Eliana de Castro

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Eliana de Castro

RELIGIÃO E ROMANTISMO:
O ADULTÉRIO DE ANNA KARIÊNINA
À LUZ DA TEORIA ROMÂNTICA DA PAIXÃO

Mestrado em Ciência da Religião

São Paulo - SP

2018
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Eliana de Castro

RELIGIÃO E ROMANTISMO:
O ADULTÉRIO DE ANNA KARIÊNINA
À LUZ DA TEORIA ROMÂNTICA DA PAIXÃO

Dissertação apresentada à banca examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como
parte das exigências para a obtenção do título de
Mestre em Ciência da Religião, sob a orientação do
Professor Doutor Luiz Felipe Pondé.

São Paulo - SP

2018
Banca Examinadora

_________________________________

_________________________________

_________________________________
Agradeço imensamente à CAPES
pela bolsa concedida e pelo financiamento
do Mestrado em Ciência da Religião.
AGRADECIMENTOS

Para todos que não deixaram que nada me faltasse nesse período. Para
todos que compreenderam minha ausência. Para todos que celebrarão
comigo mais essa etapa.

Para os professores que sempre me receberam com generosidade. Para


Andreia Bisuli, parceira inestimável. Para Madely Ferrari, quem me ajuda
todos os dias na descoberta de quem sou.

Enfim, para o mestre dos mestres, o meu grande companheiro, a quem


dedicarei cada uma de minhas conquistas e cujo nome sempre virá
antes do meu: Luiz Felipe Pondé.
Para Leonardo Gonçalves
RESUMO

Esta pesquisa pretende analisar o romance Anna Kariênina, do escritor


russo Liev Tolstói, à luz do Romantismo e do cristianismo ortodoxo,
especificamente a questão do adultério e do amor romântico, o que
acaba por levar a protagonista ao suicídio. Tratamos a importância da
literatura desde os tempos mais remotos, principalmente como por meio
da literatura é possível entrar em contato com os costumes religiosos de
um povo, ou seja, sua cosmovisão. Tecemos um panorama do
movimento romântico e sua influência na literatura, da mesma forma
como apresentamos a nova maneira de ver e viver a religião que se deu
a partir dos românticos históricos; além, claro, da própria concepção de
amor romântico, que data desse período. Observamos Tolstói como um
agente religioso, perpassando suas principais obras, chegando assim na
questão do desejo que, por fim, encerra a pesquisa numa análise
detalhada da obra, que se serve, certamente, de todo o caminho teórico
percorrido.
ABSTRACT

This research intends to analyze the novel Anna Kariênina, by the


Russian writer Liev Tolstoy, in the light of Romanticism and orthodox
Christianity, specifically the question of adultery and romantic love, which
ends up leading the protagonist to suicide. We deal with the importance
of literature since the earliest times, especially how through literature it is
possible to get in touch with the religious customs of a nation, that is,
their worldview. We create a panorama of the romantic movement and its
influence in literature, just as we present the new way of seeing and
living the religion that has been given by the historical romantics; beyond,
of course, the very conception of romantic love, which dates back to this
period. We observe Tolstoy as a religious agent, passing through his
main body of work, thus arriving at the question of the desire that, in the
end, closes the research in a detailed analysis of the work, which
certainly serves the whole theoretical path.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO:.......................................................................................11

CAPÍTULO UM
Literatura, sua importância e relações...............................................14

Literatura e religião.................................................................................14
Modelos de conduta ficcionais................................................................18
Literatura e cosmovisão..........................................................................23
Literatura no cotidiano.............................................................................24
Literatura para além de tudo...................................................................25

CAPÍTULO DOIS
Romantismo: o movimento e suas relações......................................33

Romantismo: o movimento.....................................................................33
Isaiah Berlin............................................................................................34
Romantismo e religião............................................................................44
Romantismo e literatura..........................................................................54

CAPÍTULO TRÊS
Tolstói e os contextos..........................................................................58

Nascimento e anos de formação........................................................... 59


Os primeiros conflitos.......................................................................... 61
Quando nasce o escritor........................................................................ 63
A religião em seus romances................................................................. 65
As obras-primas.................................................................................... 67
Excomunhão e suas razões................................................................... 74
As críticas de Tolstói.............................................................................. 75
O que é religião, segundo Tolstói.......................................................... 82
A questão do desejo.............................................................................. 84
Morte...................................................................................................... 89

CAPÍTULO QUATRO
O amor romântico em Anna Kariênina................................................90

Notas sobre o amor................................................................................ 90


A obra: 1873-1877................................................................................. 92
Por que Anna?....................................................................................... 94
Possíveis leituras de Anna Kariênina..................................................... 95
As impressões de Vrónski e Kariênin.................................................... 99
Anna e Vrónski..................................................................................... 100
A conexão irremediável........................................................................ 101
Anna pelo olhar do cristianismo ortodoxo............................................ 102
Felicidade Conjugal.............................................................................. 103
Traços do romântico............................................................................ 110
O amor no romântico........................................................................... 111
O amor em Anna.................................................................................. 115
O filho, o elo......................................................................................... 118
Divórcio................................................................................................ 119
Maligno espírito de luta........................................................................ 119
A queda, o suicídio............................................................................... 123
Tolstói e sua mensagem religiosa........................................................ 124
Tolstói e sua mensagem humana........................................................ 125
O amor na visão ortodoxa.....................................................................126
O vazio, o silêncio, a crítica................................................................. 128

CONCLUSÃO.......................................................................................129
BIBLIOGRAFIA....................................................................................132
11

INTRODUÇÃO

Quando levamos em consideração a pedra angular do


cristianismo em Tolstói, a moralidade, é no mínimo intrigante que o autor
tenha feito de Anna Kariênina uma heroína de seu tempo,
principalmente porque o romance não deixa de ser uma crítica à
emancipação feminina. Tolstói, contudo, parece ter separado, ao longo
da narrativa, o pecado do pecador. Ele entrega à personagem tamanho
poder de identidade, embora não deixe de sinalizar as consequências de
sucumbir ao amor romântico; para ele, uma maldição.
O duelo da natureza humana está o tempo todo em ação em
Anna Kariênina e é possível reparar o fluxo de emoções, desde as
cambiantes até as paradoxais. Há luta e resistência, reflexão e
impulsividade, embate e entrega, sofrimento e perdão, ego e contrição.
Não seriam essas as questões mais humanas, que facilmente saem das
páginas de um livro e aplicam-se à vida cotidiana? E a religião não está
a postos justamente para mediar tudo isso?
Absolver ou condenar Anna Kariênina é o ato final, sentença que
o leitor homologará, mas não sem antes se ver ali, em cena, ao canto,
observando atuar cada um dos personagens, e tentando compreender
cada um, ainda que inconscientemente, ainda que com ideias
12

prejulgadas, ainda que com ou sem alteridade.


Anna Kariênina à luz do Romantismo e do cristianismo ortodoxo
nasce com a proposta de comparar duas formas distintas de
compreender o amor: não o amor por Deus, não o amor pelos amigos,
mas o amor de um homem por uma mulher – ou de uma mulher por um
homem. Já foi chamado de amor cortês, de Eros, e, por fim, sua forma
mais conhecida: amor romântico. É esta que usaremos em contraponto
com o amor que deve transcender, voltar à sua condição angelical
assexuada.
Se para o Romantismo o amor é uma força sem igual, altiva,
potente, transformadora – para o bem e para o mal –, mas entregue às
vontades espontâneas do homem; para o cristianismo ortodoxo o amor
tem um valor espiritual. Uma vez colocado em prática com o seu
cônjuge, formam as bases do sacerdócio matrimonial. Em que parte
desse espectro Tolstói está localizado é o que tentaremos apresentar.
Não faz parte dos objetivos desse trabalho realizar um estudo de
crítica literária. O que fazemos é uma reflexão mais detida a cerca da
paradoxal condição humana e do olhar tantas vezes feroz de Tolstói
sobre a mulher e sobre o desejo sexual.
Ainda que citemos outras obras de Tolstói, assim como outros
personagens como forma de comparação, nosso foco está na
personagem central, Anna Kariênina. Buscamos então compreender o
autor e seu contexto religioso e também estabelecer um diálogo com a
Ciência da Religião, por sua condição multidisciplinar, diálogo que parte
da perspectiva da Filosofia da Religião, principalmente porque permite
trabalhar pressupostos. Justamente por ser uma disciplina fundamental,
nos asseguramos em seu caráter não normativo.
No primeiro capítulo, apresentamos um panorama da literatura
em diálogo com a religião, suas funções, visões e importância para o
homem. No segundo capítulo, tecemos um quadro geral do que foi o
Romantismo enquanto um movimento histórico, os principais nomes e
sua relação com a religião e com o amor – rupturas e novos
comportamentos.
No terceiro capítulo, apresentamos Tolstói já como agente
13

religioso. Há dados biográficos e contextuais, mas considerando a


imensidão de suas obras, optamos por um recorte preciso. E, por fim, o
quarto e último capítulo, colocamos Anna Kariênina no centro do palco
iluminada por todos esses holofotes.
Sobre as motivações para ter decidido percorrer essa trajetória de
pesquisa, é possível dizer que de alguma forma havia a intuição de que
essa experiência seria transformadora. Ver o resultado final deste
trabalho – ainda que haja o reconhecimento tácito de que apenas
configura um exercício pueril de pensar e escrever – é também constatar
que de fato houve uma transformação interior, algo que só mesmo o
Conhecimento é capaz de proporcionar.
Algumas pessoas podem passar a vida inteira sem encontrar o
sentido da vida. As sortudas, contudo, encontrarão os livros que, se não
forem eles mesmos o próprio sentido da vida poderão ao menos
encaminhar a outras possibilidades de felicidade.
Como parte do segundo grupo, encontrei no Romantismo minha
identidade, desenhei minha árvore genealógica. Depois que descobri
esse outro universo de sentimentos e referências, aquela sensação de
desencaixe do mundo se tornou orgulho imensurável: minha origem é
trágica, impulsiva, inquieta. Então assumi que tenho uma forma peculiar
de ver o mundo. Esta pesquisa configura prova disso.
14

CAPÍTULO UM
Literatura, sua importância e relações

Literatura e religião

Escreveu Marquês de Sade1 que o homem está sujeito a duas


fraquezas inerentes à sua existência: “Por toda a parte cumpre que ele
reze, por toda parte cumpre que ele ame”.2 Para o escritor parisiense,
“eis a base de todos os romances”.3
Partindo desse pressuposto de Sade, de que o homem “rezou e
amou em todas as partes do globo onde habitou” 4, compreendemos que
religião5 é pano de fundo da própria existência, assim como o é o próprio
amor6, que por sua vez pode ser considerado uma força motriz. “Quem

1
1740-1814.
2
SADE, Marquês de. Os crimes do amor e a arte de escrever ao gosto do público.
Porto. Alegre, LPM, 2000. Edição Kindle.
3
Idem.
4
Ibidem.
5
A definição de religião que adotamos é a de Clifford Geertz (1926-2006), religião
como sistema de símbolos.
6
Esta é uma compreensão mais alargada do amor. Não estamos tratando de amor
romântico. Sempre nos referiremos ao amor como amor romântico, quando assim não
for, explicaremos o outro sentido.
15

não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor”, diz a Bíblia dos
cristãos.7
A primeira pergunta que então levantamos para tentar
compreender religião e amor por meio da literatura é: os caminhos da
religião e da literatura convergem em algum momento? Se sim, por que
deveríamos partir para uma investigação a fim de descobrir e apontar
em que momento as duas categorias torna-se uma só? Se é que se
tornam. Ou será que apenas coexistem? Seria melhor dizer que religião
e literatura dialogam? Se dialogam, dialogam mais do que há
pressupostos, principalmente para a Ciência da Religião?
A literatura faz parte do que podemos chamar de patrimônio
cultural, que por sua vez é compreendido como herança ativa na
construção da sociedade.8 O que parece despontar como premissa,
assim sendo, e usamos de maneira intuitiva para nos guiar nesta
pesquisa, é que literatura e religião não apenas dialogam, mas o fazem
com tanta fluidez que às vezes dão a impressão de que são uma só.
Se ainda o escritor em ação, autor da obra analisada, for um
agente religioso, mesmo que não intencionalmente, com a finalidade de
evangelizar propriamente dita, religião e literatura seguirão numa relação
de pura fruição.
Estariam então o amor e a religião juntos, ainda que nas brumas,
nos grandes enredos de cavalaria, de reinos e tudo o mais que a
imaginação pode alcançar? Ou mesmo quando não estão, estão como
ausência, uma vez que “mesmo quando se afasta da religião, o homem
permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros de
deuses”?9
Supomos que esses motivos prévios pelos quais os romances
foram empregados “para o amor ou para a superstição”10 estejam

7
1 epístola de João, capítulo 4, verso 8.
8
PINTO, Paulo Mendes. Ciência da Religião aplicada ao patrimônio cultural. In:
PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank (Orgs.). Compêndio de Ciência da Religião.
São Paulo: Paulinas: Paulus, 2013, pg. 641.
9
CIORAN, Emil. Breviário da Decomposição. São Paulo: Rocco, 2014.
10
SADE, Marquês de. Os crimes do amor e a arte de escrever ao gosto do público.
Porto. Alegre, LPM, 2000. Edição Kindle.
16

relacionados com a ideia de que religião é, antes de tudo, uma


“necessidade”11 do homem de “ficção”12, de “mitologia”.13
É por isso que “para a maioria das sociedades letradas”14 –
sociedades religiosas como as cristãs, islâmicas e judaicas,
principalmente, mas além dessas as mais antigas, como os maias – “ler
está no princípio do contrato social”.15
Isso quer dizer que os livros têm o poder de nos fazer viver não
apenas uma vida paralela, mas uma vida que antecede a própria vida,
esta real, concreta. Primeiro descobrimos a vida nos livros e depois
vamos vivendo e ela “começa a soar um déjà-vu”.16
Essa ideia, por exemplo, nos leva à obra Primeiro Amor, do
escritor russo Ivan Turguêniev.17 Lembra, especificamente, a parte em
que a personagem Zinaida Aleksandrovna, por quem Vladímir
Petróvitch, o protagonista, se apaixona na mocidade, diz: “Não amar é
impossível. É isso que a poesia tem de belo: nos fala daquilo que não
existe e não só acaba sendo melhor do que aquilo que existe como
também se parece até mais com a verdade... Não amar é impossível”.18
Há quem, inclusive, considere o romance como uma “segunda
vida”.19 Segunda vida essa que muitas vezes confunde-se com a real.
Ou, talvez, que o romance passa a ser mais valorizado do que a vida
real. E é um tipo de ilusão – que temos consciência de tê-la –, porém
que jamais lamentamos.20
Isso, que podemos chamar de necessidade dos livros, é porque é
nos livros que a História é registrada, e é através deles que podemos
saber por que tudo é como é – ou foi como foi –, além de como viveram

11
CIORAN, Emil. Breviário da Decomposição. São Paulo: Rocco, 2014.
12
Idem.
13
Ibidem.
14
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras,
1997. Edição Kindle.
15
Idem.
16
Idem.
17
1818-1883
18
TURGUENIEV, Ivan. Primeiro amor. São Paulo: Penguin Companhia das Letras,
2015. Edição Kindle.
19
PAMUK, Omar. O romancista ingênuo e o sentimental. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010. Edição Kindle.
20
Idem.
17

nossos antepassados, quais foram seus costumes e quais foram suas


experiências marcantes, o que talvez diga algo sobre quem somos.
É nessa necessidade que está também a religião, que nesse
sentido é uma forma de conhecimento. Toda sociedade humana é um
“empreendimento de construção do mundo”21 e, evidentemente, a
religião ocupa um “lugar de destaque” nesse empreendimento.22
Religião não é apenas teologia ou “ideologia apologética de uma
determinada religião”23, o que a reduziria certamente a apenas uma
experiência religiosa, quando ela pode ter sentidos mais alargados como
o cultural e social, por exemplo. Ou como quando dá uma noção de
identidade, além de toda a dimensão imaginária em que atua com tanta
força.
O fato é que, por essas histórias – as que lemos ou ouvimos –
formamos uma memória, e essas mesmas histórias dizem sobre quem
somos, sobre o nosso lugar no mundo, um espelho tal qual “mágico” que
nos revela nos trejeitos dos personagens e até mesmo no caráter deles.
Quando vamos em direção aos livros, é como se estivéssemos em
busca de algo. Procuramos na leitura casos que digam como devemos
nos sentir.24
Os romances também podem vir a ser um tipo de “tratamento
contra a inércia sombria”25, e servem como “consolo”26 que se dá por
meio de uma “terapia de uma narrativa profunda”27 e a cura está
“implicitamente prescrita pela cultura literária”.28
Isso tanto para o leitor como para o escritor, que também pode
encontrar uma saída na ficção. Uma vida alternativa criada no papel é
uma vida alternativa criada para si mesmo e funciona como uma forma
de resolver pungências.

21
BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da
religião. São Paulo: Paulinas, 1985, pg. 15.
22
Idem.
23
HOCK, Klaus. Introdução à Ciência da Religião. São Paulo: Loyola, 2010, pg. 86.
24
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras,
1997. Edição Kindle.
25
BLOOM, Harold. Como e por que ler? São Paulo: Objetiva, 2001. Edição Kindle.
26
Idem.
27
Ibidem.
28
Ibidem.
18

É então graças à leitura que o homem moderno consegue obter


uma “saída do tempo”29, e comparável à efetuada pelos mitos.30 E neste
caso, parece não importar sobre o que é exatamente a leitura, basta ler:
“Quer se “mate” o tempo com um romance policial, ou se penetre num
universo temporal alheio representado por qualquer romance, a leitura
projeta o homem moderno para fora de seu tempo pessoal e o integra a
outros ritmos, fazendo-o viver numa outra história”.31

Modelos de conduta ficcionais

É tão forte a relação que pode vir a se estabelecer entre o leitor e


o personagem que é possível pensar nele como alguém real, passar
horas conversando sobre ele e elegê-lo, inclusive, como modelo de
conduta. E não estamos, curiosamente, analisando a conduta a priori
errática de uma mulher fictícia?
Temos nos personagens bíblicos outros exemplos. A fé de Daniel,
a pureza de coração de Davi, a sinceridade e espontaneidade de Maria
Madalena, entre tantos outros. E se o leitor pratica uma religião,
inevitavelmente alguns desses personagens se tornarão modelos de
conduta próximos ao que entende como “ideal de Deus”. Ou mesmo
exemplos “incorretos”, dos quais se deve fugir, como Sansão em relação
à Dalila ou Davi à Batseba. A Bíblia é um baú do tesouro de narrativas
que mostram que entre o preto e o branco há um espectro quase infinito
de nuances de cinza, principalmente sobre o que diz respeito à
moralidade. Exemplo final é a intrincada história de intrigas, incesto e
crimes da família de Tamar, Amnon e Absalão.32
A Bíblia, na verdade, é um livro sagrado que pode ser lido e
compreendido para muito “além do seu status de texto sagrado”.33 O seu
esplendor como literatura “transcende tanto a dissecção científica como

29
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Edição
Kindle.
30
Idem.
31
Ibidem.
32
2 Samuel 13.
33
OZ, Amós. Os judeus e as palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Edição
Kindle.
19

a leitura devocional. Ela comove e empolga de maneiras comparáveis às


grandes obras literárias, às vezes Homero, às vezes Shakespeare, às
vezes Dostoiévski”.34
Contudo, há um ponto que diferencia os romances e as histórias
narradas na Bíblia, que é a “influência histórica”35 dela na história da
literatura: “Admitindo que outros grandes poemas podem ter inaugurado
religiões, nenhuma outra obra de literatura gravou de forma tão efetiva
um código legal, apresentou de forma tão convincente uma ética
social”.36 De forma poética, a Bíblia deu origem a inúmeros outros livros,
“como se tivesse dado ouvidos e tivesse atentado para o mandamento
que atribui a Deus, „ide e multiplicai-vos‟”.37
Já fora da Bíblia temos personagens sem-fim, entre as mais
comuns, e entre as mulheres: Anna Kariênina, Emma Bovary ou
Séverine Seryze, de A Bela da Tarde, de Joseph Kessel.38 Elas não são
apenas personagens clássicas da literatura, mas também modelos de
conduta. Instrumentos de uma mensagem que seus autores claramente
queriam dar.
Sendo assim, se as histórias e os romances pudessem ser
“reduzidos à informação que contêm, seria inexplicável o fato de
estarmos sempre voltando às palavras e relendo nossas passagens
favoritas, permitindo que as frases penetrem nossos pensamentos muito
depois de já termos assimilado o enredo”.39 O romance então se destina
aos sentidos, embora não na condição de um objeto sensorial
propriamente dito, mas de “algo apresentado por intermédio dos
sentidos à mente”.40
A literatura é capaz de nos fazer tratar personagens fictícios como
se fossem pessoas reais, sobre as quais gostamos de falar, de julgar e
até mesmo de amar – e muitas vezes de maneira passional: “Os
apaixonados por Dickens na Itália constituem uma restrita elite de

34
Idem.
35
Ibidem.
36
Ibidem.
37
Ibidem.
38
1898-1979.
39
SCRUTON, Roger. Beleza. São Paulo: É Realizações, 2013, pg. 34.
40
Idem.
20

pessoas que, quando se encontram, logo começam a falar de episódios


e personagens como se fossem de amigos comuns”.41 Na Rússia, não é
espantoso que “os russos idosos, ao tomarem chá à noite, falem dos
personagens de Tolstói como pessoas que realmente existiram, pessoas
que podem ser semelhantes a seus amigos”.42 Essas pessoas veem
com “tanta nitidez como se tivessem dançado com Kitty, Anna ou
Natacha num baile ou jantado com Oblónski em seu restaurante
predileto”.43
A religião como pano de fundo da própria existência está então,
de alguma forma, na base do romance. Nos demais variados tipos de
histórias podemos perceber a religião claramente, ou de maneira muito
sutil, em um nome, em um hábito ou em uma expressão cultural. Um
exemplo encontra-se em Carmen, do escritor francês Prosper
Mérimée.44
Quando o personagem que começa a narrativa, um arqueólogo,
descobre ser Carmem uma cigana, ele não hesita em dizer: “Naquela
época eu era de tal forma cético – já se passaram quinze anos – que
não recuei horrorizado a me ver ao lado de uma bruxa. Bom, pensei, na
semana passada topei com um ladrão de estradas, hoje vamos tomar
sorvete com uma serva do diabo”.45
Se analisássemos os contos de Flannery O‟Connor46, veríamos a
religião clara e fortemente como pano de fundo – ou até como objetivo
final, porque a autora é definitivamente uma agente religiosa: “O‟Connor
é tão ferrenha moralista que o leitor precisa estar ciente das inclinações
da escritora; o objetivo dela é absolutamente tangível: utilizar a violência
como meio de chocar o leitor, despertando-o para a necessidade da fé
religiosa”.47

41
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Edição Kindle.
42
NABOKOV, Vladimir. Lições de literatura russa. São Paulo: Três Estrelas, 2014, pg.
194.
43
Idem.
44
1803-1870.
45
MÉRIMÉE, Prosper. Carmen. São Paulo: Círculo do Livro, 1989. Edição Kindle.
46
1925-1964.
47
BLOOM, Harold. Como e por que ler? São Paulo: Objetiva, 2001. Edição Kindle.
21

No caso de O‟Connor, trata-se do catolicismo, e ela produz uma


ficção de “grande impacto estético”.48 Sua aguda percepção tornava a
religião para os seus compatriotas não o “ópio, mas a poesia da
humanidade”.49
Um exemplo que aponta o contrário é o de José Saramago. Em
Caim, apresenta a sua versão de Deus: um ser caprichoso, uma
“caricatura das divindades pagãs. É um Deus colérico, mesquinho,
traiçoeiro, cruel. E, em matéria de onipotência e onisciência, uma
verdadeira anedota: ele não pode tudo, ele não sabe tudo. Ele é deus,
sim, mas com minúscula.”50
Se Deus está – ou os diversos deuses ou formas de compreender
esse que é Deus – em grande parte de todos os conflitos das narrativas
literárias, o diabo não poderia deixar de estar, em presença, como ele
mesmo; em forma de pecado ou mesmo como o problema do mal. Os
escritores mais sombrios, contudo, o teriam como uma força criadora,
uma vez que o diabo “exprime simbolicamente, melhor do que Deus, a
essência da vida.”51

Tratando-se da presença do diabo na literatura: O


Romantismo transformará Satã no símbolo do
espírito livre, da vida alegre, não contra uma lei
moral, mas segundo uma lei natural, contrária à
aversão por este mundo pregada pela Igreja.
Satanás significa liberdade, progresso, ciência, vida.
Tornar-se-á moda a identificação com o Demônio,
assim como procurar refletir no semblante o olhar, o
riso, a zombaria impressos nas feições tradicionais
52
do Diabo.

48
Idem.
49
Ibidem.
50
COUTINHO, João Pereira. Ensaio sobre o fanatismo. Folha de S.Paulo: Ilustrada.
2009, 27 de outubro.
51
CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2012.
52
NOGUEIRA, C. R. F. O diabo no imaginário cristão. Bauru: Edusc, 2000, pg. 104.
22

Essa forma cética e irremediavelmente trágica costuma produzir


“não best-sellers, mas grandes obras”53, porque “questionam todas as
causas triunfantes.”54
Essa outra vertente, mais cética e mais trágica, é facilmente
notável, por exemplo, nas obras da escritora inglesa Emily Brontë 55,
quem “foi até o fundo do conhecimento do mal.”56
57
Já o filósofo francês Jules Michelet foi um daqueles que falaram
“mais humanamente do mal”.58 E o poeta inglês William Blake59 foi quem
se “aventurou tão longe quanto os demais e mesmo assim permaneceu
são de espírito”.60 A lista é imensa, mas podemos ainda citar o próprio
Marquês de Sade, além de Charles Baudelaire 61, Marcel Proust62, Franz
Kafka63 e Jean Genet.64
Trataremos detalhadamente mais adiante, mas uma faceta da
ideia do mal para Tolstói é a própria mulher. Essa ideia apresenta-se de
maneira evidente principalmente na novela O diabo, escrita em 1898,
mas publicada postumamente, em 1916. É uma faceta da ideia do mal
porque não é apenas a mulher, mas também o desejo sexual.
É claro que Tolstói não inaugura a ideia da mulher como
represente do mal, capaz de levar à ruína moral tanto o homem como
ela mesma; e nem Tolstói parece crer, de maneira maniqueísta, que a
mulher seja o próprio mal. Entretanto, a breve novela, assim como
Sonata a Kreutzer, outra de suas novelas, contém elementos relevantes
para esse diálogo que estabelecemos entre literatura, amor e religião em
Tolstói. Analisaremos, porém, mais detidamente no terceiro capítulo.

53
COUTINHO, João Pereira. Gelo no coração. Folha de S.Paulo: Ilustrada. 2018, 10 de
abril.
54
Idem.
55
1818-1848.
56
BATAILLE, George. A literatura e o mal. São Paulo: LP&M, 1989, pg. 13.
57
1798-1874.
58
BATAILLE, George. A literatura e o mal. São Paulo: LP&M, 1989, pg. 63.
59
1757-1827.
60
BATAILLE, George. A literatura e o mal. São Paulo: LP&M, 1989, pg. 77.
61
1821-1867.
62
1871-1922.
63
1883-1924.
64
1910-1986.
23

Literatura e cosmovisão

Porque a literatura atua mais diretamente nas motivações


inescrutáveis do homem, o seu papel é o de revelar o próprio homem. A
literatura permite “compreender a cosmovisão de um povo”65, e
conhecer quais são as suas “expectativas de vida”.66 É por isso que a
literatura é “uma das melhores formas de ir ao coração do que move os
agentes religiosos”.67
Isso é possível porque a literatura possui “aporte noético”.68 Ou
seja, diz sobre a dimensão intelectual e espiritual do homem e age de
maneira subjetiva. E aqui, há outro ponto importante a ser também
observado: o significado de religião varia de acordo com o interlocutor:
“Uma coisa é religião para o cientista, outra para o confessional e outra
para o senso comum”.69
Essa ideia nos leva à pressuposição de que cada escritor, como
agente religioso ou não, diante do seu próprio texto está livre para tecer
a sua própria ideia de religião. Em Tolstói, muito mais do que em Fiódor
Dostoiésvki70, por exemplo, essa é uma ideia muito clara:

O “transcendentalismo” político de Tolstói, seus


“pietismos” utópicos, são melioristas. O homem
deve ser observado no movimento em direção ao
reino da justiça e do amor na terra. O criador de O
Idiota e do Grande Inquisidor permanece o mais
sombrio dos nossos metafísicos trágicos. O Deus de
Tolstói diverge maravilhosamente do Deus de
71
Dostoiévski.

65
PONDÉ, Luiz Felipe. Literatura e religião. Palestra na Universidade Metodista. Vídeo
publicado em 13 de outubro de 2012. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=gz8WsCuQD3o&t=327s> Acessado em 14 de
agosto de 2017.
66
Idem.
67
Ibidem.
68
Ibidem.
69
Ibidem.
70
1821-1881.
71
STEINER, George. Tolstói ou Dostoiévski. São Paulo: Perspectiva, 2006, pg. 15.
24

Assim, ler Tolstói como agente religioso, de acordo com essa


ideia, é ler histórias fictícias, mas também ler relatos de contrição e de
renúncia. Ou seja, a sua visão particular.
Por isso cremos que, sem ter compreensão do espaço que a
religião ocupa na vida de Tolstói, é incompleta qualquer análise de sua
obra.
Tanto em suas atitudes enquanto em vida ou mesmo em sua arte,
há uma sugestão de retorno a um modo primitivo de viver, que está de
acordo com sua compreensão da vontade de Deus.

Literatura no cotidiano

Como se compreende a cosmovisão de um povo por meio da


literatura? A título de exemplo – porque evidentemente não ocorre
apenas com Tolstói – ler Ressurreição ou Guerra e Paz é de alguma
forma compreender como viveram tanto os servos e miseráveis
prisioneiros, como a aristocracia russa antes e depois da Revolução
Francesa. A literatura pode, inclusive, criar adjetivos aplicáveis no
cotidiano, para explicar situações ou pessoas. Exemplo na própria
literatura russa é o romance Oblómov, de Ivan Goncharov.72 Tolstói,
aliás, muito apreciava a história do aristocrata preguiçoso, publicada
pela primeira vez em 1859.
O personagem Iliá Ilitch Oblómov passava todo o tempo deitado
em sua cama, ou perambulando por seu apartamento de São
Petersburgo, e só. Mais de um século depois, “oblomovismo” ainda
funciona como um adjetivo para lentidão, certa passividade ou
comodismo. O adjetivo, inclusive, é usado por pessoas que nunca leram
o livro. Quem não conhece também – ou tenha sido em algum momento
da vida – uma Pollyanna?73
Sobre essa ideia da narrativa como uma ponte que permite a
passagem para um mundo em particular, traspassa, inclusive, o próprio

72
1812-1891.
73
Romance da escritora americana Eleanor H. Porter (1868-1920), publicado em 1913,
considerado um clássico da literatura infantojuvenil.
25

tempo, porque o mundo ao qual leva o leitor pode já ser impenetrável


porque diz sobre um passado remoto, por exemplo. Voltamos a
passados remotos e podemos ir ao futuro, muitas vezes, com romances
distópicos.
Por isso foram os romances que “mudaram a forma como vemos
o mundo”.74 Entre eles, Fausto, do escritor alemão Johann Wolfgang von
Goethe75; Hamlet, de William Shakespeare76; Eneida, de Virgílio77; os
Salmos de Davi e o livro de Jó, ambos da Bíblia. 78 Deve constar
também, imprescindivelmente, entre esses títulos, o que conta a história
do Cavaleiro da Triste Figura: Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de
Cervantes.79 É evidente que essa lista continuaria indefinidamente, e
cada um que tivesse o domínio sobre ela lhe daria nova dimensão,
justificável pelo verdadeiro impacto que causou no próprio curador.

Literatura para além de tudo

Se todos os sentimentos humanos estão na literatura,


consequentemente eles participam da leitura. Por isso mesmo é que
“lemos com desprezo, admiração, negligência, raiva, inveja, anelo”.80
Diferentemente da música e da pintura, que podem provocar um
“transtorno emotivo, uma tristeza ou um êxtase absolutos”81, apenas a
literatura pode dar a sensação de “contato com outro espírito humano,
com a integralidade desse espírito, suas fraquezas e grandezas, suas
limitações, suas mesquinharias, suas ideias fixas, suas crenças; com
tudo o que comove, o interessa, o excita ou o repugna.”82 Para além do
que a vida pode proporcionar, enquanto uma experiência real, concreta,

74
SCRUTON, Roger. Beleza. São Paulo: É Realizações, 2013, pg. 120.
75
1749-1832.
76
1564-1616.
77
70ac-19ac.
78
SCRUTON, Roger. Beleza. São Paulo: É Realizações, 2013, pg. 120. Segundo
Roger Scruton, esses são os livros que mudaram a forma como vemos o mundo, mas
não só. Para Scruton, quem não os leu, o mundo é um lugar diferente.
79
1547-1616.
80
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras,
1997. Edição Kindle.
81
HOUELLEBECQ, Michel. Submissão. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. Edição Kindle.
82
Idem.
26

apenas a literatura permite “entrar em contato com o espírito de um


morto, de maneira mais direta, mais completa e de maneira mais
profunda do que a conversa com um amigo”.83
Interessa-nos, neste ponto, refletir sobre o caráter utilitarista que
pode vir a ter a literatura. E não estaria isento de análise o próprio
Tolstói, porque a literatura “representa a vida como ela é e as pessoas
como elas são”.84 Uma das críticas que se faz a Tolstói, nesse sentido, é
que os detalhes da narrativa são mais importantes do que a “lição
moral”85, como podemos ver também em Anna Kariênina: “A beleza dos
cachos de cabelo preto no delicado pescoço de Anna era artisticamente
mais importante que as opiniões de Liévin sobre agricultura”.86
O mais importante então não seria compreender os pontos de
vista do autor sobre determinado assunto, mas poder conhecer como é
determinado lugar ou objeto que faz parte da história e que é relevante
para conhecer o microcosmo daquela história. O “bom leitor”87 vai querer
“visualizar, por exemplo, as acomodações de um vagão de trem noturno
que fazia a ligação entre Moscou e Petersburgo cem anos atrás”.88 Esse
“respeito pelos fatos é digno de um cientista”.89
Enfim, abordando a literatura com um pouco mais de proximidade
afetiva, podemos dizer que lemos “não apenas porque, na vida real,
jamais conheceremos tantas pessoas como através da leitura, mas,
também, porque amizades são frágeis, propensas a diminuir em
número, a desaparecer, a sucumbir em decorrência da distância, do
tempo, das divergências, dos desafetos da vida familiar e amorosa”.90
Como que para aplacar os males diários da vida, a literatura ajuda
a rotina a se tornar mais agradável: “A ciência é grosseira, a vida é sutil,
e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa.”91

83
Ibidem.
84
NABOKOV, Vladimir. Lições de literatura russa. São Paulo: Três Estrelas, 2014, pg.
12.
85
Idem, pg. 15.
86
Ibidem.
87
Ibidem.
88
Ibidem.
89
Ibidem.
90
BLOOM, Harold. Como e por que ler? São Paulo: Objetiva, 2001. Edição Kindle.
91
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1988. Edição Kindle.
27

Literatura e Ciência da Religião

No que diz respeito às pesquisas em Ciência da Religião, que tem


como fim compreender e interpretar religiões diversas, a literatura pode
levar a “indivíduos identificados com determinadas tradições”.92 O que,
por sua vez, pode ajudar a “descobrir o que esses mesmos indivíduos
pensam a partir dessas tradições”.93 Neste sentido, a literatura é outra
vez uma ponte que permite tranquila passagem para os estudos de
religião, principalmente porque “demanda menor formação técnica
prévia”.94
Cientistas da religião podem assim apropriar-se da literatura como
forma de abrir novos caminhos para tecer análises sobre religiões. No
que diz respeito a isso, aliás, está um dos nomes mais significativos
para a Ciência da Religião, um de seus fundadores: Friedrich
Schleiermacher95. Um nome muito importante na tríade que estudamos
porque participa das três bases: literatura, religião e romantismo.
A contribuição de Schleiermacher para a hermenêutica moderna
foi considerar obras de arte e literatura como sujeitos legítimos do
estudo filosófico.96 Voltaremos a ele no próximo capítulo.
Então, a Ciência da Religião encontra na literatura uma maneira
de conhecer e compreender determinada cultura religiosa a partir de
dentro, sem as tais obrigações conceituais, mas fazendo uso da intuição
que encaminha ao saber – sem também precisar que o caminho dessa
intuição seja mapeado.
A Ciência da Religião pode assim abraçar a literatura como uma
de suas subdisciplinas que, como as outras, são “convidadas a se

92
PONDÉ, Luiz Felipe. Literatura e religião. Palestra na Universidade Metodista. Vídeo
publicado em 13 de outubro de 2012.
93
Idem.
94
Ibidem.
95
1768-1834.
96
TROMBLEY, Stephen. 50 pensadores que formaram o mundo moderno. São Paulo:
Texto Editores, 2014. Edição Kindle.
28

apresentarem para o exercício de uma combinação inter e – quiçá –


transdisciplinar”.97
Da mesma forma que acontece em outras disciplinas, o que
importa mais é verificar os fatos semelhantes e diferentes das religiões,
sem julgá-los. Menos ainda interessa fazer uma crítica literária
propriamente dita, mas, sim, uma crítica religiosa a partir do texto
literário, daí então traçar um panorama sobre a visão da obra – e do
autor – sobre determinado assunto religioso.
Retomando Carmem como exemplo, Prosper Mérimée esboça,
em capítulo inserido dois anos depois de ter publicado a obra, como os
ciganos, minoria étnica, que tem seus próprios costumes e idioma,
lidavam com a religião. Mérimée aponta que havia concordância mínima
de observar as regras da religião do povo de onde viviam, e se
mudassem de região, mudariam de religião: “Um traço notável do
caráter dos ciganos é sua indiferença em matéria de religião. Não que
sejam espíritos fortes ou céticos. Jamais fizeram profissão de ateísmo.
Longe disso, adota a religião do país no qual moram, mas a trocam ao
trocarem de pátria”.98 De forma clara, constatamos que se aprende
sobre um povo por meio de ficções.
Tratando especificamente de moralidade, a literatura não é
“moralmente neutra”99, mas possui “forma própria de emitir e justificar
afirmações morais”.100 Sobre a obra que pesquisamos, por exemplo: “Ao
suscitar simpatia onde o mundo a evita, o artista pode, a exemplo de
Tolstói em Anna Kariênina, contrapor-se aos laços de uma ordem social
demasiadamente constritiva”.101 Tolstói intuía debater o papel da mulher
no casamento ou a questão da mulher de forma geral, embora também
desejasse fazer uma crítica ao modo como a alta sociedade de sua
época vivia: aos seus olhos, com hipocrisia. Essa crítica é possível

97
SOARES, Afonso Maria Ligorio. Introdução à Ciência da Religião Aplicada. In:
PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank (Orgs.). Compêndio de Ciência da Religião.
São Paulo: Paulinas: Paulus, 2013, pg. 573.
98
MÉRIMÉE, Prosper. Carmen. São Paulo: Círculo do Livro, 1989. Edição Kindle.
99
SCRUTON, Roger. Beleza. São Paulo: É Realizações, 2013, pg. 143.
100
Idem.
101
Ibidem.
29

porque a literatura, principalmente as obras clássicas, possui “conteúdo


teórico-empírico rico”.102
É claro que a linha é tênue entre ficção e realidade histórica. E
uma depende – e se relaciona – com a outra de maneira nem sempre
possível de separar – ou só possível com precisão cirúrgica – daí pelos
estudos históricos e filológicos. Todavia, a religião como fenômeno
cultural é tão “amalgamada com outras áreas da cultura”103 – como
economia e direito – “que não pode ser contemplada como fenômeno
autônomo, mas somente como interdependência”.104
Essa interdependência também tem a ver com as duas grandes
linhas mestras dos estudos em Ciência da Religião: a empírica e a
sistemática. Essa valsa hermenêutica deve ser de passos precisos.
Assim como a separação é “artificial”105 entre o empírico e o sistemático,
em Ciência da Religião, arriscamos apontar ser da mesma forma no que
se refere à literatura e à religião, juntas, convergindo, porque “uma
depende da outra e estão entrelaçadas”.106
Apenas a título de exemplo: uma pesquisa profunda sobre a
revolução russa negaria o aporte historiográfico de Guerra e Paz? Não
quer dizer, claro, considerar o título de ficção de Tolstói como principal
fonte sobre o episódio histórico, até porque na ficção está a própria
visão de mundo do autor, que deve ser levada em conta como visão
particular, subjetiva, e por isso receber um “tratamento”107, mas, ainda
assim, seria possível desconsiderar o clássico de Tolstói?
Outro ponto importante, que sustenta ser possível considerar a
literatura como fonte de conhecimento para os estudos de religião, é que
“os autores de literatura têm menos medo, justamente por ser ficcional,
sem obrigação conceitual prévia”.108

102
PONDÉ, Luiz Felipe. Literatura e Religião. Palestra na Universidade Metodista.
Vídeo publicado em 13 de outubro de 2012.
103
HOCK, Klaus. Introdução à Ciência da Religião. São Paulo: Loyola, 2010, pg. 27.
104
Idem.
105
Ibidem.
106
Ibidem.
107
PONDÉ, Luiz Felipe. Literatura e Religião. Palestra na Universidade Metodista.
Vídeo publicado em 13 de outubro de 2012.
108
Idem.
30

Em romances como Guerra e Paz, ou mesmo Anna Kariênina,


também está o “conhecimento mais essencial que o romance exige”109,
que é, “certamente, o do coração do homem”.110 Neste sentido, o leitor é
como Narciso111, o personagem mítico grego, conhecido por sua beleza
e orgulho, mas que tinha como sina jamais contemplar a própria
imagem, se assim quisesse viver muito.112 Como Narciso, o leitor deseja
encontrar-se no texto, inclusive suas mais íntimas particularidades. E
quando esse desejo não é consciente, ou seja, quando o leitor jamais
pensou querer encontrar algo de si, ou ter consciência de que possui
certo sentimento ou desejo, acontece de o leitor compreender algo sobre
si mesmo que estava o tempo todo ali. E, claro, a partir de tal descoberta
sua vida jamais será a mesma.
É nesse momento que se estabelece uma “relação pessoal” 113
com a obra e aquele clássico passa a ser o “seu”114 clássico, porque não
pode mais ser-lhe indiferente e passa a servir para definir a si próprio em
relação e talvez em contraste com ele.115 Não parece ser uma
coincidência que muitas religiões veem seus textos sagrados como
“espelhos”. A literatura está em relação e em contraste o tempo todo.
É importante, contudo, levar em consideração a ação do tempo
sobre as obras116, porque um pensamento sobre algo, evidentemente,
passa por transformações. Assim, “é preciso levar em conta o que as
obras passaram a significar durante os séculos, e assim se perguntar se
os significados estavam o tempo todo implícitos no texto ou se são
incrustações, deformações ou dilatações”.117

109
SADE, Marquês de. Os crimes do amor e a arte de escrever ao gosto do público.
Porto. Alegre, LPM, 2000. Edição Kindle.
110
Idem.
111
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras,
1997. Edição Kindle.
112
O que acaba por não acontecer porque Narciso se vê no reflexo da água, o que o
leva à morte.
113
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Edição Kindle.
114
Idem.
115
Ibidem.
116
PONDÉ, Luiz Felipe. Literatura e Religião. Palestra na Universidade Metodista.
Vídeo publicado em 13 de outubro de 2012.
117
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Edição Kindle.
31

Não é preciso, entretanto, para entender perfeitamente um tempo,


que haja uma “leitura sistemática”118, em contraste com a “leitura
adúltera”119, essa que seria uma leitura mais livre, sem preocupação
cronológica ou de riscos de anacronismos. É preciso que o leitor apenas
tenha consciência de que há um contexto.
Outro ponto que nos interessa, analisando obra de Tolstói, é a
erudição.120 Porque esta sempre foi considerada um tipo de poder.
Poder esse situado, principalmente, “entre a Igreja e o Estado”121, desde
os tempos mais remotos. Por exemplo, o universo na tradução judaico-
cristã “é concebido como um livro feito de números e letras”122 e a chave
para “compreender o universo está em nossa capacidade de lê-los
adequadamente e dominar suas combinações”.123
Neste quesito, é inquestionável o poder e influência que Tolstói
tinha em seu tempo. O que, evidentemente, tornou Anna Kariênina, por
exemplo, uma obra de conscientização.
Temos então duas ferramentas importantes para compreender
religião na literatura, pelo olhar da Ciência da Religião, a fim de
conhecê-la em suas diversas formas, compreendê-la e compará-la, que
são: o noético, que está em diálogo com a subjetividade, que por sua
vez na leitura tem seu papel inevitável; e o acúmulo de leituras, que
permite o alargamento da compreensão.
Em resumo: a literatura age no sujeito leitor, seja ele religioso ou
não. E se o autor for um agente religioso, a literatura auxilia a Ciência da
Religião no que se refere à compreensão do mundo criado. Se nesse
mundo criado há rituais, mitos, crenças e transpassa o universo ficcional
e passa a determinar o comportamento no mundo real, é de interesse da
Ciência da Religião investigá-lo.
Tomemos como exemplo de ação do texto no leitor Os
sofrimentos do jovem Werther. A obra epistolar de Goethe pode levar à

118
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras,
1997. Edição Kindle.
119
Idem.
120
Ibidem.
121
Ibidem.
122
Ibidem.
123
Ibidem.
32

compreensão da importância da vida, diante da opção do suicídio, por


exemplo.
O que dizem as religiões sobre o suicídio? E como explicariam a
“onda de suicídio” provocada pelo romance? Se François-René de
Chateaubriand124 escreveu René como um “anti-Werther”, desejou, no
mínimo, mostrar um antídoto religioso, ou a face religiosa do
personagem de Goethe. Houve, então, uma reação. E reação porque
antes provocou ações no mundo real, ações inaceitáveis para a religião,
como o suicídio.
Contudo, pensamos na literatura como um caminho pelo qual
pode percorrer a Ciência da Religião para, a partir do mundo ficcional,
mensurar o que há no mundo real. Com a “combinação de vários
campos de estudo”125 desenvolveremos “normas, modelos, tarefas
organizacionais para ação”.126 Não apenas perceber, descrever e
analisar ações, mas também para tornar a literatura uma ferramenta de
mediação.
Assim sendo, a literatura é importante para os estudos de religião,
o que a torna, evidentemente, uma disciplina relevante para a
multidisciplinar Ciência da Religião, principalmente em sua disposição
aplicável. Ou seja, é um instrumento que permite sair da “disposição
catedrática”127, ou seja, “de cima para baixo”128, para “investir fundo na
vida cotidiana e seus problemas”.129

124
1768-1848.
125
TWORUSCHKA, Udo. Ciência Prática da Religião. In: PASSOS, João Décio;
USARSKI, Frank (Orgs.). Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas:
Paulus, 2013, pg. 579.
126
Idem.
127
SOARES, Afonso Maria Ligório. Introdução à Ciência da Religião Aplicada. In:
PASSOS, João Décio; USARSKI, Frank (Orgs.). Compêndio de Ciência da Religião.
São Paulo: Paulinas: Paulus, 2013, pg. 573.
128
Idem.
129
Ibidem.
33

CAPÍTULO DOIS
Romantismo: o movimento e suas relações

Romantismo: o movimento

O livro As Raízes do Romantismo, de Isaiah Berlin, começa de


maneira instigante. O título do primeiro capítulo é: “Em busca de uma
definição”.130 A questão é mesmo pertinente: qual é a definição de
Romantismo?
Não é propósito dessa pesquisa o de definir o movimento
romântico, uma vez que estudiosos do tema que dedicaram uma vida
em busca de uma definição precisa – e que ainda abarcasse todos os
seus significados – não chegaram a um resultado definitivo.
Sendo assim, para seguir de maneira fluida e segura, adotamos a
conclusão do próprio Isaiah Berlin: “o movimento romântico foi uma
transformação tão gigantesca e radical que depois dele nada mais foi o
mesmo”.131

130
BERLIN, Isaiah. As Raízes do Romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015, pg. 28.
131
Idem, pg. 28.
34

Concordamos que não é propriamente uma definição, que soa


imprecisa e genérica, todavia enxergamos que, de certa forma, o
Romantismo é exatamente isso: impreciso.
É que sua “exuberante diversidade resiste às tentativas de uma
redução a um denominador comum”.132 Parece que, de certo modo – ou
do mesmo modo – é tão difícil conceituar Romantismo como o é religião.
No caso da religião vamos desde uma ideia totalmente cética
como a do filósofo britânico Bertrand Russell133: “A religião é uma
resposta covarde ao vazio do universo”134 à definição mais amistosa de
C.S. Lewis135: “Não será a Força Vital a maior invenção da fantasia
humana que o mundo já viu?”136
Tais definições, no entanto, são missões hercúleas,
principalmente a definição de religião. Desde David Hume137 e sua
postular obra A História Natural da Religião, tenta-se avançar cada vez
mais para encontrar uma ideia universal de religião, embora difícil,
principalmente porque é preciso ser capaz de falar de tantas outras
coisas em um só conceito: experiências, crenças, organização social,
rituais, entre outros.
Voltemos ao Romantismo. Apresentaremos a seguir um breve
resumo sobre o que foi o movimento.

Isaiah Berlin

A escolha de Isaiah Berlin como marco teórico dá-se por duas


razões. Primeiro, porque Berlin foi um dos maiores estudiosos do
Romantismo, ainda que nunca tenha escrito uma obra propriamente dita

132
LÖWY, Michael. SAYRE, Robert. Revolta e melancolia – o romantismo na
contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015, 19.
133
1872-1970.
134
RUSSELL, Bertrand. A filosofia entre a religião e a ciência. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1957. Edição Kindle.
135
1898-1963.
136
LEWIS, C.S. Cristianismo puro e simples. São Paulo: ABU, 1997. Versão Kindle.
137
1711-1776.
35

sobre o tema. O livro que usamos como base, na verdade, é resultado


de conferências transcritas.138
Curiosamente, As Raízes do Romantismo é o livro sobre
Romantismo que jamais foi escrito por Berlin, mas que por iniciativa de
Henry Hardy, seu editor, um dos assuntos mais caros ao filósofo chegou
aos leitores.
Entendemos ser importante a menção apenas como nota, porque
permite ter uma noção do quanto Berlin dominava o assunto, o acervo
documental que o filósofo mantinha sobre Romantismo era tão grande
que era guardado em um aposento à parte de sua própria casa.
Berlin deixou meticulosas anotações, além de fitas cassetes
gravadas por ele mesmo, dissecando o movimento – ou elaborando
pensamentos sobre o movimento – sem a finalidade, no entanto, de
defini-lo – ou de, talvez, “encurralá-lo”. Por que essa é mesmo uma
tentação. Será que não há uma definição mais precisa?
A segunda razão é outra obra de Berlin que já citamos: Os
pensadores russos, também organizado por Henry Hardy a partir de
conferências dadas por Berlin ao longo de 30 anos.
Encontramos, portanto, em um só autor, duas obras que
embasam se não completamente nossos argumentos, pelo menos
grande parte deles. E, principalmente, nos permite a partir deles sugerir
uma ideia sobre o amor romântico na literatura de Tolstói,
especificamente em Anna Kariênina.
Pois bem: o que foi o Romantismo?
Nas palavras de Berlin: “Seria de esperar que eu começasse com
algum tipo de definição do Romantismo, ou pelo menos alguma
generalização, a fim de deixar claro o que quero dizer com essa palavra.
No entanto, não me proponho entrar nessa armadilha”.139
Berlin chamou de armadilha a tarefa de definir o Romantismo
porque, segundo ele, sempre haverá quem vai contradizer qualquer
argumento sobre o que foi o movimento, usando inúmeros outros

138
Que aconteceram em março e abril de 1965, na National Gallery of Art, em
Washington, Estados Unidos.
139
BERLIN, Isaiah. As Raízes do Romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015, pg. 23.
36

autores. O filósofo, inclusive, ressalta que “a literatura sobre o


Romantismo é maior do que o próprio Romantismo”.140
É possível dizer, justamente por essa imprecisão na hora de
definir, que o movimento romântico é, por essência, um movimento
contraditório, como se prova numa das perguntas mais fundamentais
sobre essa época histórica: o Romantismo é conservador ou
revolucionário? Questão que o próprio Berlin não chegou a uma
resposta definitiva.
Se o Romantismo é uma reação aos processos de modernização
do mundo, como pode ser revolucionário? E se vai de encontro às
normas e regras – do comportamento às artes – como pode ser
conservador? Enfim, é tarefa para pesquisas posteriores.
O ponto é que no Romantismo há mesmo várias correntes,
algumas de fato conservadoras e outras tão revolucionárias quanto
utópicas.
O Romantismo então parece ser um mundo paralelo, e cada país
que o compõe tem sua cultura, seu idioma, suas características únicas,
e não é porque é diferente em alguns aspectos que não configure o
mesmo movimento.
É por isso que decidimos, nesta pesquisa, tecer fios mais brutos
do que delicados sobre o tema, deixando para uma pesquisa posterior
um tratamento mais de ourives. Dessa forma, apresentamos apenas um
panorama geral do que foi o Romantismo: datas, principais nomes,
vieses em que mais realizou e, principalmente, o que de sua ideia de
amor fincou pés na literatura e na religião.
O Romantismo é um movimento que possui uma data, é um
tempo histórico. E, que, por sua vez, é diferente do romântico. Ou seja,
são duas categorias: “O Romantismo é uma época”141 , já o romântico
“uma postura de espírito que não está limitada a um tempo”.142
Tendo acontecido entre meados do século XVIII a meados do
século XIX, o Romantismo foi a “revolução do espírito europeu contra o

140
Idem.
141
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação
Liberdade, 2010, pg. 16.
142
Idem.
37

pensamento estático-mecânico e a favor do organicismo dinâmico”143,


algo que resultou na “maior mudança já ocorrida na consciência do
Ocidente”.144
Em linhas gerais, o Romantismo “deixa clara a existência de uma
pluralidade de valores”145, e ataca “a noção do ideal clássico, da
resposta única a todas as perguntas, da possibilidade de racionalizar
tudo, de toda uma concepção da vida como um quebra-cabeça”.146
Outra definição de Romantismo seria a “revolta pequeno-
burguesa contra o classicismo da nobreza, contra as normas e os
padrões, contra a reforma aristocrática e contra um conteúdo que
excluía todas as soluções comuns. Para os rebeldes românticos, não
havia temas privilegiados: tudo podia ser assunto para a arte”.147
Apesar de reconhecermos ser de suma importância a aventura de
Johann Gottfried Von Herder148, “aventureiro do espírito”149, ele que foi
um dos precursores do Romantismo, ainda nos primórdios, não
entraremos em detalhe em suas histórias porque são cheias nomes,
relações com outras áreas do conhecimento, o que por si só renderia
outra pesquisa. É importante, contudo, dizer que Herder foi aquele que
primeiro buscou “uma linguagem para aplacar o maremoto interior”150,
estado típico romântico, e que isso era algo novo naqueles tempos.
Hoje, é algo fácil de identificar, mas não na época. Esse deslocamento
do conhecimento pela chave da razão, que começou a abrir caminhos
para o conhecimento pela emoção, significaria uma ruptura muito grande
na Teoria do Conhecimento.
O poeta inglês John Keats151 declarou que em nada acreditava
tanto como nas “afeições do coração”.152 Em resumo, “o Romantismo

143
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia – o romantismo na
contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015, pg. 22.
144
BERLIN, Isaiah. As Raízes do Romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015, pg. 24.
145
Idem, pg. 217.
146
Ibidem.
147
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: LTC, 1987, pg. 64.
148
1744-1803.
149
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação
Liberdade, 2010, pg. 22.
150
Idem, pg. 23.
151
1795-1821
152
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: LTC, 1987, pg. 66.
38

representou o abandono dos aprazíveis jardins do classicismo pela


amplitude de um mundo bravio.”153 É preciso, no entanto, saltar no
tempo. Seria o Romantismo então a mudança que atingiu não somente
escritores, poetas e artistas, mas também ideólogos políticos, filósofos,
teólogos, historiadores, economistas etc.
As obras de arte – de qualquer linguagem artística – valorizavam
o individualismo, o sofrimento, a religiosidade cristã, a natureza, os
temas nacionais e, principalmente, o passado. A atitude romântica era
um tanto “confusa”154 justamente porque ao mesmo tempo em que
“alimentava esperanças de abocanhar o seu bocado no enriquecimento
geral, temia ser esmagada pelo processo”.155 Por isso esse olhar
saudosista pelo passado, para “os idos bons tempos”.156 O passado está
para o romântico como algo anterior ao capitalismo, ao que não era
precificável e que, por isso, era um tempo de plenitude.
Disso que é “indefinível”, o que podemos afirmar – e é nossa
definição escolhida – é que o Romantismo foi uma reação contra os
processos de modernização, que veio com as revoluções, a força do
capital e seus modos de produção serial.
Para esses nomes – Herder e outros que apresentaremos – a
essência do humano teria se desmanchado pelo utilitarismo: “O que
todos os românticos tinham em comum era a antipatia pelo
capitalismo”157, ainda que esse capitalismo ora fosse visto de um ponto
de vista aristocrático, ora de uma “perspectiva plebeia”. 158
A melancolia também viria do mesmo lugar, e pode ser
compreendida como um sintoma do “desencantamento do mundo”159. A
realidade deixava paulatinamente os encantos de lado; encantos
religiosos e metafísicos.

153
Idem.
154
Ibidem.
155
Ibidem.
156
Ibidem.
157
Ibidem, pg. 64.
158
Ibidem.
159
Fazendo uso da expressão de Max Weber (1864-1920).
39

Há estudiosos que acreditam que o Romantismo “como estrutura


de conjunto”160, não existiria antes da Revolução Francesa, justamente
porque foi “desencadeado pela desilusão que se segue à tomada de
poder pela burguesia.”161 Por essa ótica, o que houve foi “uma
transformação de ordem política”162 que se tornou o “catalisador da onda
romântica”.163
O filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau164 teve importante
participação nos primeiros anos do movimento romântico, e por esta
ótica política. Optamos, porém, assim como fizemos sobre a
participação de Herder, não aprofundar o seu valor devido ao recorte
preciso dessa pesquisa, que não abraça a influência de Rousseau no
que se refere ao Romantismo na política, ainda que influencie a
compreensão de vida de Tolstói, principalmente sobre os
questionamentos de Rousseau sobre a essência humana. Contudo, não
é isso que buscamos em Tolstói. Pelo olhar de nosso referencial teórico,
Rousseau é visto de maneira também paradoxal: “E o que dizer de
Rousseau? Rousseau, claro, é corretamente associado ao movimento
romântico como sendo, em certo sentido, um de seus pais. Mas o
Rousseau que foi responsável pelas ideias de Robespierre, o Rousseau
que foi responsável pelas ideias dos jacobinos franceses não é o mesmo
Rousseau, parece-me, que tem uma conexão óbvia com o
165
Romantismo.”
Sobre os poetas, o principal nome é William Blake166, e seus
versos de Canções da Inocência, de 1789; esses versos “descrevem em
última instância, seu acordo com a morte, com o movimento que o
precipita nela. Elas superam singularmente o alcance das frases
simplesmente poéticas. Refletem com suficiente exatidão um retorno
sem escapatória à totalidade do destino humano.”167

160
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia – o romantismo na
contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015, pg. 18.
161
Idem.
162
Ibidem.
163
Ibidem.
164
1712-1778.
165
BERLIN, Isaiah. As Raízes do Romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015, pg. 31.
166
1757-1827.
167
BATAILLE, George. A literatura e o mal. São Paulo: LP&M, 1989, pg. 85.
40

Além de Blake, temos William Wordsworth,168 com sua famosa


obra Baladas Líricas, de 1798, que realizou com outro importante
expoente: Samuel Taylor Coleridge169.
Tais nomes são representantes do Romantismo, mas também de
uma nova poesia inglesa, que fugia às regras até então em vigor. Outro
que não pode deixar de ser citado é o inglês Lord Byron.170
Em passagem breve pelos nomes europeus mais significativos,
tratando da categoria romance, estão o escocês Walter Scott171, Goethe,
e os franceses Victor Hugo172 e Alexandre Dumas173. No próximo tópico,
abordaremos mais profundamente o Romantismo na literatura.
Já na pintura, os nomes mais expressivos considerados
românticos são o espanhol Francisco Goya174 e o francês Eugène
Delacroix175, embora seja impossível falar de Romantismo na pintura
sem mencionar a obra mais emblemática: Caminhante Sobre o Mar de
Névoa, do alemão Caspar David Friedrich176, uma pintura a óleo de
1818.
Importante ressaltar que esses principais nomes não se limitam
nem à literatura e nem à arte, muito menos ao período histórico em que
os movimentos artísticos ditos “românticos” se desenvolveram.
Exemplos são o suíço Jean Charles Sismondi177, em teoria econômica; o
irlandês Edmund Burke178, o francês Pierre-Joseph Proudhon179 e o
alemão Herbert Marcuse180, em filosofia política; e os alemães Georg
Simmel181 e Ferdinand Tönnies182 em sociologia, além de Marx Weber.
No que tange, porém, ao nosso interesse em ligar o movimento
romântico à obra de Tolstói – e à literatura em geral – é que o

168
1770-1850.
169
1722-1834.
170
1788-1824.
171
1771-1832.
172
1802-1885.
173
1802-1870.
174
1746-1828.
175
1798-1863.
176
1774-1840.
177
1773-1842.
178
1729-1797.
179
1809-1865.
180
1898-1979.
181
1858-1918.
182
1855-1936.
41

“Romantismo faz a mais sensível e inteligente análise das emoções


humanas.”183 São os românticos que terão “a ambição de preparar o
pensamento e a imaginação para o monstruoso que há em nós e em
torno de nós”.184 São os românticos os responsáveis por “destruir a vida
comum tolerante, destruir a mediocridade burguesa, destruir o bom-
senso, destruir as ocupações pacíficas dos homens, elevar todos a um
nível apaixonado de experiência autoexpressiva, de um tipo que talvez
apenas as divindades em obras mais antigas da literatura deveria
manifestar”.185
Entretanto, essa ideia dos românticos europeus para Dostoiévski
é “autossuficiente”186. Na comparação entre os românticos russos com
os alemães e os franceses, Dostoiévski diz que eles são “etéreos”187 e
“bobos”188. O romântico russo, para Dostoiévski, é então capaz de:

Compreender tudo, ver tudo e, frequentemente,


enxergar muito mais claramente do que as nossas
inteligências mais positivas; não se resignar diante
de nada ou de ninguém, mas, ao mesmo tempo,
nada menosprezar, tudo contornar, ceder a tudo,
189
comportar-se com todos de maneira política.

Só até aqui há algumas críticas desdenhosas no modo de ser


romântico dos europeus, o que fica mais claro nas sentenças a seguir,
quando Dostoiévski usa palavras no diminutivo:

Não perder de vista um objetivo prático (como um


apartamentozinho do governo, uma pensãozinha,
uma condecoraçãzinha), e ter em mira esse objetivo
em todo entusiasmo e em todos os volumezinhos de
versinhos líricos e, ao mesmo tempo, conservar

183
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação
Liberdade, 2010, pg. 52.
184
Idem.
185
BERLIN, Isaiah. As Raízes do Romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015, pg.
216.
186
DOSTOIÉVSKI. Notas do subsolo. Porto Alegre: LP&M, 2011. Edição Kindle.
187
Idem.
188
Ibidem.
189
Ibidem.
42

incólume em si o “belo e o sublime”, até o túmulo, e


a propósito, conservar a si mesmo embrulhado em
algodão como uma joiazinha, nem que seja, por
190
exemplo, em prol do mesmo “belo e sublime”.

Para Dostoiévski, o romântico russo “é sempre inteligente”191,


mesmo se tiver havido alguns “tolos”192.
O que o russo critica, na verdade, é o desejo de um lugar na
história “junto aos de Weimar”193 ou da “Floresta Negra”.194 Dostoiévski
critica o modo de ser “desprendido”195, que faz o romântico jogar tudo
para o alto, uma crítica nítida ao personagem romântico mais
emblemático: Wilhelm Meisters Lehrjahre, do livro de Goethe Os anos
de aprendizado de Wilhelm Meister, de 1795.
Dostoiévski se refere a essa incapacidade de não saber viver de
outro modo a não ser fazendo o que se quer, o que se “sente”.
Dostoiévski chega, inclusive, a mencionar que isso é “canalhice”196: “É,
senhores, somente entre nós o mais rematado canalha pode ser
inteiramente honesto de alma.”197 E continua: “O nosso romântico,
porém, não mandaria seu emprego às favas se não tivesse outra
carreira em vista”.198 O russo prossegue ironizando como essa
“celebração” à espontaneidade, ao desprendimento, é esquecida
quando um dos “ditos românticos” ocupam cargo de prestígio. Se o
Romantismo é uma crítica ao mundo burguês, como lida com o
“financiamento” de sua própria arte, o mecenato aristocrático?199 Havia,
portanto, uma contradição: “Ao mesmo tempo em que sonhava com
novas possibilidades, lamentava a perda da velha segurança e o
sacrifício da ordem”.200

190
Ibidem.
191
Ibidem.
192
Ibidem.
193
Ibidem.
194
Ibidem.
195
Ibidem.
196
Ibidem.
197
Ibidem.
198
Ibidem.
199
Ibidem.
200
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: LTC, 1987, pg. 64.
43

Passando brevemente pelo Romantismo na música, teríamos as


primeiras centelhas românticas em Ludwig van Beethoven201, e
tornando-se evidente para todos os ouvidos com o polonês Frédéric
Chopin202. Outros nomes foram o russo Piotr Ilitch Tchaikovsky203, o
alemão Felix Mendelssohn204, além do húngaro Franz Liszt205, o
norueguês Edvard Grieg206 e, por fim, o alemão Johannes Brahms207.
Todos eles apresentaram música que deixavam de lado as normas do
classicismo e valorizavam suas próprias emoções.
No teatro, antes de apresentar os principais nomes, é importante
salientar que no Romantismo houve maior valorização das peças de
William Shakespeare208, que é quem primeiro aponta os dramas do
futuro homem, do homem moderno, na pergunta “ser ou não ser”, em
Hamlet. Dos dramaturgos românticos, os dois principais nomes são
Friedrich von Schiller209 e os já citados Goethe e Victor Hugo.
Por isso devemos ao Romantismo, entre tantas coisas, a “noção
de liberdade do artista”210; e que ninguém, depois do Romantismo, pode
ser explicado por “noções simplistas”211, como as que predominavam no
século XVIII. Ainda que seres humanos “continuem sendo enunciados
por analistas excessivamente racionais e científicos”212, qualquer ideia
“unificada”213 quanto aos assuntos humanos provavelmente será
“ruinosa”.214
Atribuindo ao Romantismo toda essa “noção de pluralidade, de
inesgotabilidade, da imperfeição de todas as respostas e arranjos
humanos”215, a ideia de que nenhuma resposta que afirme ser “perfeita e

201
1770-1827.
202
1810-1849.
203
1840-1893.
204
1809-1847.
205
1811-1886.
206
1843-1907.
207
1833-1897.
208
1564-1616.
209
1759-1805.
210
BERLIN, Isaiah. As raízes do Romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015.
211
Idem.
212
Ibidem.
213
Ibidem.
214
Ibidem, pg. 216.
215
Ibidem.
44

verdadeira, seja na arte ou na vida, pode, em princípio, ser perfeita ou


verdadeira”.216 Tudo isso “devemos aos românticos”.217
O espírito romântico seria esse que vive numa capacidade
negativa, que tende às trevas, à escuridão, à melancolia, ao mais
profundo das emoções e não necessita nem de provas científicas do que
quer que seja, nem do racional. Importa mais aquilo que ele conhece
como real porque ele “sente”. E assim “é”. Os românticos asseguram
seus caminhos e se lançam sobre tudo com intensidade, porque tudo é
de “verdade”. Em resumo, o espírito romântico é o tempo todo ação.

Romantismo e religião

A religião não escaparia aos românticos que tinham até então a


literatura como a maior razão de suas vidas. A religião não escaparia,
ainda que a princípio, principalmente por vontade de Goethe, esse teria
sido o único assunto com o qual não se deveria mexer. Novalis –
pseudônimo de Georg Philipp Friedrich Freiherr von Hardenberg 218 –
falava de uma “nova era religiosa”.219
É que Goethe ainda via a religião ortodoxa cristã como “um poder
ordenador que afirmava sua liberdade diante da religião subjetiva”.220
Sendo assim, os primeiros românticos não estariam falando de uma
nova religião institucional, mas de uma “religião-fantasia”221, algo com o
qual se podia “brincar”222 ou “jogar”223, que geraria “entusiasmo”224, na
definição de Novalis – entusiasmo que também significa amor, e não
necessariamente romântico. Foi justamente essa ideia que levaria à
transformação da religião em estética.

216
Ibidem.
217
Ibidem.
218
1772-1801.
219
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação
Liberdade, 2010, pg. 126.
220
Idem.
221
Ibidem.
222
Ibidem.
223
Ibidem.
224
Ibidem.
45

A pergunta a seguir é pertinente: “A religião também faz parte do


material lúdico do Romantismo?”225 A resposta é sim.
É sim devido a esses principais e primeiros representantes do
Romantismo, tão cheios de energia, por quem nasceria a “religião
romântica” e os seus termos particulares: “religiosidade subjetiva”,
“religião extravasada”, “religião estética”, “religião do sentimento”,
“religião do coração”, além de ideias salvadoras ligadas à estética como
a frase de Dostoiévski: “A beleza salvará o mundo”, de seu livro O
idiota.226
Qualquer ideia, aliás, que sugerisse, ou evidenciasse a principal
qualidade, ou essencial qualidade, da Beleza, era bem-vinda entre os
românticos. A Beleza significava para os românticos aquilo que
conseguia domar o coração humano. Nascia, então, a ideia de uma
validação do coração diante daquilo que se vê, que se lê e,
principalmente, que se vive. O escritor russo Aleksandr Solzhenitsyn
chegaria a escrever que a frase não foi um “descuido” de Dostoiévski,
mas uma “profecia”.227
O poder da Beleza, tão cultuado pelos românticos como valor
supremo, poderia até, neste contexto de religião romântica, ser um
contraposto à vida virtuosa. O estilo de vida estético está de
“Kierkegaard a Wilde”228 e o “amor aos mitos, às histórias e aos rituais, a
necessidade de consolo e harmonia, uma profunda ânsia pela ordem –
tudo isso atrai pessoas a crenças religiosas, independentemente de
essas serem verdadeiras ou não”.229 O filósofo alemão Georg Wilhelm
Friedrich Hegel230 chegaria a escrever sobre a “alma bela”, em
Fenomenologia do Espírito, e nesse sentido estaria tratando da alma
que evita “macular sua pureza interior”.
Essa ideia hegeliana ia ao encontro do cerne das ideias dos
principais expoentes desse novo modo de ver a Religião. São eles:

225
Ibidem.
226
Importante ressaltar que Dostoiévski não foi um dos românticos, mas sua frase é de
pura inspiração romântica.
227
SCRUTON, Roger. Beleza. São Paulo: É Realizações, 2013, pg. 19.
228
Idem.
229
Ibidem, pg. 13.
230
1770-1831.
46

Friedrich Schlegel231, Friedrich Schleiermacher e Novalis, de quem já


falamos; Friedrich Wilhelm Joseph Schelling232, Johann Gottlieb
Fitche233, entre outros. Ou, ainda, voltando um pouco no tempo, no
Sturm und Drang, de Johann Georg Hamann.234
Por isso o Romantismo mantém uma “relação latente com a
religião”.235 E o Romantismo no que tem de “mais profundo e mais
intenso, é essencialmente uma experiência religiosa”.236 Ou em outra
expressão, o Romantismo “nada mais é do que a religião
extravasada”.237
É claro que nem por isso o Romantismo deve ser considerado um
movimento religioso. Ele até pode vir a ser “arreligioso”238 e
“antirreligioso”.239 Ou seja, que não pertencem a nenhuma religião, como
240
o escritor alemão Ernest Theodor Amadeus Hoffmann e os que são
contra as religiões, caso de Friedrich Nietzsche. 241
Ainda nesta ideia, o Romantismo é “uma forma de cultura em que
os conceitos religiosos deixaram a esfera que lhes é própria para se
espalhar por toda a parte e, portanto, confundir, falsificar, e turvar as
242
fronteiras claras da experiência humana”. Ou seja, a religião passaria
a constar na pauta dos românticos porque era vista como uma maneira
de “reencantamento do mundo”.
Podemos considerar desse modo que foi por meio da estética que
religião e Romantismo se encontraram em um ponto comum. A

231
1772-1829.
232
1775-1854.
233
1762-1814.
234
1730-1788.
235
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação
Liberdade, 2010, pg. 17.
236
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia – o romantismo na
contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015.
237
Termo do crítico belga Thomas Ernest Hulme (1883-1917) citado por Hoxie Neale
Fairchild (1894-1973), reproduzido por LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e
melancolia – o romantismo na contracorrente da modernidade.
238
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia – o romantismo na
contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015.
239
Idem.
240
1776-1822.
241
1844-1900.
242
HULME, Thomas Ernest apud LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e
melancolia – o romantismo na contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo,
2015, pg. 53.
47

“inclinação à Beleza se aproxima da mentalidade religiosa, nascendo da


humilde consciência de que vivemos com imperfeições ao mesmo tempo
em que aspiramos a uma unidade suprema com o transcendental.”243
Essa ideia do transcendental virá com muita forma em
Shleiermacher, que em sua definição “é uma experiência do infinito no
momento fugaz”.244 Essa religião fundamenta-se nem no pecado, muito
menos em uma promessa, seja de futuro, céu, paraíso, ou mesmo cá
nesta vida, como algo a que se possa esperar de uma boa conduta. A
religião do sentimento de Shleiermacher está para o agora, o “momento
pleno”245, a “vida viva”.246
Uma das características desse tipo de religião é que não tem
nenhuma relação com um ser “soberano revelador”.247 Por isso que para
os românticos, a “verdadeira religião”248 não é apenas “heteronomia”.249
Ou seja, não está sujeita à vontade de outrem, Deus, ou quem quer que
seja: “Não é uma revelação externa, que vem de um deus que está por
cima do mundo, mas o florescimento da liberdade criativa no homem até
a autodivinação”.250
É nessa liberdade criativa que estaria sempre guardada a
“semente religiosa”251, que disse Schleiermacher, que germinaria em
outro tipo de experiência, que não dependeria nem de um deus, nem de
textos sagrados, nem de rituais ou sacramentos, mas unicamente de um
“homem entusiasmado”.252 Para Schleiermacher, era semente porque
“como tal semente sempre é sufocada e soterrada pela moral, por
pensamentos sobre a utilidade das coisas, pela ciência e pelo
dogmatismo.”253 Tudo é a partir de si mesmo.

243
SCRUTON, Roger. Beleza. São Paulo: É Realizações, 2013, pg. 185.
244
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação
Liberdade, 2010, pg. 136.
245
Idem.
246
Ibidem.
247
Ibidem.
248
Ibidem.
249
Ibidem.
250
Ibidem, 127.
251
Ibidem.
252
Ibidem.
253
Ibidem, pg. 132.
48

Logo, é a arte que está “predestinada a salvar a religião” 254, como


acreditava Schlegel. Responsabilidade que recai mais aos artistas do
que aos “homens de bem”.255 Para Schlegel, a religião em seu âmago
nada mais é do que arte. E tudo é “obra da imaginação”.256
Dez anos depois, quando se converteria ao catolicismo, Schlegel
se retrataria por seus projetos românticos e diria: “Esse devaneio
estético”.257 O que Schlegel desejava, na verdade, era libertar a religião
da moral, que no caso do cristianismo é o pecado. Tratava-se apenas de
“grandeza estética, não moral”.258
O elo entre Romantismo e religião então é dado desta forma, e a
ligação precisa com o cristianismo ortodoxo aconteceria por essa onda
que impregnou no seu tempo, que era muito diferente dos dogmas
institucionalizados da Igreja Ortodoxa, a qual Tolstói revidava
constantemente. Todavia, tampouco Tolstói adotou para si a religião
romântica, porque todo o tempo revidou também o impulso de um deus
pessoal.
Já o elo entre Romantismo, religião e Tolstói pode ser
compreendido na atuação de outro poeta romântico que, aliás, Tolstói o
citou em sua resposta ao Sínodo, sobre sua excomunhão: Samuel
Taylor Coleridge.
Coleridge foi outro nome de “perspectivas paradoxais” 259 dentro
do Romantismo260, assim como Rousseau. Autor de um dos escritos
mais importantes do movimento romântico, Religious Musings, Coleridge
acreditava que o “paraíso perdido encontrava-se também nas primeiras
comunidades cristãs”.261 Seus posicionamentos eram contraditórios,
principalmente porque eram “politicamente de direita, mas socialmente

254
Ibidem, pg. 127.
255
Ibidem.
256
Ibidem.
257
Ibidem, pg. 128.
258
Ibidem.
259
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia – o romantismo na
contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015, pg. 161.
260
Aprofundar sua participação no movimento, e como influencia a vida de Tolstói,
necessitaria abordar um traço do Romantismo que abdicamos, principalmente pela
necessidade de outra luz sobre o objeto de nosso estudo. Seria esse traço o político, do
qual já falamos. Então, trataremos de Coleridge apenas em sua visão religiosa e literária.
261
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia – o romantismo na
contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015, pg. 161.
49

de esquerda”.262 Entusiasta da Revolução Francesa, considerando-a até


como “providência divina”263, Coleridge depois viria a se tornar grande
opositor da revolução, assim como outro poeta romântico de forte
expressão, o inglês William Wordsworth.
Retomando Tolstói, ele então abre a carta de resposta ao Sínodo
com uma frase de Coleridge: “Aquele que amar o cristianismo mais que
a verdade muito em breve amará sua Igreja ou seita mais que o
cristianismo e acabará amando a si próprio mais que a tudo nesse
mundo.”264
Embora Tolstói afirme nesta carta que com ele aconteceu
exatamente o contrário do que cita Coleridge, o que os liga é a crítica ao
modo de viver da nobreza, e Tolstói desenvolve um julgamento mordaz
contra si mesmo, por tudo o que já possuía de herança mais o que veio
a possuir pelo sucesso de suas obras. Importante salientar, contudo,
que o escritor russo não aderiu ao marxismo e acabou sendo intitulado
como anarquista-populista, o que veremos mais adiante, no terceiro
capítulo.
O engajamento romântico de Coleridge tinha a ver com a visão
utópica265 sobre comunismo, algo que por sua vez estava relacionado
com a abolição da propriedade privada, ou que tudo fosse dividido “de
maneira rigorosamente igualitária”.266
O sonho de Tolstói era “de se integrar ao povo, de ser
indistinguível no meio dele”.267 E Tolstói de fato se sentia feliz quando,
“em seus passeios, saía para a estrada de Kíev, que passava perto de
Iásnaia Poliana, e deixava de ser conde, dissolvia-se na multidão de
peregrinos que o tomavam por um “vovô” camponês.”268

262
Idem.
263
Ibidem.
264
TOLSTÓI, Liev. Últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Edição Kindle.
265
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia – o romantismo na
contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015, pg. 161.
266
Idem.
267
BASSÍNSKI, Pavel. Tolstói: a fuga do paraíso. São Paulo: LeYa, 2013. Edição
Kindle.
268
Idem.
50

Ao voltarmos nossa atenção ao objeto desta pesquisa, é mesmo


possível ver Tolstói no personagem Liévin, no trecho a seguir de Anna
Kariênina:

Aos olhos dos parentes [de Kitty], Liévin não tinha


uma atividade regular e determinada, e tampouco
uma posição na sociedade, ao passo que os seus
colegas, a essa altura da vida, quando ele contava
trinta e dois anos, já eram, alguns coronéis e
ajudantes de campo, outros, professores, outros,
diretores de banco e de estrada de ferro ou chefes
de repartição pública, como Oblónski; Liévin, por
sua vez (e ele sabia muito bem como os outros o
viam), não passava de um senhor de terras,
dedicava-se à criação de vacas, à caça de narcejas
e à edificação rural, ou seja, um podre medíocre,
que nada conseguira e que fazia na opinião da
sociedade, o mesmo que fazem pessoas
269
imprestáveis.

Entre os intelectuais, havia se tornado norma rir de Tolstói


justamente porque gostava de estar entre os mujiques: “Senhor
conde, o arado já está na porta, queira arar!”270 Para Tolstói, havia um
significado profundo nessa atividade, pois fazia parte do “complexo de
autoeducação, sem o qual não haveria o fenômeno de Tolstói dos
últimos anos.”271 Em, O reino de Deus está em vós, de 1893, Tolstói
escreve:

Será que é louvável e digno da pessoa privar o


próximo daquilo que lhe é necessário para a
satisfação de suas necessidades básicas, só por
capricho, como fazem os grandes proprietários, ou
obriga-los a levar uma insuportável vida de
trabalhos destrutivos a fim de aumentar suas
riquezas, como fazem os usineiros e fabricantes, ou

269
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pg. 37.
270
BASSÍNSKI, Pavel. Tolstói: a fuga do paraíso. São Paulo: LeYa, 2013. Edição
Kindle.
271
Idem.
51

aproveitar-se das necessidades das pessoas para o


aumento de suas riquezas, como fazem os
comerciantes? E cada um em separado,
especialmente quando se estiver falando sobre
outra pessoa, dirá que não. Ao mesmo tempo, essa
mesma pessoa que vê a baixeza desses atos, ele
mesmo, sem ser obrigado por ninguém às vezes até
sem o benefício pecuniário do salário, ele mesmo,
livremente, movido pela vaidade infantil, por uma
bugiganga de porcelana, por uma fitinha, ou por um
galãozinho que lhe permitirão portar, ele próprio,
livremente, irá fazer o serviço militar, ou tornar-se
juiz de instrução, juiz de paz, ministro, policial,
bispo, diácono, em cumprimento de cargos em que
deve fazer todas essas coisas de cuja baixeza e
vergonha ele inevitavelmente tenha conhecimento.
272

Há semelhanças entre as sentenças do homem e do romancista


Liev Tolstói. E em Coleridge vemos traços do romântico
revolucionário.273 O poeta dizia que “Jesus proibiu “toda propriedade” e
ensinou que “a acumulação” é incompatível com a salvação.”274
Posto tudo isso, há um nome que Isaiah Berlin acredita que
“desfechou o golpe mais violento contra o Iluminismo e iniciou todo o
processo romântico.”275 Seria ele, Hamann. Voltamos assim ao período
pré-romântico.
Vizinho e amigo de Immanuel Kant276, Hamann foi muito admirado
por alguns expoentes românticos, entre eles Goethe, Herder e
Kierkegaard. Goethe quis, inclusive, editar suas obras, as quais
escreveu “obscuramente”277, sob diversos pseudônimos. Goethe o

272
TOLSTÓI, Liev. Últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Edição
Kindle.
273
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia – o romantismo na
contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015, pg. 161.
274
Idem.
275
BERLIN, Isaiah. As raízes do Romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015, pg. 74.
276
1724-1804.
277
BERLIN, Isaiah. As raízes do Romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015, pg. 78.
52

considerava “um dos espíritos mais brilhantes e profundos de seu


tempo”.278
Hamann entendia como bem-aventurança completa da alma
humana a “realização livre, sem peias, de suas competências”.279
Hamann foi “apenas o representante mais poético, mais profundo
teologicamente e mais interessante dessa violenta revolta, como
poderíamos dizer, da qualidade contra a quantidade, de todos os
anseios e desejos anticientíficos dos homens.”280 Para Hamann, “Deus
não era geômetra, nem matemático, e sim poeta”281 e havia algo de
“blasfemo na tentativa de impingir a Deus nossos esquemas lógicos
humanos, tão insignificantes”.282 Apesar de amigos, nada poderia ser tão
contrário ao que Kant acreditava. Há em Hamann “vitalismo místico”.283
Por fim, encerraremos a síntese do que compreendemos ser a
relação entre Romantismo e religião voltando a Schleiermacher, que nos
interessa também por ser um dos fundadores da Ciência da Religião.
Antes, porém, é importante citar um dos principais nomes do
Romantismo, embora esteja “fora” da religião romântica, mas que ainda
assim teve papel muito importante: David Hume.284
Foi Hume que estreou a abordagem científica da religião com sua
obra A história natural da religião, que citamos de passagem no capítulo
anterior. O interesse de Hume, contudo, não foi sondar a efusiva
experiência religiosa dos românticos, mas explicar a religião de maneira
racional. Não está em oposição à ideia de Schleiermacher, apenas
observa por outro prisma. Hamann, inclusive, partia de Hume, e também
acreditava que não se conhece o universo pelo intelecto, mas pela fé.
Já Kant, sim, opõe-se a Schleiermacher: “A exigência kantiana de
que a religião seja reduzida à moral enfrentará a contraexistência da
parte das tradições religiosas que se dirigem, quase sem exceção, a

278
Idem.
279
Ibidem.
280
Ibidem.
281
Ibidem.
282
Ibidem, pg. 84.
283
Ibidem.
284
1711-1776.
53

uma transformação no ser humano, e não apenas no agir”.285


Schleiermacher está no grupo dos que valorizavam a religião de maneira
não teórica. Schleiermacher – assim como Auguste Comte286 e Hegel –
tornaram o “filosofar sobre a religião, potencialmente, um novo e
altamente articulado empreendimento intelectual: uma autêntica Filosofia
da Religião”.287
“Religião é o sentido e o gosto pelo infinito”, essa é uma das mais
famosas frases de Schleiermacher. Ele, antes um convertido kantiano,
foi além das três categorias do amigo – a razão teórica, a razão prática e
o juízo – e acrescentou uma quarta, que é o “juízo religioso” 288 ou “a
religião como experiência do infinito”.289 Religião, para Schleiermacher, é
“sentimento e contemplação”.290 Seria também o “medo diante do
prodigioso”291 e a “contemplação diante do sublime”.292
Assim, podemos entender que para Schleiermacher a essência
da religião não consiste no exercício do intelecto, mas na intuição e no
sentimento. Para ele a religião é o sentido e o gosto pelo infinito. Uma
atitude que se caracteriza pela sua passividade infantil diante do mistério
inefável do universo.
Dentro dessa percepção, Schleiermacher vê o racionalismo e a
ortodoxia como responsáveis pela intelectualização e pela rígida
codificação do pensamento religioso, enquanto para ele a religião
situava-se no domínio dos sentimentos.
Em resumo, para Schleiermacher religião não é um exercício do
intelecto, mas da intuição e do sentimento. O religioso adota uma
postura até pueril diante do mistério.
Hume, do seu lado, argumenta que as religiões começam das
paixões humanas mais primitivas como o medo do desconhecido. Um

285
PAINE, Scott Randall. Filosofia da Religião. In: PASSOS, João Décio; USARSKI,
Frank (Orgs.). Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas: Paulus, 2013,
pg. 106.
286
1798-1857.
287
Idem.
288
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação
Liberdade, 2010, pg. 132.
289
Idem.
290
Ibidem.
291
Ibidem.
292
Ibidem.
54

exemplo do “prodigioso” dito antes, em Hume, está na ideia: “Um parto


monstruoso desperta sua curiosidade e é considerado um prodígio. Ele
o desperta por causa da sua novidade e imediatamente o leva a sentir
medo, a fazer sacrifícios e a rezar”.293
Schleiermacher então entra nesse êxtase, que em vários trechos
de seus escritos aparecem de forma até erótica. Como quando, por
exemplo, diz sobre o “abraço do sagrado”294, que funde corpo, alma,
sentimentos, e quando vai embora é como ver a figura da amada indo
embora e fica apenas o “rubro da vergonha e do desejo”. 295 Em
Schleiermacher fala-se da “mística do ser”296, que é anti-institucional,
mas não isola o indivíduo, ao contrário, forma comunidade. É onde a
“espontaneidade da experiência está viva”. 297 Essa ideia também está
de acordo com Hamann, que acredita no “encontro real”298 entre as
pessoas. A alma do homem religioso anseia por “sugar a beleza do
mundo”.299

Romantismo e literatura

Apresentamos no início deste capítulo a falta de consenso para


uma definição do que seria o movimento romântico em sua totalidade,
como um furacão, que não apenas se espalhou para diversas áreas da
vida e do saber, como também desordenou todas elas, impossibilitando
assim um conceito preciso, mas ao mesmo tempo deixando clara a
certeza, como escreveu Isaiah Berlin, de que “nada mais foi o
mesmo”.300
Ainda que cada romantismo tenha suas próprias características,
todas elas possuem um ponto em comum: as emoções. “Toda a

293
HUME, David. A história natural da religião. Unesp: São Paulo, 2005. Edição Kindle.
294
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação
Liberdade, 2010, pg. 133.
295
Idem.
296
Ibidem, pg. 134.
297
Ibidem.
298
BERLIN, Isaiah. As Raízes do Romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015, pg. 75.
299
SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação
Liberdade, 2010, pg. 135.
300
BERLIN, Isaiah. As Raízes do Romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015, pg. 28.
55

literatura romântica será, nesse sentido, emotiva.”301 Porque “opondo-se


à dominação da matéria pela inteligência artística, que é a norma das
literaturas clássicas e classicistas, admitirá como fim da arte só a
expressão espontânea das emoções individuais ou coletivas.”302
Contudo, a literatura emotiva também é “fenômeno de todos os
tempos”303, só que a literatura romântica tem outro tipo de “natureza”.”304
A literatura romântica reflete a expressão máxima daqueles
tempos: “sentir a si próprio”.305 E há certa “inadequação”306 porque há a
compreensão de que a “alma”307 é mais “ampla e mais vasta do que os
destinos que a vida lhe é capaz de oferecer”.308 Ou seja, não é que os
conflitos dessa alma com o mundo exterior rendam histórias, mas há
uma realidade interior que é “repleta de conteúdo e mais ou menos
perfeita em si mesma”309, e, que, principalmente: “entra em disputa com
a realidade exterior”.310
O “estado de ânimo”311 do Romantismo é esse de uma
“sofreguidão excessiva e exorbitante pelo dever-ser em oposição à vida
e uma percepção desesperada da inutilidade dessa aspiração”312 –
porque se sabe que a derrota é certeza. Há, porém, uma certeza:

E o decisivo nessa certeza é o seu vínculo


indissolúvel com a consciência moral, a evidência
de que o fracasso é uma consequência necessária
de sua própria estrutura interna, de que ela, em sua
melhor essência e em seu valor supremo, está
fadada à morte. Eis porque a postura tanto em face
do herói quanto do mundo externo é lírica: o amor e

301
CARPEAUX, Otto Maria. A história da literatura ocidental. São Paulo: LeYa, 2012.
Edição Kindle.
302
Idem.
303
Ibidem.
304
Ibidem.
305
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2007, pg. 118.
306
Idem.
307
Ibidem.
308
Ibidem.
309
Ibidem.
310
Ibidem.
311
Ibidem, pg. 122.
312
Ibidem.
56

a acusação, a tristeza, a compaixão e o escárnio.


(2015, pg. 122)

Enfim, “a importância intrínseca do indivíduo”313 atingiu o ápice


histórico. Lembramos uma pergunta totalmente romântica de Emil
Cioran314: “Por que não podemos permanecer encerrados em nós
mesmos?”315
A primeira sentença justifica o papel da literatura e a segunda faz
uso da literatura para, inclusive, questionar o seu papel. Por que
precisamos falar?

A vida faz-se criação literária, mas com isso o


homem torna-se ao mesmo tempo escritor de sua
própria vida e o observador dessa vida como uma
obra de arte criada. Essa dualidade só pode ser
configurada liricamente. Tão logo ela seja inserida
numa totalidade coerente, revela-se a certeza do
malogro: o Romantismo torna-se cético,
decepcionado e cruel em relação a si mesmo e ao
mundo; o romance do sentimento de vida romântico
316
é o da criação literária desiludida.

E voltamos a Cioran:

Por que insistimos em correr atrás da expressão e


da forma, no intuito de esvaziar de conteúdo e
sistematizar um processo caótico e rebelde? Não
seria mais fecundo entregarmo-nos à nossa fluidez
interior, sem desejo de objetivar, apenas sorvendo,
voluptuosos, todas as nossas ebulições e agitações
íntimas? Viveríamos, assim, numa intensidade
infinitamente fértil, todo aquele crescimento interior
que as experiências espirituais dilatam até a
317
plenitude.

313
Ibidem.
314
1911-1995.
315
CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2012, pg. 16.
316
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2007, pg. 124.
317
CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2012, pg. 16.
57

Parece não haver outro personagem que se encaixe tão


perfeitamente neste papel como o jovem Wilhelm Meister, de Goethe.
Em oposição ao “impregnado” Iluminismo, o Romantismo na literatura
fica marcado na História pela crítica à visão racional e materialista do ser
humano. Seus principais autores criticam também a razão radical e os
métodos, a rigidez, a obrigação: “Os pensadores e poetas românticos
solaparam com muito êxito o dogma central do Iluminismo do século
XVIII, segundo o qual o único método confiável de descoberta ou
interpretação era o das ciências mecânicas triunfantes”.318

318
BERLIN, Isaiah. Pensadores russos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pg.
146.
58

CAPÍTULO TRÊS
Tolstói e os contextos

Falar de religião em Tolstói é falar de frustração, revolta e ruptura.


Ao mesmo tempo, é falar de paixão, contrição e devoção.
Um dos assuntos mais caros ao autor russo, religião é outra fonte
para se mergulhar se o desejo é o de compreender profundamente sua
literatura – além, claro, da fonte já reconhecida, sua forma perspicaz e
sensível de capturar nuances da natureza humana.
Até nossos dias, ou seja, mais de um século depois de sua morte,
“não existiu nenhum autor que tenha demonstrado tamanha percepção
da multiplicidade da vida – as diferenças, os contrastes, as colisões das
pessoas, coisas e situações, cada uma delas apreendida em sua
absoluta singularidade.” 319
Se é possível a nós estabelecer os pilares da literatura de Tolstói,
nomearíamos então esses dois: capacidade perspicaz de captura da
natureza humana e compreensão autônoma da religião. 320

319
BERLIN, Isaiah. Pensadores russos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pg.
244.
320
Essa ideia será explicada ao longo do capítulo.
59

Antes, porém, de investigarmos esses dois pilares


pormenorizadamente, faremos um breve passeio por sua biografia:
nascimento e anos de formação, assim como o seu início na literatura
com suas primeiras e principais publicações. Entendemos ser importante
ressaltar que os episódios de sua vida selecionados neste recorte, de
diversas formas apontam quem Tolstói viria a se tornar e a significar
para o mundo, isso tanto quando o assunto é literatura como também
quando o assunto é religião.
Como é impossível dizer com precisão a quantidade de títulos
321
deixados por Tolstói, assim como seria exaustivo e dispensável
resumir uma a uma as obras catalogadas, considerando a importância
de cada uma não só para a literatura universal como para os estudos de
religião, trataremos de maneira resumida apenas as principais obras e
onde nelas revela-se a religião tal qual adotou Tolstói. Citaremos Guerra
e Paz, Anna Kariênina, Ressurreição, Padre Sérgio, A Sonata a
Kreutzer, O Diabo, A Morte de Ivan Ilitch e Felicidade Conjugal.

Nascimento e anos de formação

Foi em Iásnaia Poliana, residência rural de propriedade de sua


família, localizada na província de Tula, ao sul de Moscou, Rússia, que
nasceu Liev Nikoláievich Tolstói, em 9 de setembro de 1828.
O mais novo entre os irmãos homens teve ainda uma irmã mais
nova. São todos eles, em ordem de nascimento: Nikolai, Serguei, Dmítri,
Liev e Mária. 322
Tolstói perdeu a mãe, Mária Nikolaiévna, em 1830, aos dois anos
de idade. Até os dezesseis foi educado em casa, o que o influenciou
fortemente, e não apenas no que se pode entender como educação
formal. Ensinado por tutores, as matérias estudadas por Tolstói eram
criteriosamente selecionadas, fato que influenciaria futuramente no

321
Uma vez que seus principais biógrafos não tenham conseguido catalogar seus
escritos, esta pesquisa não se compromete com a tarefa de mencioná-los todos. Nem
mesmo o secretário particular de Tolstói, Nikolai Gusev, conseguiu. Morreu aos 85
anos sem ter finalizado a obra para a qual se dispôs: Materials for a Biography.
322
Todos eles, de alguma forma, inspiraram seus personagens nos grandes romances,
por isso a menção.
60

papel que viria a desempenhar não apenas como educador do seu povo,
mas também como crítico da própria educação formal.
A decisão de ser educado em casa foi tomada por Mária, a mãe,
que antes de morrer implorou ao marido, Nikolai Ilitch, que não
permitisse que Tolstói fosse educado fora de casa. A preocupação de
Mária era que seu filho, nos anos de formação, sofresse “más
influências.” 323
Em 1844, quando entrou para a universidade, não concluiu a
graduação porque rejeitava tudo aquilo que não satisfazia o seu senso
crítico. Uma das razões do abandono, por exemplo, foi porque
considerava os professores “incompetentes” e que apenas “tratavam de
questões banais”. 324
Já em 1859, quando abriria escolas para os filhos dos
camponeses em Iásnaia Poliana, o tema educação se tornaria uma das
principais motivações de sua trajetória, levando-o até a estudar
pedagogia, em 1860, na Europa Ocidental. Tolstói abriu muitas escolas
e escreveu diversas cartilhas.
Nikolai Ilitch, o pai, morreu em 1837. Liev e seus irmãos
passaram então a morar com as tias: primeiro Aline; depois Toinette; e,
por fim, Elisaveta, que residia em Kazan, localizada entre Moscou e os
Montes Urais, atualmente a terceira maior cidade do país, conhecida
como a tradicional capital muçulmana da Rússia.
Em sua trajetória, porém, Kazan viria a significar o fim de sua
325
“inocência”. Esses anos de juventude foram profundamente
marcados pela “grosseira vida dissoluta a serviço da ambição, da
vaidade e, acima de tudo, da luxúria”. 326
Do ano em que começou a escrever, primeiramente em diários,
passando depois para os romances, quando conquistou reconhecimento
internacional, Tolstói viveu muitos conflitos pessoais, morais e religiosos.

323
SOARES, Maria Aparecida B. P. Prefácio. In: TOLSTÓI, Liev. Infância, adolescência
e juventude. São Paulo: LP&M, 2009. Edição Kindle.
324
BERLIN, Isaiah. Pensadores russos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pg.
244.
325
BARTLETT, Rosamund. Tolstói: a biografia. São Paulo: Globo, 2013, pg. 99.
326
Idem, pg. 105.
61

De início, portanto, temos claro que uma análise de fôlego sobre


tais conflitos seria um trabalho hercúleo, tanto quanto o de mapear suas
obras. Contudo, para dar sentido ao recorte que escolhemos para Anna
Kariênina, haverá pontos nesses conflitos que destacaremos e
analisamos com mais demora.

Os primeiros conflitos

Os primeiros conflitos espirituais de Liev Tolstói aconteceram em


tenra idade. Já aos 16 anos havia renunciado ao cristianismo ortodoxo,
passando durante a vida da “extrema devoção ao extremo niilismo”. 327
O próprio romancista descreve no artigo Uma Confissão, de 1882,
a experiência de quando percebeu não fazer mais sentido as práticas
religiosas de sua infância:

Desde os dezesseis anos deixei de ajoelhar para as


orações, e voluntariamente parei de frequentar a
igreja e de jejuar. Deixei de acreditar naquilo que
me foi ensinado desde a infância, mas continuei
acreditando em algo. Não saberia, de modo algum,
dizer no que estava acreditando. Tinha fé em Deus
ou, mais provavelmente, não negava Deus, mas
qual Deus eu não saberia dizer; não negava Cristo e
sua doutrina, mas em que essa doutrina consistia
328
eu também não conseguiria dizer.

Contudo, mesmo nesses anos, a religião nunca deixaria de


habitar a consciência do futuro romancista. Um exemplo foi quando aos
pés da cama de um bordel, aos 14 anos, ao qual fora levado por seus
irmãos Nikolai e Serguei, Tolstói depois do intercurso viria a chorar
copiosamente. 329

327
Ibidem, pg. 21.
328
TOLSTÓI, Liev. Últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Edição
Kindle.
329
BARTLETT, Rosamund. Tolstói: a biografia. São Paulo: Globo, 2013, pg. 105.
62

Um episódio similar aparece na novela A Sonata a Kreutzer,


quando o protagonista Pózdnichev descreve a relação sexual para um
jovem aparentemente como: “boa para a saúde” 330 e “o mais natural dos
divertimentos”. 331 A cena é a seguinte:

Nessa primeira queda havia algo peculiar e tocante.


Lembro-me de que imediatamente, lá mesmo, ainda
antes de sair do quarto, me senti triste, triste de
modo que dava vontade de chorar, chorar a perda
da inocência, a minha relação com a mulher,
332
arruinada para sempre.

Passagem semelhante encontra-se também na novela O Diabo.


O protagonista Evguêni Ivanovitch Irtênev, bacharel em direito, quando
ainda solteiro – porque no decorrer da novela ele se casa com uma
nobre moça – via as relações sexuais com algo benéfico para a saúde.
Segue a narração como Tolstói a escreveu:

Quando todo o trabalho já estava na metade,


aconteceu um fato que, embora não fosse
importante, preocupava Evguêni. Anteriormente, ele
vivia como vivem todos os jovens solteiros
saudáveis, ou seja, tinha relações com todo tipo de
mulher. Não era depravado, mas também não era
um monge, como ele mesmo costumava dizer.
Mantinha essa prática, segundo suas palavras,
apenas para garantir sua saúde física e
independência mental. Ele o fazia desde os
dezesseis anos e até então tudo tinha corrido bem,
ou seja, não se entregara à depravação, não se
333
apaixonara e nem pegara nenhuma doença.

Interessante para nossa análise é a sequência: “não se entregara


à depravação, não se apaixonara e nem pegara nenhuma doença”.

330
TOLSTÓI, Liev. A Sonata a Kreutzer. Editora 34: São Paulo, 2007, pg. 25.
331
Idem.
332
Ibidem.
333
TOLSTÓI, Liev. O Diabo. LP&M: Porto Alegre, 2012, pg. 8.
63

Apaixonar-se, segundo consta, é algo que se deve evitar, de acordo com


o olhar de Tolstói. E na sequência da frase está localizada entre duas
coisas ruins.
Entre altos e baixos é que assim se definiria por toda a sua vida a
“consciência religiosa” de Tolstói. Da extrema consagração, que se
revelava em listas de afazeres que exigiam bastante autodisciplina;
passando pelo desencanto total, que aparecia tanto nas práticas
dissolutas dos jogos ou na promiscuidade, chegando, enfim, no flerte
com o niilismo. Tolstói chegaria à definição de religião aos 74 anos,
quando escreve O que é a religião e em que consiste sua essência?, de
1902.

Quando nasce o escritor

A estreia de Tolstói na literatura aconteceu com Infância, em


1852, que hoje compõe uma trilogia juntamente com Adolescência, de
1854, e Juventude, de 1857. Tais textos são de ficção, embora sejam
considerados também autobiográficos.
Da mesma forma que membros de sua família inspiraram alguns
personagens, em todas as suas obras ele mesmo apresenta-se de
alguma maneira, menos ou mais em evidência, mas sempre presente
como em Stiepán Kassátski, protagonista de Padre Sérgio; Konstantin
Liévin em Anna Kariênina, seu mais conhecido alter ego; Pierre
Bezukhov, de Guerra e Paz; Dimitri Nekludov, de Ressurreição; e
Pózdnichev, de A Sonata a Kreutzer, o mais passional de seus
personagens.
Outros personagens, em todas essas obras, estreitam da mesma
forma ao máximo os limites entre ficção e realidade, e não apenas
porque dizem respeito à vida real e privada do autor, mas porque
também relatam sobre a própria época. Com “extremo senso de
334
realidade” , suas obras não deixam de ser retratos minuciosos da

334
BLOOM, Harold. Como e por que ler? São Paulo: Objetiva, 2001, pg. 55. Edição
Kindle.
64

Rússia semifeudal da metade do século XIX tanto quanto não deixam de


lado seus confessos e inconfessos conflitos.
Foi então de maneira natural que Tolstói começou na literatura,
mas fora do establishment literário russo, o que aponta certo
desprendimento com as normas e o status. Tolstói não estava
“fundamentalmente preocupado com problemas de literatura e escrita, e
muito menos com escritores”.335 O escritor russo não se importava, por
exemplo, com o status social, ou mesmo com o status político:

Na Rússia, ele não pertenceu a nenhuma das


grandes correntes ideológicas que dividiam a
opinião culta do país durante a sua juventude. Não
era um intelectual radical, com olhos voltados para o
Ocidente, nem um eslavófilo, vale dizer, um adepto
da monarquia cristã e nacionalista. Suas opiniões
iam além dessas categorias. A exemplo dos
radicais, ele sempre condenou a repressão política,
a violência arbitrária, a exploração econômica e
tudo o que cria e perpetua a desigualdade entre os
336
homens.

Seu compromisso – visivelmente latente quando se entra em


contato com sua biografia – era com essa “necessidade interior de
preenchimento”. 337
Entretanto, o que viria a ser essa necessidade interior de
preenchimento? E preenchida com o quê?
Uma das possibilidades a qual chegamos à conclusão é a de que,
para Tolstói: “Existe uma única meta humana, e a ela estão sujeitos
todos os homens, latifundiários, médicos, barões, professores,
banqueiros, camponeses: dizer a verdade e ser guiado por ela na ação.”
338

335
BERLIN, Isaiah. Pensadores russos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pg.
245.
336
Idem, pg. 242.
337
Ibidem, pg. 255.
338
Ibidem, pg. 255.
65

Um trecho de seu diário consta o que consideramos uma


evidência dessa possibilidade: “Decididamente, não posso escrever sem
objetivo e sem esperança de utilidade.”339
Leitor de Homero, Goethe, Victor Hugo e Stendhal, para Tolstói
não havia como escrever sobre o que não perpassava os mais obscuros
cantos do ser. Ou seja, o conteúdo determina a forma, nunca o
contrário: “Acreditar na primazia da forma significa sacrificar a verdade,
terminar produzindo obras que são produtos de mera invenção.”340 E
nesse ponto dá-se a relação indissociável entre realidade e ficção. Pelo
menos para Liev Tolstói.
Sendo assim, não havia palavra mais dura para o fazer de Tolstói,
ou seja, a escrita, do que “construído”.341 Essa era a palavra mais dura
do vocabulário crítico de Tolstói porque indicava “que o autor não
imaginou ou vivenciou verdadeiramente, mas apenas compôs,
“construiu” aquilo que tenta escrever”.342 De maneira concisa, para
Tolstói é necessário que haja o “sentir na pele”, a dor real de ser, de
existir, para que do papel haja uma transposição para o leitor, que é o
que gera identidade.

A religião em seus romances

Em suas obras de ficção, as ideias sobre religião aparecem


principalmente em Padre Sérgio e em Ressurreição. Já nos artigos que
publicou nos últimos anos, religião é assunto mais do que recorrente,
diríamos até tema central. Entre os principais artigos estão: O reino de
Deus está em vós e Uma Confissão, além de O que é a religião e em
que consiste sua essência?, como já citamos.
Em qualquer um desses gêneros – romance, novela ou artigo –
as ideias de religião aparecem exatamente como são compreendidas e
vividas pelo autor, e são o que chamamos de “compreensão autônoma”.

339
SCHNAIDERMAN, Boris. Posfácio.IN: TOLSTÓI, Liev. Felicidade Conjugal. Editora
34: São Paulo, 2009, pg. 116.
340
Ibidem, pg. 255.
341
Ibidem.
342
Ibidem.
66

Ou seja, nem sempre é condizente com o cristianismo ortodoxo, e


muitas vezes até não condizente de forma alguma, podendo, inclusive,
serem compreendidas como uma reação às práticas cristãs ortodoxas
de sua época. Se o Romantismo foi uma reação à modernização do
mundo, o cristianismo de Tolstói foi uma reação à dispersão do
chamado para a ação moral diária e da constatação de que Deus está
em tudo, o que na compreensão de Tolstói é o resumo dos
ensinamentos de Cristo.
Tanto nesses artigos como nos trechos dos romances e novelas,
encontra-se verdadeiro emaranhado de oposições à Igreja Ortodoxa,
além de exemplos dessa forma subjetiva de compreender e praticar os
ensinamentos de Cristo.
Subjetivas? Estaríamos então falando de duas coisas distintas? O
cristianismo ortodoxo e o cristianismo de Tolstói?
Sim. De um lado está o sistema de crenças vivido desde sua
infância e do outro uma experiência completamente pessoal, que está,
sim, ancorada nas Escrituras Sagradas, mas é algo muito maior do que
o próprio cristianismo ortodoxo, com seus dogmas e ritos.
Ainda que não sejam necessariamente excludentes, esses dois
lados travaram ao longo da vida de Tolstói inúmeras batalhas espirituais,
em privado e em público, aparentes em seus romances ou mesmo em
sua vida doméstica com esposa e filhos. Além, claro, no trato com seus
servos em Iásnaia Poliana.
Posicionar Tolstói no contexto da literatura universal, em poucas
palavras, é de certa forma apenas reforçar a concepção também
universal, e praticamente inalterada por mais de um século, de que o
conde russo é um dos maiores romancista que o mundo já conheceu. O
seu diferencial está na tentativa de responder “questões fundamentais
de princípio”.343Neste ponto, não foge, evidentemente, aos propósitos da
religião. 344

343
BERLIN, Isaiah. Pensadores russos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pg.
242.
344
Segundo David Hume (1711-1776) no elementar História natural da religião (1757),
considerado a primeira obra científica sobre religião, sem o caráter confessional. Nesta
obra, escreve que “as primeiras ideias de religião não nasceram de uma contemplação
67

As obras-primas

Se seus romances têm como fundamento questões elementares


da existência tais como: as possíveis finalidades da vida, qualquer
explicação para a morte, os mistérios do além-vida, sem falar de todos
os sentimentos que, democraticamente, acometem a todos, ricos e
pobres, homens e mulheres, que são o amor, a dor, a paixão, a
decepção, a traição, o pecado, o perdão e, principalmente, redenção,
acreditamos que estão claros os motivos pelos quais Tolstói é relevante
como agente religioso, uma vez que suas obras são instrumentos para
compreender tudo isso e aconchegam os sentimentos que estão ligados
a todos esses mistérios. Religião está para o homem como o homem
está para a religião. 345
Em resumo, os escritos de Tolstói dizem sobre “os encantos e as
346
agonias da consciência humana”. As obras de Tolstói seriam então
instrumentos de exploração dessa natureza humana sempre tão
contraditória e em agonia. E essas obras têm capacidade de “tradução”
em imagens concretas em um “grau de integridade e precisão”. 347
É claro que pode haver milhares de outros motivos que inspiram
um romancista, motivos esses que nem sempre ele próprio tem controle,
ou sequer percebe que saem de seu texto, mas para um grande
romancista, ou um clássico romancista, atemporal, “só o estudo
profundo do coração humano, verdadeiro labirinto da natureza, pode
inspirar”.348
Se uma obra-prima literária funciona como espelho, que “deve
fazer com que vejamos no homem, não só o que ele é ou o que

das obras da natureza, mas de uma preocupação em relação aos acontecimentos da


vida, e da incessante esperança e medo que influenciam o espírito humano.” Essas
preocupações estariam ligadas, segundo Hume, à ansiosa busca da felicidade, o temor
de calamidades futuras, o medo da morte, a sede de vingança e à fome.
345
Religião, segundo a concepção de Hume, não cristianismo ortodoxo.
346
PARINI, Jay. Introdução. In: TOLSTÓI, Liev. Últimos dias. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010. Edição Kindle.
347
BERLIN, Isaiah. Pensadores russos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pg.
67.
348
SADE, Marquês de. Os crimes do amor e a arte de escrever ao gosto do público.
Porto Alegre: LPM, 2000. Edição Kindle.
68

349
demonstra ser”. Ela deve, também, e principalmente, apontar o que o
homem “pode ser, ou no que pode ser transformado pelo vício e
350
agitações das paixões.” Uma obra-prima então se torna parte da
própria consciência.
Conhecida como sua primeira obra-prima, Guerra e Paz usa
como pano de fundo a invasão de Napoleão Bonaparte351 e seus
352
soldados na Rússia. O romance tornou-se ao longo dos anos, além
de renomada ficção, importante obra de realismo:

Quando o livro foi publicado, em 1869, as pessoas


se perguntavam de que gênero era. Havia um
personagem chamado Napoleão. Isso fez parte da
história ou é um romance? E por que era tão
grande? É grande porque são ambos. Na maioria
dos romances históricos, a parte histórica é pano de
fundo para o romance. Em Guerra e Paz, como diz
353
o título, você obtém medidas iguais de cada um.

Já Ressurreição é uma “história de contrição e renúncia”.354 Neste


romance, Tolstói não consegue abrir mão das palavras e as usa, durante
o enredo, para “expandir sua pregação”.355
Mas não é só isso. Há questões periféricas que dizem sobre o
autor e sobre o tempo em que viveu. Para escrever Ressurreição,
Tolstói realizou verdadeiro trabalho antropológico, visitando prisões,
entrevistando os próprios presos, além de juízes e juristas.
Assim como Anna Kariênina, que tem como ponto de partida uma
história real, Ressurreição é baseado em um relato que Tolstói ouviu de
um jurista em visita à sua casa. O jurista contou-lhe o caso de haver
cuidado de um nobre jovem que, ao integrar o júri popular em
determinada audiência, reconheceu a acusada, uma antiga criada a

349
Idem.
350
Ibidem.
351
1769 – 1821.
352
1789 a 1799.
353
MENAND, Louis. What do we love about "War and Peace"? The New Yorker: 2016.
354
PINTO, Manuel da Costa. Talento ficcional supera a pregação religiosa de Tolstói.
Folha de S.Paulo: Ilustrada, 2010, 26 de junho.
355
Idem.
69

quem seduzira, engravidara e abandonara, e que depois do encontro no


tribunal, o nobre fez de tudo para redimir-se com a prisioneira, mas
acabou assistindo-a morrer na prisão depois de contrair doença.
Vemos logo que em Ressurreição há dois elementos que nos
interessa: a tentativa de redimir-se de um erro que prejudicou alguém,
um princípio “tolstoiano”; e o amor, ora capaz de destruir ora capaz de
levar à redenção. O que difere um e outro, segundo podemos observar
na obra de Tolstói, é o desejo sexual.
Tolstói também seduzira uma criada quando jovem, o que gerou
nele profundo pesar. Em Ressurreição, o príncipe Dimitri Nekludov é
quem seduz a bela jovem Catarina Maslova. Depois de abandoná-la,
Maslova foi expulsa da casa onde trabalhava porque engravidou e,
numa sucessão de desempregos, pare o filho que morre logo, e assim
vai parar numa casa de prostituição. Quando, anos depois, Nekludov
reconhece Maslova no tribunal, porque foi acusada de envenenar um de
seus clientes, começa sua “redenção”. Nekludov tenta a todo o custo
libertá-la porque sabe ser ela inocente e lutar por sua soltura é uma
forma de redimir-se do mal que entende ter feito à jovem.
As ideias periféricas do romance dizem também sobre a
resistência não violenta que tanto acreditou Tolstói, assim como a
questão da propriedade privada. Tolstói cita muitas vezes o economista
356
americano Henry George. O segundo grande dilema de Nekludov,
inclusive, é a dúvida de desfazer-se ou não de suas propriedades; e, se
sim, qual maneira seria a mais eficiente para beneficiar o maior número
de camponeses? Já sobre prostituição, o escritor leu seis livros para
inteirar-se do tema. Ou seja, a ficção buscou na vida real toda a força
narrativa.
Padre Sergio, escrito entre 1890 e 1898, é uma das novelas de
Tolstói que mostra com muita clareza sua visão religiosa, embora não
seja uma obra panfletária. A história se passa em 1840 e tem como
protagonista o impetuoso Stiepán Kassátski, homem talentoso e
dedicado a tudo que faz, que depois de uma desilusão amorosa larga a

356
1839-1897.
70

promissora carreira militar para virar monge. Mais uma vez,


encontramos o par amor romântico e religião.
Padre Sérgio diz essencialmente sobre orgulho e vaidade, mas
tem ali, em segundo plano, o medo do desejo, a crença no caráter
destruidor do desejo, acima de tudo o mais que o desejo pode vir a
provocar. Padre Sérgio foi escrito antes da excomunhão do escritor
russo, quando Ressurreição ainda reverberava e havia, inclusive,
pressão para ordem de prisão de Tolstói, liderada pelo primeiro ministro
e principal conselheiro do Czar Nicolau II, Konstantin Pobedonostsev,
que, além de tudo, ainda estava no comando da Igreja Ortodoxa. O que
impediu a ordem de ser cumprida foi a popularidade de Tolstói. Quando
Padre Sérgio foi publicado, Tolstói já era um escritor consagrado
mundialmente, o que, evidentemente, causaria grande repercussão na
imprensa.
Considerada uma obra da fase final do escritor, fase em que se
mantinha ocupado com afazeres voltados à própria religiosidade, e
escreveu apenas contos e novelas, fica claro na jornada de Padre
Sérgio o que Tolstói acreditava como sendo a mais adequada maneira
de servir a Deus: ajudando aos pobres e doentes, além de uma vida
desprovida de qualquer tipo de luxo e satisfação sexual. Religião, para
Tolstói, era ação.
Como aconteceu em praticamente todas as suas obras, o teor
autobiográfico em Padre Sérgio é imenso, principalmente no que diz
respeito às aspirações de Tolstói quando jovem, reveladas em estrita
disciplina, além de senso crítico apuradíssimo, que por sua vez revelava
uma natureza inquieta, sempre em busca de algo mais.
Tolstói acreditava em um modelo, baseado na disciplina, de como
viver: desde a mudar a realidade do corpo físico, com exercícios e
dietas, como dos sentimentos e da espiritualidade. Em seus diários,
mantinha uma rotina fora do comum de tão restrita, quase avesso à
espontaneidade. Isso explica, aliás, porque ele mesmo se sentia
obrigado a atingir padrões bastante elevados de moralidade.
Em 1947, por exemplo, aos 18 anos, Tolstói começou um “diário
de atividades cotidianas”. Nele, registrava uma rigorosa programação,
71

desde os horários de estudo à diversão com os jogos de xadrez. Ao lado


direito, o escritor anotava o seu desempenho: “obedecido”, “nada” ou
“quase nada”. Nesse diário é que foi registrado um “novo conjunto de
regras” sobre sua relação com Deus.
Tolstói descreve Stiepán Kassátski – antes de se tornar Padre
Sérgio – dessa forma, e é praticamente uma autodescrição:

Em sua aparência externa, Kassátski dava a


impressão de ser um jovem normal, brilhante oficial
da guarda fazendo carreira por mérito próprio.
Porém, uma contenda complexa e intensa travava-
se em seu interior. Desde a infância, essa contenda
assumira várias formas, mas na essência tudo se
resumia a um único objetivo: todos os seus passos
não tinham outro fim senão o de alcançar a
perfeição e o sucesso que suscitariam o elogio e a
admiração das pessoas. Apegava-se quer aos
estudos, quer às ciência, e trabalhava até que o
elogiassem e o apontassem como exemplo aos
demais. Alcançando um objetivo, partia para outro.
Assim conseguiu o primeiro lugar em ciências;
assim, quando ainda cursava a Academia,
percebendo que estava fraco em conversação
francesa, esforçou-se até conseguir em francês a
mesma fluência que tinha em russo; assim, mais
tarde, ainda na Academia, ao se dedicar ao xadrez,
357
esforçou-se até conseguir jogar à perfeição.

O primeiro ponto a destacar é o motivo da decisão de largar a


carreira para isolar-se em um mosteiro: o amor romântico. Ou a
decepção com o amor romântico.
Anna Kariênina, por sua vez, diz sobre uma aristocracia em crise:
conjugal, familiar, cultural e social. Religião não está no primeiro plano,
não é tema evidente, mas sim suas normas. As tramas flutuam o tempo
todo entre pecado, culpa e perdão.

357
TOLSTÓI, Liev. Padre Sérgio. São Paulo: Cosac Naify, 2001, pg. 9 e 10.
72

A ideia de escrever Anna Kariênina, como já dissemos, veio de


um fato, ocorrido na vizinhança de Tolstói, apenas um ano antes de o
escritor começar a escrever o romance. O nome da mulher que o
“inspirou” era Anna Stepanovna Pirogova.
Amante de um vizinho – e parceiro de caçadas de Tolstói –
chamado Bíbikov, Anna foi “possuída” pelo ciúme ao ser trocada por
outra, e fugiu, carregando apenas uma troca de roupas, tendo andado
pelo campo por três dias. Transtornada pela rejeição, sucumbiu e jogou-
se sob um trem de carga, em 4 de janeiro de 1872. Anna chegou a
deixar um bilhete para Bíbikov: “Você é o meu assassino. Seja feliz, se
um assassino puder ser feliz. Pode vir ver o meu cadáver, nos trilhos da
estação de Iássenki, se quiser.” 358
Tolstói, no dia seguinte ao suicídio, foi à estação de Iássenki,
conferir de perto a investigação da polícia local. De pé, no canto do
galpão, Tolstói observou cada detalhe do corpo de Anna sobre a mesa,
toda coberta de sangue, mutilada. Para Tolstói, Anna tinha dado tudo de
si por amor, mas “apenas para encontrar-se com a morte tão
desagradável e feia.” 359
As situações que narra em suas ficções também transcendem o
sermão. Em A morte de Ivan Ilicth, por exemplo, trata da inutilidade da
busca pela vida perfeita. Notamos, outra vez, a perspicácia de observar
minúcias da natureza humana. Essa percepção vem dessa guerra
interior em busca da verdade, algo que Tolstói acreditava ser possível.
Ou pelo menos via como “aguda percepção de obrigação moral”. 360
Já a breve novela O Diabo é uma das obras de Tolstói que mais
evidentemente revela o duelo entre o desejo sexual e o que o autor
entendia ser o melhor jeito de viver uma vida para Deus. O ideal modelo
de esposa também está em O Diabo. Um modelo que deixa muito claro
um dos principais traços de caráter do desejo: não requer autorização da
razão.

358
FIGUEIREDO, Rubens. Introdução. In: TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo:
Cosac Naify, 2013, pg. 08.
359
ROTHMAN, Joshua. Is “Anna Karenina” a love story? The New Yorker, 2012.
360
PARINI, Jay. Introdução. In: TOLSTÓI, Liev. Últimos dias. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010. Edição Kindle.
73

Escrito em 1898, mas publicado apenas postumamente, em 1916,


O Diabo trata essencialmente sobre o perigo do desejo, na visão de
Tolstói – além da função do casamento enquanto um sistema de valores
morais.
Ao chegar à região rural onde morava seus pais, a fim de cuidar
das propriedades da família depois da morte do pai, Evguêni se envolve
com uma camponesa e mantém um caso com ela, mesmo ela sendo
casada, embora no início ele seja solteiro. Depois que Evguêni se casa,
a camponesa torna-se “o diabo” do título, por atormentá-lo em
lembrança, ou quando a encontra acidentalmente.
Essa relação complexa e contraditória, de amor e religião, de ódio
do amor e amor pela religião, teve praticamente seu ápice depois que
Tolstói escreveu Anna Kariênina, ele então com 40 anos. “Os fatores
361
“éticos” superaram tanto o estético quanto o pessoal” , o que o levou
às desavenças com a esposa e o abandono da carreira literária por
aquilo que “considerava uma necessidade moral: viver de acordo com os
princípios da moralidade cristã racional – a vida simples e severa da
humanidade em geral, em vez da aventura excitante da arte
individual”.362
Foi assim que a literatura passou a ser algo tão distante, e
mesmo os romances que o tornaram mundialmente famoso, Tolstói
rejeitou fortemente. Sobre Anna Kariênina, chegou a chamá-lo de “uma
abominação que já não existe para mim”. 363
As crises religiosas vividas até então se somaram às brigas com a
esposa e provocavam verdadeira tempestade em sua vida. Tais brigas
com Sônia eram pelos direitos autorais que Tolstói decidira de uma vez
por todas abrir mão – além das propriedades da família, deixando de
pensar no futuro dos filhos, para o horror de sua esposa. Temos aqui um
pouco do dilema de Dimitri Nekludov em Ressurreição, que, mesmo
amando Maslova, não pensava em ter filhos, e pensava o tempo todo

361
NABOKOV, Vladimir. Lições de literatura russa. São Paulo: Três Estrelas, 2014, pg.
190.
362
Idem.
363
BEARD, Mary. Facing death with Tolstoy. The New Yorker: 2013.
74

em como era injusto viver em tanta riqueza enquanto ao redor só havia


miseráveis.
Ancorado em uma maneira particular de entender o cristianismo
ortodoxo, intrinsecamente a ver com o acúmulo de riquezas versus a
pobreza da maior parte da população de seu entorno, Tolstói se sentia
“traindo seu ideal de uma existência simples e virtuosa”. 364
A grande questão é que Tolstói acreditava nas verdades e valores
eternos e queria alcançá-los. Para o russo, o escritor tinha obrigação
moral de dizer o que é certo, assim como ser ele o primeiro a praticar.
Escrever era como se fosse um chamado à verdade e à justiça. Um
romance não poderia ser apenas um divertimento burguês. Em O reino
de Deus está em vós, artigo de 1893, Tolstói escreve:

Além disso, em todos os governos, sem exceção,


oculta-se do povo aquilo que pode libertá-lo e
estimula-se o que pode pervertê-lo, como as obras
literárias que apoiam as superstições religiosas e
patriótica primitivas, e todo tipo de divertimento
sensual, como espetáculos, circos, teatros e até
alguns tipos de entorpecimento físico, como o
tabaco ou a vodca, que constituem a maior fonte de
renda do Estado. Estimula-se até a prostituição, que
não só é reconhecida, mas organizada pela maioria
365
dos governos.

Excomunhão e suas razões

Considerado um anarquista, Tolstói foi excomungado da Igreja


Ortodoxa em 1901. Incapaz de aceitar os interesses políticos e
econômicos da igreja de seu tempo, sem falar dos rituais que
considerava “inúteis”, o escritor ainda respondeu ao Sínodo com uma
carta aberta – que, aliás, é um de seus escritos mais famosos, à parte
dos grandes romances. Neste caso, o autor de Guerra e Paz tornou-se o
364
NABOKOV, Vladimir. Lições de literatura russa. São Paulo: Três Estrelas, 2014,
pg.190.
365
TOLSTÓI, Liev. Últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Edição
Kindle.
75

próprio anti-herói do seu tempo, criticando fortemente a decisão que a


Igreja tomara.
Anarquismo e cristianismo parecem a princípio dois conceitos
contrários um ao outro, todavia em Tolstói encontram um ponto comum,
que é o caráter prático das escrituras sagradas. Essa maneira particular
de entender o cristianismo remetia a “uma versão primitiva do
cristianismo inteiramente baseada nos ensinamentos de Jesus,
rejeitando o dogma da Ortodoxia”.366
Embora Tolstói rejeitasse o título de anarquista, pela associação
inevitável da palavra com violência, o que era totalmente contrário à sua
ideia de “resistência não violenta”367, o adjetivo contribuiu para a
aplicação de uma “nova moral”.

As críticas de Tolstói

Tolstói questionou os rituais, o status-quo e as doutrinas.


Considerado o “Lutero russo”368, assim como o reformista alemão
Martinho Lutero369, Tolstói também travou uma batalha com os líderes
religiosos da época, declarando em alto e bom som não apenas atitudes
hipócritas por parte desses mesmos líderes como a inutilidade de certos
rituais. Uma dessas críticas, por exemplo, aparece em Ressurreição,
quando escreve que o ritual da eucaristia é uma “bruxaria sacrílega”.
A eucaristia, parte de uma cerimônia que celebra a morte e a
ressurreição de Jesus Cristo, usa pão e vinho como símbolos do corpo e
do sangue de Jesus Cristo. O ato de “comer” e “beber” de seu corpo e
sangue significa a lembrança constante do amor do Deus filho em
nascer homem e dar a vida pela salvação da humanidade. A finalidade

366
BEARD, Mary. Facing death with Tolstoy. The New Yorker: 2013.
367
A ideia da resistência não violenta aparece em várias cartas, mas tomamos de
exemplo a carta destinada a Ernest Howard Crosby, em 1896. Nesta carta, Tolstói fala
sobre o assunto com o amigo e diz, inclusive, que a mensagem de Cristo sobre a
resistência não violenta não é para o povo, mas para “os chamados mestres ortodoxos
da Igreja, os principais e mais perigosos inimigos do cristianismo”. Consta no livro
Últimos dias.
368
Nomeado pelo escritor belga Daniel Gillès.
369
1483-1546
76

da eucaristia é a união com aquele a quem chamam de Senhor. E


justamente essa “fantasia” é o que Tolstói critica.
E faz mais críticas aos sacramentos. Sobre o pão e o vinho: “o
mais importante e sagrado do mundo é essa maçaroca que o Pope faz
de vinho e pão”370. E continua: “Isso tudo é tão tolo, sem sentido, que
não há possibilidade de entender o que tudo isso significa, e aqueles
que ensinam essa fé não ordenam que se entenda, apenas ordenam
que se acredite e, acostumadas a isso desde a infância, as pessoas
acreditam em qualquer absurdo que lhes dizem” 371.
Para o escritor russo, o que deve ser considerado é somente o
que é possível aceitar pela razão. Tolstói despreza completamente a
372
mística , e abre mão de qualquer ritual ou símbolo – ainda que
permita – ou possibilite – uma experiência verdadeira com Deus: “O
“transcendentalismo” político de Tolstói, seus “pietismos” utópicos, são
profundamente melioristas. O homem deve ser observado no movimento
373
em direção ao reino da justiça e do amor na terra”. Na terra.
Corrobora a ideia do conteúdo ante a forma.
Na verdade, Tolstói questiona qualquer coisa que desvie o
indivíduo do primordial: os ensinamentos de Jesus. Para o escritor
russo, não há qualquer possibilidade de uma experiência verdadeira
com Deus sem os ensinamentos de Jesus e esses ensinamentos são
tudo o que o homem precisa. Assim, liturgias e rituais são meras
distrações que tornam os cristãos apenas influenciáveis e
supersticiosos. Tolstói acreditava também que tudo isso era para que a
Igreja Ortodoxa não fosse questionada, principalmente sobre sua aliança
com o Estado. A conclusão então é que o cristianismo real para Tolstói,
o cristianismo praticado devidamente, não poderia ter qualquer relação
com o Estado.

370
TOLSTÓI, Liev. Últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Edição
Kindle.
371
Idem.
372
De acordo com Marco Vannini, em Introdução à mística, diz sobre a vida do espírito,
isso que não pode ser compreendido por meio sistema, apenas pela fenomenologia.
VANNINI, Marco. Introdução à mística. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
373
STEINER, George. Tolstói ou Dostoiévski. São Paulo: Perspectiva, 2006, pg. 15.
77

É claro que essa afronta à Igreja Ortodoxa não passou


despercebida e a resposta que deu não ocultou o desgosto com a
postura do romancista. Entre os tópicos apresentados como causa de
sua “excomunhão” está “injuriando todos os objetos sacros do povo
ortodoxo, não estremeceu em escarnecer o maior dos sacramentos – a
santa Eucaristia”. 374

O conde Tolstói, escritor conhecido no mundo


inteiro, russo de nascimento, ortodoxo por batismo e
formação, seduzido por sua orgulhosa inteligência,
insurgiu insolentemente contra o Senhor, contra
Cristo e contra toda a sua herança sagrada e, diante
de todos, renegou claramente a Igreja Ortodoxa, a
375
mãe que o educou e alimentou.

Em 1901, em resposta à carta que o Sínodo enviou, esta questão


foi levantada e Tolstói confirma seu repúdio: “Foi dito também que eu
repudio todos os sacramentos. Isto é inteiramente justo. Considero todos
os sacramentos sortilégios baixos e grosseiros, incompatíveis com a
compreensão de Deus e com o ensinamento cristão e, além disso, uma
violação dos preceitos mais diretos do Evangelho.” 376
Para Tolstói, “o cristianismo discreto e simples e a devoção pouco
convencional” possuem mais “virtudes santas” do que os dogmas que a
Igreja Ortodoxa tentava inculcar. 377

374
Todas as razões da excomunhão:

- Rejeita o Deus vivo glorificado na santíssima Trindade, o Criador do Universo;


- nega Deus Jesus Cristo, o Deus Homem;
- nega Jesus Cristo como redentor, que sofreu por nós, homens, e para nossa
salvação;
- nega Jesus Cristo como Salvador do mundo;
- nega a imaculada concepção de Cristo;
- nega a virgindade de Nossa Senhora e Virgem Maria Imaculada;
- nega a virgindade de Nossa Senhora e Virgem Maria Imaculada ao dar à luz;
- não reconhece a vida de além-túmulo e o castigo de Deus;
- rejeita todos os sacramentos da Igreja e o efeito benéfico do Espírito Santo neles,
- injuriando todos os objetos sacros do povo ortodoxo, não estremeceu em escarnecer
o maior dos sacramentos - a santa Eucaristia.
375
TOLSTÓI, Liev. Últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Edição
Kindle.
376
Idem.
377
BARTLETT, Rosamund. Tolstói: a biografia. São Paulo: Globo, 2013, pg. 38.
78

Em conformidade a isso está a sentença do próprio Tolstói no


artigo Uma Confissão: “A ideia de Deus não é Deus.” Ou seja, o que o
escritor ansiava era algo muito maior do que o pensamento poderia
alcançar: “A ideia é algo que acontece dentro de mim, a ideia de Deus é
o que eu posso evocar ou posso reprimir dentro de mim. Não é isso que
378
eu procuro. Procuro algo sem o qual não pode haver vida”.
Uma descrição apaixonada assim – essencialmente romântica? –
mostra que para Tolstói não haveria a possibilidade de existir sem Deus.
E isso não quer dizer de forma alguma que basta apenas crer que Deus
exista, mas, principalmente, ter consciência de sua existência o tempo
todo: “Só vivi quando acreditei em Deus”. E ainda: “Quando sei que
Deus existe, eu vivo; basta esquecê-Lo e desacreditá-Lo que eu
morro”.379
Já sobre o status-quo, a intenção de Tolstói, em conformidade
com as escrituras, era a igualdade entre os homens. Ou seja, o fim da
injustiça, da opressão e da desigualdade – tanto social como de poder.
Inclusive o próprio título de conde Tolstói abdicou.
É nesse sentido que o tipo de religião de Tolstói está muito mais
ligado à moral. E – importante ressaltar – uma moral que em nada está
ligada à política, ainda que de alguma forma as ideias de Jean-Jacques
Rousseau ou de Samuel Taylor Coleridge tenham exercido alguma
influência sobre o autor de Ressurreição. Nesta concepção de religião,
aliás, vemos centelhas do Romantismo: a experiência religiosa
encantadora, desligada de instituição, e na influência de Rousseau e
Coleridge. Tolstói, aliás, cita Coleridge no início de sua carta em sua
resposta ao Sínodo: “Quem começa por amar o cristianismo mais do
que a verdade, logo passa a amar a própria seita ou a própria Igreja
mais do que ao cristianismo e termina por amar a si próprio mais do que
tudo”. 380
E então Tolstói prossegue com suas próprias palavras:

378
TOLSTÓI, Liev. Últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Edição
Kindle.
379
Idem.
380
TOLSTÓI, Liev. Últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Edição
Kindle.
79

Eu fiz o caminho inverso. Comecei por amar minha


profissão de fé ortodoxa mais do que minha
tranquilidade, depois passei a amar o cristianismo
mais do que a minha igreja, e agora amo a verdade
mais do que tudo no mundo. E, até este momento,
para mim, a verdade coincide com o cristianismo; e,
nessa medida em que professo, vivo com
tranquilidade e alegria, e com tranquilidade e alegria
381
me aproximo da morte.

Entretanto, a maior influência de Tolstói foi mesmo Jesus Cristo.


E nos textos sagrados encontrou poderosas “munições” argumentativas
para contestar a Igreja Ortodoxa: desde a expulsão dos vendedores no
templo382 à crítica sobre a “ostentação moral” dos fariseus.
Em resumo, tudo o que Tolstói cria estava no Sermão da
Montanha383, quando Jesus discorre sobre as bem-aventuranças. A
implicância com o Estado, inclusive, vem de toda essa passagem
bíblica. Alguns trechos são evidentes:
“Bem-aventurados os que choram, porque eles serão
consolados”, diz sobre os pobres, desamparados.
“Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados
filhos de Deus”, o princípio da resistência não violenta.
“Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da
justiça, porque deles é o reino dos céus”, a redenção do personagem
Dimitri Nekludov, de Ressurreição.
Tolstói acreditava que se os cristãos se esforçassem para ser
como Jesus ensinava, não haveria necessidade de um Estado. Ou seja,
se praticassem o amor, o perdão, se cuidassem dos mais pobres e
fracos, haveria companheirismo, logo, todos se ajudariam. Em um
cenário assim, a justiça não precisaria ser imposta. Há uma tocante
passagem em Ressurreição sobre o amor, como cria:

381
Idem.
382
Evangelho de João, capítulo 2, versos 13 a 22.
383
Evangelho de Mateus, capítulo 5.
80

Acreditam existir situações em que se poderia agir


sem amor para com as coisas: cortar madeira,
malhar o ferro, cozer os tijolos; mas, nas relações
de homem para homem, é indispensável como, por
exemplo, é indispensável a prudência na atitude a
tomar perante as abelhas. A natureza assim o
exige, é uma necessidade da ordem das coisas. Se
pusermos de lado a prudência na criação de
abelhas acabamos por prejudicar a elas ou a nós
mesmos. Assim também, quando se trata de
homens não se deve desprezar o amor. E nada
mais justo, porque o amor recíproco entre os
homens é o único fundamento possível da vida da
humanidade. Sem dúvida, ninguém pode ser
obrigado a amar, como não pode ser obrigado a
trabalhar; mas disso não resulta que alguém possa
agir sem amor aos outros homens, principalmente
no caso de precisar deles. O ser humano que não
sente amor pelos seus semelhantes, então cuida de
si, das coisas inanimadas, de tudo que lhe agradar,
exceto dos homens. Assim como faz mal comer
sem vontade e não se assimila o alimento, também
o agir em relação aos homens, sem começar por
384
amá-los, acabará em desordem.

Esse seu desejo não é ingênuo, é genuíno. O que Tolstói faz é


tornar a religião muito racionalista, e elimina não apenas todos os rituais
ou tradições, mas também todos os mistérios, o que está no campo do
sobrenatural. O que parece evidente é que Tolstói possuía refinado
senso de justiça, talvez na mesma proporção do dom de perceber a
natureza humana – ou talvez por isso mesmo. A prática do seu
cristianismo particular resumia-se em deixar de existir para si mesmo.
Era como Tolstói cria ser o amor, visível em Felicidade Conjugal, por
exemplo, que analisaremos no próximo e último capítulo com mais
atenção.

384
TOLSTÓI, Leon. Ressurreição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, pg. 356.
81

Temos mais evidências dessa sua forma autônoma de religião em


Padre Sergio. O protagonista, depois de ficar muito famoso por suas
rezas milagrosas, questiona o seu papel quando encontra uma prima,
que não via há muitos anos. A maneira como a mulher o serve, e serve
aos demais, leva o padre a se questionar sobre como se deve servir a
Deus de fato:

Páchenka é o que eu deveria ser e não fui. Vivi para


os homens a pretexto de viver para Deus, ela vive
para Deus achando que vive para as pessoas. Sim,
uma boa ação, um copo d'água oferecido sem
pensar em recompensa vale mais que tudo que fiz
às pessoas. Mas não havia um quinhão de
sinceridade no desejo de servir a Deus? –
perguntava-se a si mesmo, e a resposta era: Sim,
mas tudo isso era maculado e encoberto pela
vaidade humana. Não há Deus para aqueles que,
como eu, vivem para a vaidade humana. Vou
385
procurá-Lo!

O intuito de Tolstói de uma religião libertária, que tem o homem


como guia de si mesmo, é baseado unicamente no exemplo de Jesus
Cristo e leva em consideração, no mínimo, a ideia de que os homens
possuem uma natureza inerentemente boa. Influência nítida de
Rousseau, a concepção tolstoiana de vida, porém, vai contra a própria
386
condição de pecador que o homem carrega desde a Queda, no Éden.
Ainda que não cresse em Jesus como ser divino – o que era
também polêmico – é de Jesus que vem essa motivação para ser
exemplo moral irrefutável. Porque para Tolstói, Jesus foi exatamente
isso. Em O que é religião e em que consiste sua essência?, Tolstói
esboça as esferas da vida em que acredita que a religião seja
fundamental – ou até mesmo imprescindível:

385
TOLSTÓI, Liev. Padre Sérgio. São Paulo: Cosac Naify, 2001, pg. 66.
386
Um problema a ser analisado mais profundamente pela Teologia e não pela Ciência
da Religião.
82

O estabelecimento dessa relação do ser humano


com o todo, do qual ele se sente parte e no qual
busca orientação para seu comportamento, é
exatamente o que se chamava e se chama religião.
Por isso, a religião sempre foi e não pode deixar de
ser condição básica e insuperável para a vida do
387
homem racional e da humanidade racional.

Já em Uma Confissão ataca: “Os que praticam a religião ortodoxa


são, na maior parte, pessoas estúpidas, cruéis e imorais, que se
consideram muito importantes. Por outro lado, a inteligência, a
franqueza, a bondade e as virtudes morais em geral se encontram nas
pessoas que se consideram descrentes.”388
O rompimento de Tolstói com a Igreja Ortodoxa não o tornou um
rejeitado por seus pares. Na verdade, sua imagem como líder cristão
ficava cada vez mais forte. Por causa de seus seguidores, era possível
dizer que a conversão era ao “tolstoísmo” e não ao cristianismo. Era
possível, inclusive, usar a expressão “valores tolstoianos”, que dizia
respeito, principalmente, à vida simples, desprovida de qualquer tipo de
luxo. E assim Iásnaia Poliana ia se transformando numa “Meca”.

O que é religião, segundo Tolstói

Religião, para o russo, como escreve em O que é religião e em


que consiste sua essência, de 1902, não é como uma crença
“estabelecida de modo definitivo”389, com base em certos
acontecimentos sobrenaturais ocorridos em algum momento da História,
algo muito distante, muito menos na “obrigatoriedade de cerimônias e
orações predeterminadas”.390 Tampouco, segundo o conde, a religião
seria como consideram os cientistas, “o que restou das superstições de

387
TOLSTÓI, Liev. Últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Edição
Kindle.
388
Idem.
389
Idem.
390
Ibidem.
83

um passado de ignorância”391, que não tem significado em nossa época


e nenhuma aplicação na vida cotidiana.
A religião, para Tolstói, “é a relação do homem com a vida eterna
e com Deus, em conformidade com a razão e com os acontecimentos
contemporâneos, e faz a humanidade progredir em direção ao objetivo
que lhe está predestinado.” 392
O “sentido original da religião”, que Tolstói se refere, e que diz
que as pessoas foram se afastando, foi se perdendo do cotidiano porque
as pessoas passaram não apenas a explicar as causas da natureza por
razões naturais; e da morte por outro tipo de conhecimento, que
podemos denominar, por exemplo, como vida pós-morte, mas também
porque passaram a “espiritualizar” todas essas novas explicações. Para
Tolstói, foi isso que “ruiu” a necessidade da religião.
Já os mais cultos, a manteriam apenas para controle das massas.
Para Tolstói, a religião perdeu primeiro para o humanismo; segundo,
para a metafísica; em terceiro, para a ciência.393 Tolstói ainda deixou
claro em seus textos que muitos pensadores religiosos “aderiram à pura
e simples ode ao potencial humano natural”.394
Outro pensamento que revela sua maneira autônoma de
compreender religião está na própria resposta ao Sínodo:

O fato de eu ter renegado a Igreja que se intitula


ortodoxa é totalmente exato. Mas reneguei-a não
porque me insurgi contra o Senhor, ao contrário,
simplesmente porque desejava servi-lo com todas
as forças da alma. Antes de renegar a Igreja e a
união com o povo, que me era indescritivelmente
cara, baseado em alguns sinais que me fizeram
colocar em dúvida a razão da Igreja, dediquei
alguns anos à investigação teórica e prática dos
seus ensinamentos: quanto à teórica, li tudo o que

391
Ibidem.
392
Ibidem.
393
Devido à complexidade dos três termos: humanismo, mística e ciência, decidimos
não explicá-los em pormenores. Sem dúvida, rendem outras dissertações.
394
TOLSTÓI, Liev. Últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Edição
Kindle.
84

estava a meu alcance acerca dos ensinamentos da


Igreja, estudei e empreendi uma análise crítica da
teologia dogmática; quanto à prática, acompanhei
rigorosamente, no curso de mais de um ano, todas
as prescrições da Igreja, observando todos os jejuns
e frequentando todos os ofícios religiosos. E
convenci-me de que o ensinamento da Igreja é, em
sua teoria, uma mentira pérfida e perniciosa; em sua
prática, reúne as mais grosseiras superstições e
sacrilégios, ocultando por completo todo o
395
significado do ensinamento cristão.

“Não porque me insurgi contra o Senhor, ao contrário,


simplesmente porque desejava servi-lo com todas as forças da alma”,
essa frase está completamente em conforme com outra: “Só vivi quando
acreditei em Deus”. E ainda: “Quando sei que Deus existe, eu vivo;
basta esquecê-Lo e desacreditá-Lo que eu morro”.
Para Tolstói, religião não diz respeito apenas aos “fenômenos
diretos da vida, mas com todo o mundo infinito no tempo e no espaço,
compreendendo-o como uma unidade.”396 E, por fim, “E o
estabelecimento dessa relação do ser humano com o todo, do qual ele
se sente parte e no qual busca orientação para seu comportamento, é
exatamente o que se chamava e se chama religião”.397

A questão do desejo

No entanto, não é apenas a Igreja Ortodoxa enquanto instituição,


os rituais, o Estado e a propriedade privada que Tolstói aspira a que a
sociedade abra mão. O desejo sexual está também em sua mira de
sacrifícios para se chegar ao ideal moral. A motivação é religiosa: as
paixões levam à perdição. A anulação das paixões é o único caminho
para alcançar o êxito da perfeição em vida.

395
TOLSTÓI, Liev. Padre Sérgio. São Paulo: Cosac Naify, 2001, pg. 81.
396
TOLSTÓI, Liev. Últimos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Edição
Kindle.
397
Idem.
85

O amor como princípio e razão de ser do Evangelho não é o amor


carnal, mas o fraternal. O meio não é o desejo, mas a razão, a escolha
diária de se fazer o melhor para aquele que se ama. O fim não é o
prazer individual, mas o bem coletivo, ainda que apenas da família, ou
do casal. Em resumo, a harmonia cotidiana.
As três novelas que destacam essa ideia são O Diabo, Padre
Sérgio e, principalmente, A Sonata a Kreutzer.
De 1891, A Sonata a Kreutzer leva o título de uma obra de
Beethoven. Tolstói chegou a escrever sobre o caráter libidinoso da
composição, que provoca “a mais perigosa proximidade entre um
homem e uma mulher”. 398
A ficção que narra é sobre um crime passional. Marido mata a
esposa por ciúme, mas não antes de o casamento estar praticamente
destruído por uma série de pequenos “crimes” cotidianos, que levam o
sentimento dito imortal, típico das juras de amor, às portas do inferno.
A novela é um diálogo, mas quase se apresenta como um
monólogo. Toda a cena acontece em uma viagem de trem –
coincidentemente, quando Anna conhece Vrónski, que de outra forma
também a leva à morte.
Nesta novela, há sentenças pessimistas sobre o casamento,
assim como sobre o amor: “Mas isto só acontece nos romances, nunca
na vida real. Na vida, essa preferência de alguém por outrem dura anos,
o que é muito raro, mais comumente meses, ou então semanas, dias,
399
horas...” Ou ainda: “Amar a vida inteira um homem ou uma mulher é
o mesmo que dizer que uma vela vai arder a vida toda...” 400
Um dos motivos que levou Tolstói a muitos conflitos espirituais e
morais foi o seu próprio apetite sexual. É possível perceber, por
exemplo, numa passagem de A Sonata a Kreutzer, que é autobiográfica:
“Eu não levaria um jovem para visitar um hospital de sifilíticos, a fim de

398
SCHNAIDERMAN, Boris. Posfácio. IN: TOLSTÓI, Liev. A Sonata a Kreutzer. Editora
34: São Paulo, 2007, pg. 110.
399
TOLSTÓI, Liev. A Sonata a Kreutzer. Editora 34: São Paulo, 2007, pg. 18.
400
Idem.
86

lhe tirar a vontade de procurar mulheres, mas o conduziria para dentro


de minha alma, a fim de olhar os demônios que a dilaceravam!”401
Já em Padre Sergio, a tentação que o personagem servo de Deus
sofre quando hospeda no meio da noite uma mulher atraente, leva-o a
uma decisão extrema. A fim de desviar os pensamentos da mulher que
se despia e chamava seu nome, Sérgio tentou primeiro queimar a mão
na chama da vela; depois, não conseguindo suportar a dor, tentou algo
mais rápido, porém mais drástico. Eis a passagem completa:

Durante todo esse tempo ele permanecera em seu


cubículo, rezando. Após terminar de ler todas as
orações vespertinas, ficara imóvel, os olhos
concentrados na ponta do nariz, e fazia uma prece,
repetindo com toda a alma: “Senhor Jesus Cristo,
filho de Deus, perdoa-me”.

Mas ouvira tudo. Ouvira o farfalhar da seda quando


ela se despia, os passos suaves nas pontas dos
pés; ouvira-a quando aquecia os pés com as mãos.
Sentia a própria fraqueza, sentia que podia
desmoronar a cada minuto, e esse era o motivo pelo
qual rezava sem cessar. Experimentava algo
parecido com o que devia experimentar o herói de
conto de fadas cuja missão é andar sempre em
frente sem olhar para os lados. Da mesma forma,
Sergio escutou, pressentiu o perigo, a destruição
que pairava sobre ele, a sua volta, e queria se
salvar tentando não olhar para ela nem por um
minuto. Subitamente, porém, foi dominado pelo
desejo abrupto de vê-la. Nesse exato momento ela
disse:

_ Escute, isto é desumano. Eu posso morrer.

“Sim, irei, mas irei como o padre que pousa uma


das mãos sobre a cabeça da pervertida enquanto
coloca a outra sobre as brasas. Mas não há brasas

401
Ibidem, pg. 92.
87

por aqui.” Olhou ao redor. A lamparina. Pôs a mão


sobre a chama e franziu-se todo, preparando-se
para a dor, e ficou satisfeito, pois durante um bom
tempo pareceu-lhe que a dor não viria; de repente,
porém – sem que tivesse decidido até que ponto
poderia suportá-la –, seu rosto se crispou todo e ele
retirou bruscamente a mão de cima da chama,
abandonando-a. “Não, não posso com isso.”

_ Pelo amor de Deus! Oh, venha me ver! Estou


morrendo, oh!

“E então, vou desmoronar? Não, com certeza não.”

_Vou vê-la agora – disse ele. Abriu a porta e,


evitando olhá-la, passou em direção à porta do
pequeno vestíbulo, tateou até localizar a tora na
qual rachava lenha e a machadinha encostada à
parede.

_ Agora! – disse ele e, colocando o dedo indicador


da mão esquerda na hora, tomou a machadinha
com a mão direita, ergue-a e golpeou abaixo da
segunda falange. O dedo saltou mais leve que uma
lasca de lenha, deu um grito no ar e pousou na
402
beira da tora, caindo em seguida no chão.

Semelhante passagem há em O Diabo, quando Evguêni,


atordoado pela tentação, lembra-se de uma história contada a ele de
certo monge que, “para evitar a tentação de uma mulher na qual deveria
tocar com a mão para curá-la, havia colocado a outra mão num braseiro
e deixado seus dedos queimarem”.403 Evguêni então crê ter achado a
solução e “deu uma olhada para certificar-se de que estava só e
acendeu um fósforo, colocando o dedo na chama. “E então? Pense nela
agora”, disse ele com ironia.”404 Em Anna Kariênina, Liévin, quando

402
TOLSTÓI, Liev. Padre Sérgio. São Paulo: Cosac Naify, 2001, pg. 39.
403
TOLSTÓI, Liev. O Diabo. LP&M: Porto Alegre, 2012, pg. 37.
404
Idem.
88

conversa com Stiva sobre mulheres, diz: “Você tem medo de aranhas, e
eu desses répteis.”405
A fim de vencer as tentações que sentia por seu apetite sexual,
Tolstói levava seus personagens homens ora a algum tipo de redenção
espiritual, como Padre Sérgio, ora ao extremo como o suicídio, caso de
Evguêni, de O Diabo. Nunca, porém, conviviam de maneira natural com
o desejo sexual. Suas personagens mulheres, as atraentes, eram quase
sempre condenadas, se não à morte a algum tipo de castigo, como a
própria repulsão ao sexo, caso de Maslova e Anna Pavlovna, outra
personagem de Ressurreição; ou mesmo ao estigma de algo do mal:
O diabo foi a camponesa tentadora de O Diabo; assim como
frívola e diabólica foi considerada Mákovkina, aquela que bateu à porta
de Padre Sérgio, a fim de seduzi-lo: “Meu Deus! Será verdade o que li
na Vida dos Santos? Que o demônio toma a forma feminina?”406 Aos
trilhos para a morte aquela que traiu, Anna, de Anna Kariênina;
condenada a serviços desumanos a sedutora Catarina Maslova, que
ainda possuía algumas virtudes, embora não fizesse nenhum esforço
para se salvar, de Ressurreição. Até a doce Natacha Rostov é chamada
de “pólvora”.407 E mesmo Mária Aleksândrovna, de Felicidade Conjugal,
teve o seu quinhão de infelicidade pela “futilidade” de algumas vontades
que a levaram, com suas próprias mãos, a destruir o “amor verdadeiro”.
Cremos que está na história de Mária Aleksândrovna a veia
nevrálgica do que Tolstói compreendia ser o amor a dois. O “amor” que
Anna Kariênina desprezou quando decidiu abandonar o marido e o filho
por amor a Aleksiei Vrónski. Felicidade Conjugal dará passagem à Anna
Kariênina e religião ao amor romântico.

405
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pg. 55.
406
TOLSTÓI, Liev. Padre Sérgio. São Paulo: Cosac Naify, 2001, pg. 39.
407
TOLSTÓI, Liev. Guerra e Paz. São Paulo: Cosac Naify, 2015, pg 103.
89

Morte

Ao longo de seus 82 anos, Liev Tolstói foi muitos e,


principalmente, viveu na pele as contradições da natureza humana,
algumas delas muito bem acentuadas pela própria religião.
Tolstói foi o triste órfão criado pelas tias, o proprietário de terras, o
conde, o libertino, o jogador viciado que se endividava. Foi também o
ancião espiritual – um santo tolo? – pai de família, e um historiador. Em
algum momento, do caipira transformava-se em profeta.
Como em seu personagem Padre Sérgio, não aos 49 anos, mas
aos 82, o conflito interior não cessou, ao contrário, inundou todo o seu
ser e o levou para longe de sua família e de sua vida como o grande
romancista já amado pelo mundo.
No dia 28 de outubro de 1910, Tolstói partiu rumo ao Mosteiro
Optina Pustin, localizado na província de Kaluga, cerca de 215
quilômetros de Iásnaia Poliana. No caminho, parou no convento onde a
irmã Mária residia, e, logo depois, embarcou de trem rumo a Rostov-on-
Don, ao sul do Cáucaso. Todavia, passou mal e foi resgatado por um
funcionário da estação de trem de Astapovo.
Repórteres do mundo inteiro, quando souberam do ocorrido,
passaram a acompanhar o caso. O jornal americano New York Times
chegou a dar nota, antes de sua morte, informando que o escritor estava
fora de perigo: “O conde está muito fraco, mas os médicos dizem que
não há nenhum perigo imediato”.408
Alguns dias depois, entretanto, Liev Tolstói viria a falecer. Sua
morte provocou um dos primeiros eventos de mídia internacional. A
pequena estação recebeu centenas de pessoas, entre elas uma equipe
da Pathé News.409 A agência de notícias inglesa fixou-se no local à
espera do aviso que, à época, abalaria o mundo.
Tolstói foi sepultado em 9 de novembro de 1910.

408
BEARD, Mary. Facing death with Tolstoy. The New Yorker: 2013.
409
Fundada em 1909, por Charles Pathé (1883 - 1937), precursor do cinejornalismo.
90

CAPÍTULO QUATRO
O amor romântico em Anna Kariênina

Notas sobre o amor

“Por toda a parte cumpre que ele reze, por toda parte cumpre que
ele ame.”410 Foi dessa forma que abrimos a pesquisa e é dessa mesma
forma pretendemos encerrá-la. Amar é o ato fundador da humanidade411
da mesma maneira que é da natureza do amor ser refém do destino.412
Entretanto, é possível que o amor seja dádiva ao mesmo tempo
em que é pecado? E pode ser graça mesmo quando é proibido? É o
amor metafísico? É místico? Foi criado pela religião? Transforma-se nas
diversas culturas? Ou será que há algo no amor que “transcende as
suas metamorfoses históricas”413 e por isso mesmo “o amor será sempre
o amor”?414
Hipólito é a primeira tragédia de amor da literatura.415 Escrita por
Eurípedes, é marcada por sentimentos extremos, exagerados. Desde
Hipólito, passando por Romeu e Julieta, chegando às edições populares
de novelas como Bianca, Julia e Sabrina, expostas em bancas de jornal
410
SADE, Marquês de. Os Crimes do Amor e a Arte de Escrever ao Gosto do Público.
Porto. Alegre, LPM, 2000. Edição Kindle.
411
BAUMAN, Zigmunt. Amor Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. Edição Kindle.
412
Idem.
413
LIPOVETSKY, Gilles. Terceira mulher: Permanência e revolução do feminino. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997. Edição Kindle.
414
Idem.
415
CARPEAUX, Otto Maria. A história da literatura ocidental. São Paulo: LeYa, 2012.
Edição Kindle.
91

mundo afora, o amor parece ser a única unanimidade entre os homens.


Romeu e Julieta sobrevive há mais de cinco séculos e “não termina
propriamente por engolir os amantes, mas sim por lançá-los rumo ao
futuro como encarnações do amor puro.”416 O amor então pode surgir
como ardor, como calmaria ou mesmo como redenção.
Acompanhado da dúvida – entre tantos outros tormentos – como
podemos ver em Liévin, quando questiona a si mesmo sobre o seu
valor, porque para uma moça tão linda como Kitty “era necessário ser
um homem belo, importante e fora do comum”417, o amor para aquele
que o experimenta “pode ter um sentido mais violento do que o desejo
dos corpos” propriamente dito.418 E “jamais devemos esquecer que, a
despeito de todas as promessas de felicidade que o acompanham, ele
introduz, antes de mais nada, a perturbação e a desordem”.419
Tamanha é a desordem que leva ao destino que teve a própria
Anna: à ruína, o suicídio. O mesmo destino, na verdade, de Fedra, que
não tendo o amor de Hipólito também tira a própria vida.
Em Anna Kariênina não está a originalidade ao tratar sobre uma
triste consequência que pode vir a ter o amor, mas tampouco era
objetivo de Tolstói ser original. Se nos é permitido infringir com uma
suposição, diríamos que a experiência da escrita de Anna Kariênina foi
também uma experiência de autodescoberta. Escrever, antes de
qualquer coisa, é um exercício de exploração para além da imaginação.
Seja como for, o amor em Anna Kariênina é visto em diversas
faces: desde o idealizado com tons de pureza como o de Liévin por Kitty
ao redentor de Nikolai, seu irmão, que doente quase à morte é tratado
com cuidado e carinho pela nova mulher, anteriormente prostituta.
Até no drama de adultério de Stiva é possível ver o amor, o amor
que vive em culpa e que jamais vence esse impulso. Eis como Tolstói o
descreve, quando Stiva abre o coração para Liévin: “O que fazer, diga-
me, o que fazer? A esposa envelhece enquanto você está repleto de

416
GREENBLATT, Stephen. A virada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Edição
Kindle.
417
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pg. 38.
418
BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Autêntica, 2013, pg. 43.
419
Idem.
92

vida. Num piscar de olhos, você se dá conta de que não pode mais amar
sua esposa com amor, por mais que a estime. E então, de repente,
aparece o amor, e você está perdido, perdido!”420
Então, é mesmo do caráter do amor ser refém do destino como o
é ser refém da desordem: “Só existe amor eterno contrariado.”421 Não
pode haver paixão sem luta: “É preciso ser Werther ou nada.”422
Por isso também é tão raro. E por isso, inclusive, é exagerado:
“Por que seria preciso amar raramente para amar muito?”423

A obra: 1873-1877

Uma história de amor. Assim o romance é conhecido pelo senso


comum. Evidentemente, assim pode ser considerado, não estaria
errado, mas um olhar mais atento diria que o romance não é apenas
uma história de amor, mas uma história sobre as consequências do
amor.
Considerada uma obra de realismo, por refletir a realidade de seu
tempo e o caráter transparente das verdades humanas de seu tempo,
Anna Kariênina está posicionada quase ao extremo das obras típicas do
Romantismo, com seus ideais poéticos, subjetivos.
Por exemplo, em vez de idealizar o amor e apresentá-lo como
transcendente e imortal, no realismo os casamentos quase sempre são
retratados como são. Cirurgicamente dissecados, no realismo tornam-se
evidente as convenções sociais de aparência para as quais o casamento
serve, na maior parte das vezes.
Não queremos dizer com isso que a obra – ou as demais obras
de realismo – não possam ser analisadas pela ótica romântica. No caso
de Anna Kariênina ainda há a constatação de que é fruto do próprio
tempo romântico.
Dividido em oito partes, cada parte contém cerca de 30 capítulos.
Há duas linhas mestras sobre as quais a trama se desenrola:

420
Idem, pg. 55.
421
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2017.
422
Idem.
423
Ibidem.
93

A primeira conta sobre a protagonista, Anna Kariênina, uma


mulher casada, mãe de único filho, frequentadora da alta sociedade de
São Petersburgo, Rússia, em meados do século XVIII.
A segunda trata de Konstantin Dmitrievich Liévin, ou
simplesmente Liévin, proprietário de terras, que mora no campo, amigo
ou conhecido de praticamente todos os personagens da história.
Liévin é apaixonado por Ekaterina Alexandrovna Shcherbatskaya,
ou simplesmente Kitty. A principal razão – não única – de Liévin estar no
romance é justamente seu amor por Kitty.
Em Kitty e Liévin é que se revela o contraponto de todas as ideias
acerca do desejo e como deveria ser o amor, como uma função racional,
na vida a dois, ou seja, como deveria ser o casamento.
Liévin e Anna encontram-se uma única vez em toda a história.
Liévin pode ser considerado uma antítese de Anna424. Liévin e Anna
representam forças tão equivalentes, porém, opostas, que Tolstói,
inclusive, cogitou intitular o romance como Dois Casamentos ou Dois
casais. Contudo, não é intuito dessa pesquisa compará-los. O foco está
unicamente em Anna.
Entre essas duas linhas principais há a “intermediária”, que é
composta por outro casal, que liga os dois núcleos basilares. São eles:
Stiepan Oblónski e Darya Alexandrovna Oblonskaya, que no romance
são chamados apenas de Stiva e Dolly. Stiva é irmão de Anna; logo,
Dolly é sua cunhada.
Depois da frase que se tornou mundialmente famosa, dita pelo
narrador onisciente, frase que abre Anna Kariênina – “Todas as famílias
felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira” – a cena
que inicia o romance é sobre Stiva e Dolly. O casal vive um drama de
adultério.
Quem o comete é Stiva. Dolly descobre que o marido está de
caso com a preceptora francesa de seus cinco filhos. Há, contudo, uma
diferença contrastante na maneira como Tolstói aborda o adultério de
Stiva e o de Anna.

424
Como já apresentamos, Liévin é considerado também um alter ego de Tolstói.
94

É o adultério de Stiva que evoca pela primeira vez o nome de


Anna no romance. Porque Stiva está brigado com sua esposa Dolly, ele
dorme no sofá de seu escritório. Quando lê uma correspondência dada
pelo mordomo, Matviei, o rosto de Stiva ilumina-se. Então, o nome de
Anna surge pela primeira vez: “Matviei, minha irmã Anna Arcadiévna vai
chegar amanhã”425.
A razão da ida de Anna à casa dos Oblónski, nas palavras de
Tolstói como o narrador onisciente, é que “a querida irmã de Stiepan
Arcádith podia ajudar na reconciliação do casal”426.
A história de quase 800 páginas427 se passa em quatro anos e
meio: de fevereiro de 1872 a julho de 1876428. Praticamente o mesmo
período em que foi escrito por Tolstói: de 1873 a 1877.
O drama de Anna atende por um único nome, embora represente
dois homens: Aleksiei. O nome do marido é o mesmo nome do amante.
Aleksiei Alexandrovich Kariênin é o marido, servidor público de alto
posto. Aleksiei Kirillovich Vrónsky, o amante, é oficial de cavalaria.
O romance de Anna e Vrónski dura apenas dez meses. Anna
comete suicídio em um domingo de maio de 1876.

Por que Anna?

O que há em Anna que resistiu ao tempo enquanto muitas e


muitas personagens, ao longo dos anos, morreriam na insignificância?
Entre suas “rivais” – principalmente Emma Bovary, de Gustave Flaubert
– Anna foi eleita “indubitavelmente maior: em escopo, em
humanidade”429.
Foi escrito que “Anna não é apenas uma mulher, não é apenas
um esplêndido espécime feminino, e sim uma mulher dotada de uma

425
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
426
Idem.
427
Na versão que analisamos, editada e publicada pela Cosac Naify, em 2013, com
tradução de Rubens Figueiredo.
428
Nabokov, Vladimir. Lições de literatura russa. Três Estrelas: São Paulo, 2014, pg.
197.
429
STEINER, George. Tolstói ou Dostoiévski. São Paulo: Perspectiva, 2006, pg. 35.
95

natureza moral completa, compacta e relevante”430.


Apenas neste primeiro trecho, encontramos duas características
que nos interessam para analisá-la: “dotada de natureza moral
completa” e “relevante”. Ainda há quem disse que “tudo sobre o seu
caráter é significativo e notável, e isso também se aplica a seu amor” 431.
Sua forma de amar.
Por quê? Justamente por sua natureza moral completa, “ela não
pode se limitar a ter um caso clandestino como faz outra personagem do
livro, a princesa Betsy”432.
E por que não? O que há em Anna que a diferencia de Betsy?
Betsy é amiga de Anna, prima de Vrónski, que todos sabiam pelos
círculos sociais ter vários amantes. Durante todo o romance, porém,
Betsy passa incólume pelos julgamentos – e tormentos – pelos quais
Anna passou. O realismo em Anna Kariênina está justamente na
possibilidade de adjetivar todos esses personagens; um julgamento do
qual nenhum leitor ou crítico se abstêm.
Tolstói começou a escrever o romance às vésperas de completar
45 anos. Já tinha quatro filhos e já havia passado uma década desde a
publicação de Guerra e Paz. Nesse ínterim, havia se dedicado a
atividades agrícolas. O período em que escreveu Anna Kariênina foi
emocionalmente muito difícil, uma vez que perdeu três filhos e duas tias
que muito prezava. Tolstói viveu períodos intensos de depressão e por
vezes pensou em abandoná-lo.
Contamos no capítulo anterior sobre o caso real que motivou
Tolstói a escrever sobre o tema. Anna nasceu na mente de seu criador
já como adúltera, uma romântica tola, vítima do diabólico sentimento que
o escritor considerava ser o amor romântico. De alguma forma nasceu já
como vilã, porém uma carismática vilã. O modelo físico de Anna foi a
filha do poeta russo Alexandre Púchkin433.
A visão “realista” de Tolstói sobre a mulher está então embutida

430
Nabokov, Vladimir. Lições de Literatura Russa. Três Estrelas: São Paulo, 2014, pg.
197.
431
Idem.
432
Ibidem.
433
1799-1837.
96

na personagem central do romance, uma vez que Tolstói compreendia a


mulher como “abelhas rainhas que não devem se deixar desviar de seu
papel primordial de reproduzir a espécie”434.
Essa frase foi escrita pelo próprio Tolstói em artigo que nunca
publicou, de 1868, cerca de quatro anos antes de começar a escrever
Anna Kariênina. Injusto seria, contudo, compreender tal frase como se a
mulher fosse apenas mero aparelho reprodutor. Tolstói, na verdade,
tinha em mente apenas tecer uma “defesa do casamento e dos valores
familiares conservadores”435 e tecer, ao mesmo tempo, um “ataque aos
pontos de vista defendidos pela intelligentsia radical, para quem a
emancipação feminina estava em perfeita consonância com seus
objetivos políticos”436.
É por isso que a obra foi compreendida – e ainda é – dessa forma
tão contundente: “A verdade é que não devemos tomar Anna Kariênina
como uma obra de arte; devemos tomá-la como um pedaço de vida”437.

Possíveis leituras de Anna Kariênina

É justamente o realismo que permite ler a obra por diversos


ângulos. Por exemplo, Anna Kariênina pode ser lido sobre as maneiras
pelas quais o amor nos torna mais humanos – para o bem e para o mal.
É o que faz “as famílias felizes e as infelizes, que a primeira frase do
romance contrapõe em tom taxativo”438 chegar ao final da história “com
suas diferenças bem mais nuançadas”439.
Se a obra for analisada pela ótica da crítica à aristocracia russa
da época e o mundo das aparências, encontramos indícios na
passagem em que o narrador onisciente conta sobre os hábitos de

434
BARTLETT, Rosamund. Tolstói – A biografia. São Paulo: Globo, 2013, pg. 240.
435
Idem, pg. 279.
436
Ibidem.
437
STEINER, George. Tolstói ou Dostoiévski. São Paulo: Perspectiva, 2006, pg. 36.
Steiner cita o estudo de Matthew Arnold (1822-1888) sobre Tolstói, um estudo que,
aliás, foi aprovado pelo próprio. Neste estudo, Arnold cita que o que o romance perde
em arte, mas ganha em realidade.
438
FIGUEIREDO, Rubens. Introdução. In: TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo:
Cosac Naify, 2013, pg. 12.
439
Idem.
97

leitura de Stiva e como ele forma suas opiniões:

Stiepan Arcáditch comprava e lia um jornal liberal,


não em excesso, mas daquela tendência seguida
pela maioria. E apesar de nem a ciência, nem a
arte, nem a política o interessarem em especial, ele
sustentava com firmeza, em todos esses assuntos,
as opiniões seguidas pela maioria e pelo seu jornal,
e só as modificava quando a maioria também as
modificava ou, melhor dizendo, ele não as
modificava, mas eram elas mesmas que se
modificavam nele, de forma imperceptível. Stiepan
Arcáditch não escolhia nem as tendências nem as
opiniões, eram antes as tendências e as opiniões
que vinham a ele, assim como não escolhia o
modelo do chapéu ou da sobrecasaca, mas adotava
o que os outros vestiam. E, para ele, que vivia num
ambiente social em que a necessidade de alguma
atividade intelectual se desenvolvia, de hábito, na
idade madura, ter opiniões era tão indispensável
440
quanto ter um chapéu.

Outra possibilidade de ler Anna Kariênina é pelo viés feminista441,


viés esse que condena a visão do autor sobre a mulher livre, que pode
tomar suas próprias decisões e desamarrar-se de um casamento que
não a faz mais feliz. Se tivesse sido escrito em nosso tempo, Anna seria
uma heroína ou apenas uma mulher comum?
É evidente que, para essa leitura, é preciso desconsiderar a
própria época em que o romance foi escrito, assim como o próprio
maniqueísmo que tornaria uma decisão como essa – que envolve o
abandono de um filho – algo fácil. Ou seja, permaneceria a grandeza da
narrativa em observar os sentimentos de todos os envolvidos, e, talvez,
a análise seria rica justamente porque mude o mundo como for, as
paixões ainda nos afetam irremediavelmente.
Mesmo diante de todos os “alertas” sobre as consequências do
440
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pg. 22.
441
Levamos em consideração o anacronismo do termo. Usamos apenas para deixar a
ideia mais clara.
98

adultério, é algo que, sem dúvida, Tolstói não faz, principalmente porque
Tolstói também não deixa de tornar Anna Kariênina uma espécie de
heroína, pela coragem de romper com tudo em nome do que sente, o
seu amor real por Vrónski.
Anna Kariênina pode ser ainda um romance sobre como os
problemas ditos morais pesam mais sobre os ombros de uma mulher
adúltera do que sobre os ombros de um homem adúltero. Se a análise
fosse sobre essa ótica, por exemplo, não apenas o próprio conde
Vrónski seria um exemplo, mas o próprio irmão de Anna, Stiva, como já
apontamos.
Tolstói não esconde o distinto tratamento, como podemos ver em
suas próprias palavras: “Apesar de Stiepan Arcáditch ser totalmente
culpado em relação à esposa e de ele mesmo pensar assim, quase
todos na casa, e até a babá, principal aliada de Dária Aleksándrovna,
estavam do lado dele”442.
O que pesaria em uma análise por essa ótica? A mulher vive o
amor de maneira tão distinta do homem que trair é mais ou menos
grave? Diferentemente de uma análise feminista, sobre os direitos
propriamente ditos, o foco seria a anulação das diferenças entre os
sexos no sentido biológico e psicológico. Ao longo da obra, há diversas
maneiras de interpretar o adultério, inclusive. Os adultérios são
motivados por paixão, por diversão, por autoafirmação ou – até – o não
praticado por covardia, como podemos ver em Dolly, mas que havia o
desejo de ter sido praticado, como uma forma de coragem, de liberdade
e, inclusive, de autoestima.
Na sexta parte do romance, quando Anna já mora com Vrónski,
Dolly resolve visitá-la em sua nova casa, e seus próprios pensamentos a
consomem ao ver camponesas “saudáveis, contentes”443 e pensa sobre
si mesma:

Todas vivem: essas camponesas, minha irmã


Natalie, Várienka, Anna, a quem estou indo visitar,

442
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pg 21.
443
Idem, pg 598.
99

todas, menos eu. E atacam Anna. Por quê? De que


ela é culpada? Ela quer viver. Deus introduziu isso
em nossa alma. É muito provável que eu agisse da
mesma forma. E até agora não sei se fiz bem ao lhe
dar ouvidos naquela horrível ocasião, em que ela
veio ter comigo, em Moscou. E deveria ter
abandonado meu marido e recomeçado a minha
444
vida. Eu poderia amar e ser amada, de verdade.

O tema do adultério é muito mais latente do que o próprio


suicídio, que é, também, uma temática forte, uma vez que Liévin pensou
em suicídio e Vrónski tentou suicídio, embora a única “bem-sucedida”
tenha sido mesmo Anna.

As impressões de Vrónski e Kariênin

Vrónski é descrito por Tolstói dessa forma: “Muito rico, inteligente,


fidalgo, no caminho de uma brilhante carreira militar, e um homem
encantador. Não se poderia desejar nada melhor”445.
Já nas palavras do próprio Vrónski, Kariênin soava como “afetado
e enfadonho”446, mas ao falar publicamente sobre ele: “Sei que é
inteligente, instruído, um tanto religioso”447. Na visão de Kitty, o marido
de Anna tinha um aspecto “nada poético”448. As mulheres de Tolstói
nesse romance apreciam características românticas em um homem.
Liévin perde Kitty no primeiro momento por falta desse encanto.
Kariênin, da mesma forma. Vrónski é então o símbolo desse feitiço
encantador que leva a vida real a outras dimensões – sempre, claro,
fantasiosas. Inclusive Dolly, quando visita Anna e Vrónski na sexta parte,
compreende porque ambas – Anna e Kitty – se apaixonaram por
Vrónski.

444
Ibidem.
445
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pg. 57.
446
Idem, pg. 71.
447
Ibidem.
448
Ibidem, pg. 84.
100

Anna e Vrónski

O encontro de Anna com Vrónski acontece no capítulo XVIII, da


primeira parte do romance. Quando o trem em que está Anna e a mãe
de Vrónski chega à estação, Tolstói descreve assim:

Vrónski seguiu o condutor até o vagão e, na entrada


do compartimento, parou a fim de dar passagem a
uma senhora que desembarcava. Graças ao tino
habitual em um homem mundano, com um único
olhar para o aspecto dessa senhora, Vrónski
classificou-a como pertencente à mais alta
sociedade. Desculpou-se e estava prestes a entrar
no vagão, mas sentiu necessidade de observá-la
outra vez - não por ser muito bonita, nem por ter
uma graça elegante e discreta, que se percebia em
toda a sua pessoa, mas porque, na expressão do
rosto gracioso, ao passar por ele, havia algo
especialmente meigo e delicado. Quando olhou
para trás, ela também virou a cabeça. Os olhos
brilhantes e cinzentos, que pareciam escuros devido
aos cílios espessos, pousaram com atenção e
simpatia no rosto de Vrónski, como se ela o tivesse
reconhecido, mas, logo depois, voltou-se para a
multidão que se aproximava, como que a procura de
alguém. Nesse breve olhar, Vrónski teve tempo de
perceber uma vivacidade contida, que ardia em seu
rosto e esvoaçava entre os olhos brilhantes e o
sorriso quase imperceptível, que arqueava os lábios
rosados. Parecia que o excesso de alguma coisa
inundava seu ser é, a despeito da vontade dela, se
expressava, pra no brilho do olhar, ora no sorriso.
Intencionalmente, a mulher apagou a luz dos olhos,
mas essa mesma luz cintilou, a sua revelia, no
449
sorriso quase imperceptível.

“Tino habitual em um homem mundano”. O narrador Tolstói já

449
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pg. 73.
101

sentencia Vrónski como um homem desprovido de uma delicadeza


moral que se revelaria em posturas impecáveis. A sedução é sempre
transgressora.
Tolstói descreve Anna, pela percepção de Kitty, dessa forma:

Anna não parecia uma dama da sociedade, nem a


mãe de um menino de oito anos, mas antes uma
jovem de vinte anos, pela flexibilidade dos
movimentos, pelo frescor e pela vivacidade que
nunca abandonavam o seu rosto e que se
desprendiam ora do sorriso, ora do olhar, exceto
pela expressão séria, por vezes triste, dos seus
olhos, que impressionava e atraía Kitty. Sentia que
Anna era totalmente natural e nada escondia, mas
que havia nela um mundo diferente, mais elevado,
de interesses complexos e poéticos, inacessíveis
450
para Kitty.

A conexão irremediável

“Vrónski olhava para Kariênina sem desviar os olhos e sorria, sem


saber por quê”. O exato momento em que Anna e Vrónski se conectam
de maneira irremediável é quando, ainda na estação, um homem é
esmagado pelo trem, e Anna, comovida não só pelo horror da cena,
pensa além, na viúva, e como ela ficará desamparada. Esse é o
momento em que o tino habitual em um homem mundano emite um
alerta e o leva à ação. Assim, Vrónski acaba por doar duzentos rublos
dados à viúva.
Quando Anna narra a Dolly sobre as qualidades de Vrónski
contadas por sua mãe durante a viagem, que chega a chamá-lo de
“herói”, Anna omite, porém, sobre os duzentos rublos dados à viúva na
estação. Tolstói mostra, neste trecho, o que chamamos de conexão
irremediável. Vejamos como o autor narra: “Mas nada contou sobre os
duzentos rublos. Por algum motivo, não lhe agradava lembrar-se disso.

450
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pg. 83.
102

Sentia haver aí algo que lhe dizia respeito, algo que não deveria
existir”451.

Anna pelo olhar do cristianismo ortodoxo

Pelo olhar do cristianismo ortodoxo, Anna Kariênina é uma obra


de “advertência contra o mito e o culto do amor”452. A obra pode ser vista
como uma prova de que o eros não tem lugar na prática cristã, que os
impulsos para o prazer devem ser reprimidos através de uma vida
dedicada aos ideais religiosos: à observância das leis religiosas, à
oração, às vezes até ao retiro.
O homem deve transcender o desejo. É na concepção ortodoxa
que nasce o “sonho de condição angelical assexuada, o medo do
feminino, o mal-estar de tantos Padres da Igreja diante do texto do
Gênesis que celebra o encontro maravilhado do homem e da mulher no
paraíso, portanto, antes da queda”453. E não só, foi na “própria
intensidade do prazer erótico”454 que viram a “origem inelutável da
morte”455.
A visão ortodoxa deixou de considerar a condição paradisíaca do
amor e até a “negação da liberdade libertadora de Jesus em relação às
mulheres mais “impuras” ou às mais “pecadoras” segundo a Lei, e a
alusão à intenção primeira do Criador, da “consubstancialidade” original
do homem e da mulher: serão uma só carne”456.
A moralidade é então a pedra fundamental de Anna Kariênina,
mas outros sub-temas permeiam o romance como a imprevisibilidade do
destino e a impotência do indivíduo diante da contingência.
Grosso modo, o interesse de Tolstói estava menos no amor de
Anna propriamente dito, e mais nas consequências desse amor, e
consequências que Tolstói não deixou subentendidas, o suicídio é

451
Ibidem, pg. 85.
452
ROTHMAN, Joshua. Is “Anna Karenina” a love story? The New Yorker, 2012.
453
CLEMENT, Olivier. Apresentação. IN: EVDOKIMOV, Paul. O sacramento do amor.
São Paulo: Edições Paulinas, 1989, pg. 5.
454
Idem.
455
Ibidem.
456
Ibidem, pg. 6.
103

apenas a consequência mais clara e violenta. Tolstói pensava no amor


paixão como uma “maldição”457.
Quando contrasta com Liévin e Kitty, Tolstói os torna uma espécie
de estandarte, que fulgura ainda mais porque o casal é simples, de
ambições simples – ou até poderíamos dizer, um casal sem ambições. A
história de Kitty e Liévin é “até espiritual”458.
Tolstói, contudo, está em Anna e está em Liévin. Ou, traçando um
paralelo entre expectativa e realidade, Tolstói tem os desejos espirituais
de Liévin, e de fato uma rotina simples, disciplinada para coisas do
espírito; mas parte de sua alma é como Anna, a parte de sua alma que é
desarranjada, que luta alucinadamente contra um vazio; vazio esse que,
aliás, está sempre à espreita. Esse vazio Tolstói não vê com bons olhos,
e para ele é o responsável pelo mal que praticamos a nós mesmos e
aos outros. Como Anna assim fez. Quando ora está em Anna e ora em
Liévin, Tolstói ora está como um homem, incontestavelmente humano,
por isso falho, ora como agente religioso. Anna Kariênina é Tolstói em
seu duplo.
Então, Anna Kariênina – como os demais e principais romances
de Tolstói – não deixa de revelar essa busca de sentido do autor e o
quanto essa busca o faz sentir-se impotente. Contudo, essa busca pode
vir a dar-se por encerrada por meio do casamento ideal, segundo o olhar
religioso ortodoxo.

Felicidade Conjugal

Felicidade Conjugal é considerada a primeira grande novela de


Liev Tolstói, publicada em 1859 e conta a história de amor entre Mária
Aleksândrovna e Sierguiéi Mikháilitch. Ela é uma jovem sonhadora, ele
já um homem mais maduro. Toda a história é narrada por Mária,
relembrando os tempos de moça da roça.
Toda a visão de casamento de Sierguiéi Mikháilitch é pautada
pelo ideal de amor pelo outro, como pontuamos no capítulo anterior.

457
ROTHMAN, Joshua. Is “Anna Karenina” a love story? The New Yorker, 2012.
458
Ibidem.
104

Quando encerramos o capítulo anterior apontando que Felicidade


Conjugal é que daria passagem para Anna Kariênina, é porque
chegamos à conclusão de que essa visão sobre o amor e sobre o desejo
em Tolstói revela-se mais claramente nesta novela, como veremos.
Felicidade Conjugal divide-se em duas partes. A primeira é
claramente um ideal. Uma fantasia puramente romântica na qual um ser
completa o outro indiscriminadamente. A segunda parte é mais sombria,
dissolve toda a cortina de ilusões que cegou Mária, quando jovem,
fazendo-a acreditar que viveria apenas do amor, e que o amor bastaria e
acabaria por enfraquecer assim todas as outras vontades que qualquer
um pode vir a ter ao longo da vida matrimonial. Algo que acontece
semelhantemente com Vrónski.
Apenas dois anos antes de Tolstói ter escrito Felicidade Conjugal
é que o romance Madame Bovary tinha sido publicado, abordando mais
ou menos o mesmo tema, embora Felicidade Conjugal não apresente
como solução ao “tédio da mulher” algo tão trágico como foi o fim de
Emma. Tédio da mulher porque Tolstói coloca nitidamente sobre os
“ombros” de Mária Aleksândrovna as razões de seu casamento com
Sierguiéi Mikháilitch quase ter naufragado.
Quase. Porque a solução com a qual Tolstói encerra o romance
não deixa de ser também uma resposta cristã: o casamento enquanto
sacerdócio conjugal459.
O casamento enquanto sacerdócio conjugal seria uma “igreja
doméstica”460 e da mesma forma importante do que o estado
monástico461. Enquanto em um vigora a abstinência sexual, no outro o
amor pelo cônjuge, e através do ato sexual, o mesmo caminho para uma
vida plena: “O estado conjugal e o monástico são duas formas de
castidade permanentes a seus respectivos modos de existência”462.
A visão cristã ortodoxa considera que no casamento, “a natureza
do homem é mudada, como é mudada, em outros moldes, a daquele

459
EVDOKIMOV, Paul. O sacramento do amor. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, pg.
54.
460
Idem, pg. 72.
461
Ibidem.
462
Ibidem, pg. 73.
105

que recebe o hábito. Um grande parentesco interior une os dois


estados”463.
As promessas trocas pelos noivos, pelos símbolos e pelo próprio
vocabulário particular, de alguma formam os levam a um “estado
monástico particular, pois existe, também aí, uma morte ao passado e o
nascimento para nova vida”464. Até o rito do ingresso nas ordens
religiosas serve-se de simbolismos conjugal”465 – noiva, esposa.
Nos casamentos ortodoxos antigos havia, inclusive, a “tonsura
monástica”, que consistia em raspar os cabelos no topo da cabeça, em
círculo. O casamento, nesse sentido, “compreende interiormente o
estado monástico”466 e “ambos convergem como dois aspectos da
mesma realidade virginal do espírito humano”467. Ainda segundo uma
tradição antiga, encarava-se o “tempo do noivado como noviciado
monástico e prescrevia ao novo casal, após a cerimônia do casamento,
um retiro em algum convento, a fim de se prepararem para entrar em
seu “sacerdócio conjugal”. O clima monástico, tão profundamente
aparentado ao casamento, em seu próprio simbolismo, torna ainda mais
límpida a alegria das núpcias”468.
Quando Mária Aleksândrovna se apaixona por Sierguiéi
Mikháilitch, ela vive os encantos do amor não de forma idealizada, mas
digamos que seja a outra faceta do amor, a que torna a vida melhor, e
revela de nós o que sequer conhecíamos e nos torna melhores porque
nos leva à ação. Essa ação é uma ação em Cristo, que encaminha para
o auto-sacrifício e tece uma relação ética, que dentro da perspectiva da
alteridade e da responsabilidade é como se trouxesse para o nosso
tempo um pedaço da eternidade. Seria o céu na terra.
Esse amor, entre um homem e uma mulher, não é nada diferente
do amor edênico, antes da queda, evidentemente, segundo a visão
ortodoxa: “O homem significa o Cristo, a mulher significa a Igreja. O
amor do Cristo e da Igreja erige-se em arquétipo do casamento e

463
Ibidem, pg. 75.
464
Ibidem.
465
Ibidem.
466
Ibidem.
467
Ibidem.
468
Ibidem.
106

preexiste, assim, ao casal, porque Adão é criado à imagem do Cristo e


Eva, à da Igreja. Compreendemos agora por que o primeiro casal e
todos os casais referem-se a esta única imagem”469. O ritual ortodoxo
reforça: “Nem o pecado original nem o dilúvio, nada deteriorou a
santidade da união conjugal”470. Ou seja, “nem a queda nem o tempo
alteraram sua realidade sagrada”471.
A perspectiva pela qual Tolstói observa o amor entre um homem
e uma mulher não é uma perspectiva de um amor idealizado, mas de um
amor prático. Por isso que ainda que haja leve semelhança entre Mária
e Emma, Mária chega ao fim do romance ciente do quanto, ainda que
machucado, esse amor tem uma missão que está fora de si mesmo,
está no outro, e até no futuro, na continuação da vida.
Mária relembra, ainda jovem, e descreve a revolução que o amor
que passou a sentir por Sierguiéi causou nela. Eis nas palavras de
Tolstói, uma das mais belas passagens de sua literatura:

Os livros, que eu lera até então unicamente para


combater o tédio, tornaram-se de súbito para mim
um dos maiores prazeres da existência; e tudo isto
unicamente porque eu conversara com ele sobre
livros, porque os lemos juntos e porque ele os trazia
para mim. Antes, os estudos com Sônia, as aulas
que eu lhe dava, eram uma obrigação penosa, que
eu me esforçava em cumprir unicamente por
consciência do dever; ele assistiu, porém, a uma
aula, e acompanhar os sucessos de Sônia tornou-se
então uma alegria. Parecia-me antes impossível
aprender toda uma peça de música; mas agora,
sabendo que ele a ouviria e que talvez me
elogiasse, tocava quarenta vezes o mesmo trecho,
de modo que a pobre Kátia enfiava algodão nos
ouvidos, e eu não me aborrecia absolutamente. As
mesmas velhas sonatas agora fraseavam-se de
maneira totalmente diversa, saíam bem diferentes e

469
EVDOKIMOV, Paul. O sacramento do amor. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, pg.
135.
470
Idem.
471
Ibidem.
107

muito melhores. Mesmo Kátia, que eu conhecia e


amava como a mim mesma, transformara-se aos
meus olhos. Somente agora eu compreendi que ela
não era de nenhum modo obrigada a ser mãe,
amiga, escrava, como fora até então conosco.
Compreendi toda a abnegação e devotamento
dessa criatura repassada de amor, compreendi tudo
o que lhe devia; e passei a amá-la ainda mais.
Também ele ensinou-me a olhar os nossos
camponeses e criados, as empregadas domésticas
de maneira totalmente nova. É ridículo dizê-lo, mas
até os dezessete anos eu vivi em meio a essa
gente, mais estranha a ela que em relação às
pessoas que eu jamais conheci; nunca pensei que,
tal como eu, eles tivessem amores, desejos,
comiseração. O nosso jardim, os nossos bosques,
os nossos campos, que eu conhecia desde tanto
tempo, tornaram-se de repente novos e belos para
mim. Não era em vão que ele dizia existir na vida
apenas uma felicidade indiscutível: viver para
outrem. Parecia-me estranho, eu não compreendia
isto; mas essa convicção, mais do que a ideia, já me
penetrava o coração. Ele desvendou para mim toda
uma existência de alegrias no presente, sem alterar
nada em minha vida, sem acrescentar nada, além
de si mesmo, a cada impressão. À minha volta, tudo
era quieto, como o fora desde a minha infância, mas
bastava que ele chegasse, e tudo passava a falar,
todas as coisas pediam entrada em minh‟alma, uma
472
de cada vez, e enchiam-na de felicidade.

Isso era, na visão de Tolstói, a potência do amor em ação. A


potência transformadora do amor que, sem explicação, também tem a
potência destruidora, como por sua vez vemos em Anna. A descrição
que Mária faz de si mesma, como vimos acima, não seria diferente da
que Anna faria em seu lugar. A diferença entre as mulheres é que Anna
casou-se por uma convenção social, não do puro interessante, mas um

472
TOLSTÓI, Liev. Felicidade Conjugal. Editora 34: São Paulo, 2009, pg. 26.
108

“casamento da razão”473, que difere do amor como “emoção pura,


impulso espontâneo irredutível a qualquer cálculo e contraditório com
qualquer estratégia racional de casamento”474.
Mesmo já casada, é com Vrónski que Anna experimenta todas as
mudanças que o amor pode realizar no corpo, na psique, no espírito
devoto, como o que tinha antes do fatídico dia na estação de trem.
O amor então é esse que “pode levar-nos ao desespero ou à
deliciosa experiência de uma reinvenção da vida através da qual gostos
são descobertos e mundos desconhecidos, colocados aos nossos pés.
Mas, ao mesmo tempo, o amor pode ser aquele veneno que obscurece
a visão e destrói todo significado da vida que não sirva a ele, o amor” 475.
Em que Mária e Emma – e em certo sentido, Anna também – se
assemelham para que as obras Felicidade Conjugal e Emma Bovary
sejam não comparadas, mas emparelhadas?
Anna estaria à parte porque “sua natureza leal e apaixonada torna
impossível a simulação e o segredo”476 e juntá-las seria “uma
simplificação excessiva”477. A natureza de ambas é completamente
diferente e o que as levam ao adultério também. Anna dá a Vrónski toda
sua vida, consente em “se separar do filhinho adorado – apesar da
agonia que lhe causa não o ver – e vai ver com ele, de início no exterior,
na Itália, e depois em sua propriedade na Rússia Central, conquanto
esse romance “aberto” faça com que a rotulem como uma mulher imoral
os olhos de seu círculo também imoral”478.
Então, quando citamos que Tolstói colocou nitidamente sobre os
“ombros” de Mária Aleksândrovna as razões de seu casamento com
Sierguiéi Mikháilitch quase ter naufragado foi porque a personagem, em
dado momento de seu casamento, sucumbe ao tédio, começando assim
a sentir falta de algo, mas não se sabe o que é esse algo, mas sabe-se

473
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia – o romantismo na
contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015, pg. 65.
474
Idem.
475
PONDÉ, Luiz Felipe. Amor para corajosos. São Paulo: Planeta, 2017, pg. 15.
476
NABOKOV, Vladimir. Lições de literatura russa. São Paulo: Três Estrelas, 2014, pg.
197.
477
STEINER, George. Tolstói ou Dostoiévski. São Paulo: Perspectiva, 2006.
478
NABOKOV, Vladimir. Lições de literatura russa. São Paulo: Três Estrelas, 2014, pg.
197.
109

que era um ímpeto – nada mais romântico: “Eu necessitava que o


sentimento nos dirigisse na vida, e não que a vida dirigisse o
sentimento”479.
Mária sentia-se “solitária”480 e começava a perceber que “a vida
se repetia”481. Percebendo a tristeza da esposa, a sugestão de Sierguiéi
Mikháilitch foi a de ir morar na cidade.
Na vida pessoal de Tolstói algo semelhante aconteceu. Não é
sem razão que Felicidade Conjugal também seja lido como
autobiográfico. Sônia se sentia entediada em Iásnaia Poliana e
conseguiu convencer Tolstói, depois de muitas brigas, a ir morar em
Moscou.
Na cidade, o casamento de Mária Aleksândrovna e Sierguiéi
Mikháilitch foi colocado à prova, e de maneira muito perspicaz – não
exagerada, mas absolutamente real – Tolstói vai narrando como o “céu
na terra” definitivamente não existia mais.
Tolstói sabia que era uma inclinação romântica esse ímpeto que
Mária sentia. Tanto que numa cena cotidiana do casal, Tolstói cita um
verso do escritor e poeta romântico russo M. i. Liérmontov482: “...E o
insensato quer tormenta. Como se nela houvesse paz!”483.
Cada vez mais entregue às festas e aos jantares da alta
sociedade de São Petersburgo, Mária vai se distanciando cada vez mais
marido e também do único filho. Diferentemente de Anna, Mária sequer
o considera. Até que quase chega a trair o marido por uma atração
fugaz, como as de Emma. Esse quase é que praticamente a resgata e a
leva de volta para Sierguiéi e a vida que tinham juntos no passado,
embora nada mais tenha disso do mesmo jeito.
A solução que Tolstói propõe é bastante interessante. Quando o
amor romântico cessa entre Mária Aleksândrovna e Sierguiéi Mikháilitch,
dá-se início ao amor como deveria ser, segundo Tolstói:

_Não procuremos repetir a vida – prosseguiu ele –,

479
TOLSTÓI, Liev. Felicidade Conjugal. Editora 34: São Paulo, 2009, pg. 71.
480
Idem, pg. 69.
481
Ibidem, pg. 70.
482
1814-1841.
483
TOLSTÓI, Liev. Felicidade Conjugal. Editora 34: São Paulo, 2009, pg. 76.
110

não mintamos a nós mesmos. E quanto ao fato de


não termos mais os sobressaltos e inquietações de
outros tempos, que seja graças a Deus! Não temos
o que procurar, nem motivos para ficar perturbados.
Já encontramos, e coube-nos felicidade bastante.
Agora, já temos que nos apagar e dar caminho aí
está a quem – disse, apontando a ama que se
acercara com Vânia e parara à porta do terraço. –
Assim é, querida amiga – concluiu, inclinando para
si a minha cabeça e beijando-a. Quem me beijava
não era um amante, mas um velho amigo. (...) A
partir desse dia, terminou meu romance com meu
marido; o sentimento antigo tornou-se uma
recordação querida, algo impossível de trazer de
volta, e o novo sentimento de amor aos filhos e ao
pai dos meus filhos deu início a uma nova vida, de
uma felicidade completamente diversa, e que ainda
484
não acabei de viver...

Felicidade Conjugal revela o escritor “moralista feroz, implacável,


mas, ao mesmo tempo, sabia como ninguém expressar a atração do
carnal e as grandes fraquezas humanas tinham nele um observador
genialmente perspicaz”485.

Traços do romântico

É claro que tecer um quadro de características que definem um


romântico é correr o risco não da imprecisão, mas da superficialidade,
uma vez que enquanto humanos todos somos muito mais complexos e
versáteis. Contudo, se podemos arriscar uma descrição, seria dessa
forma:
O romântico é sempre atraído pelo inacessível; aquilo que ele
considera o ideal nunca está no presente, sempre no futuro ou no
passado. O romântico tende sempre à melancolia, à tristeza, costuma

484
Idem, pg.114.
485
SCHNAIDERMAN, Boris. Posfácio. IN: TOLSTÓI, Liev. Felicidade Conjugal. Editora
34: São Paulo, 2009, pg. 116.
111

ser bastante artístico, sensitivo até.


O romântico está sempre concentrado naquilo que está ausente,
vive numa sensação de perda constante e, curiosamente, é exatamente
desse estado que tira sua energia criativa. É como se todos os
sentimentos sombrios causassem uma ressonância emocional, o que
acaba por produzir uma energia inigualável – embora também sombria.
Quando não está desconectado do mundo real – e vivendo em
seu mundo à parte – o romântico costuma ser muito criativo e com estilo
de vida vibrante, que foge do banal, do cotidiano, como se sua vida
fosse um verdadeiro romance. O romântico está sempre comprometido
com a beleza e com as emoções passionais, principalmente nos
grandes acontecimentos da vida como nascimento, sexo e morte.
Esse movimento que faz em busca desse algo superior é o que
pensa que irá completá-lo. Se o romântico encontra esse sentido, vive
menos nos extremos emocionais e tem uma vida de mais equanimidade
– logo, de menos arroubos passionais.
Uma vez que consegue construir algo impressionante, em forma e
conteúdo, o romântico livra-se da sensação de vergonha486, oriunda de
uma autoestima quase sempre em baixa.

O amor no romântico

O romance Anna Kariênina enquanto tal não é uma obra


considerada romântica. Sequer seus personagens podem ser nomeados
como “espíritos românticos”. Tampouco a inspiração religiosa de Tolstói
é romântica. Anna, pelo nosso olhar, apenas foi acometida por esse
sentimento transformador que é o amor romântico.
Por isso também é possível ler a obra à luz do Romantismo. Anna
Kariênina à luz do Romantismo é a visão antipática às regras e também
o “protesto apaixonado e contraditório contra o mundo burguês
capitalista”487, o que é uma crítica de Tolstói contra o mundo
aristocrático em que viveu e há nisso grandes lampejos românticos.

486
Idem.
487
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: LTC, 1987, pg. 65.
112

Entretanto, focamos nosso objeto no holofote do amor romântico.


Essa “doença da alma”488, já diagnosticada pelos medievais.
O termo “amor romântico” leva-nos de volta a um “passado
preciso: a Idade Média”489. É nesse passado que está a principal
inspiração do amor romântico: o amor cortês medieval.
Os principais escritores românticos dos séculos XVIII e XIX –
período que denominamos como Romantismo – se inspiraram no amor
cortês medieval para criar suas obras. Essa inspiração – e motivação
dos escritores – tornou as obras tão impactante que quase não se fala
mais de amor cortês e sim de amor romântico. Em que consiste, porém,
esse amor? Por que ele é diferente?
O amor romântico – ou cortês – é como um pêndulo entre o
êxtase e o abandono. Mora na alma romântica a concepção de que algo
está sempre faltando. Quando acredita ter encontrado, o apaixonado
teme ser abandonado. Como se fosse uma fonte original de entusiasmo,
sem o qual não pode viver, o apaixonado precisa desse entusiasmo para
se sentir amparado. Ou desse amor. E esse amor só pode acontecer de
maneira autêntica. Autenticidade é uma palavra muito substancial no
que diz respeito ao Romantismo. Por isso o amor romântico é sempre
espontâneo. E por isso não é possível torná-lo compatível com o
“casamento da razão”.
Não é que o amor romântico é imune a qualquer tipo de norma.
Talvez seja exatamente o contrário, ele sucumbe à normatização
justamente porque só pode existir de forma espontânea. A questão é
que a ideia do amor romântico fincou raízes tão aparentemente
impossíveis de serem arrancadas do coração humano que há tentativas
desde então de colocá-lo em fórmulas, métodos, estilo de vida e, sim,
em instituições. Só que essa ideia de que os relacionamentos amorosos
devem ser todo o tempo vibrantes e apaixonados contrapõe-se à
realidade da própria vida, do cotidiano.
Contudo, há dois pontos que não podem ser confundidos: o

488
PONDÉ, Luiz Felipe. Amor para corajosos. São Paulo: Planeta, 2017, pg. 13.
489
LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia – o romantismo na
contracorrente da modernidade. São Paulo: Boitempo, 2015, pg. 65.
113

primeiro, que o nível de satisfação de um “espírito romântico” é tão


elevado que torna a vida real sempre aquém; segundo, que a
expectativa do amor romântico como um direito, ou algo que possa ser
adquirido, como se fosse uma mercadoria, está aberto a todos. Ou seja,
se duas pessoas estão dispostas a se amar, o amor romântico torna-se
uma possibilidade. O que não é essencialmente uma verdade.
Porque sua principal força está na idealização daquele que se
ama, o amor romântico acontece a maior parte do tempo na imaginação.
Por isso que a distância – ou uma eventual impossibilidade de viver esse
amor – acaba por aumentá-lo. No amor romântico há uma busca
ininterrupta da emoção. E essa emoção não precisa necessariamente
ser positiva: carinho, companheirismo, lealdade, validação desse a
quem se ama, entre outros. Essa emoção pode, sim, ser negativa:
ciúme, sofrimento, sensação de diminuição quando esse outro não
reconhece qualquer qualidade ou ação do apaixonado. O que, logo,
torna a vida bastante dramática.
A meta do “espírito romântico” no amor é sempre aprofundar os
laços afetivos. Ele deseja a sensação única e intransferível de ter
daquele que se ama aquilo que ninguém mais tem. Por sua vez, aquele
que não é um espírito romântico, mas deseja viver a experiência, pode
vir a ter os mesmos sintomas, embora não seja capaz de “morrer por
amor”. Os sintomas independem de um tempo histórico, mas foram os
românticos históricos que construíram a imagem de que “homens e
mulheres que não se vendem e morrem de amor são os verdadeiros
homens e mulheres perseguidos por um mundo que cedeu ao interesse
material como única forma de vida”490.
Há certo desprezo, por parte dos românticos, pela vida comum e
pela superficialidade dos sentimentos. A beleza do amor é enaltecida
pela falta, pela fantasia, pela arte e, principalmente, pelo trágico.
Não é sem razão que muitas vezes o apaixonado valoriza o ser
amado mais quando ele está longe; e nos momentos em que estão
juntos o apaixonado sente que algo está errado. É uma característica

490
PONDÉ, Luiz Felipe. Amor para corajosos. São Paulo: Planeta, 2017, pg. 35.
114

forte dos românticos no amor que mantenham um amor “ata-desata”491,


que é exatamente o que reforça, como um ciclo vicioso, a sensação de
abandono e também, de alguma forma, aprofunda os sentimentos. Esse
ciclo vicioso é composto por quatro etapas: desejo, aquisição, desilusão
e rejeição492.
É complexo assim na teoria como o é na prática. A “profundidade”
dos próprios sentimentos dá ao romântico apaixonado a sensação de
superioridade ou de ser alguém especial. Essa superioridade se revela
também no vestir, na forma de se apresentar ao mundo, que sempre
será de maneira original – ou mesmo luxuosa. Há um apego muito forte
à beleza e à estética ou mesmo a uma postura que mostre que está
“acima”.
Nada, contudo, é capaz de arrancar de dentro do romântico essa
sensação de perda ou de abandono. E daí torna-se evidente o pouco
valor que o romântico dá à autopreservação:

Viver no gume da faca é atraente quando você


sente a tristeza da sua condição. Suspenso entre a
esperança e o desespero, por que não jogar a
prudência para o algo? O caráter temerário tem
certo lado suicida, uma forma de abandonar-se ao
destino. A crise interna gerada por ciclos de desejo
e perda empresta extraordinária vitalidade a eventos
comuns. Dançar à beira do abismo poupa você da
insípida mecânica da vida. Viver por um fio traz
sentido e intensidade a uma vida que, de outra
493
forma, pareceria trivial .

Interessante como Goethe, na primeira grande obra sobre o amor


romântico, Os sofrimentos do jovem Werther, compreende o caráter
catastrófico – por isso mesmo incontrolável – que pode vir a ter o amor:
“O ser humano é sempre o ser humano, e a inteligência de que
eventualmente dispõem pouco ou não importa, quando a paixão

491
No original, push-pull relationships.
492
Ibidem, pg. 140.
493
Ibidem, pg. 143.
115

devasta”494.

O amor em Anna

Do momento em que Anna conhece em Vrónski até a hora de sua


morte, Anna experimenta todos os sintomas do amor romântico até que
culmina em sua morte. A religião em nenhum momento foi uma saída
para Anna, tamanha a “metástase” do amor em sua alma. Tolstói sabia e
justificou: “Anna sabia de antemão que o socorro da religião só seria
possível sob a condição da renúncia daquilo que constituía para ela todo
o sentido da vida”495. Anna encontrou o que os românticos buscam: o
sentido. Algo que foi negado através da paixão:

O cristianismo nunca foi gentil com os amantes. O


celibato era louvado é admirável, e, portanto,
impingido aos padres, monges e freiras católicas. A
luxúria foi classificada como um dos sete pecados a
partir do século VI. O termo ainda é usado de forma
pejorativa para rotular o desejo sexual como
excessivo, violento, bárbaro e irreprimível, em vez
496
de audacioso, apaixonado, vivo e enérgico .

É do século XII em diante que o casamento passa a ser “exposto


ao desprezo, enquanto a paixão é glorificada na medida mesmo de sua
insensatez, do sofrimento que inflige, da devastação que exerce à custa
do mundo e do próprio homem”497.
Esse é o preço que paga Anna. E às suas próprias custas: “Não
fiz mal a ninguém, senão a mim mesma. Tenho esse direito, não
tenho?”498.
Anna, depois que se apaixona, passa, inclusive, a reparar em

494
GOETHE, Johann Wolfgang. Os sofrimentos do jovem Werther. Porto Alegre:
L&PM, 2010. Edição Kindle.
495
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pg. 290.
496
MANGUEL, Alberto. Uma História da Leitura. São Paulo: Companhia das Letras,
1997. Edição Kindle.
497
ROUGEMONT, Denis de. O amor e o Ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988,
pg. 59.
498
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pg. 605.
116

detalhes no marido que até então não a incomodavam, mas passaram a


irritá-la, como suas orelhas: “Ah, meu Deus! Por que suas orelhas são
assim!?, pensou ela, enquanto observava sua figura fria e imponente e,
em especial, a cartilagem das orelhas que agora a impressionaram, e
que pareciam escorar a aba do chapéu redondo”499.
Já tomada pela paixão, Anna, inclusive, se percebe dissimulada.
“Anna falava o que lhe vinha aos lábios e, ao ouvir-se, ela mesma se
surpreendia com sua capacidade de fingir”500. Em vários momentos
Tolstói chama isso de “espírito da falsidade”. Espírito de qualquer coisa
tem um significado totalmente religioso.
É como se até Vrónski – ou até se apaixonar verdadeiramente –
Anna não tivesse se dado conta do espectro de sentimentos tão
alargado em que um indivíduo pode viver. Seu marido, até Anna se
apaixonar, também desconhecia a si mesmo. Tolstói chama o ciúme de
demônio. Para o marido cristão, devoto, é um demônio que nunca visitou
sua morada interior: “Como você sabe, considero o ciúme um
sentimento ofendido é humilhante e jamais admitiria ser guiado por tal
sentimento; mas há certas leis de decoro que não podemos transgredir
impunemente”501. Esse sentimento que até então Kariênin acreditou que
poderia evitar, várias vezes o atormenta até o fim do romance.
Logo no começo do romance, antes mesmo de ser admitido
qualquer sentimento, mesmo por parte de Anna, o marido adverte-a, e
lembra os princípios religiosos que o regem: “Sou obrigado, diante de
você, diante de mim e diante de Deus, a apontar os seus deveres.
Nossas vidas estão unidas, e não por pessoas, mas sim por Deus. Só
um crime pode romper essa união e um crime desse tipo trará sobre
você um pesado castigo”502.
Até essa parte do romance, o marido lembra Anna apenas do
compromisso, da aparência, e não menciona seus próprios sentimentos,
enquanto até essa mesma parte do romance, Vrónski só falou a Anna
sobre seus sentimentos e o quanto a vida dele mudou desde o encontro

499
Idem, pg. 112.
500
Ibidem, pg. 153.
501
Ibidem, pg. 154.
502
Ibidem, pg. 155.
117

na estação. O que faltava em Anna e Kariênin era a intimidade que dá


cor ao amor. A sensação de que viviam algo juntos, o que remete ao
que apontamos sobre aprofundar os sentimentos. Em algum momento
do romance, Anna chega a chamar Kariênin de “máquina ministerial” 503.
Na mesma cena, irritada, Anna “mexe nos cabelos para tirar os
grampos e então o marido diz algo que a faz “estremecer”: “talvez eu
esteja enganado, mas, creia, se digo isso, o faço tanto por mim quanto
por você. Sou seu marido e a amo”504.
Eis que o assunto amor surge. E a impacta. Nas palavras de
Tolstói, “o rosto dela esmaeceu e extinguiu-se o brilho jocoso em seu
olhar; mas a palavra “amo” mais uma vez despertou sua indignação”505.
Fica nítido que neste momento ela compara o amor dele com o
que vem mostrando Vrónski. Tolstói revela os pensamentos de Anna:
“Ama? Será ele capaz de amar? Se não tivesse ouvido dizer o que
significa amor, jamais empregaria essa palavra. Ele nem sabe o que é
amor”506. O sentimento de superioridade que apontamos. Anna, sim,
estava conhecendo o amor. Importante reforçar que neste trecho ela
ainda não havia admitido sequer para si mesma que estava apaixonada.
Antes de dormir ela pensou em Vrónski e a descrição de Tolstói é:
“Anna pensava no outro, via-o e sentia como o coração se enchia de
emoção e de um júbilo criminoso com esse pensamento”507.
E então Tolstói escreve uma das mais bonitas passagens do
romance: “Já é tarde, já é tarde – sussurrou Anna, com um sorriso.
Ficou longo tempo deitada, sem se mexer e sem fechar os olhos, cujo
brilho ela mesma parecia ver, na escuridão”508.
Esse estado “sem se mexer” é de uma perspicácia por parte de
Tolstói porque revela o sutilíssimo e real sentimento de quem tem pavor
de que apenas se mexendo seja capaz de mudar toda uma realidade
sobre a qual se viveu a vida inteira. Ainda que não fosse transcendente,
era a realidade que se conhecia.

503
Ibidem, pg. 360.
504
Ibidem, pg. 155.
505
Ibidem, pg. 155.
506
Ibidem, pg. 155.
507
Ibidem, pg. 156.
508
Ibidem, pg. 156.
118

É a partir dessa noite que tudo muda para o casal e sabendo o


marido que tinha de voltar a conversar sobre isso com Anna, ele pensa
que a melhor estratégia é falar com “bondade, carinho, persuasão”509. E
aí ele mesmo chega à conclusão de que não daria certo porque só de
começar a conversar com ela, “o mesmo espírito do mal e da mentira”
se apoderava dela.510
Werther, como personificação do amor romântico e suas
consequências devastadoras, é citado pela mãe de Vrónski. O romance
do filho com Anna “seria aceitável”511 se fosse “elegante”512, mas era
“uma paixão desesperada, à maneira de Werther”513. Só que Anna não
era uma diversão mundana para Vrónski. “Essa mulher é mais preciosa
para mim do que a própria vida”514.

O filho, o elo

O filho de Anna era o lembrete de que o caminho estava errado.


Nas palavras de Tolstói: “A presença do menino provocava em Vrónski e
em Anna um sentimento semelhante ao de um navegador que verifica
na bússola a direção em que se desloca rapidamente e vê que se desvia
para muito longe do rumo certo, mas não tem meios de deter o
movimento que, a cada minuto, o afasta mais e mais da direção devida,
e admitir para si o desvio é o mesmo que admitir sua perdição”515.
Para o cristianismo ortodoxo: “A maternidade é forma particular
de quenose feminina”516. Que seria a mulher esvaziar-se de si mesma,
deixar de lado o egoísmo e passar a ter uma vida mais altruísta. Quando
se dedica aos filhos, a mulher morre “parcialmente por ele”517, um
sacrifício que leva à Cristo, porque se assemelha com o sacrifício que

509
Ibidem, pg. 156.
510
Ibidem, pg. 181.
511
Ibidem, pg. 181.
512
Ibidem, pg. 181.
513
Ibidem, pg. 181.
514
Ibidem, pg. 189.
515
Ibidem, pg. 191.
516
EVDOKIMOV, Paul. O sacramento do amor. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, pg.
130.
517
Idem.
119

Cristo fez na cruz.

Divórcio

Quando o marido decide deixar a situação como está – “Apenas


mediante tal resolução, procedo em conformidade com a religião” 518 –
Anna perde toda a possibilidade de uma nova vida. A posição de
Kariênin está de acordo com os ideais cristãos que sempre procurou
servir.
O cristianismo ortodoxo, no tempo de Tolstói, compreendia o
divórcio como uma “dispensa divina”519, que só acontecia nessa
situação: o adultério da mulher. Já o Direito Civil considerava outras
causas como o adultério do marido ou da mulher, ausência e falta de
notícias de um dos cônjuges durante mais de cinco anos, morte civil por
condenação ou quando uma das partes entre para o convento ou
episcopado520. Na concepção ortodoxa, a facilidade do divórcio “reduz o
casamento à insignificância de acasalamento sem perspectiva, ou ainda
a transação comercial ou de interesses inconfessáveis”521.
O divórcio então nada mais é do que a destruição da própria
“essência mística do casamento”522, é a constatação da “ausência, da
extinção, da destruição do amor, e, portanto, a mera declaração da
inexistência do casamento. Assemelha-se ao ato da excomunhão523.

Maligno espírito de luta

“Ele quer provar-me que seu amor por mim não deve tolher a sua
liberdade. Mas eu não preciso de provas, preciso de amor.”524
Anna e Vrónski começam a se desentender diante de sua

518
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pg. 284.
519
EVDOKIMOV, Paul. O sacramento do amor. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, pg.
192.
520
Idem.
521
Ibidem, pg. 195.
522
Ibidem, pg. 197.
523
Ibidem, pg. 198.
524
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pg. 690.
120

situação não resolvida perante a Lei. Sem o divórcio, não podem viver
em sociedade. E viver confinados não é bem o que os deixam felizes.
Vrónski está disposto a tomar Anna por esposa e, enfim, dar seu
nome à filha – e aos filhos futuros. Anna, porém, não consegue tomar a
decisão de procurar Kariênin para pedir o divórcio, porque entende que
tal ação a levará ainda mais para o fundo do poço da angústia que vive.
Vrónski passa a ficar incomodado com o cerceamento de sua liberdade,
ainda que aparentemente tudo estivesse bem, porque Anna se
esforçava para ser tudo para ele. Na parte do romance em que estão
morando no campo e Vrónski está construindo um hospital, eis como
Tolstói descreve a situação:

A construção do hospital também interessava a


Anna. Não só ajudava como também organizava e
inventava muita coisa. Mas, apesar de tudo, a sua
principal preocupação era consigo mesma – a que
ponto era estimada por Vrónski, a que ponto podia
substituir tudo o que ele havia abandonado. Vrónski
apreciava esse desejo, que se tornara o único
propósito da vida de Anna, de não só lhe agradar,
mas também de o servir, porém, ao mesmo tempo,
sentia-se oprimido pelas redes do amor com que ela
se empenhava em prendê-lo. Quanto mais passava
o tempo, mais frequentemente Vrónski se via preso
por essas redes, mais vontade sentia, não de sair
de dentro delas, mas sim de provar que não tolhiam
sua liberdade. Não fosse o desejo, cada vez mais
forte, de ser livre e de não provocar uma cena toda
vez que precisava ir à cidade para uma reunião
política ou para uma corrida, Vrónski estaria
525
perfeitamente satisfeito com a sua vida .

Disposta a provar que está sofrendo mais, Anna começa a


competir pela atenção de Vrónski com tudo aquilo que Vrónski se
envolve. O relacionamento deles começa então a se destruir devido à
inveja e à competição.
525
Idem, pg. 631.
121

A inveja por parte de Anna é alimentada pela crença de que todos


desfrutam de uma satisfação emocional que está sendo negada a ela.
Esse sentimento, que tem uma força sexual forte, ora é aplacado pela
reafirmação de sua própria beleza – quando passa a se enfeitar mais, a
preocupar-se mais com sua aparência – ora quando disputa a atenção
de outros homens que estejam próximos de Vrónski. Sobre a busca da
beleza, vemos nessa passagem:

Após o jantar, Anna mostrou-se agressivamente


alegre: parecia tentar seduzir ora Tuchkiévitch ora
Iáchvin. Quando levantaram da mesa de jantar e
Tuchkiévitch saiu para providenciar o camarote,
Iáchvin retirou-se para fumar e Vrónski desceu com
ele para o seu quarto. Após algum tempo ali, subiu
às pressas. Anna já trajava um vestido de tom claro,
feito de seda e de veludo, com o decote muito
aberto, que mandara confeccionar em Paris, e uma
renda branca e cara na cabeça, que emoldurava
seu rosto e exibia sua beleza radiante de um modo
526
especialmente favorável.

Essa tentativa de obter a aprovação dos outros era uma forma –


esperança – de se sentir mais digna, diante da realidade cruel que a
cercava. É da inveja que nasce o “maligno espírito da luta”, que se
refere Tolstói, quando passa a descrever as brigas do casal. Esse
maligno espírito da luta é a competição.
Esse modo de competição – pelo qual Anna passa a agir – é uma
necessidade de obter valor aos olhos daquele que ela ama, embora
esse valor nunca tivesse sido negado por Vrónski. Em todo o romance,
não há passagem em que Anna seja desqualificada por ele, ao contrário.
Todo o tempo Vrónski reconhece o sacrifício de Anna em largar tudo por
ele. E Vrónski, mesmo diante da dúvida da possível duração desse
amor, sabe que o compromisso com ela é para sempre. Mesmo perto do
fim de Anna, quando se mostra mais distante, Vrónski não é
apresentado como o causador concreto dos tormentos dela. Ele é
526
Ibidem, pg. 532.
122

causador desses tormentos apenas na imaginação de Anna.


Havia, porém, um padrão social. E nesse padrão um homem
adúltero não tinha sua reputação manchada. Ao contrário, ele até
poderia ser mais valorizado. Tolstói, aliás, diz isso sobre Vrónski, no
início do romance:

Vrónski sabia muito bem que, aos olhos de Betsy e


de todas as pessoas da sociedade, ele não corria o
menor risco de parecer ridículo. Sabia muito bem
que aos olhos daquelas pessoas o papel de um
infeliz apaixonado por uma jovem ou por qualquer
mulher livre pode parecer ridículo; mas o papel de
um homem que assedia uma mulher casada e põe a
própria vida em jogo a fim de atraí-la para o
adultério tem algo de belo, grandioso, jamais
poderia parecer ridículo e por isso Vrónski baixou o
binóculo e fitou a prima com um sorriso orgulhoso e
527
satisfeito que ondulava sob o bigode .

Antes de se mudarem para o campo, Vrónski havia ouvido de um


colega do regimento sobre o quanto uma mulher – ou o casamento
como um compromisso de amor, não meramente social, porque no amor
há cobranças – é capaz de atrapalhar a carreira de um grande homem.
Tolstói mostra essa ideia da seguinte forma:

_As mulheres são o principal obstáculo para a


atividade de um homem. É difícil amar uma mulher
e fazer o que quer que seja. Para isso, só existe um
meio de amar com comodidade e sem empecilhos:
o casamento. Como eu poderia, como poderia dizer
o que penso - perguntou Serpukhóvskoi, que
adorava comparações.

_Espere, espere! Sim, é como carregar um fardeau


e fazer alguma coisa com as mãos: só é possível
quando o fardeau estiver amarrado às costas, e isso

527
Ibidem, pg. 137.
123

é o casamento. Foi o que eu senti ao casar. De


repente, minhas mãos de desembaraçaram. Mas,
se carregarmos esse fardeau sem o casamento, as
mãos estarão tão cheias que não será possível
fazer nada.

_Veja o Mazánkov, o Krúpov. Eles liquidaram suas


528
carreiras por causa de mulheres.

A queda, o suicídio

Anna caiu do estado da graça. Anna envolveu-se de tal modo nas


paixões da sombra que não soube como mais se agarrar aos afetos
positivos, que viam de sua própria família: o amor de Vrónski, o amor do
irmão Stiva e da cunhada Dolly, o amor da filha, mesmo que ainda bebê
e, principalmente, o amor do filho, Serioja.
Essas paixões sombrias deixaram de ser apenas uma tendência –
sempre circunstancial – e a levaram a uma situação psicológica tão
perigosa que se tornou irreversível. A preocupação obsessiva com sua
imagem na sociedade e o medo do abandono não permitiu que sua
mente se deslocasse para a vida concreta. Por exemplo, quando sabia
dos desejos de Vrónski de ter filhos, na visão de Anna ele não tinha
apreço pela sua beleza. Ela passou a criar diálogos imaginários que a
tiraram do eixo. Nas palavras de Tolstói: “Todas as palavras mais cruéis
que o mais rude dos homens poderia dizer, Vrónski dizia, na imaginação
de Anna, e ela não lhe perdoava isso, como as tivesse dito, de fato”529.
Já nas cenas finais do romance quando Anna pede à criada que
avise Vrónski, assim que chegar, que foi dormir porque estava com dor
de cabeça e pede para não ser incomodada, Anna mede o amor de
Vrónski pela obediência a essa ordem: se ele a amar, não acatará sua
vontade e entrará no quarto mesmo assim; se não a amar, respeitará a
decisão de não incomodá-la. Ao respeitar a decisão, Anna conclui que
ele não a ama e então só resta a morte: “E, de forma viva é clara, a

528
Ibidem, pg. 312.
529
TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pg. 734.
124

morte afigurou-se a Anna como o único meio de restabelecer no coração


de Vrónski o amor por ela, o único meio de castigá-lo e de alcançar a
vitória na luta que um espírito maligno, alojado em seu coração, travava
contra ele”530. O espírito maligno é a face do amor que é destruidora, o
amor paixão. A maldição. É algo tão forte que leva o “doente” a gostar
da doença e a escolher a doença: “Pensando em todas as palavras que
ia dizer a Dolly e reavivando de propósito a ferida em seu coração, Anna
subiu a escada”. Reavivando de propósito. Há uma intenção.
Da mesma forma ocorria com o jovem de Goethe. Werther,
quando escrevia para Wilhelm, falava como se pedisse para ser salvo.
Contudo, a posição de Werther dizia que ele não queria ser salvo, queria
mesmo era morrer de amor. O que haveria de ser maior do isso, para
um romântico apaixonado?

Tolstói e sua mensagem religiosa

Quando coloca as duas na mesma cena, Tolstói parece ter uma


intenção muito clara. Anna vai visitar Dolly e coincidentemente Kitty está
em sua casa, com seu recém-nascido filho. Kitty permanece no quarto
porque não deseja reencontrar Anna, que percebe a recusa e questiona
Dolly. Quando Kitty cede ao pedido de Dolly e todas estão juntas, o
nervosismo de Anna significa como ela se via menor, menos digna
diante de Kitty que, na concepção de todos, tinha sido
surpreendentemente abençoada com o casamento com Liévin. Kitty foi a
que não sucumbiu à paixão, ainda que tivesse sido tentada e de paixão
havia sofrido muito.
A diferença de Anna e de Kitty diante do mesmo objeto de amor é
que uma ouviu a família, afastou-se da “maldição”, reconstruiu-se com
“dignidade” e soube, depois de uma intensa batalha de sentimentos,
reconhecer onde estaria de fato a felicidade conjugal: sem floreios, sem
arroubos, sem uma imagem impecável típica da literatura.

530
Idem, pg. 735.
125

Tolstói e sua mensagem humana

Mesmo no fluxo de pensamentos completamente desorientado de


Anna, nas cenas finais, Tolstói não deixou de imprimir a noção que tinha
da complexidade das emoções humanas – essa complexidade que nos
torna todos iguais, como já dissemos, não importa a posição social ou
mesmo o credo. Ou seja, nem sempre a religião se apresenta como uma
saída.
No estado de loucura final de Anna, Tolstói diz: “Ali está, uma
mendiga com um bebê. Ela pensa que é digna de pena. Acaso não
somos todos nós largados neste mundo só para odiarmos uns aos
outros e, portanto, para atormentarmos a nós mesmos e aos outros?” 531.
A contingência é a resposta mais imparcial da vida. E Tolstói a
compreende: “Assim somos eu, e o Piotr, e o cocheiro Fiódor, é aquele
comerciante ali, e toda essa gente que mora lá, às margens do Volga,
para onde esses cartazes nos convidam a ir, em toda parte, e
sempre”532. Tolstói, contudo, não deixa de apresentar uma solução
cristã: “Por isso a razão foi dada ao homem, para evitar aquilo que o
perturba”533.

O amor na visão ortodoxa

“Para vislumbrar algo do amor, é preciso ir muito além do amor,


chegar àquela profundeza da alma onde a paixão, salvaguardando a
densidade de seu conteúdo – porém, livre agora de toda exaltação
carnal –, torna-se o eixo de roda que gira”534. O amor precisa
transcender. Viver em única face, deixar o estado passional, que foi o
que destruiu Anna e Vrónski: “O estado passional pode derrubar todas
as barreiras. Tornado puramente arbitrário, ele consome e extermina,

531
Ibidem, pg. 746.
532
Ibidem, pg. 747.
533
Ibidem, pg. 747.
534
EVDOKIMOV, Paul. O sacramento do amor. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, pg.
114.
126

lança-se no ódio e na morte”535.


Na concepção ortodoxa, “à imagem do amor de Deus criador, o
amor humano se propõe “inventar” um objeto sobre o qual possa se
derramar”536 e a união conjugal existe como “plenitude em si mesma”537.
Nesta perspectiva, o amor não é nada insignificante, mas também não é
o amor paixão:

O amor é uma ruptura na sociedade e na natureza.


Ruptura na economia da queda, opõe-se ao
arbitrário, pois comporta purificações ascéticas e
sofrimentos livremente aceitos. Elevado à ordem do
espírito, é capaz de fazer milagres. Se não é
compartilhado ou compreendido, torna-se martírio e
apresenta estigmas. Não se trata de bens terrenos,
mas sim da salvação da liberdade divina no homem
e de sua dignidade celeste. Na conquista da
alteridade do outro, o amor pode tornar-se
agonizante, porém sem jamais perder sua
538
grandeza .

Para que o amor exista e atue sobre o casal, é preciso que ambos
sejam livres, sem amarras mundanas. Como não existe “nenhuma
possibilidade humana formal de verificar e experimentar a qualidade do
amor, sua duração, sua profundidade”539, não é possível à Igreja medir –
ou controlar – as uniões que sacramenta. Mas a visão ortodoxa crê que
uma “união contratada por interesse ou imposta por vontade exterior,
numa união entre pessoas que não são livres interiormente, os elos
nada têm de comum com um matrimônio no sentido místico e
sagrado”540.
Ainda que tenha essa visão, a religião ortodoxa tem consciência
de que esse tipo de amor entre um homem e uma mulher é difícil de
existir na prática, ou o tempo todo no casamento, e por isso mesmo

535
Idem, pg. 115.
536
Ibidem, pg. 115.
537
Ibidem, pg. 129.
538
Ibidem, pg. 195.
539
Ibidem, pg. 196.
540
Ibidem.
127

reconhece que uma união que não está baseada no amor real, provoca
um “desfalecimento espiritual, uma recusa a seguir a vida heroica, uma
rejeição do arrependimento, da metanóia evangélica” 541. Ou seja, a
rejeição de uma transformação espiritual verdadeira, que deve ser a
função da união de dois seres. Esse amor, contudo, e nisso se
assemelha ao amor romântico, ele nunca deve ser imposto. Da mesma
forma que nunca deve ser imposta a norma da fidelidade. O desejo de
ser fiel “diz respeito às realidades mais profundas da vida humana e a
seus elementos irracionais. Não se impõe de fora, mas vem de dentro,
do conteúdo do coração e dirige-se à liberdade do espírito”542.
Para que a fidelidade permaneça como um ideal é necessário fé.
“Se a fé sofre alterações, a fidelidade altera-se também: deixa de ser
graça, passa a ser coação”543.
Ainda que Tolstói tenha rompido com a religião ortodoxa, a
concepção de amor implícita em sua literatura concorda com a visão
ortodoxa. O amor, para Tolstói, é para o bem comum. Jamais para si
mesmo, para o próprio prazer.
Explícito em Ressurreição, especificamente em Nekludov, para
quem o amor por Maslova foi redenção, quando alguém “dá sua alma
para o outro, jamais o faz utilitariamente por sua salvação, mas porque
ama esse outro, e é o amor que manifesta o supremo poder de mudar a
substância de um destino. Nunca: “Amo-te para te salvar”, mas sempre:
“Salvo-te, porque te amo”544.
Como um sacramento, o amor, na concepção ortodoxa, se for
profanado, levará o indivíduo ao “castigo imanente”545, que é o “vazio
infernal546.

O vazio, o silêncio, a crítica

É importante notar que assim que Anna comete suicídio,

541
Ibidem.
542
Ibidem, pg. 197.
543
Ibidem.
544
Ibidem, pg. 197.
545
Ibidem, pg. 198.
546
Ibidem.
128

encerrando a sétima parte do romance, nada mais é dito sobre o fato. O


último capítulo desenrola-se e os demais personagens seguem suas
vidas como se nada tivesse acontecido. Evidentemente, se
estivéssemos tratando de algo ocorrido na vida concreta, saberíamos
que seria um fato muito comentado. A escolha de Tolstói de não revelar
a opinião dos demais personagens sobre o ocorrido parece sugerir algo.
Não a banalidade da vida, mas a hipocrisia social, nada realmente
importa de verdade e a crítica moralista funciona apenas como
entretenimento.
O único que menciona Anna – em pensamento! – é o próprio
Vrónski. Impactado pela cena, ao vê-la toda ensanguentada e ainda
notar sua beleza, vive nas emoções a dança tormentosa entre as boas e
más lembranças, entre as juras de amor e as promessas de vingança,
motivadas, sempre, pelo medo do abandono. Do nada. Do vazio.
129

CONCLUSÃO

“Quem observa com seriedade descobre que, assim como para a


morte, que é difícil, também para o amor não se reconheceu ainda
nenhum esclarecimento, nenhuma solução, nem aceno, nem
caminho.”547, como escreveu o poeta Rainer Maria Rilke.
Já o teólogo e filósofo russo Paul Evdokimov, um dos referenciais
teóricos desse trabalho, assumiu o fracasso da busca de definições da
maneira mais interessante que pudemos encontrar: “Se uma fórmula do
amor fosse possível, ter-se-ia encontrado a própria fórmula do
homem.”548
A literatura encerra-se para nós como uma salvadora flecha de
inteligência que nos acerta com seus mitos e nos dá, de alguma forma,
algumas sugestões do que pode vir a ser o amor romântico e,
principalmente, o que pode causar o amor romântico fora da vida que
pulsa no papel. Conhecemos o amor pela linguagem. Conhecemos o
amor porque ouvimos sobre o amor, lemos sobre o amor, contamos
sobre aquilo que sentimos e de maneira certa ou errada, acreditamos
que amamos – ou que não amamos.
Depois de todo o caminho percorrido, concluíamos, então, que Sade
547
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. São Paulo: LP&M, 2009. Edição
Kindle.
548
EVDOKIMOV, Paul. O sacramento do amor. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, pg.
113.
130

tinha razão ao escrever sobre o amor e a reza – a religião – como base


de todos os romances. Finalizamos, inclusive, crentes de que a literatura
provoca descobertas racionais, emocionais e espirituais, como se fosse
o agente-mor dos agentes, que são os autores. Acreditamos que essa
função pode ou não caminhar junto com a religião, embora no caso de
Tolstói, caminha, sem dúvida.
Sugerimos assim à Ciência da Religião uma aproximação mais
carinhosa e profunda com literatura, se não a tornando uma sub-
disciplina, certamente desfrutando desse acervo sem-fim de
possibilidades de cenários que supera a própria vida. Qualquer ideia de
céu e inferno é uma imagem. Literatura é imagem.
Não foi sem razão que o Romantismo tornou a literatura o seu maior
estandarte. Nela caberiam – e seria permitido – todas as suas
sugestões, contradições e revoluções. Concluíamos, portanto, que o
Romantismo serviu tanto à literatura quanto à religião e serviu-se das
duas na mesma intensidade.
Por fim, concluímos que Anna Kariênina é uma dessas obras que
servem de alerta sobre as consequências do amor romântico: a
destruição da família, dos laços sociais, da integridade dos filhos, entre
outros.
Contudo, a inspiração de Tolstói em tornar a obra um aviso de que o
amor romântico é desnorteador, veneno para a alma, e a alma
encaminha o homem para Deus, não deixou de lado o sofrimento
humano, o debater-se das emoções até que vença ou sucumba. No
caso de Anna, sucumbiu. Em outras obras, porém, a redenção foi
possível. Porque para Tolstói, como para o cristianismo ortodoxo, o
amor é possível de transcender.
Ainda que Tolstói tenha abdicado das normas da Igreja Ortodoxa, e
de alguma forma criado uma religião conforme o que pensava ser o
correto, sua forma de compreender o amor não dessemelhava em todo
da compreensão ortodoxa de viver o amor a dois, principalmente no
sentido de que o amor evolui até que transcende – e leva à
transcendência. Todavia, o pensamento de Tolstói não condiz com a
função do amor, de acordo com a visão ortodoxa, quando Tolstói tenta
131

desassociá-lo do sexo. Para a visão ortodoxa, “toda solução que busca


a “dessexualização” do ser humano atenta contra a vontade criadora de
Deus.”549
Sobre a religião na obra de Tolstói – para além de Anna Kariênina –,
concluímos que não deve ser compreendida apenas como um sistema
cultural dentro do qual homens e mulheres se moviam e tomavam
decisões para suas vidas, todos os dias. Cremos que estaria correto,
mas estaria incompleto.
A religião na obra de Tolstói deve ser vista também – e
principalmente – como um punhado de sensibilidades: percepção dos
sentimentos para além das normas religiosas, o que vemos bastante no
marido de Anna, Kariênin, por exemplo.
Vemos a religião também na descrição das emoções de Anna, antes
da consumação do caso extraconjugal, enquanto ainda negava e adiava
o inadiável. Seus pensamentos não revelam Deus – ou qualquer ideia
de religião, pecado, castigo, Deus como um socorro –, mas tudo isso
está como que plainando.
Da mesma forma, a religião revela-se na maneira como Tolstói
descreve, pelo olhar de Vrónski, todas as incansáveis vezes em que o
amante ficou impressionado pela beleza de Anna, inclusive na fase final
do romance, quando já havia desentendimentos. Seria a expressão de
uma sensibilidade religiosa que via na beleza o perigo. Não importava os
sentimentos de Vrónski, toda vez que ele era impactado pela beleza de
Anna, a beleza agia sobre ele. São expressões não verbais. E os
sentidos humanos participam ativamente da religião.
Em Anna Kariênina está a religião ortodoxa, mas também está a
visão religiosa tolstoiana. E está, principalmente, as resistências e os
medos de Tolstói por toda a vida disso que compreendemos como
desejo sexual.
Quando Tolstói negou o caráter místico da religião, ele não negou
apenas o sobrenatural, o que está para além das normas aplicáveis à
vida cotidiana, que tem como intuito tornar todos os seres humanos

549
EVDOKIMOV, Paul. O sacramento do amor. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, pg.
118.
132

iguais, o que levaria à harmonia e o mínimo de injustiça, por exemplo.


Quando Tolstói negou o caráter místico da religião, ele negou também o
Cântico, a beleza como manifestação do sagrado – hierofania e teofania
– e negou a ideia de que o amor divino vive-se no amor humano, ou
seja, o desejo não é algo para se temer. “Para a antropologia bíblica, o
amor entre o homem e a mulher origina-se no amor divino e abre-se
para Deus.”550
Em Anna Kariênina, contudo, não encontramos esse tipo de amor
transcendente. O seu casamento com Kariênin é o casamento da razão,
fundamentado, principalmente, na conveniência e garantias de uma
família, segundo as melhores perspectivas sociais. Por isso
concordamos com a ideia já estabelecida de que o romance é uma
crítica à hipocrisia da sociedade de sua época.
Ainda que Liévin e Kitty formem o contraponto, aquilo que na
concepção de Tolstói seria o ideal, no título do romance não consta o
nome de nenhum dos dois. A escolha final de Tolstói não foi pelo título
Dois casamentos, como cogitou em algum momento. Se escolheu Anna
Kariênina, cremos que foi como uma forma de crucificá-la. Se não como
uma pecadora que não merece o perdão – que seria mesmo exagero –
certamente como uma imagem sensível do que há por trás da máscara
romântica do amor.

550
EVDOKIMOV, Paul. O sacramento do amor. São Paulo: Edições Paulinas, 1989, pg.
119.
133

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