Raquel Rohr Tese
Raquel Rohr Tese
Raquel Rohr Tese
RAQUEL ROHR
Belo Horizonte
2018
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RAQUEL ROHR
Belo Horizonte
2018
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Para Miguel
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Fausto Borém, por compartilhar seu conhecimento em
mais essa jornada, pelo apoio, pela compreensão e por demonstrar que as relações
no âmbito da academia também podem ter uma dimensão humana.
Ao meu filho, Miguel, que com sua doçura e seu lindo sorriso enche minha vida de
felicidade todos os dias.
Aos meus pais, Eunice e José Roberto, que me ensinaram o Caminho e seguem
sendo um grande exemplo e suporte.
À minha irmã, Clarice, e sua família, Pierre e Pedro, por fazerem parte desta história.
Aos meus sogros, Paulo e Elizabeth, por me acolherem como uma filha.
Aos amigos César e Juliana, Thaís e Nilton, Vinícius e Nalu, pelo carinho e
hospitalidade. Agradeço ainda a Renata, Luciana, Sandriana, Jacó e Fabíola, Sarah
6
e Elizeu, Eduardo e Samanta, Bruna e Álisson, Bruno e Simone, Marcus e Luana pelo
apoio e amizade.
Aos professores, Dr. Edson Queiroz, Dr. Carlos Aleixo, Dr. Esdras Rodrigues e Dr.
Hugo Pilger, pelas valiosas contribuições.
RESUMO
ABSTRACT
In this project, I investigate the use of the cello in Brazilian popular music, taking as
reference the work of the cellist Jaques Morelenbaum (also arranger and composer),
who has the longest and most relevant career in this specialty in Brazil. Through
analyzes of selected performances of this artist in audio and video recordings, I discuss
the differences and similarities between cello performance practices in the fields of
classical music, popular music and their intersections. In his style of performance, I
observe the use of the cello in both bow and pizzicato performing the role of bass line,
main melodic lines and secondary contrapuntal lines, in which elements of
performance practices of Brazilian music (popular and erudite) and jazz are noticeable,
specially a strong influence of the style of João Gilberto, a major symbol of Bossa
Nova. I also point out strategies, adaptations and instrumental emulations on the cello,
taking into account the idiomatic language of the instrument, while raising interpretive
elements that allow us a better understanding of its context and performance.
LISTA DE EXEMPLOS
Ex. 49- Glissando intencional entre cordas duplas na Introdução de A Correnteza (c.
1-6) .......................................................................................................................... 156
Ex. 50- Alusão à síncope na linha do violoncelo na Seção A de A Correnteza (c. 7-11)
................................................................................................................................ 156
Ex. 51- Acompanhamento do violoncelo em notas longas na Seção B de A Correnteza
(c. 18-23) ................................................................................................................. 157
Ex. 52- Linhas melódicas em terças da voz e do violoncelo em Fotografia (c. 5-10)
................................................................................................................................ 159
Ex. 53- Linha cromática descendente do violoncelo com antecipações do primeiro
tempo do compasso em Fotografia (c. 13-18) ......................................................... 159
Ex. 54- Presença de linhas melódicas em terças na mão direita do piano no arranjo
de Fotografia, de Paulo Jobim (c. 1-4) .................................................................... 160
Ex. 55- Pequenas defasagens entre os ataques da voz e do violoncelo em Fotografia
(c. 82) ...................................................................................................................... 161
Ex. 56- Glissandos ascendente e descendentes em Fotografia (c. 52-53) ............. 162
Ex. 57- Ocorrência de ghost notes na melodia do violoncelo em Fotografia (c. 43-45)
................................................................................................................................ 163
Ex. 58- Aplicação do vibrato nos finais das notas em Fotografia (c. 43-45) ............ 164
Ex. 59- Acentuação deslocada do violoncelo e polarização ao primeiro tempo do
compasso na entrada do acompanhamento em Eu vim da Bahia (c. 1-3) .............. 169
Ex. 60- Inserção de síncopes em Eu vim da Bahia na performance de Jaques
Morelenbaum (c. 5-8) .............................................................................................. 171
Ex. 61- Nota com ataque adiantado na interpretação de Morelenbaum de Eu vim da
Bahia (c. 12) ............................................................................................................ 171
Ex. 62- Acentuações de arco em notas correspondentes às sílabas tônicas na
interpretação de Morelenbaum de Eu vim da Bahia (c. 1-4) ................................... 172
Ex. 63- Acentos, staccatos e glissando em Eu vim da Bahia (c. 9-13).................... 174
Ex. 64- Acentuações em anacruses staccatos nas síncopes em Eu vim da Bahia (c.
54-58) ...................................................................................................................... 175
Ex. 65- Acentuações em arcadas para cima e retomadas de arco em Eu vim da Bahia
(c. 63-67) ................................................................................................................. 176
Ex. 66- Sequência de mudanças de posição com o 1º dedo em Eu vim da Bahia (c. 8)
................................................................................................................................ 176
Ex. 67- Lift combinado com acentuação do arco em Eu vim da Bahia (c. 10-11) ... 177
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LISTA DE FIGURAS
Fig. 1- Esquema formal de Canto Triste (LOBO, 1967), versão de Gal Costa e Jaques
Morelenbaum .......................................................................................................... 119
Fig. 2- Esquema formal de Canto Triste (LOBO, 1967), versão de Edu Lobo (LOBO,
2013) ....................................................................................................................... 119
Fig. 3- Esquema Formal de Passarim, na gravação de Tom Jobim e Nova Banda
(198?) ...................................................................................................................... 135
Fig. 4- Violoncelo no extremo do lado esquerdo na gravação de Água de Beber e
Wave da Nova Banda ............................................................................................. 143
Fig. 5- Violoncelo ao lado dos instrumentos de base em Passarim ........................ 143
Fig. 6- Tratamento cênico dado ao violoncelo na abertura do show Circuladô, de
Caetano Veloso ....................................................................................................... 146
Fig. 7- Esquema formal de Ar Livre ......................................................................... 193
15
LISTA DE QUADROS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 18
........................................................................................................................ 78
Introdução
O gosto pelo repertório, no entanto, não foi suficiente para motivar minha
experimentação na performance. Mesmo após optar profissionalmente pelo
violoncelo, para mim, a prática do instrumento continuava restrita ao universo da
música erudita. As razões para isso são difíceis de identificar, mas, possivelmente, a
abordagem muito estrita do instrumento nas aulas, somada à escassez e à falta de
acesso a materiais de referência para o estudo da música popular no violoncelo,
contribuiu para tal. No meio da música popular, são requeridas diversas habilidades
do instrumentista que não são trabalhadas nos currículos-padrão das escolas de
música, como a improvisação, por exemplo.
Apesar da preparação intensa, ainda nos ensaios percebi que havia muito o que
aprender para que minha interpretação obtivesse sucesso. Não era apenas uma
questão de quais notas e ritmo executar, mas de que maneira fazê-lo. Parecia haver
uma forma diferente de adequar as notas, ritmo, acentos, etc., mas como interpretá-
los no campo da música popular? Toda a base técnica construída a partir do
referencial da música erudita era, sem dúvida, útil, assim como os anos em que tive
19
intenso contato auditivo com esse repertório, mas somente isso não bastava para que
a performance se tornasse convincente, ou mesmo proficiente.
Nos trabalhos que realizou como violoncelista, podemos perceber que Morelenbaum
utiliza o instrumento de três formas diferentes: a) como instrumento acompanhador,
podendo funcionar semelhantemente ao contrabaixo acústico no jazz, tocando em
pizzicato; ou como único instrumento acompanhador, em performances somente de
voz e violoncelo, em que ele lança mão de diferentes recursos técnicos a fim de
preencher todo o acompanhamento; b) como melodia secundária, realizando melodias
importantes, como introdução e contracantos, mas sempre sublinhando a voz, que
tem a melodia principal; e c) como melodia principal, em performances em que o
violoncelo fica responsável pela parte que caberia à voz humana. O presente trabalho
enfocará sua atuação como violoncelista, a partir destas três tendências.
Borém e Santos (2003, p.59) já apontavam que a música popular estaria entre as “sete
principais tendências de estudos da performance musical na pós-graduação
brasileira”. Hoje, percebe-se a confirmação deste fato, havendo um grande número
de pesquisas na área no país. Ulhôa (2015) traz um panorama mais completo,
abarcando as pesquisas de pós-graduação em diversas áreas no Brasil, não se
restringindo somente à Música, e apresenta os seguintes dados:
A autora ainda chama a atenção para o fato de que, até o último quarto do século XX,
as pesquisas, de maneira geral, tendiam a defender a autenticidade e a tradição da
música brasileira ante à influência estrangeira, lidando, em sua maioria, com o samba
como temática principal. O estudo de Naves (et al., 2001) concorda com a percepção
de Ulhôa (2015), apresentando um panorama dos estudos que vinham sendo
realizados na virada do século XX para o XXI:
1 Tradução da autora do original em inglês: Considering the whole of this production of doctorates,
samba is still the champion in thematic choices (32 Ph.D.s), followed by MPB (17), Tropicalismo (15),
bossa nova (14), and choro (10). Among the artists studied, Caetano Veloso has generated the most
interest (14 doctorates), followed by Chico Buarque de Holanda (eight doctorates). (ULHÔA, 2015, p.
9)
22
Embora seja uma área de estudo cada vez mais estabelecida, as fronteiras do campo
de estudos da música popular ainda são bastante maleáveis e permeáveis, sendo
possível abordar o objeto de pesquisa pertencente a este campo a partir de
referenciais diversos relacionados a outras áreas, ou ainda com caráter
interdisciplinar. Neste sentido, a reflexão de Scott (2009), quando aborda a visão da
musicologia sobre a área, lança uma luz sobre essa questão:
Em âmbito global, ainda não são claras as definições e metodologias aplicáveis a este
campo de estudos. No Brasil, a situação não difere, sendo possível encontrar
abordagens de estudo provenientes das mais diversas áreas, como argumenta Ulhôa
(2015):
2 Tradução da autora do original em inglês: with the establishment of the systematic study of popular
music in universities, has the literature on the subject ceased to worry about “origins.” (ULHÔA, 2015,
p. 5)
3 Tradução da autora do original em inglês: There are various theoretical models that popular
musicologists and critical musicologists make use of, drawn from anthropology, sociology,
psychoanalysis, semiotics, postcolonial studies, feminism and gender studies […]. Given this diversity,
it is not surprising to find that there is no party line to popular musicology; indeed, it may be thought of
as a post-disciplinary field in the breadth of its theoretical formulations and its objects of study. (SCOTT,
2009, p. 2)
23
Se o panorama geral dos estudos em música popular ainda não é bem definido, a
área da performance, neste contexto, comporta-se de maneira similar. O incremento
das pesquisas na área, conforme previsto por Borém e Santos (2003), tem contribuído
para a consolidação de determinadas metodologias e abordagens, além de propiciar
o surgimento de novas possibilidades. Observando o estudo das práticas
interpretativas na música popular brasileira, vemos que “a maioria das pesquisas em
música popular enfatiza o estudo das canções, deixando a música instrumental dentro
de um campo pouco explorado” (VALENTE, 2009, p.12). Se considerarmos temas
específicos dentro da música popular, a tendência é que os trabalhos sejam ainda
mais escassos, como o que ocorre com a improvisação, por exemplo. (VALENTE,
2009, p.14)
5Tradução da autora do original em inglês: If you want to find out how musical skills are acquired within
a social context, musicians’ biographies can be an effective source of information. Biographies are
useful because they can trace the factors, social and otherwise, that have led to musical achievement.
(DAVIDSON, 2004, p. 59)
25
garantir que se possa cobrir uma amostra representativa do trabalho do artista, visto
o enorme volume de gravações das quais participou durante sua carreira.
do qual, para além de narrar fatos importantes de sua trajetória, busco evidenciar
como o caminho que percorreu e as influências que sofreu forneceram subsídios que
forjaram seu estilo de performance.
Após a localização histórica do objeto a ser estudado, o Capítulo 2 traz uma extensa
revisão de literatura, entremeada com discussões de conceitos e referenciais
relevantes, que serão aplicados durante a análise das gravações selecionadas. A
primeira parte do capítulo trata dos conceitos e bases técnicas do violoncelo desde o
surgimento das escolas eruditas do instrumento até os dias atuais, colocando lado a
lado os conceitos tradicionais do ensino do instrumento com a pouca referência
encontrada sobre a aplicação da técnica em música popular. A escassez de
referenciais específicos sobre a performance do instrumento no contexto popular
levou-nos a buscar outras referências a fim de conduzir as análises de maneira mais
efetiva; dentre elas, os estudos já realizados sobre o violino e o contrabaixo na música
popular brasileira; pesquisas sobre práticas de performance de outros instrumentos,
por exemplo, o piano, no contexto brasileiro e estrangeiro; e trabalhos que abordam a
voz neste contexto, notadamente a interpretação de João Gilberto.
As orquestras tiveram seu auge nas décadas de 1940 e 1950 e estavam vinculadas a
rádios ou cassinos, além de gravadoras. Grandes gravadoras, como Columbia, Odeon
e Victor, mantinham corpos orquestrais, além dos cassinos Assírio, Copacabana,
Atlântico e da Urca. Dentre as rádios, destacam-se, em São Paulo, a Rádio Record;
em Belo Horizonte, a Rádio Inconfidência; além das rádios Tupi, Mayrink Veiga,
Transmissora, Cruzeiro do Sul, Rádio Club do Brasil, Ipanema e Mauá, todas no Rio
de Janeiro. (WERNECK, 2013) A Rádio Nacional foi, sem dúvida, a emissora carioca
de maior relevância nesse período, e contava com diversas orquestras em seus
quadros, como a Orquestra de Tangos, a Grande Orquestra de Concerto e a
Orquestra de Serenata, todos estes, grupos com o violoncelo em sua formação. Os
músicos que atuavam nesses grupos, bem como os maestros, compositores e
arranjadores, também desenvolviam carreiras no mercado da música erudita de
tradição europeia, conforme comprovam diversas pesquisas como Lacerda (2011),
Werneck (2013), Isidoro (2013), Müller (2011), Saroldi e Moreira (2005), Aguiar (2007),
dentre outros.
cada vez mais utilizado por cantores e grupos, não obstante os custos e dificuldades
de transporte em turnês ainda sejam empecilho para uma maior popularização do
instrumento. O violino, instrumento de transporte mais fácil e barato, conta com um
número crescente de intérpretes, além do surgimento de metodologias de ensino do
instrumento por meio da música popular, o que ainda não ocorreu com o violoncelo.
6Professor e violoncelista nascido em São Paulo. Foi primeiro violoncelo da Orquestra Sinfônica
Municipal de São Paulo, lecionou no Conservatório de Santos, além de ter sido membro fundador do
Quarteto de Cordas Municipal, que se tornaria posteriormente o Quarteto de Cordas da Cidade de São
Paulo.
7 Professor e violoncelista da Orquestra do Teatro Municipal de São Paulo.
33
no violoncelo foi tardio, após os 18 anos de idade, contudo, também tocava violão,
cavaquinho e gaita, instrumentos em que era autodidata. Integrou a Orquestra
Sinfônica do Theatro Municipal de São Paulo e a Orquestra de Câmara de São Paulo
na década de 1950. Também teve passagens pela Orquestra Sinfônica Juvenil do
Museu de Arte de São Paulo (MASP) e Orquestra da TV Tupi. Sua atuação como
violoncelista na música popular ainda é inexpressiva.
popular brasileira, como Baden Powell, Milton Nascimento, Egberto Gismonti, Dori
Caymmi, dentre outros. Foi primeiro violoncelo da Orquestra da Rede Globo de
Televisão, grupo importante que atuava nos festivais da canção promovidos pela
emissora na década de 1970. Foi professor de violoncelo de Egberto Gismonti, com
quem colaborou no início da carreira, tocando em shows e participando de gravações.
Tem extensa discografia acompanhando nomes diversos da música popular brasileira.
(NOGUEIRA, 2010)
solta um cisne na noite, Entre um silêncio e outro, Animal Racional, Concerto Barroco
nº 1, Concerto Barroco nº 2, Projeto Música da Inconfidência e Lucas. Faleceu em
1986 em virtude de um aneurisma cerebral. (PAZCHECO, 2012)
Mehmari, com o qual excursionou pelo Brasil e realizou parceria com a cantora Mônica
Salmaso. Enquanto morou no Brasil, teve a oportunidade de tocar e gravar com
diversos nomes de destaque da música popular brasileira, como Gilberto Gil, Zizi
Possi, Badi Assad, Mônica Salmaso, Ná Ozzeti, José Miguel Wisnik, Max de Castro,
Vittor Santos, Proveta, François de Lima, Toninho Ferragutti, Carlos Malta, Teco
Cardoso, Zeca Assumpção, Celio Barros, Itiberê Zwarg, Márcio Bahia, João Parayba,
Toninho Carrasqueira, dentre outros.
Natural de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, iniciou seus estudos de violoncelo com
Milton Bock, na Fundação de Artes de Montenegro (RS). Posteriormente, mudou-se
para o Rio de Janeiro, onde prosseguiu seus estudos com Marcio Malard e Alceu Reis,
obtendo o grau de Bacharel em violoncelo na classe desse professor na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO). Concluiu o Mestrado e o Doutorado em Música
nesta instituição, onde hoje atua como docente. Possui relevante atuação no cenário
da música erudita como integrante de orquestras, solista e camerista. Integra o
quarteto Radamés Gnatalli, destacado grupo de câmara brasileiro que se dedica a
difundir o repertório brasileiro para esta formação, notadamente a obra de Villa-Lobos.
Como solista, estreou importantes obras no Brasil e América do Sul, como o concerto
para violoncelo e orquestra Pro et Contra, de Arvo Pärt, além da obra Tout um Monde
Lontain, de Henri Dutilleux. Desenvolve pesquisa sobre a obra para violoncelo de Villa-
Lobos, com importantes resultados publicados, tanto em formato escrito quanto em
registros fonográficos. (PILGER, 2014)
À semelhança de muitos violoncelistas, sua carreira também tem uma vertente voltada
para a música popular. Realizou inúmeras gravações e shows com renomados artistas
da Música Popular Brasileira, como Gal Costa, Zélia Duncan, Wagner Tiso, Alcione,
38
Caetano Veloso, Caymmi, Chico Buarque, Djavan, Francis Hime, Elba Ramalho,
dentre outros. Também tem participação relevante em gravações de trilhas sonoras
de filmes e novelas. Sua atuação mostra-se bastante eclética, não estando
circunscrita a um gênero específico da música popular brasileira, antes abrangendo
um grupo bastante diverso de artistas.
Também atua como arranjador e diretor musical de grupos como Cia das Cordas e de
cantoras como Virgínia Rodrigues e Ana Carolina. Participa ainda de gravações de
trilhas de filmes e novelas, além de peças de teatro e programas de televisão.
Recentemente, foi indicado ao prêmio de melhor trilha musical pela Comissão de
Críticos de Arte de São Paulo, no projeto Itaú/Unibanco “É Tudo Verdade”, pela
Direção Musical do Documentário Dino Cazzola – Uma filmografia de Brasília.
Nascido no Rio de Janeiro, iniciou seus estudos de violoncelo aos 13 anos de idade.
Graduou-se em violoncelo na classe do professor Alceu Reis, na UNIRIO, e obteve
um mestrado em violoncelo na Florida International University (Miami), e um em jazz,
na University of Louisville (Kentucky), onde frequentou o James Aebersold Jazz
Program. Atualmente, é professor de violoncelo e de improvisação no jazz na
Campbellsville University, Kentucky (EUA).
Foi o primeiro brasileiro a participar dos importantes eventos NY Cello Night e New
Directions Cello Festival, ambos em Nova York, onde apresentou-se e ministrou
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Fez parte do grupo Aquarela Carioca, cujos integrantes conheceu enquanto estudava
na Escola de Música da UNIRIO, grupo de referência na música instrumental brasileira
na década de 1980. Mendonça (2006) ressalta a relevância deste trabalho de Coimbra
junto ao Aquarela Carioca como capital na divulgação do violoncelo como um
instrumento de destaque em grupos de música popular brasileira.
Apesar de seu trabalho com este grupo, não deixou de se dedicar à sua carreira solo
e também de estabelecer parcerias diversas com artistas como Zeca Baleiro, Wagner
Tiso, Caetano Veloso, Ivan Lins, Elza Soares, dentre outros. Alcançou
reconhecimento internacional, apresentando-se em Montreaux e Nova Iorque. Em
2004, lançou seu primeiro disco solo, Ouro e Sol, com composições próprias e
também arranjos nos quais canta e toca violoncelo. Juntamente com Jaques
Morelenbaum, sua carreira é emblemática, pois são os primeiros violoncelistas que
optaram por dedicar-se exclusivamente ao trabalho com música popular, sem ter que
buscar meios de sobrevivência em mercados voltados para a performance da música
erudita. (AMARANTE, 2007)
música popular, eles iniciaram um trabalho que vem cada vez mais se diversificando
e ganhando novas possibilidades. À semelhança dos casos de diversos artistas
citados, ao longo dos anos foram muitos os violoncelistas que dedicaram suas
carreiras à música erudita sem deixar, contudo, de participar de shows e gravações
junto a artistas populares, prática que se verifica até os dias atuais. O trânsito desses
músicos entre esses dois mercados distintos é habitual.
Também é possível verificar que o número de instrumentistas que opta pelo gênero
popular como o principal e único foco de suas carreiras tem aumentado de maneira
significativa. Desta nova geração de violoncelistas, destacamos os trabalhos de Dom
La Nena8, Marcelo Vieira9, Di Freitas10, Federico Puppi11 e Felipe José12, a partir dos
8Iniciou seus estudos de violoncelo em sua cidade natal, Porto Alegre (RS). Ainda na infância, mudou-
se para Paris, onde viveu por cinco anos. Regressando ao Brasil, residiu um breve período no Rio
Grande do Sul antes de transferir-se para Buenos Aires, a fim de concluir seus estudos de violoncelo
sob a orientação de Christine Walevska. Posteriormente, regressou a Paris, onde vive atualmente. Foi
na capital francesa que iniciou sua carreira na música popular, trabalhando tanto em parcerias como
sozinha. Já lançou dois álbuns, além de ter realizado outras gravações também, nos quais apresenta
obras autorais. Embora reconheça a música brasileira como uma de suas fontes de inspiração, seu
estilo é próprio e mescla as diversas influências que sofreu durante a vida nos países em que viveu.
Em seus álbuns, Dom La Nena faz uso de recursos eletrônicos, como pedais de looping, além de tocar
diversos instrumentos e cantar. (NENA, 20??)
9Graduou-se em violoncelo na Universidade Estadual de Campinas, obtendo o mestrado em violoncelo
e jazz na Louisiana State University, nos EUA. É membro da Mississipi Symphony Orchestra e atua no
sul dos Estados Unidos tanto na área erudita como na popular. Compõe trilhas para teatro e dança,
além de trabalhar como produtor. Dentre os artistas com os quais trabalhou, destacam-se: Orquestra
Popular de Câmara, Luiza Possi, Falamansa, dentre outros. Dedica-se à prática da improvisação e à
performance do violoncelo em conjunto com a voz. Tem sido convidado como artista e professor de
importantes festivais, como Rio Cello Encounter (Brasil) e New Directions Cello Festival (EUA).
(VIEIRA, 20??)
10 Natural de Fortaleza, Francisco Ferreira de Freitas Filho, conhecido como Di Freitas, estudou
violoncelo e violão clássico. Atuou por alguns anos como violoncelista erudito, tendo integrado a
Filarmônica de Goiás. Há oito anos, mudou-se para Juazeiro do Norte (CE), onde atualmente dedica-
se à construção de instrumentos de cabaça (rabecas, violoncelos, violas, etc.), além de lecionar no
SESC local. Criou a Orquestra de Rabecas SESC - Cego Oliveira, a qual dirige e coordena. Dedica-se
ainda à performance dos instrumentos que constrói, tendo gravado um álbum autoral, O Alumioso, pelo
Selo SESC. (FREITAS FILHO, 20??)
11 Italiano, reside no Brasil há cerca de três anos. Iniciou seus estudos de violoncelo aos 4 anos de
idade. Formou-se em violoncelo na Itália, onde atuou no mercado da música de concerto. Durante um
breve período, estudou jazz e World Music em Barcelona, Espanha. Ao radicar-se no Brasil, criou um
duo com a cantora Mari Blue. Posteriormente passou a integrar a banda da cantora Maria Gadú,
atuando inclusive na coprodução de seu álbum mais recente, Guelã, lançado em 2015. (PUPPI, 201?)
12 Nascido em São João Del Rei (MG), graduou-se em composição musical na Universidade Federal
de Minas Gerais. Apesar de o violoncelo ocupar lugar de destaque em sua carreira, é multi-
instrumentista e desenvolve trabalho autoral, tendo lançado recentemente seu primeiro álbum:
CIRCVLAR MVSICA. Já integrou o Grupo RAMO e a Itiberê Orquestra Família, além de ter tocado com
importantes nomes da música brasileira, como Egberto Gismonti. Leciona no curso de música da
Universidade Federal da Integração Latino-Americana. (JOSÉ, 20??)
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quais é possível constatar que o violoncelo não ocupa mais o papel de coadjuvante
que ocupou outrora; ao contrário, tem ganhado cada vez mais destaque e valorização
na música popular brasileira nos grupos que integra.
Além de seu núcleo familiar mais próximo, Morelenbaum (2014) também relata o
envolvimento de primos e tios com a música. Jaques e Henrique Niremberg, irmãos
de sua mãe, tocavam violino e viola, respectivamente, e integraram por muitos anos
o Quarteto Brasileiro da UFRJ, de destacada atuação nacional e internacional, ao lado
de Santino Parpinelli e Eugen Ranevsky.
Jaques Morelenbaum iniciou os estudos formais de música aos três anos de idade,
em um curso de formação musical com a professora Ester Scliar, ingressando, em
1959, no Curso de Iniciação Musical da Escola Nacional de Música da URFJ
(MORELENBAUM, 2015). Posteriormente, aos seis anos de idade, ingressou na
classe de piano da professora Saloméa Gandelman, nos Seminários de Música Pro-
Arte, escola de música localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro. A convivência neste
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Além dos estudos de música em casa, supervisionados de perto pela mãe, Jaques
relata que frequentava, desde muito jovem, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro,
local que, por muitas vezes, servia como palco de brincadeiras, mas, ao mesmo
tempo, onde ele podia escutar balés, óperas e os mais variados espetáculos musicais,
familiarizando-o com o ambiente orquestral desde a mais tenra infância.
(MORELENBAUM, 2012) A escolha pelo violoncelo retrata o impacto causado pelo
ambiente familiar em sua trajetória:
Para mim foi muito natural porque meu pai tocava violino e eu nasci numa
casa de músicos. Meu pai trabalhava no Theatro Municipal do Rio e aquilo
era a minha segunda casa. [...] quando tinha 12 anos resolvi estudar [...] um
instrumento melódico. Eu cheguei a pensar em oboé, mas eu estava andando
de carro com meu pai e ouvi uma sonata de Brahms para violoncelo e piano.
Naquele momento deu um estalo: “não, acho que é esse instrumento”, porque
ele tem um timbre que se assemelha muito com a voz humana e tem uma
certa melancolia e ao mesmo tempo tem uma certa agressividade e eu me
identifiquei com esses dois predicados. (MORELENBAUM, 2012)
13 Paulina D’Ambrosio foi grande pedagoga do violino no Brasil, tendo formado muitas gerações de
instrumentistas, dentre os quais podemos citar: Santino Parpinelli, Ernani Aguiar, Natan Schwartzman,
Guerra-Peixe, Henrique Morelenbaum, dentre outros (Bosisio, 1995, p. 31).
48
diversos cursos e festivais com temáticas bastante diversas, como violoncelo, música
de câmara, regência coral, técnica vocal, composição e análise musical.
Entre 1972 e 1975, Morelenbaum integrou o grupo Pro-Arte Antiqua, que tinha entre
seus integrantes nomes como Rosana Lanzelotte, Homero de Magalhães Filho,
Bernardo Bessler e Leo Gandelman. O grupo tinha como foco a performance de
repertório de música barroca e renascentista, e ele teve a oportunidade de tocar viola
da gamba, além de reger e escrever arranjos. (MORELENBAUM, 2015) A atividade
do conjunto foi intensa e incluiu gravação de discos e concertos em todo o Brasil.
Ainda na década de 1970, Morelenbaum envolveu-se também com a atividade de
regência coral, estando à frente de corais de escolas, empresas e do Coral Pro-Arte,
grupo ligado aos Seminários de Música Pro-Arte que teve destacada atuação entre os
anos de 1975 e 1978.
Apesar dessa experiência com a música popular brasileira, na verdade o rock foi o
primeiro gênero que despertou o interesse de Jaques pela música popular. A exemplo
de muitos jovens de sua geração, o movimento do rock inglês encabeçado por bandas
como The Beatles e Rolling Stones atraiu Morelenbaum não só por razões musicais,
mas também por todo o contexto que trazia consigo, como novos costumes e
maneiras de pensar e agir. Ele relata que, em 1964, aos 10 anos de idade, descobriu
os Beatles, sinalizando uma importante ampliação em seus horizontes do fazer
musical.
Por parte de minha mãe a família é comunista, gente russa que veio para cá
depois da revolução devido a perseguições [...] mas eles foram educados em
princípios comunistas. Então a ditadura caiu sobre a minha cabeça ao mesmo
tempo em que os Beatles me trouxeram fantasia e a vontade de fazer a minha
música, eu que nasci em um berço cheio de música. Haviam pessoas que
manipulavam essa arte com muito talento e abriam muitos caminhos e muitas
cabeças e tudo isso era muito estimulante e interessante, eram coisas a se
seguir. (MORELENBAUM, 2012)
Essa divisão entre música erudita e popular apontada por Jaques acabou por se
materializar justamente no uso que ele fazia do violoncelo. Enquanto ele se permitia
experimentar com outros instrumentos, o violoncelo continuou, durante um certo
tempo, com utilização restrita apenas ao meio erudito, conforme narrado em
entrevista:
Egberto Gismonti foi presença constante durante a curta carreira do grupo, chegando
a produzir e participar como instrumentista em duas faixas de seu primeiro disco,
também denominado A Barca do Sol, lançado ainda no ano de 1974. O grupo teve
duas formações, a primeira, entre os anos de 1973 e 1975, contava com Nando
Carneiro (violão e vocal), Muri Costa (violão, viola, percussão e vocal), Beto Rezende
(guitarra, violão, viola e percussão), Marcelo Costa (bateria e percussão), Rui Mota
52
A Barca do Sol foi classificada, na época, como um grupo de rock progressivo. Muito
embora a influência do rock fosse de fato prevalente, os músicos não se fecharam a
outras influências dos muitos movimentos que ocorriam naquele período. A música
mineira do Clube da Esquina, o movimento tropicalista e até mesmo a bossa nova
foram ingredientes importantes na construção do estilo peculiar da banda, que, devido
à juventude dos integrantes, era altamente aberta a novas tendências e
experimentações. Conforme comenta Morelenbaum (2001): “A gente tinha um
comportamento muito definido, um estilo não tão definido assim. [...] O comportamento
era rock and roll: cabelos longos, calças rasgadas [...] todas as experiências possíveis.
E na música, uma mistura de influências.”
O repertório do grupo era quase todo composto por músicas autorais e havia um
grande espaço para improvisação. Segundo Morelenbaum (2015), os músicos
conviviam quase que diariamente e o processo de criação tinha um forte componente
coletivo. Este ambiente auxiliou o jovem violoncelista a romper com o academicismo
no qual estava envolta sua relação com o violoncelo, encorajando-o a criar, seja por
meio de composições e/ou improvisação. Nessa fase, ele utilizava sonoridades
diferentes e inesperadas, conjugadas com a sonoridade tradicional do instrumento,
lançando mão de recursos como técnicas não convencionais, ou técnicas estendidas,
e até mesmo distorções.
Jaques integrou a Barca do Sol durante quatro anos, período em que a banda gravou
dois álbuns: A Barca do Sol (1974) e Durante o Verão (1976). Também participou do
álbum Corra o Risco (1978), da cantora carioca Olívia Byington, todos pela gravadora
Continental. Em 1979, o grupo lançou ainda o álbum Pirata, que continha
composições de Jaques Morelenbaum, muito embora ele já não integrasse o conjunto.
fazem dele uma exceção, a partir do nível revelado por cada um dos sete
instrumentistas” (KUBRUSLY, 1975); e a crítica do Jornal Opinião ao segundo álbum,
Durante o verão:
Embora agradasse à crítica, o conjunto não se manteve por muito tempo, pois não
conseguiu angariar um grande público, pelo fato de o repertório não ter apelo
comercial, de maneira que a venda dos discos gravados e a realização de shows não
se mostraram suficientes para garantir a sobrevivência dos integrantes. Eles se
mantiveram juntos ainda por três anos após a saída de Morelenbaum, ocorrendo, a
seguir, a dissolução da banda.
que importava era o universo da música erudita, e [...] no Brasil, nessa época,
a vida profissional do músico erudito – a não ser que se revelasse um grande
solista e saísse do Brasil – era difícil. Então, ele queria que eu buscasse outra
profissão. Quando entrei para a Barca do Sol, percebeu que aquilo era uma
opção de vida. Tivemos um período conturbado... Mas também já era época
de sair de casa, buscar o meu próprio rumo. (MORELENBAUM, 2001)
Jaques, apesar da discordância de seus familiares, seguiu em sua escolha, pois sentia
“uma paixão muito grande [...] por esse movimento, por esse direcionamento de
música”. (MORELENBAUM, 2014) Pelo relatado, podemos perceber que uma série
de eventos concorreram para alavancar o violoncelista em sua busca por novos
entendimentos e significados, seja em sua arte, ou mesmo em sua vida, ampliando
seus horizontes de fazer artístico e musical, iniciando um processo de quebra de
barreiras, artificialmente construídas por sua formação, entre os universos erudito e
popular.
O projeto da Barca do Sol, apesar de marcante, teve duração muito curta na carreira
de Jaques. Embora ele narre ter havido divergências com seu pai, foi este quem
acabou por direcionar sua escolha em seu último período de formação. Sobre sua
saída da Barca do Sol, Jaques relembra:
Eu já [...] tinha 24 anos, e senti que aquilo não ia ter muito futuro. [...] Em
conversas com meu pai eu concluí que eu tinha que retomar os estudos, [...]
me aprofundar mais para ter uma profissão sólida. [...] Entrei na Escola
Nacional de Música, mas para a cadeira de regência. [...] Eu regia coral desde
os 17 anos [...] sem ter nenhuma aula, nenhuma formação, a não ser ficar
observando meus maestros das orquestras que eu tocava e meu pai também.
Então eu tinha essa vontade e entrei no curso de regência. Quando fiz 24
anos resolvi voltar a ter aulas de violoncelo e me matriculei no New England
Conservatory. Eles me admitiram no 3º ano, de 4. Eu mandei fitas minhas
tocando e mandei meus créditos que tinha na Escola Nacional de Música.
Cheguei lá, fiz testes e eles me aceitaram no 3º ano. Eu estudei lá 2 anos, fiz
um recital de graduação e me formei bacharel em violoncelo. Lá eu tive a
oportunidade de estudar com a Madeline Foley, que foi discípula do Pablo
Casals. (MORELENBAUM, 2015)
atuação de sua professora, uma ex-aluna do grande violoncelista. Além dos estudos
de violoncelo, Jaques pôde, nessa escola, dar continuidade à prática orquestral e de
música de câmara que já desenvolvia no Brasil, tendo participado de formações
diversas no período em que lá esteve. Ele residiu em Boston por dois anos, até o fim
de sua graduação em violoncelo.
O interesse na criação, manifestado cedo por Jaques, fez com que ele se envolvesse
desde muito jovem com as atividades de compositor e arranjador, que puderam ser
aprimoradas durante sua estada em Boston. Segundo ele, o fator que foi determinante
para seu aprendizado, na metodologia empregada por McKinley, foi a oportunidade
que era dada aos alunos de ouvirem seus trabalhos sendo interpretados por músicos
que, por vezes, ainda davam um retorno sobre questões técnicas e musicais próprias
de seus instrumentos para a turma. Esse processo de aprendizado, a partir da escuta
do resultado sonoro de seus arranjos e composições, prosseguiu durante toda sua
carreira, levando-o a afirmar que seu maior aprendizado nesta área se deu, de fato,
com o ofício, ou seja, o aprimoramento e o aprofundamento surgiram a partir de sua
experiência. (MORELENBAUM, 2015)
o programa, a metodologia ali aprendida fez-se presente durante toda sua carreira, o
que pode ser aferido em diversas entrevistas do artista. Ele descreve sua experiência
da seguinte forma:
Suas vivências nas aulas de Blake, bem como nas aulas de composição de McKinley,
ajudaram a reforçar seus conceitos sobre a performance do instrumento. Embora
durante toda a sua formação o enfoque tenha sido predominantemente instrumental,
seja por meio do piano, ou do violoncelo, a prática do canto é encarada por Jaques
como primordial na busca de uma expressão musical mais efetiva. Este conceito, que
59
Nesse período, a atuação em orquestras tornou-se sua principal atividade, sem que
ele, contudo, abandonasse seus outros interesses, como a música popular, a
composição e os arranjos. Jaques integrou, durante oito anos, a Orquestra do Theatro
Municipal do Rio de Janeiro, onde ocupava a cadeira de segundo solista, substituindo
o violoncelista Alceu Reis, chefe de naipe, em suas folgas. Participou da montagem
de diversas óperas e de relevantes concertos, como a performance das Bachianas
Brasileiras nº 5, de Heitor Villa-Lobos, sob a direção do renomado violoncelista e
maestro Mstislav Rostropovich. A destacada posição que ocupava no grupo rendeu a
Morelenbaum certo reconhecimento, possibilitando novas oportunidades de trabalho,
como participações eventuais, na Orquestra Sinfônica Brasileira e na Orquestra
61
14Flautista e maestro brasileiro com destacada carreira. Fundou a Orquestra de Câmara de Blumenau
e o Festival de Música de Londrina. Atuou como professor na Escola de Música da Universidade
Federal de Goiás.
15 Grupo vocal misto atuante no Rio de Janeiro entre os anos de 1979 e 1984. O grupo mantinha a
divisão de vozes tradicional do coral, embora tivesse um número de integrantes reduzido. Surgiu a
partir do trabalho desenvolvido pelo Coral dos Seminários de Música Pró-Arte e tinha em seu repertório
a música brasileira, popular e erudita.
62
Antes de sua ida aos Estados Unidos, em 1978, Morelenbaum já havia adquirido
alguma experiência na escrita de arranjos e composições para o grupo A Barca do
Sol, do qual era integrante, além dos corais que regia e alguns trabalhos mais ligados
à música erudita. Após seu retorno ao Brasil, esse envolvimento com o segmento de
gravação em estúdio rendeu a ele muitos contatos e oportunidades, que propiciaram
a consolidação de sua carreira também nessa área. Tal como ocorreu com suas
performances em gravações, a maioria dos arranjos e composições que escreveu
nesse período foram sob encomenda para artistas e trabalhos específicos, também
abrangendo gêneros musicais variados.
Este ambiente de múltiplas possibilidades motivava o artista. Ele deixa claro seu
interesse na música de forma vasta e considera que a atividade como arranjador e
também produtor é mais um modo de se envolver com ela amplamente
(MORELENBAUM, 2001). Para ele, as atividades que desempenha no campo musical
não são excludentes entre si; na verdade, são complementares e análogas:
compositor. Acho que o maestro, assim como o instrumentista, tem que ser
dono da música, tem que conhecer a música como se ele a tivesse composto.
Para isso você acaba mergulhando dentro da música e conhecendo ela como
o compositor. Então reger me ajuda a compor, compor a tocar e tocar me
ajuda a reger e compor também. (MORELENBAUM, 2015)
Além dessa forma de encarar as diferentes facetas da prática musical, vale ressaltar
que, igualmente, ele não demonstrava preferência entre gêneros e estilos musicais,
sendo aberto a todo tipo de música e influência, não importando se de origem erudita
ou popular. Tal posição fica evidente quando ele se refere aos nomes de Tom Jobim,
Villa-Lobos, Brahms e Stravinsky, como os compositores que mais admira. Já dentre
os arranjadores, destaca o nome de George Martin, arranjador dos Beatles que, em
sua opinião, unia o universo sinfônico e a linguagem da música erudita com o rock em
seus arranjos. Outro músico admirado por ele é o brasileiro Rogério Duprat,
violoncelista, compositor e arranjador que desempenhou importante papel no
movimento da Tropicália, e que, nas palavras de Morelenbaum (2015), “tinha esse
caminho que ultrapassava e quebrava as fronteiras” entre os universos erudito e
popular.
Ainda durante esse período inicial de seu retorno ao Brasil, Jaques também dedicou-
se à composição de trilhas, ramo em que se destacaria posteriormente. Em 1985, ele
compôs a trilha sonora para a peça Carmem com filtro, de Gerald e Daniela Thomas,
que foi premiada com o Troféu Governador do Estado (SP) e com o Prêmio
Mambembe (SP). Já em 1989, compôs a trilha do desenho animado Contem Comigo,
de Ziraldo, juntamente com Antonio Pinto. Esta última parceria viria a ser duradoura,
rendendo a Jaques muitos frutos.
É possível perceber que o período de regresso ao Rio de Janeiro trouxe para o músico
uma série de oportunidades de realizar atividades que ele tinha iniciado antes de sua
saída do país, quando integrava o grupo A Barca do Sol. Além de todas as citadas
anteriormente, Morelenbaum teve oportunidade de produzir álbuns de alguns grupos
e artistas, como o Céu da Boca, Elomar, Xangai e o disco Entre um silêncio e outro,
do violoncelista mineiro Marco Antônio Araújo. No decorrer de sua carreira, as
atividades de produção e direção artística ganharam cada vez mais relevância.
64
Na verdade, minha vida nunca foi muito organizada, porque eu sempre tive
um interesse muito grande por campos distintos da música. Eu não queria ser
só um violoncelista, só um maestro, só um arranjador, só um compositor. Eu
queria fazer de tudo, porque eu achava que era assim que eu ia me satisfazer.
As oportunidades foram surgindo. Eu toquei muito, durante toda minha
formação acadêmica como violoncelista, em orquestras, quartetos, grupos de
câmara. Quando eu voltei dos Estados Unidos, me dediquei cada vez menos
à música erudita, mas mesmo assim eu continuava tocando.
(MORELENBAUM, 2015)
Após a morte de Vinícius de Moraes, Jobim fez uma pausa, durante a qual esteve
afastado de performances para o público, e em 1984 retomou as apresentações,
formando este novo grupo chamado Nova Banda, também conhecido como Banda
Nova. A formação inicial incluía Paulo Jobim (violão), Danilo Caymmi (flauta e vocal),
Paulo Braga (bateria), Tião Neto (baixista), Ana Jobim, Simone Caymmi e Beth Jobim
(vocais). Retornando ao Brasil, Tom Jobim sentiu necessidade de ampliar o grupo
vocal feminino, convidando Maúcha Adnet e Paula Morelenbaum, cujos trabalhos
conhecera por meio do grupo vocal Céu da Boca. A entrada de Jaques no conjunto
seguiu-se à das duas cantoras, e o convite deu-se de forma muito peculiar:
Era uma banda muito familiar: tinha o filho dele, a filha dele, a mulher dele,
alguns casais, eu e a Paula Morelenbaum, minha mulher, o Danilo Caymmi e
a mulher dele. Tinha um clima muito gostoso e atraente. Nos primeiros anos
de Nova Banda, a gente se reunia todos os dias, sábado, domingo, de
segunda a sexta, para tocar. Quando tinha show e quando não tinha. A gente
se reunia todas as noites, ficava em volta do piano... Era uma festa. Era muito
rico pra gente estar lá bebendo aquela inspiração toda das músicas dele
mesmo e das músicas que ele curtia de outros compositores. Foi uma época
muito fértil e maravilhosa para mim. Eu tive oportunidade não só de tocar nos
concertos com ele, mas de gravar uma série de discos e projetos, trilhas que
ele fez, e de arranjar pra ele, de produzir discos dele também e de conviver
diariamente com um mestre, uma figura humana muito especial.
(MORELENBAUM, 2014)
Essa verdadeira imersão no universo de Tom Jobim experimentada por Jaques foi
muito marcante e trouxe diversos desdobramentos positivos em sua carreira. A Nova
Banda foi o primeiro grupo de sucesso na música popular brasileira do qual ele teve a
oportunidade de fazer parte. Além do aprendizado musical, as oportunidades de
envolvimento em outros projetos também cresceram bastante, à medida que sua
exposição na mídia e sua rede de contatos ia crescendo. A confiança de Jobim em
seu trabalho, trouxe novas possibilidades para Morelenbaum nas diversas funções
que o interessavam na música, fosse como violoncelista, arranjador, compositor ou
produtor.
O trabalho com o grupo de Gismonti era bastante distinto do realizado pela Nova
Banda. Enquanto, com Jobim, o foco era a música cantada, o grupo de Egberto
dedicava-se à música brasileira instrumental, com forte influência do jazz. Entre 1988
e 1990, Morelenbaum excursionou com Gismonti pelo Brasil, Europa e Estados
Unidos, apresentando o espetáculo Egberto Gismonti e Academia de Danças. Sobre
a formação do grupo e escolha dos músicos que o integraram, Gismonti comenta:
Enquanto no trabalho desenvolvido com Tom Jobim havia uma hierarquia clara entre
o cantor e os demais integrantes da banda, o grupo de Egberto trouxe maior
protagonismo para Morelenbaum. Essa diferença de concepção na formação do
conjunto deixa claro que a opção de Gismonti em convidar o violoncelista não tinha
apenas relação com seu trabalho como instrumentista; antes, demonstra a afinidade
musical entre ambos em diversos níveis, não obstante Morelenbaum (2015)
considerar o repertório deste grupo mais desafiador, em termos técnicos, enquanto
violoncelista. As sugestões, ou intervenções de Jaques eram bem acolhidas no
69
O primeiro projeto que realizaram juntos foi o álbum e a turnê Circuladô, com duração
de três anos. Nesse período, Jaques pôde adaptar-se ao estilo de Caetano, que,
segundo ele, outorgava-lhe muita liberdade de escolha durante a performance.
Morelenbaum aproveitou essa característica para desenvolver uma maior autonomia
com relação à partitura, que até então era peça fundamental em suas performances,
tanto com Jobim quanto com Gismonti. (MORELENBAUM, 2015) Enquanto nos outros
grupos a improvisação era o único momento de variação, com Caetano havia maior
liberdade de modificar os arranjos entre uma apresentação e outra, o que trouxe maior
liberdade ao violoncelista.
O Fina Estampa foi o primeiro disco que eu tive inteiro para arranjar, então
eu desenvolvi muito esse lado de arranjador, e com a reponsabilidade enorme
de escrever para um artista que eu prezava tanto e que era tão conhecido
também. Cada momento que eu tive com o Caetano me desenvolveu e me
deu a oportunidade de desenvolver em outras áreas. (MORELENBAUM,
2015)
A relação entre ambos era de confiança, o que criava um ambiente propício para a
criação. Ela também foi bastante frutífera, indo muito além dos projetos do cantor e
sua banda. O aspecto mais relevante para Morelenbaum foi a liberdade de criação e
experimentação. Embora estivesse subordinado às ideias de Veloso, dentro de certos
71
Caetano sabe muito o que quer, ao mesmo tempo sempre me deu muita
liberdade. [...] Por muitas vezes ele me dava liberdade completa. “Toma a
música e faz o que quiser”. Na maioria das vezes tinha uma ideia muito clara
do que queria em termos de instrumentação. [...] Ele sempre me deu total
liberdade e não me recordo de nenhuma vez que ele modificou algo que eu
havia feito. É um estímulo muito grande e uma responsabilidade muito grande
também, porque é um artista que eu gosto muito e tocar em sua obra é uma
grande responsabilidade. (MORELENBAUM, 2008)
A parceria entre ambos durou 14 anos, entre os anos de 1992 e 2005. Nesse período,
Jaques participou da gravação dos álbuns do cantor, desempenhando diversas
funções além da performance do violoncelo, como produção, arranjos, regência,
performance vocal, dentre outros. Foram lançados os seguintes CDs: Circuladô
(1992), Circuladô Vivo (1992), Fina Estampa (1994), Fina Estampa Ao Vivo (1995),
Livro (1997), Prenda Minha (1998), Noites do Norte (2000), Noites do Norte Ao Vivo
(2001), A Foreign Sound (2003). Ao lançamento desses discos, seguiram-se turnês
extensas por várias partes do mundo, incluindo países da Europa, Estados Unidos,
Canadá, México, Japão, América do Sul, Israel e quase todos os Estados brasileiros.
Outra vertente profícua dessa parceria foram as composições de trilhas sonoras para
o cinema. É de autoria de Veloso e Morelenbaum a trilha do premiado filme O
72
instrumental foi alvo do interesse do violoncelista desde muito cedo, bem como o
desejo de desenvolver um trabalho próprio, em que o violoncelo fosse o protagonista.
Sobre a música instrumental, Morelenbaum afirma:
Além dessa busca por outros níveis de significação em sua música, outra questão
sempre presente para o violoncelista foi a construção de uma carreira solo. Devido à
grande demanda de trabalhos em parceria, seja como instrumentista, produtor,
compositor, arranjador, etc., Morelenbaum acabou por postergar o momento de
dedicar-se a um trabalho solo, por meio do qual pudesse explorar todas as
possibilidades de seu instrumento.
Foi somente a partir de 2005 que Jaques começou a realizar este antigo desejo por
meio de um novo projeto, denominado Cello Samba Trio. Além de Morelenbaum,
estão envolvidos neste projeto os músicos Lula Galvão, violonista, e Rafael Barata,
baterista e percussionista. Embora possamos dizer que este trabalho tenha sido
derivado de uma vontade do artista, seu início se deu quase que por casualidade,
conforme narra:
dedicando muito tempo para a minha carreira solo. O Cello Samba Trio foi
esse momento de resolver me dedicar ao meu caminho pessoal. Como
violoncelista brasileiro, eu queria tocar música brasileira. Música boa
brasileira, ou música brasileira de uma forma boa, que me agradasse.
(MORELENBAUM, 2015)
Procurei trazer canções que eu gosto, [...] e fazer uma homenagem aos
músicos com quem eu venho tocando. Então tem música do Tom Jobim; tem
músicas, como o Eu vim da Bahia, do Gilberto Gil [...]; tem música do Caetano
Veloso, Coração Vagabundo; tem composição do Egberto Gismonti, Salvador
[...]. A ideia [...] é essa: trazer o universo da música, do samba, que eu gosto,
e especialmente mencionar esses amigos, grandes músicos brasileiros.
(MORELENBAUM, 2010)
Jaques Morelenbaum é um músico versátil, que se dedicou aos mais diversos campos
do fazer artístico e musical durante sua longa carreira. Desde seu início, na música
erudita, e mesmo após sua opção por trabalhar exclusivamente com a música popular,
o violoncelo sempre foi sua principal ferramenta de expressão, permanecendo da
mesma forma até o presente momento. Dedicou-se predominantemente à
performance do instrumento, bem como à composição, regência e elaboração de
arranjos. Embora tenha algumas poucas experiências didáticas em seu currículo, não
desenvolveu muito esse lado, optando por estar mais envolvido com o fazer musical
em si.
Destarte, a história oficial, da qual se tem registro, narra quase que exclusivamente a
construção do que conhecemos hoje como a técnica erudita do instrumento. Nesse
contexto, a partir da atuação dos italianos, desenvolvem-se algumas escolas
nacionais na Europa, que têm grande influência e relevância por terem lançado as
79
bases técnicas do que é praticado até os dias atuais, como a Escola Francesa, com
Berteau, Bréval, os irmãos Duport e, posteriormente, a fundação do Conservatório de
Paris, no século XIX; a Escola Alemã, onde destacaram-se nomes como Romberg,
Dotzauer; e a Escola Inglesa, que se desenvolveu muito a partir da criação da
Academia Real de Música, em 1822. (Walden, 2004)
Ainda no século XIX, houve uma proliferação de escolas de violoncelo por toda
Europa, alcançando países que até então tinham papel inexpressivo no ensino do
instrumento, como Holanda, Bélgica, Rússia e Hungria, além do fortalecimento das já
estabelecidas escolas italiana, francesa, alemã e inglesa. O século XX testemunhou
uma maior internacionalização deste movimento, até então restrito ao continente
europeu. A atuação de grandes virtuoses e pedagogos do instrumento, como Casals,
Piatigorsky, Pleeth, Tortelier, Navarra, Rostropovich, Yo-Yo Ma, dentre outros,
contribuiu para a disseminação do instrumento em um nível nunca visto anteriormente,
destacando-se ainda o aparecimento de mulheres entre os performers de maior
destaque, como Jacqueline Du Pré, Zara Nelsova, Natalia Gutman, Guilhermina
Suggia e Sol Gabetta. (CAMPBELL, 1999)
17Tradução da autora a partir do original em inglês: The left hand became liberated from its customary
position-sense and the traditional diatonic framework, thanks to increased chromaticism, whole-tone,
microtone and other scale patterns, glissandi and unusual non-consonant double and multiple-stopping.
Extreme applications of vibrato have been prescribed […] and traditional usages have been reversed
[…] A wide variety of pizzicato effects has been developed […] and harmonics and scordatura have
been exploited for their colouristic potential. Bowing technique developed in the twentieth century as a
result of composers’ demands on players […] Percussive effects on various parts of the instrument and
sounds extraneous to the cello, such as vocal and electronic effects, have also been added to the
contemporary language, which has been further complicated by various notational and extra-musical
factors. (UITTI, 1999, p. 211)
82
[...] O idiomatismo indireto, pode ser exemplificado pelo uso sistemático por
parte do compositor, das teclas brancas e pretas do piano como processo
composicional. Esta fórmula não foi usado por causa do violoncelo, mas sim
em função de um processo composicional, mas que traz consequências
diretas para o desenvolvimento idiomático do instrumento. Portanto, [...] um
determinado elemento somente será considerado idiomatismo indireto,
quando influir na técnica do violoncelo, interferindo e/ou reforçando, em
função disso, o idiomatismo do instrumento. (PILGER, 2013, p. 175)
Por outro lado, a música contemporânea abriu todo um leque de novos meios de
expressão até então não explorados pelos violoncelistas, ampliando as possibilidades
idiomáticas do instrumento. Presgrave (2009, p. 1) levanta uma interessante questão
em sua tese, que aborda a performance do violoncelo na música contemporânea,
quando questiona: “como fazer um instrumento nascido no Século XVI ter vida nos
dias de hoje?” Ele mesmo responde à indagação, apontando novos e diversos
caminhos para a performance do instrumento:
18 Tradução da autora a partir do original em inglês: The number of musicians participating in free
improvisation has increased in recent years, as has the audience for it. These musicians open new
musical horizons and add fresh insights into technical development with unconstrained experiments in
language and sound.Instant composi- tion may result in the element of surprise, with spontaneous
creation of new themes and forms. Electronics have revolutionised improvisation through the use of
amplification, sound-modifying tools, live sampling and computer programs. It is now possible for a
single cello to produce all the sounds of the orchestra, with a dynamic range rivalling that of a rock band.
84
O histórico do violoncelo no jazz é mais antigo que na música popular brasileira, não
sendo, contudo, muito longo, pois data da década de 1940 seu uso mais sistemático
como instrumento solista. Nesse período, o avanço de dispositivos eletrônicos, como
o microfone, propiciaram que instrumentos com menor projeção sonora, como o
violoncelo, pudessem ser incorporados aos conjuntos de jazz que dispunham de
seções de instrumentos de metal com grande projeção sonora. (NORMAN, 2002, p.
41)
19 Tradução da autora a partir do original em inglês: Today there are several generations of cellists
performing various types of improvised music, both as soloists and in groups. The most notable of the
earlier generation of cello improvisers are Eugene Friesen and David Darling. In the 1980’s, Strings
magazine began to publish articles on non-traditional or alternative string styles and the Turtle Island
String Quartet brought jazz works for string quartet to mainstream audiences. The later generation of
cello improvisers includes many who play as soloists with electronics or in small groups. Players of this
new generation include Matt Turner, Hank Roberts, David Eyges, Matt Brubeck, Erik Friedlander and
others. Many of these cellists, however, have undertaken some form of jazz study in order to expand
their improvisational vocabulary. (ISAACSON, 2007, p. 4-5)
85
Tal conjuntura contribui para que haja um amálgama entre os estilos clássico e popular
de performance, resultando em diferentes abordagens e formas de tocar o
20 Tradução da autora a partir do original em inglês: While the information in this book [...] guarantees
the prospective player a certain measure of success, it is by no means intended to replace the wealth
of excellent available string materials aimed primarily at producing a classical player. The materials from
classical studies should work in conjunction with the materials and information presented in this book.
(BAKER, 1995, p. 1)
21 Most cellists approach improvising as classically trained musicians who are learning this style later.
In a traditional music education curriculum, the paths of learning the cello and jazz are not integrated.
This integration of jazz education or improvisational techniques with traditional string training is a current
trend. (ISAACSON, 2007, p. 5)
86
Salles (2004, p. 20) define a arcada como sendo “o ato de ir e vir, [...] a direção do
movimento do arco em relação às notas”. Não há, portanto, qualquer ligação deste
termo com outras “marcações, como acentuação, articulação ou sonoridade”. No
trabalho da autora, o termo arcada é empregado também para designar um
agrupamento de golpes de arco. O golpe de arco, por sua vez, é conceituado como “o
tipo de movimento composto no qual a ação de grupos distintos de músculos definem
determinado tipo de sonoridade” (SALLES, 2004, p. 20). Este segundo conceito é mais
amplo que o primeiro, abarcando questões interpretativas e não somente mecânicas
do funcionamento do arco.
Dourado (2009), corroborando Salles (2004), define o golpe de arco como o “repertório
de maneiras diferentes de se articular uma única nota ou grupo de notas em
determinada célula musical por meio de um gesto técnico específico, passível de ser
identificado e denominado por uma expressão particular” (DOURADO, 2009, p. 13), e
a arcada como “a maneira com que o arco deve executar determinado trecho musical”
(DOURADO, 2009, p. 13). O autor apresenta ainda um terceiro conceito, o de
articulação, que é partilhado por todos os instrumentos musicais e “serve para
87
Sabemos que cada estilo musical tem uma linguagem idiomática que depende do
instrumento, uma maneira de tocar que diferencia os instrumentos entre si. A música
popular brasileira, por sua vez, apresenta também um “vocabulário” específico. Assis
(2010) afirma que “a manipulação do arco está relacionada com as necessidades do
repertório em conjunto com seus aspectos culturais, sendo possível, portanto, uma
organização dos golpes, arcadas e nomenclaturas mais adequados a um contexto
musical” (ASSIS, 2010, p. 23).
Tendo em vista uma análise mais completa do fenômeno estudado, será de extrema
relevância considerarmos as práticas de performance realizadas por outros
instrumentistas, bem como por cantores, na interpretação deste tipo de repertório. É
certo que Morelenbaum, além do arcabouço técnico do instrumento construído a partir
88
da sua formação erudita, sofreu, durante sua trajetória, diversas influências e, por não
haver muitos violoncelistas que se dediquem à prática da música popular, torna-se
relevante verificar em que medida estas foram utilizadas e/ou adaptadas em seu estilo
de performance.
deles são livros genéricos, que podem ser usados por qualquer instrumento de cordas,
ou ainda pelo violino e pela viola.
O violino, por sua vez, tem uma trajetória mais bem definida e relevante no contexto
da música popular brasileira. Silva (2005, p. 1-2) destaca o momento propício vivido
pelo violino no cenário popular no Brasil na atualidade. No entanto, chama a atenção
que o período das rádios, entre as décadas de 1940 e 1950, também foi de extrema
efervescência para o instrumento, destacando o papel de Fafá Lemos neste momento
histórico. O autor analisa o estilo de performance de Lemos em faixas selecionadas,
buscando encontrar paralelos com o estilo de Grappelli, principalmente no tocante a
estruturas de frase; convenções jazzísticas; uso de elementos interpretativos, como
rubatos, glissandos, harmônicos; e outros. Adicionalmente, ele ainda identifica as
características de performance tipicamente brasileiras utilizadas por Fafá, como:
ritmos característicos, alusão a instrumentos da música brasileira, articulação e
elementos que diferem do estilo de Grappelli. O autor ainda analisou elementos da
técnica do instrumento empregados pelo violinista. (SILVA, 2005)
[...] a contribuição de Fafá [...] foi de grande importância, pois soube criar um
estilo pessoal híbrido, sintetizando traços jazzísticos e nacionais
inteligentemente. Sua desenvoltura no instrumento propiciou a criação de
uma linguagem rica, exploratória de efeitos que denotam uma preocupação
grande com timbre e equilíbrio nos arranjos, qualidades por si só muito bem-
vindas na longa luta de libertação do instrumento de sua tradição erudita no
Brasil. Ao colocar o arsenal técnico e rico vocabulário erudito a serviço de
uma nova linguagem, refez os passos da história do violino em outras
músicas populares do mundo. (SILVA, 2005, p. 14)
Quando Fafá lança mão de sua formação erudita na construção de seu estilo,
aponta na direção de um caminho mais comum, tirando proveito de séculos
de tradição violinística na elaboração de sua voz particular dentro da música
popular brasileira, afinal, fazendo o mesmo que muitos outros instrumentistas
de instrumentos da tradição erudita, hoje consagrados dentro da música
popular, o fizeram. (SILVA, 2005, p. 15)
A importância de Fafá Lemos para o violino na música popular brasileira pode ser
aferida por meio da quantidade de estudos que têm, como temática, o instrumentista.
Não obstante a literatura sobre o assunto ainda seja restrita, grande parte dos estudos
tem, como objeto, o violinista, podendo ser encontrados os mais diversos tipos de
abordagens. Além do artigo de Silva (2005), há também o trabalho de Müller (2011),
que faz um breve relato biográfico do artista, destacando sua atuação como cantor,
seguido da análise das práticas de performance empregadas no repertório da música
popular brasileira, denominadas pelo autor de ferramentas de interpretação. Por meio
de transcrições, ele faz uma análise comparativa entre versões da mesma música
cantadas e tocadas ao violino por Fafá Lemos, buscando justificar as escolhas
técnicas e interpretativas do violinista a partir da relação da melodia tocada com a
letra da música. O autor busca explicitar as escolhas interpretativas efetuadas por
Lemos a partir da aproximação da sonoridade do violino com a voz, relação que mais
uma vez encontra paralelo com o praticado por Morelenbaum. Por fim, Müller (2011)
destaca elementos idiomáticos próprios dos instrumentos de cordas friccionadas
utilizados pelo violinista, a fim de imprimir o caráter da música brasileira em suas
interpretações.
Werneck (2013) traz um panorama do uso violino na música popular urbana carioca
entre 1850 e 1950. A autora narra a trajetória do instrumento, dentro do recorte
91
proposto, desde sua inserção na música de barbeiros no século XIX, passando pelo
choro, até sua consolidação no meio popular na época das rádios, nas décadas de
1940 e 1950. O texto tem um tom predominantemente histórico, contudo traz, em sua
parte final, discussões e análises sobre o estilo interpretativo de Irany Pinto e Fafá
Lemos, dois importantes expoentes da Rádio Nacional, além de traçar breve biografia
e discografia destes artistas.
O trabalho de Vieira (2013) destaca-se pelo mesmo motivo. Este autor analisa a
performance e a metodologia de ensino do violino na música popular brasileira a partir
do trabalho de Ricardo Herz, um dos mais relevantes intérpretes em atividade na
atualidade. À semelhança dos demais, o autor também traz um relato biográfico a fim
de compreendermos de que maneira o violinista em questão estabeleceu seu estilo
de performance. Herz não foge à regra dos demais instrumentistas de música popular,
tendo realizado sua formação em contexto erudito para, posteriormente, integrar-se à
performance da música popular. O violinista cunhou o termo “violino popular
brasileiro”, pelo qual designa seu estilo de performance, e criou uma metodologia de
ensino desta linguagem baseada nos métodos utilizados pelos conservatórios,
“traduzidos” para o estudo de ritmos brasileiros. Neste trabalho, não há análise de
uma performance específica; antes, são investigados os exercícios e conceitos
trabalhados por Ricardo.
92
Na música popular brasileira, estima-se que até meados dos anos de 1920 o
contrabaixo não era utilizado, os baixos (linhas melódicas de tessitura mais
grave) eram executados por formações instrumentais que não contemplavam
o instrumento, normalmente essas linhas melódicas eram feitas pelo violão
ou por algum instrumento de sopro. [...]é provável que uma participação mais
efetiva do instrumento na música popular brasileira ocorreria por volta da
década de 1930, onde o contrabaixo acústico começaria a ser utilizado de
maneira mais assídua como instrumento de base (acompanhamento) em
gravações, formações instrumentais e grupos regionais. (RIBEIRO, 2014, p.
32–33)
Neste ponto, é importante fazer uma ressalva, uma vez que, embora o papel de
acompanhamento relegado ao contrabaixo seja predominante, o instrumento vem
ganhando força ultimamente também como solista.
A diferença de papéis entre esses dois instrumentos pode ser um indício relevante
para compreendermos as diferentes abordagens encontradas nos textos
pesquisados. Nos textos sobre o violino, por mais que os autores analisem questões
variadas, como contexto histórico, práticas de performance, dentre outros, os
trabalhos acabam focando em um artista específico, ou no máximo dois, buscando
encontrar o estilo específico de performance de determinado sujeito em um repertório
ou gênero específico. O enquadramento proposto pelos autores que abordam as
práticas interpretativas do contrabaixo é deveras distinto, uma vez que se preocupam-
mais em descrever elementos e questões técnicas sem, contudo, delimitarem suas
discussões em torno de um contrabaixista específico. A maior presença do
contrabaixo em grupos de música popular também deve ser levada em conta, pois
indica que há um maior número de performers envolvidos com a atividade.
Embora pareça estar mais vinculado ao contexto da música popular devido à grande
representatividade que tem no jazz, o contrabaixo compartilha, com os demais
instrumentos da família do violino, algumas questões, principalmente no tocante à
formação e metodologias de ensino e aprendizagem. Sobre a formação dos
instrumentistas no Brasil, repete-se o panorama encontrado para os outros
instrumentos, considerando-se os contextos erudito e populares:
O trabalho de Assis (2010) tem foco bastante específico, tendo por objetivo tratar da
utilização do arco nas seções de improvisação realizadas pelo contrabaixo no
contexto da música popular brasileira instrumental, ou jazz brasileiro. O autor parte
das definições e conceitos da técnica de arco trazidos pela escola erudita e da análise
de diversos métodos de estudo de improvisação para contrabaixo no jazz, a fim de
traçar características próprias e práticas de performance que podem ser aplicadas
durante a realização de improvisos na música brasileira.
Assis (2010), contudo há múltiplos pontos de contato entre os dois trabalhos. Ribeiro
(2014) tem por objetivo demonstrar que arranjos de música popular brasileira podem
ser um recurso útil na ampliação do repertório e material didático do instrumento. O
autor também faz uma extensa revisão bibliográfica de textos e métodos estrangeiros
que versam sobre a utilização do contrabaixo no jazz, a partir da qual descreve uma
série de recursos e efeitos que podem ser empregados na interpretação da música
popular brasileira.
sua arte para as pessoas, de uma forma abstrata. É isso que a gente faz.
(MORELENBAUM, 2014)
Pelo exposto, julgamos ser de grande valia acrescentar mais este eixo ao referencial
de análise, a fim de enriquecer o processo. Para tal, considerando que a análise da
performance vocal e das canções seja uma das áreas mais desenvolvidas quando
tratamos de música popular brasileira, optaremos por embasar nossas discussões em
textos que discorram sobre as práticas de performance de João Gilberto, por ser a
principal referência declarada pelo violoncelista. Por tratar-se de um marco e grande
referencial do movimento da bossa nova no Brasil, João Gilberto é tema de inúmeras
pesquisas, sob os mais diferentes vieses, em distintas áreas do conhecimento.
Considerando o enquadramento deste estudo, serão de grande utilidade os trabalhos
que versarem sobre sua performance vocal.
Em termos gerais, quando se pensa na análise de qualquer objeto, seja ele musical
ou não, está implícito o conceito de interpretação. Tomando um fenômeno musical
como exemplo, uma dada análise a seu respeito pode ser compreendida como uma
das inúmeras interpretações possíveis para aquele evento. Neste caso, mesmo
considerando o rigor necessário à pesquisa acadêmica, fica claro que este processo
está sujeito a uma série de condicionantes que não podem ser desconsideradas,
como as escolhas do analista, os propósitos da análise e sua aplicação, dentre outros.
Como problematizado por Walser (2003):
98
A análise é uma atividade relacional; seu sucesso está relacionado aos seus
objetivos, que o analista deve se sentir obrigado a deixar claros [...] Qualquer
análise pressupõe uma série de escolhas feitas pelo analista [...] de maneira
que as análises são, invariavelmente, respostas a outras análises ou a
ausência destas em determinadas comunidades intelectuais. 22 (WALSER,
2003, p. 25)
Por esta razão, a fim de que restem claras as razões e justificativas que motivaram a
escolha do referencial de análise que será empregado neste trabalho, consideramos
relevante proceder uma breve discussão sobre o assunto.
22Tradução da autora do original em inglês: Analysis is a relational activity; its success is relative to its
goals, which analysts should feel obliged to make clear […] Any analysis presupposes a host of choices
that have been made by the analyst […] so analyses are invariably responses to other analyses or to
their absence within particular intellectual communities. (WALSER, 2003, p. 25)
23Tradução da autora do original em inglês: By subjecting this sound to analysis, we are in fact making
an interpretation of the relationships apparent between it and antecedent, simultaneous, and
consequent sounds, an activity into which it is impossible not to insert the self, because such
relationships only become apparent in the presence of a perceiver. Thus, an analysis is only one among
a number of possibilities. (MOORE, 2003, p. 8)
99
determinada obra. Essa dicotomia tem ganhado contornos mais fluidos na medida em
que as fronteiras entre as disciplinas têm se desconstruído, dando espaço para
pesquisas mais apuradas dentro da área que se denomina estudos da música popular.
(BASTOS e PIEDADE, 2006)
Neste campo, encontramos inúmeros debates sobre esta temática. Por ser um objeto
de estudo rico, admite variadas interpretações e abordagens, que partem de áreas
distintas do conhecimento, sendo que não é incomum encontrarmos trabalhos com
caráter interdisciplinar. Os tratamentos são os mais diversos e variam conforme o
referencial a partir do qual as pesquisas são delineadas. Há trabalhos que se baseiam
mais em evidências empíricas, muitas se aproximando de uma abordagem
quantitativa, enquanto outros, mais ancorados nos referenciais das ciências humanas,
discutem questões mais conceituais, comportamentais e de interação. As
possibilidades, como dito, são infindáveis, o que confirma a versatilidade e
complexidade do tema.
Rink (2012, p. 37–38) elabora uma lista de elementos que são passíveis de análise
no contexto da música erudita, que compreendem: notação, articulação, inflexão
melódica, acentuação, tempo e alterações rítmicas, aspectos da técnica relacionados
à estrutura física dos instrumentos e a questões de produção sonora instrumental e
vocal, ornamentações e improvisação de maneira geral. Em maior ou menor escala,
todos esses parâmetros encontram-se presentes também no contexto da música
popular e podem ser analisados.
Tagg (2003, p. 21), por sua vez, também elenca uma série de critérios vinculados à
expressão musical que podem ser considerados no decorrer de uma análise, quais
sejam: a) aspectos rítmicos: pulso, tempo, métrica, periodicidade, textura rítmica, etc.;
b) aspectos melódicos: registro, vocabulário tonal, contorno, timbre, etc.; c) aspectos
de orquestração: tipo e número de vozes, instrumentos, partes, aspectos técnicos de
performance, timbre, fraseado, acentuação; d) aspectos de tonalidade e textura:
centro tonal e tipo de tonalidade, idioma harmônico, ritmo harmônico acordes
alterados, relação entre vozes, etc.; e) aspectos de dinâmica: níveis de intensidade
sonora, acentuação, dentre outros; f) aspectos acústicos: características do local de
performance; grau de reverberação, distância entre a fonte sonora e o ouvinte; g)
aspectos eletromusicais e mecânicos: panning, filtros, compressão, mute, pizzicato,
etc. O autor destaca que não é necessário que todos os itens constantes deste rol
sejam avaliados em todos os casos, mas vê a utilidade deste instrumento como uma
forma de garantir que nenhum aspecto relevante seja negligenciado.
Como fonte primária de pesquisa, utilizaremos gravações em áudio e/ou vídeo. Para
proceder a análise dos materiais audiovisuais, empregaremos a metodologia
desenvolvida por Borém (2016), que propõe duas ferramentas – MaPA (Mapa de
Performance Audiovisual) e EdiPA (Edição de Performance Audiovisual) – que visam
a facilitar e tornar mais claro o trabalho do analista, bem como a aplicação da análise
na performance. Visto que a análise deste trabalho atém-se mais a aspectos técnicos
do instrumento e de realização musical, optamos por utilizar a EdiPA, que, segundo
Borém (2016), pode conter “anotações de práticas de performance que podem revelar
dados técnicos ou estilísticos de uma composição ou interpretação”, além de poder
ser “construída a partir da transcrição de uma gravação de áudio apenas pois, ao final,
poderá trazer elementos analíticos audiovisuais que auxiliam na compreensão da
composição e sua performance”. (BORÉM, 2016, p. 23-24)
Ainda que a gravação seja um retrato mais fiel de determinada obra neste contexto,
estamos cientes de que a escolha de determinado fonograma para análise não
24Tradução da autora do original em inglês: However, while most classical music analysts focus on the
score as the primary text, scores of popular music tend to be both rare and largely redundant, since the
recording represents a far more complete and accurate ‘record’ of musical intention. Indeed, standard
notation rarely figures as an important part of the popular music record production process, and when
popular music is rendered as a score […] the results do not satisfactorily capture the musical and sonic
subtleties of the recording. (WARNER, 2016, p. 138)
102
garante que todos os elementos possíveis que o instrumentista possa usar para
interpretar aquela obra estejam disponíveis naquele registro. Por maior que seja a
regularidade na performance, cada nova interpretação trará novas possibilidades.
Nesse sentido, assumimos que esta escolha possa ser representativa e indicar
possíveis tendências, sem contudo abranger todo o universo de sutilezas que possa
existir, funcionando mais como uma amostra dentro de um amplo conjunto de
possibilidades. Como adverte Nascimento (2004, p. 4)
Neste ponto, o principal item a ser investigado diz respeito à realização rítmica
proposta pelo intérprete. Sobre esta questão, Gramani (apud VIEIRA, 2013, p. 31)
esclarece:
103
Este balanço característico descrito acima é um conceito ainda muito discutido, que
não possui uma definição estrita, podendo ser encarado como uma maneira própria
de se realizar o ritmo na música popular brasileira. Embora seja uma expressão de
uso corrente, cujo significado é compreendido tacitamente pelos músicos da área, não
há ainda como mensurar de maneira detalhada este parâmetro, mas é fato que ocorre
e que é o que dá o diferencial estilístico entre gêneros e performers diferentes. Sobre
a questão, Gomes (2003, p. 79) contribui da seguinte forma:
O que acontece é uma aprendizagem dessas figuras via imitação, e com isso,
a preservação de qualidades sutis e ancestrais dessas células que
simplesmente “acontecem” no tempo. A tentativa de escrevê-las será sempre
uma aproximação. Um músico que conhece determinado ritmo, ao lê-lo, sabe
transpô-la de volta à vida com seu “sabor” original. (GOMES, 2003, p. 80)
Para além de modificações literais nos ritmos em arranjos, a realização rítmica de uma
peça envolve necessariamente questões de métrica e acentuação. Essas três
possibilidades são muito exploradas por Morelenbaum em sua performance, razão
pela qual serão objeto de análise. Para questões de métrica e acentuação,
utilizaremos como referencial Lerdahl e Jackendoff (1985), que trabalham estes
conceitos a partir de uma perspectiva cognitiva do que pode ser inferido pelo ouvinte.
Para os autores, a métrica pode ser compreendida como um padrão regular no qual
se organizam tempos fortes e fracos, e com o qual o som proveniente da execução
musical se relaciona. A acentuação, na visão de Lerdahl e Jackendoff (1985), é um
dos fatores que auxiliam na compreensão da estrutura rítmica de uma obra. Os
autores definem três tipos de acentuações possíveis, quais sejam: a) acentos
extraordinários25, que são aqueles que ocorrem na superfície da música, notadamente
na linha melódica, quando o performer enfatiza pontos específicos do discurso
musical; b) acentos estruturais, que guardam relação direta com aspectos melódicos
e, principalmente, harmônicos de organização da música; e c) acentos métricos, que
relacionam-se ao padrão métrico estabelecido de tempos fortes e fracos.
Utilizaremos ainda o conceito de métrica derramada, proposto por Ulhôa (2006), a fim
de investigar a flexibilidade na interpretação do violoncelista em obras escritas
originalmente para voz e adaptadas para o violoncelo. A metodologia de análise de
música cantada, proposta pela autora, busca identificar a forma como os cantores de
música popular brasileira exercem a liberdade rítmica em suas interpretações, sem,
contudo, fugir da métrica delimitada pelo acompanhamento. Ela demonstra que há
uma certa flexibilização das fronteiras do compasso, trazendo maior interesse e
movimentação à performance sem que haja grandes alterações rítmicas propriamente
ditas.
25Optou-se pela tradução de phenomenal accents como acentos extraordinários por entender-se que
são eventos que ocorrem a partir da escolha do performer e que fogem ordinário, ou do esperado.
105
O trabalho com A Barca do Sol é marcante, pois todos os músicos da banda estavam
envolvidos no processo de criação, incluindo Jaques. A partir da audição dos dois
álbuns lançados pelo violoncelista com o grupo – Barca do Sol (1974) e Durante o
Verão (1976) –, foi possível perceber que o violoncelo desempenha muito mais uma
função melódica, executando contracantos juntamente com a flauta, do que a de baixo
propriamente dito. No entanto, é possível identificar alguns recursos empregados pelo
instrumentista no acompanhamento, como: utilização de cordas duplas com rítmica
no arco, que remete aos riffs de guitarra no contexto do rock; sul ponticello; trêmolos;
glissandos; dentre outros. Estes elementos de efeito, com caráter mais experimental,
neste contexto, aproximam a sonoridade do violoncelo da estética do rock, muito
embora o violoncelista prossiga aplicando-os durante toda sua carreira nos mais
107
Não obstante ser uma fase importante na carreira de Morelenbaum, seu trabalho com
a Nova Banda, de Tom Jobim, não traz muitos avanços no tocante ao uso do
violoncelo enquanto baixo. Acreditamos que isso se dá devido à presença do baixo
elétrico na banda, que é o instrumento responsável durante todo o tempo pelas linhas
de acompanhamento de baixo nos arranjos. Novamente, o violoncelo desempenha
papel predominantemente melódico, complementando o arranjo vocal da banda por
meio de seus contracantos com a flauta. O mesmo ocorre com a banda de Caetano
Veloso, embora as linhas de violoncelo nos arranjos sejam mais arrojadas, sendo
possível encontrar Morelenbaum empregando diversos efeitos no acompanhamento,
como os já identificados em seu trabalho na Barca do Sol.
Tanto neste trio, como mais tarde, no Cello Samba Trio, o violoncelo apresenta
comportamento muito semelhante ao contrabaixo acústico, como veremos a seguir.
Sobre a performance do contrabaixo no contexto do jazz brasileiro, ou música
instrumental, segundo a definição de Bastos e Piedade (2006), Assis (2010) comenta:
de notas, por exemplo. Nesse sentido, embora estejamos tratando de uma música
popular, sua abordagem de performance aproxima-se bastante da música erudita.
Morelenbaum (2015) aponta que a ligação do compositor e pianista Sakamoto com a
música erudita é presente, dividindo espaço com seu interesse também pelo repertório
popular.
Ex. 1- Violoncelo em pizzicato dobrando a mão esquerda do piano executando as notas fundamentais dos
acordes em Fotografia (c. 21-24)
Ex. 4- Notas de passagem no baixo realizado pelo violoncelo em Fotografia (c. 65-70)
111
O Cello Samba Trio é, sem dúvida, o momento da carreira do violoncelista em que ele
teve maior oportunidade de desenvolver essa vertente de baixo acompanhador, sem
ficar restrito somente à realização de melodias principais ou secundárias. Em suas
próprias palavras:
No Cello Samba Trio eu tenho mais de uma função, porque [...] a gente se
dedica à improvisação em uma forma que poderia ser comparada à forma do
jazz – geralmente a gente apresenta o tema, improvisa sobre esse tema e
volta ao tema. Então, no momento da apresentação do tema, eu estou
fazendo a voz principal. No momento da improvisação eu também estou
fazendo a voz principal, mas no momento da improvisação do violonista eu
viro o baixista do grupo e aí eu estou fazendo um acompanhamento, estou
sustentando a voz principal que passa a ser do violonista. Então estou me
dedicando a esses dois lados. (MORELENBAUM, 2015)
A abordagem que Jaques faz na realização do baixo, de maneira geral, é mais livre
do que o descrito no arranjo de Fotografia. Percebe-se que não há um arranjo definido
a priori, há um caminho harmônico estabelecido, a partir do qual ele elabora suas
frases de acompanhamento, conforme explana:
Quando estou fazendo as linhas de baixo, tem uma liberdade enorme [...]
improvisando o tempo todo. Existe um caminho harmônico a ser seguido, mas
a escolha da nota e do ritmo que você vai tocar a cada instante e a cada
segundo é totalmente facultativo, é totalmente livre [...]. Como solista ou como
acompanhador, acho que sempre existe essa liberdade. Eu acho que a
música depende tanto de um quanto de outro, então eu não dou importância
maior, na hora que estou tocando, quando estou solando ou quando estou
acompanhando, porque sempre existe esse lado criativo. (MORELENBAUM,
2015)
A partir da audição do único álbum disponível do Cello Samba Trio, identificamos que
o tratamento dado por Jaques às linhas de baixo são similares, seguindo um padrão
113
que agrupa influências do jazz, bossa nova e do choro. A realização do baixo é similar
tanto nas execuções com o violoncelo tradicional como nas com o violoncelo de cinco
cordas, sendo que, com este último, o instrumentista opta por tocar um número maior
notas mais graves, abaixo do Dó 1 (última corda do violoncelo tradicional), quando
está acompanhando o improviso do violão, possivelmente pelo motivo exposto por
Galvão (2015).
Ex. 6- Baixo cromático na Seção A de Samba de uma nota só (c. 153- 156)
Tanto no início quanto no final de seu improviso, o violonista opta por utilizar acordes,
enquanto, na parte central, entre os instantes [00:03:26] e [00:04:26], ele executa uma
linha melódica. Neste momento, também identificamos uma melodia mais elaborada
no baixo, em contraponto ao executado pelo violão (Ex. 8). Nos momentos em que o
115
violão opta por acordes, Morelenbaum procura cobrir essa função de prover o groove
do samba, optando por uma realização do baixo menos elaborada melodicamente,
limitando-se a enfatizar as notas da harmonia.
Ex. 8- Baixo melódico provendo groove em Samba de uma nota só (c. 183-189)
Dó 2 (Ex. 10), mas também pode ser encontrado na versão descendente, por exemplo,
no ataque da nota Sol# 2 no compasso 204. Neste caso, apesar de a nota anterior
(Ré 2) ser executada como corda solta, o violoncelista realiza o glissando, embora
não haja nenhum movimento necessário de mudança de posição da mão esquerda,
denotando ser esta uma decisão puramente interpretativa (Ex. 11).
Ex. 10- Pitch Bend ascendente em Samba de uma nota só (c. 169-171)
Ex. 11- Pitch Bend descendente em Samba de uma nota só (c. 203-204)
Além do pitch bend, detectamos ainda o lift, ou doit, que é o portamento ascendente
no final de uma nota. (KERNFELD, 2002) Ele ocorre de forma recorrente na execução
da nota Dó# 1, seguida da nota Dó# 2, como no compasso 177 (Ex. 12). A primeira
nota é executada com o 1º dedo na meia posição e, ao invés de realizar o salto de
oitava por meio da abertura da mão, Morelenbaum opta por realizar uma mudança de
posição para alcançar o Dó# 2, com o quarto dedo na 2ª posição. Cremos que a
escolha do dedilhado visa a valorizar o glissando, dando origem ao lift, pois o
violoncelista deixa o primeiro dedo pressionando a corda Dó, de maneira que é
possível ouvir o glissando ascendente ao final da primeira nota.
Além dos registros citados, há ainda um vídeo da peça Canto Triste, de Edu Lobo,
interpretada por Gal Costa e Jaques Morelenbaum, exibida no programa Ensaio da
119
TV Cultura, em 1994. Esta peça foi escolhida para a análise por tratar-se de gravação
de música brasileira cujo áudio tem maior qualidade que o registro de Serenata do
Adeus. Ademais, a parceria do violoncelista com a cantora Gal Costa é longa e
representativa em sua carreira. As peças integrantes do show de Zélia Duncan e
Jaques Morelenbaum não foram selecionadas, pois este projeto ocorreu quando esta
pesquisa já estava em curso.
Fig. 1- Esquema formal de Canto Triste (LOBO, 1967), versão de Gal Costa e Jaques Morelenbaum
Neste ponto, vale destacar que as gravações de Edu Lobo (LOBO, 2013) para esta
canção apresentam outro esquema formal, a saber (Fig. 2):
Fig. 2- Esquema formal de Canto Triste (LOBO, 1967), versão de Edu Lobo (LOBO, 2013)
Gal Costa interpreta a canção de forma livre e quase declamatória, de maneira que,
embora seja possível aferir aproximadamente um andamento global para toda a peça,
ele não se mantém por muito tempo durante a performance. As Seções A e A’, assim
como a Introdução, apresentam um andamento mais lento, enquanto a Seção B
apresenta maior amplitude de variação de andamento, iniciando-se mais lento,
seguido de um acelerando para a parte central, mais agitada, e finalizando mais
calmo.
120
A escolha dos andamentos parece ter estreita relação com a letra da música, que, na
Seção B, mostra o personagem desiludido amorosamente, pedindo auxílio ao luar
para que encontre sua amada e narre para ela seu sofrimento:
Ex. 13- Relação texto-música na Seção B de Canto Triste, versão Gal Costa e Jaques Morelenbaum (c. 30-35)
Ex. 14- Linhas melódicas, acordes arpejados e cordas duplas no violoncelo na Introdução de Canto Triste (c. 1-
8)
Ex. 15- Linha melódica secundária do violoncelo em rubato junto com a voz em Canto triste (c. 15-16)
124
Ex. 17- Arpejos, bariolage e cordas duplas em Canto Triste (c. 9-12)
Mais adiante, nos compassos 18 e 19, os intérpretes modificam o ritmo proposto por
Edu Lobo, e o violoncelo está novamente subordinado ao canto, sublinhando, em
terças, a voz. Além da modificação rítmica, percebe-se uma ligeira defasagem dos
ataques do violoncelo em relação à voz (Ex. 18), possivelmente decorrente da
defasagem no tempo de reação do violoncelista no acompanhamento.
125
Ex. 18- Realização rítmica e defasagem de ataques em Canto Triste (c. 18-19)
Ex. 19- Notas longas no violoncelo com vibrato em Canto Triste (c. 25-26)
Tal uso do vibrato vai ao encontro da visão de Ricardo Herz sobre esse recurso no
âmbito da música popular brasileira. Para o violinista, “o vibrato é uma espécie de
ornamento, que serve para matizar/adornar uma melodia [...] Ricardo comenta que
busca aproximar o vibrato ao som dos instrumentos que os acompanham ou que
dobram uma melodia, a fim de se obter uma sonoridade mais homogênea.” (VIEIRA,
2013, p. 43). Na gravação em questão, Morelenbaum busca aproximar o som do
violoncelo da sonoridade alcançada pela voz da cantora por meio do vibrato.
Ex. 20- Dedilhado não convencional em escala cromática descendente, em Canto Triste (c. 2-3)
Ex. 22- Mudança de posição com portamento em Canto Triste (c. 24)
Ex. 23- Cordas duplas realizadas com cordas soltas em Canto Triste (c. 27)
Os acordes arpejados utilizados por Morelenbaum neste arranjo são uma solução
recorrente encontrada em diversas fases de sua carreira. Encontramos este mesmo
procedimento em outras gravações do artista, com a mesma formação. De fato, este
é um dos recursos técnicos disponíveis no violoncelo que mais facilmente transmitem
ao ouvinte a percepção da harmonia. É um elemento idiomático vastamente explorado
na literatura do instrumento, sendo encontrado em diversos métodos e livros de
129
estudos, como Dotzauer, Duport, Feuillard, dentre outros, além de obras importantes,
como a Suíte nº 3, de Johann Sebastian Bach. Também encontramos este recurso
presente na literatura de música brasileira para violoncelo. A realização proposta por
Morelenbaum (Ex. 24) aproxima-se muito da escrita de Villa-Lobos, na peça Trenzinho
do Caipira (Ex. 25).
Outro recurso utilizado que encontra paralelo nas composições brasileiras eruditas
para violoncelo são os pizzicatos ao final da peça. Em seu arranjo, Morelenbaum
realiza um arpejo descendente do acorde de Ré menor, aproveitando-se das cordas
soltas, como que imitando um violão (Ex. 26)
Morelenbaum ainda lança mão do efeito de sul ponticello, nos compassos 40 e 41.
Este efeito, conjugado com o pianíssimo do violoncelo e as acentuações propostas
pelo intérprete, mais uma vez buscam retratar o significado da letra entoada pela
cantora (Ex. 30).
132
É patente a relação que o artista constrói entre seu instrumento e sua voz, chegando
a afirmar que “o cello é só um instrumento [...] é a minha voz”. (MORELENBAUM,
2010) Considerando este prisma, ao olharmos para a carreira de Morelenbaum, é
possível perceber, ao longo dos anos, um processo de construção desta voz em várias
direções, que é uma característica central de seu estilo de performance. Ele afirma:
Cada músico com quem eu toquei tinha alguma coisa nova para acrescentar
no meu aprendizado, no meu estilo, na minha técnica. Cada estilo de música
que você toca te exige alguma coisa que você tem que buscar, tem que criar,
tem que inventar pra você poder se ajustar [...]. Tocar com um músico com
um virtuosismo como o do Egberto te estimula e te chama a ser de uma forma
mais avançada do que onde você já está. Assim como tocar com Tom Jobim
me ensinou uma série de outras coisas também. (MORELENBAUM, 2015)
Desta fala, depreende-se que houve, durante toda sua trajetória, uma intensa troca
com os mais diversos artistas com quem trabalhou. Aliada a isso, a prática de estudo
do Third Stream também o auxiliou a absorver elementos do estilo de performance de
músicos com os quais não teve a possibilidade de tocar, mas pôde somente ouvir.
Descrevendo seu processo de estudo, o violoncelista narra:
[...] uma das grandes escolas era tocar com músicos melhores do que eu. Eu
pegava discos que eu gostava, botava para tocar e saía tocando junto, do
jeito que dava. Alguns discos [...] eu voltava a tocar várias vezes [...] buscando
me desenvolver no improviso. [...] Podia ser música clássica também, eu
botava para tocar e tocava junto. Então, acabava que eu tocava junto com o
Miles Davis, com o Hermeto, com o Bach, com Brahms, com Stravinsky... A
partir daí, com toda a dificuldade que eu tinha, cada vez eu ia tentando
diminuir essa distância entre eu e esses feras. (MORELENBAUM, 2015)
Eu não vejo essa diferença porque [...] cada elemento que compõe a música
contribui de uma maneira imprescindível para o resultado final. Quando eu
toco uma segunda voz, eu estou tocando com tanta emoção, com tanta
profundidade e com tanta busca pela perfeição ou pela beleza quanto quando
eu faço a parte principal. (MORELENBAUM, 2015)
Após seu retorno de Boston, em 1980, a Nova Banda, de Tom Jobim, foi o primeiro
grupo do qual participou de forma permanente. Apesar de já possuir alguma
135
O diálogo descrito por Morelenbaum revela a confiança depositada por Tom Jobim em
seu trabalho, ao mesmo tempo que indica a dificuldade inicial do violoncelista em
integrar-se ao grupo. A intensa convivência dos integrantes da banda decerto auxiliou
Jaques a absorver mais rapidamente a concepção musical de Jobim e a inserir-se
neste contexto. O papel que desempenhou na Nova Banda foi primordialmente de
interpretação de linhas secundárias à voz. Neste trabalho, analisaremos uma pequena
amostra a partir dos vídeos de três músicas: Passarim (JOBIM, 198?), Água de Beber
(JOBIM, 1986a) e Wave (JOBIM, 1986b).
Fig. 3- Esquema Formal de Passarim, na gravação de Tom Jobim e Nova Banda (198?)
136
Ex. 31- Linha cromática descendente no violoncelo e nas vozes masculinas em Passarim (c. 1-13)
“duro”, próprio da mudança de corda, conforme explanado por Pilger (2015, p. 110).
O portamento resultante, entretanto, não remete a alguma prática de performance
específica, como do jazz, por exemplo, caracterizando-se apenas como uma mudança
de posição usual no instrumento com um legato expressivo.
Ex. 32- Violoncelo em contraponto com vozes femininas e uníssono com vozes masculinas no Interlúdio de
Passarim (c. 33-41)
indo do Si 1 até o Si 2, intervalo facilmente entoado por uma voz masculina. A
138
Ex. 33- Baixo cromático descendente do violoncelo em Água de Beber (c. 25-33)
Em todo o arranjo, é possível notar tais peculiaridades, que também estão presentes
na parte do violoncelo. Encontramos o uso recorrente de síncopes, próprias do choro
e do samba (cf. ALMEIDA, 1999), remetendo às levadas do tamborim ou do pandeiro,
como em [00:35:04] (Ex. 35).
Por fim, a versão de Wave (JOBIM, 1986b) escolhida para análise apresenta-se
somente em versão instrumental, com a banda composta por: piano, violoncelo, flauta,
violão, baixo e bateria. O violoncelo, a flauta e o piano ficam a cargo das melodias,
que, na composição original, foram escritas para voz. O violoncelo é utilizado para
tanto realizar solos nas melodias, como em [00:53:87] (Ex. 36), quanto duetos com a
flauta, neste caso, em uníssonos (Ex. 37). Embora seja prática comum na
performance instrumental deste gênero musical, não encontramos seções de
improviso nesta versão. Os intérpretes seguem estritamente o arranjo proposto, sem
maiores liberdades. Somente o piano apresenta flutuações rítmicas pontuais em suas
linhas melódicas.
Ex. 38- Contratempos, síncopes e acentuações na linha do violoncelo na seção central de Wave (c.53-64)
Na Nova Banda, de Tom Jobim, fica clara esta relação em que o conjunto da obra
está acima de qualquer individualismo do intérprete. O papel de Tom Jobim é um
pouco destacado dos demais, sendo ele o responsável pela condução musical do
grupo. Nas três gravações analisadas, Jobim rege as entradas a fim de garantir que o
grupo soe em conjunto. Possivelmente, esta prática deve-se ao fato de a banda ser
composta por um número grande de pessoas, porém também denota a ascendência
de Jobim sobre o grupo.
Fig. 4- Violoncelo no extremo do lado esquerdo na gravação de Água de Beber e Wave da Nova Banda
O violoncelo pode ser encarado como uma voz dentro dos arranjos analisados, e o
contraponto por ele realizado se enquadra nas características descritas por Brito
(1993). Percebemos que a linha interpretada por Morelenbaum é pensada, tanto
levando em conta o contexto da obra como as peculiaridades de cada peça, tendo
relação direta com os materiais musicais apresentados, principalmente nos arranjos
vocais.
Fato é que a vivência com o Movimento Tropicalista trouxe para Caetano Veloso maior
abertura a experiências e maior versatilidade, que podem ser percebidas ao olharmos
para toda sua obra.
Morelenbaum (2015) relata que, dos catorze anos de parceria com o cantor, os três
primeiros anos, durante os quais ocorreu o projeto Circuladô, foram os mais ricos,
devido ao contraste percebido em relação ao trabalho que vinha desenvolvendo com
Jobim e Gismonti. Com estes, os arranjos eram pré-definidos e interpretados sempre
146
com partituras, havendo pouco ou quase nenhum espaço para improvisação. Embora
os arranjos de Veloso também fossem pensados previamente, o cantor incentivou o
violoncelista a tocar sem partituras, o que conferiu maior liberdade ao instrumentista.
Sobre a diferença da performance com e sem partitura, o artista comenta:
Fig. 6- Tratamento cênico dado ao violoncelo na abertura do show Circuladô, de Caetano Veloso
Circuladô de Fulô, canção de 1991, dá nome ao álbum que marca o início da parceria
de Caetano Veloso e Jaques Morelenbaum. O texto é de autoria de Haroldo de
147
Circuladô de fulô
Ao deus ao demo dará
Que deus te guie
Porque eu não posso guiar
E viva quem já me deu
Circuladô de fulô
E’ainda quem falta me dá.
Após uma breve introdução instrumental, inicia-se uma alternância entre refrão e
estrofe até a finalização, com uma Coda, também instrumental. Essa sucessão
reiterada de refrão e estrofe reforça a estrutura circular presente na letra de Campos.
Caetano Veloso também opta por valorizar este aspecto por meio do contorno
melódico que cria, além de outros aspectos do arranjo, como a nota do berimbau que
se repete do início ao fim da música e elementos da linha do violoncelo.
outros grupos, como A Barca do Sol, Egberto Gismonti & Grupo e, mais recentemente,
com o Cello Samba Trio.
Ex. 39- Intervenção do violoncelo na segunda estrofe de Circuladô de Fulô (c. 44-50)
Ex. 40- Glissando no violoncelo evidenciando a relação texto-música em Circuladô de Fulô (c. 28-29)
Percebe-se que Morelenbaum escolhe contrastar o caráter mais rítmico presente nas
estrofes entoadas por Caetano com linhas melódicas que valorizam mais a dimensão
horizontal, enquanto, no refrão, ele opta por marcar regularmente os tempos fracos
do compasso. A exceção ocorre na última estrofe, onde o violoncelo realiza uma
melodia mais rítmica e articulada, a partir de [02:19:14], acompanhando a sonoridade
da letra, que, neste trecho, contém uma recorrência mais expressiva de consoantes
oclusivas (Ex. 41).
150
Ex. 41- Linha melódica mais ritmada do violoncelo na última estrofe de Circuladô de Fulô
Ex. 43- Melodia acompanhada de nota pedal no violoncelo na Introdução de Os mais doces bárbaros em [00:00:12]
sobre a cordas seja ouvido. A sonoridade resultante nos remete à afinação das cordas
soltas do violoncelo, reforçando a ideia de princípio de todo o espetáculo, como se os
músicos estivessem ainda nos preparativos finais para o início de tudo.
Ex. 44- Espectrograma demonstrando glissando do violoncelo no final da Introdução de Os mais doces bárbaros
Ex. 46- Linha do violoncelo acompanhando a voz na Introdução de Os mais doces bárbaros [01:23:00]
As linhas melódicas realizadas pelo violoncelo neste contexto são também baseadas
primordialmente em graus conjuntos e apresentam tessitura mais restrita, muito
semelhante à da voz humana. Tal tratamento melódico realizado por Morelenbaum é
similar ao encontrado nas performances analisadas da Nova Banda, de Tom Jobim,
embora a sonoridade final resultante seja deveras distinta.
Após a morte de Tom Jobim, Jaques e Paula Morelenbaum uniram-se a Daniel e Paulo
Jobim, neto e filho do compositor, com a finalidade de seguir interpretando o repertório
do mestre. O grupo, formado em 1995, lançou um único álbum em 1999, denominado
Quarteto Jobim Morelenbaum. Com formação camerística, o conjunto tinha por
objetivo perpetuar o estilo de Tom Jobim por meio da interpretação de arranjos muito
próximos aos originais.
Ex. 47- Adaptação da melodia da flauta para o violoncelo no arranjo de A Correnteza (c. 1-6)
Ex. 49- Glissando intencional entre cordas duplas na Introdução de A Correnteza (c. 1-6)
Ex. 50- Alusão à síncope na linha do violoncelo na Seção A de A Correnteza (c. 7-11)
Ex. 51- Acompanhamento do violoncelo em notas longas na Seção B de A Correnteza (c. 18-23)
Quanto à forma, o trio opta por repetir integralmente a canção, a primeira vez com a
letra em português, e a segunda com a letra em inglês, intermediada por uma estrofe
solo do violoncelo. Enquanto o arranjo original apresenta-se na tonalidade de Dó
Ex. 52- Linhas melódicas em terças da voz e do violoncelo em Fotografia (c. 5-10)
Ex. 53- Linha cromática descendente do violoncelo com antecipações do primeiro tempo do compasso em
Fotografia (c. 13-18)
Ex. 54- Presença de linhas melódicas em terças na mão direita do piano no arranjo de Fotografia, de Paulo
Jobim (c. 1-4)
Embora a notação do ritmo resultante da transcrição da gravação (Ex. 52) seja igual
à proposta do arranjo de Paulo Jobim (JOBIM; GILBERT, 2000) (Ex. 54), a cantora
usa uma certa dose de liberdade, fazendo com que o ritmo que de fato é executado
tenha ligeiras diferenças em relação à notação. Ulhôa (2006, p.1) aponta que a
flexibilidade é “um dos elementos mais possantes de expressividade na canção
popular brasileira” (ULHÔA, 2006, p. 1). A autora propõe o conceito de métrica
derramada a fim de descrever esta prática interpretativa característica da música
popular brasileira:
Ex. 55- Pequenas defasagens entre os ataques da voz e do violoncelo em Fotografia (c. 82)
Nos trechos em que o violoncelo é responsável pela segunda voz, é natural que
acompanhe a cantora em suas inflexões e escolhas interpretativas. Contudo,
verificamos também a presença do processo de flexibilização rítmica na estrofe
instrumental que funciona como um interlúdio entre a versão em português e inglês
da canção. Percebemos que, embora não se entoe nenhuma letra, Jaques
Morelenbaum realiza sua melodia com flexibilidade compatível com o conceito de
métrica derramada de Ulhôa (2006). A autora argumenta que “‘derramar’ a métrica
não é uma idiossincrasia numa interpretação singular; é um traço estilístico marcante,
principalmente entre intérpretes de samba. Ou seja, a métrica derramada mais do que
um gesto de estilo individual [...] é uma característica cultural mais ampla.” (ULHÔA,
2006, p. 8) Ampliando a discussão, embora o conceito da autora não abarque a
performance instrumental, se considerarmos a estreita relação estabelecida por
Jaques Morelenbaum entre o canto, ou a voz, e seu instrumento, o violoncelo,
podemos afirmar que a performance do violoncelista leva em conta esta característica
162
cultural denominada por Ulhôa (2006) de métrica derramada, visto ser um estilo de
performance partilhado por todo um conjunto de cantores da música popular brasileira,
no qual o intérprete se espelha. Desta forma, pode-se afirmar que o violoncelista
emprega a métrica derramada nesta gravação de Fotografia.
Ex. 57- Ocorrência de ghost notes na melodia do violoncelo em Fotografia (c. 43-45)
Por outro lado, percebe-se um uso diverso deste recurso entre os cantores da música
popular brasileira, que não mantêm o vibrato constante; antes, iniciam as notas sem
vibrato, para aplicá-lo posteriormente no final da nota. Morelenbaum opta por esta
solução em Fotografia, o que traz um diferencial na performance em relação ao
encontrado em suas gravações com a Nova Banda, analisadas previamente. A
amplitude empregada por Jaques não é grande, sendo que ele varia a taxa do vibrato
dentro de uma mesma nota, já que ele principia a nota sem vibrato para
posteriormente adicioná-lo, como, por exemplo, em [01:50:18] (Ex. 58).
164
Ex. 58- Aplicação do vibrato nos finais das notas em Fotografia (c. 43-45)
João Gilberto é apontado por Morelenbaum como uma de suas principais referências
no samba, e suas gravações tiveram papel relevante na formação do estilo de Jaques
ao violoncelo. Seu estudo da performance de Gilberto tomou como base o LP João
Gilberto, gravado em 1973, que inclui uma versão de Eu vim da Bahia, de autoria de
Gilberto Gil (GIL, 1992). A partir da metodologia de estudo do Third Stream, que visa
a dissecar o estilo de performance de determinado artista, o violoncelista transcreveu
e estudou a peça, e posteriormente a inseriu no repertório do Cello Samba Trio, razão
pela qual foi escolhida para esta análise.
Para além das práticas de performance, a instrumentação escolhida por João Gilberto
(voz, violão e percussão) também inspirou a escolha de Morelenbaum, tanto nesta
gravação específica, quanto na própria formação de seu grupo. O rigor de João
Gilberto com suas escolhas e com as condições de performance e gravação é
amplamente conhecido. A opção deste por uma formação instrumental mais enxuta
no álbum de 1973 colabora para manter a performance vocal e suas nuances em
primeiro plano, evidenciando, ao mesmo tempo, uma série de outros sons e ruídos
característicos da performance que não podem ser ouvidos com instrumentações
mais pesadas. Este outro plano sonoro é denominado por Menezes (2012) como o
plano dos timbres.
Pianta (2010) também aponta para a importância que cada detalhe presente nas
performances de João possuiu na construção de suas interpretações, afirmando que
“o estilo vocal de João Gilberto é único. Caracteriza-se, basicamente, pela ausência
quase total de vibrato, pelo volume baixo da emissão sonora e pela incorporação de
detalhes de articulação que somente audições atentas revelam.” (PIANTA, 2010, p.
57)
Quadro 2- Análise comparativa entre as versões de João Gilberto e Jaques Morelenbaum em relação à lead sheet
de Eu vim da Bahia
Nos vários relatos sobre a bossa nova, João Gilberto sempre aparece como
o “autor” de um estilo: a “batida” que cria ao violão e a sua maneira única de
interpretar. Se tudo indica, por exemplo, que ele captou o gosto emergente
pelo jazz camerístico, não há dúvida, por outro lado, de que a nova forma
musical da bossa nova em muito se deveu à sua obsessão por um ritmo e
169
A autora ainda aponta a contenção como um aspecto chave em sua performance. Nas
performances do Cello Samba Trio, é possível perceber diversas características
estilísticas próprias de João Gilberto que são aplicadas por Morelenbaum. Seu método
de estudo, baseado em audição, transcrição e performance, derivado de sua
experiência com o Third Stream, ajudou-o a apropriar-se destes elementos musicais
e interpretativos presentes em João, trazendo essas influências para seu estilo
pessoal de interpretação.
Ex. 59- Acentuação deslocada do violoncelo e polarização ao primeiro tempo do compasso na entrada do
acompanhamento em Eu vim da Bahia (c. 1-3)
Essa série de deslocamentos rítmicos na voz principal é muito utilizada por João
Gilberto, o que demonstra a influência do cantor na performance de Morelenbaum.
Menezes (2010, p. 530), em artigo que aborda as elaborações rítmicas na
performance de João Gilberto, aponta que ele provoca pequenos deslocamentos na
frase original da música, causando novos acentos, o que leva a uma leve sensação
de polirritmia. Menezes (2010, p. 531) complementa, argumentando que
Morelenbaum também lança mão desses recursos, seja propondo novas inflexões,
articulações, ou novos arranjos dos padrões rítmicos originais. São introduzidos
muitos ritmos sincopados, característicos do samba, como, por exemplo, em
[00:07:39], trecho transcrito a seguir (Ex. 60).
171
Ex. 60- Inserção de síncopes em Eu vim da Bahia na performance de Jaques Morelenbaum (c. 5-8)
Keil (2005), em seu texto que trata das discrepâncias que ocorrem durante a
performance devido à participação dos músicos envolvidos, aponta que são
justamente essas assincronias que trazem interesse a uma dada versão de uma obra.
Essas pequenas alterações e diferenças podem acontecer em diversos momentos e
níveis, sendo mais presentes durante a performance devido à interação entre os
instrumentistas. Durante a transcrição, foi possível perceber, para além dos ritmos
alterados, que Morelenbaum, em certos momentos, adianta ligeiramente o ataque de
determinada nota, como nos compassos 12 ([00:16:82]), 20 e 26, valorizando ainda
mais o caráter sincopado de sua execução (Ex. 61). Modificações deste tipo ocorrem
durante toda a gravação, com Morelenbaum lançando mão dos deslocamentos
rítmicos, de maneira similar ao realizado por João Gilberto.
Ex. 61- Nota com ataque adiantado na interpretação de Morelenbaum de Eu vim da Bahia (c. 12)
Além de ter o cantor como referência, Jaques afirma pensar sua performance ao
violoncelo sempre a partir do que seria realizado pelo canto (MORELENBAUM, 2015).
Müller (2011) destaca que instrumentistas com conhecimento da língua e da cultura
em que a canção foi escrita têm maior facilidade em adaptar os fonemas e fazer
alusões às letras das canções por meio de sons instrumentais. Para tanto, podem
utilizar recursos como adaptação na “duração das notas, acentos, direções de frases,
agógicas, glissandos e até mesmo diferentes ataques para diferentes consoantes.”
(MÜLLER, 2011, p. 31) Morelenbaum lança mão desses recursos em sua adaptação
172
Ex. 62- Acentuações de arco em notas correspondentes às sílabas tônicas na interpretação de Morelenbaum de
Eu vim da Bahia (c. 1-4)
Eu vim/Eu vim da Bahia cantar/Eu vim da Bahia contar tanta coisa bonita que tem/Na
Bahia que é meu lugar/Tem meu chão, tem meu céu/Tem meu mar/A Bahia a que
vive pra dizer/Como é que faz pra viver/
Garcia (1999, p. 126) aponta que João Gilberto mantém, em sua performance, o ritmo
da voz no limite entre a fala e o canto, demonstrando a importância que a pronúncia
do português falado tem para o intérprete. O próprio cantor expressa sua preocupação
em manter a coerência poética da letra ao cantar, procurando, para tal, pronunciar as
palavras da maneira mais natural possível (GILBERTO apud GARCIA, 1999, p. 127-
128). Brito (1993, p.38), discorrendo sobre o papel da palavra na bossa nova, indica:
Os textos cantados não são valorizados apenas pelo que conteriam como
expressão de idéias [sic], pensamentos, ou por obedecer o verso a uma forma
determinada. Incorpora-se a esses aspectos o valor musical portado pela
palavra. Os atributos psicológicos que surgem ao se cantar a sílaba, o
vocábulo, são considerados em sua totalidade e complexidade. A palavra
174
por meio do uso da articulação staccato, como nesta passagem no instante [01:11:43]
(Ex. 64).
Ex. 64- Acentuações em anacruses staccatos nas síncopes em Eu vim da Bahia (c. 54-58)
As regiões de arco mais utilizadas são os terços do talão e do meio, sendo que, em
alguns momentos, chega-se a atingir a região da ponta, nos lugares onde a arcada
legato é aplicada. O détaché simples, o détaché acentuado e o martelé (SALLES,
2004) são os golpes de arco mais recorrentes, à semelhança do que é praticado por
violinistas na performance da música popular brasileira (ISIDORO, 2013; SILVA,
2005). Na prática, Morelenbaum joga com uma combinação destes golpes básicos a
fim de produzir as articulações que deseja, seja um acento mais pronunciado, uma
nota mais curta, ou ainda um ataque mais percussivo, tornando difícil classificar com
exatidão qual o golpe de arco empregado em determinadas passagens. Ele afirma
não pensar em golpes de arco, antes na música (MORELENBAUM, 2008). Tal
assertiva não significa que ele relega a técnica a segundo plano, apenas demonstra a
forma como ele encara a relação entre os elementos técnicos do instrumento e a
música, que se encontra resumida na seguinte declaração: “na verdade a gente
aprende a técnica só pra poder transmitir a nossa emoção. Então basicamente a
técnica, a gente nem quer prestar atenção nela. A gente começa a tocar bem quando
esquece que a técnica existe e se entrega só ao campo da emoção.”
(MORELENBAUM, 2014)
valorizar os ataques, ele também se vale de outros recursos, como retomadas de arco
e aproveitamento da acentuação natural do arco para cima, em notas mais rápidas, a
fim de prover o balanço necessário em sua interpretação, como em [01:22:85] (Ex.
65).
Ex. 65- Acentuações em arcadas para cima e retomadas de arco em Eu vim da Bahia (c. 63-67)
Ex. 66- Sequência de mudanças de posição com o 1º dedo em Eu vim da Bahia (c. 8)
para o início de uma nota (KERNFELD, 2002), é um dos mais presentes. É utilizado
mormente em combinações com as acentuações realizadas pelo arco, como em
[00:14:13] (Ex. 67).
Ex. 67- Lift combinado com acentuação do arco em Eu vim da Bahia (c. 10-11)
A admiração de Morelenbaum pelo jazz, bem como seu papel de referência em sua
formação musical, é conhecida, principalmente devido ao apreço que o violoncelista
tem pela improvisação, característica muito marcante neste contexto. Ele, inclusive,
admite a prática de estudo de escalas de jazz, com a finalidade de se preparar para o
momento do improviso (MORELENBAUM, 2008). Muito embora a forma seja baseada
179
Ex. 72- Aplicação da síncope e deslocamentos rítmicos em seção de improviso do violoncelo em Eu vim da
Bahia (c. 80-85)
Samba de uma nota só, de autoria de Tom Jobim e Newton Mendonça, também
integra o repertório do Cello Samba Trio, fazendo referência ao período em que
Morelenbaum integrou a Nova Banda, de Jobim. Comparativamente, a
instrumentação do Cello Samba Trio apresenta grande redução em relação à da Nova
Banda. A tonalidade escolhida é outro ponto de divergência: enquanto Tom Jobim
(JOBIM, 1986c) opta pela tonalidade de Sol Maior, Jaques Morelenbaum realiza sua
versão em Lá Maior (MORELENBAUM, 2010). Ambas as tonalidades estão presentes
em lead sheets da obra. O arranjo mais atual (1987), de Paulo Jobim, é escrito em Sol
Maior (JOBIM; MENDONÇA, 2000), enquanto uma partitura mais antiga (JOBIM;
MENDONÇA, 1961), publicada na França, cuja autoria do arranjo não está clara, traz
180
No tocante à forma, o arranjo de Paulo Jobim traz apenas uma repetição da canção
(ABA), enquanto a partitura mais antiga apresenta a forma ABABA. Olhando para as
performances da peça, vemos que há ampliação em relação à forma. A versão da
Nova Banda repete três vezes toda a canção, |:ABA:|, sendo que, na última repetição,
a melodia e letra originais da música são substituídas por vocalizes entoados pelas
vozes femininas e masculinas. O Cello Samba Trio inova em relação à forma, pois
acrescenta uma introdução realizada pelo violoncelo solo, seguida de seis repetições
da forma completa da canção. Na primeira dessas repetições, a melodia é
apresentada em seu formato original, seguida por duas repetições, nas quais o
violoncelo improvisa, e, logo após, mais duas, em que o violão é o responsável pelo
improviso. Finalizando, Morelenbaum faz uma referência clara à Nova Banda,
utilizando a melodia do vocalize realizado naquela gravação para finalizar também
sua versão.
Versões Nova Banda (1986) Jaques Morelenbaum- Paulo Jobim Tom Jobim
Cello Samba Trio (2010) - 2000 (lead - 1961 (lead
sheet) sheet)
5 vozes femininas, 3
vozes masculinas,
piano, flauta,
Instrumentação Violoncelo, violão, bateria ---- ----
violoncelo, violão,
contrabaixo elétrico,
bateria
Intro. || ABA || Improv, Cello
|: A B :| (3
Forma (|:ABA:|) || Improv. violão AB ABABA
repetições)
(|:ABA:|) || ABA
Quadro 3- Análise comparativa entre as versões da Nova Banda e do Cello Samba Trio em relação às lead sheets
de Samba de uma nota só.
A Introdução e a Seção A da peça são programáticas, pois são construídas com base
em repetições de uma mesma nota. Morelenbaum opta por realizá-las apenas com o
violoncelo solo, valorizando a ideia contida na letra da música, que é a de construir
um samba com apenas uma nota. Durante a Introdução, pode-se dizer que o
violoncelo recebe tratamento de instrumento rítmico, e não de melódico. A nota Mi 2
é predominante, e a construção rítmica baseada em síncopes remete não apenas à
melodia da Seção A da música, como também aos instrumentos de percussão
utilizados no samba. A imitação de outros instrumentos e sonoridades específicas é
prática comum, tanto no repertório erudito para cordas (PONTES, 2012) como
também nas práticas de performance da música popular, notadamente no violino
(SILVA, 2005; VIEIRA, 2013).
No vídeo em questão, Morelenbaum lança mão de padrões rítmicos que aludem aos
instrumentos de percussão, a fim de montar seu samba com apenas um instrumento.
Ele faz uso recorrente de arcadas para baixo com intuito valorizar os acentos que
182
pretende destacar, encurtando, ao mesmo tempo, a nota anterior ao acento, por meio
de retomadas de arco em diversos trechos. Em determinadas passagens, como a
partir de [00:07:63], vemos a articulação sendo levada ao extremo, produzindo um
som resultante, no qual não é possível distinguir altura específica, mas, antes, um
ruído que remete à sonoridade dos instrumentos de percussão (Ex. 28).
Ex. 73- Retomadas de arco valorizando acentuações e notas com efeito percussivo na Introdução de Samba de
uma nota só (c. 4-9)
Na versão do Cello Samba Trio, identificamos a presença tanto das ghost notes, como
é o caso do compasso 4, no exemplo acima, como dessas notas percussivas. A
diferenciação entre estas se dá por meio da sonoridade e do papel que desempenham
no arranjo de Morelenbaum. Enquanto as ghost notes apresentam sua sonoridade
tradicional e ocorrem durante todo o arranjo, essas notas de caráter percussivo
ocorrem somente na Introdução, e com sonoridade bem presente e característica. Na
prática, elas não são notas “engolidas”, cuja sonoridade pode-se apenas intuir, elas
são bastante presentes e precisamente colocadas a fim de conferir caráter percussivo
à introdução, simulando a presença de outros instrumentos de percussão.
Turtle Island26, notadamente pelo violinista Darol Anger, ex-integrante deste grupo.
Strange e Strange (2001, p. 21) descrevem a técnica do chop de acordo com Anger,
o que inclui um movimento de rolamento do arco com o polegar direito, a fim de
garantir que este caia em um ângulo tal na corda que possibilite a produção deste
ruído.
Além das notas com caráter percussivo, encontramos ainda outras alturas durante a
Introdução proposta por Morelenbaum, por exemplo, em [00:12:79]. Longe de
representar uma melodia diferente da repetição da nota Mi 2, característica da Seção
A da peça, percebemos que elas representam mais uma alusão à sonoridade da
cuíca, outro instrumento de percussão integrante dos grupos de samba (Ex. 74).
Ex. 74- Alusão à cuíca na linha do violoncelo na Introdução de Samba de uma nota só (c. 10-12)
26Grupo americano com a formação tradicional do quarteto de cordas clássico, mas que se dedica à
performance do jazz e de outros gêneros populares.
184
Lui Coimbra, Felipe José, Luciano Corrêa, Saulo de Almeida, dentre outros, razão pela
qual discordamos do autor e preferimos considerar Morelenbaum como um dos
principais representantes neste cenário.
Em seu texto, Assis (2010, p.41) ainda elenca, dentre os elementos citados acima,
quais são empregados por Jaques Morelenbaum em suas performances, a saber:
“ponto de contato do arco na corda em torno do ponto de equilíbrio do arco,
predomínio de notas separadas, elaboração de solos com a utilização de células
rítmicas utilizadas na música brasileira e a ausência de outros golpes de arco como
martelé, spiccato.” (ASSIS, 2010, p. 41)
Ex. 76- Uso das síncopes na seção de improviso do violoncelo em Samba de uma nota só (c. 72-77)
187
Ex. 77- Melodias em graus conjuntos e arpejos na seção de improviso do violoncelo em Samba de uma nota só
(c. 92-95)
Ex. 78- Articulações típicas do samba valorizadas por meio das acentuações na performance de Jaques
Morelenbaum em Samba de uma nota só (c. 148-152)
Ex. 79- Aplicação de legato e notas em arcadas separadas na seção de improviso do violoncelo em Samba de
uma nota só (c. 141-145)
Ex. 80- Retomada de arco no talão com encurtamento da primeira nota e acentuação na antecipação do primeiro
tempo do compasso em Samba de uma nota só (c. 88-90)
Considerando a peça em sua totalidade, são empregados apenas dois tipos de golpes
de arco: o spiccato, em que o arco abandona a corda e retorna a esta, resultando em
uma articulação curta, ou staccato; e o détaché (SALLES, 2004). Morelenbaum utiliza
o spiccato e algumas variações de articulação baseadas em acentos para destacar e
valorizar as notas que corresponderiam às consoantes mais pronunciadas na letra da
música, notadamente na Seção A, construída com base no padrão rítmico da síncope
(Ex. 81).
Ex. 81- Spiccato na Seção A de Samba de uma nota só: correspondência entre a letra da canção e a articulação
do arco de Jaques Morelenbaum
A aplicação de golpes de arco com sonoridade acentuada e/ou curta encontra paralelo
nas performances de música popular brasileira realizadas por violinistas. Isidoro
189
Ex. 82- Melodia interpretada em détaché simples na Seção B de Samba de uma nota só
A seção final da música, onde toda a forma (ABA) é repetida pela última vez, também
exibe esta oposição. Embora faça uma citação direta da melodia que encerra a versão
da Nova Banda para Samba de uma nota só, Jaques evidencia cada seção por meio
190
dos golpes de arco que elege. As semicolcheias do que seria equivalente à Seção A
são executadas em spiccato, em [04:45:66] (Ex. 83), enquanto as da Seção B são
mantidas em détaché simples, com adição de uma ligadura no início das escalas
descendentes, em [04:59:53] (Ex. 84)
Ex. 83- Semicolcheias em spiccato na seção final de Samba de uma nota só (c. 236-239)
Ex. 84- Semicolcheias em détaché simples com ligadura na seção final de Samba de uma nota só (c. 248-251)
Ex. 85- Corda dupla em uníssono na Seção A de Samba de uma nota só (c. 39-44)
191
A influência das práticas de performance do jazz também pode ser percebida por meio
dos glissandos e portamentos, aplicados, sobretudo, na seção de improviso do
violoncelo. Dentre os tipos de glissandos descritos por Fabris (2005) e Kernfeld
(2002), encontramos, em Samba de uma Nota Só, predominantemente, o pitch bend,
que é o ataque um pouco acima ou abaixo da nota real, deslizando até a mesma
(FABRIS, 2005, p.14), como em [00:51:30] (Ex. 86).
Morelenbaum utiliza ainda o flip, em [00:01:36] (Ex. 87), que é um escorregar dos
dedos para cima e, em seguida, para baixo, em um âmbito intervalar pequeno
(KERNFELD, 2002). O drop, ou fall of, descrito por Kernfeld (2002) como um
portamento descendente no final de uma nota, também está presente, como em
[00:02:00] (Ex. 88). O recurso das ghost notes também foi identificado nesta
performance (Ex. 89). Tais efeitos ocorrem durante toda peça, mas há uma maior
concentração de sua aplicação na seção de improviso do violoncelo.
A versão de Samba de uma nota só, do Cello Samba Trio, corrobora procedimentos
já encontrados nas demais interpretações de Jaques Morelenbaum analisadas no
âmbito desta pesquisa. Nota-se, mais uma vez, o emprego de elementos idiomáticos
do instrumento conjuntamente com práticas de performance típicas da música
brasileira e do jazz. Por tratar-se de canção integrante do repertório da Nova Banda,
é possível perceber a grande diferença no tratamento dado ao violoncelo nos dois
arranjos, demonstrando, assim, que há, de fato, um caminho que foi percorrido por
Morelenbaum no sentido de construir um estilo próprio para a performance da música
brasileira, mesclando sua formação erudita, suas experiências pessoais e sua
parceria com outros artistas, sem prescindir da influência capital da estética de João
Gilberto sobre seu trabalho.
4.2.2.1. Ar Livre
193
Fruto de sua atividade como compositor de trilhas para cinema, Ar Livre foi
originalmente composta para o filme Paid, do diretor holandês Laurence Lamers,
lançado em 2006. Por tratar-se de uma composição do gênero bossa nova,
Morelenbaum optou por incluí-la no repertório do primeiro álbum do Cello Samba Trio,
Saudade do Futuro - Futuro da Saudade, lançado em 2014 (MORELENBAUM, 2015).
Ex. 90- Primeira ocorrência da Seção A de Ar livre, com portamenti e rítmica de natureza improvisatória
Ex. 91- Primeira repetição da Seção A interpretada com ritmo mais estrito em Ar Livre (c. 22-27)
194
Dentre as peças interpretadas pelo Cello Samba Trio analisadas nesta pesquisa, esta
é a que apresenta o andamento mais lento. Em Eu vim da Bahia e Samba de uma
nota só, o andamento é mais rápido, mais próximo ao estilo do samba. Enquanto
nestas peças há uma valorização do elemento rítmico, como vimos, em Ar livre,
Morelenbaum opta por valorizar mais a melodia, com um estilo de performance que
se aproxima tanto da bossa nova quanto do jazz, apresentando um jogo de tensões
próprio da música instrumental brasileira (BASTOS E PIEDADE, 2006, p. 931).
Ex. 93- Timbragem na segunda corda em uma passagem de Ar livre (c. 50-55)
Ex. 94- Mudanças de posição sucessivas com dedos distintos em Ar livre (c. 41-42)
Ex. 95- Mudanças de posição sucessivas com o mesmo dedo em Ar livre (c. 136-137)
Ex. 97- Arcadas em legato na seção de improviso do violoncelo em Ar livre (c. 118-123)
Conclusão
As seções de improvisação realizadas nos moldes do jazz também são outro fator
digno de nota. Embora declare interesse no improviso desde o início de sua carreira,
é apenas a partir de seu trabalho com o Cello Samba Trio, quando o violoncelo passa
de coadjuvante a ator principal, que o instrumentista passa experimentar e estabelecer
um padrão para este tipo de performance, baseando-se tanto em elementos típicos
da música brasileira, como a utilização de síncopes, quanto em elementos do jazz,
como a aplicação das escalas típicas nas melodias improvisadas, além dos glissandos
peculiares deste gênero.
pouco explorado. Entendemos ser este um estudo inicial, que enseja continuidade,
pois ainda há muitas lacunas a serem preenchidas dentro desta relevante temática.
205
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