Oqueé: Um Líquido?

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2

artigo geral
VOL. 39 - N. 3

O que é um líquido?
P. I. C. Teixeira1,2
1
ISEL - Instituto Superior de Engenharia de Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa, Rua Conselheiro Emídio Navarro 1, 1959-007 Lisboa
2
Centro de Física Teórica e Computacional, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Campo Grande, Edifício C8, 1749-016 Lisboa

[email protected]

Resumo
Neste artigo, explora-se a singularidade e a raridade da
fase líquida enquanto forma de organização da matéria.
Começa-se por passar em revista algumas das proprie-
dades dos líquidos, relacionando-os com os sólidos e
os gases através de ideias básicas da Termodinâmica
e da Física Estatística, as quais permitem compreender
a estabilidade destas diferentes fases, bem como as
transições entre elas. Seguidamente, discute-se que
propriedades devem ter as forças interatómicas ou
intermoleculares para que um determinado tipo de ma-
téria apresente uma fase líquida. Finalmente, descreve-
-se trabalho de modelação que mostra como se pode
“desligar” a fase líquida em materiais feitos à medida.

Fig. 1 - Este mostruário no aeroporto de Stansted (Reino Unido)


Introdução pretende instruir os viajantes acerca da natureza da fase líquida.
A pergunta que constitui o título deste artigo pode pare-
cer trivial ou irrelevante, uma vez que todos sabemos (ou
julgamos saber) o que é um líquido. Mas a resposta importa sólidos são comparáveis (por exemplo, as densida-
a qualquer passageiro de avião (Figura 1), e a verdade é que des do gelo e da água líquida a 0 °C diferem apenas
os líquidos são estranhos. Aquilo que mais visivelmente os cerca de 10 %), enquanto as densidades dos gases
distingue dos sólidos é que, tal como os gases, os líquidos são cerca de mil vezes menores (compare-se a
fluem, ou seja, sofrem grandes deformações sob a acção densidade da água à temperatura ambiente – cerca
de forças infinitesimalmente pequenas, sem que as suas de 1 g/cm3 – com a do ar à mesma temperatura e
propriedades macroscópicas se alterem. Diz-se, na lingua- pressão de 1 atm – cerca de 1 g/dm3). Tomadas em
gem da mecânica dos meios contínuos, que os líquidos (e conjunto, estas propriedades sugerem que a organi-
os gases) têm módulo de tensão de corte1 nulo. No entanto, zação microscópica de um líquido seja desordena-
tal como os sólidos, e ao contrário dos gases, os líquidos da, como a de um gás, mas compacta, como a de
são muito pouco compressíveis2: dito em palavras simples, um sólido. Ou seja, os líquidos são singulares.
um líquido não tem uma forma bem definida, mas tem um
Por outro lado, como observam os autores de um
volume bem definido. Mais: as densidades3 de líquidos e
famoso (para os especialistas) artigo de revisão
sobre o estado líquido, escrito em meados dos anos
1
O módulo de tensão de corte, ou módulo de cisalhamento (shear
modulus) é uma medida da resistência oferecida por um material à
1970 [1], os líquidos existem apenas num estreito
deformação por uma força aplicada paralelamente à sua superfície. intervalo das temperaturas e pressões vigentes no
2
Ou seja, é necessário aplicar forças muito intensas a um elemento Universo. Atente-se na tabela periódica: a maior
de líquido para que o seu volume se altere. parte dos elementos, incluindo alguns dos mais
3
A densidade, ou massa específica, é definida como a massa por abundantes (ferro, carbono...) são sólidos à tem-
unidade de volume de uma substância.

Para os físicos e amigos da física.


W W W . G A Z E T A D E F I S I C A . S P F. P T
peratura ambiente4; uns quantos são gases (azoto, e densidades elevadas: o potencial de interacção tem um
oxigénio...); pouquíssimos são líquidos (bromo, mínimo para uma distância bem definida entre duas par-
mercúrio e, em dias um pouco mais quentes, frân- tículas, logo a energia potencial total (e, portanto, 𝐸𝐸) será
cio, césio e gálio). Que não tenhamos de todo esta mínima se as partículas estiverem dispostas num arranjo
impressão ao olharmos para o mundo à nossa volta, espacial periódico, perfeitamente regular – o sólido ideal.
que nos parece pejado de líquidos, advém, em par- Como esta distância preferencial é da ordem das dimen-
te, da familiaridade que temos (ou julgamos ter) com sões das partículas, tem-se que o sólido é uma fase de alta
a água, sobretudo no estado líquido. Se pensarmos densidade. De modo análogo se conclui que o gás é a fase
um instante, muitos líquidos, como o leite, o sangue, estável a altas temperaturas e baixas densidades, às quais
a cerveja, o vinho, certas tintas – não passam de a energia de interacção entre partículas é desprezável e a
“água suja”, isto é, contendo relativamente peque- entropia é máxima.
nas quantidades de outros materiais (“impurezas”).
E quanto ao líquido? Claramente, trata-se de uma fase
Excepções a esta regra são o álcool, derivados do
intermédia entre o sólido e o gás, na qual a energia inter-
petróleo como a acetona, ou certas gorduras vege-
na e a entropia têm pesos comparáveis. Ou seja, o líquido
tais, que nada têm de aquoso. Ou seja, os líquidos
resulta de um equilíbrio delicado entre o “carácter sólido” e
são raros: não há assim tantos, quer naturais, quer
o “carácter gasoso”, o que explica as suas singularidade e
artificiais.
raridade.
Para compreendermos melhor as estranhas pro-
priedades dos líquidos, precisamos primeiro de
aprender mais acerca das fases da matéria, e das φ(r) φ(r) 0 quando r ∞
transições entre elas. Em que circunstâncias se ob- φ(r) ∞ quando r 0
tém a fase sólida, a fase líquida ou a fase gasosa?
É possível estabelecer as condições de equilíbrio e
de estabilidade de um sistema macroscópico de um
modo perfeitamente geral, isto é, sem fazer qual-
ecer as condições de equilíbrio e de estabilidade de um sistema macroscópico de
rmin
quer suposição quanto à natureza microscópica do
do perfeitamente geral, isto
mesmo, através do é, sem fazerda
formalismo qualquer suposição quanto à natureza
Termodinâmica. r
ópica doConsidere-se,
mesmo, atravéspor do
exemplo, um sistema
formalismo a volume Considere-se, por
da Termodinâmica.
𝑉𝑉 e temperatura 𝑇𝑇 constantes. O seu estado de
o, um sistema a volume 𝑉𝑉𝑉𝑉 e temperatura 𝑇𝑇𝑇𝑇 constantes. O seu estado de equilíbrio
equilíbrio será aquele que minimiza a energia livre
r
uele que(ou
minimiza
funçãoade
energia livre (oudada
Helmholtz), função de Helmholtz), dada por
por φ min

(1) (1) 2 - Forma genérica do potencial de interacção entre partículas cons-


Fig.
Fig. 2 – Forma genérica
tituintesdodapotencial
matéria.deOinteracção
potencialentre partículas
é repulsivo (ϕconstituintes da matéria.
(r) > 𝑇) a curtas O potencial é
distâncias,
é a energia interna, 𝑇𝑇𝑇𝑇 é a temperatura absoluta e 𝑆𝑆𝑆𝑆 é a repulsivo entropia. A baixas
atractivo ( ϕ(r) < 0) a longas distâncias, e tem um mínimo, de profundida-
(ϕ(r) > 0) a curtas distâncias, atractivo (ϕ(r) < 0) a longas distâncias, e tem um mínimo, de
de ϕmin, quando a distância entre duas partículas é r = rmin.
aturas (𝑇𝑇𝑇𝑇onde
→ 0),𝐸𝐸oétermo
a energia interna, 𝑇𝑇 é ea otemperatura
𝑇𝑇𝑇𝑇𝑆𝑆𝑆𝑆 é desprezável mínimo de 𝐹𝐹𝐹𝐹abso- estado ϕmin, quando a distância entre duas partículas é r = rmin.
é realizado peloprofundidade
luta e 𝑆𝑆 é a entropia. A baixas temperaturas (𝑇𝑇𝑇𝑇), o
nimiza a energia, 𝐸𝐸𝐸𝐸. Por outro lado, a altas temperaturas (𝑇𝑇𝑇𝑇 → ∞), o termo 𝑇𝑇𝑇𝑇𝑆𝑆𝑆𝑆
termo 𝑇𝑇𝑆𝑆 é desprezável e o mínimo de 𝐹𝐹 é realizado O cenário de Van der Waals
, e o estado de equilíbrio
pelo estado é aquele que
que minimiza maximiza
a energia, a entropia,
𝐸𝐸. Por outro 𝑆𝑆𝑆𝑆. Este princípio de
O cenário de Van der Waals
A distinção entre líquidos e gases é feita habitualmente com
lado,éa do
mais não altas
quetemperaturas (𝑇𝑇𝑇𝑇), oreformulações
uma das possíveis termo 𝑇𝑇𝑆𝑆 domi-
da Segunda base nadasua equação de estado, ou seja, no modo como o
Lei
A distinção entre líquidos e gases é feita habitualmente com base na sua equação de
inâmica.na, e o estado de equilíbrio é aquele que maximiza a seu volume varia ao variar a pressão (e a temperatura) a que
entropia, 𝑆𝑆. Este princípio de mínimo mais nãoestado,é do ou seja,estão no modo comooovolume
sujeitos: seu volume
de umvaria ao variar
líquido variaa muito
pressão (e a temperatura)
menos do
podemosque deduzir
uma destas considerações
das possíveis as regiões
reformulações dade estabilidade das que
Segunda diferentes
o de um gás.
a que estão sujeitos: o volume de Aumprimeira
líquido equação
varia muitodemenos
estadodocapaz
que o de
de um gás. A
A matériaLeiéda Termodinâmica.
constituída por partículas (átomos ou moléculas) que interagem descrever
entre a transição gás-líquido, ou condensação, deve-se
primeira equação de estado capaz de descrever a transição gás-líquido, ou condensação,
ra 2). AComo
curtaspodemos
distâncias,deduzir
esta interacção é repulsiva – deve-se
destas considerações as a Van der
ao Princípio de Waals [2]:
deve-se a Van der Waals [2]:
regiões
o de Pauli de estabilidade
– e impede das diferentes
que duas partículas fases? A A longas distâncias, a
se sobreponham.
matéria é constituída por partículas (átomos ou mo-
ção é atractiva e de origem electrostática – deve-se a forças entre dipolos (2)
léculas) que interagem entre si (Figura 2). A curtas
entes e/ou induzidos. Usando a Equação 1, podemos
distâncias, esta interacção é repulsiva – deve-se ao concluir que o sólido é a (2)
Princípio de Exclusão de Pauli – e impede queonde
tável a baixas temperaturas e densidades elevadas: o duas𝑃𝑃𝑃𝑃 é a pressão, 𝑉𝑉𝑉𝑉 é o volume, 𝑇𝑇𝑇𝑇 é a temperatura, 𝑛𝑛𝑛𝑛 é o número de moles de gás no
potencial de interacção tem
partículas se sobreponham. A longas onde 𝑃𝑃 é a pressão, 𝑉𝑉 é o volume, 𝑇𝑇 é a temperatura, 𝑛𝑛 é
nimo para uma distância bem definida entre distâncias, a
duas partículas, logo a energia
interacção é atractiva e de origem electrostática – volume 𝑉𝑉𝑉𝑉, 𝑅𝑅𝑅𝑅 éo número
a constante de moles de gás
universal dos no volume
gases 𝑉𝑉, 𝑅𝑅e éasa constante
ideais, constantes 𝑎𝑎𝑎𝑎 e 𝑏𝑏𝑏𝑏 são
al total (e, portanto, 𝐸𝐸𝐸𝐸) será mínima se as partículas estiverem dispostas universalnumdos gases ideais, e as constantes 𝑎𝑎 e 𝑏𝑏 são ca-
deve-se a forças entre dipolos permanentes e/ou características de cada gás: 𝑎𝑎𝑎𝑎 mede a intensidade das atracções entre as partículas e 𝑏𝑏𝑏𝑏 o
espacial periódico, perfeitamente regular – o sólido
induzidos. Usando a Equação (1), podemos concluir ideal. Como esta racterísticas
distância de cada gás: 𝑎𝑎 mede a intensidade das atrac-
volume por elas ocupado. Se traçarmos as isotérmicas de Van der Waals, ou seja, o
que
ncial é da o sólido
ordem é a fase estável
das dimensões a baixastem-se
das partículas, temperaturas
que o sólido é uma fase de
ções entre as partículas e 𝑏𝑏 o volume por elas ocupado.
gráfico de 𝑃𝑃𝑃𝑃 em Sefunção
traçarmos de 𝑉𝑉𝑉𝑉 asda isotérmicas
equação (2) dea uma
Van série de temperaturas
der Waals, ou seja, o 𝑇𝑇𝑇𝑇 (figura 3),
nsidade. De modo análogo se conclui que o gás é a fase estável a
gráfico altas
de 𝑃𝑃temperaturas,
em função de 𝑉𝑉 dasãoequação (2) a uma série de do gás
verificaremos que, a altas estas semelhantes às da equação
aturas e baixas
4
densidades, às quais a energia de interacção entre partículas
Na Terra! temperaturas é 𝑇𝑇 (figura 3), verificaremos que, a altas tempe-
ideal, 𝑃𝑃𝑃𝑃𝑉𝑉𝑉𝑉 = 𝑛𝑛𝑛𝑛𝑅𝑅𝑅𝑅𝑇𝑇𝑇𝑇. Existe, porém, uma temperatura 𝑇𝑇𝑇𝑇 – dita temperatura crítica – abaixo da
𝑐𝑐𝑐𝑐
zável e a entropia é máxima.
qual a curva 𝑃𝑃𝑃𝑃(𝑉𝑉𝑉𝑉) tem um ponto de inflexão, (𝑉𝑉𝑉𝑉𝑐𝑐𝑐𝑐 , 𝑃𝑃𝑃𝑃𝑐𝑐𝑐𝑐 ). A temperaturas inferiores a 𝑇𝑇𝑇𝑇𝑐𝑐𝑐𝑐 , a
to ao líquido? Claramente, trata-se de uma fase intermédia entre ode
variação sólido e o𝑉𝑉𝑉𝑉 gás,
𝑃𝑃𝑃𝑃 com deixa de ser monótona decrescente – passa a existir um intervalo de
Para os físicos e amigos da física.
a energia interna e a entropia têm pesos comparáveis. Ou seja,
𝑉𝑉𝑉𝑉 em queo 𝑃𝑃𝑃𝑃líquido resulta
aumenta com o aumento de 𝑉𝑉𝑉𝑉 – ou seja,
WWW em
. G que
A Z E TaAcompressibilidade 3
D E F I S I C A . S P F. P T do gás

equilíbrio delicado entre o “carácter sólido” e o “carácter gasoso”, o que explica as


raturas, estas são semelhantes às da equação do gás ideal, das de 1970-1980, começou-se a estudar misturas
𝑃𝑃𝑃𝑃𝑃𝑃𝑃𝑃𝑃𝑃𝑃. Existe, porém, uma temperatura 𝑃𝑃𝑐𝑐 – dita tempe- de colóides5 e polímeros, tendo-se concluído que
ratura crítica – abaixo da qual a curva 𝑃𝑃(𝑃𝑃) tem um ponto de o polímero induz uma interacção efectiva entre os
inflexão, (𝑃𝑃𝑐𝑐,𝑃𝑃𝑐𝑐). A temperaturas inferiores a 𝑃𝑃𝑐𝑐, a variação colóides, cujo alcance depende das dimensões
de 𝑃𝑃 com 𝑃𝑃 deixa de ser monótona decrescente – passa a da cadeia polimérica. Tornou-se assim possível
existir um intervalo de 𝑃𝑃 em que 𝑃𝑃 aumenta com o aumento controlar o alcance da parte atractiva do potencial,
de 𝑃𝑃 – ou seja, em que a compressibilidade do gás é nega- deixando inalterado o da parte repulsiva. E verificou-
tiva, o que não é físico. Esta limitação da equação de Van -se que, para atracções de alcance suficientemente
der Waals pode corrigir-se substituindo parte da curva por curto, existiam apenas uma fase sólida e uma fase
um segmento de recta horizontal (a tracejado na Figura 3), fluida (líquida ou gasosa), ou seja, deixava de haver
interpretado como correspondendo à região de coexistên- condensação. Este comportamento foi esclarecido
cia de uma fase gasosa (com volume 𝑃𝑃2) e uma fase líquida através de simulações computacionais de um fluido
(com volume 𝑃𝑃1<𝑃𝑃2 logo densidade mais elevada que a da de Yukawa [4]. O fluido de Yukawa é um modelo
fase gasosa). particularmente conveniente para estes estudos,
uma vez que compreende uma repulsão infinita de
P alcance σ (o diâmetro do cerne rígido de uma partí-
cula) e uma atracção exponencial de intensidade 𝜀𝜀 e
alcance 1/𝜅𝜅:

T=TC
(3)
Gás ideal

PC Ao diminuir-se Ao
o alcance da atracção
diminuir-se o alcancerelativamente
da atracçãoà relativamente
repulsão, o equilíbrio lí
T>TC à repulsão,
torna-se meta-estável o equilíbrioao
relativamente líquido-gás
equilíbrio torna-se meta-e a conde
líquido-sólido
-estável
substituída pela relativamente
sublimação (Figura ao
4). equilíbrio líquido-sólidopode
Este comportamento e a compr
condensação é substituída pela sublimação (Figura
recorrendo, novamente, à equação (1): se o alcance da parte atractiva do p
4). Este comportamento pode compreender-se
muito curto, a baixas temperaturas
recorrendo, a energia
novamente, interna (1):
à equação vai ser
se ominimizada
alcan- por es
ce da
que as partículas parte
estão atractiva
muito do potencial
próximas, é muito curto,
logo a densidade é muito alta, o qu
T<TC a baixas temperaturas a energia interna vai ser
facilmente realizável num sólido, em que o arranjo das partículas é regular.
minimizada por estados em que as partículas estão
V1 VC V2 V muito próximas, logo a densidade é muito alta, o
Fig. 3 - Isotérmicas de um gás de Van der Waals. A posição do segmento que é mais facilmente realizável num sólido, em que
de recta azul a tracejado é escolhida de modo a que as áreas sombreadas
sejam iguais (construção de Maxwell, que garante o equilíbrio relativa-
o arranjo das partículas é regular.
mente à troca de partículas entre as duas fases). A temperaturas eleva- 0.0 0.0 0.0
das, as isotérmicas de Van der Waals aproximam-se das do gás ideal. a b c

1.0 S 1.0 F S 1.0 F S


G L
β

A equação de estado de Van der Waals pode ser facilmente 2.0 2.0 2.0

deduzida pelos métodos da Física Estatística, se admitirmos 3.0 3.0 3.0

que as partículas do gás se repelem, a curtas distâncias, 0.0 0.5


ρ
1.0 1.5 0.0 0.5
ρ
1.0 1.5 0.0 0.5
ρ
1.0 1.5

como se fossem esferas rígidas (potencial repulsivo isotrópi-


Fig. 4 – Diagramas de 4fases
Fig. no plano factor
- Diagramas de Boltzmann
de fases (𝛽𝛽𝛽𝛽 = 1/𝑘𝑘𝑘𝑘
no plano factor deB 𝑇𝑇𝑇𝑇) vs. densidade (ρ) do fluido
Boltzmann
(β=1/(kBT)) vs. densidade (ρ) do fluido de Yukawa (Eq. (3)),
co e infinitamente íngreme), e que cada partícula se com-
(Eq. 3), para alcances
para alcances decrescentes da parte atractiva do interacção
decrescentes da parte atractiva do potencial de potencial entre duas par
porta como se sujeita a um potencial atractivo presente emsão previsões
linhas de teóricas, os símbolos
interacção entre duassãopartículas.
resultados de
As simulação
linhas sãocomputacional.
previsões (a) Para 𝜅𝜅𝜅𝜅
todo o espaço e devido a todas as outras partículas (aproxi- teóricas, os símbolos são resultados de simulação computacio-
presentes as três fases: gás (G), líquido (L) e sólido (S). (b) Para 𝜅𝜅𝜅𝜅 = 7 já só existe uma única fase
nal. (a) Para 𝜅𝜅=3,9 estão presentes as três fases: gás (G), líquido
mação de campo médio) [3]. curva de coexistência
(L) e gás-líquido
sólido (S). está
(b) Para 𝜅𝜅=7
dentro dajácurva de coexistência
só existe uma única gás-sólido, ou seja, a cond
fase fluida
(F): a curva de coexistência gás-líquido está dentro da curva de
O principal mérito da equação de estado de Van der Waals meta-estável relativamente à sublimação (c) Para 𝜅𝜅𝜅𝜅 = 9 já só existe a curva de sublimação. (Adap
coexistência gás-sólido, ou seja, a condensação é meta-estável
está em esclarecer o mecanismo qualitativo da condensa- relativamente à sublimação (c) Para 𝜅𝜅=9 já só existe a curva de
sublimação. (Adaptado de [4].)
ção, ao colocar em evidência os diferentes papéis de-
sempenhados por repulsões e atracções entre partículas. Para além de Van der Waals: o fluido dipolar
Note-se que, no raciocínio utilizado para a deduzir, está Para além de Van der Waals: o fluido
implícita a suposição de que o alcance das atracçõesPara é que existadipolar condensação, é claramente necessária a existência de forças
muito maior do que o das repulsões, o que é verdadeentre na as partículas.Para que
Mas,exista
comocondensação,
vimos, não servem é claramente
quaisquerne- forças atractiv
maior parte dos sistemas atómicos e moleculares (com alcance tem de ser suficientemente longo. Ora muitas das forçasas
a cessária a existência de forças atractivas entre que se exer
possível excepção do buckminster-fullereno). Ora, nas déca- partículas. Mas, como vimos, não servem quaisquer
átomos e moléculas são de natureza electrostática, especificamente, potencia
forças atractivas: o seu alcance tem de ser sufi-
dipolo-dipolo: cientemente longo. Ora muitas das forças que se
5
Partículas com dimensões da ordem do micrómetro, suspensas num
solvente. exercem entre átomos e moléculas são de natureza

Para os físicos e amigos da física.


onde 𝜇𝜇𝜇𝜇⃗𝑖𝑖𝑖𝑖 é o momento dipolar da partícula 𝑖𝑖𝑖𝑖 e 𝑟𝑟𝑟𝑟̂ é o vector unitário que une os ce
4 W W W . G A Z E T A D E F I S I C A . S P F. P T
duas partículas. Claramente, trata-se de uma força de longo alcance, a
ém de Van der Waals: o fluido dipolar

ue exista condensação, é claramente necessária a existência de forças atractivas


as partículas. Mas, como vimos, não servem quaisquer forças atractivas: o seu
e tem de ser suficientemente longo. Ora muitas das forças que se exercem entre
electrostática,
e moléculas especificamente,
são de natureza potenciais
electrostática, do tipo potenciais
especificamente, quais
do dipolos
tipo consecutivos assumiam, aproximadamente, a
dipolo-dipolo: orientação cabeça-com-cauda, que corresponde ao mínimo
dipolo:
do potencial (4) [6] (Figura 5).
No final do século XX, a descrição teórica do fluido dipolar
(4)
tinha
(4) chegado a um impasse. Surgiu então uma abordagem
inovadora: o estado fundamental (T=0 K) do fluido de esfe-
𝑖𝑖𝑖𝑖 é o momento dipolar da partícula 𝑖𝑖𝑖𝑖 e 𝑟𝑟𝑟𝑟̂ é o vector unitário que une os centros das dipolares é uma única cadeia linear, infinitamente
ras rígidas
onde 𝜇𝜇𝜇𝜇𝜇𝜇𝑖𝑖 é o momento dipolar da partícula 𝑖𝑖 e 𝑟𝑟𝑟 é o
partículas. Claramente, trata-se de uma força de longo alcance, ainda longa. queTlusty e Safran [8] resolveram tratar o fluido dipolar a
vector unitário que une os centros das duas partí-
ente anisotrópica. Será a interacção dipolo-dipolo, porlongo temperaturas
si só, capaz de induzir baixas (mas não nulas) e baixas densidades
culas. Claramente, trata-se de uma força de
como uma perturbação deste estado fundamental. Para tal,
alcance,
sação num sistema ainda que fortemente
no qual, de outro modo,anisotrópica.
ela não seSerá
daria?a Pensando no caso
consideraram que as “excitações elementares” são de dois
interacção dipolo-dipolo, por si só, capaz de induzir
tipos: extremidades de cadeias (quando a cadeia infinita
condensação num sistema no qual, de outro modo,
quebra para dar origem a cadeias mais curtas, com custo
ela não se daria? Pensando no caso mais simples
energético 𝜀𝜀𝑒𝑒 por quebra) e pontos de ramificação (onde
possível: será que um fluido de esferas rígidas dipo-
três cadeias lineares se encontram, com custo energético
lares condensa?
𝜀𝜀𝑗𝑗). Estas excitações são de origem entrópica: a entropia
Foi isto que se interrogaram De Gennes e Pincus [5]. está associada ao número de maneiras possíveis de que-
O potencial (4) é difícil de tratar teoricamente, pelo brar uma cadeia ou de formar um ponto de ramificação. Se
que se serviram de uma simplificação: considera- 𝜀𝜀𝑗𝑗<𝜀𝜀𝑒𝑒/3 (ou seja, para pontos de ramificação suficientemen-
ram antes o potencial isotrópico efectivo entre dois te “baratos”), o ganho de entropia vence o custo energético
dipolos, que é atractivo e proporcional a 1/𝑟𝑟6 – ou (ver, novamente, Equação (1)) e podem ocorrer excitações
seja, tem alcance suficientemente longo. Logo, o em número suficiente para se formarem duas fases dis-
fluido de esferas rígidas dipolares deveria ter um tintas: um gás, rico em extremidades de cadeias (ou seja,
comportamento semelhante ao de um gás de Van constituído por um grande número de cadeias curtas) e um
der Waals, com fases líquida e gasosa (e sólida). E líquido, rico em pontos de ramificação (ou seja, constituí-
neste sentido pareciam também apontar as primei- do por cadeias mais longas e mais ramificadas). As fases
ras simulações em computador deste sistema, feitas diferem não tanto nas suas densidades, como nas suas
ainda na década de 1970. topologias. Abriu-se, assim, uma nova perspectiva acerca
do comportamento de fases do fluido dipolar, o qual passou
Mas as simulações são muito traiçoeiras. O número
a ser visto como resultando da competição entre dois tipos
de partículas de um sistema simulado é sempre
de agregados: cadeias lineares e cadeias ramificadas.
muito inferior ao de um sistema real e o potencial
Simulações mais recentes [9,10], porém, sugerem que seja
de interacção entre as partículas exige especial
essencial generalizar a teoria de modo a incluir não apenas
cuidado sempre que for de longo alcance. Quando,
cadeias abertas, mas também anéis, bem como novos tipos
no início da década de 1990, se tornou possível
de defeitos susceptíveis de induzir interacções entre agrega-
simular sistemas de maiores dimensões e fazer um
dos.
tratamento mais rigoroso das interacções de longo
alcance, o cenário mudou completamente: a baixas
temperaturas, um gás de esferas rígidas dipola- Ainda mais para além de Van der Waals:
res não condensava: em vez disso, as partículas patchy colloids
agregavam-se em longas cadeias ramificadas, anéis Não é fácil relacionar as escalas de energia 𝜀𝜀𝑒𝑒 e 𝜀𝜀𝑗𝑗 da teoria
e algumas outras estruturas mais complexas, nas de Tlusty e Safran com os momentos dipolares. Por volta
de 2008, descobriu-se que esta teoria era o limite de baixas
densidades e baixas temperaturas de uma outra, aparente-
mente completamente diferente: a teoria de perturbações
termodinâmica de colóides com interacções anisotrópicas
(patchy colloids) [11]. Patchy colloids são partículas coloi-
dais que se atraem umas às outras apenas quando certas

a b c

Fig. 6 - (a) Partícula coloidal com cerne de esfera rígida (violeta), dois
Fig. 5 - Instantâneo de uma configuração de 1024 esferas patches do tipo A (pequenos hemisférios amarelos) e um patch do tipo
rígidas dipolares a baixa densidade e baixa temperatura [7]. As B (pequeno hemisfério verde). Os patches de diferentes partículas só
cores indicam o número de partículas constituintes das cadeias interagem quando se sobrepõem. (b) Ponto de ramificação do tipo X. (c)
– vermelho: 1-5; laranja: 10-15; verde: 15-20. Ponto de ramificação do tipo Y. (Figuras da autoria de D. de las Heras)

Para os físicos e amigos da física.


W W W . G A Z E T A D E F I S I C A . S P F. P T 5
regiões (patches) da superfície de uma partícula estão muito Conclusão
próximas das regiões correspondentes na superfície de ou- Embora a descrição clássica da transição gás-líqui-
tra partícula. Um modelo frequentemente utilizado consiste do, introduzida por Van der Waals no século XIX,
em tomar os patchy colloids como esferas rígidas cujas se tenha revelado extremamente útil, sabemos hoje
superfícies estão decoradas com um ou mais poços de po- que há mais líquidos na Terra (e, porventura, no céu)
tencial atractivos, de pequena largura angular, curto alcance do que sonha a sua filosofia. Apresentaram-se aqui
e profundidade uniforme (Figura 6.a). alguns exemplos, e descreveram-se os esforços,
ainda muito incompletos, para os compreender. É
Aplicando a teoria de perturbações termodinâmica, verifi-
particularmente emocionante que se disponha hoje
cou-se a existência de condensação induzida por pontos de
da capacidade de sintetizar no laboratório partículas
ramificação em colóides com dois patches do tipo A e um
coloidais com potenciais “feitos à medida” [15], cuja
número arbitrário de patches do tipo B (em que os patches
manipulação permitirá a observação de comporta-
A e B diferem na sua largura angular, e nos alcances e inten-
mentos de fases como os atrás discutidos, os quais,
sidades das suas interacções). Neste modelo, os pontos
tanto quanto se sabe, não ocorrem na natureza.
de ramificação são de dois tipos: X (devidos a ligações BB
com energia 𝜀𝜀BB, Figura 6.b) e Y (devidos a ligações AB Por opção pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo
com energia 𝜀𝜀AB, Figura 6.c). As ligações AA (com energia Ortográfico.
𝜀𝜀AA) são responsáveis pela formação de cadeias lineares.
Se desligarmos a interacção entre patches do tipo B e
enfraquecermos a interacção entre patches dos tipos A e B
relativamente àquela entre patches do tipo A, obtemos que
(se 1/3<𝜀𝜀𝐴𝐴𝐴𝐴/𝜀𝜀𝐴𝐴𝐴𝐴<1/2) a região de coexistência líquido-gás
do diagrama de fases se torna reentrante – as densidades
de coexistência do líquido e do gás aproximam-se, em vez
de se afastarem, como seria de esperar, quando 𝑇𝑇𝑇0 K –
até desaparecer por completo (se 𝜀𝜀𝐴𝐴𝐴𝐴/𝜀𝜀𝐴𝐴𝐴𝐴<1/3). Ou seja,
as fases líquida e gasosa tornam-se mais semelhantes a
baixas temperaturas – são ambas compostas principalmen-
te por longas cadeias lineares – em perfeita analogia com as
previsões de Tlusty e Safran para o fluido dipolar [12] (Figura
7). O líquido torna-se um “líquido vazio”, que apenas difere
do gás por ser ligeiramente mais ramificado. Patchy colloi-
ds e fluido dipolar parecem, portanto, ter alguma física em
comum. Infelizmente, não foi possível, até agora, estabe-
lecer uma correspondência isenta de ambiguidades entre
os respectivos parâmetros de interacção [13]. Uma outra
questão em aberto diz respeito ao papel dos agregados
fechados (contendo anéis), que foi desprezado nos trata-
mentos teóricos mais simples, mas parece poder conduzir a
um segundo ponto crítico a baixas temperaturas [14].

0.10
r = 0.336
r = 0.34
r = 0.35
0.09 r = 0.37
r = 0.40
r = 0.45

0.08

0.07
T

0.06

0.05

0.0 0.1 0.2 0.3 0.4 0.5


ρ
Fig. 7 - Diagrama de fases no plano temperatura 𝑇𝑇 vs. densidade 𝜌𝜌: as
linhas são previsões teóricas, os símbolos são resultados de simulação
computacional. 𝑟𝑟𝑟𝜀𝜀𝐴𝐴𝐴𝐴/𝜀𝜀𝐴𝐴𝐴𝐴 é a razão das intensidades das interacções entre
pares de patches AB e AA. As fases líquida e gasosa correspondem às
regiões à direita e à esquerda das curvas, repectivamente. (Adaptado de
[12])

Para os físicos e amigos da física.


6 W W W . G A Z E T A D E F I S I C A . S P F. P T
Referências Paulo Teixeira faz teoria e mode-
lização de vários sistemas do âmbito da
1. J. A. Barker e D. Henderson, “What is “Li- matéria condensada mole (cristais líqui-
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2. J. D. van der Waals, Over de Continuiteit van pela Universidade de Lisboa, doutorou-
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-se na Universidade de Southampton
3. F. Reif, Statistical and Thermal Physics (Reino Unido) e foi investigador pós-
McGraw-Hill, 1965). -doutorado em Amesterdão, Cambridge, Leeds
4. M. H. J. Hagen e D. Frenkel, “Determination e no Instituto Superior Técnico. Foi Professor Auxiliar da
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4093 (1994). do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa e investigador
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dens. Mater. 11, 189 (1970). Outstanding Referees da Sociedade Americana de Física
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low-density dipolar hard spheres: A Monte dução à Física Estatística, publicado em Portugal (IST Press,
Carlo study”, Phys. Rev. Lett. 71, 2729 2011), Brasil (Livraria da Física, 2013) e no resto do mundo
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interaction patches: The limits of chains,
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12. J. Russo, J. M. Tavares, P. I. C. Teixeira, M. M.
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ticle model with temperature-dependent
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13. J. M. Tavares e P. I. C. Teixeira, “Patching up
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14. L. Rovigatti, J. M. Tavares e F. Sciortino,
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Para os físicos e amigos da física.


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