Thriller - Ivaldir de Sagitario-1

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 149

Ficha Técnica

Copyright © 2023, by Ivaldir De Sagitário.


Título: Thriller.
Autor: Ivaldir De Sagitário
Gerência Editorial: Nildo Ferreira, Panzo Antônio.
Revisão Textual: Ivaldir De Sagitário.
Capa: Bondi Kiala — Estúdio Bondiy.
Projecção Gráfica: Nildo Ferreira.
Diagramação: Nildo Ferreira.
Edição: 1ª, 2023.
Endereço: Urbanização KK-5000, rua J, Luanda-
Angola.
Todos os direitos desta edição reservados a:
Ivaldir De Sagitário.
Vai amedrontar uns
Não vai amedrontar outros
MAS…
Espíritos existem.
Faz sentido você crer.
Faz sentido você não crer.
São espíritos…
E se descobrisses que…
…sendo crente ou não, tu só tens
0,01% de chances de não ir para o
inferno?
Sobre A Capa
A capa é uma homenagem a Aleluia,
uma menina de três anos cuja família,
embora conheça de perto, devo
respeitosamente manter em segredo. As
famílias dos seus progenitores tiveram um
conflito por conta dos deveres não feitos, pois
que o pai de Aleluia queria assumi-la sem ter
que assumir a mãe, mas, sem muitas
negociações, os avós maternos mandaram-na
adormecer para acordar só depois dos
deveres estarem feitos, tanto para a menina
quanto para a mãe.
Infelizmente, o pai deixou mesmo de
dar sinais, mas Aleluia está viva e, embora
dormindo sem acordar, ela pode ser vista a
respirar, deitada, e o seu coração pode ser
ouvido a bater.
“O banho nós tomámos para sobreviver.
Não foi para assaltar nenhuma casa nem
para matar alguma pessoa. Como no mato
não tivemos a chance quê para nós estudar,
usamos a magia só para conseguir ficar vivos
nas cidades e nos bairros. Não íamos ter
emprego para conseguir arrendar uma casa e
comprar mobília. Somos analfabetos. Então,
de dia, recolhemos plásticos para fazer uns
trocos, e, nas madrugadas, temos que
escolher uma casa para entrar sem acordar
os donos, mas é só para poder comer alguma
coisa, deitar o corpo no cadeirão e ver um
pouco de televisão.
Quando está quase a ficar claro, nós
deixamos tudo como estava. Tem dias que
deixamos a casa arrumada e aí teremos que
escolher outra casa para passar a noite.
Só podemos visitar a mesma casa uma
vez por ano, mas é um prazer conhecer a
sua”.

Depoimento de um voador capturado.


No fundo, ouvia um coro de vozes cujas
palavras não conseguia perceber. Era como se as
palavras e a confusão estivessem a acontecer no
meu sonho, mas, de tanto colapso, acabei
despertando e percebendo que a confusão era real.
Fui para a janela, afastei a cortina e vi uma série de
vizinhos reunidos e agitados lá, embaixo. Deviam ter
apanhado um gatuno, que não é algo que costumo
perder. Então, vesti-me imediatamente para descer
com o pessoal de casa e, acendendo o telemóvel,
acabei percebendo que estávamos na rua, em pleno
início de madrugada, a fazer confusão.
Por alguma razão, as pessoas da centralidade
em que moro não interagem tanto. Só para ter uma
ideia: há pessoas do mesmo edifício que nunca se
viram e não se conhecem nem só de nome. Então, se
fores um estranho e ficares na portaria do edifício,
alguém far-te-á entrar por pensar que és um vizinho
que se esqueceu da chave.

— Bom dia, vizinho! Aqui se passa o quê? —


Abordei o que estava de imediato alcance.
— Bom dia! — respondeu — Epa, segundo o
que ouvi, é um bruxo que estava a voar e caiu.
Aproximei-me para ver o capturado mais de
perto e realmente vi um homem nu. Ele estava
desprocessado, tonto, e aquela agitação só lhe fazia
virar o rosto para qualquer direção da qual viesse o
som mais audível. Seus olhos, em contraste com a
noite, acendiam como os de um gato face à luz dos
telemóveis usados para reluzir, filmar e fotografar a
cena.
Em pouco tempo, mais dois vizinhos
acabaram de chegar, e chegaram com combustível e
fósforo. Alguns gritavam para avançar e outros, para
se tomar uma medida menos severa. Uma decisão
tinha que prevalecer e, como forma de flash,
começaram a agredir o bruxo, que acabou perdendo
a pouca força que tinha e ganhando ferimentos
carimbados com sangue escurecido e reflector, pela
pouca luz que a lua tinha de empréstimo para
aquela noite.
Depois da fusão brotada pela valentia dos
homens e pela sensibilidade das senhoras, a
madrugada ganhou mais luz; só que, dessa vez, por
conta do incêndio. O dia foi, de início, marcado com
a vizinhança à volta de um homem nu que
xinguilava, gritava e se expressava de várias formas
por não suportar a dor da queimadura. Aquela foi a
marca do dia, a marca geral. Só que, estranhamente,
houve outra marca, e muito singular: nos últimos
instantes de vida, ele já não se queixava mais.
Simplesmente se notava o enfraquecimento, o fim da
vitalidade, a perda de velocidade, mas o homem
tirou as últimas forças da reserva, ajoelhou-se,
olhou para cima e, logo a seguir, olhou para mim e
focou nos meus olhos. Foi a primeira vez que vi
alguém morrer queimado, a primeira vez que tinha
visto um bruxo revelado tão perto. Fiquei paralisado.
Aquele jeito de olhar deixou-me ainda mais
assustado. Foi como uma espécie de hipnose;
tentava virar o rosto, piscar, desviar, mas eu não
conseguia. Não era uma concentração normal. Ele,
com o braço esquerdo, apontou em minha direção,
com sua mão trémula, e ficou assim por bem menos
de um minuto. Mais sal e pedras foram atirados
contra ele, e, justamente com a mão esquerda
esticada, seus joelhos desdobraram, suas pernas se
estenderam, a fronte do seu tronco tocou o chão e…
mais nada de expressão. Já era dado como morto.
Às 03:49, depois de olhar para o relógio, a rua
estava quieta, mas parecia que, mesmo dentro das
suas casas, ninguém mais conseguiu dormir. Eu
mesmo não consegui dormir nem desligar as luzes.
Olhei para as janelas e vi que, com as outras casas,
estava a acontecer o mesmo. Ficámos todos na sala,
só a conversar sobre o assunto.
Ficou claro e era mais uma das manhãs em
que me vi acordar sem lembrar de ter adormecido.
Meus pais já estavam a se preparar para o trabalho;
meu irmão mais novo, Gaspar, ainda estava a
dormir. Levantei-me, saudei os meus pais e pus-me
a planear a matina, já que era sábado e marquei de
ver a Ester, minha namorada.
O dia começou tão perturbador, que tomei um
susto quando senti o vibrar do telemóvel no meu
bolso. Tirei-o para atender e era o meu primo
Teodoro.

— Teo, como é que é? — Saudei-o.


— Estou numa, sardão. E você aí? — Reagiu,
sempre bem humorado.
— Também estou bem. Qual é a boa?
— É sábado, jovem! Deixa de ser velho. Cai
aqui na banda. Vamos pausar com a tropa.
— Ih, mano, fica difícil. Fiquei de ver a dama
hoje.
— Se envolve mulher, para mim é sempre
justo, mas... a que horas?
— Bom, eu fiquei de estar lá por volta das
15h.
— Ah, então cai, mano! Vem já pronto. Ficas
umas duas horas e, a seguir, vais ter com ela.
— Nada fixe inventar caminhos por cima de
um outro já agendado, mas… yha, pode ser.

Teodoro é o que há de mais louco na minha


vida. Não tivemos a graça de partilhar o mesmo
sangue, pois foi fruto de uma traição por parte da
sua mãe, ex-mulher do meu tio. Embora seja sangue
de um outro homem, meu tio se recusou a colaborar
com o aborto e disse que assumiria mesmo assim.
Segundo o que contam, deu um problema dos
grandes, mas Teodoro acabou sendo uma criança
muito amada. Entre nós, os primos, ele era a
criança fofa, a criança que não tinha receio de fazer
perguntas nem de elogiar os mais velhos. Era
praticamente a alegria que faltava na família. Por
fim, meu tio separou-se da mulher, mas não abriu
mão dele. Descobriu depois que não podia ter filhos,
mas, bem antes dessa descoberta, Teodoro já era o
seu tesouro, o seu presente divino, o seu xodó.
Era começada a segunda quinzena de Julho e
o dia seguia frio, cinzento, enquanto me preparava
para seguir rumo aos meus compromissos.
Cobri-me de arrepios quando cheguei, porque,
antes de me deparar com o Teodoro, fui
carinhosamente recebido por Oceano, meu rottweiler
que, por não ser permitida a entrada de animais no
edifício para o qual nos mudámos, ficou sob os
cuidados do Teo. Oceano correu, rodopiou, ergueu-
se, abanou a sua curta cauda e, como sempre,
evidenciou o quanto sou amado nesta vida. Recebeu
o nome de Oceano porque seus pêlos pretos sempre
me lembraram o escuro do mar, aquela impressão
de haver um buraco enorme nos oceanos…
talassofobia. Teodoro, ouvindo, saiu para o quintal e
acabámos abrindo outra festa.
Reencontros são lindos, mas também são
tristes quando temos infinitas saudades e apenas
duas horas para matá-las. É como ter duas balas
para disparar contra um inimigo de três vidas.
Então, reencontros também machucam, quando
temos sentimentos e, logo, outra despedida à nossa
espera.
Teo recebeu a ligação do meu tio, que pediu
que ele fosse ao ATM levantar dinheiro porque sairia
cedo no dia seguinte. Já que ainda tinha tempo,
ofereci-me para acompanhá-lo, e então nos
levantámos para sair. Partiu-me o coração, despedir
o Oceano de novo. É que, embora cães não possuam
rosto humano, eles conseguem expressar o que
sentem tal como nós. Ele dirigiu-se novamente a
mim, fazendo festa, mas como forma de pedir para
ficar. Bom, o tempo não parava de passar e, por
conta disso, tive que sair, apesar do peso na
consciência. Só surgiu que, insistindo em olhar mais
uma vez para ele, notei que estava a usar uma
coleira diferente da que eu havia comprado. Essa
nova era branca com veias desenhadas a preto e um
"999" anexado em ponto grande, pintado a vermelho.
O que acabei não percebendo é se a coleira estava
virada ou nem por isso.
No caminho para o ATM, neste caso, do BFA
da Cimex, bairro Popular ou Neves Bendinha, havia
uma rua que costumávamos frequentar. Era a rua
do Fábio. Aproveitámos chegar perto e bater o
portão, mas, quando esperávamos somente
encontrar o Fábio, encontrámos também o Stone e o
Calei, que também chamamos de Klaus por ser
claustrofóbico. Há quatro anos, nós os cinco
havíamos oficializado a nossa banda de rock, e o
quintal do Fábio era o nosso local de ensaio. A
banda se chamava Ritual 3, como menção à
vulnerabilidade humana no período das 03h,
quando se está acordado em plena madrugada. A
hora 3 é um período homicida, segundo o
constatado. É o período em que os espíritos surtam
pelo toque do sino. Os portais de acesso ao mundo
físico se abrem e eles logo vagueiam rumo às zonas
espiritualmente mais frágeis. Eles atacam em
massa, perseguem sensibilidades e fazem da noite
um palco de suicídios e pesadelos antes que o sol se
aproxime e a vitalidade do dia comece a nascer. É a
chamada hora morta, a hora do diabo, a hora de,
por força, pegarem almas pelos cabelos e arrastarem
para os confins do inferno. Alguns não resistem e
tiram suas próprias vidas; outros simplesmente
nunca mais acordam, e autoridades correm risco por
ser a hora decisiva para os assaltantes. Eles querem
consumar logo os assaltos e voltar para as suas
casas. Então, a agressividade aumenta. É mais fácil
o assaltante se render às 00h do que às 03h.
Continuando, começámos fazendo rock alternativo,
primando por um som mais calmo, por composições
mais calculadas e melodias menos esquecíveis, mas
vimos o projecto acabar porque a maioria preferia
vertentes mais pesadas, mais sórdidas e mais
agressivas. Não se sabia, por fim, se prevalecia a
sonoridade de Deus, se prevalecia a sonoridade do
diabo ou se fazíamos um abraço apocalíptico entre
ambos.
Na banda, eu tocava guitarra ritmo, o Fábio
tocava bateria, o Teodoro tocava baixo, o Stone
tocava guitarra solo e o Calei era o vocalista. Várias
influências faziam cada um do grupo, de Coldplay,
Linkin Park e Three Days Grace, a Slipknot, Gojira e
Rammstein. Então, desse reencontro, deu para irmos
a caminho do ATM e preenchermos o tempo com
muita conversa.
Um ano eleitoral sempre dá o que falar. A fila
estava consideravelmente longa, mas não havia sol
e, por estarmos em companhia, estava tudo bem.
Havia, atrás de nós, um senhor que, sem receio
algum, abriu um assunto político, afirmando, em
algum momento, que o ex-presidente fora
envenenado pelo seu sucessor. Nós os cinco nos
olhámos e o Calei adiantou-se:

— Se o senhor for levado agora a tribunal, terá


como provar isso?
— Não precisa provar. Já está mesmo na cara
que foi ele! — O senhor respondeu.
— Deixa só, pai. Já estou a ver que não vamos
a lado nenhum.
— Estás a pensar o quê? Que sabes mais do
que eu?! — O senhor questionou, enfurecendo.
— Calma já, papá. — Disse o Stone, para
acalmá-lo.
— Não dá para acalmar! Quantos anos esse
mijão tem? — O senhor insistiu.
— O suficiente para saber que somente deve
afirmar coisas que tem como provar. — Fábio
intrometeu-se.
— Provar assim como?

Nós, novamente, nos olhámos e demos conta


que a situação era grave. Por vezes, conversas viram
discussões só mesmo porque, em algumas
sociedades, especulações e factos são tidos,
infelizmente, como a mesma coisa. Calei foi
confrontado pela idade, quando um senhor já vivido
nem mais devia afirmar coisas que fariam sua
própria desgraça.

— Cota, provar é mostrar por a+b que a coisa


realmente aconteceu. Por vezes, o pai está a dizer a
coisa certa, mas, se o pai não viu com os próprios
olhos e não gravou com o próprio telefone, convém
ficar calado, guardar a informação. Se perguntarem
ao pai qual era a cor da camisa que ele usou no
momento do envenenamento, ou mesmo qual foi o
veneno usado, o pai terá que saber responder a isso
e mostrar alguma imagem ou vídeo. Caso contrário,
o pai poderá ser preso. — Fábio explicou.

— Então, estás a me mandar calar a boca?!


Preso de quê?! Matei? Roubei? — Complicou, e a fila
pôs-se a rir.
— Eh, pai, deixa só! Culpados somos nós. —
Disse o Fábio.

O senhor continuou com o seu


descontentamento, afirmando que nós não o
conhecíamos, que não vimos as coisas que ele já viu,
que não sabíamos se ele era de onde nem o que ele
podia fazer connosco. Teodoro acabou pedindo
desculpas de um jeito menos irónico para ver o
problema terminar de vez, e até disse que o senhor
podia passar a frente. Finalmente, houve sossego, e
continuámos, então, a falar sobre os nossos
assuntos — NASA, Opus Dei, Vaticano, Área 51,
Clube Bilderberg, NOAA, Projecto Abigail, MI-6,
Pentágono, OTO, Thelema, Sinédrio-1818, Arquivos
Nacionais, Illuminati, PEO, Nazismo, KKK, Mediums
e várias conspirações até o Teodoro levantar o
dinheiro.
Já de saída, um dos senhores da fila
aproximou-se de nós. Sua aparência era simples e
sua fala soava civilizada. Não roubou-nos muito
tempo; somente elogiou-nos por sermos cultos, bem
informados e por não termos deixado o problema
durar mais tempo. Nós agradecemos e, pouco antes
de virarmos as costas, pediu que disséssemos
quantas horas eram. Eu estava atrás e não uso
relógio. Então, tirei o meu telemóvel e disse que
eram 13h40. Ele agradeceu, os rapazes seguiram
para o interior do bairro e eu fui à paragem dos
congolenses, pegar um táxi rumo à casa da Ester.
***Ester***
Rezei para que o Lúcio atrasasse porque não
consegui ter a roupa estendida e a casa arrumada
na hora premeditada. Ele realmente atrasou, o que
era bom, mas já estava preocupada, porque
passavam das 16:30 e nem com isso ele chegava.
Meus dedos doíam de tanto ligar e já estava sem
entender se perdida estava eu ou se estavam as
chamadas.
Não conseguia ficar quieta. Tinha que me
mover, fazer alguma coisa, escrever que a relação
acabou ou perguntar se ele estava com outra.
Deu para aguentar um pouco mais, até que,
por fim, fui tirar as coisas que preparei da mesa.
Quando ouvi o portão a ser batido, fiquei entre a
empolgação e a pressa de arrumar tudo de novo.
Fui, de imediato, abrir e conduzi-lo para dentro.

— Ia te pedir uma explicação, mas já não


temos muito tempo. Também preparei comida, mas
continuamos sem tempo. Ambos perdemos e
ganhámos. Daqui a pouco, minha avó chega da
igreja. — Disse a ele.
Lúcio, cortando demoras, começou por me dar
um abraço, uma bonita expressão de saudade. A
energia do meu corpo começou a se intensificar
quando, do abraço, roubou-me um beijo demorado,
levantou-me ao colo e me levou até ao meu quarto.
Ele fechou a porta, olhou para mim como quem não
tinha medo de encarar, como quem sabia
exactamente o que fazer comigo. Minha pele
arrepiou, porque a percepção de garantia é
excitante. Ele se garantia e expressava isso no seu
olhar, no seu jeito primitivo de ser, na sua
preferência de ser mais visto como macho do que
como ser político. Eu fiquei de joelhos sobre a cama
enquanto ele, em pé, sobre o chão, me beijava
intensamente e apostava em seu jogo de mãos por
toda a extensão do meu corpo. As pulsações
nasciam e se espalhavam pela minha pele de um
modo, que morria o meu controle e nascia o meu
desejo de gemer, de suspirar, de pedir para ele tocar,
dominar, me induzir a fornicar, a pecar. Sua boca
intercalava entre os meus lábios e as bochechas;
seus dentes roçavam o meu queixo e o meu pescoço,
e, enquanto sua mão esquerda, sem vacilar,
segurava a minha nuca e a proximidade dos meus
ouvidos, sua mão direita ousava passar por baixo da
minha blusa e alcançar meus mamilos, que já
estavam duros e loucos para exibirem tamanha
rigidez. Enlouqueci. Removi a minha blusa enquanto
ele, com a mão esquerda, mandava atrevimento para
dentro da minha saia, acariciando as minhas pernas
macias e peludas, o que me fez delirar ainda mais.
"Tudo bem para ti, arriscar?", ele perguntou e eu
respondi, sonando, que sim. Lúcio retirou sua t-
shirt e levou sua boca aos meus seios, intercalando
de forma malandra entre o direito e o esquerdo, com
uma mão acariciando as minhas costas, e outra
desrespeitando a presença do meu biquini,
deixando-me molhada, quente e pronta para expelir
mais secreção. Eu olhei para a calça pela tentação
de ver a coisa dura que tocava as minhas pernas,
que me forçava a imaginar a mágica de ter um
mastro duro no meu interior. Foi então que me
colocou virada de barriga para baixo e enlouqueceu-
me com o som de seu zipper abrindo, mas, de
imediato, ouvimos o som do portão sendo aberto e
tivemos que pôr as roupas às pressas. Era a minha
avó, voltando da igreja e, obviamente, com pães
húmidos por estar sempre a fechar o saco, mesmo
quando o pão está quente.
Minha avó entrou, encontrou-me a tirar dois
pratos, que sujei às pressas, da mesa, e Lúcio
sentado, com pernas cruzadas, simulando comer o
pouco pudim que servi para parecer que estávamos
na sala há mais tempo. Julguei que ela fosse olhar
para nós de forma desconfiada, mas…
— Ester, daqui a pouco é noite. Me tira essa
roupa do fio!
— Está bem, avó. Já vou tirar.
— "Já vou tirar"?! Você pensa que espíritos
estão para brincadeiras, menina?

Quando deu pela presença do Lúcio, saudou-o


e pediu que ficasse à vontade. Lúcio levantou-se,
respondeu à saudação, agradeceu e sentou-se
novamente.

— Avó, ele é o Lúcio, meu namorado.

Ela voltou, chegou perto, deu dois beijos e


apresentou-se.

— Sou a Muxima. Para vocês, mamã ou avó


Muxima. — Iniciou.
— Com muito gosto, mamã Muxima. Sou o
Lúcio.
— Nesse caso, o azarado que aceitou essa
bagunceada. — Disse ela, a reinar.
Se algo me encanta no Lúcio, é o facto dele
saber diferenciar tão bem o seu espaço do espaço
dos outros. Ele não é um tipo formal. Ele é simples,
mas sabe dar cortesia, saudar como se deve, se
pronunciar quando permitido e usar talheres. Ele
deixa os mais novos serem informais com ele, mas
entende que deve ser respeitoso com os mais velhos,
com os formais. Ele é simplificado, orgânico,
natural. Se você tiver somente canecas de alumínio,
pratos de plástico, comidas simples, ele vai comer
normalmente. Não estranha pessoas nem lugares,
namora sem ter receio de colocar a sua boca em
minha intimidade, esteja eu menstruada ou não.
Quando voltei para a sala, aproveitei matar de
vez a curiosidade que a avó implantou em mim.

— Avó, qual é o mal de deixar a roupa passar


a noite no fio?
— Qual é o mal, ou quais são os males? — Ela
perguntou, fazendo-me repensar.
— Achei que fosse só um mal, avó.
— Mas são vários, e não acho que vais querer
falar sobre isso.
— Até que não mesmo, avó, mas um dia terei
filhos e netos. Tenho que saber explicar.
Repentinamente, a energia foi cortada. Eram
18h e do céu já não vinha muita claridade. Acender
uma vela foi a solução e o Lúcio preferiu nos fazer
companhia até que a energia se restabelecesse. Nos
sentámos, então, todos à mesa, e fizemos uma
pequena roda, roda de três, com portas fechadas e a
chama da vela jogando luz e sombra sobre os rostos
de cada um, mas a avó Muxima era o foco.

— Vocês sabem diferenciar mundo de


universo? — Começou.
— Acho que mundo é a bola onde estamos. —
Respondi.
— E universo é o espaço maior, o lugar onde o
mundo e outros planetas estão. — Lúcio respondeu.
— Isso satisfaz. — disse a avó — O que
acham? O universo é luminoso?
— Parece que sim. — Respondi.
— Tem algumas luzes, mas é maioritariamente
escuro. — Lúcio respondeu.
— Gostei disso, meu filho. O universo é uma
noite sem fim.
— Mas e o sol, avó? — Interroguei.
— É um engodo. É apenas esta vela tentando
dar luz para esta rua. Se notarem, mesmo aqui
dentro, não há luz embaixo desta mesa. A luz da
vela não chega até lá, e, aliás, só piora a escuridão.
Vá à casa de banho e diga-me se esta luz é
suficiente. Dirá que não. O sol nem é presente para
o planeta inteiro. Sua luz dá para uma parte, e outra
parte é noite. Então, meus filhos, o mundo é colocar
uma menina de 7 anos no meio de dez pedófilos e
acreditar que nada de mal vai acontecer com ela. Já
leram Génesis?
— Já sim, avó. — Respondi.
— Ela quer dizer "algumas partes". — Lúcio
completou, gesticulando as comas.
— Deus ordenou, em primeiro lugar, que
houvesse luz. Sabem o que significa?
— Que estava escuro? — Respondi,
perguntando.
— Sim, minha filha. Estava escuro. Ainda está
escuro, e a primeira coisa que vocês devem saber é
que os espíritos existem. Os anjos corrompidos já
haviam caído, já faziam morada aqui. Essa é a razão
de "algo que destruiria o mundo" estar lá, no jardim.
As raízes das árvores eram alimentadas pelo calor
que vem dos infernos. Não foi, Jesus, tentado? Os
primeiros portais do novo testamento contam sobre
isso, de modo que vocês conheçam a força dos
espíritos que costumam subestimar.
Com o passar dos séculos, os espíritos se
tornaram perigosos a ponto de termos cuidado até
com os nossos vizinhos. Nunca sabemos quem
temos por perto. Nunca sabemos quantas pessoas
moraram nas casas em que moramos e que espíritos
elas tinham. Isso quer dizer que, se, de tempo em
tempo, vinte famílias moraram aqui, nesta casa, as
almas dessas vinte famílias ainda vagueiam por
aqui. O mundo é um cemitério. Anos atrás, pessoas
morriam e eram enterradas em qualquer lugar que
desse para cavar. Tempos depois, nesses mesmos
locais, casas foram construídas, bem por cima
desses cadáveres, por cima de sangue morto.
— Que horror! — Exclamei, assustada.
— É horror sim, mas é a realidade. Viver é
uma questão de sorte, meus filhos. Os recém-
nascidos choram incansavelmente à noite porque
podem ver toda essa monstruosidade e, se resistem,
é porque a inocência, até certo ponto, nos salva. Dia
após dia, vocês cruzam com mais de quinze
feiticeiros e nem dão conta. Vocês passam por
pessoas que vão à rua fazer trabalhos de
aprisionamento e nem dão conta. Aqui, nesta nossa
rua, dentro das casas, uns levam vidas normais,
mas outros não. Há os que vivem amarrando,
aproveitando a noite para dançar em quintais
alheios. Enquanto você dorme profundamente, eles
ficam no seu quintal fazendo rituais, amaldiçoando
roupas no fio, pneus dos carros, convidam espíritos
macabros que chegam juntos da desgraça.
— Meu Deus! Quer dizer que nem todos os
acidentes são normais? — Lúcio perguntou.
— Simples como a água, meu filho. — Avó
respondeu, firme em seus dizeres.
— Nada! Agora é que nem deixo mais roupa no
fio. — Eu disse.
— Nem deves. Perigo é o que mais há no
mundo. Se não são as pessoas a nos prejudicarem,
são os espíritos. Há que orar muito; há que orar
pelos outros e há que ter pessoas orando por nós. —
Disse a avó.
— O problema é que Deus não ouve oração de
pecador, mãe Muxima. — Lúcio afirmou.
— Engodo. Você não se afasta de Deus
quando peca, mas quando é convencido de que é
sujo demais para estar perto dele. É assim que o
rebanho de ovelhas passa de cem para noventa e
nove. Você fica sozinho, fica vulnerável, se sente
indigno, sujo demais para orar, pecador demais para
ser ouvido, sente frio, fica desprotegido, e, então, o
lobo te consome mais facilmente. É mais uma vida
para amarrar, para comprometer ao abismo, às
desgraças e aos infernos. Quem é perfeito?
— Ninguém. — Eu e Lúcio respondemos.
— Quem não peca?
— Ninguém. Todos pecamos — Eu e Lúcio
respondemos, em uníssono, novamente.
— Só para vocês verem, meninos. Orem! O dia
é longo e a noite também. Orem na hora de sair e na
hora de deitar, porque sair é se entregar para a
chance de nunca mais voltar, e dormir é se doar
para a chance de nunca mais acordar.

A energia restabeleceu, e isso foi um alívio,


depois do tanto que ouvi.
Já estava a ficar tarde e Lúcio teve que se
despedir e ir para casa.

"Se, ao abrir os olhos, eu der por mim no


paraíso e por ti no inferno, juro que direi um
palavrão, de propósito.", ele diz isso sempre, no
final de cada encontro.
***Lúcio***
Acabou sendo o primeiro dia em que olhei
para a noite de uma forma estranha. Antes eu via
mais estrelas, mas, sem controlar, só consegui focar
no escuro do céu. Tinha pessoas no táxi, sentadas
ao lado, e isso me deixava desconfortável, em
completa agonia; desconfiava de tudo. Era bem a
sensação de estar a ser observado, perseguido, de
estar na mira de maldosos escondidos, mas não era
para ligar tanto. Só efeito da conversa mesmo.
No Kilamba, por sorte, há táxis pequenos que
deixam os passageiros bem na porta de seus
edifícios. Isso ajudava sempre a chegar em
segurança e a me poupar de cansaços.
Cumprimentei o pessoal, fui substituir a roupa pela
toalha e entrei para o banho, sempre levando o meu
telemóvel para ouvir música.
Depois do banho, fui servir o jantar e escrevi
para a Ester, dizendo que havia chegado bem.
Levámos um breve papo e nos despedimos,
mandando ela a última mensagem. Fui, a seguir,
trancar as portas e apagar as lâmpadas porque a
sala já estava vazia.
Meu telefone alertou outra mensagem, mas o
som não era o que eu predefini. "O que essa maluca
esqueceu de dizer? Será que está sem sono?",
pensei, mas, para a minha surpresa, era um número
estranho em vários sentidos. Não começava com
+244 e a quantidade de dígitos não era familiar. Era
"+1 998 66 62 22" e o texto dizia: "Use duas agulhas
para manter os olhos abertos, Lúcio. Caso contrário,
se prontifique a dormir para sempre".
Senti-me abismado. De onde era o número?
Como acharam o meu número? Queria acreditar ser
mensagem para vários destinatários, mas lá tinha o
meu nome. Pensei em mostrar a mensagem aos
meus pais, mas acreditei que não seria para tanto,
que no dia seguinte algum conhecido ligaria para
dizer que foi o autor da brincadeira ou que a
operadora decidiu pregar uma partida a todos os
números registados com o nome Lúcio. Reacendi as
lâmpadas todas, liguei a TV, desliguei o telemóvel e
fui ao quarto do Gaspar, para ver se dava para
dormir, mas nem com isso. Não deu para pregar os
olhos.
No dia seguinte, às 06h, embora estivesse com
sono, aproveitei ir à cantina para recarregar e
perguntar para algumas pessoas se foram elas. Falei
com o Stone, com o Klaus, com o Fábio e com o
Teodoro, mas eles negaram, e até acharam
preocupante e urgente saber logo se se tratava de
uma brincadeira de mau gosto ou de algo realmente
sério.
***Teodoro***
Durante o dia, não parei de pensar, nem por
um minuto, sobre a preocupação do Lúcio. Eu tive
uma saída para a qual quis convidá-lo, mas não
seria sério da minha parte. Então, convidei apenas o
Stone, o Fábio e o Klaus, pois que o Yannick Matos,
baixista da banda Ovelha Negra, estava aqui, em
Angola, para cuidar de uns negócios e pediu que
fôssemos lá ter, uma vez que foram eles os
responsáveis pela criação da Ritual 3. Yannick havia
preparado um ambiente para nós. Era de asfixiar,
que as músicas eram extremamente agressivas,
demoníacas e o volume estava alto além da conta. E
assim estava o ambiente: conversas aos gritos por
conta da música, mulheres tatuadas olhando para
nós, excesso de fumaça liberada por cigarros e
ervas, e muita bebida alcoólica.
Depois de alguma conversa com os outros
rapazes, que foram ocupados por suas parceiras de
ocasião, acabei me lembrando da situação do Lúcio
e bateu uma agonia, que deu para, por alguns
segundos, ensurdecer, esquecer que tinha música e
mulheres ao redor. Yannick aproximou-se e mostrou
sua preocupação. Como a música estava muito alta,
ficámos perguntando e respondendo nos ouvidos um
do outro. Expliquei a situação e ele disse que um
procedimento inteligente seria contactar um agente
de operadora, visto que o mesmo saberia identificar
o usuário e o país ao qual o terminal pertencia.
Disse-me que conhecia alguém e pediu que, uma vez
que se tratava de uma chamada, fôssemos ao quarto
para facilitar a pessoa à qual contactaria, e fomos.
Depois de três bipes a chamar, Yannick
acionou o modo "viva voz" e a pessoa atendeu.

— Quem é vivo sempre aparece. — Disse a


jovem em linha.
— E quem é exigente sempre cobra. —
Yannick respondeu.
— Claro! Lá porque terminámos, não quer
dizer que deixei de ser pessoa.
— Estás certa, mas eu disse que deixaste?
— É só drama. Não ligues muito. O que se
passa?
— A cena é que um amigo meu recebeu uma
mensagem de morte.
— Erreh! — Ela exclamou.
— Sim. Queríamos até localizar o remetente,
mas o número não é nacional. Tens como safar?
— Vou ver como fazer, mas, se não der, tipo
vamos comer feijão mesmo — Ela disse, a rir.
— Estás muito animada para o meu gosto. O
que há?
— Faltam poucos dias para eu dar à luz. Fiz
consulta hoje e o médico disse que está tudo bem.
— Oooh, meus parabéns! Trate de se
comportar até chegar o dia.
— Relaxa, kid. Sou mãe grande.
— Lá porque viraste mãe, já chamas de kid a
quem um dia te fez gemer?
— Yannick, manda-me os dados. Neste caso, o
remetente e o destinatário.
— Está fixe. Já mando.
— Beij… — Foi interrompida pelo fim dos
UTTs.

A seguir, Yannick revistou a sua lista de


contactos, copiou o número do Lúcio e colou-o no
"escrever mensagem". Inseriu, depois, o "+1 998 66
62 22" e clicou em "enviar", mas, sabe-se lá porquê,
a mensagem não foi.

— Tens aí mensagem? — Ele perguntou.


— Tenho aqui um plano de voz, mas só para
Africell. — Respondi.
— Não faz mal. Vou enviar pelo telefone de
uma dessas gajas.

Foi só sairmos do quarto e logo avistámos


uma mulher de passagem. Yannick chamou por ela
e ela aproximou-se. Foi-lhe feita a solicitação, ela
aceitou e, finalmente, a mensagem foi enviada.
Agradeci com toda a força que tinha e ele disse que
estava tudo bem. A seguir, ele segurou a moça pelas
traseiras e entraram para o quarto. Nos despedimos
com um sinal e fui procurar os outros rapazes, para
continuarmos o ambiente.
Já havíamos passado das 22h e tínhamos que
ir. Yannick agradeceu-nos por termos comparecido e
aquilo só puxou mais conversa. Deu para saber que
a banda estava a sair-se bem na França e que teria
de voltar já depois de dois dias porque tinham uma
turnê por começar na semana seguinte, pela
Europa. Então, nos despedimos, desejámos uma boa
viagem e uma boa turnê para todos eles.
"Tratem de ressuscitar a Ritual 3. Na porta
larga, cabemos todos.", foi a última coisa que ele
disse no final do encontro.
***Lúcio***
Passaram-se quatro dias — quatro dias sem
dormir em condições, e mais nada de estranho
aconteceu. Estava eu, na base da Huambo Express,
a tratar das passagens dos meus pais, que ficaram
de embarcar, às 21h, para Benguela, ver os meus
avós. Sucedeu que, depois de atravessar a estrada,
meu telefone vibrou. Achei que fosse mensagem,
mas tal vibração era contínua e logo vi que era a
ligação do Teodoro.

— Teo, manda vir, mano.


— Lúcio, estás bem?
— Vamos indo, broh. Nada de perturbações
até hoje. A amiga do Yannick deu notícias?
— O Yannick deixou-me uma mensagem.
— E então? Conseguiram localizar?
— Ela foi encontrada morta.
— A dona do número? Neste caso, são daqui
mesmo?
— Não, mano. A amiga do Yannick foi
encontrada morta.
— Como assim, "morta"?! Contaste que ela
havia ido à consulta e que estava muito bem!
— Sim, mano. Eu contei e disse que realmente
estava bem.
— Ah, santo Deus! O que houve? Morreu no
parto?
— Não. Ela dormiu e já não acordou. Foi essa,
a informação que recebi.

Fiquei sem chão. Como não ficar perturbado


depois de saber sobre a morte de dois seres
inocentes? Ela estava grávida, tinha uma criança na
barriga, estava cheia de saúde e vontade de pegar
sua primeira vida no colo, mas acabou dormindo
sem mais acordar. Tudo isso é macabro! A morte de
uma mulher em estado de gestação, a putrefação de
dois corpos, a morte de alguém que acabara de
receber confirmação médica de que estava bem.
A morte acaba connosco por conta de coisas
assim: pessoas que vão às consultas, que medem
seus níveis de açúcar no sangue e cumprem as
orientações médicas morrem e nos deixam
preocupados, porque nós estamos piores que elas.
Nós não medimos açúcar nem nada, comemos mal,
dormimos fora de horas e nem sempre praticamos
desporto. Dá a sensação de sermos os próximos. Por
outra perspectiva, eu quase nem pensava mais sobre
a estranha mensagem que havia recebido, mas o
susto ressuscitou pela tragédia ter acontecido justo
depois dela se envolver nisso.
Quando tocaram 18h, meus pais abraçaram a
mim e ao Gaspar, e pediram que nos portássemos
bem. Foi mais uma formalidade, porque o Gaspar
sempre esteve bem comigo e, tirando a escola,
nenhum outro motivo era forte o suficiente para
fazê-lo abandonar a play.
Tive que descer para ajudar os meus velhos
com as malas. Aliás, não seria gentil da minha parte
fazê-los descer com peso. Arrumámos as coisas no
porta-malas do carro que haviam chamado, eles
arrancaram e eu subi de volta. Tomei outro susto
porque, antes de abrir o gradeamento, dei de cara
com as plantas que a minha mãe havia comprado.
Estavam a ser bem cuidadas e ainda no período
matinal estavam novas, mas, naquele instante, elas
estavam velhas, secas, mortas, como se estivessem
abandonadas há um mês ou mais. Peguei
imediatamente o meu telemóvel, fotografei e enviei
ao grupo do WhatsApp criado para nós, membros da
banda.
Passaram-se 5 minutos e as notificações dos
rapazes já surgiam. Stone mandou outra imagem de
plantas degradadas, a dizer que eram as da sua
casa. A seguir, o Fábio e o Teodoro enviaram fotos
parecidas. Calei só visualizava. Passaram-se mais
uns instantes de conversa e caiu a notificação de
que Calei saíu do grupo.

***Calei***
Está difícil lidar com tudo isso. Não dá para
conversar com os rapazes sobre. Tento pregar os
olhos, mas não há sono. É então que decido sair de
casa para dar um passeio pelo bairro, espairecer,
colocar a cabeça em outros tipos de pensamentos.
Tão logo saio, fecho a porta de entrada para a
sala, ponho as chaves no bolso e me viro em direção
ao portão do quintal, quando sou surpreendido por
três homens estranhos. O que está no meio está
sentado, cruzando as pernas, lendo jornal, o que me
impede de ver o rosto. Contra o meu braço esquerdo,
está um homem alto, vestido a preto, olhando para o
chão e segurando uma picareta, e, contra o meu
braço direito, um homem mais baixo, também
vestido a preto, de capuz, olhando para o pulso e
segurando uma pá de obra. Não sei o que mais me
preocupa, se é a presença deles, a aparência deles
ou a calma deles. Parecem não ter pressa. Parecem
saber que vão cumprir a missão que os trouxe,
mesmo que eu corra mais rápido.
O homem do meio acaba de fechar o jornal e,
com voz calma, ordena: "abra a sintonia, Duende!".
O homem à minha direita põe a mão no bolso, tira
uma caixinha de som, que tem a estrutura de um
carrossel com cavalos coloridos, pousa sobre o chão
e liga. Começa a tocar uma melodia semelhante a
essas, dos berços de recém-nascidos, e fica
inevitável sentir pavor, porque, mais do que coisa de
monstros, isso é coisa de psicopatas.
Para a minha surpresa, vejo duas luvas
brancas no chão. É então que concentro e vejo um
quarto homem sair daí, de um buraco. Ele começa a
sacudir-se, pega em uma corda e olham todos para
mim. Que horror! Eles têm suas caras pintadas com
várias figuras. No mais baixo de todos, nota-se
claramente uma pintura do Mickey; no mais alto,
consigo captar a imagem do Cristo Rei, mas dos
outros dois eu não consigo ver que figuras são,
sendo que há, entre nós, bem mais de sete metros e
não há iluminação.
Rapidamente, viro-me contra a casa para
poder entrar, mas as minhas mãos tremem, falham
na fechadura e deixo cair as chaves. Começo a
gritar, mas ninguém acorda, ninguém pergunta,
ninguém responde. O Duende se aproxima,
concentra-se nos meus olhos e, de forma agressiva,
aperta o meu pescoço. Eu tento pedir para parar,
mas a minha voz já não sai. Já não tenho voz nem
ar, e só me sinto enfraquecer. Eis que, vendo a
minha vida se esgotar, ouço do fundo: "acho que já é
suficiente para um prato de entrada", e o Duende
acaba de me largar. Acabo tossindo.

— Louva-Deus, é a tua vez! — Diz a mesma


voz das ordens.
— É para já, senhor!

O mais alto de todos se aproxima e dá-me um


chute no rosto. Sinto um peso sem medidas e algo a
escorrer pela minha fuça. Ponho a mão direita e vejo
sangue grudado aos meus dedos. É aí que sinto o
ferimento arder. Sinto outro chute na barriga. Grito
de dor e nem assim alguém aparece. Acabo deitando
de barriga para baixo e, tentando levantar, sinto um
metal duro perfurar a minha mão direita. Eles
começam a rir e dá-se início a outra melodia vinda
da caixa de som. Agora, sinto ele arrancar a picareta
para fora da minha mão, que só treme e sangra de
tamanha dor. Vejo a minha pele rasgada, os meus
ossos à mostra, e o meu sangue sair como
prisioneiro que vê cela aberta. É o meu fim. Vejo ele
levantar a picareta em direção à minha cabeça.
— Não serás tu a acabar com a festa, Louva-
Deus. Ele vai ser enterrado vivo. — O homem da
cadeira ordena.

Louva-Deus fica agachado, pega-me pelo


queixo, acumula catarro e cospe no meu rosto,
mostra desgosto em seu olhar, empurra-me contra o
chão e volta à sua posição, fazendo barulho entre as
suas botas pretas e as pedrinhas do quintal.

— Sepultura! — De novo, a voz das ordens.


— Às ordens, venerado! — Responde com
avidez.

Este se aproxima e começa a me amarrar.


Por meio de um fio que deixou de margem,
Sepultura começa a me arrastar em direção ao
buraco que cavaram. Ele pega uma fita métrica, tira
as medidas da minha largura e do meu
cumprimento. "O buraco é só dois centímetros mais
largo, para que ele possa entrar, e o cumprimento dá
um tanto para colocarmos areia por cima. Ele vai
sufocar aí dentro. Vai estar apertado, justo e
morrerá de desespero", ele diz. Os outros homens se
aproximam, pegam em mim e começam a colocar-me
no buraco, de cabeça para baixo. Começo a gritar, a
desesperar, mas nem com isso eles repensam sobre
a decisão. Eu só consigo me mexer e sufocar cada
vez mais. É horrível sentir isso. Eu tenho
claustrofobia!
Consigo, por um instante, parar de me agitar,
só para respirar fundo e gritar por socorro, mas
nada acontece até agora. Ouço um tilintar de chaves
que alguém lá em cima agita e acaba de deixar cair
no buraco. Agora, desesperadamente, sinto patas de
insetos andarem em mim. Começo a me agitar mais,
a sufocar mais, a sentir o corpo mais desconfortável,
mal posicionado, e, à medida que eles se riem,
colocam a caixa de som no buraco e começam a
atirar areia, para me taparem vivo.
Meus amigos, minha família e Deus me
abandonaram. Ninguém foi capaz de me ouvir, nem
de pressentir que eu estivesse aflito. Meu corpo todo
pesa sobre a minha cabeça posicionada em
desconforto e é com desgosto e desilusão que sinto
meus últimos segundos de vida, meu cérebro se
apagar, minha pele arder de tanto ser ferrado, e
minha audição se fechar com eles rindo e zombando:
"mande nossos cumprimentos à grávida e ao seu
bebezinho", "Aleluia?", "Amém!". Eles brincam e se
riem. Eles se riem. Cada vez mais fundo. Eles se r…
***Lúcio***
Despertei com uma péssima sensação. Meu
quarto soava pesado, abafado, e, ainda na cama,
pus-me sentado, passei as mãos pelo rosto e respirei
fundo para ver se dava para acalmar.
Estranhamente, o meu telemóvel chamou e,
tomado pelo receio de ser o número da outra vez,
fiquei quieto, mas as chamadas continuavam, pelo
que decidi olhar e era a sra. Sandra, a síndica do
edifício, pedindo para ter com ela no terraço. Achei
estranho, mas ela podia estar a precisar de ajuda.
Foi então que me levantei, pressionei o interruptor
da lâmpada do quarto para vestir e dei conta de que
energia tinha ido. Ela devia precisar de ajuda para
ligar o gerador enquanto a ENDE não solucionasse o
imprevisto, visto que era madrugada.
Quando cheguei ao terraço, vi ela na outra
extremidade, de costas para mim, pegando o
parapeito. Sra. Sandra estava de roupão. Acabou
causando impacto em mim, embora seja normal
usar roupão de madrugada. Fui-me aproximando
dela, e embora os meus movimentos não fossem
discretos, ela não virava para trás. Me pareceu não
ter medo nem preocupação.
Parei de andar quando restou apenas cerca de
um metro entre mim e ela. Eu saudei, mas ela se
manteve quieta. Devia estar distraída, pensativa ou,
simplesmente, cativada pela vista para a qual se
direcionou. Então, aproveitei os poucos segundos
que me sobraram para apreciá-la enquanto não
virava.
Repentinamente, sra. Sandra tirou os braços
do parapeito, respirou fundo e concentrou-os na
posição da barriga. Parecia estar a desamarrar o
roupão, a princípio, e, pouco depois, via-se de trás
que o roupão estava aberto, mesmo fazendo frio.

— Acha que o chamei por que motivo? —


Quebrou o silêncio, falando aos sussurros, com o
seu sotaque refinado.
— Que fosse para ligar o gerador. Não há
energia no prédio. — Respondi; com atraso de uns
10 segundos.
— Eu desliguei o quadro. Não seria urgente
ligar o gerador de madrugada.
— Não tinha pensado nisso. — Respondi,
timidamente.
— O meu marido pegou voo para uma viagem
sem volta, assim como os teus pais. Percebeu isso?
— Sugeriu.
— Não tinha reparado que estava sozinha. —
Moderei.
— É estranho não ter reparado. Seus olhos
conseguem tocar as minhas pernas. Eu sinto os
seus olhos passando os dentes em mim, perfurando
o meu roupão, e olha que estou de costas. Esse tipo
de olhar não é típico de homens distraídos.
— Não foi minha intenção incomodá-la. Peço
desculpas.
— "Incomodar"? Quem disse que é um
incómodo? Eu tenho fogo por dentro e já começo a
pingar toda por tamanho vapor. Você pode me dar
um jeito? Sinto daqui que, a este ponto, você já tem
a coisa dura de que tanto preciso há dois anos. Você
quer? — Ela perguntou, sussurrando com maior
devoção.
— Sim; eu quero. — Respondi, querendo e
constrangendo.
— Então, vem. Essa síndica é tua agora. Se
fizer direito, eu mesma te levarei à minha cama, à
cama que nunca mais se deitará um marido.

Eu não resisti. Aproximei-me, segurei-a por


trás e colei o meu olfato em suas costas. Ela não
havia colocado nenhum perfume; apenas seu cheiro
natural, cheiro de pele, cheiro de fêmea, de mulher
suando feito terra molhando com a delicadeza da
chuva. Passando as minhas mãos das suas pernas à
cintura, percebi ela sem roupa interior. Então, elevei
as minhas mãos aos ombros para despi-la por
completo, mas ela foi rápida ao colocar suas mãos
sobre as minhas para tirarmos aquele roupão
juntos, e, finalmente, ela estava aí, completamente
nua e pronta para mim, com as pernas sempre
juntas.
Após os primeiros beijos, toques e suspiros,
ela colocou-me contra o parapeito, ajoelhou-se
devagar e colocou a minha calça contra a gravidade
enquanto olhava pretensiosamente para mim,
propriamente nos olhos. Eu não resisti. Inclinei a
minha cabeça para trás, fechei os olhos e preparei-
me para um começo de viagem, quando, de repente,
senti ela me erguer com força do terraço abaixo, mas
deu para, rapidamente, colocar as mãos no
parapeito e inclinar o corpo para frente, ficando
muito mal sentado na linha entre o terraço e a
probabilidade de cair de um edifício com dose
andares. Susto, berros, mecanismos de
defesa…aflição…sobrevivência. Eu gritei, ao mesmo
que me empurrava para a frente, mas ela me
pressionava para trás, dando socos e empurrões.
Com a mão direita, arrisquei segurá-la pelos cabelos
e a reação dela foi justamente a de recuar. Isso me
manteve suspenso, mas, em fracção de segundos,
ela afastou uma perna da outra, enfiou toda a mão
direita em sua vagina, retirou de lá um canivete,
extraiu a parte cortante, espetou-me raivosa no
mesmo braço e deu-me o último empurrão. Ao cair,
meu corpo ficou involuntariamente contra o chão,
que tinha alguns ferros pontiagudos virados para
cima.
Faltando segundos para cair e morrer
perfurado…
…acordei aos sustos, suado, ergui o tronco
precipitadamente, respirando fundo e passando as
mãos pelo rosto. Me sentia cansado, com a sueta
maioritariamente molhada e o braço direito dorido.
Era bem a sensação de… se eu não despertasse do
sonho a tempo, talvez eu nunca mais acordaria. Foi
real demais.
O meu tempo de respirar fundo esgotou-se
quando, tal como no sonho, o meu telefone tocou,
mas eu não precisei de atender para que desse para
ouvir a voz da pessoa em linha: "Não te preocupes
com as ruas. Somos contra a violência. Tu só
precisas de dormir, e nós, os espíritos, cuidamos do
resto", disse a pessoa, em tom morno, e continuou:
"E, da próxima, não te esqueças de trancar as portas
nem de fechar as janelas". Tomei-me de medo e
paralisei. Meu coração duplicou os disparos e não
soube mais de onde tirar coragem para tocar no
telemóvel de novo. Congelei sentado, abismado, e só
me movi depois que ficou claro. Foi então que
chamei o Gaspar, verifiquei a porta e as janelas, e
realmente estavam destrancadas, inclusive a do meu
quarto.
Depois do começo anormal que teve, vi o meu
dia estragar depois de ser informado sobre a morte
do Calei. O Stone deu-me a notificação e adiantou
que, embora tivesse o AC do quarto ligado, Calei foi
encontrado a suar, no chão, ao pé da cama, caído
com o seu lençol. Stone disse-me que já havia
passado a informação aos outros e que devíamos
estar lá o quanto antes, não só para marcar
presença, mas para apoiar nas tarefas necessárias.
Concordei, claro.
Bem no começo da participação, fui orientado
a imprimir e emoldurar a foto do Calei para ser
colocada sobre a mesa. Surgiu que, ao sair do cyber
com os papéis em mãos, deparei-me com o Inglês,
meu ex-vizinho. Na verdade, o seu nome é Inácio.
Recebeu o nome de inglês porque, há já um bom
tempo, recebeu uma bolsa para os Estados Unidos.
Ele acabou demorando mais do que o tempo
esperado porque, por ser bom, conseguiu um bom
emprego lá, mas acabou enlouquecendo e teve que
voltar. No tempo em que eu morava no Popula, ouvia
as vizinhas dizerem que alguns parentes não
gostaram da notícia e o amarraram.
Quando o Inácio voltou, ele falava inglês
sozinho no bairro. Foi então que, zombando disso,
nos referíamos a ele como o Inglês. Foi, depois,
submetido a tratamento e melhorou, mas o nome
acabou colando.

— Meu puto, estás bom? Nunca mais…! —


Saudou, calorosamente.
— Oh, cota Inácio! Estou bem; obrigado. E o
cota?
— Epah, já estou fixe, meu ndengue. Qual é a
boa?
— A tia Bia pediu que eu viesse imprimir esta
foto. — Mostrei.
— Ah, sim! Olha, eu me apercebi que o Calei
morreu. A velha me contou.
— Sim; ele morreu, infelizmente. Até agora
não conseguimos entender como.
— A princípio, senti o mesmo, mas depois que
ouvi sobre a mensagem…
— "Mensagem"?!
— Espera. — Ele disse, fazendo um sinal com
as mãos.
Inglês pediu que voltássemos ao cyber e pediu
que o homem do balcão nos cedesse uma
esferográfica.

— Vamos conversar escrevendo. É um assunto


grave e alguém pode estar a ouvir. O Stone, talvez
por remorso, contou-me sobre a mensagem que tu
recebeste. Isso realmente aconteceu? — Escreveu.
— A que mensagem se refere? — Perguntei,
escrevendo.
— A mensagem de morte, de um número
estrangeiro.
— Não. Essa eu não recebi.
— Lúcio, eu fui informado. O Calei não é a
primeira vítima, e, provavelmente, também não é a
última. — Olhou para mim, erguendo as
sobrancelhas.
— Sim. Eu recebi. — Admiti.
— Eu preciso que me passes o número. —
Solicitou.
— Eu não tenho aqui. Deixei o telefone em
casa.
— Tenta lembrar algum número! — Escreveu,
mostrando impaciência.
— Lembro que tem 1, 8, 2, 6 e um +.
— Tens certeza?
— Eu tenho, cota.
— Está bem. Olha: é provável que amanhã eu
descubra a fonte desse número. Passa na minha
casa. Além de ti, virá também o Stone. E mais uma
coisa: apareça sem telefone. — Mostrou-me o papel e
embrulhou-o todo logo em seguida. Eu disse que
estava bem.

Depois de combinarmos, tive que sair às


pressas. Conhecia-se o cyber e a ligeira distância
não justificaria tanta demora. E fui.

***Mamã Muxima***
Havia acabado de chegar da igreja quando,
estranhamente, minha neta veio pedir-me para
conversar. Achei esquisito porque essa juventude
não liga para assunto de velho. Querem somente
ouvir alguém concordando e apoiando para a
consciência deles não pesar tanto depois dos erros
que cometem ou querem cometer, mas, já que ela
tomou iniciativa, pedi-a que me trouxesse uma
caneca de chá e me encontrasse na sala, e assim
aconteceu.

— É o quê, neta? Fala na tua avó. — Comecei.


— Aconteceu algo que me deixou assustada.
— respondeu. — O Lúcio ligou para mim há alguns
minutos e contou que perdeu um dos amigos.
— O que aconteceu com esse amigo?
Delinquentes? Eletricidade? Acidente?
— Não, avó. Ele amanheceu morto.
— Que os santos o tenham! Imagino que isso
te perturba. — Palpitei.
— Não é bem isso que perturba, avó. O Lúcio
também teve um pesadelo, nessa noite que passou.
— Ele contou como foi esse pesadelo?
— Disse que foi empurrado do terraço para
baixo e que acordou quase a cair nuns ferros
afiados. Avó, tem como a pessoa ser assassinada no
sonho e morrer na vida real?
— Tem sim. Pelo jeito, é mesmo como o amigo
do Lúcio morreu.
— O Lúcio me contou que ele estava suado, no
chão, e com o AC ligado.
— Costuma ser uma evidência de luta. Morreu
desesperado, tentando se salvar. Se, no sonho, você
estiver a fugir de assaltantes, pode acabar
acordando suada, febril ou cansada. Se te for
apontada uma arma, tem que se virar logo para
acordar, porque, se o homem do sonho decide
disparar, a tua vida fica presa no sonho mesmo. O
Lúcio, por exemplo, por pouco não acordaria mais.
— E é sobre isso que eu quero conversar, avó:
sobre o mundo espiritual. Por mais que assuste, eu
preciso conhecer os riscos e formas de proteção.
— Bom, eu acho isso sensato, mas... tens
certeza?
— Sim. Nunca tive mais certeza do que hoje.

Orientei, então, que a minha neta apagasse as


lâmpadas, fechasse as portas, as janelas, e alargasse
as cortinas. Pedi também que ela desligasse os
aparelhos todos, que pegasse um punhado de areia
do quintal e viesse sentar de volta. Ela se mostrou
preocupada, mas cumpriu as orientações e retomou
o seu assento.

— Depois que você nasceu, tem ideia de onde


foi atirado o seu cordão umbilical?
— Não. Sei que se deita fora, mas não sei
onde, especificamente.
— De todas as vezes que roeu as unhas, tem
ideia de onde os vestígios foram parar?
— Também não, avó.
— Despeje essa areia sobre a mesa e sacuda
as mãos! — Ordenei.
— Já. — Ela obedeceu receosa. Passou pouco
tempo e pôs-se a espirrar.
— O que está entre ti e a areia que está na
mesa? — Questionei.
— Pó?
— Sim; pó. Vale alguma coisa?
— Bem, eu acho que não.
— Mas você acabou de espirrar. Como explica
isso?
— Mmmm… — Encabulou-se.
— Os espíritos não acrescem peso na balança,
mas podem nos prejudicar como se fossem
concretos. Os espíritos, pelo tempo, já são o ar que
respiramos, as paisagens que vemos, a comida que
comemos e todos os momentos em que estamos. Há
espíritos na nossa sala, na rua, nos hospitais. Eles
estão connosco quando olhamos para o espelho,
quando descemos escadas, quando pisamos a
estrada, quando entramos para um carro ou quando
subimos para uma mota. Espíritos são essências
boas e más, são partículas, um colapso entre o
concreto e o abstracto, entre o minúsculo e o
infinito. Espírito é você saber que libera milhares de
substâncias quando está parada e quando está em
movimento; é saber que deixamos milhares de fios
quando nos movimentamos. Você levantou, foi
fechar as janelas, a porta, foi buscar areia, e esse
trajecto fica desenhado por essas linhas astrais.
Você só não vê, mas elas existem, possuem várias
cores e as ruas estão esgotadas dessas linhas. Sabe
o que significa?
— Mmm… que uns atravessam as linhas dos
outros? — Palpitou.
— Absolutamente! Os dias são agitados e, por
forças maiores, frequentamos lugares aglomerados.
Isso faz com que você respire o ar que foi respirado
por um feiticeiro. Nos táxis, você já sentou no lugar
que uma bruxa acabou de levantar, mas não deu
conta. Na praça, por exemplo, nem sempre que as
pessoas se pancam é por acidente. Alguns choques
são premeditados. Bruxos e bruxas aproveitam a
praça para tocarem de propósito em outras pessoas.
Fazem isso confortavelmente porque, por ser uma
praça, vai parecer um choque comum. O dinheiro
circula tanto, que ao receber um troco, você pode
calhar com notas que outrora foram usadas para
rituais, sacrifícios, e, ao passo que alguns deixam
cair dinheiro sem querer, outros deixam cair
dinheiro de propósito.
— Avó, eu me lembro também de já algumas
vezes ter ido às compras ou ao ATM e perceber
depois que o dinheiro reduziu misteriosamente ou
sobrou menos do que devia sobrar.
— Sim, e olha que nem sempre é mau cálculo!
Isso se chama vínculo.
— "Vínculo"?
— Isso mesmo. É quando plantas, animais e
pessoas se fundem a espíritos. Elas passam a ser
mais do que pessoas, mais do que seres vivos.
Ganham percentagens de espíritos e podem ser
usadas para que a feitiçaria atinja o mundo físico
mais facilmente. É por isso que o gato e a cobra são
vítimas de preconceito. O pó faz espirrar, mas não
atinge tão bem os olhos como os grãos de areia
conseguem atingir. Tu estarias aflita, se eu te
atirasse areia contra os olhos. Terias danos mais
presentes, e é para isso que feiticeiros são usados,
para atingir o mundo físico com mais facilidade. Eu
perguntei sobre cordões umbilicais porque alguns
são achados por feiticeiros. Muitos adultos não têm
êxitos na vida porque são amarrados a partir do
cordão umbilical, a partir das unhas que roem e
cospem nas ruas, a partir dos aglomerados de
cabelo que deixam na barbearia ou no salão. A
bruxaria e a feitiçaria actuam em muitas finalidades.
Alguns têm o dever de procurar elementos orgânicos
em depósitos de resíduos hospitalares, em lixeiras, e
até no chão; outros actuam como médicos,
parteiras, vigilantes infantis e operativos de
segurança; outros actuam em meios de comércio, e
outros ficam em suas casas de práticas negras.
— Isso é sério, avó?! Que horror! — Ela
exclamou.
— Isso é muito mais do que sério, Ester. Essa
realidade já está por todo o lado. Os animais
entendem. Vais perceber que, quando gatos miam
loucamente em hospitais e maternidades, é sinal de
que vai morrer, no mínimo, uma criança, uma mãe
ou qualquer outro tipo de paciente. No dia seguinte,
você vê parentes aos choros na entrada do hospital.
Outros feiticeiros alugam uma hora em quartos de
hospedarias e fazem lá as suas consagrações. Eles
se masturbam e passam suas secreções nas
paredes, nas camas, nos sofás, nos espelhos, nas
janelas e nas maçanetas. Nas creches, não sabemos
quais são as pessoas que tomam conta das nossas
crianças. Os pais não estão lá para ver e, por isso,
podem manipular normalmente os umbigos das
mesmas. São almas vendidas logo em tenra idade,
porque estamos a confiar cegamente no dia-a-dia. O
mesmo acontece nos orfanatos. Crianças são doadas
para sacrifícios de sangue. Elas presenciam os
últimos minutos de vida sendo esquartejadas e
violentadas sem pingo algum de piedade. As pessoas
acordam de manhã, mas nem passa pelas suas
cabeças que algum kimbandeiro entrou nas suas
casas por meio de um ritual e ficou a bungular até
se sentir satisfeito. Eles vão, às madrugadas, fazer
rituais no centro de abastecimento da EPAL. Eles
consagram a água que usamos para beber e tomar
banho. Sim. A água que colocamos no interior e no
exterior do nosso corpo. O pão que compramos não
pode vir em saco aberto. Nem todos estão distraídos
nas praças. Más pessoas podem fazer o mal usando
a comida. A poeira que vem nas frutas nem sempre é
puramente do chão. Você lembra que algumas
pessoas colam-se às árvores? Isso existe, Ester. Não
podemos negar só por questões de tortura. Há
feiticeiros nas igrejas. Muitas vezes, são mesmo
pastores, padres, publicadores, mamãs, jovens, e
estão aí, entre nós, cumprindo missões que apenas
eles sabem.
— E eu também já ouvi que uns picam outras
pessoas por meio de um boneco.
— Boneco de vodu.
— Realmente existem? Alguém pode ter o meu
boneco e me prejudicar?
— Não só existem, como são feitos por meio do
seu nome, de um pedacinho de roupa sua, do seu
cordão umbilical, se for apanhado, e dos seus
vestígios de unha. Eles só precisam de associar algo
seu ao boneco, prepararem um pico e picarem o
boneco, que você vai sentir as dores.
— Mesmo em países diferentes?!
— Mesmo em continentes diferentes.
— Jesus! Mas isso mata ou simplesmente
machuca?
— Depende de onde ele atravessar a agulha.
Eles matam quando atravessam a agulha na cabeça
ou no lado esquerdo do peito do boneco. Uns têm
planos de matar, mas preferem torturar primeiro,
durante dias, semanas, meses ou anos. Eles
decidem.
— Mas… há como evitar esses males?
— Há, sim. Sempre há, mas devia entender
primeiro que o mundo é Jó e nós somos os seus
parentes e os seus bens. A besta e os espíritos fazem
connosco o que querem, nos tentam e, na maioria
das vezes, vencem. Eles governam. Deus deu a
permissão para que eles desgraçassem Jó, que é o
mundo. Então, lutar contra esses males é entender,
em primeiro, que podemos não vencer essa luta.
Eles são mais fortes. Entram nas nossas casas, nos
nossos corpos. Então, há que orar muito. Orar sem
frescuras e entender que, se quer orar para ser
protegida esta noite, devia ter orado sete dias antes.
As orações à volta do mundo criam uma espécie de
congestionamento. Então, orar agora para um bem
que se precisa agora é o mesmo bater a porta da
arca de Noé depois de ser fechada. Deve fazer da
oração uma prática frequente, mesmo que uma vez
por dia. Não ache que terá prioridade se ficar uma
semana ou um mês sem orar e chegar aflito, já
pedindo. Ore natural e honestamente. Ore falando e
ore agindo.
— Orar agindo, avó? O que seria?
— É juntar a fé e a obra. É orar com a boca,
com o coração e com o comportamento. É pedir paz
a Deus e saber merecer paz; é pedir desculpas
quando pancar em alguém, devolver os trocos dados
a mais, cortar as discussões logo pelo começo. É não
fazer inimigos, não nos metermos com quem não
conhecemos.
***Lúcio***
Quando fazemos amigos e passamos a gostar
muito dos mesmos, o que queremos é, loucamente,
imaginar um futuro. A princípio, um futuro juntos,
mas, quando não dá, imaginamos um futuro em que
todos estamos bem de vida, com bons empregos, com
boas mulheres, com filhos lindos, com bonitas casas e
encontros marcados para, pelo menos, uma vez por
mês. Eu cresci com esses rapazes. Crescemos
ensaiando como banda. Compusemos músicas juntos,
nos rimos de umas, amámos loucamente outras e
fizemos até abertura para shows de outras bandas.
Sei que, apesar dos motivos que nos separaram,
continuávamos querendo ressuscitar o projecto.
Nenhum de nós abraçou outro projecto mesmo
chegando propostas tentadoras a cada um dos
membros.
E, então, alguém que eu imaginei ao meu lado
com 40 anos deu-me o golpe de perder a vida aos 21.
Faltavam só 19 anos, mano! Faltavam só 19. Foi de
cortar o coração, rezar para que tu acordasses e,
ainda assim, ver o teu caixão ser tapado com areia.
Tu não acordaste, bro. Chorámos alto, gritámos e
xingámos, mas nem assim você acordou. Foste mau!

Após o enterro, não deu mais para muito,


infelizmente. O momento acabou dizendo mais
respeito aos familiares do que a nós, os amigos.
Estávamos sem fome, pelo que não comemos, e
ficámos só pela água mesmo. Eu e o Stone nos
dirigimos à casa do Inglês. Para se cumprir com a
regra, Stone deixou o telemóvel com o Fábio,
pedimos licença e lá fomos.
Quando chegámos, encontrámos o Inglês
sozinho, visto que sua mãe estava no óbito. Ele deu-
nos acesso ao quintal, revistou-nos os bolsos do
costume e nos deixou entrar. Eu e o Stone ficámos
surpresos porque algo de estranho se passava com a
casa. Havia um sofá bonito, mesas e cadeiras
interessantes, e muito mais do que isso, mas não
havia televisão, nem aparelho de som, nem nada que
fosse electrónico. Casa bonita com coisas caras, mas
nada moderna; eis o resumo.

— Sentem-se. — Inglês quebrou o silêncio. —


Fiquem à vontade.
— Obrigado, cota Inácio. — Respondemos e
nos sentámos.
— Muito bem. Deixem-me só ver umas coisas
aqui.
Ele foi provavelmente ao quarto, e trouxe, com
ele, livros e uma série de papéis. Eram realmente
muitos papéis.

— Antes de começarmos, me digam uma


coisa, mas com sinceridade: antes da mensagem,
vocês estiveram por longo tempo em algum local
público?
— Sim. Nós estivemos na fila de um ATM. No
caso, os cinco mesmo. — Stone respondeu.
— E, obviamente, vocês conversaram. —
Inglês sugeriu.
— Sim. Nós conversámos, mas nada que
ofendesse o estado ou outro partido do país. —
Respondi.
— Muito bem, mas me digam: algo de grave
aconteceu por lá? Algo grave ou estranho; tentem
lembrar.
— A… houve uma discussão entre o Calei e
um tio, nesse dia. O senhor havia falado sobre
política. Fez afirmações graves sobre a política daqui
e a política de outros países. O Calei apenas disse a
ele que não era certo fazer tais afirmações sem ter
como provar. — Stone respondeu.
— E… ficaram por aí?
— Não. Houve uma breve discussão. O senhor,
praticamente, fez promessas, dizendo que não
sabíamos de onde ele vinha nem o que ele era capaz
de fazer. — Stone, novamente, respondeu.
— Obviamente, vocês responderam.
— A… não deu jeito. O Teodoro recebeu a
conversa, pedindo desculpas e cedendo o nosso
lugar para que o tio tirasse dinheiro antes de nós.
Ele aceitou, e ficou tudo bem, aparentemente. —
Respondi.
— Mesmo? — Questionou, franzindo os olhos.
— Mesmo. — Respondemos.
— Lúcio, nesse mesmo dia, nada mais
aconteceu? Ninguém mais falou sobre nada?
— Nada. Pelo menos, nada que fosse estranho.
— Respondi.
— Vamos tentar com essas coisas normais,
então.
— Tirando isso, nós continuámos as nossas
conversas até levantarmos o dinheiro. Outra coisa
foi um outro senhor, que nos elogiou por sermos
cultos e pelo Teodoro ter contornado tão bem a
situação. — Stone respondeu.
— Lúcio! — Cota inglês chamou.
— Sim?
— Esse senhor, por acaso, vos pediu horas?
— Sim. Ele pediu. — Respondemos.
— Sobre o que vocês conversavam, antes dele
ter convosco?
— NASA, Vaticano, Área 51, Pentágono,
Projecto Abig… — Respondemos, intercaladamente.
— …Então, é isso! — Afirmou, colocando as
mãos sobre o rosto.
— Não entendi. — Respondi, sem ainda
entender o que se estava a passar.
— Eu também não entendi. — Stone
complementou.
— Vocês realmente estão na mira do Núcleo!
— Rematou, olhando seriamente para nós.
— "Núcleo"?! — Perguntei, exclamando.
— O que seria o Núcleo? — Stone perguntou.
— Esperem um momento.

Cota Inglês foi fechar as portas e esticar as


cortinas. Depois de feito, voltou ao seu assento e
continuou:
— Vocês se lembram da temporada em que eu
estive esquizofrénico?
— "Esquizofrénico" seria… — Tentei.
— Maluco? — Stone completou.
— Stone! — Repreendi-o.
— Está tudo bem, Lúcio. É a isso mesmo que
me refiro. — Cota Inácio respondeu.
— Sim; nos lembramos. Durou algum tempo
até o cota superar. — Respondi.
— Pois é. Eu havia recebido uma bolsa…
— Para os Estados Unidos. — Stone mostrou
sua atenção.
— Sim, Stone. Foi mesmo para lá. Então, por
meio dessa bolsa, eu não só consegui estudar, como
também ganhei um emprego. Eu acabei não
durando muito por lá. Tive que voltar, mas não é
pelas razões que o bairro especula. Não houve praga
nem nada parecido, tanto que consegui aquela bolsa
graças a um meu tio. Não propriamente ao meu pai.
— Neste caso, qual foi o motivo? — Stone
perguntou.
— Informações que custam a própria
sanidade.
— Como seria isso? Existe mesmo? —
Questionei.

— Existe, Lúcio. Existe.  Respondeu.


— Acho que é como aquelas situações em que
filhos enlouquecem quando perdem os pais, ou
quando pais enlouquecem quando perdem os filhos.
— Stone arriscou.
— É exactamente isso, Stone! Eu havia
entrado para uma empresa, lá, que precisava de
informáticos bons. Depois que a escola me
recomendou, eles chamaram-me para uma
entrevista e fui admitido. Depois que recebi o
contrato, fiquei a saber que devia trabalhar como
arquivista. Meu dever era receber, organizar e
guardar dados sobre a empresa, e esses dados, para
começar, já não eram normais.
— E essa empresa é que é o Núcleo? — Stone
perguntou.
— Sim, Stone. Na verdade, é mais um sistema
do que uma empresa.
— Como assim, "sistema"? — Questionei.
— O Núcleo não é uma organização que você
vai encontrar se pesquisar na internet. Podem testar
isso depois. Vão achar o núcleo como centro da
Terra e o núcleo como centro dos átomos, mas
nunca o Núcleo como organização. Eles são a força
motriz do mundo e usam engodos para pensarmos
serem outras organizações, como a Maçonaria, por
exemplo.
— Mas, cota Inácio, isso pode significar que a
Maçonaria não é…? — Perguntei.
— Sim, Lúcio. A Maçonaria serve apenas para
ficarmos longe de sonhar que o Núcleo existe. Claro
que eles têm poder artístico e financeiro, mas não
passam disso. São bichos pequenos diante do
Núcleo. Aliás, eles mesmos trabalham para o Núcleo.
O Núcleo detém departamentos que parecem ser
organizações independentes. Eles são poderosos,
mas são também tão preocupados, que investem em
organizações engodos, que servem só para distrair o
mundo, para nos aterrorizarem ao ponto de
acharmos não haver algo pior. Não é óbvio? Eles
dizem que a Área 51 é secreta, mas vos permitiram
saber do nome e vocês crêem ser secreta mesmo.
Nem o que se faz lá dentro é tão secreto assim, se
comparado a existência e aos segredos do próprio
Núcleo. São uma espécie de máfia, se aliando à
política, à ciência, à arte e à religião. Países que
pretendem liderar mercados e indústrias se aliaram
a eles para se manterem invictos. Eles vão controlar
sempre as premiações mais importantes do mundo;
os seus países acabam sabendo dos segredos
militares de outros países; as empresas de
tecnologia lucram vendendo evolução para os
compradores e controle para o Núcleo e isso significa
que nossos telefones e televisores são gravadores.
Nossos GPSs continuam ligados mesmo quando
desligados. Uma tecnologia que cientistas de
Portugal estão a projectar secretamente para 2025,
os EUA acabam lançando para o mercado em 2023,
e isso porque têm esse acesso. Não há segredo onde
há tecnologia. Não para o Núcleo. Somos espiados
até nas nossas próprias casas.
— Aaaah! Então… — Stone tentou uma
questão.
— Sim, Stone. É por isso que já não usamos
tecnologia aqui em casa. Esse homem ficou com o
contacto do Lúcio quando vos pediu horas. Eles
andam com uns aparelhos de ponta, úteis para
vários fins. Os burladores, por exemplo, usam para
clonar e reter dados dos nossos cartões multicaixa
passando essas máquinas pelos nossos bolsos, perto
dos cartões ou dos nossos telemóveis, caso
tenhamos aplicativos bancários instalados. Como,
obviamente, vocês conversaram sobre o assunto por
meio do telefone, eles, por meio da base,
conseguiram ter acesso aos números dos restantes.
— Mas o Calei abandonou o grupo a tempo!
Como explica ele ter morrido primeiro?! — Perguntei.
— Lúcio, o Calei ter saído do grupo tornou
urgente tirá-lo de cena. Ele já tinha essas
informações e saiu do grupo. Isso é grave. Foi como
uma ameaça. Percebem?
— Perceber eu percebo, mas… como sabes? —
Stone confrontou.
— Foi essa, a informação que me fez perder o
trabalho e a sanidade. Eu fiz um amigo por lá, que
também ganhou uma vaga para a organização. Por
sermos de cursos diferentes, eu trabalhava na base
e ele no campo de experimento. Eles possuem vários
departamentos, como a Distorção, que agrupa e
administra organizações simuladas; a Senha, que é
o arquivo, a zona de agrupamento das informações;
o Vértice, que trata do poder e dos destinos
financeiros da organização; a Maquete, que executa
os planos secretos, e, por fim, a Hexagrama, a
estrela de seis pontas, uma das últimas jogadas do
Núcleo. Tive acesso a isso tudo porque eu trabalhei
na Senha e esse meu colega trabalhou na Maquete,
que havia tido uma sessão de trabalho que o deixou
traumatizado, aflito e com necessidade de falar
sobre o assunto. Eu sentia exactamente o mesmo e,
então, corremos o risco de falar sobre o que nos faria
explodir de tanta saturação. Eles descobriram.
Acabaram pegando a nós e aos outros que também
procuraram desabafar sobre e injectaram-nos uma
droga criada em Cuba e desenvolvida na Rússia. Por
sermos estrangeiros, não nos mataram de imediato,
mas golpearam-nos com essa droga cujo efeito é
paulatino e cientificamente irreversível. Eles me
repatriaram dizendo à velha que eu vivia uma vida
libertina, de mulheres e drogas, mas sabiam
também que eu morreria lentamente.
— Mas… vocês não sabiam do risco?! — Stone
interrompeu.
— Sim, mano. Sabíamos, mas você não tem
ideia do que é ver as coisas que vimos. Nós vimos a
ascensão da Hexagrama, o Mundo Zero, o…
— "Mundo Zero"? — Perguntei.
— Isso mesmo. É como disse: eles vos fazem
conviver com informações sérias, só que falsas. São
quatro mundos; essa é a verdade. Nós conhecemos o
terceiro e o segundo mundo. Eles nos escondem o
primeiro para pensarmos que o primeiro é o mundo
grave, mas acreditem: ele só é mencionado assim
para que nunca pensemos na possibilidade de um
outro mundo. O Mundo Zero vai tirar-vos o sono. É
uma aberração. Ele foi começado no século II, no
ano de 122 d.C. Eles providenciaram, escavando,
um espaço subterrâneo de grande extensão para se
criar esse mundo. Levaram os anos seguintes para
fazerem dele um reflexo restrito do mundo tal como
é. Fizeram um sol artificial, fizeram mares artificiais,
uma simulação de céu, de cidades, de matas, e
muito do que se parece com o mundo que vemos. Se
você for sedado e acordar somente quando estiver lá,
você vai perceber que é uma zona nova, mas não vai
perceber que é uma zona subterrânea, e isso nem é
o pior. Pior mesmo é o que se faz lá. O Mundo Zero é
um berço para experiências desde o século VI, no
ano de 566 d.C, ano em que várias crianças foram
arrancadas de vários orfanatos para servirem de
sacrifício. Elas foram assassinadas, seus sangues
foram extraídos e despejados nas terras do Mundo
Zero como prática de consagração. Depois desse ano
é que experimentos foram levados para lá, como
fusão de genes humanos com genes animais. Há, lá,
pessoas com traços de elefantes, hipopótamos e
aves. São praticamente monstros. Não são mais
pessoas normais. São vítimas de laboratórios. Uns
possuem trombas, outros possuem dentes caninos,
caudas, escamas, barbatanas, penas, pele de suíno.
Experimentaram a fusão de homens com crocodilos
e hipopótamos para resultar no homem capaz de
respirar na água por um tempo superior ao que
conseguimos.
— Isso arrepia, cota Inglês! — Stone exclamou.
— Arrepia sim, Stone, mas o plano deles é
fazer com que tudo aquilo seja normal um dia. Com
o tempo, o primeiro, o segundo e o terceiro mundo
serão assim. Eles são monstros e, por massa e força,
podem nos extinguir. Eles se multiplicarão e
habitarão o mundo. Anos depois, pouco se saberá da
nossa raça normal. Será um mundo extraordinário e
a Austrália é parte desse experimento. Não
percebemos porque têm sabido nos fazer crer que o
futuro estará nas mãos da tecnologia.
— O cota falou também da Hexagrama. —
sugeri — O que vem a ser?
— A Hexagrama é a corporação que leva o
Núcleo para o mundo todo. Ela conta, desde 1998,
com homens que procuram apagar toda e qualquer
pessoa que parecer estar perto de descobrir coisas
sobre o Núcleo. Na verdade, a Hexagrama já existia
muito antes de 1998. Essa foi somente a data em
que ganhou o novo nome; nome que substitui a
"Vigilância". A Vigilância era a via física de matança
a quem tivesse acesso total ou parcial a essas
informações. Esses homens perseguiam as pessoas
identificadas até estarem isoladas, e, deixando
muitos ou poucos vestígios, matavam-nas. 1998 foi
o ano em que o Núcleo passou a contar com
poderosos senhores da Índia e de alguns países
daqui, de África, e fizeram a Vigilância se chamar
Hexagrama. Segundo os arquivos, deram esse nome
porque o sexto ângulo da estrela tem um forte
significado de poder, de realização além do esperado,
de desafio às capacidades humanas e divinas. Eles
são obcecados pela ideia de serem como Deus, de
poderem dizer que criaram, que desenvolveram, que
conseguiram manter um sistema por séculos. Tanto
que no início era só ciência, mas, depois, passou a
ser sobrenatural também. Os assassinos da
Vigilância, hoje, são só homens infiltrados em vários
cantos do mundo. Eles estão a ouvir conversas nos
bares, nas barracas, nas lojas, nas barbearias, nos
salões, nas ruas, nas escolas, disfarçados de
estudantes, nas empresas, disfarçados de
funcionários, nas filas dos bancos, das padarias, e
nos táxis. Outros estão nas bases, ouvindo o que as
nossas tecnologias gravam sem percebermos, nos
assistindo por meio das câmeras internas das
nossas TVs, dos nossos telefones e computadores.
Parece que elas só ligam quando queremos
fotografar, mas eles estão lá, nos assistindo. Têm
uma estatística de quantas vezes entramos e saímos
dos sites que frequentamos. Eles registam os tipos
de pesquisas que fazemos e também podem
perseguir a partir daí.
— Isso existe mesmo?! É espantoso sim, mas
sobrenatural nem tanto. — Stone afirmou.
— Stone, esse é só um lado. O lado
sobrenatural é que eles já conseguem nos matar
sem que a polícia tenha como se impor. Calei foi
encontrado morto, suado e no chão, mesmo tendo o
ar condicionado ligado, mas não conseguiram achar
nenhum vestígio criminal. A razão é simples: por
meio dos homens da magia negra e da magia
vermelha, eles podem nos atacar com espíritos. É
esse, o poder da Hexagrama! Lúcio, o que dizia a
mensagem que recebeste?
— Foi algo como: "Não feche os olhos, Lúcio. A
menos que queiras dormir para sempre". —
Respondi.
— É no sono que eles nos matam. — Afirmou.
— Neste caso, o Calei… — Stone sugeriu.
— Não apenas o Calei. A gestante também foi
assassinada assim. Essa é a forma de matar que,
por meio da Hexagrama, o Núcleo consegue se livrar
de quem acaba sabendo o que não deve. Eles têm
arquivados os materiais que esses feiticeiros
forneceram. Eles falaram sobre os diversos espíritos
que existem, suas cores, suas formas, seus nomes,
suas finalidades. Alguns causam paralisia de sono,
outros causam sensação de queda enquanto se
dorme, outros criam a sensação de realidade nos
sonhos, outros te prendem nessa sensação para que
possas sofrer os danos de verdade. Se você for preso
nessa sensação, tudo que acontece no sonho pode te
matar realmente. Se você escapar, pode acordar
suado, febril ou muito assustado. É só reparar que
sofremos paralisia de sono ou sensação de queda
quando cansamos o cérebro por conta de algum
aprendizado sério ou algo perto disso. À noite, só te
sentes a dormir por cima das ondas quando passas
a tarde a explorar o mar.
— Porra! Isso mesmo só por causa de
conversa?! Como é que vamos sair disso?! — Stone
questionou, comprimindo o queixo de furor.
— Temos duas opções. — sugeriu — A
primeira opção é não dormir...
— Isso é gozo, Inglês!
— Stone! — Repreendi, tocando o seu ombro.
— A segunda é voltarem a conversar no grupo
e admitirem que tudo isso não passa de mentira. Só
digam insistentemente que pesquisaram e não
acharam nada, que é tudo conspiração, fantasia e
ficção. Zombem até disso. Mencionem que, sendo
cristãos, devem crer no que a Bíblia determina.
Mencionem alguns versículos que sustentam e
afirmam que ninguém além de Deus pode fazer
coisas impossíveis. Claro que vocês sabem da
verdade, mas devem tratar de fazer esse teatro
porque, no fim, eles não querem saber de matar.
Eles querem só saber de se manterem secretos,
confidenciais e poderosos. Vocês não são
protagonistas para eles. Vocês são só humanos que
não deviam saber das coisas que ficaram a saber. É
fundamentalmente isso. Se mostrem cépticos,
inocentes, e, com grande sorte, eles desistem. Eles
são só uma rede poderosa que faz de tudo para
impedir que informações confidenciais do primeiro
mundo e do Mundo Zero se tornem de acesso
comum. São poderosos com medo de deixar vestígio
algum. Só isso.
— Podemos confiar? — Questionei.
— Sim. Podem confiar. Estou vivo graças a
isso. Se não uso tecnologia, eles não me vêem e não
me ouvem. Na verdade, já sou dado como morto.
Nunca mais actualizei nada meu. Só posso ter
empregos informais. Nada que envolva BI ou contas
bancárias. E podem sossegar. Não tenho nenhum
aparelho em casa. Então, eles não saberão que a
vossa conversa no grupo será a fingir, porque não
nos ouviram.
— E, falando nisso, como podemos confiar?
Como podemos saber se estás realmente lúcido, se a
droga é de efeito irreversível? — Stone questionou,
em tom de sarcasmo.
— Não seja por isso, Stone. Se vês a minha
casa, ela não tem nada de moderno. É o preço que a
minha mãe, sendo vaidosa e consumista, se viu
obrigada a pagar para me ver bem. Embora tenha
crescido em meios convencionais, ela se viu obrigada
a cogitar a possibilidade de procurarmos uma
curandeira para me ver curado. Essa senhora ainda
frequenta a mesma igreja que ela. Caso tenhas
dúvidas, podes ir para lá e perguntar. Agora, se essa
é a tua forma de agradecimento por eu vos ter
ajudado, não tem de quê. Eu fiz de coração. Me
dêem licença, por favor.
— Peço desculpas, cota Inácio. Ele deve estar
assustado com tudo isso. — Dei como alternativa.
— Não se preocupa, Lúcio. Deixa. E façam o
que recomendei. Agora, tenho mesmo que abrir a
barbearia.

***Fábio***
Uma visão se apagou na Terra e uma estrela
acendeu no céu. É agora questão de esperar a noite
chegar e deixar a minha intuição dizer qual das
estrelas será o Calei. Sei que ele se manifestará como
uma estrela de iluminação forte, tal como a voz que
ele tinha. Então, o meu irmão calou-se, mas, eu creio,
calou-se para iluminar.

É muita coisa para processar em um dia só: o


enterro, a saída do Lúcio e do Stone, o silêncio do
Teodoro e, agora, essa conversa de falarmos em
conjunto que essas coisas não passam de uma
brincadeira. Obviamente, fizemos, mas eu não
ponho muita fé nisso. Prefiro crer que estamos
condenados e que o passamento do Calei é mais um
grande sinal para aproveitarmos os poucos dias ou
as poucas horas que nos restam. Ah, santo Deus! No
actual contexto, viver é mesmo só isso. É a única
definição de vida que me sobra. Quanto a morte?
Simples: a morte é mesmo só uma falta de respeito!

***Inglês***
Entre novidades e rotinas, meu costume
favorito é fechar a barbearia na companhia da lua.
Tenho agora tudo fechado e, obviamente, ponho-me
a andar para casa.
Na chegada, vou à caixa térmica, tiro uma lata
de cerveja, ponho-me sentado, dou um gole, fecho os
olhos e pouso a minha nuca sobre o suporte do sofá,
relaxando e sentindo a espuma dando um concerto
na minha boca. Surpreendentemente, ouço um bip
e, olhando, um ecrã acende no sofá da frente. Acho
estranho, porque não temos telefone em casa. Vou
pegar para ver e é uma mensagem. "Você já não
pode dormir", é esse, o recado. Sem haver tempo
para me assustar direito, ouço o trancar da porta e,
me virando, vejo um homem na porta de entrada e
outro saindo do corredor. O da porta está vestido de
branco, de médico, e usa uma máscara branca com
o símbolo hippie pintado a encarnado. O do corredor
está vestido de preto. Possui o símbolo "infinito" na
testa e tem a boca cicatrizada e fechada com linhas
de costura. Começo a ficar seriamente assustado.

— Sempre achei que mortos não sentissem


mais medo, mas vejo que estive enganado. Quem
disse que só sabe que nada sabe, pelos vistos, não
mentiu. — Diz o homem de branco.
— Que brincadeira é essa?! — Confronto,
assustado.
— Nós já brincamos de detective, hoje.
Estamos enjoados disso, já. — "Diz" o homem de
preto.
— Verdade. Penso que podemos brincar de
hospital. É isso! Vamos brincar de psiquiatria. —
Sugere o homem de branco.
— Eu não fiz nada. Verifiquem se é a casa
certa. — Sugiro, temendo.
— Inácio Contreiras, 30 anos, ganhou uma
bolsa para os EUA bem como uma vaga de emprego
para a Senha. Foi repatriado em estado de demência
e, pelo tempo, devia estar morto. Fomos informados
que, para morto, ele tem falado demais e, para te ser
sincero, isso nos pareceu tão fantasiado, que viemos
ver com os nossos próprios olhos. — Diz o homem
de preto.
— Então, nós só podemos estar certos ou
errados. Trabalhou para a Senha? — O homem de
branco pergunta.
— Quem cala consente. Vamos começar. —
Diz o homem de preto, a ver com o meu atraso de
resposta.

A este ponto, não consigo reagir. Me sinto


dormente, paralisado, e eles se aproximam, me
torturando com palavras e me amarrando os braços
juntos ao tronco.
Sou empurrado bruscamente contra o sofá, e
o homem de branco vai em direção à porta, pega a
sua mala e se aproxima.

— A parte bonita de te matar é essa, de


saberes que era só fechar a boca para se manter
salvo e, mesmo assim, contares para alguém que
nem conhecias direito. Foste traído, meu bom
samaritano. Salvaste a pessoa que nos ajudou a te
descobrir. Ele trouxe um telefone aqui. Foi assim
que a base descobriu a tua localização. Então, para
ser sincero, não sabemos como ele fez para trazer
sem dares conta, mas essa conversa foi muito bem
escutada. Estou até triste por ti. Sabias
perfeitamente sobre como proceder, mas… possas!
Isso até irrita! Adoraria me comover com esse olhar
de desilusão, mas, agora, prefiro mesmo me comover
com os seus gritos lá, no inferno. — Diz o homem de
branco enquanto solta ironia pelos perdigotos.

Agora, ele se aproxima de mim com uma


lâmina na mão direita. O seu companheiro faz o
mesmo e me prende a cabeça. O homem de branco
tira a lâmina da cobertura de papel e acaba de colar
no canto esquerdo da minha boca.

— O que achas? Contamos a verdade para


ele? — Pergunta o homem de branco ao seu colega.
— Nunca é demais. Já não importa mesmo! —
O de preto responde.
— O que queremos desvendar aqui é que isso
não é um sonho, caso estejas em dúvidas. Você tem
aqui uma morte real, uma morte especial, da
Hexagrama em sua versão antiga. Então, vai doer a
sério. Não viajámos em vão.

Ele dá um rasgão brusco no canto da minha


boca e eu grito. A dor do golpe acabou de imediato
com a minha dormência. Eu começo a sangrar e eles
manifestam diversão. Este de branco se aproxima e
passa a sua língua do queixo à boca, tomando o
meu sangue.
"Ninguém pode te ouvir, meu bem", ele diz, e
continua a cortar-me neste canto já ferido. Eu me
mexo, revido, debato, rebato, grito, mas sem
sucesso. Sangro cada vez mais! Arde cada vez mais!
E ele só corta. Continua a mover a lâmina, cortando-
me, rasgando-me, tornando o lado esquerdo da
minha boca mais largo do que o normal. Eu sinto.
Eu tremo inevitavelmente. Isso dói!!!

— Passa-me o vinagre, parsa. — Ele pede ao


outro, e esse traz.

Esse homem de branco coloca vinagre no


canto ferido da minha boca e começo a sentir uma
dor infernal. Não dá para aguentar. Quero morrer de
uma vez.
Sem piedade alguma, se aproveitam da minha
total fraqueza para o corte do canto direito. Nunca
senti dor igual. Nunca imaginei que houvesse
alguém capaz de usar uma lâmina para rasgar
lentamente a boca de alguém. Me sinto rasgado e
aos ardores. Sinto agonia! Sinto decepção! Estou
nessa situação por esperteza de pessoas que tentei
ajudar. Estou nas mãos do perigo, da insanidade, da
frieza, e minha boca dói como um parto. Não posso
aguentar mais isso. Eles cortam e despejam vinagre.
Eles se divertem com isso.

— Traz o bidão de combustível. — O homem


de branco solicita.
— Tens aqui. — O de preto obedece.

Eles despejam combustível em mim, e com


fartura. Despejam nas laterais, no centro da boca e
em torno do rosto. A dor só intensifica e me reviro
engasgando.
"Agora é contigo", diz o homem de branco, me
virando de barriga para cima. O homem de preto se
aproxima, pressiona o meu peito com um dos seus
pés, acende um isqueiro e larga bem na direção da
minha boca.
Sou, então, invadido por uma dor inexplicável,
por uma luz de alta temperatura e dor intensa.
Estou aos incêndios! Meu corpo reactiva e tento
levantar, mas estou amarrado. Só posso me mexer
desesperadamente e gritar como alma no inferno.
Meus sentidos começam a ir. Só tenho o tacto
estuprado, a visão invadida, o olfacto assado e a
audição em lenta despedida.
— Esse já não vai aguentar muito. Vamos
agora tratar da mãe para não deixar pista nenhuma.
Serão achados só depois de alguns dias, já
apodrecidos, fedorentos, com minhocas roendo suas
carcaças, com moscas fazendo multidão nos olhos,
nas narinas e na boca. Em que quarto ela…

***Teodoro***
É mais uma manhã na qual posso acordar e
dizer que, graças a Deus, a morte não me levou.
Estou bem na pele de um salmista, afirmando que o
se deitar é humano, mas que o reerguer é divino.
Não quero muito, senão deixar o telefone no modo de
voo, aproveitar o sol que há semanas não noto a
presença, ir à praia, ouvir música, ver crianças, ver
mulheres, mulheres bonitas, comer doces, tomar
refrescos, sentir a areia, ver o azul e o branco se
espelharem no céu e no mar, nas nuvens e na
espuma.
Andar de táxi e sentar próximo à janela
causam-me sempre a sensação de perfurar o tempo.
O vento vem contra mim e, automaticamente,
começo a pensar, a imaginar e a reflectir sobre
coisas que, parado, não consigo alcançar. Só que, se
há algo melhor do que perfurar o tempo, essa coisa é
estar em sintonia com o tempo. O tempo é amigo
quando está no exacto ponto em que estamos. Nem
a frente, nem atrás. E é chegada a bendita praia, a
única médica e terapeuta natural que conheço.
Vendo assim: o mar é um ser vivo.
Repentinamente, o tempo começa a mudar, a
fechar. Olho para cima e o céu parece zangado, uma
expressão de Umbela querendo chorar. Não estou de
mergulho. Então, não há muito com que me
preocupar.
Com um pouco mais de dois minutos, começa
a chuviscar, bem como as pessoas começam a vir
para a beira. Há um grito de preocupação no meio
dessa agitação. É uma senhora, chamando por dois
nomes diferentes, e vou lá ter.

— Bom dia, tia! O que se passa? — Pergunto,


espelhando a aflição.
— Os meus filhos, moço! Os meus filhos vão
morrer afogados! — Ela responde, se movendo
descoordenada.

Procuro captar a direção para a qual ela tanto


olha e, em meio às ondas, vejo uma mão lutando
para se manter na superfície. Corro, me despindo, e
dou um salto para a água, mergulhando até sentir
alguma presença sólida. Já está a primeira criança,
mas, de volta à superfície, não consigo achar a
outra. Eis que, fazendo valer o princípio de que mais
vale salvar uma vida do que perder duas, dou meia
volta para nadar rumo à beira, mas a criança que
tenho comigo prende-me o tronco com muita força e
começa uma mordida fixa no meu pescoço, justo na
veia, vindo, a seguir, outra mordida violenta no meu
pénis, que começa a sangrar. Não aguento o ataque!
Começo a me afogar, a relutar, mas sem sucesso.
Não há pés imediatos. Só vou me afundando, sendo
mordido, sangrando, me afundando, sendo mordido
com mais força e sangrando.
Me relutando, consigo me soltar, mas não vejo
nada e estou desesperado por ar e curativo.
Encontro o piso, dobro a perna e mergulho para
cima, conseguindo emergir, respirar e pedir por
socorro. Tentando boiar e me manter na superfície,
sinto-me ser puxado novamente para baixo por
mãos que, embora pequenas, são fortes além da
conta. Eu entro novamente; começo a interiorizar
água pela boca e pelas narinas, e a aflição, em
menos de dois segundos, começa a se intensificar.
Sem mais esperanças, vou convulsionando
com, cada vez, menos força. Me sinto indo…
indo…desligando… apagand…
***Fábio***
Ouvir música nunca me fez tão bem. Caminho
de volta a casa, na companhia do céu chuviscando e
dos meus fones com o volume no máximo, ouvindo
músicas que, há muito, não ouvia.
Me aproximando da pedonal da Robaldina
para pegar táxi para os Congolenses, sinto alguém
aflito chamando por mim. Eu paro, viro-me para
trás e não vejo ninguém, mas, curiosamente, sinto o
chão vibrar. Desta vez, ouço novamente essa voz.
Não! Desta vez, eu ouço vozes e me viro para frente,
tirando os auriculares e deixando escapar um
reflexo em algum dos ângulos. No mesmo instante,
olho para a minha direita… ouvindo um som… um
som berrante… um som crescente… a dois metros
móveis… na minha direção… um comboio…

***Ester***
Toca o meu alarme das 02h, que activei com a
finalidade de orar às madrugadas pelas pessoas que
amo. Vou ao WC, lavo o rosto e volto ao quarto,
pondo-me de joelhos para iniciar a reza.
Estranhamente, uma voz toma conta do silêncio,
soando distante, de alguma forma. Vou ao quarto da
minha avó, mas ela não está na cama. Vou para a
sala e idem, mas a voz acaba se intensificando.
Chego perto da janela; vejo uma mulher descalça,
vestida de panos brancos, com uma vassoura
pousada perto, fazendo um ritual, atravessando a
vassoura pela esquerda e pela direita, enquanto fala:

"A noite é uma ponte. O sono é a raposa. O


amanhecer é a mãe. Também sou filha alheia, meu
pai. Não escolhi ser feiticeira, meu pai. Não consegui
mudar o meu espírito, mas consegui mudar o meu
coração. Ajuda o filho alheio. A noite é uma ponte e
já caíram três, meu pai. Ajuda! Ajuda só! Solta o
animal! Faz magia! Faz qualquer coisa! Me ajuda a
voar! Me deixa ajudar, pai", diz a mulher, que, pela
voz e pela forma, é nada mais nada menos que…

***Stone***
Não consigo adormecer. Não sinto a
necessidade de adormecer. Não depois de sofrer
ameaças, perder um amigo e descobrir que posso ser
atacado até mesmo onde nunca fez sentido ser. Por
vezes, julgamos que temos tomates só por dizermos
verdades sem pensar na sensibilidade dos outros ou
mesmo por usarmos a internet para ofender políticos
e outras figuras públicas. Hoje, eu olho para mim e
descubro que isso não é ter tomates. Tenho boa
dotação, tenho potência, tenho fertilidade e
resistência, mas me sinto encurralado e só não
acabo com isso por falta de coragem. Já não faz
sentido viver. Não posso passar o resto da minha
vida sem dormir, e eu quero dormir, mas não posso.
Qual é a lógica de estar vivo?! Eu não tenho tomates!
Eu não tenho coragem de acabar com isso! Na
verdade, tem tomates quem está morto. Tem
tomates quem deu a testa ao cano. Esses mereciam
perder a vida, mas nunca perder a ereção. Mereciam
morrer e continuar tesos, mesmo que estejam no
caixão. E é isso: ter tomates é ladrar dando "safoda!"
para tudo. Ladrar e morder. É ladrar sem encolher a
cauda. Tem tomates quem já morreu.
Ponho a tocar o álbum que eu e os rapazes
gravámos e não tivemos coragem de lançar. Subo o
volume ao máximo, abro a primeira gaveta e tiro o
meu embrulho de erva para fumar pela última vez e
me deitar, ficando o resto da noite por conta deles.
Estranhamente, o volume reduz sozinho e o ecrã do
meu telefone acende, o que me deixa assustado. Vou
ver e é o número do dito Núcleo.

"Queríamos imenso bater a porta, mas


encontrámos ela aberta. Vem para a sala. Tens
visitas", diz a mensagem.
Fico pasmo por reflexos segundos e, para o
meu azar, ouço três toques seguidos vindos da porta
do quarto em que estou. O desespero toma conta de
mim um pouco mais. Olho para a janela como
alternativa de fuga, mas… quem dera recuar o
tempo e alterar algumas coisas. Minha janela é
gradeada.

— Chegas tu, ou chegamos nós? — Pergunta


uma voz feminina, vinda da sala.
— Venho eu. — vacilo — Já vou.

Ponho-me em pé, respiro fundo, dou dois


passos e ponho a mão na maçaneta, ainda pensando
se realmente abro.

— Por favor, não me façam mal. Eu faço o que


me pedirem. Eu esqueço tudo. Eu prometo nunca
mais escrever ou abrir a minha boca. É um
juramento que faço! Por favor, considerem. — Digo,
chegando à sala.

Elas estão sentadas confortavelmente. Estão


de pernas cruzadas, vestidas todas de preto e
cobertas da cabeça aos pés, como mulheres do
islamismo.

— Você quer viver? — Uma delas pergunta.


— É o que mais quero! — Respondo, levando a
mão direita ao lado esquerdo do peito.

Elas põe-se em pé e fazem uma roda. A seguir,


removem as suas batinas e ficam seminuas, mas,
apesar dos corpos bonitos, não gosto do que vejo.
Elas têm bombas instaladas e suspensas nos seus
troncos.

— Vem para o meio! — Ordena-me, a mesma


mulher.

Eu obedeço… andando receoso, mas obedeço.

— Estar vivo depende de ti agora. — Diz outra


mulher.
— Sim. Só me digam o que devo fazer, e eu
faço.
— Você tem direito a dez perguntas. — Diz
outra delas.
— Se acertar cada uma dentro de três
segundos, vamos considerar o seu juramento de
silêncio e te deixar vivo. — Diz a primeira de todas.
— E se errar ou passar dos três segundos sem
começar a resposta, nós acionamos as bombas e
explodimos aqui, indo contigo para o céu ou para o
inferno. — Diz a segunda a se pronunciar.
— Sim. Eu aceito.
— Súcubus, é contigo agora. — Diz a primeira.
— Vamos, então. Pronto para a primeira
pergunta? — Súcubus pergunta.
— Sim. — foco nos olhos dela — Pronto.
— Estás diante de um sonho, ou da realidade?
— Ela questiona.

Estranhamente, ouço um acorde distorcido


vindo da minha guitarra. Dá para sentir um arrepio
corrente na minha medula espinal enquanto a
pergunta ecoa na minha cabeça junto do som. As
lágrimas atingem o pico dos meus olhos e põe-se a
escorrer para fora.
De qualquer forma, já passam dos…
***Lúcio***
— Gaspar! — chamo pelo meu irmão, ainda
adormecido — Gaspar! Gaspar!
— Mano? — Ele responde, abrindo os olhos e
fechando, ensonado.
— Acorda, rapaz! O filme vai começar agora. —
Informo.
— O filme? Quem marcou o golo? — Ele
pergunta.

Já dá para ver que não vou assistir ao filme


em companhia. Então, ponho o rapaz no colo e levo-
o até ao seu quarto. Sempre dá para um matulão
adormecer no sofá e, na manhã seguinte, acordar na
cama. Não se mata eternamente a magia da
infância, queiramos ou não.
Posto na sala, de volta, perco também a
vontade de assistir ao filme. É então que desligo a
televisão e me dirijo ao espelho de parede para me
olhar e fazer tempo ao invés de adormecer e me
expor ao risco, mas, repentinamente, a energia vai e
fica tudo escuro.

— Finalmente, te encontrei. — Diz uma voz


vinda da direção do sofá.
— Quem está aí?! — Pergunto, assustado e
agitado, sem ver devidamente a pessoa.

A energia restabelece e vejo um rosto familiar.


Eu realmente reconheço, mas custa lembrar de
onde.

— Diga-me, por favor, que horas são. — Ele


orienta.
— São 03:00. — Respondo, depois de ver o
ecrã do telemóvel.
— Muito bem. Cheguei pontualmente. — Ele
diz.
— Pontualmente?! — questiono, desentendido
— Para quê?
— A resposta está atrás de ti. — Ele diz,
olhando para a parede à qual dou as costas.

Eu olho atrás, não vejo nada e, me virando de


volta para ele, vejo seus braços erguidos e prontos
para dar-me uma correntada, mas mudo
rapidamente de linha e a corrente acerta o chão,
resultando num estrondo. Ponho-me a correr, e ele,
rapidamente, chuta-me pelas costas, e caio batendo
a cabeça contra o vidro da mesa de centro, que
estala ligeiramente e me faz sangrar. Agora, ele se
aproxima, levanta os braços e me acerta o joelho
direito com a corrente. Que dor!
Gaspar sai do quarto e vem a correr pelo
corredor querendo me ajudar, mas é logo recebido
com a corrente justo no meio da testa e cai
estendido. Eu me levanto raivoso, corro cocheando
contra o homem e este dá-me uma cabeçada seguida
de um empurrão com o pé contra o peito e, desta
vez, eu caio recuando sobre a mesa de centro,
partindo o resto do vidro e rasgando as minhas
costas, resultando em menos sangue no meu corpo e
mais sangue no chão e na roupa. O homem, agora,
se aproxima com um vaso bruto, larga a corrente,
levanta os dois braços e atira o objecto contra o meu
rosto, que descobre existir medida de peso para o
rasgão e para a dor.

— Esse é o preço que se paga por saber e falar


demais. Eu estava naquela fila de ATM, ouvindo a
vossa conversa enquanto esperavam. Vocês
discutiram com um senhor, primeiramente. Depois,
pediram desculpas e ficou tudo bem. A sua cara diz
que acabas de te lembrar de mim, mas, ainda assim,
estás enganado. Eu não sou a pessoa que vos
elogiou e vos pediu horas. Podes esquecer, mas
chegaste perto. Ele é meu colega. Foi apenas a
pessoa mais adequada para se aproximar de vocês e
reter automaticamente o vosso contacto. Na verdade,
eu estava lá, mas trabalhando como o segurança do
banco. Nós estamos em vários sítios, como
funcionários e como clientes a mando do Núcleo,
que tu já sabes o que é.
Nos divertimos imenso controlando a situação.
Fizemo-vos pensar que a morte chegaria numa noite,
mas a morte acabou não chegando. Vocês baixaram
a guarda e acabaram morrendo em noites que não
esperavam. Vamos começar pela grávida: ela esteve
bem perto de descobrir tudo. Estava para enviar a
alguém que a salvaria do risco de ter aquele número
de telefone, mas deixou para o dia seguinte. Nós
invadimos o sonho dela e a matámos, rasgando ela
com várias facas ao mesmo tempo, bebendo o seu
sangue e comendo a criança feito canibais. Já era
uma criança formada. Se movia com vitalidade e até
chorou, mas, com os dentes, continuámos o culto do
sangue, a carnificina. Depois, foi uma outra fulana à
qual enfiámos uma espada pela vagina. O Teodoro te
contaria sobre ela, se ainda estivesse vivo, mas… é
uma pena. Ele já não está. Ele morreu afogado, isso
também no sonho, tal como o claustrofóbico, o Stone
e o Fábio. Um foi enterrado de cabeça para baixo
num buraco estreito, outro foi esmagado por um
comboio e outro foi vítima de uma explosão, ou
várias ao mesmo tempo.
Antes que me esqueça, quero que saibas sobre
duas coisas antes que morras: a primeira é que,
graças à tua ingratidão, ao teu gesto de levar um
telefone bem escondido, o homem que trabalhou
para nós também foi assassinado. Cortamos-lhe a
boca, devagarinho, com uma lâmina, e, a seguir,
fizemo-lo incendiar, arder. Isso não meramente por
ele ter contado, mas por burrice. Era indiferente
matá-lo ou deixá-lo vivo, mas a burrice de confiar
cegamente em ti deixou-nos muito irritados. Aliás,
deixou-nos tão irritados, que o fomos matar
presencialmente. Foi bom torturá-lo fisicamente e,
cá entre nós, ele mereceu. A segunda é sobre aquele
feiticeiro que vocês queimaram em tempos. Ele
apontou em ti não por mera coincidência. Seu avô
precisava despejar sangue para se manter em pé, e
esse sangue tinha que ser da mesma genética. Seu
avô vive envolvido com magia negra, mas tu ainda
não sabes do pior. Ele já está bem, mas… sabes
quem perdeu a vida tentando fazer alguma coisa
para ele se recuperar? — ele pergunta — São duas
pessoas até.

Uma lágrima alcança a superfície do meu olho


esquerdo e escorre pela lateral enquanto ele enrola
parte da corrente em sua mão direita, recua dois
passos, ergue os braços e…
Acabo de acordar com uma sensação de frieza.
Tive um sonho aterrorizador e sensível como a vida
real, mas não consigo me expressar, nem gritar,
tampouco respirar fundo. Simplesmente estou. É o
auge da dormência.
Ouço um latir persistente, de timbre familiar.
Levanto-me, cubro o Gaspar ainda adormecido sobre
o cadeirão e olho pela janela abaixo, avistando o
Oceano e uma senhora vestida de branco, que se
retira na velocidade do meu piscar de olhos. Baixo a
cabeça e começo a chorar.

***Gaspar***
Faz quase cinco meses desde que o meu irmão
enlouqueceu. Me parte o coração vê-lo assim, sujo,
sem lucidez, revirando contentores para comer. Sua
barba e o seu cabelo não param de crescer.
Infelizmente, tornou-se da rua. Ele ronda aqui perto,
mas em nenhum momento ousa entrar, pedir e
comer o que já temos aqui. É uma mudança de olhar
e derramar lágrimas, alguém que tive como ídolo
acabar assim.
Só há espaço para tristeza. Só há espaço para
muita tristeza. Essa tristeza embolou-se nos
bastidores dos meus olhos para caírem por um
motivo que me faz querer sorrir: ele não está
sozinho. Ele tem o Oceano sempre ao seu lado.
Oceano só vem emagrecendo, mas, sem saber
porquê, ele não larga o Lúcio. Reviram contentores,
bebem água parada, dividem as esmolas que eu e a
vizinhança damos. O que acaba comigo é o que tem
acontecido todas as noites: eles já não dormem.
Simplesmente se abraçam e uivam feito lobos no
decorrer da noite, cão e dono, no calar da
madrugada.
Quanto a mim, só espero que os meus pais
recarreguem o cartão do banco e cheguem logo.
Nossa água está para ser cortada e precisamos de
mais comida antes que essa acabe.
Sem esperar, ouço o som da porta da sala em
movimento. Penso serem os meus pais, mas toda
essa história me deixa sem energia para correr até
eles e saudar. Não sei como contar sobre o Lúcio,
sobre o estado em que ele está, nem explicar ao
certo o que o fez ficar assim.
Ouço passos vindos muito provavelmente de
um calçado formal, e, um atrás do outro, o sapatear
se torna mais audível. Julgo agora ser o meu pai,
que de vez se aproxima e vejo a porta abrir.
— Gaspar, estás bom, meu rapaz? — Saudou.
É, na verdade, o meu avô, com uma mão na porta e
outra atrás.
— Avô, estou bem. Obrigado. — Respondi.
— Então, não levantas para cumprimentar?
Não gostaste de me ver? — Perguntou, se
aproximando.
— Não é isso, avô. É que…
— É que…? — Questionou em lacuna,
querendo que eu me expressasse.
— …ouvi dizer que o avô estava doente. —
Completei.
— Ah, é mesmo?! Eu também ouvi dizer que
estavas vivo.
"Estúpido demais da nossa parte pensarmos
que uma vida é suficiente para que Deus, o
omnisciente, seja entendido. Eu mesmo sei que, se
proibir uma criança de espreitar no quarto do fundo,
ela dará um jeito de saber o que há dentro. Então,
não se fez Eva para que Adão não ficasse só. Deus já
sabia do companheirismo, tanto que animais já eram
macho e fêmea. Na verdade, Eva foi feita porque, no
caso de Adão falhar na ousadia de mexer no fruto, o
instinto feminino ousaria em acertar.
Era da vontade de Deus que se comesse o fruto
da árvore do bem e do mal, e foi a partir daí que nos
tornámos humanos. Éramos puros e imortais.
Lembra? Não era esse, o projeto. Ou seja…
…foi com a ajuda da Eva que Deus fez a
humanidade.", pensou Rui.
Começou tudo depois que, como grupo,
fizemos o pacto. A necessidade era a de metalizar o
coração, pratear o peito, borrar a alma com cinza e
tapar nossas espiritualidades como coveiros fazem
caixões desaparecerem de vista só com uma pá e
gamas de areia. Nossas vidas não eram assim tão
míseras, mas a roda precisava de girar para
mantermos a estabilidade e, para nós, estabilidade
era o luxo trabalhado em uma semana para durar o
ano inteiro. Não era a nossa fé que nos daria isso.
Muito menos a nossa bondade.
Não devia faltar ódio. Não devia faltar malícia
também. Devíamos era cortar nossas crianças-raízes
para não mais sentirmos remorso, piedade e paz de
espírito. Devíamos cortar motivos pelos quais rir e
chorar. "Apenas dinheiro"! Rir apenas por dinheiro!
Sorrir apenas por dinheiro. Esse era o pacto: não ter
medo de sorrir por cima do sangue que nós mesmos
derramamos, mas, antes, ter medo de chorar pelo
dinheiro não conseguido. Esse foi o pacto; o pacto
pelo qual manter-nos-íamos vivos pelo resto das
nossas vidas.
Estávamos todos no nosso santuário,
mandando, para o ar, fumaças e aromas de diversos
pesos: cigarro, erva, libanga, charuto, whisky,
cerveja e vinho. Era nosso costume fumar e beber
como celebração antecipada de mais um risco a ser
corrido. Afinal, o pacto também era o de cutucar a
morte e a prisão com os nossos vícios já saciados.
As vítimas do grupo sempre foram
responsabilidade da Flora, dona de uma beleza
inquestionável. Não sei qual é o truque, mas sempre
foi capaz de se aproveitar de homens sem sequer dar
o corpo. Então, com o seu rosto inocente, seus
peitos erectos, seu vestir indecente, sua cintura fina,
sua pele clara e o volume presente nas suas pernas
e na sua rabanceira, sempre seduziu quem, quando,
como e onde quisesse, e de forma bem sucedida. Ao
lado de Flora, sempre esteve a Judith, a mais
espirituosa da turma. Leitora voraz, mural de
tatuagens, sempre, sem dúvidas, digna do título de
cérebro do grupo. Embora fumante e consumidora
de drogas, nunca a vimos perder a lucidez, e, mesmo
sendo bonita, madura, culta, sensual, interessante
no mais alto grau, ela sempre restringiu o seu
acesso, nunca deixando homem algum se tornar
digno de tocá-la. Suas tatuagens, seus piercings e
seu olhar de bloqueio sempre souberam,
misteriosamente, convidar e repelir ao mesmo
tempo. No total, duas fêmeas e quatro machos:
Flora, Judith, eu, Bastiano, Artur e Aldino.
Artur sempre foi o mais vaidoso, o clássico, o
tipo que possui um anel para cada um dos dez
dedos, o que vai pela pouca fala, pela erudição da
música jazz e pelo valor de jóias e quadros; o tipo
que aposta em perfumes, em fatos, sapatos e
gravatas, o único usuário do chapéu fedora e único
fumante de charuto. Sempre defendeu que, quando
uma pessoa confia pela aparência, um burlador
decepciona pela essência. Em contraste com o Artur,
Bastiano sempre soou mais radical, menos aparente,
o que tem a fama de anjo, se pedir uma referência a
pessoas que o conhecem. Bastiano nunca teve medo
do pacto, uma vez que é doador e seus filhos
biológicos foram inseminados em mães
desconhecidas. Graças a ele e sua habilidade social,
conseguimos ter acesso a locais dos quais vieram as
nossas fortunas. O que sempre soou curioso é que
Bastiano tem maior número de banhos tomados em
relação ao Artur, e, falando em diferenças, músicas
rap são o que sempre lotaram as memórias dos seus
telefones. Seu lema, "Entrar saciado para o inferno e
queimar, na eternidade, rindo como uma hiena".
Diferente dos dois, Aldino foi sempre o nosso maior
mistério. Nunca escondeu suas excentricidades,
como a de comer morcegos e centopeias, a de dormir
deixando o telefone a emitir sons de corujas, ondas e
baleias, e a de celebrar a consumação dos nossos
crimes bebendo sangue de gato sem expressar nojo,
e dizer, por fim, "A sensibilidade é uma doença. A
consciência das coisas é o fruto que desligou Deus
do homem".
Do pacto, nossa missão de vida passou a ser
frequentar meios milionários para conhecer
potenciais empresários e afortunados. Desses
contactos, conseguimos golpear e usar o dinheiro
para a concretização das riquezas que nos
permitiriam viver sem trabalhar e sem mais recorrer
ao crime. Foi disso que comprámos os nossos
apartamentos individuais e o nosso casarão, que
chamamos de santuário. Dessas missões, também
lotámos as nossas contas bancárias e nos
hospedámos em residenciais e hospedarias,
sugestão da Judith sob justificativa de sermos
procurados logo em nossas casas quando rola uma
suspeita.
A meta final, a que nos juntaria para um
último crime, consistia na coleta de bilhões para
comprarmos doze autocarros a serem postos na via e
vivermos desse dinheiro para o resto da vida. A
Judith ligou para mim a informar que havia
montado um plano, e esse plano girava em torno de
um vizinho da sua mãe, um estrangeiro que
enriqueceu fazendo venda ilegal de diamantes e
justificava seu dinheiro atendendo na cantina que
abriu por lá. Quando questionei como ela teve
acesso a tal informação, respondeu-me que ele,
junto de outros, no bairro, tinham como fama a
prática de pedofilia com meninas que viviam sob
condições não muito favoráveis, sendo uma delas
sua informante. Foi essa, a razão do encontro
passado.
Foram necessários cinco meses para que
acontecesse o encontro seguinte, e, nesse meio
tempo, Flora teve que alugar uma casa no referido
bairro, frequentar a cantina, começar uma
intimidade com o alvo e conseguir informações não
conseguidas anteriormente pela Judith. Bastiano,
junto do Artur, teve que viajar e localizar as
mulheres e os filhos do mesmo. Aldino e eu
trabalhámos juntos, visitando presencialmente os
locais que a Judith sugeria para apagarmos o
homem, já conhecido como Abdul Traoré. Flora ficou
com a missão de acumulá-lo de desejos e vontades
até chegar o dia oportuno para atraí-lo a um
residencial, no Capolo I, aldeamento Kudima Kuami,
na suite onde eu, a Judith e o Aldino estaríamos
escondidos por baixo da cama, com vista a pegar o
mesmo em desvantagem. Os aposentos eram
acolhedores. Possuíam, de compartimentos, uma
pequena varanda na qual estava a porta que dava
acesso à sala, a sala tinha uma produção
aproximada a de um hotel, tendo apenas o tamanho
como principal diferença; no início do corredor para
o quarto e para o WC, havia uma pequena cozinha
na qual se encontrava um forno e um frigobar.
— Tratem de não tossir nem espirrar. —
Judith alertou, sussurrando, depois que ouvimos o
som da porta.
— Fixe. — Eu respondi, falando do mesmo
modo.

Depois que entraram, ouvimos ele elogiar o


espaço e a Flora a encenar, como se já não
conhecesse o lugar.

— Escolhi esse espaço porque tu mereces algo


especial. Tem que ser na sala, na casa de banho, na
cozinha, no quarto, na cama, no chão. Tens força
para isso, amor? — Ela insinuou.
— Eu tem, amor. Se o tempo acabar, eu poder
pagar para todo noite. — Ele respondeu, vindo
depois o som de dois beijos.
— Então, vem. Dá a tua mão e vamos para o
quarto. — Ela disse, marcando o chão com o
excitante som dos seus saltos.

Passaram-se dez minutos connosco só


ouvindo eles de clima, até que, por fim, vimos, de
onde estávamos, todas as roupas no chão. Foi aí que
saímos e passámos para a próxima parte do plano.
Abdul ficou assustado logo que deu pela nossa
presença no quarto. Empurrou a Flora de cima,
tentou levantar-se, mas o Aldino foi pontual ao tirar
a arma e mandá-lo ficar quieto.

— Tens dois minutos para desbloquear o


telefone e entrar no aplicativo do banco! — Aldino
ordenou.
— Aplicativo? — Abdul perguntou.
— Sim! Aplicativo! — Aldino confirmou.
— Aplicativo de banco? — Abdul perguntou de
novo.
— Aplicativo do dinheiro, porra! Aplicativo do
negócio! — Aldino retocou, alterado.
— Eu não ter aplicativo. Jura por Deus! Eu
trabalha num cantina. — Abdul suplicou, olhando
para o Aldino e para a Flora.
— Olha — Aldino manipulou — Queres dar o
dinheiro ou não, cabrão?!
— Quero dar dinheiro! Quero dar dinheiro! —
Respondeu, juntando as mãos como sinal de
súplica.
— Anda, vamos! Sem mais conversa. — Judith
apressou.
— Tem dinheiro na minha calça. — Abdul
afirmou.

Eu mesmo fiquei com o desejo de pôr uma


bala na cabeça do indivíduo, mas, infelizmente,
precisávamos dele vivo para conseguirmos o
dinheiro. Foi então que entrei em cena:

— Deixa, Aldino. Não vamos dar crise com


dinheiro em vista. Flora, liga para o Artur. —
Orientei.
— Vídeo? — Ela perguntou.
— Claro que sim! — Judith respondeu,
impaciente.
— Ah, Judith, pausa só! — Flora respondeu,
implicando.

Ainda sem roupa, Flora pegou o seu telefone e


fez conforme a orientação.

— Moça, o que temos? — Artur atendeu já


perguntando.
— Já estamos com o indivíduo. — Flora
respondeu.
— Excelente! Já vou dirigir a câmera aos
miúdos. — Artur afirmou, activando a câmera
traseira.

Abdul ficou agitado. Começou a suplicar aí


mesmo para que não fizessem nenhum mal às
crianças.

— Calma. Eles estão bem. E vão continuar


bem, se deres o dinheiro. — Artur disse.
— Está bem. Eu dar o dinheiro, mas me deixa
só falar com minhas mulher. — Pediu.
— Elas não podem falar agora. Estão
ocupadas. — Artur respondeu.

Flora pegou o telemóvel do Abdul e pediu o


código. Ele deu. A seguir, pediu o código do
aplicativo Bai Directo. Ele baixou a cabeça, fez
silêncio por uns cinco segundos, mas acabou dando
o código. Ele tinha, na conta, cinco bilhões. Ditei o
meu IBAN para que ela efectuasse a transferência e
ela fez.
— Flora, já não está feita a transferência? —
Perguntou Judith.
— Já está feita. Já passei até o comprovativo
para o WhatsApp do deus. Estou só a reiniciar o
telefone para não deixar nenhuma pista.
— Bem pensado! — Aldino concordou.
— Não! Espera, Flora! — Judith interrompeu
— Passa-me o telefone.
— É o quê mais, sra. Einstein? — Flora
confrontou em ironia, mas entregou.
— Mas o que se passa?! — Perguntei,
desentendido.
— Deus, ele pode não ter apenas conta no
BAI. — Judith palpitou — Olha; está aqui! tem
Multicaixa Express.

Ficámos boquiabertos com tamanha astúcia.


Abdul foi obrigado a conceder acesso a mais duas
contas. Uma delas possuía quinhentos mil e a outra,
um milhão e duzentos mil kwanzas. Essas últimas
transferências também foram feitas para a minha
conta.
Quem disse que homens não choram mentiu
tal como quem disse que os homens choram, porque
a verdade é que, se golpeados no ponto certo,
homens "choram como criança". A sensibilidade é,
realmente, uma doença.
Fechámos a missão com o Artur enviando
imagens e vídeos pelo WhatsApp, das mulheres do
Abdul nuas e forçadas à orgia. Um tiro não doeria
mais do que essas imagens e vídeos. Abdul chorou
dramaticamente e, olhando para nós, conseguiu
expressar três coisas ao mesmo tempo:
arrependimento, por lembrar que perdeu tudo por
conta de um momento; decepção, por ser
apunhalado por quem julgou ser inofensiva, e
rancor, por tamanha tortura e humilhação.
Mexemos com os seus desejos, com os seus filhos,
com o seu dinheiro e com as suas mulheres. Deve
doer imenso, querer fazer tudo e não poder fazer
nada.

— Tempo é dinheiro. Está na hora de acabar


com isso. — Aldino se pronunciou, direccionando a
pistola ao Abdul.
— Yha; estamos a passar da hora. Quem vai
matar? — Judith perguntou.
— Eu mesmo posso fazer isso. — Aldino se
prontificou.
— E como? Não podemos disparar aqui. Vai
espantar a caça. — Judith alertou.
Abdul, perto de Aldino, ousou bater na mão do
mesmo, deixando cair a pistola na cama.
Rapidamente, ele apanhou, golpeou o rosto do
Aldino e se aproveitou da agitação e do susto,
passando para as costas da Judith. Eu puxei o meu
revólver rapidamente, mas ele foi mais veloz,
colocando o cano na cabeça e fazendo a mesma de
refém.

— Larga o pistola! Eu vou matar! — Ameaçou.


— Calma. Nós não vamos matar. — Flora
tentou acalmá-lo.
— Cala esse boca, sua bandida! Quem dar
passo, vou matar. Larga a arma! — Ameaçou, pela
segunda.
— Deus, ele está magoado. É melhor obedecer.
Empurra a pistola para aqui. Fazem o que ele diz. —
Judith sugeriu.

Nós fizemos o que ele pediu. Livrei-me da


minha arma, que era a única que nos sobrou.
Coloquei-a no chão e empurrei, com o pé, para perto
dele.
— Vocês brincaram com jibóia errado. Vou
matar um por um. — Disse, puxando depois o
gatilho bem na cabeça da Judith.

Começou o pânico, porque a pistola não


estava carregada, e partimos em conjunto para a
agressão do mesmo. Judith começou por bicar a
minha pistola de volta para mim. Aldino, por ser o
maior entre nós, deu-lhe um soco na cara e
empurrou-lhe, batendo de testa contra o bico da
cómoda. Flora correu em direcção ao seu vestido,
pegou a bolsa e retirou dela uma faca. Aldino
insistia batendo o rosto de Abdul contra o chão até
este ficar sem forças para mais gritos.

— Vocês está a brincar com jibóia errado. —


Disse Abdul, com as últimas forças que sobraram
para falar.
— Já acho que está manhoso demais. —
Judith afirmou.
— Penso igual. Flora, passa a faca para a
Judith. Ela merece se vingar. — Ordenei.
— Não, deus. Eu prefiro que ele sinta uma
agonia maior nos últimos segundos de vida. Flora,
matas tu! — Judith declarou.
Flora aproximou-se do homem, cuspiu-lhe o
rosto e espetou, com toda a sua força, a faca
enferrujada na clavícula do mesmo, que caiu
vertendo sangue escuro e dizendo, mais uma vez,
que estávamos a mexer com a jibóia errada.

— E agora, o que fazemos? — Aldino


questionou, enquanto lambia o sangue de Abdul
escorrido em seus dedos.
— Sei que precisamos de anular as pistas. —
Respondi.
— A Flora deve desligar a localização do
telemóvel e reiniciá-lo. A seguir, ou deitamos fora ou
partimos, mas esse telefone já não pode ser achado
em nenhum local que frequentamos. Deus e Aldino
podem carregá-lo até à casa de banho, pô-lo debaixo
do chuveiro ligado. Eu e a Flora vamos ficar aqui,
limpando o chão, passando pano e álcool nos móveis
que provavelmente pegámos para, por fim,
colocarmos ambientador. Depois disso, só teremos
que esperar o período da noite para nos retirarmos.
— Judith orientou.
***Aldino***
Depois de uma semana, Artur e Bastiano já
estavam em Luanda. Eles ficaram tranquilamente
nos seus apartamentos, mas nós, que presenciamos,
tivemos que ficar hospedados em pensões, com
chips trocados e gastos moderados.
O dito deus, depois de mais três semanas,
marcou outra reunião, a ser no santuário, para falar
com o restante da turma sobre os autocarros que eu
e a Judith fomos comprar a mando dele. Quando lá
cheguei, encontrei todos animados. Era o de sempre:
o Rui, na sua santa paz, sentado na sua poltrona
enquanto passa o polegar direito em cada bola do
seu terço, o Artur sendo o capataz que se veste como
patrão, o Bastiano, de roupão, tomando champanhe
logo após um banho, a Flora rondando o santuário
de biquini, a Judith com um livrão sobre as coxas,
lendo e fumando, e eu, indo para o meu quarto, tirar
um frasco de centopeias para fazer a boca.
Entendia-se claramente a razão de estarmos
todos animados, mas eu fui, para essa reunião, feliz
por três motivos: conseguimos fechar o valor
premeditado, conseguimos comprar mais de doze
autocarros e, o principal de tudo, a Judith foi
comigo a um canal que nos permitiu dividir um
bilhão ao meio. Nunca é mais do que o Rui consegue
armazenar, obviamente por ser o chefe, o deus, mas
é mais do que os ganhos do restante do grupo.
Depois do Rui, apenas eu e a Judith.

— Muito bem, meu rebanho! O pacto nos


permitiu chegar ao destino. — Rui iniciou.
— É chegado o destino. — Respondemos, um
em sua vez.
— Agora, precisamos de abrir a garrafa de
champanhe mais especial que temos para
brindarmos o nosso feito bem como nos jogarmos
depois para a piscina como forma de nos limparmos
da vida do crime, dos sangues que mantêm as
nossas mãos vermelhas até hoje. Temos agora um
negócio que vai nos dar dinheiro todos os dias,
horas, minutos, segundos e milésimos. Somos
milionários a partir de hoje. Somos, cada um de nós,
detentores de três autocarros, o que nos dá um
pouco mais de um ano para nos tornarmos
bilionários. Não vamos ficar aqui com mais voltas.
Vamos festejar isso porque não foi Deus que nos
deu! Deus é um padrinho na cozinha e padrinho é
coisa que não tivemos. Então… festejemos. Tivemos
que sacrificar as próprias almas para chegarmos a
esse feito. — Concluiu.
***Rui***
A noite, finalmente, deu tudo o que tinha para
dar. Bebemos, fumámos, cantámos embriagados,
nos jogámos à piscina, nos lembrámos, rindo, dos
crimes mais marcantes que havíamos cometido, das
vezes em que cada um de nós quase deu bandeira, e
do início, quando éramos sensíveis demais para
cenas do tipo.
Judith adormeceu sentada com um dos seus
livros sobre as pernas. A Flora continuava acordada,
tomando birra na sua caneca de alumínio. O Artur,
ainda com margens para vaidade, adormeceu
penteando a barba. Já não tinha de vista o Aldino e
o Bastiano porque o Bastiano subiu para o banho,
que sempre toma antes de dormir, e o Aldino devia
estar no seu quarto, já dormindo ou se alimentando
de sangue animal. Então, sem mais forças para
continuar acordado, comecei a perder a luta de
manter os meus olhos abertos até ouvir um estrondo
que acabou interrompendo os nossos sossegos.
Depois que fomos ao piso de cima, nos
dirigimos à casa de banho para ver o que era, e era
justamente uma visão arrepiante.
Judith virou o rosto. Flora teve um susto
maior e começou a gritar. Janela aberta, suspensor
de toalhas amolgado, lavatório partido, corpo deitado
e muito sangue no chão, ainda escorrendo pela
cabeça cujo rosto expressava sangramento espesso e
morte.

— O que se passa? — Perguntou o Bastiano,


vindo do seu quarto, secando o cabelo com uma
toalha.
— É o Aldino. Está morto. — Eu respondi.
— Temos outra brincadeira?! — Bastiano
questionou.
— Não é uma brincadeira, mano. Não
brincaria com isso. — Respondi.
— Mas esse disfarce pode ser brincadeira. —
Artur sugeriu.
— Cabe na tua cabeça que matei o Aldino?! —
Bastiano rebateu, fechando o semblante.
— Ainda que for, essas acusações não se
fazem assim. Não podemos agredir um suspeito.
Podemos descobrir depois que não foi ele. — Flora
disse, ainda indisposta.
— Sou obrigada a concordar contigo, Flora.
Embora seja o maior suspeito entre nós, não
significa que seja propriamente o culpado. Não
houve flagrante. Procede, turma?
— Agradeço imenso, Flora e Judith, mas a
minha disposição já era. Se não há confiança, eu
não tenho outro motivo para estar aqui. — Bastiano
respondeu.
— Claro! Com três autocarros e mais de um
apartamento em posse, quem não tem pressa de
ficar sozinho? — Artur implicou.
— Manos, temos aqui um companheiro morto.
Vamos respeitar isso, pelo menos. — Interrompi.
— Sim; eu concordo, mas como fazemos? Não
podemos tocar no corpo. Também não temos
cadastro limpo para chamar a polícia. — Artur disse.
— É verdade. Investigados seríamos nós. Não
a morte do Aldino. — Flora concordou.
— Pessoal, vamos combinar que isso não é
uma situação complicada, né? Nós podemos
contactar o Manel Campos. É nosso amigo e é
investigador. — Judith respondeu.
— Eu não acho uma ideia boa. — Bastiano
disse.
— Depois de dizeres isso, também começo a
achar que já não é necessário. Qual é o medo?
Saíres da piscina e novamente tomar banho aqui em
cima?! — Artur confrontou.
— Isso não é prova de nada. Não recusei a
ideia por mim. Aliás, eu recusei por nós. O Manel
sabe que somos basicamente uma máfia. Não
sabemos como ele pensa hoje. Pode tirar algum
dinheiro de nós e nos ferrar. — Bastiano respondeu.
— Sim. Olhando por aí, faz sentido sim. —
Judith concordou.
— Mas, e então, como vamos resolver isso? —
Artur perguntou.
— Eu pergunto o mesmo. — Flora refez.
— Eu apenas disse o que penso, Rui. Tenho
uma imensa vontade de sair limpo dessa história,
mas não somos como o resto do mundo, que pode
entrar e sair de uma esquadra. Também não quero
que mandemos abaixo um império que nos custou
construir. Não quero que estraguemos tudo justo no
fim, mas sempre foste o nosso deus. A última
palavra é tua. Seja qual for, vamos apoiar e correr
mais um risco ao teu lado, como sempre foi. Então,
se for para derrubar tudo e começarmos do zero, que
assim seja. — Bastiano completou.
— Bem, malta, o Bastiano está certo. É
realmente muito arriscado. Foram anos, foram
riscos. Podemos acabar presos. No entanto, o Manel
é a única opção que temos. Não quero que te sintas
mal, Bastiano, mas se trata de uma morte. Se
notaram, a janela estava aberta. Pode ser que
alguém esteve aqui dentro. Se for isso, teremos que
fazer justiça, vingar o assassinato do nosso
companheiro. Foram anos. Percebes? — Perguntei.
— Sim, Rui. Eu percebo. Vamos correr o risco.
— Bastiano colaborou, receoso em sua voz.
— Pode ser, turma? — Perguntei.
— Pode ser, claro, e já que falas na
possibilidade de alguém ter entrado aqui, não acho
seguro dormirmos. A casa é grande. Não dá para
revistarmos e sermos bem sucedidos. Podemos
fotografar o compartimento por inteiro e enviar ao
Campos. Ele virá amanhã, mas ter as imagens hoje
já pode adiantar alguma coisa. — Judith sugeriu.

Houve concordância. Não conseguiríamos


fechar os olhos. Um de nós, talvez, seria a próxima
vítima da noite. Achámos arriscado irmos cada um
para um dos seus apartamentos. Então, o plano foi
o de manter as mulheres em um apartamento e os
rapazes em um outro, mas a Flora não quis. Disse
que haveria pouca defesa para duas mulheres.
Então, concordámos que o Artur ficaria com a
Judith e que a Flora ficaria comigo e com o
Bastiano. Foi assim que nos dividimos e passámos o
resto da noite.
No dia seguinte, antes que o sol nascesse
direito, liguei ao Artur para saber como tinha sido a
noite e avisar que a nossa havia corrido bem. Artur
disse que nada de estranho havia acontecido. Foi,
com a chamada em linha, bater a porta do quarto
em que a Judith dormiu e ela deu sinal de vida.
Felizmente, havíamos todos feito a travessia.
A preocupação do amanhecer, além de
acordarmos com vida, era a de tratarmos da
situação do Aldino. Não achei ser seguro ir sozinho,
mas também não seria bom levar uns e isolar
outros. Levar o Bastiano seria isolar a Flora bem
como levar a Judith seria isolar o Artur. Ninguém
mais era forte o suficiente. Aldino era maior e mais
forte do que nós juntos. Então, Artur se tornou tão
igual à Judith quanto o Bastiano à Flora.
Quando regressei a casa, beber três copos de
whisky foi a primeira coisa que fiz.

— Passaste por nós e não disseste nada! —


Disse a Flora.
— Eu até achei que teres entrado fosse
alucinação minha! — Bastiano complementou.
— Peço desculpas. Foi o dia. — Respondi.
— O que foi? Mais outro problema? — Flora
perguntou.
— Não ao certo. Foi duro olhar para o Aldino
de novo. Foi bom mesmo termos feito as fotos. O
corpo mudou muito de ontem para hoje. Já havia
moscas grossas e verdes cobrindo os olhos e a boca,
e o sangue ficou mais espesso e mais escuro, que
nem alcatrão. O fedor se intensificou ainda mais.
Fora isso, o Manel já fez as anotações que devia
fazer. Disse que vai dar conta do assunto e nos
contactar depois de ter chegado a alguma conclusão
convencional. — Respondi.
— Até aqui, óptimo, mas ele não cobrou? —
Bastiano perguntou.
— Quinhentos mil kwanzas pela investigação.
— Respondi.
— Pagaremos em contribuição? — Flora
perguntou.
— Se sim, já começámos mal. A soma só
começou e já temos subtração. — Bastiano
adiantou.
— Sim, Flora. Cada um de nós dará cem mil
para a contribuição. Não deve vos pesar. Vocês são
milionários agora. — Respondi, me esticando no
sofá.
— Só espero que isso não seja o início de
outros problemas. Vou tomar banho. — Flora disse,
mostrando descontentamento.
— Faz isso. Esta noite, não dormes sozinha.
Toma o seu banho de espuma, e exagera no gel, se
quiser, mas, a seguir, vá para o meu quarto e fica à
minha espera, na minha cama. Preciso descontar em
alguém toda essa tensão do dia. — Ordenei.

Flora olhou para mim, sorrindo, fazendo cara


de quem esperava por esse convite há muito tempo.
Disse que estava bem e pôs-se a andar a passos
rápidos. Eu fui à cozinha ver o que havia sido feito
para o almoço e o que tinha de fresco para se beber.
Havia Redbull e arroz acompanhado de frango
estufado.
Levantei-me da mesa repleto e em completo
estado de ereção. Passei pela sala e despedi-me do
Bastiano, mas ele interpelou-me:

— Captaste aquele olhar? — Perguntou.


— É dos meus favoritos. Em outras palavras,
chamou-me de rei. — Respondi.
— Em outras palavras, ela disse que quer
estar nas mãos do rei, mesmo que for como escrava.
— Corrigiu-me.
— Tens balas?
— Toma. — tirou três preservativos do bolso e
me entregou — Tens aqui.
— Valeu, mano!
— Sem crises. Uma dessas não merece trégua.
Mostra quem manda nessa porra. És o deus.

Nessa despedida, ouvimos uma explosão.


Notou-se perfeitamente que era de um
eletrodoméstico. Fomos imediatamente à cozinha,
mas, postos lá, não sentíamos cheiro de queimado.
Fomos à varanda ver se foi com a máquina de lavar,
e, a seguir, aos quartos, para ver se era o ferro de
engomar. Felizmente, nada disso. Estava tudo bem.
Então, Bastiano voltou para o sofá e eu fui para o
meu quarto.
Finalmente, a minha porta estava a ser batida.
Já não aguentava mais usar as mãos para consolar
as veias do meu mastro. Fui abrir e, para a minha
surpresa, era o Bastiano.

— Mano, não queria incomodar. Preciso usar a


casa de banho, mas vim antes saber se a Flora já
está aqui.
— Não, mano. Ela ainda não veio. Já foste ao
quarto dela ou à cozinha? — Perguntei.
— Fui ao quarto dela. Não está lá. Não fui à
cozinha porque teria notado se ela fosse para lá. Eu
saí da sala só agora.

Fui em direção à casa de banho e entrei sem


bater a porta. Flora estava nua, na banheira, de
barriga e rosto para baixo, contra a água, colada a
um secador conectado à tomada. Olhando um pouco
mais para cima, visualizei, novamente, a janela
aberta e algum sangue na borda da banheira, a mais
próxima à parede. Comecei um gutural com
expressão de raiva.

— Deus, o que há?! — Bastiano exclamou.


— Perdemos, mano! Mais uma vez, perdemos.
— Não, deus! Não me digas que...
— Digo, Bastiano. A Flora já não está entre
nós.
— A janela também está aberta! — Ele
aproximou-se e exclamou.
— Reparei, mano. Reparei. — Respondi, ainda
de costas.
— Se o plano for o de contactar novamente o
Manel, não deveremos mover o corpo dela. Vou fazer
as fotos para enviarmos e desligar a corrente da casa
de banho pelo quadro. — Sugeriu.
— Agradecia, mano. Agradecia.

Acabou sendo mais uma perda, mais uma noite


para sermos nómadas, para fugirmos feito cães
mirados com pedras, mais quinhentos mil a serem
subtraídos, mais uma péssima notícia a dar para os
outros. Eu ainda preferia que pelo menos a morte
fosse preconceituosa. Você olha para uma pessoa
interessante, bonita e gostosa, e acaba não fazendo
sentido o facto dessa pessoa estar sujeita à morte
mesmo assim. A morte é digna de escolher caras,
mas ela simplesmente não faz questão. Ela é uma
prostituta. Basta você respirar e é o suficiente para
ela te querer. Para a morte, o ar que respiramos é
uma moeda.

***Judith***
Foi aterrorizador receber a ligação do Bastiano
a informar que perdemos a Flora. Ele contou-me
também que, tal como na vez do Aldino,
encontraram a janela aberta.
Quando nos encontrámos para conversar,
Artur tentou novamente suspeitar de Bastiano, mas
o Rui fez questão de dizer que estavam juntos
quando ouviram a explosão do secador. "Nós
estávamos na sala. Ouvimos o estrondo juntos, mas
só vimos ela morta depois. Estávamos longe de
pensar que havia um secador ou uma tomada na
casa de banho", ele mesmo afirmou.
A conversa acabou tomando outra órbita. Rui
acreditava que, tal como o assassino descobriu os
endereços anteriores, já devia ter descoberto o
endereço da casa em que eu estava com o Artur.
Sugeriu que fôssemos morar temporariamente em
uma hospedaria, visto que, evidentemente, não
estaríamos sozinhos por lá. Nós concordámos,
obviamente. Então, procurámos por uma hospedaria
e, por lá, conseguimos ficar sossegados após cinco
dias de teste. Havíamos ocupado três quartos, dos
quais um ficou para mim e para o Rui, e outros dois
para o Bastiano e para o Artur,
correspondentemente.
Pus-me a rir discretamente depois que vi o
Bastiano subir com a quinta mulher da tarde. O Rui
parecia ter perdido a língua. Não falava nada.
Apenas prestava atenção ao que vinha da TV.
Tínhamos, lá em cima, um quarto vazio, no qual eu
toparia silenciar o mundo por umas horas se ele
tentasse ousar, mas preferia estar em baixo,
bebendo, assistindo, vendo casais entrando e
saindo.
Uma mulher gritou durante a sequência de
um som contínuo. O som era rústico e brusco. Nós
nos virámos para ver o que era e vimos um homem
nu e deitado, além de mal posicionado. Havia um
senhor ao lado, que chegou perto, agachou-se e
recuou rapidamente depois de tentar virar o corpo
do mesmo para cima.

— O que foi, mais velho? — Rui perguntou,


preocupado.
— Tive um susto. Os olhos dele estão
rebentados e a jorrar sangue! — O senhor
respondeu, respirando fundo.

Eu fiz logo as fotografias. Deus aproximou-se


para ver o rosto, virando o corpo com o pé. Não era o
Bastiano. Era o Artur. Artur, em sua nudez, foi
empurrado das escadas e morreu.
Após fotografar, subi rapidamente para o
quarto em que ele estava hospedado para ver se
ainda alcançava quem o tivesse empurrado, mas
tudo o que encontrei foi a sua janela aberta tal como
as outras janelas foram encontradas. A seguir, fui ao
quarto do Bastiano, que estava por cima de uma
mulher e acabou sendo interrompido. Coitado!

***Bastiano***
Foi, novamente, a conversa de mudarmos de
lugar porque mais um endereço foi descoberto. A
situação se tornou mais preocupante do que estava.
Três mortes em um só grupo e o mesmo sinal para
cada uma delas. Sempre a janela aberta; sempre os
acontecimentos aquando da nossa distração.
Nenhuma pista da entrada, nenhuma pista da saída.
Simplesmente tudo feito.
Doutro lado, tinha o Manel, que ganhava
quinhentos mil kwanzas pela investigação de cada
morte e nem com isso nos surgia com informação
alguma. Já um milhão e quinhentos! Era, sem
dúvidas, algo a soar muito estranho. O maliano não
foi atingido o suficiente para morrer? Seus sócios e
conterrâneos tomaram conhecimento do ocorrido?!
Seriam os homens do banco? Seriam os homens que
nos venderam os autocarros? Seria algum de nós a
matar os outros para ficar com toda a riqueza? Não
dava para ficar bem. Eu não matei o Aldino. Eu
também não matei a Flora. Muito menos o Artur. Não
que eu me conseguisse lembrar.
***Rui***
[...]
— Eu só acho que, como líder, devias ter mais
coisas a fazer, além de delegar tarefas e orientar que
mudemos de residência para fugir de um assassino.
Já tentámos isso duas vezes após o primeiro caso.
Não funcionou. Fomos encontrados, Rui. Tu não
consegues entender isso?! Vê algo mais eficaz, por
favor! Vê algo que nos salve realmente das mãos
desse homem ou dessa mulher. — Bastiano
desabafou.
— Tal como vocês não estão aqui só para
cumprir ordens e comer dos benefícios que projectei
pensando também em vocês! — Respondi, saturado
da cobrança.
— Esperem! Eu acho que a busca desse
assassino é progressiva. Ele vai para destinos
futuros. Depois da morte do Aldino, o Rui voltou
para o santuário e nem por isso foi assassinado,
uma vez que estava sozinho antes do Manel
aparecer. O mesmo com o apartamento no qual a
Flora morreu. Tu e o Manel foram para lá de novo e
nem por isso foram assassinados. Com o Artur,
idem, e nada de mal te aconteceu. Talvez se formos
para uma opção nova, ele nos ache. Então, voltar
para uma das pousadas anteriores pode nos salvar a
vida. — Judith palpitou.
— Judith, sabes que sempre foi um prazer
contar com a tua cognição, mas, sem querer ser
indelicado, é muito mais fácil localizar um sítio em
que já estivemos do que um sítio que estamos para
ir. Só depois de cinco dias é que aconteceu uma
morte. Lembras? — Rebati.
— Sim, eu lembro, mas quem garante que nos
descobriu só depois desse tempo? Pode ser que
descobriu antes e estava só a ver o jeito mais fácil de
fazer uma vítima. Hospedarias são mais
movimentadas do que apartamentos. — Judith
refutou.
— Rui, não me leves a mal, mas eu acho que a
Judith tem razão. — Bastiano opinou.
— Eu vou para uma opção nova. Quem quiser
vir, que venha. — Propus, pegando nas minhas
coisas.
— Isso é difícil para mim, Rui, mas eu confio
na intuição da Judith. Vou com ela. — Bastiano
respondeu.
— Não siga a Judith quando ela estiver a agir
por intuição. Judith é cérebro. Para todo o caso,
sinto muito, mas está bem. Vou com
ressentimentos, embora siga vos amando. Tomara
que eu seja mesmo o errado. — Finalizei, virando as
costas e ignorando o que pudessem dizer a seguir.
Criar um projecto que nos permitiu enriquecer e
enriquecer as nossas famílias reavivou as coisas que
sentia quando era criança e olhava para o céu.
Sempre julguei Deus por ser tão duro, por sentir que
sabe tudo, por não reconhecer que o mundo se tornou
imperfeito porque o perfeito falhou. Também julguei
Deus por não ter sabido conversar com os anjos
caídos no sentido de resolverem conflitos do céu sem
que isso pesasse sobre a terra. Ainda julguei por
construir um inferno e por permitir que crianças no
mundo passem fome.
Hoje, entendo que quem ama está sujeito ao
sentimento de rancor, e que quem cria um banquete
se entristece com os convidados que não aparecem. É
como me sinto. Eu fui o deus deles por anos e hoje
querem agir por eles mesmos.
Meu maior sonho de infância era o de cavar um
buraco no chão do quintal, enfiar a mangueira e ligar
a torneira para toda aquela água apagar o inferno,
mas, agora que vejo, a existência do inferno faz
sentido. Essa raça merece ir para lá.
Dez dias foram sábios e capazes de me fazer
acordar certo de que duas alternativas diferentes
podem estar paralelamente certas. Nada de mal me
sucedeu. Sei que, por conta do orgulho, o Bastiano e
a Judith não ligariam para mim para confessar
saudades, mas sei que um deles ligaria, caso
acontecesse algo grave ao outro.
Sem mais que pensar, o meu telefone chamou
e, sem mesmo olhar para o ecrã, atendi.

— Alô! — Iniciei, em tom de orgulho.


— Alô, Rui! Falas com o Manel; o Manel
Campos. — Respondeu.
— Oh, Manel! Como estás, mano?
— Estou bem. Sei que tu nem tanto.
— Não muito bem mesmo, mas pode mandar.
— Boas, mano. Já tenho os resultados. Podes
me encontrar agora?
— Claro que sim. Só manda o endereço, por
favor.
[...]
Tratei somente de levantar da cama e ir para o
carro mesmo com a roupa de noite.
Em quarenta minutos, cheguei, bati o portão,
e, sem demora alguma, Manel abriu e dirigiu-me
para dentro. Fomos à sua sala de trabalho e pediu
que eu me sentasse enquanto pegava os relatórios.

— Mano, vai desculpar ter vindo de pijama.


Estava extremamente ansioso.
— Não liga, Rui. É de boa. Há sentimentos
envolvidos. Nada mais justo.
— Obrigado por compreender. E então?
— O primeiro caso que investiguei foi o do
Aldino, como sabes. Tivemos que analisar o espaço
do incidente com a maior cientificidade e
constatámos que não houve propriamente um crime.
Aldino estava embriagado e encontrou o chão da
casa de banho molhado. O suspensor de toalhas
partiu porque foi aí onde ele pisou para alcançar a
barata que estava no cimo da parede. A barata está
nas imagens que mandaram para mim. Analisámos
a mão direita dele e realmente havia vestígio de pus
do inseto. A parte fatal para o Aldino foi a hora de
pousar. O pé que pousou escorregou para frente,
mandando o corpo atrás. Ele bateu com a nuca no
lavatório que, partindo, ganhou aptidão para
efectuar cortes de alta gravidade. O embate foi grave
e o corte também. — Detalhou.
— Mas e a janela, como se explica?
— A Janela não foi usada para fins de fuga,
segundo o que analisámos. Se o chão estava
molhado, obviamente alguém tomou banho antes
dele ter entrado, e, normalmente, as pessoas fazem
necessidade maior antes de começarem o banho. No
caso do cheiro não ter passado, é normal que o
próximo a entrar sinta a necessidade de abrir a
janela para expulsar o mau cheiro. Foi isso que ele
fez.
— Quanto à Flora?
— A Flora teve um caso semelhante. Flora
abriu a janela provavelmente pelo mesmo motivo. A
investigação declara que ela não tinha planos de
abrir a janela. Aconteceu que o quarto de banho foi
provavelmente usado por alguém antes dela. Então,
abriu, tomou banho e, depois de sair da banheira,
ligou o secador. Infelizmente, não tratou de esvaziar
a banheira antes de esticar-se para fechar a janela.
Ela desajeitou-se ao fechar e caiu com o secador na
banheira. A queda foi brusca o suficiente para ter
batido contra alguma saliência da parede e a
electrocussão foi resultado do contacto entre ela, o
secador e a água.
— Também faz o seu sentido, mas o que dizer
do Artur? Houve janela aberta, mas nada a ver com
casa de banho.
— O Artur havia calhado com um quarto cujo
AC estava com pouca potência. Eu fui lá, junto de
alguns colegas observar o meio. Ele despiu-se e
procurou algum jeito de se manter fresco. Como se
não bastasse, a cama daquele quarto estava
posicionada em proximidade com a lâmpada. Mano,
as lâmpadas podem cair sozinhas depois de algum
tempo. Aliás, a lâmpada caiu e foi embaixo da
lâmpada que ele posicionou o lado da cabeça.
Quando a lâmpada caiu entre a testa e o osso do
nariz, entraram cacos nos seus olhos. Ele levantou-
se aflito, coçou desesperadamente empurrando mais
os cacos sem querer, detectou a porta e foi se
queixar para que o pudessem ajudar, mas tropeçou
nas escadas e caiu feio. Foi isso que o matou. Várias
janelas naquela hospedaria ficam abertas, na
verdade. A climatização de lá não é das boas. Agora,
o último caso foi de incêndio.
— Como assim, "último caso"?! — perguntei,
surpreso — Só apresentei três!
— Tu não te apercebeste? — Perguntou.
— De quê?
— A Judith e o Bastiano morreram há dez
dias.
— Nada engraçado brincares com esse tipo de
coisas. — Confrontei, olhando seriamente para os
seus olhos.
— Não, mano. Não brincaria com algo assim.
Isso realmente aconteceu. Havíamos recebido a
emergência e fomos para lá, tal como alguns
bombeiros. Durante a investigação, vimos, pelos
ferros, que uma boca do fogão foi girada na
penúltima vez que alguém esteve lá. Ficaram uma
boa temporada com a casa fechada e, quando
voltaram, sem antes vazarem o gás, talvez por não
terem sentido o cheiro, apertaram no interruptor
para ligar a lâmpada da sala-de-estar sendo que da
faísca interna faz-se e fez-se incêndio. Eles
acabaram sendo consumidos pelo fogo. Sinto muito.
— Mas... é sério que não houve um assassino?
— Questionei, ainda confuso, triste e inconformado.
— Não, mano. Não houve. Vocês cometeram
um crime. É natural associar qualquer coisa a isso.
Se mataram um estrangeiro, o provável é que
tenham o receio de serem praguejados ou
amaldiçoados, mas eles morreram por negligência,
por coisas que estão nas nossas casas e
absurdamente podem nos matar. Tomar banho sem
limpar o chão é uma forma de colocar outra pessoa
exposta ao risco de escorregar e bater gravemente
com a cabeça; colocar tomada na casa de banho no
processo de construção é abrir possibilidades de
alguém morrer eletrocutado; dormir ou sentar-se
bem por baixo de coisas penduradas, tipo uma
lâmpada ou um candeeiro, é se expor a um golpe
vindo de cima; ter preguiça de verificar o fogão, a
mangueira da botija, as portas, o portão e a fase de
energia antes de ligar outra é dar o pescoço à folha
de serra. Por vezes, bebés são vítimas de
queimaduras porque adultos aquecem água e óleo
nas bocas da frente do fogão. Então, muitas vezes
morremos mesmo só por coisas assim. Está tudo
bem, mano. Não há perseguição. Não há praga
também. Quem tem tido o vosso endereço é a
negligência. É nela que tens que estar de olho. —
Reforçou.
— Na verdade, eu não pensei até aí. Muito
obrigado, Campos! — Agradeci, pondo a mão no
peito e seguindo rumo ao carro, pensativo.
— Sempre ao dispor. — Respondeu.

Vim para casa triste por saber que o fim do


crime tirou cinco pessoas da minha vida, mas há
também uma pitada de sossego por saber que
podem descansar em paz, que nenhum ser de
podridão ousou derramar o sangue deles.
Sem ter que destrancar a porta, entro, fecho-a
e só assim me sinto estar a trancá-la. Quero dormir
sem pensar em dinheiro por uma semana inteira.
Dormir em paz eu não posso, mas sempre posso
descansar sobre o tormento dos meus demónios.
Meus demónios fazem com a minha cabeça o que
uma grande orquestra faz com uma sala de
concerto. Então, com a porta trancada, viro-me para
andar rumo ao quarto, mas tomo um choque por
causa do que vejo:
Há uma jibóia na minha sala, que faz
movimentos estranhos e arrepiantes, e dá realce à
sua pele castanha com desenhos tenebrosos nas
escamas. Ela reluta ainda parada e, da sua boca,
começa a sair uma mão pegajosamente molhada.
Essa mão, agora, passa para um braço, vindo, a
seguir, a cabeça, outro braço e um corpo inteiro
escorregando para fora, molhando o chão da minha
sala com a baba da jibóia, que abandona o corpo e
vem rastejando em minha direção.
"Eu disse vocês brincaram com jibóia errado",
diz o homem do chão, levantando-se ainda pegajoso
e mostrando sua fronte. Ele tem hematomas no
rosto e um volume no ombro esquerdo, visível por
baixo da camisa.

— Espírito fraco não mata Abdul Traoré.


Sangue Traoré é que mata. — Diz ele, pondo-se a
sentar no meu sofá.
— Desculpa. Eu devolvo o dinheiro. —
Suplico, quase sem ar.
— Traoré não precisa. Traoré consegue
dinheiro depois. Traoré quer sangue! — Respondeu,
cruzando as pernas.
— Eu sei. — tento respirar — Mas agora é
muito mais dinheiro.

Ele comprime dois dedos, a jibóia aperta com


mais força. Sinto-me a deslocar os ossos e a ser
inevitável mudar de expressão facial. Agora, ele
desprende os dedos, a jibóia me solta, rasteja de
forma rápida e nojenta em direção ao fundo do
corredor e, por fim, se enrola.
Abdul põe-se em pé e começa a andar contra a
minha direção. Tira agora uma faca enferrujada da
cintura e exibe para que eu veja: é a faca da Flora, a
que usámos para matá-lo cravando em sua
clavícula. Abdul passa violentamente o seu dedo
anelar esquerdo na parte afiada da faca e deixa cair
as gotas de sangue no meu rosto como se de um
ritual se tratasse.
— Traoré não te mata agora. Traoré nunca ser
burro. Você vai levar Traoré onde estar os teus
colegas assassinos.
#PayIfYouLike
Produzir certo tipo de arte possui custos, mas
não é por isso que a arte deve morrer. Artistas esvaziam
os seus bolsos e muitas vezes aturam rodeios para
concluírem a produção dos seus quadros, das suas
bandas desenhadas, das suas EPs e Mixtapes, dos seus
eBooks e muitas outras formas de trabalho. Do mesmo
modo, consumidores muitas vezes esvaziam os seus
bolsos sem saberem se dada obra artística é digna de ser
comprada ou não.
Como apoio à toda a arte disponibilizada
gratuitamente, a "Pay If You Like", traduzida como
"Pague, Se Gostar", surge como um meio termo entre
artistas e consumidores. Você não precisa de viver
insatisfeito por ter comprado um trabalho de baixa
qualidade, como também não pode deixar de apoiar os
artistas do seu país que se dedicam a tornar a arte de
dentro tão essencial quanto a de fora. Não há preço, nem
exigências. Você só precisa de parabenizar os artistas
pela qualidade e incentivá-los a serem tão bons também
nos próximos trabalhos. Pague apenas o que estiver ao
seu alcance. Nenhum dinheiro dado de boa intenção será
pouco e, na ausência de apoio financeiro, você pode
simplesmente ajudar o artista a ir mais longe,
partilhando com pessoas que podem pagar pelo
consumo, ou então possibilitar nem que for um pequeno
espaço na rádio e na TV.
Em terra de pessoas suficientemente honestas, a
arte pode ser rentável sem privarmos os produtos. Arte já
temos, só falta mesmo a colaboração. Portanto, pague
pelo que gosta. Não deixe a arte bem intencionada
morrer!

Você também pode gostar