas e uma boca com
dois dentes inferiores enormes. Seus olhos eram pequenos e redondos. Ela
vestia seu avental de enfermeira aberto, revelando uma parte superior de
biquíni... como colocar isso delicadamente... que estava tentando cobrir algo
muito grande com muito pouco tecido. Sua barriga roxo-rosada era incrivel-
mente inchada, como se ela estivesse grávida de nove meses.
— Posso ajudar? — ela perguntou.
Sua voz era agradável e gentil – não o que poderia se esperar de um hi-
popótamo. Pensando bem, eu não esperava voz alguma vindo de um hipo-
pótamo.
— Hum, hipo... quer dizer, olá! — gaguejei. — Meu irmão e eu estamos
procurando por...
Olhei para Carter e descobri que ele não estava olhando para o rosto da
enfermeira.
— Carter!
— O quê? — Ele se sacudiu para sair de seu transe. — Certo. Desculpe.
Hã, você não é uma deusa? Taueret, ou algo do tipo?

308
SADIE

A mulher hipopótamo arreganhou seus dois dentes enormes em o que


eu esperava ser um sorriso.
— Ora, como é bom ser reconhecida! Sim, querido. Eu sou Taueret. Você
disse que estavam procurando por alguém? Um parente? Vocês são deuses?
Atrás de nós, o vaso de hibisco farfalhou enquanto Bes o pegava e tentava
se mover para trás de uma coluna. Os olhos de Taueret se esbugalharam.
— Aquele é Bes? — ela chamou. — Bes!
O anão se levantou rapidamente e limpou sua camisa. Seu rosto estava
mais vermelho que o de Set.
— As plantas parecem estar recebendo bastante água — ele murmurou. —
Eu deveria checar aquelas ali.
Ele começou a se afastar, mas Taueret chamou de novo:
— Bes! Sou eu, Taueret! Aqui!
Bes gemeu como se ela o tivesse acertado nas costas. Ele se virou com um
sorriso de tortura.
— Bem... ei. Taueret. Uau!
Ela saiu de trás da mesa, usando sapatos de salto alto que pareciam ino-
portunos para uma mamífera aquática prenha. Ela abriu seus braços gordos
para um abraço, e Bes estendeu a mão para apertar. Eles terminaram fazendo
um tipo estranho de dança, meio um abraço, meio uma sacudida, que fez
uma coisa perfeitamente óbvia para mim.
— Então, vocês dois namoravam? — perguntei.
Bes disparou um olhar cortante para mim. Taueret corou, e foi a pri-
meira vez que eu tinha envergonhado um hipopótamo.
— Há muito tempo atrás... — Taueret se virou para o deus anão. — Bes,
como vai? Depois desse tempo terrível no palácio, temo...
— Bem! — ele gritou. — Sim, obrigado. Bem. Você está bem? Excelente!
Estamos aqui a negócios importantes, como Sadie estava prestes a te dizer.
Ele me chutou na canela, o que achei totalmente desnecessário.
— Sim, certo — falei. — Estamos procurando por Rá, para acordá-lo.
Se Bes tinha esperança de redirecionar a linha de pensamentos de Taue-
ret, o plano funcionou. Taueret abriu sua boca em um ofego silencioso,
como se eu tivesse sugerido algo horrível, como uma caça aos hipopótamos.
— Acordar Rá? — ela disse. — Oh, querida... oh, isso é lamentável. Bes,

309
O TRONO DE FOGO

você está ajudando-os com isso?


— A-ham — ele gaguejou. — Só que, você sabe...
— Bes está nos fazendo um favor — eu disse. — Nossa amiga Bastet pediu
a ele para cuidar de nós.
Eu podia dizer imediatamente que já tinha feito coisas piores. A tempe-
ratura do ar pareceu cair dez graus.
— Entendo — Taueret disse. — Um favor para Bastet.
Não tinha certeza do que disse de errado, mas tentei meu melhor re-
torno.
— Por favor. Olha, o destino do mundo está em jogo. É muito importante
encontrarmos Rá.
Taueret cruzou os braços ceticamente.
— Querida, ele está desaparecido por milênios. E tentar acordá-lo pode
ser terrivelmente perigoso. Por que agora?
— Diga a ela, Sadie — Bes avançou para trás como se estivesse se prepa-
rando para mergulhar no hibisco. — Sem segredos aqui. Taueret é completa-
mente confiável.
— Bes! — Ela se animou imediatamente e vibrou seus cílios. — O que quer
dizer?
— Sadie, fale! — Bes implorou.
E fiz isso. Mostrei a Taueret o Livro de Rá. Expliquei por que precisáva-
mos acordar o deus do sol – a ameaça da ascensão de Apófis, caos e destrui-
ção em massa, o mundo prestes a terminar ao amanhecer, etc. Foi difícil
julgar suas expressões hipopotâmicas [Sim, Carter, tenho certeza que isso é
uma palavra], mas enquanto eu falava, Taueret enrolava seus longos cabelos
pretos nervosamente.
— Isso não é bom — ela falou. — Não é nada bom.
Ela olhou para trás, para seu relógio de sol. Apesar da falta de sol, a agu-
lha projetava uma luz clara sobre o hieróglifo número cinco:

— Vocês estão correndo contra o tempo — ela falou.

310
SADIE

Carter franziu a testa para o relógio de sol.


— Essa não é a Quarta Casa da Noite?
— Sim, querido — Taueret concordou. — Tem nomes diferentes... Acres
Ensolarados, a Casa de Repouso... mas também é a Quarta Casa.
— Então como o relógio de sol pode estar no cinco? — ele perguntou. —
Não teríamos que estar, tipo, congelados na quarta hora?
— Não é assim que funciona, criança — Bes interferiu. — O tempo do
mundo mortal não para de passar só porque estamos na Quarta Casa. Se
você quer seguir a viagem do deus sol, tem que se manter em sintonia com
seu tempo.
Senti uma explicação de quebrar a cabeça por vir. Estava disposta a acei-
tar a feliz ignorância e continuar a procurar Rá, mas Carter, naturalmente,
não deixaria acabar.
— Então o que acontece se ficarmos muito para trás? — ele perguntou.
Taueret checou o relógio de sol de novo, que rastejava lentamente.
— As casas são conectadas aos seus tempos da noite. Você pode ficar em
cada uma quanto quiser, mas só pode entrar ou sair delas perto do tempo
que representam.
— Hum — esfreguei minhas têmporas. — Você tem algum remédio para
dor de cabeça atrás da estação de enfermagem?
— Isso não é tão confuso — disse Carter, só pra ser irritante. — É como
uma porta giratória. Você tem que esperar para abrir e entrar.
— Mais ou menos — Taueret concordou. — Há um pouco de espaço de
manobra com a maioria das Casas. Você pode sair da Quarta Casa, por
exemplo, praticamente quando quiser. Mas certamente as portas são impos-
síveis de passar até seu tempo estar exatamente correto. Você só pode entrar
na Primeira Casa ao pôr-do-sol. Só pode sair da Décima Segunda Casa ao
amanhecer. E as portas da Oitava Casa, a Casa dos Desafios... só podem ser
abertas durante a oitava hora.
— Casa dos Desafios? Já odiei.
— Oh, vocês têm Bes com vocês — Taueret olhou para ele com ar sonha-
dor. — Os desafios não serão problema.
Bes me lançou um olhar de pânico, como, Me salve!
— Mas se vocês levarem muito tempo — Taueret continuou — as portas

311
O TRONO DE FOGO

serão fechadas antes de poderem chegar lá. Vocês ficarão presos no Duat até
amanhã à noite.
— E se não pararmos Apófis — completei — não haverá um amanhã à
noite. Essa parte eu entendi.
— Então você pode nos ajudar? — Carter perguntou para Taueret. — Onde
está Rá?
A deusa mexia no seu cabelo. Suas mãos eram um cruzamento entre hu-
mano e hipopótamo, com pequenos dedos como tocos e unhas espessas.
— Esse é o problema, querido. Eu não sei. A Quarta Casa é enorme. Rá
está provavelmente aqui em algum lugar, mas os corredores e portas conti-
nuam para sempre. Nós temos muitos pacientes.
— Você não mantém um controle sobre eles? — Carter perguntou. — Não
há um mapa ou algo do tipo?
Taueret balançou sua cabeça lamentavelmente.
— Faço o meu melhor, mas só há eu, os shabti e as luzes servidoras... E
aqui tem milhares de deuses velhos.
Meu coração afundou. Eu mal podia acompanhar os dez ou os maiores
deuses que eu conheci, mas milhares? Só nessa sala, contei uma dúzia de pa-
cientes, seis corredores que conduziam a direções diferentes, duas escadas e
três elevadores. Talvez fosse minha imaginação, mas parecia que alguns dos
corredores tinham aparecido desde que entramos na sala.
— Todos esses velhos são deuses? — perguntei.
Taueret assentiu.
— A maioria eram divindades menores mesmo nos tempos antigos. Os
magos não consideravam que valia a pena prendê-los. Ao passar dos séculos,
eles foram deixados de lado, abandonados e esquecidos. Ás vezes eles fazem
seu caminho até aqui. Eles simplesmente esperam.
— Para morrer? — perguntei.
Taueret ficou com um olhar distante em seus olhos.
— Eu queria saber. Ás vezes eles desaparecem, mas não sei se eles simples-
mente se perdem passeando pelos salões, encontram uma nova sala para se
esconder ou realmente desaparecem do nada. A triste verdade é que é tudo
a mesma coisa. Seus nomes ficam esquecidos pelo mundo acima. Uma vez

312
SADIE

que seu nome não é mais falado, o que é bom na vida?


Ela olhou para Bes, como se tentasse dizer alguma coisa para ele.
O deus anão desviou rapidamente.
— Aquela é Menhit, não é? — Ele apontou para uma velha mulher leão
que estava fazendo seu caminho de volta em uma cadeira de rodas. — Ela
tinha um templo perto de Abidos, eu acho. Deusa menor leoa. Sempre era
confundida com Sekhmet.
A leoa rosnou fracamente quando Bes disse o nome de Sekhmet. Então
ela voltou rodando sua cadeira, murmurando,
— Miau, miau.
— História triste — Taueret disse. — Ela veio para cá com seu marido, o
deus Onúris. Eles eram um casal de celebridades nos dias antigos, tão ro-
mânticos. Uma vez ele percorreu todo o caminho de Núbia para resgatá-la.
Eles se casaram. Um final feliz, todos nós pensávamos. Mas os dois foram
esquecidos. Eles vieram para cá juntos. Então Onúris desapareceu. A mente
de Menhit começou a andar depressa depois disso. Agora ela roda sua ca-
deira ao redor da sala à toa todo dia. Ela não consegue se lembrar de seu
próprio nome, mas continuamos lembrando-lhe.
Pensei em Khnum, que eu havia conhecido no rio, e o quão triste ele
parecia, sem saber seu nome secreto. Olhei para a velha deusa Menhit, mi-
ando e rosnando e correndo sem nenhuma memória de sua antiga glória.
Me imaginei tentando cuidar de milhares de deuses como aqueles, idosos
que nunca melhoravam e nunca morriam.
— Taueret, como consegue aguentar isso? — eu disse com admiração. —
Por que você trabalha aqui?
Ela tocou seu chapéu de enfermeira conscientemente.
— Uma longa história, querida. E temos muito pouco tempo. Eu nem
sempre estive aqui. Uma vez eu fui uma deusa protetora. Eu assustava de-
mônios, mas não tão bem quanto Bes.
— Você era muito assustadora — Bes discordou.
A deusa hipopótama sorriu com adoração.
— Isso é tão meigo. Eu também protegia mães dando à luz...
— ...porque você está grávida? — Carter perguntou, acenando para sua
enorme barriga.

313
O TRONO DE FOGO

Taueret pareceu mistificada.


— Não. Por que acha isso?
— Hum...
— Então! — interrompi. — Você estava explicando por que cuida de deu-
ses envelhecendo.
Taueret checou o relógio de sol, e eu fiquei alarmada ao ver o quão rá-
pido a sombra estava rastejando em direção ao seis.
— Sempre gostei de ajudar pessoas, mas no mundo de cima, bem... ficou
claro que eu não era mais necessária.
Ela teve o cuidado de não olhar para Bes, mas o deus anão corou mais
ainda.
— Alguém precisava cuidar dos deuses envelhecendo — Taueret conti-
nuou. — Acho que entendo sua tristeza. Entendo sobre esperar para sem-
pre...
Bes tossiu em seu punho.
— Olha a hora! Sim, sobre Rá. Você já o viu desde que trabalha aqui?
Taueret refletiu.
— É possível. Eu vi um deus com cabeça de falcão em uma sala na ala
sudoeste, oh, há séculos. Pensei que era Nemty, mas é possível que tenha
sido Rá. Às vezes ele gostava de tomar forma de falcão.
— Por onde? — implorei. — Se nos aproximarmos, o Livro de Rá pode ser
capaz de nos guiar.
Taueret se virou para Bes.
— Você está me pedindo isso, Bes? Você realmente acredita que isso é
importante ou só está fazendo isso porque Bastet te pediu?
— Não! Sim! — Ele estufou o rosto desesperado. — Quer dizer, sim, é
importante. Sim, eu estou pedindo. Preciso de sua ajuda.
Taueret puxou uma tocha da arandela mais próxima.
— Nesse caso, por aqui.

Vagamos pelos salões do lar de infinita magia, liderados por uma enfermeira
hipopótama com uma tocha. Realmente, apenas uma noite comum para os
Kane.

314
SADIE

Passamos tantos quartos que eu perdi a conta. A maioria das portas es-
tava fechada, mas algumas estavam abertas, mostrando deuses velhos frágeis
em suas camas, olhando a luz oscilante das televisões ou simplesmente dei-
tados no escuro chorando. Depois de vinte ou trinta dessas salas, parei de
procurar. Era tão depressivo.
Segurei o Livro de Rá, esperando que aquecesse quando nos aproximás-
semos do deus sol, mas sem sorte. Taueret hesitava a cada intersecção. Podia
dizer que ela não tinha certeza para onde estava nos levando.
Depois de alguns corredores e ainda sem nenhuma mudança do rolo,
comecei a me sentir agitada. Carter deveria ter notado.
— Está tudo bem — ele prometeu. — Nós vamos encontrá-lo.
Lembrei o quão rápido o relógio de sol se movendo na estação de enfer-
magem. E pensei sobre Vlad Menshikov. Queria acreditar que ele tinha vi-
rado fritas russas quando caiu no Lago de Fogo, mas provavelmente era
muito para se esperar. Se ele ainda estivesse nos caçando, não poderia estar
muito atrás.
Descemos outro corredor e Taueret franziu a testa.
— Oh, queridos.
Na nossa frente, uma mulher idosa com a cabeça de um sapo estava pu-
lando ao redor. E quando eu disse pulando, quis dizer que ela saltava três
metros, coaxando algumas vezes, então saltou contra a parede e se prendeu
antes de saltar para a parede oposta. Seu corpo e membros pareciam huma-
nos, vestida em um roupão de hospital verde, mas sua cabeça era totalmente
anfíbia – marrom, úmida, e cheia de verrugas. Seus olhos bulbosos viravam
para toda direção e pelo som distraído de seu coaxar, supus que ela estava
perdida.
— Heket saiu de novo — Taueret disse. — Me deem licença por um mo-
mento.
Ela correu para a mulher sapo.
Bes puxou um lenço do bolso de sua camisa havaiana. Ele enxugou sua
testa nervosamente.
— Me perguntava o que tinha acontecido com Heket. Ela é a deusa sapo,
sabe.
— Eu nunca teria adivinhado — Carter disse.

315
O TRONO DE FOGO

Assisti enquanto Taueret tentava acalmar a velha deusa. Ela falava em


tons suaves, prometendo ajudar Heket a encontrar seu quarto se ela parasse
de quicar pelas paredes.
— Ela é brilhante — falei. — Taueret, quer dizer.
— É — Bes concordou. — É, ela é legal.
— Legal? — eu disse. — Bem, ela gosta de você. Por que você é tão...
De repente a verdade bateu na minha cara. Me senti quase tão grossa
quanto Carter.
— Oh, entendi. Ela mencionou o momento horrível no palácio, não é?
Ela foi a que libertou você na Rússia.
Bes enxugou seu pescoço com o lenço. Ele realmente estava suando
muito.
— O q-que fez você dizer isso?
— Por isso você fica tão envergonhado perto dela! Como... — eu estava
prestes a dizer “como quando ela te viu de cuecas”, mas eu duvidava que
significaria muito para o Deus das Sungas. — Como quando ela te viu no
pior momento, e você queria esquecer isso.
Bes olhou para Taueret em uma expressão triste, do jeito que ele tinha
olhado para o palácio do Príncipe Menshikov em São Petersburgo.
— Ela está sempre me salvando — ele disse. — Ela sempre é maravilhosa,
simpática, gentil. Nos tempos antigos, todos assumiram que estávamos na-
morando. Sempre disseram que éramos um casal bonito... os dois deuses
assustadores de demônios, os dois desajustados, seja o que for. Nós saímos
algumas vezes, mas Taueret era tão... tão simpática. E eu tinha uma espécie
de obsessão por outra pessoa.
— Bastet — Carter adivinhou.
Os ombros do deus anão caíram.
— É óbvio, né? É, Bastet. Ela era a deusa mais popular com o povo co-
mum. Eu era o deus mais popular. Então, você sabe, víamos um ao outro
em festivais e tal. Ela era... bem, linda.
Típico dos homens, pensei. Só olhando para aparência. Mas eu deixei
minha boca fechada.
— De qualquer maneira — Bes suspirou — Bastet me tratava como um
irmão menor. Ela ainda faz isso. Não tem nenhum interesse em mim, mas

316
SADIE

levei muito tempo para perceber isso. Estava tão obcecado, eu não fui muito
bom com Taueret ao passar dos anos.
— Mas ela foi te resgatar na Rússia — lembrei.
Ele assentiu.
— Mandei pedidos de socorro. Pensei que Bastet viria me ajudar. Ou
Hórus. Ou alguém. Eu não sabia onde estavam todos eles, entende, mas eu
tinha muitos amigos nos dias antigos. Achei que alguém apareceria. A única
que fez isso foi Taueret. Ela arriscou sua vida entrando furtivamente no pa-
lácio durante o casamento anão. Ela viu a coisa toda... me viu sendo humi-
lhado na frente do grande povo. Durante a noite, ela quebrou minha jaula
e me libertou. Devo tudo a ela. Mas uma vez que estive livre... eu apenas
fugi. Fiquei tão envergonhado, não conseguia olhar para ela. Toda hora pen-
sava nela, pensava sobre aquela noite e ouvia os risos.
O pânico em sua voz era bruto, como se ele estivesse descrevendo algo
que tivesse acontecido ontem, não três séculos atrás.
— Bes, não é culpa dela — falei gentilmente. — Ela se preocupa com você.
É óbvio.
— É tarde demais — ele disse. — Eu a machuquei muito. Queria voltar no
tempo, mas...
Ele hesitou. Taueret estava andando na nossa direção, levando a deusa
sapo pelo braço.
— Agora, querida — Taueret disse — só venha conosco, e nós vamos en-
contrar a sua sala. Não há necessidade de pular.
— Mas é um pulo de fé — Heket coaxou. — Meu templo está aqui em
algum lugar. Ficava em Qus. Cidade adorável.
— Sim, querida — Taueret disse. — Mas seu templo se foi agora. Todos os
templos se foram. Você tem um ótimo quarto, apesar...
— Não — Heket murmurou. — Os sacerdotes terão sacrifícios para mim.
Eu tenho que...
Ela fixou seus olhos amarelos enormes em mim, e entendi como uma
mosca deve se sentir antes de ser arrebatada por uma língua de sapo.
— Essa é minha sacerdotisa! — Heket disse. — Ela veio me visitar.
— Não, querida — Taueret disse. — Essa é Sadie Kane.
— Minha sacerdotisa.

317
O TRONO DE FOGO

Heket afagou meu ombro com sua mão úmida e cheia de membranas, e
fiz o meu melhor para não me encolher.
— Diga ao templo para começarem sem mim, tudo bem? Vou me juntar
a eles depois. Você vai dizer a eles?
— Hum, sim. Claro, Lady Heket.
— Bom, bom — seus olhos saíram de foco. — Estou com muito sono agora.
Trabalho duro, lembrando...
— Sim, querida — Taueret concordou. — Por que você não vai se deitar
em um daqueles quartos agora?
Ela guiou Heket para dentro do quarto vago mais próximo.
Bes seguiu-a com os olhos tristes.
— Sou um anão horrível.
Talvez eu devesse ter tranquilizado-o, mas minha mente estava correndo
em outros assuntos. Comecem sem mim, Heket havia dito. Um pulo de fé.
De repente achei difícil respirar.
— Sadie? — Carter perguntou. — O que há de errado?
— Sei por que o pergaminho não está nos guiando — eu disse. — Tenho
que começar da segunda parte do encantamento.
— Mas não estamos lá ainda — Carter disse.
— E não vamos chegar lá a menos que eu comece o encantamento. É a
parte de encontrar Rá.
— O que é?
Taueret apareceu ao lado de Bes e quase assustou o anão para fora de
sua camisa havaiana.
— O encantamento — falei. — Tenho que dar um pulo de fé.
— Acho que a deusa sapo te infectou — Carter atormentou.
— Não, seu burro! — falei — Esse é o único jeito de encontrar Rá. Tenho
certeza disso.
— Ei, criança — Bes disse — se você começar esse encantamento, e não
encontrarmos Rá no momento em que você terminar de ler isso...
— Eu sei. O encantamento vai sair pela culatra.
Quando eu disse sair pela culatra, quis dizer literalmente. Se o encanta-
mento não achasse o alvo apropriado, o poder do Livro de Rá poderia ex-
plodir na minha cara.

318
SADIE

— É o único jeito — insisti. — Não temos tempo para passear pelos salões
para sempre, e Rá só vai aparecer se o invocarmos. Temos que tomar o risco.
Vocês vão ter que me levar. Não posso tropeçar nas palavras.
— Você tem coragem, querida — Taueret segurou sua tocha. — Não se
preocupe, vou te guiar. Só faça a sua leitura.
Abri o pergaminho na segunda seção. As linhas de hieróglifos, que outra
vez pareciam frases soltas, agora faziam todo sentido.
— Eu invoco o nome de Rá — li alto — o rei adormecido, senhor do Sol
do meio dia, que se senta sobre o trono de fogo...
Bem, essa é a ideia. Eu descrevi como Rá se ergueu do mar do Caos.
Lembrei de sua luz brilhando sobre a terra original do Egito, trazendo vida
ao Vale do Nilo. Enquanto eu lia, me sentia aquecida.
— Sadie — Carter disse — você está fumegando.
É difícil não ficar em pânico quando alguém faz um comentário como
esse, mas percebi que Carter estava certo. A fumaça estava ondulando para
fora do meu corpo, formando uma coluna de cinza que descia pelo corredor.
— É minha imaginação — Carter perguntou — ou a fumaça está nos mos-
trando o caminho? Ai!
Ele disse essa última parte porque eu pisei no pé dele, que eu podia fazer
muito bem sem quebrar minha concentração. Ele captou a mensagem: Cale
a boca e comece a andar.
Taueret pegou meu braço e me guiou para frente. Bes e Carter nos acom-
panharam como guardas de segurança. Seguimos a trilha de fumaça por mais
dois corredores e subimos um lance de escadas. O Livro de Rá ficou descon-
fortavelmente quente em minhas mãos. A fumaça do meu corpo começou a
ocultar as letras.
— Você está indo bem, Sadie — Taueret disse. — Esse corredor me parece
familiar.
Eu não sabia como ela poderia dizer, mas fiquei focada no pergaminho.
Descrevi o barco do sol de Rá navegando por todo o céu. Falei de sua sabe-
doria majestosa e das batalhas que ele venceu contra Apófis.
Uma gota de suor escorreu por meu rosto. Meus olhos começaram a ar-
der. Esperava que eles não estivessem literalmente em chamas.
Quando cheguei à linha “Rá, o apogeu do sol...” percebi que havíamos

319
O TRONO DE FOGO

parado em frente a uma porta. Ela não parecia nada diferente das outras
portas, mas a abri e entrei. Eu fiquei lendo, embora estivesse chegando perto
do fim do encantamento bem rápido.
Lá dentro, a sala estava escura. Sob a luz crepitante da tocha de Taueret,
eu vi o homem mais velho do mundo dormindo na cama – seu rosto enru-
gado, seus braços como gravetos, sua pele tão translúcida que eu conseguia
ver cada veia. Algumas múmias de Bahariya pareciam mais vivas que essa
casca velha.
— A luz de Rá retorna — li.
Acenei a cabeça para a janela de cortinas pesadas e felizmente Bes e Car-
ter pegaram a mensagem. Eles puxaram as cortinas, e a luz vermelha do Lago
de Fogo inundou a sala. O velho não se mexeu. Sua boca estava com os
lábios franzidos como se tivessem sido costurados.
Me movi para sua cabeceira e fiquei lendo. Descrevi Rá acordando ao
amanhecer, se sentando em seu trono enquanto seu barco subia o céu, as
plantas se virando na direção do calor do sol.
— Não está funcionando — Bes murmurou.
Fiquei em pânico. Só faltavam duas linhas. Eu podia sentir o poder do
encanto aumentando, começando a superaquecer meu corpo. Eu ainda es-
tava fumegando, e não gostava do cheiro de Sadie grelhada. Tinha que acor-
dar Rá ou eu queimaria viva.
A boca do deus... É claro.
Coloquei o rolo na cama de Rá e fiz o possível para deixá-lo aberto com
uma mão.
— Eu canto os louvores do deus sol.
Estiquei minha mão livre para Carter e estalei os dedos.
Graças a Deus, Carter entendeu.
Ele vasculhou minha bolsa e me passou a lâmina netjeri de obsidiana de
Anúbis. Se havia um momento para a Abertura da Boca, era aquele.
Toquei a faca nos lábios do velho e falei a última linha do encantamento:
— Acorde, meu rei, com o novo dia.
O velho ofegou. Fumaça espiralava de sua boca como se ele tivesse virado
um aspirador de pó, e a magia do encantamento canalizou dentro dele. Mi-
nha temperatura voltou ao normal. Eu quase desmaiei de alívio.

320
SADIE

Os olhos de Rá se abriram. Com fascínio horrorizado, vi quando o san-


gue começou a fluir em suas veias novamente, lentamente inflando-o como
um balão de ar quente.
Ele se virou para mim, seus olhos fora de foco e leitosos com cataratas.
— Hã?
— Ele ainda parece velho — Carter disse nervoso. — Não era para ele su-
postamente parecer jovem?
Taueret fez uma reverência para o deus do sol (que você não deve tentar
em casa se você é uma hipopótama grávida) e sentiu a testa de Rá.
— Ele ainda não está totalmente — ela disse. — Vocês vão precisar com-
pletar a jornada da noite.
— E a terceira parte do encantamento — Carter adivinhou. — Ele tem
mais um aspecto, certo? O escaravelho?
Bes balançou a cabeça, embora ele não parecesse extremamente otimista.
— Khepri, o besouro. Talvez se nós encontrarmos a última parte de seu
espírito, ele possa nascer devidamente.
Rá abriu um sorriso desdentado.
— Eu gosto de zebras!
Eu estava tão cansada que me perguntei se tinha ouvido direito.
— Desculpa, você disse zebras?
Ele sorriu para nós como uma criança que tinha acabado de descobrir
algo magnífico.
— Os wallabies estão doentes.
— Ceeerto — Carter disse. — Talvez ele precise desses...
Carter pegou o cajado e o mangual de seu cinto. Ele ofereceu-os para Rá.
O deus velho puxou o cajado para sua boca e começou a chupá-lo como uma
chupeta.
Comecei a me sentir preocupada, e não só pela condição de Rá. Quanto
tempo havia passado, e onde estava Vlad Menshikov?
— Vamos levá-lo para o barco. — falei — Bes, você pode...
— Sim. Com licença, Lorde Rá. Vou ter que te carregar.
Ele tirou o deus sol da cama e disparamos do quarto. Rá não podia pesar
muito, e Bes não teve nenhuma dificuldade apesar de suas pernas curtas.
Corremos corredor abaixo, refazendo nossos passos, enquanto Rá berrava.

321
O TRONO DE FOGO

— Wheeee! Wheeee! Wheeee!


Talvez ele estivesse tendo uma boa hora, mas eu estava morta. Passamos
por tanta dificuldade, e esse era o tipo de deus que tínhamos acordado? Car-
ter parecia tão terrível quanto eu.
Passamos correndo pelos outros deuses decrépitos, que começaram a fi-
car totalmente animados. Alguns apontaram e fizeram ruídos gorgolejantes.
Um deus velho com cabeça de chacal sacudiu seu braço e gritou:
— Aí vem o sol! Lá vai o sol!
Invadimos o saguão e Rá disse:
— Oh-oh. Oh-oh no chão.
Sua cabeça reclinou. Achava que ele queria descer. Então percebi que ele
estava olhando para alguma coisa. No chão, próximo ao meu pé, estava um
colar prateado brilhante: um amuleto familiar em forma de cobra.
Para alguém que estava fumegando calor alguns minutos atrás, eu de re-
pente me senti terrivelmente fria.
— Menshikov. — falei — Ele esteve aqui,
Carter invocou sua varinha e vasculhou a sala.
— Mas onde ele está? Por que ele só derrubaria isso e fugiria?
— Ele deixou isso de propósito — imaginei. — Ele queria nos insultar.
Assim que eu disse, soube que era verdade. Eu quase pude ouvir Mens-
hikov rindo enquanto continuava sua jornada rio abaixo, nos deixando para
trás.
— Temos que pegar o barco! Rápido, antes...
— Sadie — Bes apontou para a estação de enfermagem.
Sua expressão estava severa.
— Oh, não — Taueret disse. — Não, não, não...
No relógio de sol, a sombra da agulha estava apontando para o oito. O
que significava que se nós ainda pudéssemos deixar a Quarta Casa, mesmo
se conseguíssemos entrar na Quinta, Sexta, e Sétima Casa, não importava.
De acordo com o que Taueret nos dissera, as portas da Oitava Casa já esta-
riam fechadas.
Não foi à toa que Menshikov tinha nos deixado aqui sem se preocupar
em lutar contra nós.
Nós já tínhamos perdido.

322
C
A
21. Ganhamos algum tempo
R
T
E
R

DEPOIS DE DIZER ADEUS À ZIA na Grande Pirâmide, eu não pensava que po-
deria ficar mais deprimido. Eu estava errado.
Parado no cais do Lago de Fogo, eu senti que poderia muito bem fazer
uma bala de canhão na lava. Não era justo. Nós tínhamos chegado até aqui
e nos arriscamos demais só para sermos derrotados por um limite de
tempo. Game over. Como alguém teria sucesso em trazer Rá de volta? Era im-
possível.
Carter, isso não é um jogo, a voz de Hórus disse de dentro de minha ca-
beça. Não é suposto que seja possível. Você deve continuar.
Eu não vejo por que. Os portões da Oitava Casa já estavam fechados.
Menshikov havia partido e nos deixado para trás.
Talvez esse fosse seu plano o tempo todo. Ele nos tinha deixado acordar
Rá apenas parcialmente, então o deus do sol permaneceria velho e fraco.
Então Menshikov nos deixaria presos no Duat, enquanto usava qualquer
magia maligna que tinha planejado para libertar Apófis. Quando o amanhe-
cer viesse, não haveria sol, nem retorno de Rá. Ao invés disso, Apófis subiria
e destruiria a civilização.
Nossos amigos teriam lutado durante a noite toda por nada. Vinte e qua-
tro horas a partir de agora, quando finalmente conseguíssemos sair do Duat,
encontraríamos o mundo nas trevas, um deserto gelado, governado por Apó-
fis. Tudo que importa para nós não existiria mais. Apófis poderia engolir Rá

323
O TRONO DE FOGO

e completar sua vitória.


Porque deveríamos continuar indo em frente quando a batalha estava
perdida?
Um general nunca mostra desespero, Hórus disse. Ele induz confiança em suas
tropas. Ele os leva à frente, mesmo à boca da morte.
Você é animador, pensei. Quem o convidou de volta à minha cabeça?
Mas tão irritante como Hórus era, ele tinha um objetivo. Sadie tinha
falado sobre a esperança – sobre acreditarmos que poderíamos tirar o Maat
do Caos, mesmo que parecesse impossível. Talvez fosse tudo o que podería-
mos fazer: continuar tentando, continuar acreditando que poderíamos sal-
var alguma coisa do desastre.
Amós, Zia, Walt, Jaz, Bastet, e nossos jovens iniciados... todos eles con-
taram conosco. Se nossos amigos ainda estiverem vivos, eu não poderia de-
sistir. Eu devia a eles mais do que isso.
Taueret nos acompanhou até a Barca Solar, enquanto um par de
seus shabti transportavam Rá a bordo.
— Bes, sinto muito — disse ela. — Eu gostaria que houvesse mais o que eu
pudesse fazer.
— Não é sua culpa — Bes estendeu a mão como se quisesse apertar a dela,
mas quando seus dedos a tocaram, ele retirou sua mão. — Taueret, nunca foi
sua culpa.
Ela fungou.
— Oh, Bes...
— Wheee! — Rá interrompeu, quando os shabti colocaram-no no barco. —
Veja as zebras! Wheee!
Bes pigarreou.
— Você... você deve ir. Talvez Aaru providencie uma resposta.
— Aaru? — perguntei. — Quem é esse?
Taueret não sorriu, exatamente, mas seus olhos suavizaram com bon-
dade.
— Não quem, meu querido. Onde. É a Sétima Casa. Diga olá a seu pai.
Meu ânimo melhorou um pouco.
— Papai vai estar lá?

324
CARTER

— Boa sorte, Carter e Sadie.


Taueret beijou a nós dois no rosto, o que pareceu como ser atingido
lateralmente por um dirigível simpático, eriçado e ligeiramente úmido.
A deusa olhou Bes, e eu tinha certeza de que ela iria chorar. Então ela se
virou e correu até a escada, seus shabti atrás dela.
— Os wallabies estão doentes — disse Rá, pensativo.
Com essa frase de sabedoria divina, nós embarcamos na Barca. As luzes
brilhantes da tripulação manejaram os remos, e a Barca Solar se afastou do
cais.
— Comer — Rá começou a mastigar um pedaço de corda.
— Não, você não pode comer isso, seu velho imbecil — Sadie censurou.
— Hum, criança? — Bes chamou. — Talvez você não devesse chamar o rei
dos deuses de velho imbecil.
— Bem, ele é — disse Sadie. — Vamos lá, Rá. Venha para dentro da tenda.
Eu quero ver uma coisa.
— Sem tenda — ele murmurou. — Zebras.
Sadie tentou agarrar seu braço, mas ele se arrastou para longe dela e mos-
trou sua língua. Por fim, ela pegou o cajado do faraó do meu cinto (sem
pedir, é claro) e o balançou como um osso de cachorro.
— Quer o cajado, Rá? Cajado gostoso?
Rá esticou o braço fracamente. Sadie se moveu para trás e finalmente
conseguiu persuadir Rá a entrar no pavilhão. Logo que chegou ao palanque
vazio, uma luz brilhante explodiu ao redor dele, me cegando completa-
mente.
— Carter, olhe! — Sadie exclamou.
— Gostaria que eu pudesse — Pisquei meus olhos até poder ver nova-
mente.
Sobre o estrado estava uma cadeira de ouro fundido, um trono flame-
jante esculpido com hieróglifos branco brilhantes. Era exatamente igual ao
que Sadie havia descrito na sua visão, mas na vida real era a peça de mobília
mais bonita e assustadora que já vira. As luzes da tripulação zumbiam em
torno dele em excitação, mais brilhantes do que nunca.
Rá parecia não ter notado o trono, ou ele não se importava. Seu jaleco
de hospital tinha se transformado em vestes reais com um colar de ouro,

325
O TRONO DE FOGO

mas ele ainda parecia o mesmo velho sem vida.


— Sente-se — Sadie disse a ele.
— Não quero cadeira — murmurou.
— Isso foi quase uma sentença completa — animei. — Talvez seja um bom
sinal?
— Zebras! — Rá agarrou o cajado de Sadie e mancou pelo convés, gri-
tando: — Wheee! Wheee!
— Lorde Rá! — Bes chamou. — Cuidado!
Considerei a ideia de amarrar o deus-sol antes que ele pudesse cair do
barco, mas eu não sei como a tripulação reagiria a isso. Então Rá resolveu
nosso problema por nós. Ele se chocou contra o mastro e caiu no convés.
Todos correram até ele, mas o velho deus parecia apenas atordoado.
Ele babava e murmurava enquanto nós o arrastamos de volta para o pa-
vilhão e o colocamos em seu trono. Foi complicado, pois o trono emitia
calor de cerca de mil graus, e eu não queria pegar fogo (de novo); mas o calor
parecia não incomodar Rá.
Nós recuamos e olhamos para o rei dos deuses, caído em sua cadeira
roncando, e segurando seu cajado como um ursinho de pelúcia. Coloquei o
mangual em seu colo, esperando que ele pudesse fazer a diferença – talvez
complete seus poderes ou algo assim. Não tive essa sorte.
— Wallabies doentes — Rá murmurou.
— Contemplem — Sadie disse amargamente. — O glorioso Rá.
Bes lançou um olhar irritado.
— Isso mesmo, criança. Divirta-se. Nós deuses adoramos ter mortais
rindo de nós.
A expressão de Sadie se suavizou.
— Sinto muito, Bes. Eu não quis dizer...
— Tanto faz.
Ele saiu com raiva para a proa do barco.
Sadie me deu um olhar implorando.
— Sinceramente, eu...
— Ele só está estressado — tranquilizei-a — como todos nós. Vai ficar tudo
bem.
Sadie limpou uma lágrima de seu rosto.

326
CARTER

— O mundo está prestes a terminar, nós estamos presos no Duat, e acha


que vai ficar tudo bem?
— Nós estamos indo ver o papai. — Eu tentei soar confiante, apesar de eu
não sentir isso. Um general nunca mostra desespero. — Ele vai nos ajudar.
Navegamos pelo Lago de Fogo até as margens estreitas e o curso das cha-
mas voltou para a água. O brilho do lago desapareceu atrás de nós. O rio
ficou mais rápido, e eu sabia que tínhamos entrado na Quinta Casa.
Pensei em meu pai, e se ele iria ou não ser realmente capaz de nos ajudar.
Nos últimos meses, ele tinha estado estranhamente silencioso.
Acho que não deveria ter me surpreendido, pois agora ele era o Senhor
do Submundo. Provavelmente ele não conseguiu um bom sinal de celular
aqui em baixo. Ainda assim, a ideia de vê-lo no momento de minha maior
falha me deixou nervoso.
Apesar de o rio estar escuro, o Trono de Fogo era quase brilhante demais
para se olhar. Nosso barco projetava luz e calor ao longo das margens.
Em ambas as margens do rio, aldeias fantasmas surgiram na escuridão.
Almas perdidas correram para a beira do rio para nos ver passar. Depois de
tantos milênios na escuridão, eles olharam surpresos ao ver o deus-sol. Mui-
tos tentaram gritar de alegria, mas suas bocas não faziam nenhum som. Ou-
tros estendiam seus braços em direção a Rá. Eles sorriram quando se aque-
ceram com a sua luz quente. Suas formas pareciam se solidificar. A cor vol-
tou a seus rostos e suas roupas. Quando eles desapareceram atrás de nós na
escuridão, fiquei com a imagem de seus rostos agradecidos e mãos estendi-
das.
De alguma forma, isso me fez sentir melhor. Pelo menos tínhamos mos-
trado a eles o sol uma última vez antes que o Caos destruísse o mundo.
Eu me perguntei se Amós e nossos amigos ainda estavam vivos, defen-
dendo a Casa do Brooklyn contra o esquadrão de ataque de Vlad Menshikov
e esperando por nós para se mostrarem. Queria poder ver Zia novamente,
só para me desculpar por ter falhado com ela.
A Quinta e a Sexta Casa passaram rapidamente, embora eu não pudesse
ter certeza de quanto tempo realmente passou. Nós vimos mais aldeias fan-
tasmas, praias feitas de ossos, cavernas inteiras onde ba alados voavam ao
redor em confusão, batendo nas paredes e voando ao redor da Barca Solar

327
O TRONO DE FOGO

como mariposas em torno da luz da varanda. Navegamos em algumas corre-


deiras assustadoras, embora as luzes da tripulação fizessem parecer fácil. Al-
gumas vezes monstros como dragões emergiram do rio, mas Bes gritou
“Boo!” e os monstros choramingaram e afundaram sob as águas. Rá dormiu
o tempo todo, roncando irregularmente em seu trono flamejante.
Finalmente, as águas desaceleraram e o rio se alargou. A água ficou tão
calma quanto chocolate derretido. A Barca Solar entrou em uma nova ca-
verna, e o teto resplandecia acima com cristais azuis, refletindo a luz de Rá
de modo que parecia que o sol comum estava atravessando um céu azul bri-
lhante. Grama e palmeiras cobriam a costa. Mais longe, colinas verdes on-
duladas estavam pontilhadas de casas de tijolos brancos de aparência acon-
chegante. Um bando de gansos voava acima. O ar cheirava a jasmim e pão
assado fresco. Meu corpo todo relaxou – do jeito que você pode se sentir
depois de uma longa viagem, quando você caminha para sua casa e, final-
mente, desmorona em sua cama.
— Aaru — Bes anunciou.
Ele não soava tão mal-humorado agora. As linhas de preocupação em seu
rosto desapareceram.
— A vida após a morte do Egito. A Sétima Casa. Acho que você chamaria
isso de Paraíso.
— Não que eu esteja me queixando — Sadie disse. — É muito mais agra-
dável que os Acres Ensolarados, e sinto cheiro de comida decente, final-
mente. Mas isso significa que estamos mortos?
Bes balançou a cabeça.
— Esta era uma parte da rota noturna de Rá, seu pit stop, acho que você
poderia chamar assim. Ele iria sair por um tempo com seu anfitrião, comer,
beber e descansar antes do último trecho da viagem, que era o mais perigoso.
— Seu anfitrião? — perguntei, mesmo tendo certeza de quem Bes queria
dizer.
Nosso barco se virou para um cais, onde um homem e uma mulher esta-
vam esperando por nós. Papai usava seu habitual traje marrom. Sua pele
brilhava com um tom azulado. Mamãe brilhava em um branco fantasmagó-
rico, seus pés não tocavam completamente as tábuas.
— É claro — Bes disse. — Esta é a Casa de Osíris.

328
CARTER

— Sadie, Carter.
Papai nos puxou para um abraço como se nós ainda fôssemos crianças,
mas nenhum de nós protestou. Ele aparentava ser sólido e humano, tão pa-
recido com sua natureza antiga que tomou toda a minha força de vontade
para não cair em lágrimas. Seu cavanhaque estava bem aparado. Sua cabeça
careca cintilava. Até mesmo seu perfume cheirava igual: o cheiro fraco de
âmbar.
Ele nos colocou a distância dos braços para nos examinar, seus olhos
brilhando. Eu quase podia acreditar que ele ainda era um mortal comum,
mas se eu olhasse de perto, podia ver uma outra camada de sua aparência,
como uma imagem difusa, sobreposta: um homem de pele azul em vestes
brancas e uma coroa de faraó. Em volta de seu pescoço tinha um amu-
leto djed, o símbolo de Osíris.
— Papai — falei. — Nós falhamos.
— Shh — ele respondeu. — Nada disso. Este é um tempo para descansar e
renovar.
Mamãe sorriu.
— Nós estivemos assistindo seu progresso. Vocês dois foram tão corajo-
sos.
Vê-la era ainda mais difícil do que ver papai. Eu não podia abraçá-la,
porque ela não tinha nenhuma substância física, e quando tocou o meu
rosto, parecia nada mais que uma brisa morna. Ela aparentava exatamente
como eu me lembrava – cabelos loiros soltos na altura dos ombros, olhos
azuis cheios de vida – mas ela era apenas um espírito agora. Seu vestido
branco parecia ser tecido a partir de neblina. Se eu olhasse diretamente para
ela, ela parecia se dissolver à luz da Barca Solar.
— Estou tão orgulhosa de vocês dois — ela falou. — Venha, nós prepara-
mos um banquete.
Eu estava em um transe quando eles nos levaram para terra firme. Bes
encarregou-se de levar o deus-sol, que parecia de bom humor depois de bater
a cabeça no mastro e tirar um cochilo. Rá deu a todos um sorriso desdentado
e disse:
— Oh, excelente. Banquete? Zebras?

329
O TRONO DE FOGO

Criados fantasmas em roupas do Antigo Egito nos conduziram em dire-


ção a um pavilhão ao ar livre revestido com estátuas dos deuses em tamanho
natural. Atravessamos uma ponte sobre um fosso cheio de crocodilos albi-
nos, o que me fez pensar em Filipe da Macedônica, e o que poderia estar
acontecendo na Casa do Brooklyn.
Então entrei no interior do pavilhão, e meu queixo caiu.
O banquete se espalhava em uma longa mesa de mogno – nossa antiga
mesa de jantar da casa em Los Angeles. Eu até podia ver o entalhe que eu
tinha esculpido na madeira com meu primeiro canivete suíço – a única vez
que eu me lembro de papai realmente ter ficado bravo comigo. As cadeiras
eram de aço inox com bancos de couro, assim como eu me lembrava; e
quando olhei pra fora, a vista brilhou de novo, antes, as colinas verdejantes
e céu da vida após a morte, agora, as paredes brancas e janelas de vidro de
nossa antiga casa.
— Oh... — Sadie disse em voz baixa.
Seus olhos estavam fixos no centro da mesa. Entre os pratos de pizza,
tigelas de morangos açucarados, e qualquer outro tipo de alimento que você
poderia imaginar, estava um bolo de sorvete branco e azul, o mesmo bolo
que nós tínhamos explodido em seu sexto aniversário.
— Espero que você não se importe — disse mamãe. — Eu pensei que era
uma pena você nunca ter provado. Feliz Aniversário, Sadie.
— Por favor, sentem-se — papai abriu os braços. — Bes, velho amigo, po-
deria colocar Lorde Rá na cabeceira da mesa?
Comecei a sentar na cadeira mais distante de Rá, já que eu não o queria
babando em cima de mim enquanto ele mastigava sua comida, mas minha
mãe disse:
— Oh, não aí, querido. Sente perto de mim. Aquela cadeira é para... ou-
tro convidado.
Ela disse as últimas duas palavras como se elas deixassem um gosto
amargo na boca. Olhei em volta da mesa. Havia sete cadeiras e apenas seis
de nós.
— Quem mais está por vir?
— Anúbis? — Sadie perguntou, esperançosa.
Papai riu.

330
CARTER

— Não é Anúbis, mas tenho certeza que ele estaria aqui, se pudesse.
O ânimo de Sadie caiu como se alguém tivesse tirado o ar dela. [Sim,
Sadie, estava óbvio.]
— Onde está ele, então? — Ela perguntou.
Papai hesitou apenas o tempo suficiente para eu sentir seu desconforto.
— Longe. Vamos comer, ok?
Sentei-me e aceitei uma fatia de bolo de aniversário de um criado fantas-
magórico. Você não pensaria que eu tivesse fome, com o fim do mundo e
nossa missão fracassada, sentando na Terra dos Mortos em uma mesa de
jantar do meu passado com o fantasma da minha mãe ao meu lado e meu
pai com a cor de um mirtilo. Mas meu estômago não se preocupava com
isso. Ele me deixou saber que eu estava vivo e precisava de comida. O bolo
era de chocolate com sorvete de baunilha. Tinha um gosto perfeito. Antes
que eu percebesse, eu tinha acabado minha fatia e estava carregando meu
prato com pizza de pepperoni. As estátuas dos deuses estavam atrás de nós –
Hórus, Ísis, Thot, Sobek – mantinham-se em silêncio enquanto nós comía-
mos. Fora do pavilhão, as terras de Aaru se espalhavam como se a caverna
fosse infinita, colinas verdejantes e campinas, rebanhos de gado gordo, cam-
pos de cereais, pomares cheios de tamareiras. Córregos cortavam os pânta-
nos em uma colcha de retalhos de ilhas, como o Delta do Nilo, com as vilas
de aparência perfeita para os mortos abençoados. Veleiros cruzavam o rio.
— Assim é como parece para os Antigos Egípcios — papai disse, como se
estivesse lendo meus pensamentos. — Mas cada alma vê Aaru de uma ma-
neira diferente.
— Como a nossa casa em Los Angeles? — perguntei. — Nossa família junta
em torno de uma mesa de jantar? Isso é mesmo real?
Os olhos de papai ficaram tristes, do modo que costumavam ficar sempre
que eu perguntava sobre a morte de mamãe.
— O bolo de aniversário é bom, né? — perguntou. — Minha garotinha,
com treze anos. Nem posso acreditar...
Sadie varreu com a mão o prato da mesa. Ele quebrou contra o chão.
— O que isso importa? — ela gritou. — O relógio de sol, os estúpidos por-
tões, nós falhamos!
Ela escondeu seu rosto nos braços e começou a soluçar.

331
O TRONO DE FOGO

— Sadie — mamãe pairou ao lado dela, como o Fantasminha Camarada.


— Está tudo bem.
— Torta de lua — Rá falou proveitosamente, cobertura de bolo em torno
de sua boca.
Ele começou a cair de sua cadeira, e Bes o empurrou de volta no lugar.
— Sadie está certa — concordei. — Rá está em pior forma do que imaginá-
vamos. Mesmo se pudéssemos trazê-lo de volta ao mundo mortal, ele nunca
conseguiria derrotar Apófis, a não ser que Apófis morresse de rir.
Papai franziu a testa.
— Carter, ele ainda é Rá, faraó dos deuses. Mostre algum respeito.
— Não gosto de bolhas!
Rá deu uma pancada em um criado de luz brilhante que estava tentando
limpar sua boca.
— Lorde Rá — disse papai — você se lembra de mim? Eu sou Osíris. Você
jantava aqui na minha mesa, todas as noites, descansando antes de sua via-
gem em direção ao amanhecer. Você se lembra?
— Quero um wallaby — Rá respondeu.
Sadie bateu na mesa.
— O que isso significa?
Bes pegou um punhado de coisas cobertas de chocolate – eu tinha medo
de que pudessem ser gafanhotos – e jogou em sua boca.
— Nós não terminamos de ler o Livro de Rá. Precisamos encontrar Khe-
pri.
Papai acariciou seu cavanhaque.
— Sim, o deus escaravelho, a forma de Rá como o sol nascente. Talvez se
vocês encontrassem Khepri, Rá possa ser inteiramente renascido. Mas vocês
precisam passar pelos portões da Oitava Casa.
— Que estão fechados — terminei — nós teríamos que, tipo, voltar no
tempo.
Bes parou de comer gafanhotos. Ele arregalou os olhos como se tivesse
acabado de ter uma revelação. Ele olhou para o meu pai, incrédulo.
— Ele? Você convidou ele?
— Quem? — perguntei. — O que você quer dizer?
Encarei meu pai, mas ele não me olhou nos olhos.

332
CARTER

— Papai, o que é? — exigi. — Há um caminho através das portas? Você


pode nos teleportar para o outro lado ou algo assim?
— Queria que eu pudesse, Carter. Mas a viagem deve ser seguida. Faz
parte do renascimento de Rá. Não posso interferir nisso. No entanto, você
está certo: você precisa de tempo extra. Pode haver um caminho, embora eu
nunca sugeriria isso se as apostas não fossem tão altas...
— É perigoso — alertou minha mãe. — Eu acho que é muito perigoso.
— O que é muito perigoso? — Sadie perguntou.
— Suponho que eu — disse uma voz atrás de mim.
Me virei e encontrei um homem de pé com as mãos nas costas da minha
cadeira. Ou ele tinha se aproximado silenciosamente e eu não o tinha ou-
vido, ou ele tinha se materializado a partir do ar.
A cabeça dele era raspada exceto por um rabo de cavalo preto brilhante
em um lado da cabeça, como jovens do Antigo Egito usavam. Seu terno
prateado parecia ser italiano (só sei disso por que Amós e meu pai da-
vam muita atenção para ternos). O tecido brilhava como uma mistura bizarra
de seda com papel alumínio. Sua camisa era preta e sem colarinho, e vários
quilos de correntes de platina estavam pendurados no pescoço. O maior
pingente era um amuleto de prata em forma de lua crescente. Quando os
dedos bateram na parte de trás da minha cadeira, seus anéis e seu relógio de
platina brilharam. Se eu o tivesse visto no mundo mortal, poderia ter imagi-
nado que ele era um jovem nativo-americano dono de um cassino bilionário.
Mas aqui no Duat, com o amuleto em forma de crescente em torno do pes-
coço...
— Torta de lua! — Rá gargalhou com prazer.
— Você é Khonsu — adivinhei. — O deus da lua.
Ele me deu um sorriso de lobo, olhando para mim como se eu fosse um
aperitivo.
— Ao seu dispor — disse — deseja jogar uma partida?

— Você não — Bes rosnou.


Khonsu abriu os braços num enorme abraço.
— Bes, velho amigo! Como tem passado?
— Sem “velho amigo” pra você, seu canalha.

333
O TRONO DE FOGO

— Estou magoado!
Khonsu sentou-se à minha direita e se inclinou para mim, conspirador.
— Pobre Bes, apostou comigo há séculos atrás. Ele queria mais tempo
com Bastet. Ele apostou alguns centímetros de altura. Receio que ele tenha
perdido.
— Não foi isso o que aconteceu! — Bes rugiu.
— Cavalheiros — papai falou em seu tom de pai severo. — Vocês dois
foram convidados à minha mesa. Eu não terei nenhuma luta.
— Absolutamente, Osíris — Khonsu sorriu para ele. — Estou honrado de
estar aqui. E estes são seus famosos filhos? Maravilhoso! Vocês estão prontos
para jogar, crianças?
— Julius, eles não entendem os riscos — nossa mãe protestou. — Nós não
podemos deixá-los fazer isso.
— Pera aí — Sadie disse. — Fazer o quê, exatamente?
Khonsu estalou os dedos, e toda a comida na mesa desapareceu, substi-
tuída por um tabuleiro de prata brilhante de Senet.
— Você não ouviu sobre mim, Sadie? Ísis não te contou algumas histó-
rias? Ou Nut? Aquela sim era uma jogadora. A deusa do céu não parou de
jogar até que ela tivesse ganhado de mim cinco dias inteiros. Você sabe as
chances de ganhar assim tanto tempo? Astronômica! É claro, ela está coberta
de estrelas, então eu suponho que ela seja astronômica.
Khonsu riu de sua própria piada. Ele não pareceu se incomodar por nin-
guém ter se juntado a ele.
— Eu me lembro — intervi — você jogou com Nut, e ela ganhou luar sufi-
ciente para criar cinco dias extras, os Dias do Demônio. Isso permitiu que
ela contornasse a ordem de Rá de que seus cinco filhos não poderiam nascer
em nenhum dia do ano.
— Nut — Rá murmurou. — Nut ruim.
O deus da lua ergueu uma sobrancelha.
— Pobre de mim, Rá está com uma aparência ruim, não é? Mas sim, Car-
ter Kane. Você está absolutamente certo. Eu sou o deus da lua, mas também
tenho alguma influência sobre o tempo. Eu posso alongar ou encurtar a vida
dos mortais. Até mesmo os deuses podem ser afetados pelos meus poderes.
A lua é mutável. Sua luz aumenta e diminui. Você precisa de... o quê? Cerca

334
CARTER

de três horas extras? Eu posso fazer que isso saia do luar, se você e sua irmã
estão dispostos a jogar por ele. Posso fazer com que as portas da Oitava Casa
ainda não tenham fechado.
Eu não entendia como ele poderia fazer isso de voltar no tempo, inserir
três horas extras na noite, mas pela primeira vez desde os Acres Ensolarados,
senti uma pequena centelha de esperança.
— Se você pode ajudar, porque simplesmente não nos dá o tempo extra?
O destino do mundo está em jogo.
Khonsu riu.
— Essa é boa! Te dar tempo! Não, sério. Se eu começasse a dar algo tão
valioso, o Maat desabaria. Além disso, você não pode jogar Senet sem apos-
tar. Bes pode te dizer isso.
Bes cuspiu uma perna de gafanhoto de chocolate de sua boca.
— Não faça isso, Carter. Você sabe o que eles diziam sobre Khonsu nos
velhos tempos? Algumas das pirâmides tem um poema sobre ele esculpidas
nas pedras. É chamado de “Hino Canibal”. Por um preço, Khonsu ajudaria
o faraó a matar qualquer deus que o estivesse incomodando. Khonsu iria
devorar sua alma e ganhar sua força.
O deus da lua revirou os olhos.
— História Antiga, Bes! Eu não tenho devorado uma alma desde... que
mês é esse? Março? De qualquer forma, estou completamente adaptado a
este mundo moderno. Eu sou muito civilizado agora. Você deveria ver mi-
nha cobertura no Luxor em Las Vegas. Quero dizer, Obrigado! A América
tem uma excelente civilização!
Ele sorriu pra mim, piscando os olhos de prata como de um tubarão.
— Então, o que você me diz, Carter? Sadie? Joguem comigo no Senet.
Três peças para mim, três para vocês. Vocês vão precisar de três horas de
luar, então vão precisar de uma pessoa adicional para participar da aposta.
Para cada peça que sua equipe conseguir mover para fora do tabuleiro, vou
conceder-lhes uma hora extra. Se ganharem, são três horas extras... apenas o
suficiente para passar os portões da Oitava Casa.
— E se nós perdermos? — perguntei.
— Ah... você sabe — Khonsu acenou com a mão como se isso fosse um
detalhe técnico chato. — Para cada peça que eu mover para fora do tabuleiro,

335
O TRONO DE FOGO

vou pegar um ren de um de vocês.


Sadie sentou mais a frente.
— Você vai levar nossos nomes secretos... como, nós temos de comparti-
lhá-los com você?
— Compartilhar... — Khonsu acariciou seu rabo de cavalo, como se ten-
tando lembrar o significado dessa palavra. — Não, não compartilhar. Eu
vou devorar seu ren.
— Apagar parte de nossas almas — disse Sadie. — As memórias, a nossa
identidade.
O deus da lua deu de ombros.
— O lado bom, você não iria morrer. Você irá apenas...
— Se transformar em um vegetal — Sadie adivinhou. — Como Rá, ali.
— Não quero vegetais — Rá resmungou, irritado.
Ele tentou mastigar a camisa de Bes, mas o deus anão se distanciou.
— Três horas — ele disse. — Apostadas contra três almas.
— Carter, Sadie, vocês não têm que fazer isso — disse mamãe. — Nós não
esperamos que vocês assumam esse risco.
Eu a tinha visto tantas vezes em fotos e em minhas lembranças, mas pela
primeira vez, realmente me surpreendeu o quanto ela se parecia com Sadie
– ou o quanto Sadie estava começando a ficar parecida com ela.
Ambas tinham a mesma determinação de fogo em seus olhos. Ambas
inclinavam o queixo para cima quando estavam esperando por uma luta. E
as duas não eram muito boas em esconder seus sentimentos. Eu poderia
dizer pela voz trêmula da mamãe que ela compreendeu o que tinha que
acontecer. Ela estava nos dizendo que nós tínhamos opções, mas ela sabia
muito bem que não tínhamos.
Olhei Sadie, e chegamos a um acordo silencioso.
— Mãe, tudo bem — falei. — Você deu sua vida para fechar a prisão de
Apófis. Como podemos desistir agora?
Khonsu esfregou as mãos.
— Ah, sim, a prisão de Apófis! Seu amigo Menshikov está lá agora, liber-
tando as correntes da Serpente. Tenho tantas apostas sobre o que vai acon-
tecer! Vocês vão chegar lá a tempo de detê-lo? Vocês vão trazer Rá de volta
ao mundo? Vocês derrotarão Menshikov? Eu estou dando um contra cem

336
CARTER

sobre isso!
Mamãe se virou desesperadamente para meu pai.
— Julius, diga a eles! É muito perigoso.
Meu pai ainda estava segurando um prato com bolo de aniversário meio-
comido. Ele olhou para o sorvete derretendo como se fosse a coisa mais triste
do mundo.
— Carter e Sadie — disse ele, finalmente — eu trouxe Khonsu aqui para
que vocês tivessem de escolher. Mas o que quer que vocês façam, eu ainda
terei orgulho de vocês dois. Se o mundo acabar hoje à noite, isso não vai
mudar.
Ele encontrou meus olhos, e eu pude ver o quanto o machucava pensar
em nos perder. No último Natal, no Museu Britânico, ele tinha sacrificado
sua vida para libertar Osíris e restaurar a balança no Duat. Tinha deixado
Sadie e eu sozinhos, e eu tinha ficado ressentido com ele por um longo
tempo por isso. Agora percebi como era estar em sua posição. Ele estava
disposto a desistir de tudo, até mesmo de sua vida, por um propósito maior.
— Eu entendo, pai. — disse a ele — Somos Kane. Nós não fugimos de
escolhas difíceis.
Ele não respondeu, mas balançou a cabeça lentamente. Seus olhos ar-
diam com um orgulho feroz.
— Pela primeira vez — Sadie falou — Carter está certo. Khonsu, vamos
jogar seu maldito jogo.
— Excelente! — Khonsu exclamou. — São duas almas. Duas horas pra ga-
nhar. Ah, mas você vai precisar de três horas para atravessar as portas na
hora certa, não vai? Humm. Receio que não possam usar Rá. Ele não está
em seu juízo perfeito. Sua mãe já está morta. Seu pai é o juiz do mundo dos
mortos, então ele está desclassificado de apostar a alma...
— Eu jogo — Bes anunciou.
Seu rosto estava triste, mas determinado.
— Velho amigo! — Khonsu se expressou. — Estou encantado.
— Quer saber, deus da lua? — Bes disse. — Eu não gosto disso, mas vou
jogar.
— Bes — chamei — você já fez o bastante por nós. Bastet nunca esperaria
que você...

337
O TRONO DE FOGO

— Eu não estou fazendo isso pela Bastet! — ele rosnou. Então ele respirou
fundo. — Olhe, vocês, crianças, são o que importa. Nos últimos dois dias,
pela primeira vez em anos, me senti querido de novo. Importante. Não como
uma atração secundária. Se as coisas forem mal, apenas digam a Taueret... —
ele pigarreou e deu a Sadie um olhar significativo. — Diga a ela que eu tentei
voltar o relógio.
— Oh, Bes.
Sadie se levantou e correu em volta da mesa. Ela abraçou o deus anão e
beijou sua bochecha.
— Tudo bem, tudo bem — ele murmurou. — Não vá ser sentimental co-
migo. Vamos jogar essa partida.
— Tempo é dinheiro — Khonsu concordou.
Nossos pais se levantaram.
— Nós não podemos ficar pra isso — papai disse — mas, crianças...
Ele não parecia saber como concluir o pensamento. Boa sorte provavel-
mente era muito clichê. Eu podia ver a culpa e a preocupação em seus olhos,
mas ele estava se esforçando para não mostrá-las. Um bom general, Hórus di-
ria.
— Nós amamos vocês — nossa mãe finalizou. — Vocês vão prevalecer.
Com isso, nossos pais viraram névoa e desapareceram. O lado de fora do
pavilhão escureceu, como um cenário. O jogo Senet começou a brilhar mais.
— Brilhante — Rá disse.
— Três peças azuis para vocês — Khonsu disse. — Três peças prateadas
para mim. Agora, quem está com sorte?

O jogo começou bem. Sadie tinha habilidade para jogar as varetas. Bes tinha
milhares de anos de experiência no jogo. E eu tinha o trabalho de mover as
peças e ter certeza de que Rá não iria comê-las.
No começo não era óbvio quem estava ganhando. Nós apenas jogamos
e movemos, e era difícil acreditar que estávamos jogando pelas nossas almas,
ou nomes verdadeiros, ou o que quer que seja que você queira chamá-los.
Fizemos uma das peças de Khonsu voltar ao começo, mas ele não parecia
chateado. Ele parecia encantado com quase tudo.
— Não te incomoda? — perguntei em certo momento. — Devorar almas

338
CARTER

inocentes?
— Na verdade não — ele poliu seu amuleto de crescente. — Porque deve-
ria?
— Mas nós estamos tentando salvar o mundo — Sadie disse — Maat, os
deuses... tudo. Você não se importa se o mundo se desfizer em Caos?
— Oh, isso não seria tão ruim — Khonsu respondeu. — A mudança vem
em fases, Maat e Caos, Caos e Maat. Sendo o deus da lua, eu aprecio a vari-
ação. Agora, Rá, coitado, ele está sempre preso a uma rotina. Mesmo cami-
nho todas as noites. Tão previsível e chato. Se aposentar foi a coisa mais
interessante que ele já fez. Se Apófis assumir e engolir o sol, bem... suponho
que a lua ainda estará lá.
— Você é louco — Sadie replicou.
— Há! Aposto cinco minutos extras de luar que sou perfeitamente são.
— Esqueça. — disse Sadie — Só jogue.
Khonsu jogou as varetas. A má notícia: ele fez um progresso alarmante.
Ele tirou um cinco e tinha uma de suas peças quase no fim do tabuleiro. A
boa notícia: a peça ficou presa na Casa das Três Verdades, o que significava
que só tirando um três para movê-la de lá.
Bes estudou o tabuleiro atentamente. Ele não pareceu gostar do que viu.
Tivemos uma peça de volta ao início e duas peças na última fileira do tabu-
leiro.
— Cuidado agora — advertiu Khonsu. — Aqui é onde fica interessante.
Sadie tirou um quatro, o que nos deu duas opções. A nossa peça poderia
sair do tabuleiro. Ou nossa segunda peça poderia bater na peça de Khonsu
na Casa das Três Verdades e enviá-la de volta ao começo.
— Bata nele — eu disse. — É mais seguro.
Bes balançou a cabeça.
— E então nós ficamos presos na Casa das Três Verdades. As chances de
ele tirar um três são mínimas. Tire sua primeira peça. Dessa forma, pelo
menos uma hora extra estará segura.
— Mas uma hora extra não vai mudar nada — Sadie respondeu.
Khonsu parecia estar gostando de nossa indecisão. Ele tomou um gole
de vinho de uma taça prateada e sorriu. Enquanto isso, Rá se entretinha
tentando pegar as pontas de seu mangual.

339
O TRONO DE FOGO

— Ai, ai, ai.


Minha testa formava gotas de suor. Como eu estava suando em um
jogo de tabuleiro?
— Bes, você tem certeza?
— É sua melhor aposta — ele disse.
— Melhor, Bes? — Khonsu riu. — Legal!
Eu queria bater no deus da lua, mas mantive minha boca fechada. Movi
nossa primeira peça para fora do jogo.
— Parabéns! — Khonsu felicitou. — Devo-lhes uma hora de luar. Agora é
minha vez.
Ele jogou as varetas. Elas bateram na mesa de jantar, e eu me senti como
se alguém tivesse cortado um cabo de elevador em meu peito, mergulhando
meu coração para baixo em um eixo. Khonsu tinha tirado um três.
— Oops!
Rá largou seu mangual.
Khonsu moveu sua peça para fora do jogo.
— Oh, que pena. Agora, o ren de quem eu coleto primeiro?
— Não, por favor! — Sadie exclamou. — Volte atrás. Pegue a hora que nos
deve ao invés disso.
— Essas não são as regras — criticou Khonsu.
Olhei para o entalhe que eu tinha feito na mesa quando tinha oito anos.
Eu sabia que essa memória estava prestes a desaparecer, como todas as mi-
nhas outras. Se eu desse meu ren para Khonsu, pelo menos Sadie ainda po-
deria lançar a parte final da magia. Ela iria precisar de Bes para protegê-la e
aconselhá-la. Eu era o único dispensável.
Eu comecei a dizer:
— Eu...
— Eu — disse Bes. — O movimento foi ideia minha.
— Bes, não! — Sadie exclamou.
O anão se levantou. Ele plantou os pés e enrolou os punhos, como se
estivesse se preparando para soltar um BOO. Eu queria que ele fizesse isso
e assustasse Khonsu, mas ele olhou para nós com resignação.
— Era parte da estratégia, crianças.

340
CARTER

— O quê? — perguntei. — Você planejou isso?


Ele tirou sua camisa havaiana e dobrou-a cuidadosamente, colocando-a
sobre a mesa.
— O mais importante é colocar todas as três peças para fora do tabuleiro,
e não perder mais nenhuma. Essa era a única forma de fazer. Vocês vão
vencer facilmente agora. Às vezes você tem que perder uma peça para ganhar
um jogo.
— Tão verdadeiro — Khonsu disse. — Que encantador! O ren de um deus.
Está pronto, Bes?
— Bes, não — implorei. — Isso não está certo.
Ele fez uma careta pra mim.
— Ei, garoto, você estava disposto a se sacrificar. Está dizendo que eu não
sou tão corajoso quanto um mago qualquer? Além disso, eu sou um deus.
Quem sabe? Às vezes a gente volta. Agora, ganhe o jogo e saia daqui. Chute
Menshikov no joelho por mim.
Eu tentei pensar em algo para dizer, algo que poderia parar isso, mas Bes
se manifestou antes:
— Eu estou pronto.
Khonsu fechou seus olhos e inspirou profundamente, como se estivesse
desfrutando de um pouco de ar fresco da montanha. A forma de Bes treme-
luziu. Ele se dissolveu em uma montagem de imagens ultrarrápidas – uma
trupe de anões dançando em um templo à luz da fogueira; uma multidão de
egípcios festejando, levando Bes e Bastet sobre seus ombros; Bes e Taueret
em togas em alguma vila Romana, comendo uvas e rindo juntos em um sofá;
Bes vestido como George Washington em uma peruca empoada e terno de
seda, fazendo piruetas em frente de alguns casacas-vermelhas britânicos; Bes
no uniforme verde-oliva dos Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, assus-
tando um demônio em um uniforme nazista na Segunda Guerra Mundial.
Quando sua silhueta se dissipou, imagens mais recentes tremeluziram:
Bes em um uniforme de chofer com uma placa que dizia Kane; Bes nos pu-
xando para fora de nossa limusine afundando no Mediterrâneo; Bes lan-
çando magias em mim em Alexandria quando fui envenenado, tentando
desesperadamente me curar; Bes e eu na traseira da caminhonete dos Bedu-
ínos, compartilhando carne de cabra e água com gosto de vaselina quando

341
O TRONO DE FOGO

nós viajamos ao longo da margem do Nilo. Sua última lembrança: duas cri-
anças, Sadie e eu, olhando para ele com amor e preocupação. Então a ima-
gem desvaneceu e Bes se foi. Até sua camisa Havaiana tinha desaparecido.
— Você tirou tudo dele! — gritei. — Seu corpo, tudo. Esse não era o
acordo!
Khonsu abriu seus olhos e suspirou profundamente.
— Isso foi amável. — Ele sorriu para nós como se nada tivesse acontecido.
— Acredito que seja a sua vez.
Seus olhos de prata estavam frios e luminosos, e eu tive a sensação de
que pelo resto da minha vida, eu odiaria olhar para a lua.
Talvez fosse raiva, ou a estratégia de Bes, ou talvez nós apenas tivéssemos
sorte, mas o resto do jogo Sadie e eu acabamos com Khonsu facilmente. Nós
batemos em suas peças em cada oportunidade. Dentro de cinco minutos, a
nossa última peça estava fora do tabuleiro.
Khonsu estendeu suas mãos.
— Bem jogado! As três horas são suas. Se vocês se apressarem, poderão
passar pelos portões da Oitava Casa.
— Eu te odeio — Sadie disse. Foi a primeira vez que ela tinha falado desde
que Bes desapareceu. — Você é frio, calculista, horrível...
— E sou tudo o que você precisava — Khonsu tirou seu relógio de platina
e voltou o tempo: uma, duas, três horas. Tudo ao nosso redor, as estátuas
dos deuses tremeluziram e saltaram como se o mundo estivesse sendo girado
ao contrário.
— Agora — Khonsu disse — vocês gostariam de gastar seu tempo ganho
arduamente reclamando? Ou você quer salvar esse pobre, velho e tolo rei?
— Zebras? — Rá murmurou, esperançoso.
— Onde estão nossos pais? — perguntei. — Pelo menos nos deixe dizer
adeus.
Khonsu balançou a cabeça.
— O tempo é precioso, Carter Kane. Você já deveria ter aprendido essa
lição. É melhor eu te mandar para o seu caminho; mas se vocês quiserem
jogar comigo novamente, por segundos, horas, até dias, é só me avisar. Seu
crédito é bom.

342
CARTER

Eu não pude aguentar. Esbofeteei Khonsu, mas o deus da lua desapare-


ceu. O pavilhão inteiro desapareceu, e Sadie e eu estávamos de pé no convés
da Barca Solar novamente, descendo o rio escuro. As luzes da tripulação
zumbiam em torno de nós, manejando os remos e aparando a vela. Rá sen-
tou em seu trono de fogo, brincando com seu cajado e mangual como se
fossem marionetes numa conversa imaginária.
Diante de nós, um par de enormes portas de pedra surgiu da escuridão.
Oito cobras enormes foram esculpidas na rocha, quatro de cada lado. Os
portões estavam fechando lentamente, mas a Barca Solar deslizou para den-
tro na hora, e nós passamos para dentro da Oitava Casa.
Eu tenho que dizer, a Casa dos Desafios não pareceu muito desafiadora.
Lutamos contra monstros, sim. Serpentes elevaram-se do rio. Demônios sur-
giram. Navios cheios de fantasmas tentaram embarcar na Barca Solar. Des-
truímos todos. Eu estava tão irritado, tão devastado com a perda de Bes, que
imaginei que cada ameaça era o deus da lua Khonsu. Nossos inimigos não
tiveram chance.
Sadie lançou magias que eu nunca a tinha visto usar. Ela invocou folhas
de gelo que provavelmente acompanharam suas emoções, deixando vários
demônios icebergs em nosso rastro. Ela transformou um navio inteiro cheio
de fantasmas de piratas em bolhas com o formato da cabeça de Khonsu,
então os vaporizou em uma explosão nuclear em miniatura. Enquanto isso,
Rá brincava alegremente com seus brinquedos, enquanto os criados de luz
se agitavam pelo convés, aparentemente sentindo que nossa viagem estava
atingindo uma fase crítica. A Nona, Décima e Décima Primeira Casa passa-
ram em um borrão. De vez em quando eu ouvia um espirro de água atrás de
nós, como o remo de outro barco. Olhei pra trás, me perguntando se Mens-
hikov de algum modo tinha pegado nosso rastro de novo, mas nada vi. Se
alguma coisa estivesse nos seguindo, sabia avançar sem se mostrar.
Da última vez, ouvi um barulho à frente, como outra cachoeira ou um
trecho de corredeiras. As órbitas de luz trabalharam arduamente para descer
a vela, empurrando os remos, mas continuamos ganhando velocidade.
Passamos sob uma arcada baixa esculpida com a forma da deusa Nut,
seus membros estrelados se estendiam protetoramente e seu rosto sorrindo
em acolhimento. Tive a sensação de que estávamos entrando na Décima

343
O TRONO DE FOGO

Segunda Casa, a última parte do Duat antes de sairmos para um novo ama-
nhecer.
Eu esperava ver uma luz no fim do túnel, literalmente, mas ao invés
disso, nosso caminho tinha sido sabotado. Eu podia ver aonde o rio suposta-
mente iria. O túnel continuava em frente, lentamente em curvas saindo do
Duat. Eu podia até mesmo sentir cheiro de ar fresco – o cheiro do mundo
mortal. Mas o fim do túnel tinha sido drenado em um campo de lama. Di-
ante de nós, o rio mergulhava em um buraco enorme, como se um asteroide
tivesse feito um buraco na terra e desviado a água para baixo. Nós estávamos
correndo em direção à queda.
— Podemos pular — Sadie falou. — Abandonar o navio...
Mas acho que chegamos à mesma conclusão. Precisávamos da Barca So-
lar. Precisávamos de Rá. Teríamos que seguir o curso do rio, onde quer que
ele levasse.
— É uma armadilha — Sadie disse. — Trabalho de Apófis.
— Eu sei — disse. — Vamos dizer a ele que não gostamos de seu trabalho.
Nós nos agarramos ao mastro enquanto o navio afundava no redemoi-
nho.
Pareceu como se tivéssemos caído para sempre. Sabe a sensação quando
você mergulha fundo em um poço profundo, como se seu nariz e ouvidos
fossem explodir, e seus olhos fossem saltar da cabeça? Imagine essa sensação
uma centena de vezes pior. Nós estávamos afundando no Duat mais pro-
fundo do que já tínhamos ido – mais profundo que qualquer mortal era
suposto a ir. As moléculas do meu corpo pareciam estar aquecendo, zum-
bindo tão rápido que elas poderiam se separar.
Nós não nos espatifamos. Não batemos no fundo. A Barca simplesmente
mudou de direção, como em vez de para baixo virasse para o lado, e navega-
mos por uma caverna que brilhava com uma luz vermelha desagradável. A
pressão mágica era tão intensa que meus ouvidos soaram. Eu estava enjoado
e mal conseguia pensar direito, mas reconheci o litoral à frente: uma praia
feita de milhões de cascas de escaravelhos mortos, mudando e surgindo
como se uma força embaixo – uma maciça forma de serpente lutando para
se libertar. Dezenas de demônios estavam vasculhando as cascas de escarave-
lhos com pás. E de pé na praia, esperando pacientemente por nós, estava

344
CARTER

Vlad Menshikov, suas roupas queimadas e enfumaçadas, seu bastão bri-


lhando com fogo verde.
— Bem-vindas, crianças — ele gritou através da água. — Venham. Juntem-
se a mim para o fim do mundo.

345
C
A
22. Amigos nos lugares mais estranhos
R
T
E
R

PARECIA QUE MENSHIKOV TINHA NADADO pelo Lago de Fogo sem um es-
cudo mágico. Seus cabelos grisalhos cacheados tinham sido reduzidos a pa-
lha negra. Seu terno branco estava em farrapos e cheio de furos queimados.
Seu rosto inteiro estava com bolhas, os olhos arruinados não parecerem fora
do lugar. Como Bes devia ter dito, Menshikov estava vestindo suas roupas
feias.
A memória de Bes me fez ficar com raiva. Tudo que tínhamos passado,
tudo que tínhamos perdido, era tudo culpa de Vlad Menshikov.
A Barca do Sol parou na praia de conchas de escaravelho.
Rá berrou:
— Olá-á-á-á-á-á
E tropeçou em seus pés. Ele começou a perseguir um servo de esfera azul
ao redor do convés como se fosse uma borboleta bonita.
Os demônios derrubaram suas pás e se reuniram na margem. Eles olha-
ram uns aos outros incertos, sem dúvida se perguntando se esse era algum
tipo de pegadinha. Com certeza esse velho caduco boboca não podia ser o
deus sol.
— Maravilha — Menshikov disse. — Vocês trouxeram Rá, afinal de contas.
Isso me deu um momento para perceber o que tinha de diferente em sua
voz. A respiração rouca se fora. Seu tom era barítono, profundo e suave.
— Fiquei preocupado — ele continuou. — Vocês demoraram tanto tempo

346
CARTER

na Quarta Casa, achei que estariam presos para passar a noite. Podíamos ter
libertado Lorde Apófis sem vocês, é claro, mas teria sido tão inconveniente
caçar vocês mais tarde. Isso é muito melhor. Lorde Apófis vai estar faminto
quando acordar. Ele vai ficar mais feliz por vocês terem trazido um lanche
para ele.
— Wheee, lanche — Rá riu.
Ele mancava ao redor do barco, tentando esmagar o servo de luz com seu
mangual.
Os demônios começaram a rir. Menshikov deu a eles um sorriso indul-
gente.
— Sim, muito engraçado — ele disse. — Meu avô divertiu Pedro, o Grande,
com um casamento anão. Vou fazer melhor. Vou entreter o próprio Senhor
do Caos com o deus sol senil!
A voz de Hórus falou urgente na minha mente: Pegue de volta as armas do
faraó. Essa é a sua última chance!
Lá no fundo, eu sabia que era uma péssima ideia. Se eu reclamasse as
armas do faraó agora, nunca as devolveria. E os poderes que eu ganharia não
seriam suficientes para derrotar Apófis. Ainda assim, fiquei tentado. Eu me
sentiria tão bem em pegar o cajado e o mangual daquele Rá velho e estúpido
e esmagar Menshikov no chão.
Os olhos do russo brilharam com malícia.
— Uma revanche, Carter Kane? Certamente. Percebi que você não tem
seu anão babá dessa vez. Vamos ver o que consegue fazer por si próprio.
Minha visão ficou vermelha, e isso não tinha nada a ver com a luz na
caverna. Eu saí do barco e invoquei o avatar do deus falcão. Eu nunca havia
tentado o feitiço tão fundo no Duat antes. Consegui mais do que pedi. Em
vez de ficar envolto em uma holografia brilhante, me senti mais alto e mais
forte. Minha visão aumentou, mais nítida.
Sadie fez um som estrangulado.
— Carter?
— Pássaro grande! — Rá disse.
Olhei para baixo e descobri que eu era um gigante de carne e osso, quatro
metros e meio de altura, vestido na armadura de batalha de Hórus. Levei
minhas mãos enormes para a cabeça e afaguei penas em vez de cabelo. Minha

347
O TRONO DE FOGO

boca era um bico afiado. Gritei com alegria, e saiu como um guincho, eco-
ando pela caverna. Os demônios se afastaram nervosos. Olhei para baixo,
para Menshikov, que agora parecia tão insignificante quanto um rato. Eu
estava pronto para pulverizá-lo, mas Menshikov zombou e apontou seu ca-
jado.
Seja lá o que ele estava planejando, Sadie foi mais rápida. Ela atirou seu
próprio cajado, que se transformou em um papagaio (da espécie da ave de
rapina) tão grande quanto um pterodátilo.
Típico. Eu viro algo bem legal como um guerreiro falcão, e Sadie tem
que me acompanhar. Seu papagaio bofeteava o ar com suas asas pesadas.
Menshikov e seus demônios foram dar cambalhotas do outro lado da praia.
— Dois pássaros grandes! — Rá começou a aplaudir.
— Carter, me dê cobertura! — Sadie puxou o Livro de Rá. — Preciso co-
meçar o encanto.
Achei que o papagaio gigante estava fazendo um ótimo trabalho em fun-
ção de guarda, mas dei um passo à frente e fiquei pronto para lutar.
Menshikov ficou de pé.
— Certamente, Sadie Kane, comece seu encanto. Você não entende? O
espírito de Khepri criou essa prisão. Rá deu parte de sua própria alma, sua
habilidade de renascer, para manter Apófis acorrentado.
Pareceu que ele tinha dado um tapa no rosto de Sadie.
— “O último escaravelho”...
— Exatamente — Menshikov concordou. — Todos esses escaravelhos se
multiplicaram de um – Khepri, a terceira alma de Rá. Meus demônios vão
encontrá-lo, eventualmente, vasculhando pelas conchas. É um dos únicos
escaravelhos que ainda estão vivos agora, e uma vez que eu esmagá-lo, Apófis
irá se libertar. Mesmo se vocês invocarem Rá de volta, Apófis ainda vai ficar
livre! De qualquer maneira, Rá está muito fraco para lutar. Apófis vai devorá-
lo, como as profecias antigas previram, e o Caos vai destruir o Maat de uma
vez por todas. Vocês não podem vencer.
— Você é louco — falei, minha voz muito mais profunda que o normal.
— Você vai ser destruído também.
Vi a luz fraturada em seus olhos, e percebi alguma coisa que me chocou
no estômago. Menshikov não queria isso mais que nós. Ele tinha vivido com

348
CARTER

tanta tristeza e desespero que Apófis tinha bagunçado sua alma, feito dele
um prisioneiro de seus próprios sentimentos detestáveis. Vladimir Menshi-
kov pretendia se alegrar, mas ele não sentia nenhuma sensação de triunfo.
Por dentro, ele estava aterrorizado, derrotado, miserável. Ele estava escravi-
zado por Apófis. Quase senti pena por ele.
— Já estamos mortos, Carter Kane — ele disse. — Esse lugar nunca foi feito
para humanos. Você não sente? O poder do Caos está infiltrando nossos
corpos, murchando nossas almas. Mas eu tenho planos maiores. Um hospe-
deiro pode viver indefinidamente, não importa que doença pode ter, não im-
porta o quanto possa ser ferido. Apófis já curou minha voz. Em breve vou
estar inteiro novamente. Vou viver para sempre!
— Um hospedeiro...
Quando percebi o que ele estava falando, quase perdi o controle da mi-
nha nova forma gigante.
— Você não está falando sério. Menshikov, pare isso antes que seja tarde
demais.
— E morrer? — ele perguntou.
Atrás de mim, uma nova voz disse:
— Há coisas piores que morrer, Vladimir.
Virei-me e vi um segundo barco deslizando em direção à margem – um
bote cinza pequeno com um simples remo mágico que remava sozinho. O
olho de Hórus estava pintado na proa do barco, e seu passageiro solitário
era Michel Desjardins. O cabelo e barba do Sacerdote-leitor Chefe estavam
agora tão brancos quanto a neve. Hieróglifos brilhantes flutuavam de suas
vestes cor de creme, fazendo uma trilha de palavras divinas atrás dele.
Desjardins pisou em terra firme.
— Você é brinquedo de alguma coisa muito pior que a morte, meu velho
amigo. Reze para que eu te mate antes que tenha sucesso.

De todas as coisas estranhas que eu tinha experimentado aquela noite, Des-


jardins se intensificando para lutar do nosso lado era definitivamente a mais
estranha.
Ele caminhou entre meu guerreiro falcão gigante e o mega-papagaio de

349
O TRONO DE FOGO

Sadie como se não fossem grande coisa, e plantou seu cajado nos escarave-
lhos mortos.
— Renda-se, Vladimir.
Menshikov riu.
— Você tem olhado para si mesmo recentemente, meu senhor? Minhas
maldições estiveram minando suas forças por meses, e você nem mesmo per-
cebeu. Está quase morto agora. Eu sou o mago mais poderoso do mundo.
Era verdade que Desjardins não parecia bem. Seu rosto estava quase tão
magro e enrugado quanto o do deus sol. Mas a nuvem de hieróglifos parecia
forte ao seu redor. Seus olhos brilhavam com intensidade, assim como meses
atrás no Novo México, quando ele tinha batalhado contra nós nas ruas de
Las Cruces e jurado nos destruir. Ele deu um passo a frente, e a ralé de
demônios se afastou. Acho que eles reconhecerem a pele de leopardo ao
redor de seus ombros como uma marca de poder.
— Eu falhei em muitas coisas — Desjardins admitiu. — Mas não vou falhar
nisso. Não vou deixar você destruir a Casa da Vida.
— A Casa? — A voz de Menshikov ficou aguda. — Ela morreu séculos atrás!
Devia ter sido dissolvida quando o Egito caiu.
Ele chutou as cascas secas de escaravelho.
— A Casa tem tanta vida quanto essas cascas ocas de inseto. Acorde, Mi-
chel! O Egito se foi, está sem sentido, a história antiga. É hora de destruir o
mundo e começar outra vez. O Caos sempre vence.
— Nem sempre — Desjardins se virou para Sadie. — Comece o encanto.
Vou cuidar desse desgraçado.
O chão subiu debaixo de nós, tremendo enquanto Apófis tentava ascen-
der.
— Pense primeiro, criança — Menshikov avisou. — O mundo vai acabar,
não importa o que faça. Os mortais não podem deixar essa caverna vivos,
mas dois de vocês foram possuídos por deuses. Combinem com Hórus e Ísis
de novo, se comprometam a servir Apófis, e podem sobreviver essa noite.
Desjardins sempre foi seu inimigo. Mate-o para mim agora e apresente seu
corpo como um presente para Apófis! Vou garantir a ambos posições de
honra em um novo mundo comandado pelo Caos, sem restrições de quais-
quer regras. Posso te dar o segredo da cura de Walt Stone.

350
CARTER

Ele sorriu da expressão surpresa de Sadie.


— Sim, minha garota. Eu sei como. O remédio foi passado por gerações
pelos curandeiros de Amon-Rá. Mate Desjardins, una-se com Apófis, e o
garoto que você ama será poupado.
Vou ser honesto. Suas palavras eram persuasivas. Eu podia imaginar um
novo mundo onde nada era impossível, onde não haveria leis aplicadas, nem
mesmo as leis da física, e poderíamos ser o que quiséssemos.
O Caos é impaciente. É aleatório. E acima de tudo, é egoísta. Ele derruba
tudo apenas por uma questão de mudança, se alimentando em fome cons-
tante. Mas o Caos pode também ser atraente. Ele tenta você a acreditar que
nada importa exceto o que você quer. E havia tanto que eu queria. A voz res-
taurada de Menshikov era suave e confiante, como o tom de Amós quando
ele usava magia para persuadir mortais.
Aquilo era o problema. A promessa de Menshikov era um truque. Suas
palavras não eram mesmo suas. Elas estavam sendo forçadas a sair dele. Seus
olhos se mexiam como se estivessem lendo um texto pronto. Ele falava da
vontade de Apófis, mas quando ele terminava trancava os olhos em mim, e
só brevemente vi seus pensamentos reais – um apelo torturado que ele teria
gritado se tivesse controle de sua própria boca: Me mate agora. Por favor.
— Me desculpe, Menshikov — eu disse, e sinceramente quis dizer aquilo.
— Magos e deuses tem que ficar juntos. O mundo pode precisar de melho-
rias, mas vale a pena preservar. Não vamos deixar o Caos vencer.
Então várias coisas aconteceram de uma vez. Sadie abriu seu pergaminho
e começou a ler. Menshikov gritou:
— Ataquem!
E os demônios marcharam à frente. O papagaio gigante estendeu suas
asas, desviando uma explosão de fogo verde do cajado de Menshikov que
provavelmente teria incinerado Sadie completamente. Encarreguei-me de
protegê-la, enquanto Desjardins invocava um turbilhão de vento ao redor de
seu corpo e voava na direção de Vlad Menshikov.
Andei no meio dos demônios. Atingi um com uma cabeça de navalha,
agarrei seus tornozelos, e o balancei como uma arma, fatiando seus aliados
em pilhas de areia. O papagaio gigante de Sadie pegou mais dois em suas
garras e os atirou no rio.

351
O TRONO DE FOGO

Enquanto isso, Desjardins e Menshikov subiam no ar, presos dentro de


um tornado. Eles giravam em torno de si, disparando fogo, veneno e ácido.
Os demônios que chegavam muito perto derretiam instantaneamente.
No meio disso tudo, Sadie lia o Livro de Rá. Não sabia como ela podia
se concentrar, mas suas palavras ressoavam claras e altas. Ela invocou o ama-
nhecer e a ascensão de um novo dia. Névoa dourada começou a se espalhar
ao redor de seus pés, tecendo as cascas secas como se estivesse procurando
por vida. A praia inteira estremeceu, e bem no subterrâneo, Apófis rugiu de
raiva.
— Oh, não! — Rá gritou atrás de mim. — Vegetais!
Virei-me e vi um dos maiores demônios embarcando no barco de sol,
lâminas em todas as quatro de suas mãos. Rá deu a ele a amora e correu, se
escondendo atrás de seu trono ardente.
Atirei o Cabeça de Navalha na multidão de seus amigos, agarrei uma
lança de outro demônio, e atirei na direção do barco.
Se tivesse sido eu atirando, minha completa falta de habilidade em tiros
de longa distância me faria empalar o deus sol, o que seria muito constran-
gedor. Felizmente, minha nova forma gigante tinha mira digna de Hórus. A
lâmina atingiu o demônio de quatro braços bem no meio das costas. Ele
derrubou as facas, cambaleou para a borda do barco e caiu no Rio da Noite.
Rá se debruçou para o lado e deu a ele a última amora.
O tornado de Desjardins ainda girava em torno dele, travado em com-
bate com Menshikov. Eu não podia dizer qual mago tinha vantagem. O pa-
pagaio de Sadie estava fazendo seu melhor para protegê-la, empalando de-
mônios com seu bico e esmagando-os com suas garras enormes. De algum
jeito, Sadie manteve sua concentração. A névoa dourada engrossou en-
quanto se espalhava pela praia.
Os demônios restantes começaram a recuar enquanto Sadie falava as úl-
timas palavras do encanto:
— Khepri, o escaravelho que nasce da morte, o renascimento de Rá!
O Livro de Rá sumiu em um clarão. O chão retumbou, e da massa de
conchas mortas, um simples escaravelho subiu no ar, um inseto vivo dou-
rado que flutuou na direção de Sadie e começou a descansar em suas mãos.
Sadie sorriu triunfante, eu quase ousei esperar que tivéssemos vencido.

352
CARTER

Então um riso sibilante encheu a caverna. Desjardins perdeu o controle de


seu redemoinho, e o Sacerdote-leitor Chefe saiu voando na direção do
barco, batendo na proa com tanta força que quebrou o parapeito e ficou
absolutamente imóvel.
Vladimir Menshikov caiu no chão, aterrissando agachado. Em torno de
seus pés, as conchas de escaravelhos mortos se dissolveram, virando areia cor
de sangue.
— Brilhante — ele disse. — Brilhante, Sadie Kane!
Ele se levantou, e toda a energia mágica na caverna pareceu correr na
direção de seu corpo – névoa dourada, luz vermelha, hieróglifos brilhantes
– tudo em colapso com Menshikov como se ele tivesse pego a gravidade de
um buraco negro.
Seus olhos arruinados se curaram. O rosto cheio de bolhas começou a se
alisar, jovem e bonito. O terno branco se reparou, então o tecido ficou ver-
melho escuro. A pele ondulou, e percebi com um calafrio que ele tinha es-
camas de cobra crescendo.
Na Barca do sol, Rá murmurou:
— Oh, não. Preciso de zebras.
A praia inteira virou areia vermelha.
Menshikov estendeu a mão para a minha irmã.
— Me dê o escaravelho, Sadie. Faço uma troca com você. Você e seu ir-
mão vão sobreviver. Walt vai sobreviver.
Sadie agarrou o escaravelho. Fiquei pronto para atacar. Mesmo no meu
corpo de guerreiro falcão gigante, podia sentir a energia do Caos ficando
mais e mais forte, solapando minha força. Não tínhamos muito tempo, mas
tínhamos que parar Apófis. No interior da minha mente, aceitei o fato de
que morreria. Estava agindo agora pelo amor de nossos amigos, pela família
Kane, por todo o mundo mortal.
— Você quer o escaravelho, Apófis? — A voz de Sadie era cheia de repug-
nância. — Então venha e pegue, seu nojento...
Ela chamou Apófis de algumas palavras tão ruins que vovó teria lavado
sua boca com sabão por um ano. [E não, Sadie, não vou dizê-las no micro-
fone.]
Menshikov deu um passo em sua direção. Peguei uma pá que um dos

353
O TRONO DE FOGO

demônios tinha derrubado. O papagaio gigante de Sadie voou para Menshi-


kov, suas garras posicionadas para atacar, mas Menshikov sacudiu suas mãos
como se estivesse espantando uma mosca. O monstro se dissolveu em uma
nuvem de penas.
— Você me toma por um deus? — Menshikov rugiu.
Enquanto ele se focava em Sadie, eu o contornei por trás, fazendo o meu
melhor para me aproximar sorrateiramente – o que não era fácil quando
você é um homem pássaro de quatro metros de altura.
— Eu sou o próprio Caos! — Menshikov berrou. — Vou desfiar seus ossos,
dissolver sua alma, e mandar você de volta para o lodo primitivo de onde
veio. Agora, me dê o escaravelho!
— Tentador — Sadie disse. — O que você acha, Carter?
Menshikov percebeu a armadilha tarde demais. Eu saltei para frente e o
acertei na cabeça com a pá. Menshikov foi amassado. Arremessei seu corpo
na areia, então me levantei e pisei nele em um pouco mais fundo. Eu o
enterrei o melhor que pude, então Sadie apontou para o local do enterro
disse a palavra para fogo. A areia derreteu, endurecendo em um bloco do
tamanho de um caixão de vidro sólido.
Eu teria cuspido nele, também, mas não tinha certeza se podia fazer isso
com um bico de falcão.
Os demônios sobreviventes fizeram a coisa sensata. Eles fugiram de pâ-
nico. Alguns pularam no rio e se deixaram dissolver, o que era uma econo-
mia de tempo de verdade para nós.
— Não foi tão difícil — Sadie falou.
Acho que podia dizer que a energia do Caos estava começando a sair
dela, também. Mesmo quando ela tinha cinco anos e teve pneumonia, não
acho que ela parecia tão ruim.
— Depressa — eu disse.
Minha adrenalina estava sumindo rapidamente. Minha forma avatar es-
tava começando a parecer como duzentos e vinte quilos de peso morto.
— Dê o escaravelho para Rá.
Ela assentiu, e correu na direção do Barco do Sol, mas só fez metade do
caminho quando a tumba de vidro de Menshikov explodiu.
A explosão de magia mais poderosa que eu já tinha visto era o feitiço Ha-

354
CARTER

di de Sadie. Essa explosão era cerca de cinquenta vezes mais poderosa.


Uma onda de areia e cacos de vidro de alta potência me acertou e picou
meu avatar. De volta ao meu corpo normal, cego de dor, me arrastei para
longe da voz risonha de Apófis.
— Onde você vai, Sadie Kane? — Apófis chamou, sua voz agora tão pro-
funda quanto um tiro de canhão. — Onde está aquela garotinha malvada
com meu escaravelho?
Pisquei a areia dos meus olhos. Vlad Menshikov... não, ele parecia Vlad,
mas era Apófis agora, estava cerca de quinze metros de distância, espreitando
em torno da borda da cratera que tinha feito na praia. Ou ele não me viu,
ou assumiu que eu estivesse morto. Ele estava procurando por Sadie, mas
ela não estava em lugar nenhum. A explosão deveria tê-la escondido na areia,
ou pior.
Minha garganta fechou. Eu queria ficar de pé e enfrentar Apófis, mas
meu corpo não funcionava. Minha magia estava esgotada. O poder do Caos
estava extraindo minha força de vida. Só ficando perto de Apófis me senti
como se estivesse sendo desfeito – minhas sinapses cerebrais, meu DNA,
tudo que me fazia ser Carter Kane estava lentamente se dissolvendo.
Finalmente, Apófis estendeu seus braços.
— Não importa. Vou escavar seu corpo mais tarde. Primeiro, vou cuidar
do velho.
Por um segundo, achei que ele estava falando de Desjardins, que ainda
estava deitado sem vida sobre o parapeito quebrado, mas Apófis escalou o
barco, ignorando o Sacerdote-leitor Chefe, e se aproximou do trono de fogo.
— Olá, Rá — ele disse em uma voz agradável. — Tem sido um longo tempo.
Uma voz fraca de trás da cadeira disse:
— Não posso jogar. Vá embora.
— Gostaria de um acordo? — Apófis perguntou. — Costumávamos jogar
tão bem juntos. Toda noite, tentando matar um ao outro. Você não lembra?
Rá enfiou a cabeça careca acima do trono.
— Acordo?
— Que tal um desfecho? Você costumava adorar desfechos, não é? Tudo
o que você tem que fazer é sair daí e me deixar te devorar... quer dizer, te
entreter.

355
O TRONO DE FOGO

— Quero um biscoito — Rá disse.


— Que tipo?
— Biscoito de wallaby.
Estou aqui para te dizer, que o comentário sobre biscoitos de wallaby
provavelmente salvou o universo conhecido. Apófis deu um passo para trás,
obviamente confuso pelo comentário que foi até mais caótico que ele. E
nesse momento, Michel Desjardins o golpeou.
O Sacerdote-leitor Chefe deveria estar se fingindo de morto, ou talvez
ele só tenha se recuperado rápido. Ele se levantou e se jogou contra Apófis,
jogando-o contra o trono de fogo.
Menshikov gritou em sua antiga voz rouca. Vapor silvou como água em
um churrasco. As vestes de Desjardins pegaram fogo. Rá se mexeu atrás do
barco e jogou o cajado no ar como se aquilo fizesse os homens malvados
irem embora.
Lutei para ficar de pé, mas ainda me sentia como se estivesse carregando
duzentos e vinte quilos extras. Menshikov e Desjardins agarraram um ao
outro em frente ao trono. Essa era a cena que eu tinha testemunhado no
Salão das Eras: o primeiro momento de uma nova era.
Eu sabia que deveria ajudar, mas me movi ao longo da praia, tentando
avaliar o local onde eu tinha visto Sadie pela última vez. Caí de joelhos e
comecei a cavar.
Desjardins e Menshikov lutavam para frente e para trás, gritando pala-
vras de poder. Olhei e vi uma nuvem de hieróglifos e luz vermelha rodopi-
ando ao redor deles enquanto o Sacerdote-leitor Chefe invocava o Maat e
Apófis com a mesma rapidez dissolvia seus feitiços com o Caos. Quanto a
Rá, o todo poderoso deus sol, ele tinha se movido para a popa do barco e
estava agachado atrás do leme.
Continuei cavando.
— Sadie — murmurei. — Vamos lá. Cadê você?
Pense, disse a mim mesmo.
Fechei meus olhos. Pensei em Sadie – toda memória que tínhamos com-
partilhado desde o Natal. Tínhamos vivido separados por anos, mas nos úl-
timos três meses, fiquei mais próximo dela que qualquer um no mundo. Se
ela podia descobrir meu nome secreto enquanto eu estava inconsciente, com

356
CARTER

certeza eu podia encontrá-la em uma pilha de areia.


Me movi uns três metros para a esquerda e comecei a cavar de novo.
Imediatamente arranhei o nariz de Sadie. Ela grunhiu, o que significava que
pelo menos estava viva. Limpei seu rosto e ela tossiu. Então ela ergueu seus
braços, e eu a puxei da areia. Fiquei tão aliviado que quase chorei, mas sendo
um cara machão, não fiz isso.
[Cale a boca, Sadie. Eu estou contando essa parte.]
Apófis e Desjardins ainda estavam lutando logo à frente no barco de sol.
Desjardins gritou:
— Heh-sieh!
E um hieróglifo brilhou entre eles:

Apófis saiu voando do barco como se tivesse sido enganchado por um


trem em movimento. Ele passou bem acima de nós e caiu na areia cerca de
doze metros de distância.
— Boa — Sadie murmurou um pouco tonta. — Hieróglifo para “Volte para
trás”.
Desjardins saiu cambaleando do barco do sol. Suas vestes ainda estavam
ardendo em chamas, mas de sua manga ele puxou uma estatueta de cerâmica
– uma cobra vermelha esculpida com hieróglifos.
Sadie engasgou.
— Um shabti de Apófis? A penalidade para fazer aquilo é a morte!
Pude entender por que. Imagens tinham poder. Em mãos erradas, elas
podiam fortalecer ou até mesmo invocar o que está sendo representado, e
uma estátua de Apófis era um jeito muito perigoso para fazer isso. Mas isso
também era um ingrediente necessário para certos feitiços...
— Uma execração. — falei — Ele está tentando apagar Apófis.
— Isso é impossível! — Sadie disse. — Ele vai ser destruído!
Desjardins começou a cantar. Hieróglifos brilharam no ar em volta dele,
girando em um cone de poder protetor. Sadie tentou se levantar, mas ela
não estava em melhor forma que eu.

357
O TRONO DE FOGO

Apófis se sentou. Seu rosto era um pesadelo de queimaduras do trono


de fogo. Ele parecia um hambúrguer meio cozido que alguém tinha derru-
bado na areia. [Sadie disse que isso é muito nojento. Bem, me desculpe. É a
verdade.]
Quando ele viu a estátua nas mãos do Sacerdote-leitor Chefe, ele rugiu
em raiva.
— Você é louco, Michel? Você não pode me execrar!
— Apófis — Desjardins cantou — eu o nomeio Senhor do Caos, Serpente
da Escuridão, Temor das Doze Casas, o Único Odiado...
— Pare com isso! — Apófis berrou. — Eu não posso ser contido!
Ele lançou uma explosão de fogo em Desjardins, mas a energia simples-
mente se uniu à nuvem girando ao redor do Sacerdote-leitor Chefe, virando
um hieróglifo para “calor”. Desjardins cambaleou para frente, o envelheci-
mento diante de nossos olhos, ficando mais curvado e frágil, mas sua voz
manteve-se forte.
— Eu falo pelos deuses. Eu falo pela Casa da Vida. Sou um servidor do
Maat. Eu o expulso sob os pés.
Desjardins jogou a cobra vermelha, e Apófis caiu para o lado.
O Senhor do Caos lançou tudo o que tinha para Desjardins – gelo, ve-
neno, relâmpago, rochas – mas nada acertou. Tudo simplesmente virava hi-
eróglifos no escudo do Sacerdote-leitor Chefe, o Caos forçado a padrões de
palavras na linguagem divina da criação.
Desjardins esmagou a cobra de cerâmica debaixo do pé. Apófis se con-
torceu de agonia. A coisa que costumava ser Vladimir Menshikov se desin-
tegrou como uma concha de cera, e uma criatura se ergueu dele – uma cobra
vermelha, coberta de lodo como um filhote novo. Começou a crescer, suas
escamas vermelhas cintilando e seus olhos brilhando.
Sua voz ressoou em minha mente: Não posso ser contido!
Mas estava tendo dificuldade para crescer. A areia se agitou em torno
dele. Um portal foi aberto, ancorando o próprio Apófis.
— Eu apago o seu nome — Desjardins recitou. — Eu o removo da memória
do Egito.
Apófis gritou. A praia implodiu ao seu redor, engolindo a serpente e
sugando a areia vermelha para dentro do turbilhão.

358
CARTER

Agarrei Sadie e corri para o barco. Desjardins desabou de joelhos de exa-


ustão, mas de algum jeito consegui puxar seu braço e o arrastei para a praia.
Juntos, Sadie e eu o rebocamos a bordo do barco de sol. Rá finalmente saiu
de seu esconderijo sob o leme. As luzes brilhantes tripularam os remos, e
nos afastamos enquanto a praia inteira afundava nas águas escuras, lampejos
de relâmpagos vermelhos ondulando debaixo da superfície.

Desjardins estava morrendo.


Os hieróglifos tinham desvanecido ao seu redor. Sua testa estava quei-
mando. Sua pede estava tão seca e fina quanto papel de arroz, e sua voz era
um sussurro áspero.
— A execração n-não vai ser o final — ele avisou. — Só comprei algum
tempo para vocês.
Segurei sua mão como se ele fosse um velho amigo, não um inimigo
passado. Depois de jogar senet com o deus da lua, comprar tempo não era
alguma coisa que eu tinha ânimo.
— Por que você fez isso? — perguntei. — Você usou toda a sua força para
bani-lo.
Desjardins sorriu fracamente.
— Não gosto muito de vocês. Mas estavam certos. Os velhos modos...
nossa única chance. Conte a Amós... conte a Amós o que aconteceu.
Ele agarrou fracamente sua capa de pele de leopardo, e eu percebi que
ele queria tirá-la. Eu o ajudei, e ele pressionou a capa em minhas mãos.
— Mostre isso para... os outros... Conte a Amós...
Seus olhos viraram, e o Sacerdote-leitor Chefe se foi. Seu corpo se desin-
tegrou em hieróglifos – muitos para ler, a história de toda a sua vida. Então
as palavras flutuaram para o Rio da Noite.
— Adeus — Rá murmurou. — Wallabies estão doentes.
Eu quase tinha esquecido o deus velho. Ele despencou em seu trono de
novo, descansando sua cabeça na alça de seu cajado e golpeando seu man-
gual sem muita vontade nas luzes servidoras.
Sadie respirou instável.
— Desjardins nos salvou. Eu... eu não gostava muito dele, mas...
— Eu sei — concordei. — Mas temos que continuar. Você ainda tem o

359
O TRONO DE FOGO

escaravelho?
Sadie puxou o escaravelho dourado se contorcendo de sua bolsa. Juntos,
nos aproximamos de Rá.
— Pegue — eu disse a ele.
Rá enrugou seu nariz já enrugado.
— Não quero um inseto.
— É a sua alma! — Sadie disse. — Você vai pegar, e vai gostar!
Rá parecia intimidado. Ele pegou o inseto, e para o meu terror, o enfiou
na boca.
— Não! — Sadie gritou.
Tarde demais. Rá tinha engolido.
— Oh, Deus — Sadie disse. — Ele deveria fazer isso? Talvez ele devesse
fazer isso.
— Não gosto de insetos — Rá murmurou.
Esperamos ele mudar para um rei jovem e poderoso. Em vez disso, ele
arrotou. Ele ficou velho, estranho e detestável.
Em um transe, caminhei com Sadie de volta à frente do barco. Tínhamos
feito tudo que pudemos, e ainda senti como se tivéssemos perdido. En-
quanto navegávamos, a pressão da magia pareceu aliviar. O rio pareceu ali-
sar, mas eu podia sentir que estávamos ascendendo rapidamente pelo Duat.
Apesar disso, eu ainda sentia como se minhas entranhas estivessem derre-
tendo. Sadie não parecia melhor.
As palavras de Menshikov ecoaram na minha cabeça: Mortais não podem
deixar essa caverna vivos.
— É a doença do Caos — Sadie disse. — Não vamos fazer isso, não é?
— Temos que continuar. — falei — Pelo menos até amanhecer.
— Tudo aquilo — Sadie disse — e o que aconteceu? Recuperamos um deus
senil. Perdemos Bes e o Sacerdote-leitor Chefe. E estamos morrendo.
Peguei a mão de Sadie.
— Talvez não. Olhe.
Na nossa frente, o túnel estava ficando mais brilhante. As paredes da
caverna se dissolveram, e o rio se alargou. Dois pilares se levantavam da água
– duas estátuas gigantes de escaravelhos douradas. Além delas o amanhecer

360
CARTER

brilhava na linha do horizonte de Manhattan. O Rio da Noite estava dre-


nando em Nova York.
— Cada novo amanhecer é um novo mundo — lembrei de nosso pai di-
zendo. — Talvez sejamos curados.
— Rá, também? — Sadie perguntou.
Eu não tinha uma resposta, mas estava começando a me sentir melhor,
mais forte, como se tivesse tido uma boa noite de sono. Enquanto passáva-
mos entre as estátuas de escaravelhos douradas, olhei para a nossa direita.
Do outro lado da água, fumaça estava subindo do Brooklyn – lampejos de
luzes multicoloridas e faixas de fogo enquanto criaturas aladas estavam em
combate aéreo.
— Eles ainda estão vivos — Sadie disse. — Eles precisam de ajuda!
Viramos o barco do sol na direção de casa e navegamos direto para a
batalha.

361
S
A
23. Damos uma festa louca em casa
D
I
E

[ERRO FATAL, CARTER. Me passar o microfone na parte mais importante?


Você nunca vai pegá-lo de volta agora. O final da história é meu. Há, há,
há!]
Oh, aquilo me fez sentir bem. Seria excelente para dominar o mundo.
Mas eu discordo.

Você deveria ver os noticiários sobre o estranho duplo nascer do sol sobre o
Brooklyn na manhã de vinte e um de março. Houve muitas teorias: névoa
por causa da poluição do ar, queda de temperatura na atmosfera baixa, alie-
nígenas, ou talvez apenas mais um vazamento gás do esgoto causando uma
histeria em massa. Amamos gás de esgoto no Brooklyn!
Eu posso confirmar, no entanto, que houve brevemente dois sóis no céu.
Eu sei disso porque estava em um deles. O sol subiu normal, como sempre.
Mas também houve o barco de Rá, queimando como um nascer do sol do
Duat, até o Porto de Nova York no céu do mundo mortal.
Para os observadores de baixo, o segundo sol pareceu se misturar com a
luz do primeiro. O que realmente aconteceu? O barco do sol escureceu en-
quanto descia perto da Casa no Brooklyn, onde a camuflagem antimortal o
estava envolvendo e fazendo-o desaparecer.
Nossas defesas mágicas já estavam fazendo hora extra, com uma guerra
plena em andamento. Freak, o grifo, estava mergulhando no ar, atacando

362
SADIE

cobras flamejantes com asas, as uraei, em um combate aéreo.


[Eu sei que é uma palavra horrível para pronunciar, uraei, mas Carter
insiste que esse é o plural para uraeus, e não havia nenhum argumento con-
tra ele. Só diga você está certo e solte o microfone, e você consegue.]
Freak gritou Freaaaak! e atacou os uraeus, mas estava em uma grande des-
vantagem. Seu pelo estava queimado, e suas asas zumbindo deviam estar da-
nificadas enquanto ele continuava girando em círculos como um helicóp-
tero quebrado.
Seu ninho no telhado estava em chamas. Nosso portal de esfinge foi que-
brado, e a chaminé estava manchada de preto como se alguma coisa ou al-
guém tivesse explodido. Um grupo de magos inimigos e demônios se escon-
deram atrás do aparelho de ar condicionado e estavam presos em um com-
bate contra Zia e Walt, que estavam guardando a escadaria. Ambos os lados
jogavam fogo, shabti, bombas de hieróglifos brilhantes por toda a extensão
do telhado ainda não dominado.
Enquanto descíamos sobre o inimigo, o velho Rá (sim, ele ainda estava
velho e murcho, como sempre) se inclinou para o lado e acenou para todos
com seu cajado.
— Olá-á-á-á-á! Zebras!
Ambos os lados olharam com espanto.
— Rá! — um demônio gritou.
Então, todos gritaram:
— Rá?
— Rá!
— Rá!
Parecia o exército mais assustado do mundo.
Os uraei pararam de cuspir fogo, para grande surpresa de Freak, e voaram
imediatamente para o barco do sol. Começaram a nos rodear como uma
guarda de honra, e me lembrei do que Menshikov tinha dito sobre eles se-
rem originalmente criaturas de Rá. Aparentemente, eles reconheceram seu
velho mestre (com ênfase em velho).
A maioria dos inimigos se espalhou quando o barco desceu, mas o mais
lento dos demônios disse: “Rá?” e olhou para cima assim que nosso barco

363
O TRONO DE FOGO

do sol aterrissou em cima dele com um crunch satisfatório.


Carter e eu pulamos para a batalha. Apesar de tudo o que passamos, eu
me sentia maravilhosa. A doença do Caos havia desaparecido assim que saí-
mos do Duat. Minha magia estava forte. Meus espíritos estavam elevados. Se
eu apenas tivesse um chuveiro, uma roupa limpa e uma boa xícara de chá,
eu poderia achar que estava no paraíso. (Retiro o que disse; agora que eu
tinha visto o Paraíso, não gostei muito dele. Me contentaria com meu pró-
prio quarto).
Transformei um demônio em um tigre e joguei-o sobre seus irmãos. Car-
ter surgiu na forma de avatar – o cara dourado brilhante, graças a Deus; um
homem pássaro de quatro metros de altura teria sido um pouco assustador
para mim. Ele abriu caminho através dos magos inimigos apavorados, e com
um movimento de sua mão mandou-os voando para o Rio East. Zia e Walt
saíram da escadaria e nos ajudaram a cuidar dos feridos. Então correram
para nós com grandes sorrisos em seus rostos. Pareciam estar machucados e
feridos, porém muito vivos.
FREEEEK!, disse o grifo.
Ele desceu e pousou ao lado de Carter, e deu cabeçadas no avatar de
combate, o que eu esperava que fosse um sinal de afeto.
— Ei, amigo — Carter coçou sua cabeça, tomando cuidado para evitar as
asas afiadas do monstro. — O que está acontecendo, pessoal?
— Falar não ajuda — afirmou Zia secamente.
— O inimigo vem tentando invadir a casa durante a noite toda — disse
Walt. — Amós e Bastet conseguiram segurá-los, mas... — ele olhou para o
barco do sol, e sua voz vacilou. — É isso... não é...
— Zebra! — Rá disse, cambaleando até nós com um grande sorriso des-
dentado.
Ele andou diretamente até Zia e puxou algo de sua boca – um escarave-
lho dourado brilhante, agora completamente molhado, mas não digerido –
e ofereceu a ela.
— Eu gosto de zebras.
Zia recuou.
— Esse é... esse é Rá, o Senhor do Sol? Por que ele está me oferecendo
um escaravelho?

364
SADIE

— E o que ele quis dizer sobre as zebras? — Walt perguntou.


Rá olhou para Walt com desaprovação.
— Os wallabies estão doentes.
De repente, um calafrio passou por mim. Minha cabeça girava como se
a doença do Caos estivesse voltando. No fundo da minha mente, uma ideia
começou a se formar – algo muito importante.
Zebras... Zia. Wallabies ... Walt.
Antes que eu pudesse pensar sobre isso, uma grande BOOM! sacudiu o
prédio. Pedaços de pedra de calcário voaram do lado da mansão e choveram
sobre o jardim.
— Eles quebraram as paredes de novo! — Walt disse. — Depressa!

Me considero razoavelmente dispersa e rápida, mas o resto da batalha acon-


teceu muito depressa, até mesmo para eu acompanhar. Rá se recusou a se
separar da Zebra e do Wallaby (desculpe, Zia e Walt), de modo que os deixou
sob seus cuidados no barco do sol enquanto Freak levava Carter e eu para o
andar de baixo. Caímos de suas garras sobre a mesa de buffet e encontramos
Bastet girando com suas facas na mão, cortando e transformando demônios
em areia e chutando magos para dentro da piscina, onde o nosso crocodilo
albino, Filipe da Macedônia, ficou muito feliz em entretê-los.
— Sadie — ela gritou com alívio.
[Sim, Carter, ela chamou meu nome ao invés do seu, ela me conhece
mais, afinal de contas.] Ela parecia estar se divertindo muito, mas seu tom
era urgente.
— Eles derrubaram a parede leste. Fique aqui dentro!
Corremos pela porta, esquivando de um morcego de frutas que saiu vo-
ando sobre nossas cabeças, possivelmente alguém que lançou um feitiço que
deu errado – e entramos em um pandemônio total.
— Santo Hórus — disse Carter.
De fato, Hórus era a única coisa que não estava batalhando no Grande
Salão. Khufu, nosso corajoso babuíno, estava em cima da cabeça um velho
mago ao redor da sala, sufocando-o com sua própria varinha e jogando-o na

365
O TRONO DE FOGO

direção das paredes até que o mago ficou azul. Felix tinha soltado um esqua-
drão de pinguins em outro mago, que se encolhia em um círculo mágico
com algum tipo de estresse pós-traumático, gritando:
— Sem Antártida de novo! Tudo menos isso!
Alyssa estava convocando os poderes de Geb para reparar um buraco que
o inimigo tinha feito em uma parede distante. Julian tinha convocado um
avatar de combate pela primeira vez, e foi cortando os demônios com sua
espada brilhante. Até mesmo Cleo saiu correndo pela sala, puxando perga-
minhos de sua bolsa e lendo palavras aleatórias de poder como “Cegos!”,
“Horizontal!” e “Tagarela!” (que, aliás, fez maravilhas para incapacitar o ini-
migo). Para onde quer que eu olhasse, nossos iniciados estavam mandando
ver. Eles lutaram como se estivessem esperando a noite toda para ter a
chance de descansar, o que suponho que era exatamente o caso. E lá estava
Jaz – Jaz! Parecendo muito saudável! – jogando um shabti do inimigo direto
na lareira, onde ele se quebrou em mil pedaços.
Senti uma enorme sensação de orgulho, e não uma pequena quantidade
de espanto. Eu estava tão preocupada com a sobrevivência dos nossos jovens
iniciados, mas eles estavam simplesmente dominando um grupo de magos
muito mais experientes.
O mais impressionante, porém, foi Amós. Eu já o tinha visto fazer magia,
mas nunca desta forma. Ele estava na base da estátua de Thot, convocando
raios e trovões com seu cajado, derrubando magos inimigos, e transfor-
mando-os em nuvens de tempestade em miniatura. Uma mulher maga o
atacou com seu cajado brilhante com chamas vermelhas, mas Amós simples-
mente bateu no chão e as telhas de mármore viraram areia aos seus pés, e a
mulher afundou até o pescoço.
Carter e eu nos olhamos, sorrimos, e nos juntamos à luta.
Foi uma derrota completa. Logo os demônios tinham sido reduzidos a
montes de areia, e os magos inimigos começaram a se dispersar em pânico.
Sem dúvida, eles estavam esperando lutar contra um bando de crianças inex-
perientes. Eles não contavam com o tratamento Kane completo.
Uma das mulheres conseguiu abrir um portal em uma parede distante.
Pare-os, a voz de Ísis falou em minha mente, que foi um choque após um
silêncio tão longo. Eles devem ouvir a verdade.

366
SADIE

Eu não sei de onde tirei a ideia, mas levantei os braços e as asas e um


arco-íris cintilante apareceu em ambos os meus lados – as asas de Ísis.
Mexi meus braços. Uma rajada de vento e luz multicolorida bateu em
nossos inimigos e jogou-os longe, deixando nossos amigos perfeitamente ile-
sos.
— Ouçam! — gritei.
Todos se calaram. Minha voz soou normalmente mandona, mas agora
parecia ampliada por um fator de dez. As asas provavelmente chamavam
atenção também.
— Não somos seus inimigos! — falei. — Não me importo se gostam de nós,
mas o mundo mudou. Vocês precisam ouvir o que aconteceu.
Minhas asas mágicas se apagaram enquanto eu dizia a todos sobre a nossa
viagem pelo Duat, o renascimento de Rá, a traição de Menshikov, o retorno
de Apófis e o sacrifício de Desjardins para banir a Serpente.
— Mentiras!
Um homem asiático em vestes azuis carbonizadas deu um passo à frente.
Pela visão que Carter havia dito, supus que ele era Kwai.
— É verdade — disse Carter.
Seu avatar já não o cercava. Suas roupas tinham se revertido para as mor-
tais normais que ele tinha comprado no Cairo, mas de alguma forma, ele
ainda parecia muito imponente, muito confiante. Ele levantou a capa de
pele de leopardo do Sacerdote-leitor Chefe, e eu podia sentir uma onda de
choque se espalhando pela sala.
— Desjardins lutou ao nosso lado — Carter confirmou. — Ele derrotou
Menshikov e trancou Apófis. Ele sacrificou a vida para nos dar um pouco
de tempo. Mas Apófis vai voltar. Desjardins queria que vocês soubessem.
Com suas últimas palavras, me pediu para mostrar a vocês esta capa e expli-
car a verdade. Especialmente a você, Amós. Ele queria que você soubesse
que o caminho dos deuses tem que ser restaurado.
O portal de fuga para o inimigo ainda estava girando. Mas ninguém ti-
nha atravessado ainda.
A mulher que o tinha invocado cuspiu no chão. Ela tinha vestes brancas
e cabelos pretos espetados.
— O que vocês estão esperando? Eles nos trazem a capa do Sacerdote-

367
O TRONO DE FOGO

leitor Chefe e nos contam essa história maluca. São Kane! Traidores! Prova-
velmente eles mesmos mataram Desjardins e Menshikov.
A voz de Amós soou por toda a Grande Sala:
— Sarah Jacobi! Você de todas as pessoas sabe que não é verdade. Você
dedicou sua vida para estudar os caminhos do Caos. Você pode sentir o de-
sencadeamento de Apófis, não é? E o retorno de Rá.
Amós apontou para as portas de vidro que conduziam ao convés. Eu não
sei como ele o sentiu sem olhar, mas o barco do sol estava descendo, vindo
para ancorar na piscina de Filipe da Macedônia. Foi uma aterrissagem bas-
tante impressionante. Zia e Walt estavam cada um de um lado do trono de
fogo. Eles conseguiram sustentar Rá para que ele parecesse um pouco mais
majestoso, com seu cajado e seu mangual em suas mãos, embora ele ainda
tivesse um sorriso bobo no rosto.
Bastet, que estava parada na plataforma congelada em estado de choque,
caiu de joelhos.
— Meu rei!
— Olá-á-á-á-á — Rá disse. — Adeee-us!
Eu não tinha certeza do que ele queria dizer, mas Bastet se atirou aos pés
dele, de repente alarmada.
— Ele vai subir para os céus! — disse. — Walt, Zia, saiam!
Eles saíram bem na hora certa. O barco do sol começou a brilhar. Bastet
se virou para mim e falou:
— Eu vou acompanhá-lo até os outros deuses! Não se preocupe. Voltarei
em breve!
Ela pulou a bordo, e o barco do sol flutuava no céu, se transformando
em uma bola de fogo. Então combinado com a luz do sol, desapareceu.
— Aqui está sua prova — Amós anunciou. — Os deuses e a Casa da Vida
devem trabalhar juntos. Sadie e Carter estão certos. A Serpente não vai ficar
no Duat por muito tempo, agora que quebrou suas correntes. Quem irá se
juntar a nós?
Vários magos inimigos baixaram seus cajados e varinhas. A mulher de
branco, Sarah Jacobi, rosnou:
— Os outros nomos nunca irão reconhecer seu pedido, Kane. Você está
contaminado com o poder de Set! Vamos espalhar a palavra. Vamos deixá-

368
SADIE

los saber que você assassinou Desjardins. Eles nunca vão segui-lo!
Ela saltou através do portal. O homem de azul, Kwai, nos estudou com
desprezo e seguiu Jacobi. Outros três o seguiram também, mas deixamos eles
saírem em paz.
Reverentemente, Amós tomou a capa de pele de leopardo das mãos de
Carter.
— Pobre Michel.
Todos estavam reunidos em torno da estátua de Thot. Pela primeira vez,
percebi o quanto o Grande Salão havia sido danificado. Paredes tinham sido
quebradas, janelas estilhaçadas, as relíquias esmagadas, e a metade dos ins-
trumentos musicais de Amós foram derretidos. Pela segunda vez em três me-
ses, quase tínhamos destruído a Casa do Brooklyn. Isso tinha que ser um
recorde. E ainda assim eu queria dar a todos no salão um grande abraço.
— Vocês foram brilhantes — falei. — Destruíram o inimigo em segundos!
Se vocês podem lutar tão bem, como eles foram capazes de mantê-los presos
a noite toda?
— Mas nós mal conseguimos mantê-los fora! — disse Felix. Ele olhou in-
trigado para seu próprio sucesso. — De madrugada, eu estava, tipo, total-
mente sem energia.
Os outros concordaram severamente.
— E eu estava em coma — disse uma voz familiar.
Jaz atravessou a multidão e abraçou Carter e eu. Era tão bom vê-la, que
me senti ridícula por já ter sentido ciúmes dela e de Walt.
— Você está bem agora?
Eu segurei seus ombros e estudei seu rosto procurando qualquer sinal de
doença, mas ela parecia habitualmente normal.
— Eu estou bem! — disse. — No meio da madrugada, acordei me sentindo
ótima. Acho que logo que você chegou... Eu não sei. Alguma coisa aconte-
ceu.
— O poder de Rá — disse Amós. — Quando ele acordou, ele trouxe nova
vida, nova energia para todos nós. Ele revitalizou nosso espírito. Sem isso,
teríamos falhado.
Me virei para Walt, sem ousar perguntar. Seria possível que ele tivesse

369
O TRONO DE FOGO

sido curado também? Mas o olhar em seus olhos me disse que a ora-
ção não foi respondida. Suponho que ele podia sentir a dor em seus mem-
bros depois de fazer tanta magia.
Os wallabies estão doentes, Rá repetiu muitas vezes. Eu não tinha certeza
por que Rá estava tão interessado na condição de Walt, mas aparentemente
ele estava até mesmo além do poder do deus sol para se curar.
— Amós — disse Carter, interrompendo meus pensamentos — o que Ja-
cobi quis dizer com os outros nomos não reconhecerem seu pedido?
Eu não podia ajudá-lo. Suspirei e revirei os olhos para ele. Meu irmão
consegue ser muito grosseiro às vezes.
— O quê? — perguntou ele.
— Carter, você se lembra de nossa conversa sobre os magos mais podero-
sos do mundo? Desjardins era o primeiro. Menshikov era o terceiro. E você
estava preocupado com quem poderia ser o segundo?
— Sim — admitiu. — Mas...
— E agora que Desjardins está morto, o segundo mago mais poderoso é o
mago mais poderoso. E quem você acha que é?
Lentamente, os neurônios de seu cérebro devem ter disparado, que era
a prova de que milagres podem acontecer. Ele se virou para olhar para Amós.
Nosso tio assentiu solenemente.
— Temo que sim, crianças — Amós colocou a capa de pele de leopardo
em torno de seus ombros. — Goste ou não, a responsabilidade da liderança
cabe a mim. Eu sou o novo Sacerdote-leitor Chefe.

370
S
A
24. Faço uma promessa impossível
D
I
E

EU NÃO GOSTO DE DESPEDIDAS, e ainda tenho que contar a você sobre mui-
tas delas.
[Não Carter, isto não foi um convite para pegar o microfone. Solte!]
Ao entardecer, a Casa no Brooklin estava de volta à ordem. Alyssa con-
sertou quase toda a alvenaria sozinha, com o poder do deus da terra. Nossos
iniciantes sabiam usar muito bem o feitiço Hi-nehm, que era o suficiente para
consertar a maioria das coisas quebradas. Khufu mostrou muita destreza
com trapos e líquidos de limpeza como ele fazia com uma bola de basquete,
e é realmente incrível o quanto polimento e limpeza que pode-se realizar
pendurando grandes panos nas asas de um grifo.
Tivemos várias reuniões durante o dia. Filipe da Macedônia ficou de
guarda na piscina, enquanto nosso exército shabti patrulhava o terreno, mas
ninguém tentou atacar – nem as forças de Apófis e nem nossos colegas ma-
gos. Eu quase podia sentir o choque coletivo espalhado por todos os trezen-
tos e sessenta nomos quando eles souberam das notícias: Desjardins estava
morto, Apófis se reergueu, Rá voltou e Amós Kane era o novo Sacerdote-
leitor Chefe. Esse fato foi o mais alarmante de todos, e eu não sei, mas penso
que vou ter um tempo para descansar enquanto os outros nomos processam
esta rodada de eventos e decidem o que vão fazer.
Logo antes pôr-do-sol, eu e Carter voltamos ao telhado, onde Zia abriu
um portal para o Cairo para ela e Amós.

371
O TRONO DE FOGO

Com seus cabelos negros recém cortados e um novo conjunto de roupas


bege, pareceu que Zia não havia mudado nada desde nosso primeiro encon-
tro com ela no Museu Britânico, mesmo depois de tudo o que aconteceu
desde então. E eu posso supor, falando tecnicamente, que não era ela que
estava no museu aquele dia, era apenas seu shabti.
[Sim, eu sei. É terrivelmente confuso acompanhar tudo isso. Você tem
que aprender a magia para a convocação de um remédio para dor de cabeça.
Isso faz maravilhas.]
O portal apareceu e Zia se virou para se despedir.
— Eu vou acompanhar Amós... quero dizer, o Sacerdote-leitor Chefe do
Primeiro Nomo — ela prometeu. — Vou me certificar para que ele seja reco-
nhecido como o líder da Casa.
— Eles vão se opor a você — falei. — Tenha cuidado.
Amós sorriu.
— Nós vamos ficar bem. Não se preocupe.
Ele estava vestido em seu elegante estilo usual: um terno de seda dourado
que combinava com sua capa de pele de leopardo nova, um chapéu fedora
e contas de ouro em seu cabelo trançado. Ao seu lado havia uma bolsa de
couro e um case de saxofone. Imaginei-o sentado nos degraus do trono do
faraó, tocando sax – John Coltrane, talvez – no ritmo new age, brilhando
em luz violeta e com hieróglifos saindo da boca do saxofone.
— Vou manter contato — ele prometeu. — Além disso, vocês têm as coisas
sob controle aqui na Casa do Brooklin. E não precisam mais de um mentor.
Eu tentei parecer corajosa, embora odiasse a sua saída. O fato de eu ter
treze anos não significava que eu queria responsabilidades de adultos. Cer-
tamente não quero levar o Vigésimo Primeiro Nomo à guerra ou liderar um
exército em guerra. Mas eu suponho que ninguém que é colocado numa
situação parecida se sinta pronto
Zia pôs a mão no braço de Carter. Ele deu um pulo como se ela tivesse
encostado nele com um desfibrilador.
— Vamos nos falar logo depois que as coisas se acertarem. Mas, muito
obrigada.
Carter concordou, embora parecesse desanimado. Todos nós sabíamos
que as coisas não iriam se resolver em breve. Não havia nenhuma garantia

372
SADIE

de que nós vivêssemos o suficiente para ver Zia novamente.


— Cuide-se — Carter disse. — Você tem um papel importante para desem-
penhar.
Zia olhou para mim e uma espécie de entendimento passou entre nós.
Eu acho que ela começou a ter uma suspeita, um medo profundo, sobre o
que seu papel poderia ser. Eu ainda não posso dizer que entendi, mas com-
partilho sua inquietação. Zebras, Rá havia dito. Ele havia acordado falando
sobre zebras.
— Se você precisar de nós — falei — não hesite. Eu vou aparecer e dar
naqueles magos do Primeiro Nomo uma boa surra.
Amós beijou minha testa. Ele deu um tapinha no ombro de Carter.
— Vocês dois me orgulham. E me deram esperança, pela primeira vez em
muitos anos.
Eu queria que eles ficassem mais. Queria falar com eles um pouco mais.
Mas minha experiência com Khonsu me ensinou a não ser gananciosa sobre
o tempo. É melhor apreciar o que você tem e não ansiar por mais.
Amós e Zia entraram no portal e desapareceram.

Assim que o sol estava se pondo, uma exausta Bastet apareceu no Grande
Salão. Em vez de seu traje de costume, ela usava um vestido formal e joias
egípcias pesadas que pareciam muito desconfortáveis.
— Eu tinha esquecido o quanto é difícil guiar o barco sol através do céu
— disse ela, limpando a testa. — E quente. Da próxima vez, vou trazer um
pires e uma geladeira cheia de leite.
— Rá está bem? — perguntei.
A deusa gato contraiu os lábios.
— Bem... ele é o mesmo. Eu guiei o barco para a sala do trono dos deuses.
Eles estão recebendo uma nova tripulação para a jornada desta noite. Mas
você deve ir vê-lo antes que ele saia.
— Jornada desta noite? — Carter perguntou. — Pelo Duat? Nós justamente
o trouxemos de volta!
Bastet estendeu as mãos.
— O que você esperava? Você reiniciou o ciclo antigo. Rá vai gastar os

373
O TRONO DE FOGO

dias no céu e as noites no rio. Os deuses terão que protegê-lo como antiga-
mente. Venham, temos apenas alguns minutos.
Eu estava prestes a perguntar como ela planejava nos levar a sala do trono
dos deuses. Bastet nos disse várias vezes que não é boa na convocação de
portais. Então, uma porta de sombras se abriu no meio do ar. E Anúbis
atravessou-a. Parecia irritantemente lindo, como sempre, em sua calça jeans
preta e em sua jaqueta de couro, com uma camisa de algodão branco, que
abraçou seu peito tão bem que eu perguntei se ele estava mostrando de pro-
pósito. Suspeitei que não. Ele provavelmente pulou da cama de manhã pa-
recendo perfeito.
Certo... esta imagem não me ajuda a manter a concentração.
— Olá, Sadie — ele disse.
[Sim, Carter. Ele me cumprimentou primeiro. O que eu posso dizer? Eu
sou importante assim.]
Eu tentei cruzar o olhar com ele.
— Então é você. Não notei você no submundo enquanto nós estávamos
apostando nossas almas.
— Sim, estou feliz por você ter sobrevivido. Seu elogio fúnebre teria sido
muito difícil de escrever.
— Ah, ha-ha. Onde você estava?
Uma dose de tristeza extra apareceu em seus olhos castanhos.
— Em um projeto paralelo — ele disse. — Mas agora, devemos nos apres-
sar.
Ele apontou para a porta das trevas. E só para mostrar a ele que eu não
estava com medo, fui primeiro. Do outro lado era a sala do trono dos deuses.
Uma multidão de deuses reunidos virou-se para nós. O palácio parecia ainda
maior do que da última vez que estive lá. As colunas estavam mais altas e a
pintura era mais rica. No piso de mármore polido, estavam rodopiando vá-
rias constelações. Era como se estivéssemos pisando em toda a galáxia. O
teto brilhava como um painel fluorescente gigante. O estrado e o trono de
Hórus tinham sido transferidos para um dos lados, de modo que agora pa-
recia mais como uma cadeira de observador, em vez de ser a principal do
evento.
No centro da sala, o barco sol brilhava na doca seca. Esferas de luz faziam

374
SADIE

a limpeza do casco e a verificação dos aparelhos. Uraei circulavam o trono


de fogo, onde Rá estava vestido como um rei egípcio, com seu mangual e
cajado em seu colo. Seu queixo estava sobre o peito, e ele roncava alto.
Um jovem homem musculoso com armadura de couro reforçada veio
em nossa direção. Ele tinha a cabeça raspada e olhos de cores diferentes,
uma de prata, uma de ouro.
— Bem-vindos, Carter e Sadie — Hórus disse. — Nós estamos honrados.
Suas palavras não concordavam com seu tom, que era seco e formal. Os
outros deuses inclinaram-se respeitosamente a nós, mas eu podia sentir a
hostilidade latente sob suas aparências. Todos estavam vestindo sua melhor
armadura e pareciam muito imponentes. Sobek, o deus crocodilo (que não
é o meu favorito) usava uma malha de ferro e trazia uma enorme equipe que
fluía com a água. Nekhbet parecia tão limpa quanto um urubu pode estar,
em seu manto preto de penas de seda e veludo. Ela inclinou a cabeça para
mim, mas seus olhos me disseram que ela ainda queria me rasgar. Babi, o
deus babuíno, estava com seus dentes escovados e seu pelo penteado. Ele
estava segurando uma bola de rúgbi, possivelmente porque vovô tinha infec-
tado-o com a obsessão.
Khonsu estava em seu terno prateado reluzente, atirando uma moeda ao
ar e sorrindo. Eu queria dar-lhe um soco, mas ele balançou a cabeça como
se fôssemos velhos amigos. Mesmo Set estava lá, em seu terno disco diabó-
lico vermelho, encostado em uma coluna na parte de trás da multidão, segu-
rando seu cajado de ferro preto. Lembrei-me que ele tinha prometido não
me matar só até que libertasse Rá, mas no momento, ele parecia relaxado.
Ele tirou o chapéu e sorriu para mim como se estivesse curtindo o meu des-
conforto.
Thot, o deus do conhecimento, era o único que não estava bem vestido.
Ele usava a calça jeans habitual e um jaleco coberto de rabiscos. Ele me es-
tudou com seus estranhos olhos de caleidoscópio, e eu tinha a sensação de
que ele era o único na sala que realmente via o meu desconforto.
Ísis deu um passo a frente. Seus longos cabelos negros estavam trançados
para baixo, por trás dos ombros de seu vestido fino. Suas asas de arco-íris
brilhavam atrás dela. Ela se curvou para mim formalmente, mas eu podia
sentir as ondas de frio vindas de cima dela.

375
O TRONO DE FOGO

Hórus voltou-se para os deuses reunidos. Eu percebi que ele não estava
mais usando a coroa do faraó.
— Eis — disse à multidão. — Carter e Sadie Kane, que despertaram o nosso
rei! Que não haja dúvida: Apófis tem um inimigo muito maior agora. Deve-
mos nos unir a Rá.
Rá murmurou em seu sono
— Peixe, bolinho, wallaby
E então voltou para o ronco.
Hórus pigarreou.
— Eu juro minha lealdade! Espero que todos façam o mesmo. Protegerei
o barco de Rá, enquanto passamos a noite no Duat. Cada um de vocês deve
se revezar com este dever até o deus sol... estar totalmente recuperado.
Ele parecia absolutamente convencido que isso nunca aconteceria.
— E nós encontraremos uma maneira de derrotar Apófis! — disse. —
Agora, para comemorarmos o retorno de Rá, eu abraçarei Carter Kane como
a um irmão!
Música começou a tocar, ecoando pelos corredores. Rá, no trono de seu
barco, acordou e começou a bater palmas. Ele sorriu enquanto os deuses
giravam em torno dele, alguns em forma humana, alguns se dissolvendo em
tufos de nuvem, fogo ou luz.
Ísis tomou minhas mãos.
— Espero que você saiba o que fez, Sadie — disse ela em uma voz gelada.
— Nosso maior inimigo se reergueu, e você destronou o meu filho e fez um
deus senil nosso líder.
— Dê a ele uma chance — eu disse, apesar de sentir meus tornozelos vi-
rando manteiga.
Hórus apertou os ombros de Carter. E suas palavras não foram amigá-
veis.
— Eu sou seu aliado, Carter — Hórus prometeu. — Vou te emprestar a
minha força sempre que pedir. Você pode reviver o caminho da minha ma-
gia na Casa da Vida, e vamos lutar juntos para destruir a serpente. Mas não
se engane: você me custou um trono. Se a sua escolha nos custar a guerra,
juro que meu último ato antes de Apófis me engolir será esmagá-lo como
um mosquito. Se ganharmos esta guerra sem a ajuda de Rá, se isso vier a

376
SADIE

acontecer, se você tiver me desgraçado para nada, eu juro que a morte de


Cleópatra e a maldição de Aquenáton serão parecidos com nada, compa-
rado com a ira que despejarei sobre você e sua família para sempre. Você me
entendeu?
Para crédito de Carter, ele ergueu o olhar sobre o deus da guerra.
— Basta fazer a sua parte — Carter respondeu.
Hórus riu para o público como se ele e Carter tivessem acabado de com-
partilhar uma boa piada.
— Vá agora, Carter. Veja o que custou sua vitória. Esperemos que todos
os seus aliados não compartilhem esse destino.
Hórus virou as costas para nós e se juntou à celebração. Ísis sorriu para
mim uma última vez e se dissolveu em um arco-íris cintilante.
Bastet estava ao meu lado, segurando sua língua, mas ela olhou como se
quisesse retalhar Hórus como um poste de arranhar.
Anúbis ficou constrangido.
— Sinto muito, Sadie. Os deuses podem ser...
— Ingratos — perguntei — irritantes?
Seu rosto ficou vermelho. Supus que ele pensou que eu estava falando
dele.
— Nós podemos ser lentos para perceber o que é importante — disse por
fim. — Às vezes, demora algum tempo para aceitarmos algo novo, algo que
pode nos mudar para melhor.
Ele me encarou com aqueles olhos aconchegantes, e eu queria derreter
em uma poça.
— Nós temos que ir — Bastet interrompeu. — Mais uma parada, se você
estiver bem para ela.
— O custo da vitória — Carter lembrou. — Bes? Ele está vivo?
Bastet suspirou.
— Pergunta difícil. Vamos lá.

O último lugar que eu queria ver de novo era os Acres Ensolarados.


Nada mudou muito na casa de repouso. Nenhum sol renovador ajudou
os deuses senis. Eles ainda estavam girando em volta de seus suportes para

377
O TRONO DE FOGO

soro, batendo nas paredes e cantando hinos antigos, enquanto eles procura-
vam em vão os templos que não existiam mais.
Um novo paciente tinha se juntado a eles. Bes estava sentado com uma
camisola de hospital em uma cadeira de vime, olhando pela janela para o
Lago de Fogo.
Taueret se ajoelhou ao seu lado, e seus pequenos olhos de hipopótamo
estavam vermelhos de tanto chorar. Estava tentando fazê-lo beber com um
copo de vidro.
A água escorria pelo queixo de Bes. Ele olhava fixamente na cachoeira
de fogo à distância, com seu rosto inundado de luz vermelha. Seus cabelos
encaracolados haviam sido recém-penteados, e estava vestindo uma camisa
azul nova, havaiana e shorts, então parecia bastante confortável. Mas seu
rosto estava franzido. Seus dedos seguravam os braços, como se ele soubesse
que deveria se lembrar de algo, mas não conseguia.
— Está tudo bem, Bes — A voz de Taueret tremeu quando ela limpou seu
queixo com um guardanapo. — Nós vamos trabalhar nisto. Eu vou cuidar de
você.
Então nos notou. Sua expressão endureceu. Para uma deusa bondosa do
parto, Taueret poderia parecer bem assustadora quando quisesse.
Ela deu um tapinha no joelho do deus anão.
— Eu já volto, querido Bes.
Ela se levantou, o que foi um grande feito com sua barriga inchada, e
dirigiu-nos para longe de sua cadeira.
— Como você se atreve a vir aqui! Como se você não tivesse feito o sufi-
ciente!
Eu estava prestes a romper em lágrimas e me desculpar quando percebi
que sua raiva não se destinava a Carter ou a mim. Ela estava olhando para
Bastet.
— Taueret... — Bastet estendeu as mãos. — Eu não queria isso. Ele era
meu amigo.
— Ele foi um dos seus brinquedos de gato! — Taueret gritou tão alto que
alguns dos pacientes começaram a chorar. — Você é tão egoísta como todos
da sua espécie, Bastet. Você o usou e o descartou. Você sabia que ele te
amava, e se aproveitou disso. Você brincava com ele como um rato sob sua

378
SADIE

pata.
— Isso não é justo — Bastet murmurou, mas o cabelo dela começou a
eriçar como ela faz quando está com medo.
Eu não podia culpá-la. Não há quase nada mais assustador do que um
hipopótamo enfurecido.
Taueret pisou com força, e seu salto quebrou.
— Bes merecia mais do que isso. Ele merecia mais do que você. Tinha um
bom coração. Eu...eu nunca mais me esquecerei dele!
Senti uma luta muito violenta entre uma gata e uma hipopótama prestes
a começar. Eu não sei se eu fiz isso para salvar Bastet, ou para poupar os
pacientes de serem traumatizados ou para amenizar minha culpa, mas fiquei
entre as deusas.
— Nós vamos corrigir isso — disparei. — Taueret, eu juro pela minha vida.
Nós vamos encontrar uma maneira de curar Bes.
Ela olhou para mim, e sua raiva fora drenada de seus olhos até que não
restou nada além de pena.
— Criança, oh criança... Eu sei o que você quer dizer. Mas não me dê
falsas esperanças. Eu tenho vivido com falsas esperanças por muito tempo.
Vá vê-lo, se necessário. Veja o que aconteceu com o melhor anão do mundo.
Então, nos deixe em paz. Não prometa-me o que não pode cumprir.
Ela se virou e saiu mancando em seu salto quebrado para a sala das en-
fermeiras. Bastet abaixou a cabeça. Ela expressava um sentimento muito es-
tranho para um gato: vergonha.
— Eu vou esperar aqui — anunciou.
Eu poderia dizer que foi a sua resposta final, assim, eu e Carter nos apro-
ximamos de Bes sozinhos.
O deus anão não se moveu. Ele se sentou em sua cadeira de vime, com
a boca ligeiramente aberta, os olhos fixos no Lago de Fogo.
— Bes?
Eu coloquei minha mão em seu braço.
— Você pode me ouvir?
Ele não respondeu, é claro. Ele usava uma pulseira com seu nome escrito
em hieróglifos, carinhosamente decorados, provavelmente feitos pela pró-
pria Taueret.

379
O TRONO DE FOGO

— Sinto muito. — falei — Nós vamos pegar seu ren de volta. Nós vamos
encontrar uma maneira de curá-lo. Não vamos, Carter?
— Sim.
Ele limpou a garganta, e posso garantir que ele não estava agindo muito
macho naquele momento.
— Sim, eu juro, Bes. Mesmo se for...
Ele provavelmente ia dizer mesmo se for a última coisa que nós faremos, mas
decidiu não dizer nada. Atendendo à guerra eminente com Apófis, era me-
lhor não pensar em como tão rápido nossas vidas podiam acabar.
Inclinei-me e beijei a testa de Bes. Me lembrei de como nós tínhamos
nos encontrado na Estação de Waterloo, quando ele levou Liz, Emma e eu
em segurança. Me lembrei de como ele assustou Nekhbet e Babi em sua
ridícula sunga. Pensei sobre a boba cabeça de Lênin de chocolate que ele
comprou em São Petersburgo, e como ele colocou Walt e eu em segurança
no portal nas Areias Vermelhas. Não consegui pensar nele como pequeno.
Ele tinha uma enorme, colorida, engraçada e maravilhosa personalidade –
parecia impossível que ele se fora para sempre. Ele deu sua vida imortal para
comprar para nós uma hora extra.
Não pude deixar de chorar. Carter me puxou para longe. Eu não me
lembro de como chegamos de volta em casa, mas lembro de me sentir como
se estivéssemos caindo ao invés de subir, como se o mundo mortal tivesse se
tornado um lugar mais profundo e mais triste do que qualquer lugar do
Duat.

Naquela noite, sentei sozinha no meu quarto com as janelas abertas. A pri-
meira noite de primavera estava surpreendentemente quente e agradável.
Luzes brilhavam ao longo das margens do rio. A fábrica de bagel do bairro
encheu o ar com o cheiro de pão. Eu ouvia a minha playlist de músicas tristes
e me perguntava como era possível que meu aniversário tivesse sido apenas
alguns dias atrás.
O mundo mudou. O deus sol retornou. Apófis estava livre de sua jaula
e, embora tivesse sido banido a uma parte muito profunda do Duat, estaria
trabalhando em seu caminho de volta muito rapidamente. A guerra estava
chegando. Nós ainda tínhamos muito trabalho a fazer. No entanto, eu estava

380
SADIE

sentada aqui, ouvindo as mesmas músicas de antes, olhando para o meu


pôster de Anúbis e me sentindo impotentemente conflitada sobre algo tão
banal e irritante como... sim, você adivinhou. Garotos.
Alguém bateu na porta.
— Entre — falei sem muito entusiasmo.
Pensei que fosse o Carter. Conversamos muitas vezes no final do dia,
mas apenas sobre reuniões. Ao contrário, era Walt, e de repente eu estava
muito consciente que eu estava vestindo uma surrada camiseta velha e estava
de pijama. Meu cabelo, sem dúvida parecia tão horrível quanto o de Nekh-
bet. Se Carter me visse desta maneira não haveria problemas. Mas Walt?
Ruim.
— O que você está fazendo aqui? — perguntei um pouco alto demais.
Ele piscou, obviamente surpreso com a minha falta de hospitalidade.
— Desculpe, eu vou sair.
— Não! Eu digo... tudo bem. Você só me surpreendeu. E... você sabe...
nós temos regras com relação à garotos entrarem no quarto de garotas sem,
hum, supervisão.
Percebi que havia soado terrivelmente pesado para mim, quase Carte-
resco. Mas eu estava nervosa.
Walt cruzou seus braços. E ele tinha braços muito bons. Estava vestindo
sua camisa de basquete e um calção, com sua usual coleção de amuletos ao
redor de seu pescoço. Ele parecia tão saudável e atlético que era difícil acre-
ditar que estava morrendo de uma antiga maldição.
— Bem, você é uma instrutora. — disse ele — Você pode me supervisionar?
Não há dúvida de que eu estava corando horrivelmente.
— Certo. Suponho que se você deixar a porta entreaberta... Er, o que lhe
traz aqui?
Ele encostou a porta do armário. Com algum horror, percebi que ainda
estava aberto, revelando meu pôster de Anúbis.
— Há tanta coisa acontecendo — disse Walt. — Você tem o suficiente para
se preocupar. Eu não quero que você se preocupe comigo também.
— Tarde demais — admiti.
Ele balançou a cabeça, como se ele compartilhasse minha frustração.
— Naquele dia, no deserto, em Bahariya... você pensaria que sou louco

381
O TRONO DE FOGO

se eu disser que foi o melhor dia da minha vida?


Meu coração acelerou, mas eu tentei manter a calma.
— Bem, o transporte público egípcio, bandidos de estrada, os camelos
fedorentos, múmias psicóticas romanas, e agricultores possuídos... Nossa,
foi um grande dia.
— E você — disse ele.
— Sim, bem... Acho que pertenço a essa lista de catástrofes.
— Não foi o que eu quis dizer.
Eu estava me sentindo como uma orientadora muito ruim – nervosa e
confusa, e tendo pensamentos muito não-supervisórios. Meus olhos se des-
viaram para a porta do armário. Walt percebeu.
— Ah. — Ele apontou para Anúbis. — Você quer que eu feche isso?
— Sim — eu falei. — Não. Possivelmente. Eu quero dizer, não importa.
Bem, não é que isso não importa, mas...
Walt riu como se o meu desconforto não o incomodasse.
— Sadie, olha. Eu só queria dizer que, aconteça o que acontecer, estou
feliz de ter te conhecido. Eu estou contente de ter vindo para o Brooklyn.
Jaz está trabalhando em uma cura para mim. Talvez ela encontre alguma
coisa, mas de qualquer modo... está tudo bem.
— Não está tudo bem! — Acho que minha raiva me surpreendeu mais do
que surpreendeu ele. — Walt, você está morrendo de uma maldição san-
grenta. E eu tinha Menshikov ali, pronto para me dizer a cura, e... eu falhei
com você. Como eu falhei com Bes. E nem trazer Rá de volta corretamente
eu consegui.
Fiquei furiosa comigo mesma por chorar, mas eu não poderia ajudá-lo.
Walt se aproximou e se sentou ao meu lado. Ele não tentou colocar o braço
em volta de mim, o que foi tão bom. Eu já estava bastante confusa.
— Você não falhou comigo — disse ele. — Não falhou com ninguém. Fez
o que era certo e isto precisou de sacrifício.
— Não você — respondi. — Eu não quero que você morra.
Seu sorriso me fez sentir como se o mundo fosse reduzido a apenas duas
pessoas.
— O retorno de Rá pode não ter me curado — ele disse — mas continua
me dando uma nova esperança. Você é incrível, Sadie. De um jeito ou de

382
SADIE

outro, nós vamos fazer este trabalho. Eu não estou deixando você.
Aquilo soou tão bem, tão excelente e tão impossível.
— Como você pode prometer isso?
Ele deslocou os olhos para a imagem de Anúbis, em seguida, de volta
para mim.
— Apenas tente não se preocupar comigo. Temos de nos concentrar em
derrotar Apófis.
— Alguma ideia de como?
Ele gesticulou em direção à minha mesa de cabeceira, onde o meu velho
gravador estava – um presente de meus avós anos atrás.
— Conte as pessoas o que realmente aconteceu — ele disse. — Não deixe
Jacobi e os outros espalharem mentiras sobre sua família. Eu vim para o
Brooklyn porque peguei sua mensagem, a gravação sobre a pirâmide verme-
lha e sobre o amuleto djed. Você pediu por ajuda, e nós respondemos. Está
na hora de pedir ajuda de novo.
— Mas quantos magos nós conseguimos da primeira vez... vinte?
— Ei, nós fomos muito bem na noite passada.
Walt olhou em meus olhos. Eu pensei que ele poderia me beijar, mas
algo nos fez hesitar – um senso que só iria tornar as coisas mais incertas,
mais frágeis.
— Mande outra fita, Sadie. Basta dizer a verdade. Quando você fala... —
Ele deu de ombros e, em seguida levantou-se para sair. — Bem, você é muito
difícil de ignorar.
Poucos momentos depois que ele saiu, Carter entrou, com um livro de-
baixo do braço. Ele me encontrou escutando música triste, e olhando para
o gravador na cômoda.
— Isso foi Walt saindo do seu quarto? — perguntou.
Um pouco de protecionismo fraterno penetrou em sua voz.
— O que aconteceu?
— Oh, apenas...
Meus olhos estavam fixos no livro que ele estava carregando. Era um
livro esfarrapado, e me perguntei se ele queria me dar uma espécie de lição
de casa. Mas a capa parecia tão familiar: o desenho de um diamante. A capa
tinha letras multicoloridas.

383
O TRONO DE FOGO

— O que é isso?
Carter sentou ao meu lado. Nervoso, ele me ofereceu o livro.
— É, hum... não é um colar de ouro. Nem mesmo uma faca mágica. Mas
eu disse que tinha um presente de aniversário para você. Este...
Corri meus dedos sobre o título: Levantamento Blackley de Ciências
Para o Primeiro Ano de Faculdade, Décima Edição. Então eu abri o livro.
Na capa interna, estava escrito o nome em uma bonita letra cursiva: Ruby
Kane.
Era o livro da mamãe na faculdade – o mesmo que ela costumava ler
para nós na hora de dormir. A mesma cópia.
Pisquei, em lágrimas.
— Como você conseguiu...
— Um shabti de recuperação da biblioteca — disse Carter. — Eles podem
encontrar qualquer livro. Eu sei que é... uma espécie de presente imperfeito.
Não me custou nada, e eu não fiz isso, mas...
— Cale a boca, seu idiota! — atirei meus braços ao redor dele. — É um
presente de aniversário maravilhoso. E você é um irmão maravilhoso!
[Ótimo, Carter. Aí está, gravado para sempre. Basta não ter uma imagi-
nação grande. Falei num momento de fraqueza.]
Nós viramos as páginas, sorrindo para o bigode que Carter tinha dese-
nhado na cara de Isaac Newton e os diagramas desatualizados do sistema
solar. Encontramos uma velha mancha de comida que foi provavelmente
uma das minhas maçãs. Eu adorava maçãs. Corremos nossas mãos sobre as
notas nas margens, feitas em letra cursiva pela mamãe.
Eu me senti mais perto de minha mãe apenas segurando o livro, e espan-
tado pela consideração de Carter. Eu aprendi seu nome secreto e achava que
eu sabia tudo sobre ele, e ele ainda conseguiu me surpreender.
— Então, o que você estava dizendo sobre Walt? — ele perguntou. — O
que está acontecendo?
Relutantemente, eu fechei o Levantamento Blackley de Ciências. E sim, essa
foi provavelmente a única vez em minha vida que eu tinha fechado um livro
com relutância. Levantei-me e coloquei o livro no meu armário. Então pe-
guei o meu gravador antigo de fitas cassete.
— Temos trabalho a fazer — disse a Carter.

384
SADIE

E atirei-lhe o microfone.

Então agora você sabe o que realmente aconteceu no equinócio, como o


antigo Sacerdote-leitor Chefe morreu, e como Amós tomou seu lugar. Des-
jardins sacrificou sua vida para nos dar tempo, mas Apófis está trabalhando
rapidamente em seu caminho para sair do abismo. Podemos ter semanas, se
tivermos sorte. Dias, se não tivermos.
Amós está tentando afirmar-se como o líder da Casa da Vida, mas não
vai ser fácil. Alguns nomos estão em rebelião. Muitos acreditam que os Kane
assumiram pela força.
Estamos enviando esta fita para ajustar o registro.
Nós não temos ainda todas as respostas. Não sabemos quando ou onde
Apófis irá atacar. Não sabemos como curar Rá, ou Bes, ou mesmo Walt. Nós
não sabemos qual é o papel que Zia vai ter, ou se podemos confiar nos deuses
para nos ajudar. Mais importante, eu estou completamente dividida entre
dois caras incríveis – um que está morrendo e outro que é o deus da morte.
Que tipo de escolha é esta, eu lhe pergunto?
[Certo, desculpe... está acabando a fita novamente.]
O ponto é, onde quer que esteja, independentemente do tipo de magia
que você pratique, precisamos de sua ajuda. A menos que nos unamos e
aprendamos o caminho dos deuses rapidamente, não temos a menor
chance.
Espero que Walt esteja certo e você vai me achar difícil de ignorar, por-
que o relógio está correndo. Nós vamos manter um quarto preparado para
você na Casa do Brooklyn.

385
NOTA DO AUTOR

Depois de publicar esta transcrição alarmante, me compeli a fazer uma checagem


dos fatos da história de Sadie e Carter. Eu gostaria de poder dizer-lhe que inventei
tudo isto. Infelizmente, parece que muito do que eles têm relatado é baseado em fatos.
As relíquias egípcias e os locais mencionados, como Estados Unidos, Inglaterra,
Rússia e Egito, existem. O palácio do príncipe Menshikov, em São Petersburgo, é
real, e a história do casamento do anão é verdade, embora eu não possa encontrar
nenhuma menção de que um dos anões poderia ter sido um deus, ou que o príncipe
tinha um neto chamado Vladimir.
Todos os deuses egípcios e monstros que Carter e Sadie encontraram são compro-
vados em fontes antigas. De muitas maneiras diferentes é contada a história da jor-
nada noturna de Rá através do Duat e, embora as histórias variem muito, as de
Carter e Sadie se assimilam muito ao que sabemos da mitologia egípcia.
Em resumo, creio que eles podem estar dizendo a verdade. O pedido de ajuda de
Carter e Sadie é genuíno. Se outras gravações de áudio caírem em minhas mãos, vou
retransmitir as informações, mas se realmente Apófis está se reerguendo, podem não
haver mais oportunidades. Para o bem do mundo inteiro, espero estar errado.
GLOSSÁRIO

Feitiços usados por Carter e Sadie:

– A’max (Queimar)

– Ha-di (Quebrar)

– Ha-tep (Fique em paz)

388
GLOSSÁRIO

– Heh-sieh (Retornar)

SEM IMAGEM – Heqat (Conjura um cajado)

– Hi-nehm (Juntar)

– L’mun (Esconder)

– N’dah (Proteger)

389
O TRONO DE FOGO

– Sa-per (Enganar)

– W’peh (Abrir)

390
OUTROS TERMOS EGÍPCIOS

Aaru: A vida após a morte egípcia, o paraíso


Aton: O sol (o objeto físico, não o deus)
Ba: Alma
Bau: Um espírito mal
Duat: Mundo Espiritual
Hieróglifos: O sistema de escrita do Antigo Egito, que usava símbolos para
denotar objetos, conceitos ou sons
Khopesh: Espada com uma lâmina em forma de gancho
Maat: A ordem do universo
Menhed: Paleta do escriba
Lâmina Netjeri: Lâmina de uma faca feita de ferro de meteoro utilizada na
abertura de cerimônias
Faraó: Governante do Antigo Egito
Ren: Parte da alma, nome, identidade
Sarcófago: Caixão de pedra, muitas vezes decorado com desenhos e inscri-
ções
Sau: Fabricante de encantamentos
Escaravelho: Tipo de besouro
Shabti: Escultura mágica feita de argila
Shen: Eterno
Souk: Mercado à céu aberto

391
O TRONO DE FOGO

Estela: Marcador de túmulos para pedra calcária


Tjesu heru: Uma cobra com duas cabeças - uma no lugar da cauda – e pernas
de dragão
Tyet: O símbolo de Ísis
Was: Poder

392
DEUSES EGÍPCIOS MENCIONADOS EM “O
TRONO DE FOGO”

Anúbis: Deus da morte e do funeral


Apófis: Deus do caos
Babi: Deus dos babuínos
Bastet: Deusa dos gatos
Bes: Deus anão
Geb: Deus da terra
Heket: Deusa dos sapos
Hórus: Deus da guerra, filho de Ísis e Osíris
Ísis: Deusa da magia, esposa e irmã de Osíris e mãe de Hórus
Khepri: Deus escaravelho, o aspecto de Rá durante a manhã
Khnum: Deus com cabeça de carneiro, o aspecto de Rá no pôr do sol do
submundo
Khonsu: Deus da lua
Menhit: Deusa leoa menor, casada com Onúris
Nekhbet: Deusa abutre
Néftis: Deusa dos rios
Nut: Deusa dos céus
Osíris: Deus do submundo, marido de sua irmã Ísis e pai de Hórus
Ptá: Deus dos artesões
Rá: Deus Sol e da ordem. Também conhecido como Amon-Rá

393
O TRONO DE FOGO

Sekhmet: Deusa leoa


Set: Deus do mal
Shu: Deus do ar
Sobek: Deus crocodilo
Taueret: Deusa hipopótama
Thot: Deus da sabedoria

394
SOBRE O AUTOR

RICK RIORDAN nasceu em 1964, em San Antonio, Texas, e hoje mora em


Boston com a esposa e os dois filhos. Autor best-seller do The New York
Times, premiado pelo YALSA e pela Associação Americana de Bibliotecas,
por quinze anos ensinou inglês e história em escolas de São Francisco, e é
essa experiência que atribui sua habilidade em escrever para o público
jovem. Além das séries Percy Jackson e os Olimpianos, Os Heróis do Olimpo e As
Provações de Apolo, inspiradas na mitologia greco-romana, Riordan assina as
séries As Crônicas dos Kane, que visita deuses e mitos do Egito Antigo e
Magnus Chase e os Deuses de Asgard, sobre mitologia nórdica.
OUTRAS SÉRIES DO AUTOR

Livro Um Livro Dois Livro Três

Livro Quatro Livro Cinco Livro Extra


OUTRAS SÉRIES DO AUTOR

Livro Extra Livro Extra Livro Extra


OUTRAS SÉRIES DO AUTOR

Livro Um Livro Dois Livro Três

Livro Quatro Livro Cinco Livro Extra


OUTRAS SÉRIES DO AUTOR

Livro Um Livro Dois Livro Três

Livro Extra
CROSSOVER

Livro Crossover
(Percy Jackson e os Olimpianos, Os
Heróis do Olimpo e As Crônicas dos
Kane)
OUTRAS SÉRIES DO AUTOR

Livro Um Livro Dois Livro Três

Livro Extra
OUTRAS SÉRIES DO AUTOR

Livro Um Livro Dois Livro Três

Livro Quatro Livro Extra

Você também pode gostar