15 Dossie Tereza Ventura
15 Dossie Tereza Ventura
15 Dossie Tereza Ventura
Tereza Ventura*
Resumo – Neste texto, aborda-se a redefinição das agendas de política cultural, relacio-
nando-as aos conceitos de reconhecimento, pluralismo cultural, justiça e igualdade. Esses
conceitos, bem como os movimentos sociais que os sustentam, trazem à tona dimensões
éticas, morais e identitárias que, tendo permanecido sob a tutela do Estado, eram silencia-
das do debate político-cultural. Destaca-se, ainda, a importância do Estado na conciliação
de processos socioculturais particulares com modelos universais de cidadania e de política.
Palavras-chave
Palavras-chave: cultura; reconhecimento; pluralismo; cidadania; espaço público.
*
Pós-Doutora em Políticas Culturais pela New York University, Doutora em Sociologia da Cultura pela USP, Professora de Sociologia
da Cultura da UERJ e Pesquisadora do LPP/UERJ. E-mail: [email protected].
longo período histórico, foram mantidas isola- uma luta criativa, na qual as políticas culturais e
das das políticas do Estado Nacional e das agên- movimentos de reconhecimento desempenham
cias internacionais. Contudo, as pressões do papéis cruciais.
mercado criam condições complexas que afe-
tam a dinâmica política, sociocultural, a natu- Empoderamento comunitário
reza simbólica e a sobrevivência econômica das
comunidades. Como já foi dito, a implementação de pro-
jetos locais de desenvolvimento trouxe a co-
O desafio do processo democrático é con-
alizão entre os atores do mercado, mobiliza-
ciliar a igualdade social, pluralismo cultural,
dos por interesses neoliberais, os movimen-
cidadania e economia política. As políticas cul-
tos sociais e as comunidades locais, todos
turais voltadas para a preservação cultural das
eles interessados na redefinição do poder
minorias não alcançaram estabilidade
do Estado sobre a sociedade e sobre o mer-
institucional e enfrentam a desregulação cres-
cado. Desde os anos 1980, ativistas sociais
cente e o avanço do mercado globalizado
nacionais e internacionais têm alcançado im-
que se respalda na racionalidade econômi-
portante posição dentro das comunidades e
ca da busca de mercados alternativos para
contribuído para dar visibilidade política aos
formas de produtividade local. Esse é o caso
temas do pluralismo, identidade e reconhe-
de várias comunidades indígenas e tradicio-
cimento das minorias.
nais que têm suporte de grandes cor-
porações internacionais sem qualquer inter- O movimento social de reconhecimento
venção reguladora do Estado e da Justiça. reflete também as transformações da esfera
Por um lado, a mobilização política para o da cultura no contexto de um capitalismo
reconhecimento cultural desloca as condi- pós-industrial, no qual a classe social não
ções sócio-econômicas e jurídicas no que atua como base de referência da identidade
diz respeito ao direito civil e político de auto- e das lutas sociais, e o Estado e as agências
governança (Fraser, 1995). De outro lado, a públicas não atuam como únicas forças re-
ausência de reconhecimento e legitimidade guladoras dos dispositivos institucionais de
(Honneth, 1995, 2004; Taylor, 1992) pode representação e distinção da cultura em suas
afetar a sentido coletivo e solidário, o auto- variáveis nacional, popular e erudita. Trata-
respeito e autoconfiança das comunidades se de um contexto em que práticas vincula-
“subalternas”. Várias iniciativas comunitári- das às comunidades étnicas, indígenas e ur-
as, sejam urbanas ou tradicionais, têm de- banas de rua ganham evidência por trazer
monstrado que a ética de pertencimento a um dispositivos de representação de grupos su-
modus vivendi (ser, fazer e viver) é também balternos e autodidatas, ausentes não só nas
expressão e relação que os grupos periféricos que agregava e dava voz aos diversos segmen-
constroem com a cidade e o espaço público tos representativos das comunidades locais. As
transnacional. Novas arenas de tematização dos ONGs estabeleciam parcerias com os grupos
problemas vivenciados no cotidiano e nas rela- locais e internacionais e intermediavam o apoio
ções sociais concretas são articuladas no âm- da prefeitura, de advogados para processos
bito de estruturas associativas locais, trans-lo- judiciais, implantavam projetos culturais e apoi-
cais, iniciativas de base, festas e territórios digi- avam rádios comunitárias. Contudo, a presen-
tais de referência que se disseminavam ça do Estado e do poder público nas comuni-
descentralizadamente pelo mundo. Vários epi- dades periféricas ainda é insignificante quando
sódios brutais de execução das populações de comparada à presença da polícia e do poder
favelas chamavam atenção dos movimentos so- local que pode ser o do tráfico de drogas ou
ciais e da imprensa internacional. A violência dos grandes proprietários de terra. O movimen-
policial se destacava no debate público, pelo to globalizador proporcionou, tanto para as
assassinato brutal de 111 detentos do Presídio comunidades indígenas quanto para as urba-
Carandiru em São Paulo (02 de outubro de nas, o acesso à comunicação eletrônica
1992), pelo assassinato freqüente de menores interativa através de redes de Internet e a difusão
e trabalhadores residentes das favelas conside- de canais comunitários de rádio e televisão, inclu-
rados como “desaparecidos” e pelo assassina- indo-se aí as rádios e gravações piratas que se
to da líder do movimento Mães de Acari, Edméia disseminavam em várias comunidades. As redes
Eusébia, que denunciava o “desaparecimen- de internet proporcionaram a internacionalização
to” de crianças e liderava a luta judicial e social da troca, cooperação intercultural e o acesso fácil
das mães pela apuração dos “desaparecimen- e descentralizado à informação (Castells, 1997).
tos”. Naquele mesmo mês de agosto de 1993, Acresce-se o fato de que o crescimento do merca-
oito crianças de rua foram assassinadas pela do de equipamentos eletrônicos, vídeos, televisão
polícia, episódio que ficou conhecido como o e assinaturas de TV a cabo e por satélite, as novas
Massacre da Candelária. A violência policial tecnologias de produção foram imediatamente
mobilizou entidades internacionais como a incorporadas pelos setores da comunicação pro-
Anistia Internacional, o Human Rights Watch, porcionando o avanço de redes locais de comu-
que, em conjunto com movimentos sociais lo- nicação nas comunidades periféricas como as
cais, atuam na luta pela inclusão social e pelo rádios comunitárias. Pequenas redes semi-indus-
respeito moral e cultural às minorias. triais foram conformando um mercado de cir-
Destaca-se o movimento Ação da cidadania culação, produção e estratégias de marketing
contra a Fome, a Miséria e pela Vida, liderado específicas, através das quais produtores de
pelo sociólogo Hebert de Souza – o Betinho –, eventos e festas ganhariam visibilidade e
influência nas suas comunidades, a despeito relação entre o Ministério e a clientela fixa de
dos meios oficiais de comunicação de massa. produtores culturais. Os interesses coletivos e
A condição de excluído surge no discurso valores universais que integram a dinâmica do
do Rapper, nas lutas indígenas e étnicas, na campo cultural ou apontem para ordens de
imagem dos grafites de rua, como arte e de- menor visibilidade da atividade cultural oficial,
núncia, a crônica do cotidiano circula no espa- não participavam da dinâmica decisória.
ço onde o poder público e a mídia estão ausen- A política fiscal, tal como foi institucio-
tes. O processo globalizador inscreve a transfor- nalizada, não atende uma demanda de me-
mação a partir das formas locais e redes globais nor visibilidade numa economia de merca-
de intercâmbio, de expressão e de solidariedade. do. A lei de incentivo, ao lado de deses-
A sociabilidade de rede induz a partilha de um timular a iniciativa privada a investir o seu
capital simbólico comum através do qual se for- próprio capital em projetos culturais, per-
jam identidades. Práticas e experiências, que se mite ser usada pela empresa de forma
realizavam de forma desagregada e privada, pas- utilitária à sua imagem institucional. A lei
saram a ser históricas e socialmente associadas a permitiu às corporações criarem as suas
semânticas subculturais comuns. Favorecidas pelo instituições culturais “sem fins lucrativos”
crescente intercâmbio material e simbólico que que hoje detêm um orçamento incompa-
questiona as fronteiras simbólicas e geopolíticas ravelmente superior ao do Ministério da
vigentes, as reivindicações culturais e políticas das Cultura.
populações periféricas ganham sentido no âmbi- Seria o papel das agências públicas do
to de formas e aspirações de reconhecimento en- Estado atuar junto aos vários segmentos da
tão vigentes em outros contextos socioculturais. A sociedade e do mercado, intermediando va-
valorização da diversidade cultural e a identifica- lores e modos de produção cultural “legiti-
ção com as heranças afro-hispânicas, indígenas mando a valor simbólico de certos bens
ou islâmicas e outras mobilizam redes sociais como também os grupos competentes na
transnacionais e fornecem espaços discursivos apropriação desses valores” (DiMaggio,
para tematização de assuntos de relevância co- 1992, p.135). Contudo, a dinâmica da ad-
mum a todas as comunidades periféricas do ministração pública é complexa, tendo em vis-
mundo pós-colonial. ta o projeto de desativar as instituições do Es-
tado, as elites que lá se estabeleceram e a
integração dos setores do mercado na produ-
Estado e política cultural
ção decisória. Os setores não organizados e
Enquanto a prática multicultural avançava, isolados socialmente, não têm poder de parti-
a política cultural dos anos 1990 se baseava na cipação e barganha na dinâmica das decisões.
situava-se num espaço político cultural, em gran- Como garantir num contexto neoliberal a
de medida, ocupado por grupos de elites espe- convivência democrática entre os benefícios
cialistas da alta cultura, sejam aqueles que legi- materiais e maximizadores e a lógica dos valo-
timam narrativas da nacionalidade ou a sofisti- res, discursos e classificações que constituem a
cação de linguagens sejam elas clássicas ou obra cultural? A obra cultural não se restringe a
experimentais. O Estado, ao endossar de forma uma racionalidade econômica, na qual seus
tutelar um sistema de reprodução da alta cultu- empreendedores buscam reduzir custos,
ra “libertando-a dos constrangimentos do maximizar o lucro e a acumulação. O Estado, a
mecenato e do mercado” acabou por afastar menos que encontre novas estratégias de justi-
os bens culturais e artísticos das sanções do ficação ética, econômica e política, não terá a
próprio público. O efeito perverso dessa políti- capacidade decisória junto ao mercado cada
ca foi o de acentuar a distância entre o público vez mais internacionalizado e dominado por
cidadão e as “próprias” produções culturais e grandes corporações transnacionais e
confirmar a hegemonia dominante de uma clas- multinacionais. A atual defesa da diversidade e
se média educada. Tal política de Estado tam- criatividade vem inserindo a agenda cultural
bém permitiu às instituições da indústria de mas- não mais como representação de segmentos
sa se apropriarem do universo simbólico das específicos e linguagens de arte, mas como
populações periféricas regionais, de outros seg- “modo de vida, valores de coesão e solidarie-
mentos socioculturais populares como também dade, preservação de etnias e linguagens, co-
daqueles segmentos que não dominam os códi- munidades locais, sistema de valores e cren-
gos de classificação dos bens culturais. ças”. Proposta que pode aproximar a política
A política cultural está diante de grandes cultural dos projetos que visam a formação do
desafios para se justificar como política públi- capital social e ampliar a sua inserção numa
ca. A globalização inevitavelmente amplia e agenda mais ampla da política de Estado relaci-
fragmenta as demandas por políticas e lhes onada aos temas da cidadania, dos direitos bem
impõe outras estratégias de justificação, se- como com setores de meio ambiente, urbani-
jam elas ao nível discursivo ou na produção zação, turismo e outras áreas que afetam e são
de indicadores econômicos e de consumo. afetadas pelas práticas e valores culturais.
Na medida em que o processo de privatização Segundo a UNESCO, as políticas de cultura de-
avança, a escolha do consumidor tem um vem institucionalizar uma agenda que integre pro-
peso maior no mercado de decisões políti- postas de participação local junto às ONGs e instân-
cas, processo que “enfraquece as bases da cias associativas e devem ser também
autoridade cultural”, anteriormente situadas intergenerativas no sentido de transmitir para futu-
ao nível da produção. ras gerações os bens, práticas e valores herdados.
institucional para o debate acerca da pluri- O desafio que se impõe é combinar proces-
culturalidade do direito a que grupos se organizem sos culturais particulares com direitos de cida-
e optem pelo seu próprio desenvolvimento. dania universais.
Abstract – This text goes over the redefinition of the agenda for cultural policies, relating
them to the concepts of recognition, multiculturalism, justice, and equity. Like the social
movements supporting them, these concepts bring up ethical, moral, and identity
dimensions, which, having stayed under State tutelage, were silenced out of political-
cultural debate. Special attention is given to the relevance of the State reconciling
specific social-cultural processes against universal models of citizenship and politics..
Keywords
Keywords: culture; recognition; multiculturalism; citizenship; public space.