Middlemarch Um Estudo Da Vida Provinciana de Georg

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Middlemarch: um estudo da vida provinciana, de


George Eliot.

Article in Cadernos de Tradução · January 1999


DOI: 10.5007/5567

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Paulo Henriques Britto


Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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472 Resenhas de Traduções

políticas. Pois também o leitor que


Middlemarch: Um estudo da vida não busca no romance mais que
provinciana, de George Eliot trad. entretenimento, que as emoções de
de Leonardo Fróes; Rio de se acompanhar uma história com-
Janeiro, Record, 1998. plexa e apaixonante, cheia de per-
sonagens verossímeis – se é que,
após um século de cinema e meio
de televisão, ainda existem leito-
A iniciativa pioneira de traduzir
res assim – também será ampla-
para o português a obra-prima de
mente recompensado. Em suma:
George Eliot suscita, após a rea-
Middlemarch pertence à seleta ca-
ção inicial de satisfação, um se-
tegoria de obras de arte que po-
gundo movimento de espanto:
dem ser desfrutadas nos mais va-
como é possível que Middlemarch
riados níveis de sofisticação, pro-
tenha permanecido sem uma ver-
porcionando em todos eles o mes-
são para o nosso idioma por quase
mo grau intenso de prazer; o que
cento e trinta anos? Pois o livro
é, ou deveria ser, uma das defini-
em questão não é apenas a obra
ções de um clássico.
mais ambiciosa de um dos maio-
Mas este não é o lugar para
res nomes da ficção oitocentista em
uma análise desta obra magistral
língua inglesa: é também – consi-
que, como Virginia Woolf sugere
deração importantíssima para as
num comentário famoso, faz com
editoras, pois, afinal de contas, os
que a maior parte dos romances
livros são produtos a ser lançados
em língua inglesa de seu tempo
no mercado – um romance delici-
pareçam destinar-se a um público
oso. Não é um livro apenas para
infanto-juvenil. Não me cabe co-
os apreciadores da boa prosa, que
mentar o trabalho de Mary Ann
se deleitarão com a sutil estrutura
Evans, a mulher que se ocultava
de paralelismos e assimetrias do
sob o pseudônimo masculino de
enredo e com a ironia fina do
George Eliot, e sim o de Leonar-
narrador; nem apenas para os que
do Fróes, seu tradutor. Já o título
lêem obras de ficção acima de tudo
da coleção em que se inclui o li-
como documentos de sua época,
vro – “Grandes Traduções”, da
que aqui encontrarão uma análise
Editora Record – parece solicitar
acurada do microcosmo de um
uma abordagem assim. Pois há nele
condado rural na Inglaterra num
uma ambigüidade interessante:
momento de importantes reformas
Resenhas de Traduções 473

pode ser lido tanto no sentido de “saúde mental”, lê-se no original


“grandes obras literárias “mental wealth”; claro está que o
traduzidas” quanto no de “traba- tradutor leu “health” em vez de
lhos de tradução de excepcional “wealth” – um lapso compreensí-
qualidade”. Ao menos no caso vel, uma vez que a expressão “men-
deste volume, a meu ver, ambos tal health” (“saúde mental”) é de
os sentidos estão valendo. O texto ocorrência bem mais freqüente que
de Leonardo Fróes faz plena justi- “mental wealth” (“riqueza men-
ça ao original inglês. Uma rese- tal”). Um resenhista hostil pode-
nha de tradução necessariamente ria facilmente alinhavar meia dú-
há de se deter nos aspectos mais zia de exemplos como este para
problemáticos do trabalho do tra- concluir, com base neles, que o
dutor, e uma leitura menos atenta texto em português é de péssima
pode levar à conclusão de que tais qualidade. Quantas vezes já não
problemas resultam numa tradu- lemos resenhas assim nas seções
ção insatisfatória. Porém, num li- “Livros” dos jornais e revistas?
vro de quase novecentas páginas, Porém tais exemplos não estariam
as restrições abaixo referem-se a provando rigorosamente nada,
umas poucas páginas, e os proble- porque qualquer tradução de um
mas que aponto certamente passa- livro de mais de cem páginas terá
rão despercebidos para a grande no mínimo meia dúzia de cochilos
maioria dos leitores. como esse – uma afirmação que
Ao criticar um projeto de tra- (admito sem qualquer constrangi-
dução da escala de Middlemarch é mento) garanto ser verdadeira com
preciso, antes de mais nada, ser relação aos livros que eu próprio
seletivo, e dar destaque ao que re- traduzi.
almente importa. É fácil encon- Deixemos, pois, a pesca de
trar, num livro de oitocentas e tan- “pérolas” para os críticos que, gra-
tas páginas, um bom número de ças ao recurso fácil apontado aci-
pequenas falhas devidas a lapsos ma, são capazes de demonstrar que
de atenção do autor, do tradutor, nenhuma tradução presta. Em vez
do revisor, de todos os envolvidos disso, façamos algo menos pito-
neste grande empreendimento co- resco, porém mais relevante: des-
letivo que é a preparação de um tacar alguns aspectos da tradução
livro. Assim, por exemplo, na de um romance como
página 43, onde Fróes escreveu Middlemarch que levantam proble-
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mas difíceis e ver de que modo meta no passado, de modo que seu
Leonardo Fróes enfrenta esses de- texto evite cair nos dois extremos
safios. Por considerações de espa- do pastiche e do anacronismo. Sob
ço, destacarei apenas dois. esse aspecto, o trabalho de Fróes é
O primeiro tem a ver com o impecável. A sintaxe é, de modo
fato de que se trata de um roman- geral, a do português atual, po-
ce do século dezenove. Mesmo rém o léxico contém aqui e ali uma
que o tradutor seja um filólogo palavra um pouco desusada que dá
especializado no período em ques- o tom oitocentista desejado. Eis um
tão, qualquer tentativa sua de es- bom exemplo, colhido na página
crever um texto do século dezenove 556: “Era um consolo pensar que
resultará como o empreendimento a governanta também havia esta-
de Pierre Menard, o quixotesco do a serviço de Rigg e poderia
personagem de Borges que resol- aceitar a idéia de que Mr.
veu escrever o Dom Quixote em Bulstrode só albergava Raffles na
pleno século vinte: na melhor das condição de amigo de seu antigo
hipóteses, estará produzindo um patrão.” A sintaxe é límpida; o
pastiche, coisa que o original não mais-que-perfeito analítico, prefe-
é. Por outro lado, se resolve utili- rido no português atual, é usado
zar exatamente a mesma lingua- em vez do sintético, menos natu-
gem que empregaria ao traduzir um ral para nós; no entanto a palavra
romance contemporâneo, fatal- “albergar” dá o toque de
mente incorrerá em anacronismos estranhamento necessário para si-
que talvez tornem mais visível a tuar o texto num mundo distante
presença do tradutor – o que para do nosso.
alguns teóricos da tradução da atu- O segundo aspecto que eu gos-
alidade é coisa desejável – mas que taria de discutir é talvez o mais
o farão de modo indesejável, tan- espinhoso de todos: o diálogo. Por
to quanto se um cirurgião plástico vários motivos que seria impossí-
resolvesse deixar uma marca au- vel abordar numa resenha, a re-
toral no seu face-lift na forma de criação do diálogo no texto
uma cicatriz visível no rosto da ficcional em português brasileiro
paciente. Assim, o tradutor pru- é uma das grandes dificuldades da
dente tenta manter um equilíbrio tradução literária. Aqui, mais uma
entre a linguagem de seu próprio vez, o tradutor é obrigado a nave-
tempo e uma recriação da língua- gar cuidadosamente entre dois es-
Resenhas de Traduções 475

colhos perigosos: de um lado, cor- 421). São soluções inteligentes e


re o risco de escrever um diálogo funcionais.
artificial, duro, que atua no senti- Mas é justamente quanto aos
do de anular o efeito de verossi- diálogos que faço o único reparo a
milhança por vezes arduamente esta ótima tradução. Embora seu
conquistado pelo autor do origi- domínio do inglês escrito literário
nal; de outro, se tentar aproximar- seja excelente, Leonardo Fróes, ao
se demais da fala de seu próprio que parece, tem pouca vivência do
tempo e lugar, pode acabar preju- idioma falado; assim, em alguns
dicando o efeito de verossimilhan- trechos – poucos, é preciso que se
ça pelo motivo oposto, levando o diga – em que a autora se vale de
leitor a perguntar-se: o que é que expressões coloquiais, tem-se a
esses cariocas dos anos noventa impressão de que o tradutor não
estão fazendo num romance inglês captou o sentido preciso do origi-
do século dezenove? Tal como no nal. Dois ou três exemplos basta-
quesito anterior, Fróes consegue rão. Na página 27, numa fala do
evitar os dois extremos. No seu senhor Brooke lemos o seguinte:
texto, as pessoas instruídas falam “Lembro-me de quando estávamos
um português brasileiro padrão todos lendo Adam Smith. Agora
num registro distenso (com um que sim havia um livro”. À segunda
outro lusitanismo para situar os frase desta fala corresponde, no
personagens num contexto euro- original, o seguinte: “There is a
peu: veja-se o uso de “gajos” na book, now”, com ênfase em
fala de Solomon na página 588); “there”, uma expressão cujo sen-
no entanto, usam “lhe” como ob- tido seria melhor captado em por-
jeto direto, como por vezes ocor- tuguês por “Aquilo, sim, é que é
re no português oral do Brasil, um livro”. Nessa frase bem colo-
mesmo em pessoas instruídas (“lhe quial, “there is” não corresponde
amasse”, p. 83; “lhe ver”, p. 150; ao verbo “haver”, e a palavra now
etc.). Quanto à fala das pessoas é um expletivo, como “sim”, ou
sem instrução, o tradutor utiliza “não é?”, sem sentido temporal
não só solecismos como também (como também ocorre em “you are
pronúncias estigmatizadas – assim, a great Grecian, now”, expressão
o rústico Dagley responde ao se- traduzida na página 36 como
nhor Brooke: “num vou batê no “agora o senhor é um grande gre-
menino pr’agradá o sinhô” (p. go”, mas que ficaria melhor se
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vertida, por exemplo, como “o modo, o diálogo em Middlemarch


senhor entende tudo de Grécia, não corresponde a uma parte reduzida
é?”). Vejamos um último exem- do texto: o que predomina é a voz
plo. Na página 67, Mrs. grave, serena, levemente irônica
Cadwallader comenta com Mr. do narrador; e a reprodução do
Brooke: “E logo o senhor! que tom desta voz em português é per-
está para casar sua sobrinha, que é feita do começo ao fim. Citemos
tão boa como se fosse uma filha”. um bom exemplo (extraído da p.
Trata-se de tradução literal da ex- 437) para encerrar esta resenha:
pressão as good as, cujo sentido é Quem há de prever o efeito de
“quase”, “praticamente”. um escrito? Se por acaso ele foi
Dorothea, a sobrinha, é o que cha- gravado em pedra, ainda que fi-
maríamos no Brasil de “filha de que séculos de face para baixo
criação”: é “como se fosse uma numa praia deserta, ou que “re-
filha” de Mr. Brooke; não há qual- pouse em silêncio sob os tambores
quer referência aqui à bondade da e tropéis de numerosas conquis-
personagem. Do mesmo modo, tas”, pode terminar por revelar-
diz-se “He’s as good as dead”, no nos o segredo de usurpações e ou-
sentido de “Ele está praticamente tros escândalos que eram motivo
morto”. de bisbilhotices sobre antigos im-
Tais deslizes, porém, não che- périos: – sendo aparentemente este
gam a prejudicar a fluência da lei- mundo uma galeria circular por
tura do romance, nem comprome- onde os sons murmurados vão a
tem a qualidade do todo; a maior grande distância.
parte do diálogo foi recriada em Paulo Henriques Britto
português com êxito. De qualquer

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