Thriller - Ivaldir de Sagitario-1
Thriller - Ivaldir de Sagitario-1
Thriller - Ivaldir de Sagitario-1
***Calei***
Está difícil lidar com tudo isso. Não dá para
conversar com os rapazes sobre. Tento pregar os
olhos, mas não há sono. É então que decido sair de
casa para dar um passeio pelo bairro, espairecer,
colocar a cabeça em outros tipos de pensamentos.
Tão logo saio, fecho a porta de entrada para a
sala, ponho as chaves no bolso e me viro em direção
ao portão do quintal, quando sou surpreendido por
três homens estranhos. O que está no meio está
sentado, cruzando as pernas, lendo jornal, o que me
impede de ver o rosto. Contra o meu braço esquerdo,
está um homem alto, vestido a preto, olhando para o
chão e segurando uma picareta, e, contra o meu
braço direito, um homem mais baixo, também
vestido a preto, de capuz, olhando para o pulso e
segurando uma pá de obra. Não sei o que mais me
preocupa, se é a presença deles, a aparência deles
ou a calma deles. Parecem não ter pressa. Parecem
saber que vão cumprir a missão que os trouxe,
mesmo que eu corra mais rápido.
O homem do meio acaba de fechar o jornal e,
com voz calma, ordena: "abra a sintonia, Duende!".
O homem à minha direita põe a mão no bolso, tira
uma caixinha de som, que tem a estrutura de um
carrossel com cavalos coloridos, pousa sobre o chão
e liga. Começa a tocar uma melodia semelhante a
essas, dos berços de recém-nascidos, e fica
inevitável sentir pavor, porque, mais do que coisa de
monstros, isso é coisa de psicopatas.
Para a minha surpresa, vejo duas luvas
brancas no chão. É então que concentro e vejo um
quarto homem sair daí, de um buraco. Ele começa a
sacudir-se, pega em uma corda e olham todos para
mim. Que horror! Eles têm suas caras pintadas com
várias figuras. No mais baixo de todos, nota-se
claramente uma pintura do Mickey; no mais alto,
consigo captar a imagem do Cristo Rei, mas dos
outros dois eu não consigo ver que figuras são,
sendo que há, entre nós, bem mais de sete metros e
não há iluminação.
Rapidamente, viro-me contra a casa para
poder entrar, mas as minhas mãos tremem, falham
na fechadura e deixo cair as chaves. Começo a
gritar, mas ninguém acorda, ninguém pergunta,
ninguém responde. O Duende se aproxima,
concentra-se nos meus olhos e, de forma agressiva,
aperta o meu pescoço. Eu tento pedir para parar,
mas a minha voz já não sai. Já não tenho voz nem
ar, e só me sinto enfraquecer. Eis que, vendo a
minha vida se esgotar, ouço do fundo: "acho que já é
suficiente para um prato de entrada", e o Duende
acaba de me largar. Acabo tossindo.
***Mamã Muxima***
Havia acabado de chegar da igreja quando,
estranhamente, minha neta veio pedir-me para
conversar. Achei esquisito porque essa juventude
não liga para assunto de velho. Querem somente
ouvir alguém concordando e apoiando para a
consciência deles não pesar tanto depois dos erros
que cometem ou querem cometer, mas, já que ela
tomou iniciativa, pedi-a que me trouxesse uma
caneca de chá e me encontrasse na sala, e assim
aconteceu.
***Fábio***
Uma visão se apagou na Terra e uma estrela
acendeu no céu. É agora questão de esperar a noite
chegar e deixar a minha intuição dizer qual das
estrelas será o Calei. Sei que ele se manifestará como
uma estrela de iluminação forte, tal como a voz que
ele tinha. Então, o meu irmão calou-se, mas, eu creio,
calou-se para iluminar.
***Inglês***
Entre novidades e rotinas, meu costume
favorito é fechar a barbearia na companhia da lua.
Tenho agora tudo fechado e, obviamente, ponho-me
a andar para casa.
Na chegada, vou à caixa térmica, tiro uma lata
de cerveja, ponho-me sentado, dou um gole, fecho os
olhos e pouso a minha nuca sobre o suporte do sofá,
relaxando e sentindo a espuma dando um concerto
na minha boca. Surpreendentemente, ouço um bip
e, olhando, um ecrã acende no sofá da frente. Acho
estranho, porque não temos telefone em casa. Vou
pegar para ver e é uma mensagem. "Você já não
pode dormir", é esse, o recado. Sem haver tempo
para me assustar direito, ouço o trancar da porta e,
me virando, vejo um homem na porta de entrada e
outro saindo do corredor. O da porta está vestido de
branco, de médico, e usa uma máscara branca com
o símbolo hippie pintado a encarnado. O do corredor
está vestido de preto. Possui o símbolo "infinito" na
testa e tem a boca cicatrizada e fechada com linhas
de costura. Começo a ficar seriamente assustado.
***Teodoro***
É mais uma manhã na qual posso acordar e
dizer que, graças a Deus, a morte não me levou.
Estou bem na pele de um salmista, afirmando que o
se deitar é humano, mas que o reerguer é divino.
Não quero muito, senão deixar o telefone no modo de
voo, aproveitar o sol que há semanas não noto a
presença, ir à praia, ouvir música, ver crianças, ver
mulheres, mulheres bonitas, comer doces, tomar
refrescos, sentir a areia, ver o azul e o branco se
espelharem no céu e no mar, nas nuvens e na
espuma.
Andar de táxi e sentar próximo à janela
causam-me sempre a sensação de perfurar o tempo.
O vento vem contra mim e, automaticamente,
começo a pensar, a imaginar e a reflectir sobre
coisas que, parado, não consigo alcançar. Só que, se
há algo melhor do que perfurar o tempo, essa coisa é
estar em sintonia com o tempo. O tempo é amigo
quando está no exacto ponto em que estamos. Nem
a frente, nem atrás. E é chegada a bendita praia, a
única médica e terapeuta natural que conheço.
Vendo assim: o mar é um ser vivo.
Repentinamente, o tempo começa a mudar, a
fechar. Olho para cima e o céu parece zangado, uma
expressão de Umbela querendo chorar. Não estou de
mergulho. Então, não há muito com que me
preocupar.
Com um pouco mais de dois minutos, começa
a chuviscar, bem como as pessoas começam a vir
para a beira. Há um grito de preocupação no meio
dessa agitação. É uma senhora, chamando por dois
nomes diferentes, e vou lá ter.
***Ester***
Toca o meu alarme das 02h, que activei com a
finalidade de orar às madrugadas pelas pessoas que
amo. Vou ao WC, lavo o rosto e volto ao quarto,
pondo-me de joelhos para iniciar a reza.
Estranhamente, uma voz toma conta do silêncio,
soando distante, de alguma forma. Vou ao quarto da
minha avó, mas ela não está na cama. Vou para a
sala e idem, mas a voz acaba se intensificando.
Chego perto da janela; vejo uma mulher descalça,
vestida de panos brancos, com uma vassoura
pousada perto, fazendo um ritual, atravessando a
vassoura pela esquerda e pela direita, enquanto fala:
***Stone***
Não consigo adormecer. Não sinto a
necessidade de adormecer. Não depois de sofrer
ameaças, perder um amigo e descobrir que posso ser
atacado até mesmo onde nunca fez sentido ser. Por
vezes, julgamos que temos tomates só por dizermos
verdades sem pensar na sensibilidade dos outros ou
mesmo por usarmos a internet para ofender políticos
e outras figuras públicas. Hoje, eu olho para mim e
descubro que isso não é ter tomates. Tenho boa
dotação, tenho potência, tenho fertilidade e
resistência, mas me sinto encurralado e só não
acabo com isso por falta de coragem. Já não faz
sentido viver. Não posso passar o resto da minha
vida sem dormir, e eu quero dormir, mas não posso.
Qual é a lógica de estar vivo?! Eu não tenho tomates!
Eu não tenho coragem de acabar com isso! Na
verdade, tem tomates quem está morto. Tem
tomates quem deu a testa ao cano. Esses mereciam
perder a vida, mas nunca perder a ereção. Mereciam
morrer e continuar tesos, mesmo que estejam no
caixão. E é isso: ter tomates é ladrar dando "safoda!"
para tudo. Ladrar e morder. É ladrar sem encolher a
cauda. Tem tomates quem já morreu.
Ponho a tocar o álbum que eu e os rapazes
gravámos e não tivemos coragem de lançar. Subo o
volume ao máximo, abro a primeira gaveta e tiro o
meu embrulho de erva para fumar pela última vez e
me deitar, ficando o resto da noite por conta deles.
Estranhamente, o volume reduz sozinho e o ecrã do
meu telefone acende, o que me deixa assustado. Vou
ver e é o número do dito Núcleo.
***Gaspar***
Faz quase cinco meses desde que o meu irmão
enlouqueceu. Me parte o coração vê-lo assim, sujo,
sem lucidez, revirando contentores para comer. Sua
barba e o seu cabelo não param de crescer.
Infelizmente, tornou-se da rua. Ele ronda aqui perto,
mas em nenhum momento ousa entrar, pedir e
comer o que já temos aqui. É uma mudança de olhar
e derramar lágrimas, alguém que tive como ídolo
acabar assim.
Só há espaço para tristeza. Só há espaço para
muita tristeza. Essa tristeza embolou-se nos
bastidores dos meus olhos para caírem por um
motivo que me faz querer sorrir: ele não está
sozinho. Ele tem o Oceano sempre ao seu lado.
Oceano só vem emagrecendo, mas, sem saber
porquê, ele não larga o Lúcio. Reviram contentores,
bebem água parada, dividem as esmolas que eu e a
vizinhança damos. O que acaba comigo é o que tem
acontecido todas as noites: eles já não dormem.
Simplesmente se abraçam e uivam feito lobos no
decorrer da noite, cão e dono, no calar da
madrugada.
Quanto a mim, só espero que os meus pais
recarreguem o cartão do banco e cheguem logo.
Nossa água está para ser cortada e precisamos de
mais comida antes que essa acabe.
Sem esperar, ouço o som da porta da sala em
movimento. Penso serem os meus pais, mas toda
essa história me deixa sem energia para correr até
eles e saudar. Não sei como contar sobre o Lúcio,
sobre o estado em que ele está, nem explicar ao
certo o que o fez ficar assim.
Ouço passos vindos muito provavelmente de
um calçado formal, e, um atrás do outro, o sapatear
se torna mais audível. Julgo agora ser o meu pai,
que de vez se aproxima e vejo a porta abrir.
— Gaspar, estás bom, meu rapaz? — Saudou.
É, na verdade, o meu avô, com uma mão na porta e
outra atrás.
— Avô, estou bem. Obrigado. — Respondi.
— Então, não levantas para cumprimentar?
Não gostaste de me ver? — Perguntou, se
aproximando.
— Não é isso, avô. É que…
— É que…? — Questionou em lacuna,
querendo que eu me expressasse.
— …ouvi dizer que o avô estava doente. —
Completei.
— Ah, é mesmo?! Eu também ouvi dizer que
estavas vivo.
"Estúpido demais da nossa parte pensarmos
que uma vida é suficiente para que Deus, o
omnisciente, seja entendido. Eu mesmo sei que, se
proibir uma criança de espreitar no quarto do fundo,
ela dará um jeito de saber o que há dentro. Então,
não se fez Eva para que Adão não ficasse só. Deus já
sabia do companheirismo, tanto que animais já eram
macho e fêmea. Na verdade, Eva foi feita porque, no
caso de Adão falhar na ousadia de mexer no fruto, o
instinto feminino ousaria em acertar.
Era da vontade de Deus que se comesse o fruto
da árvore do bem e do mal, e foi a partir daí que nos
tornámos humanos. Éramos puros e imortais.
Lembra? Não era esse, o projeto. Ou seja…
…foi com a ajuda da Eva que Deus fez a
humanidade.", pensou Rui.
Começou tudo depois que, como grupo,
fizemos o pacto. A necessidade era a de metalizar o
coração, pratear o peito, borrar a alma com cinza e
tapar nossas espiritualidades como coveiros fazem
caixões desaparecerem de vista só com uma pá e
gamas de areia. Nossas vidas não eram assim tão
míseras, mas a roda precisava de girar para
mantermos a estabilidade e, para nós, estabilidade
era o luxo trabalhado em uma semana para durar o
ano inteiro. Não era a nossa fé que nos daria isso.
Muito menos a nossa bondade.
Não devia faltar ódio. Não devia faltar malícia
também. Devíamos era cortar nossas crianças-raízes
para não mais sentirmos remorso, piedade e paz de
espírito. Devíamos cortar motivos pelos quais rir e
chorar. "Apenas dinheiro"! Rir apenas por dinheiro!
Sorrir apenas por dinheiro. Esse era o pacto: não ter
medo de sorrir por cima do sangue que nós mesmos
derramamos, mas, antes, ter medo de chorar pelo
dinheiro não conseguido. Esse foi o pacto; o pacto
pelo qual manter-nos-íamos vivos pelo resto das
nossas vidas.
Estávamos todos no nosso santuário,
mandando, para o ar, fumaças e aromas de diversos
pesos: cigarro, erva, libanga, charuto, whisky,
cerveja e vinho. Era nosso costume fumar e beber
como celebração antecipada de mais um risco a ser
corrido. Afinal, o pacto também era o de cutucar a
morte e a prisão com os nossos vícios já saciados.
As vítimas do grupo sempre foram
responsabilidade da Flora, dona de uma beleza
inquestionável. Não sei qual é o truque, mas sempre
foi capaz de se aproveitar de homens sem sequer dar
o corpo. Então, com o seu rosto inocente, seus
peitos erectos, seu vestir indecente, sua cintura fina,
sua pele clara e o volume presente nas suas pernas
e na sua rabanceira, sempre seduziu quem, quando,
como e onde quisesse, e de forma bem sucedida. Ao
lado de Flora, sempre esteve a Judith, a mais
espirituosa da turma. Leitora voraz, mural de
tatuagens, sempre, sem dúvidas, digna do título de
cérebro do grupo. Embora fumante e consumidora
de drogas, nunca a vimos perder a lucidez, e, mesmo
sendo bonita, madura, culta, sensual, interessante
no mais alto grau, ela sempre restringiu o seu
acesso, nunca deixando homem algum se tornar
digno de tocá-la. Suas tatuagens, seus piercings e
seu olhar de bloqueio sempre souberam,
misteriosamente, convidar e repelir ao mesmo
tempo. No total, duas fêmeas e quatro machos:
Flora, Judith, eu, Bastiano, Artur e Aldino.
Artur sempre foi o mais vaidoso, o clássico, o
tipo que possui um anel para cada um dos dez
dedos, o que vai pela pouca fala, pela erudição da
música jazz e pelo valor de jóias e quadros; o tipo
que aposta em perfumes, em fatos, sapatos e
gravatas, o único usuário do chapéu fedora e único
fumante de charuto. Sempre defendeu que, quando
uma pessoa confia pela aparência, um burlador
decepciona pela essência. Em contraste com o Artur,
Bastiano sempre soou mais radical, menos aparente,
o que tem a fama de anjo, se pedir uma referência a
pessoas que o conhecem. Bastiano nunca teve medo
do pacto, uma vez que é doador e seus filhos
biológicos foram inseminados em mães
desconhecidas. Graças a ele e sua habilidade social,
conseguimos ter acesso a locais dos quais vieram as
nossas fortunas. O que sempre soou curioso é que
Bastiano tem maior número de banhos tomados em
relação ao Artur, e, falando em diferenças, músicas
rap são o que sempre lotaram as memórias dos seus
telefones. Seu lema, "Entrar saciado para o inferno e
queimar, na eternidade, rindo como uma hiena".
Diferente dos dois, Aldino foi sempre o nosso maior
mistério. Nunca escondeu suas excentricidades,
como a de comer morcegos e centopeias, a de dormir
deixando o telefone a emitir sons de corujas, ondas e
baleias, e a de celebrar a consumação dos nossos
crimes bebendo sangue de gato sem expressar nojo,
e dizer, por fim, "A sensibilidade é uma doença. A
consciência das coisas é o fruto que desligou Deus
do homem".
Do pacto, nossa missão de vida passou a ser
frequentar meios milionários para conhecer
potenciais empresários e afortunados. Desses
contactos, conseguimos golpear e usar o dinheiro
para a concretização das riquezas que nos
permitiriam viver sem trabalhar e sem mais recorrer
ao crime. Foi disso que comprámos os nossos
apartamentos individuais e o nosso casarão, que
chamamos de santuário. Dessas missões, também
lotámos as nossas contas bancárias e nos
hospedámos em residenciais e hospedarias,
sugestão da Judith sob justificativa de sermos
procurados logo em nossas casas quando rola uma
suspeita.
A meta final, a que nos juntaria para um
último crime, consistia na coleta de bilhões para
comprarmos doze autocarros a serem postos na via e
vivermos desse dinheiro para o resto da vida. A
Judith ligou para mim a informar que havia
montado um plano, e esse plano girava em torno de
um vizinho da sua mãe, um estrangeiro que
enriqueceu fazendo venda ilegal de diamantes e
justificava seu dinheiro atendendo na cantina que
abriu por lá. Quando questionei como ela teve
acesso a tal informação, respondeu-me que ele,
junto de outros, no bairro, tinham como fama a
prática de pedofilia com meninas que viviam sob
condições não muito favoráveis, sendo uma delas
sua informante. Foi essa, a razão do encontro
passado.
Foram necessários cinco meses para que
acontecesse o encontro seguinte, e, nesse meio
tempo, Flora teve que alugar uma casa no referido
bairro, frequentar a cantina, começar uma
intimidade com o alvo e conseguir informações não
conseguidas anteriormente pela Judith. Bastiano,
junto do Artur, teve que viajar e localizar as
mulheres e os filhos do mesmo. Aldino e eu
trabalhámos juntos, visitando presencialmente os
locais que a Judith sugeria para apagarmos o
homem, já conhecido como Abdul Traoré. Flora ficou
com a missão de acumulá-lo de desejos e vontades
até chegar o dia oportuno para atraí-lo a um
residencial, no Capolo I, aldeamento Kudima Kuami,
na suite onde eu, a Judith e o Aldino estaríamos
escondidos por baixo da cama, com vista a pegar o
mesmo em desvantagem. Os aposentos eram
acolhedores. Possuíam, de compartimentos, uma
pequena varanda na qual estava a porta que dava
acesso à sala, a sala tinha uma produção
aproximada a de um hotel, tendo apenas o tamanho
como principal diferença; no início do corredor para
o quarto e para o WC, havia uma pequena cozinha
na qual se encontrava um forno e um frigobar.
— Tratem de não tossir nem espirrar. —
Judith alertou, sussurrando, depois que ouvimos o
som da porta.
— Fixe. — Eu respondi, falando do mesmo
modo.
***Judith***
Foi aterrorizador receber a ligação do Bastiano
a informar que perdemos a Flora. Ele contou-me
também que, tal como na vez do Aldino,
encontraram a janela aberta.
Quando nos encontrámos para conversar,
Artur tentou novamente suspeitar de Bastiano, mas
o Rui fez questão de dizer que estavam juntos
quando ouviram a explosão do secador. "Nós
estávamos na sala. Ouvimos o estrondo juntos, mas
só vimos ela morta depois. Estávamos longe de
pensar que havia um secador ou uma tomada na
casa de banho", ele mesmo afirmou.
A conversa acabou tomando outra órbita. Rui
acreditava que, tal como o assassino descobriu os
endereços anteriores, já devia ter descoberto o
endereço da casa em que eu estava com o Artur.
Sugeriu que fôssemos morar temporariamente em
uma hospedaria, visto que, evidentemente, não
estaríamos sozinhos por lá. Nós concordámos,
obviamente. Então, procurámos por uma hospedaria
e, por lá, conseguimos ficar sossegados após cinco
dias de teste. Havíamos ocupado três quartos, dos
quais um ficou para mim e para o Rui, e outros dois
para o Bastiano e para o Artur,
correspondentemente.
Pus-me a rir discretamente depois que vi o
Bastiano subir com a quinta mulher da tarde. O Rui
parecia ter perdido a língua. Não falava nada.
Apenas prestava atenção ao que vinha da TV.
Tínhamos, lá em cima, um quarto vazio, no qual eu
toparia silenciar o mundo por umas horas se ele
tentasse ousar, mas preferia estar em baixo,
bebendo, assistindo, vendo casais entrando e
saindo.
Uma mulher gritou durante a sequência de
um som contínuo. O som era rústico e brusco. Nós
nos virámos para ver o que era e vimos um homem
nu e deitado, além de mal posicionado. Havia um
senhor ao lado, que chegou perto, agachou-se e
recuou rapidamente depois de tentar virar o corpo
do mesmo para cima.
***Bastiano***
Foi, novamente, a conversa de mudarmos de
lugar porque mais um endereço foi descoberto. A
situação se tornou mais preocupante do que estava.
Três mortes em um só grupo e o mesmo sinal para
cada uma delas. Sempre a janela aberta; sempre os
acontecimentos aquando da nossa distração.
Nenhuma pista da entrada, nenhuma pista da saída.
Simplesmente tudo feito.
Doutro lado, tinha o Manel, que ganhava
quinhentos mil kwanzas pela investigação de cada
morte e nem com isso nos surgia com informação
alguma. Já um milhão e quinhentos! Era, sem
dúvidas, algo a soar muito estranho. O maliano não
foi atingido o suficiente para morrer? Seus sócios e
conterrâneos tomaram conhecimento do ocorrido?!
Seriam os homens do banco? Seriam os homens que
nos venderam os autocarros? Seria algum de nós a
matar os outros para ficar com toda a riqueza? Não
dava para ficar bem. Eu não matei o Aldino. Eu
também não matei a Flora. Muito menos o Artur. Não
que eu me conseguisse lembrar.
***Rui***
[...]
— Eu só acho que, como líder, devias ter mais
coisas a fazer, além de delegar tarefas e orientar que
mudemos de residência para fugir de um assassino.
Já tentámos isso duas vezes após o primeiro caso.
Não funcionou. Fomos encontrados, Rui. Tu não
consegues entender isso?! Vê algo mais eficaz, por
favor! Vê algo que nos salve realmente das mãos
desse homem ou dessa mulher. — Bastiano
desabafou.
— Tal como vocês não estão aqui só para
cumprir ordens e comer dos benefícios que projectei
pensando também em vocês! — Respondi, saturado
da cobrança.
— Esperem! Eu acho que a busca desse
assassino é progressiva. Ele vai para destinos
futuros. Depois da morte do Aldino, o Rui voltou
para o santuário e nem por isso foi assassinado,
uma vez que estava sozinho antes do Manel
aparecer. O mesmo com o apartamento no qual a
Flora morreu. Tu e o Manel foram para lá de novo e
nem por isso foram assassinados. Com o Artur,
idem, e nada de mal te aconteceu. Talvez se formos
para uma opção nova, ele nos ache. Então, voltar
para uma das pousadas anteriores pode nos salvar a
vida. — Judith palpitou.
— Judith, sabes que sempre foi um prazer
contar com a tua cognição, mas, sem querer ser
indelicado, é muito mais fácil localizar um sítio em
que já estivemos do que um sítio que estamos para
ir. Só depois de cinco dias é que aconteceu uma
morte. Lembras? — Rebati.
— Sim, eu lembro, mas quem garante que nos
descobriu só depois desse tempo? Pode ser que
descobriu antes e estava só a ver o jeito mais fácil de
fazer uma vítima. Hospedarias são mais
movimentadas do que apartamentos. — Judith
refutou.
— Rui, não me leves a mal, mas eu acho que a
Judith tem razão. — Bastiano opinou.
— Eu vou para uma opção nova. Quem quiser
vir, que venha. — Propus, pegando nas minhas
coisas.
— Isso é difícil para mim, Rui, mas eu confio
na intuição da Judith. Vou com ela. — Bastiano
respondeu.
— Não siga a Judith quando ela estiver a agir
por intuição. Judith é cérebro. Para todo o caso,
sinto muito, mas está bem. Vou com
ressentimentos, embora siga vos amando. Tomara
que eu seja mesmo o errado. — Finalizei, virando as
costas e ignorando o que pudessem dizer a seguir.
Criar um projecto que nos permitiu enriquecer e
enriquecer as nossas famílias reavivou as coisas que
sentia quando era criança e olhava para o céu.
Sempre julguei Deus por ser tão duro, por sentir que
sabe tudo, por não reconhecer que o mundo se tornou
imperfeito porque o perfeito falhou. Também julguei
Deus por não ter sabido conversar com os anjos
caídos no sentido de resolverem conflitos do céu sem
que isso pesasse sobre a terra. Ainda julguei por
construir um inferno e por permitir que crianças no
mundo passem fome.
Hoje, entendo que quem ama está sujeito ao
sentimento de rancor, e que quem cria um banquete
se entristece com os convidados que não aparecem. É
como me sinto. Eu fui o deus deles por anos e hoje
querem agir por eles mesmos.
Meu maior sonho de infância era o de cavar um
buraco no chão do quintal, enfiar a mangueira e ligar
a torneira para toda aquela água apagar o inferno,
mas, agora que vejo, a existência do inferno faz
sentido. Essa raça merece ir para lá.
Dez dias foram sábios e capazes de me fazer
acordar certo de que duas alternativas diferentes
podem estar paralelamente certas. Nada de mal me
sucedeu. Sei que, por conta do orgulho, o Bastiano e
a Judith não ligariam para mim para confessar
saudades, mas sei que um deles ligaria, caso
acontecesse algo grave ao outro.
Sem mais que pensar, o meu telefone chamou
e, sem mesmo olhar para o ecrã, atendi.