Com&Info Pósgênero Nilton
Com&Info Pósgênero Nilton
Com&Info Pósgênero Nilton
Resumo
Na música pop e sua circulação globalizada consolidou-se uma comunicação institucionalizada em
formas culturais reconhecíveis. Os gêneros musicais constituem assim, dentro de um complexo sensorial
midiático, as noções e percepções maiores sobre a produção musical. Propõe-se aqui observar as
hibridizações e os experimentalismos – espaços semióticos “entre” as categorias midiáticas – como
processos comunicacionais de diferenciação que privilegiam imprevisibilidade artística e atualizações
políticas. Para tanto, sugerimos uma revisão epistemológica centrada nos processos menores percebidos
no som, a partir da noção de pós-gênero, cujo caminho teórico-metodológico baseado na semiótica, no
pós-estruturalismo e no decolonialismo questiona as desigualdades narrativas que marcam a música pop
nas mídias.
Abstract
In pop music and its globalized circulation, a institutionalized communication was consolidated in
recognizable cultural forms. Music genres thus constitute, within a media sensory complex, the major
notions and perceptions about music production. It is proposed here to observe the hybridizations and
experimentalisms – semiotic spaces “between” the media categories – as communicational processes of
differentiation that emphasize the artistic unpredictability and the political updates. To this end, we
suggest an epistemological review centered on the minor processes perceived in sound, as of the notion
of post-genre, whose theoretical-methodological path based on semiotics, poststructuralism and
decolonialism questions the narrative inequalities that mark pop music in the media.
Resumem
En la música pop y su circulación globalizada, la comunicación institucionalizada se consolidó en
formas culturales reconocibles. Los géneros musicales constituyen, dentro de un complejo sensorial
mediático, las principales nociones y percepciones sobre la producción musical. Aquí se propone
1
Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), São Paulo, Brasil, [email protected]
2
Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), São Paulo, Brasil, [email protected]
1
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
1 INTRODUÇÃO
O termo música pop detém ao menos dois sentidos decisivos, explorados com certa
frequência nos estudos de Comunicação: tanto define a organização das produções musicais em
um gênero musical de caráter genérico, como articula a síntese da circulação midiática desses
produtos culturais. Na historicidade de seu surgimento, fatores como o advento da fonografia
dos diferentes suportes de gravação e reprodução de som, do rádio e da TV e as possibilidades
abertas pela web, cada qual à sua maneira, exerceram considerável influência. E, claro, trata-
se de um termo, recorrente nas narrativas do jornalismo, especializado ou não, que chega ao
senso comum como resumo do que se deve (ou o que é necessário) compreender sobre a
produção musical contemporânea.
Cabe aqui traçar um breve retorno às preocupações iniciais dos estudos de fenômenos
de mídia com os produtos culturais. Foram os Estudos Culturais (EC) que possibilitaram,
efetivamente, maior atenção aos modos e condições de produção e às diferentes formas de
assimilação desses produtos na vida social. Uma vez que produtos midiáticos transitam no
tecido social por variadas mediações – artistas, públicos, indústrias midiáticas, meios de
comunicação, produtores independentes etc. –, as disputas narrativas entre representações
hegemônicas, alternativas e negociações em processos de recepção constituem as principais
temáticas abordadas. Uma das ferramentas que se mostrou efetiva às análises citadas é a
preocupação com os gêneros dos produtos culturais. Em Dos meios às mediações, de Jesús
Martín-Barbero (2001), por exemplo, o folhetim é observado nas relações entre produtor e
público leitor, engrenagem comunicacional de produção de sentidos. A partir daí é possível
considerar que os gêneros representam dois importantes eixos de análise, no que diz respeito à
sua produção e apropriação: ele reúne a discursividade de um campo cultural específico e
representa um conjunto de regras institucionalizadas (LOPES, 2016, p. 198). Assim, remete-se
também a um fazer artístico e cultural.
2
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
3
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
3
Disponível em: https://www.facebook.com/musicaestranha.me/videos/2008530939380795/.
4
Sobre os processos de produção de subjetividade, concordamos que na circulação midiática da música
também “é impossível separar processos econômicos, políticos e sociais dos processos de subjetivação”
(LAZZARATO, 2014, p. 14).
4
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
admite ainda uma experiência de escuta que não passe obrigatoriamente por autorizações de
identidades prévias, mas esteja aberta à experiência em si.
A música pop na vida social, da consolidação da cultura midiática para cá, articula o
imaginário no qual os afetos relacionados à fruição musical são organizados. Tal qual um
arquivo qualquer acessível à memória, esse imaginário oferece noções e representações
mínimas acerca das diferentes marcas culturais dos gêneros musicais, as sociabilidades das
comunidades musicais e os estilemas de reconhecimento das configurações instrumentais.
Trata-se de uma engrenagem paradigmática, força significante que conecta
instrumentação/sonoridade a certo gênero (TROTTA, 2008), gênero musical às práticas de
consumo (JANOTTI JR, 2003) e elementos musicais – ritmo, melodia – a não musicais –
comportamentos, ideologias – (FABBRI, 1982). Conforme citamos anteriormente, são aspectos
ricos para cartografias culturais, dado que é a partir desse reconhecimento, que aqui podemos
chamar de regimes de identificação, enquanto mercadoria no capitalismo tardio, que geralmente
decorrem apropriações e consumo, bem como se apresentam como indicadores de um fazer
musical.
Levamos em conta os processos semióticos5 nos quais a subjetivação é exposta em
relação à música, ou seja, os gêneros musicais são formas reconhecíveis e emergem de campos
de enunciação consolidados. Nosso enfrentamento epistemológico é direcionado à
comunicação acionada pelo híbrido e pelo experimental, e ao desvio minoritário que oferecem.
No lugar da identidade musical maior (certa estabilidade do sujeito) como figura máxima da
produção de sentido, nosso enfoque é na experiência sônica em si. Embora seja inegável a
importância das marcas identitárias para inúmeros estudos, nossa preocupação com os
processos de diferenciação da música e suas relações corpóreas visa jogar luz nas instabilidades
e na dúvida oriunda de territórios híbridos e experimentais, que podem ser ocultados por
categorias previamente imaginadas. Mesmo que sejam muitos os fluxos em circulação, e a
diferença participa desse ambiente, há relações sensoriais mais recorrentes. Suely Rolnik (1995)
5
Segundo Maurizio Lazzarato (2014, p. 48), a “produção de subjetividade não se refere a uma superestrutura
ideológica; ela produz realidade e, em particular, realidade econômica”. Ou seja, segundo o autor, o
neoliberalismo produz subjetividade não apenas por meio da linguagem, mas no âmbito existencial (realidade)
pelo uso da planilha, nas oscilações da bolsa etc. – elementos não necessariamente discursivos. Ao trazer essa
ideia ao campo da circulação musical, notamos que o lugar mais periférico destinado a artistas locais (e suas
obras hibridizadas) diz respeito a uma realidade econômica maior que sugere modelos limitados de identidades
globalizadas, inclusive, as musicais.
5
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
entende a experiência de estar em contato com o mundo e as coisas como estado de constantes
rupturas, quebras, variações de ritmo e intensidade. Segundo a autora, de um lado está “a
infinitude do ser enquanto pura produção de diferença e, de outro, a finitude dos modos de
subjetivação em que se expressam as diferenças” (Ibid, p. 2). Dito isso, é possível vislumbrar
um cenário limitador vinculado aos regimes semânticos maiores em que, embora a experiência
na duração seja instável, produção de subjetividade e desejo são afetados constantemente por
máquinas semióticas que reduzem as possibilidades criadoras.
Observar as narrativas que constituem algumas categorias mercadológicas indica a
existência de relações de poder expressas nas maneiras de nomear. Tomemos o termo world
music como exemplo, que, embora não remeta a um fazer artístico, é usado como gênero
midiático para rotular produções não ocidentais, classificação amplamente reforçada por meios
de comunicação, lojas de discos, plataformas de streaming e trabalhos acadêmicos. Trata-se de
agrupar uma série de produções culturais emergentes do Sul Global em um termo genérico,
como se o maracatu recifense, a rumba congolesa e os tocadores de kora do Mali ocupassem
um espaço semântico homogêneo. Para justificar o uso do termo, recorre-se à chegada de discos
de artistas de origem africana, asiática e das Américas às prateleiras de lojas de discos
europeias, sobretudo nos anos 1980, bem como o surgimento de selos especializados em gravar
e lançar artistas fora do eixo Europa-EUA, como escreve Simon Frith (2000), em seu artigo
sobre world music. E aqui é preciso ressaltar algumas abordagens teóricas sobre essa categoria,
que permeiam também as narrativas da música pop. Ao tratar da temática, Frith constrói seu
argumento considerando o world music como marca de autenticidade, no âmbito da circulação
e do consumo, e compreende o termo como identidade musical que agrupa enlaces locais e
globais (hibridizações), inerente aos processos de globalização (FRITH, 2000). Outro trabalho
que aborda relações entre produções musicais de Norte e Sul globais foi conduzido por Motti
Regev (2007), no qual o autor considera as apropriações locais do rock e as hibridizações daí
decorrentes como possibilidade de construção de uma identidade moderna, globalizada, em
oposição às tradições6 mais “conservadoras”. Ambos os argumentos são propensos em
6
No texto de Regev (2007), há uma leitura unilateral sobre o processo de hibridização, no qual o rock aparece
como elemento moderno que ajuda artistas locais a se rebelarem contra suas culturas autoritárias. Seria
importante observar também como o próprio rock e demais gêneros ocidentais se mesclam a outras vertentes
culturais para diferenciar-se de si enquanto estética institucionalizada, como ocorre em obras de artistas como
The Clash e Talking Heads. O próprio fechamento do rock enquanto comunidade musical, em meio às disputas
de performance de gosto, é apresentado, muitas vezes, como marca de “bom gosto” frente a outros gêneros,
muitas vezes despertando leituras excludentes, ou seja, ele pode ser elemento de apropriações revolucionárias
e reacionárias. Para pensar o híbrido, sugerimos uma visão mais próxima da polifonia de Mikhail Bakhtin
(2008), que considera o autor como “regente do grande coro de vozes que participam do processo dialógico”
(BEZERRA, 2012, p. 194), sem que uma voz se sobreponha às demais participantes, a exemplo de obras de
artistas como Fela Kuti e Chico Science & Nação Zumbi.
6
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
considerar que músicos de culturas locais e suas obras hibridizadas somente podem alcançar
autorização semântica para adquirir uma identidade “globalizada” ao assumirem signos
ocidentais, o que abriria caminho para pertencer à moderna música pop. Para não cair nas
armadilhas de capturar o Outro por oposições binárias ou pelo processo de homogeneização
realocado por discursos de uma globalização unilateral do chamado Ocidente, recorremos à
Stuart Hall (2003, p. 36) e sua observação dos afrouxamentos multilaterais dos laços culturais
e a dificuldade cada vez maior de delimitação de narrativas de origem. Na obra do grupo Chico
Science & Nação Zumbi, por exemplo, concordamos que há uma relação de “radical
equiparação da produção musical pop recifense com o que havia de mais criativo no âmbito
internacional” (VARGAS, 2007, p. 17), consequência de movimentos de constante produção
de diferenças, dinâmicas da própria cultura. Assim, não há um elemento que se impõe como fio
condutor para indicar o caminho da modernidade, mas uma ética artística que se abre em relação
às potencialidades sonoras por meio de um deixar-se permear por exterioridades.
Para melhor situar o debate do lugar do Outro no termo world music, que não é o enfoque
principal deste texto, mas que pertence às desigualdades que pretendemos enfrentar, sugerimos
uma revisão da episteme sobre a qual esses discursos estão consolidados. O pensamento da
teórica Spivak (2010) acerca da assimilação do Outro parte da desconstrução derridiana para
questionar narrativas que trabalham a partir de um lugar etnocêntrico em uma relação sujeito-
efeito que estabelece “a si mesmo ao definir seletivamente um Outro” (Ibid, p. 102). Em outras
palavras, o sujeito em ação adquire tamanha importância frente ao seu objeto que a tentativa de
abordar as diferenças é redirecionada para um falar de si, daí o perigo do desencadeamento de
análises7 que caminham para uma pretensão messiânica de “salvar” o objeto. Narrativas sobre
a música pop nas mídias passam por tais filtros discursivos, sobretudo as formas de nomear8 as
diferenças. Ao apresentar um resumo estético de possibilidades e formas de circulação e
consumo, assegurando um lugar homogêneo às singularidades não ocidentais, constrói-se um
ideal identitário, regime de apagamento das processualidades inerentes aos gêneros musicais
que trataremos mais adiante. Sendo assim, este artigo reivindica leituras e olhares mais abertos
às formas desviantes desse ideal imaginado, convite a uma nova perspectiva ou a ocupar outro
ponto de vista (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 46), uma vez que o “significante não nos
faz sair da questão ‘o que isso quer dizer?’” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 276).
7
A manutenção de desigualdades narrativas também permeia a obra Orientalism, de Edward Said (1990), e sua
crítica à cultura dominante de narrar o Outro.
8
Concordamos com Jacques Derrida (2013) e sua crítica à escritura (gramma) na história do Ocidente, não
apenas no sentido de estabelecer o conhecimento para o ser no mundo, mas por conceber o signo como
representação estável.
7
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
Outro conceito caro a este estudo é o experimentalismo. Pode-se entender que todo
processo de criação musical e artística começa por experimentações, quando o artista testa este
ou aquele material sonoro entre as possibilidades que lhe são próximas ou não. Entretanto, é
importante notar, ao priorizar agenciamentos menores, quais desses materiais usados destoam
das regras institucionalizadas (o fazer artístico) de determinado gênero musical. Aqui abrimos
a perspectiva para observar o desvio de conduta que resulta quando o artista se diferencia de si
por meio da sonoridade – ao explorar um timbre, uma configuração de instrumentação,
melodias de outras vertentes culturais ou ao repensar maneiras de lidar com certo instrumento
–, escolha ética que inscreve diferenciações nas relações corpóreas do músico com as
possibilidades de produção. Por exemplo, Beatles nos últimos discos da carreira, operando no
rock, ocupa lugar significativo na cultura pop ao optar por desconstruir gêneros, ao abri-los
com o uso de outros instrumentos ou imprimir variações rítmicas em suas normas de conduta
estética.
Há, entretanto, um problema no uso do conceito de experimentalismo para observar as
produções da música pop: o discurso que acompanha a palavra experimentalismo. A visão
constituída com a ascensão das vanguardas do início do século XX centraliza o
experimentalismo como referencial de obras europeias e norte-americanas, que, ao se oporem
às tradições da música de concerto, criaram sua própria hegemonia, excluindo campos de
criação populares e locais. Essa questão é levantada por Campesato e Iazzetta (2019), que
alertam sobre esse tipo de assimetria geralmente assumida de maneira acrítica capaz de silenciar
movimentos criativos emergentes de contextos específicos, e que inviabiliza “que se encontre
o experimental em qualquer outro lugar” (Ibid, p. 61). A aplicação do conceito a investidas
levadas no âmbito da música pop, portanto, permite identificar os desvios desejantes de músicas
que se colocam para além das categorias reconhecíveis. Artistas que levam os limites
demarcados pelos gêneros a hibridizações, esses espaços semióticos “entre” os significados
maiores, partem de processos de experimentação e desencadeiam tangentes de diferenças
geradoras de outras afecções (relações corpóreas). Esses elementos de diferença, muitas vezes,
trazem sonoridades de outras matrizes culturais – o que explica seu lugar periférico nas grandes
narrativas – em especial do Sul Global, materialidades sônicas que carregam engajamentos e
reconfiguram disputas narrativas (MBEMBE, 2005, p. 85), fazendo transbordar a delimitação
de uma identidade imaginada.
Antes da análise empírica que busca caminhos de entendimento de hibridizações e
experimentalismos, sugerimos uma compreensão semiótica mais aberta sobre os gêneros
8
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
musicais, para além de seus discursos midiatizados, e demonstrar sua constante tendência à
atualização.
9
Os vínculos entre os gêneros musicais e suas comunidades podem levar emoções, afetos e questões de
identidade a posicionamentos mais extremos, sobretudo frente à diferença. A circularidade de um regime
semântico é expressiva em variados sintomas sociais de fechamento e até intolerância, como as vaias que o
cantor Carlinhos Brown recebeu no festival Rock in Rio, em 2001, quando o artista associado à música baiana
foi escalado pela organização do evento para se apresentar ao lado de grupos como Guns N' Roses e Oasis.
9
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
10
Ska, rocksteady, dub e reggae music eram os gêneros jamaicanos tocados por esses coletivos, que por sua vez
carregavam em suas estruturas semióticas referências de outros gêneros que chegavam dos Estados Unidos e
do Reino Unido, como o rhythm and blues e o jazz.
10
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
Muitos e variados são os criadores que transitam nos espaços “entre” os gêneros
musicais reforçando as dificuldades de reconhecimento. Para servir de exemplo no espaço
limitado deste artigo, indicamos três casos bastante representativos dessas posturas de fronteira
que definimos com pós-gênero.
11
Espaço comunicacional virtual onde ocorrem a semiose e as trocas textuais entre sistemas.
11
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
12
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Z7xTvf0Nvpk.
13
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GzLZdx5XlBs.
14
Entre as rotulações dos DJs da chamada música eletrônica, cabe notar que Dolores difere de artistas como
Diplo, David Guetta e Don Diablo, que, ao ocuparem espaço no mainstream, reforçam em suas obras aderência
a certos subgêneros. Embora essa não seja a abordagem principal deste estudo, cabe ressaltar que os incontáveis
subgêneros da música eletrônica geralmente atendem às necessidades mercadológicas da novidade (um novo
hype!), sob a lógica da obsolescência no consumo midiático (MCLEOD, 2001, p. 73) – e, obviamente, do
capitalismo tardio
15
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mXBifQdlwSc.
16
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=r49G6PXBhQY.
12
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
com as materialidades sonoras, qual seria seu lugar na música pop? Ao transbordar o
significante que tenta homogeneizar essas tensões na memória midiática, a música assume um
sentido político. O som que nasce desses lugares destinados à margem constrói uma
epistemologia, o tangenciar do som que abre percepções, semelhante à leitura que Achille
Mbembe (2005) faz da música congolesa, reivindicando o aspecto sensorial das sonoridades,
na qual o autor percebe como a voz gritada das canções, somada ao conjunto “melodia, ritmo e
percussão, torna-se uma ponte entre a dor e sua expressão enquanto linguagem”17 (Ibid, p. 87).
O camaronês vê a música como potência para revisões narrativas.
Bantu Continua Uhuru Consciousness (BCUC) é um grupo formado em Soweto, distrito
periférico de Joanesburgo, África do Sul. Se, como pontuamos anteriormente, a instrumentação
é um dos estilemas de reconhecimento dos gêneros midiáticos da música pop, o BCUC não
apresenta configuração aderente às possibilidades oferecidas por esse modo de reconhecimento.
A formação da banda consiste basicamente em instrumentos de percussão, vozes, baixo e apitos
(específicos de culturas indígenas de sua região).
Na faixa Moya18, elementos da música soul, em especial a entonação da voz da cantora
Kgomotso, são incorporados aos textos locais, entre assovios e apitos indígenas que remetem
aos cantos dos pássaros, com bumbos, congas e demais percussões ao fundo. Em determinado
momento, os músicos Hloni e Luja abandonam seus instrumentos para, ora gritar, ora rimar,
versos que dentro da lógica majoritária dos significados da música nas mídias se aproximariam
do rap ou do punk. Tal qual a dinâmica dos textos culturais, trabalhada por Lotman (1996), as
canções do BCUC são concebidas nas relações intertextuais, cuja imanência libera efeitos
(afecções) que chegam a todos os participantes da semiose. Por isso, para o autor russo “el texto
artístico tiende hacia el poliglotismo” (Ibid, p. 102), e considerando as irregularidades e as
porosidades das trocas fronteiriças, entre dois ou mais espaços semióticos, o estado de pertencer
a um “entre” é constante nessas obras.
Embora os textos musicais reconhecíveis (como gênero soul) e os textos populares na
cultura local (ritmos, instrumentações) não sejam apagados na hibridização, a experiência de
escuta oferecida pelo BCUC necessita de outra noção de entendimento, que não passe pela
obrigatoriedade de pertencimento a uma identidade musical específica, mas permita à própria
identidade ser uma ausência, e assim preocupar-se com o devir radical da abertura aos
nomadismos semióticos. Essa noção de leitura, defendemos, admite o estado de pós-gênero não
17
Melody, rhythm and percussion, becomes a bridge between pain and its expression as language (traduzido
pelos autores).
18
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=311&v=bqc23bnHgQI.
13
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
19
Nessa versão, a duração da faixa sofreu redução, provavelmente para ser apresentada em um evento cujo
público está mais acostumado aos três/quatro minutos mais recorrentes na concepção ocidental de fonografia,
ou seja, houve uma negociação preocupada com o lugar da apresentação. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=wXoGLlcXKdo.
14
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
Um exemplo é a obra No meio dessas bananas – god or dog?20, lançada pela dupla em
2018. Nomeada como ação sonora, na qual os artistas manipulam tapes, vozes diversas, found
sounds, samples e instrumentos eletrônicos em uma performance ao vivo, intitulada pela própria
dupla como listening party, transmitida de Londres para a galeria 55SP, em São Paulo. Entre
os samples acionados com discursos de Brizola, fragmentos de reportagens, trechos de faixas
da cantora MC Carol e depoimentos de Marielle Franco, mesclavam-se canções inéditas
apresentadas pelo Tetine na ocasião, como se fossem modificações de última hora feitas no
momento de sua exibição de lançamento. Videoarte, funk, subgêneros da música eletrônica e
instalação artística constituem uma obra que somente pode ser pensada como texto semiótico
de fronteira (LOTMAN, 1996). O Tetine leva elementos do pop, como os conceitos de DJ e
discotecagem, para um campo semântico que dialoga também com a dinâmica de uma bienal
de artes, desencaixe acionado por uma ética experimental de lidar com ambos os campos da
cultura (o pop e a instalação). Ou, quando em faixas como Mata hari voodoo21 o Tetine usa
elementos estéticos do funk e do pós-punk para construir a base instrumental sobre a qual Eliete
Mejorado declama versos de um poema, cuja letra passeia por citações de personagens
históricos e da literatura universal percebe-se sempre a relação “entre” campos distintos.
Os elementos sonoros de diferença, nas obras de DJ Dolores, Mundo Livre S.A., Chico
Science e Nação Zumbi, BCUC e Tetine, são exemplos de processualidades que deslocam as
grandes representações semânticas da música pop nas mídias. A noção de pós-gênero funciona
como ferramenta teórica e metodológica para analisar esse tipo de som como evento
comunicacional. Trata-se de uma experiência sônica em si que reconhece, incorpora e explora
uma série de agenciamentos menores, multiplicidades e linhas de fuga, dentro e fora dos
gêneros musicais, na direção de seus entremeios, espaços semióticos que uma identidade maior
não poderia suportar. A partir de experimentações e hibridizações, os estilemas de identificação
(ritmos, performance, instrumentação, discursos etc.) são colocados em xeque, pois a percepção
é aberta para outras afecções corpóreas e novas representações (o desvio da circularidade do
signo), ou ausência das subjetivações oferecidas pelas marcas da música pop globalizada – esse
dispositivo que universaliza a fruição.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
20
Trata-se de um vinil lançado em baixa tiragem. Sua performance de lançamento está disponível em:
https://vimeo.com/279283581.
21
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oEWUbeKv9wk.
15
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
16
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
REFERÊNCIAS
AMARAL, A. Categorização dos gêneros musicais na Internet – Para uma etnografia virtual
das práticas comunicacionais na plataforma social Last.fm. In: FREIRE FILHO, J.;
HERSCHMANN, M. (orgs.). Novos rumos da cultura da mídia: indústrias, produtos e
audiências. Rio de Janeiro, Mauad, 2007, p. 227-242.
FABBRI, F. A theory of musical genres: two applications. In: HORN, D.; TAGG, P. (ed.)
Popular music perspectives. IASPM, Göteborg & Exeter, 1982, p. 52-81.
FRITH, S. The Discourse of World Music. In: BORN, G.; HESMONDHALGH, D. Western
music and its others: difference, representation, and appropriation in music. California:
University of California Press, 2000, p. 305-322.
JANOTTI JR, J. À procura da batida perfeita: a importância do gênero musical para a análise
da música popular massiva. Eco-Pós, v. 6, n. 2, p. 31-46, 2003.
JANOTTI JR, J.; PEREIRA DE SÁ, S. Revisitando a noção de gênero musical em tempos de
cultura musical digital. Galáxia, n. 41, p. 128-139, mai./ago. 2019.
17
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
KRISTEVA, J. Desire in language: a semiotic approach to literature and art. New York:
Columbia University Press, 1980.
MCLEOD, K. Genres, subgenres, sub-subgenres and more: musical and social differentiation
within electronic/dance music communities. Journal of Popular Music Studies, n. 13, p. 59-
75, 2001.
REGEV, M. Rock aesthetics and musics of the world. In: CATEFORIS, T (ed.). The rock
history reader. New York: Routledge, 2007, p. 303-308.
18
e-ISSN: 2317-675X | Comun. & Inf., Goiânia, GO, v. 24, p. 1-20, 2021.
VARGAS, H. Hibridismos musicais de Chico Science & Nação Zumbi. Cotia (SP): Ateliê,
2007.
19