Revolucao Satoshi

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Revolução Satoshi

A Revolução das Esperanças Crescentes


Revolução Satoshi
A Revolução das Esperanças Crescentes

Escrito por
Wendy McElroy

1ª edição
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes
Wendy McElroy
Editora Konkin, 1ª Edição
E-mail: [email protected]
Instagram: @editorakonkin

Coordenação editorial
Daniel Miorim de Morais
Vitor Gomes Calado

Tradução
Gabriel de Almeida Orlando
Vitor Gomes Calado

Revisão
Daniel Miorim de Morais
Eric Matheus

Capa
Raíssa Souza Abreu

Diagramação
Daniel Silva de Souza

Licença
Domínio público. Este livro está livre de
restrições de autor e de direitos conexos.
Sumário
Agradecimentos ................................................................................9
Prefácio, por Jeffrey A. Tucker ....................................................... 11
A Regulação é a Chave ..............................................................12
Quanto Tempo Vai Demorar? ....................................................13
Um Mundo Criptonizado ...........................................................14
Forçando o Passado no Presente ................................................15
Introdução .......................................................................................17
Liberdade Versus Poder .............................................................17
A Revolução sem Sangue...........................................................21
O Poder do Peer-to-Peer ............................................................23
A Necessidade de um Dinheiro Descentralizado .......................26
O Primado da Privacidade .........................................................29
Conclusão...................................................................................30

Seção Um. O Problema da Terceira Parte Confiável .....................33


Capítulo Um. Ouvindo o Passado...................................................35
Precedentes na Teoria Individualista Radical ............................37
A América nasceu na moeda privada .........................................41
Como e por que o governo proibiu o dinheiro privado ..............43
O Teorema da Regressão............................................................49
O Dinheiro pode criar Libertação e Civilização […] ou Opressão
...................................................................................................53
Um Breve Tour Pelo Básico.......................................................55
Inflação, o Maior Roubo de Todos ............................................57
Liberdades Civis e Bancos Centrais ..........................................61
Capítulo Dois. A Tecnologia Encontra a Anarquia, e Ambos
Lucram ............................................................................................65
A História do Bitcoin .................................................................66
Levantem-se, Cypherpunks! ......................................................68
As Guerras Cripto Continuam ...................................................71
Lições de Moral de Moedas Digitais Anteriores .......................73
Capítulo Três. Descobrindo Satoshi ...............................................81
Satoshi e Buckminister Fuller ....................................................82
Satoshi é um Libertário e Anarquista? .......................................87
Evidência das motivações políticas de Satoshi ..........................89

v
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Evidências a partir do “White Paper”........................................ 90


Evidência a partir de postagens e associações pessoais ............ 93
Evidência do ambiente de Satoshi ............................................. 95
Legado de Satoshi ..................................................................... 96
Capítulo Quatro. O Governo Leva a Cripto a Sério ....................... 99
Uma estratégia do estado para controlar a cripto ...................... 99
O que é a S.1241? .................................................................... 101
Protegendo as pessoas de sua liberdade .................................. 105
Uma segunda estratégia de controle: Cripto emitida pelo
governo .................................................................................... 107
Por que o impulso para uma sociedade sem dinheiro?............ 109
A estratégia das corretoras centralizadas ................................. 112

Seção Dois. O Imperativo da Privacidade .................................... 119


Capítulo Cinco. Quando a Privacidade é Criminalizada, Apenas os
Criminosos têm Privacidade ........................................................ 121
O que é Privacidade? ............................................................... 121
O contexto dos direitos humanos à privacidade ...................... 123
Uma mudança dramática no paradigma da privacidade .......... 127
O valor da privacidade para a sociedade ................................. 134
Capítulo Seis. Nomes Verdadeiros e Estratégias para a Privacidade
...................................................................................................... 141
A origem dos True Names ....................................................... 142
Sistemas offline de identificação de livre mercado ................. 144
Objeções ao ID de livre mercado ............................................ 148
O que você deveria fazer? ....................................................... 151

Seção Três. Descentralização ......................................................... 157


Capítulo Sete. Descentralização no Núcleo da Cripto-Liberdade 159
O que é Centralização? O que é Descentralização? ................ 159
O Novo Individualismo Austríaco........................................... 165
Ordem Espontânea na Produção Econômica .......................... 170
Capítulo Oito. A Cripto Como um Fenômeno Econômico Austríaco
...................................................................................................... 175
A Cripto-Cataláxia ................................................................... 175
Os Aspectos Revolucionários Não Reconhecidos da Cripto ... 179
Descentralização como Desobediência ................................... 182
Anarquismo: o Ponto Final da Descentralização .................... 187

vi
Sumário

O que é o Anarquismo Individualista ou Libertário? ...............190


Uma Saudação a Henry David Thoreau...................................192

Seção Quatro. Estado e Sociedade .................................................195


Capítulo Nove. Relevância do Estado, da Sociedade e da
Obediência para a Cripto ..............................................................197
A Estrutura do estado, da Sociedade e das criptomoedas ........197
O estado Contra a Sociedade ...................................................204
As teorias do consentimento e da conquista do estado ............208
Servidão Voluntária .................................................................. 211
Estado, Sociedade, Obediência e Cripto ..................................216
Capítulo Dez. Teoria Cripto de Classe e Lei de Livre Mercado ...219
Guerra de Classes e Cripto.......................................................219
A aplicação da lei como ferramenta da guerra de classes ........222
Lei de livre mercado ................................................................223
A Primeira Discussão da Lei de Livre Mercado e Sistemas de
Defesa ......................................................................................225
Locke sobre o argumento do consenso para o direito ..............228
Segurança preventiva ...............................................................232
Uma Pergunta Assombrosa ......................................................233

Seção Cinco. Cripto, Lei e Justiça .................................................235


Capítulo Onze. Lidando com o Crime sem o Estado ...................237
Comparado ao que? .................................................................237
O estado destrói o que não pode controlar ...............................239
O que é Justiça? .......................................................................243
Os Requisitos do Direito de Contratos Privados .....................246
A razão pela qual a aparência futura da justiça proprietária é
imprevisível .............................................................................251
Rumo a uma nova visão de justiça...........................................252
Considere a dinâmica de um crime específico: A Fraude ........257
Uma Revolução Prática e Descentralizada ..............................260
Posfácio ........................................................................................263

vii
Agradecimentos
Primeiro e antes de tudo, eu gostaria de agradecer a Roger Ver
pela confiança que ele depositou em A Revolução Satoshi e pela gene-
rosidade com a qual ele trata a mim e a todos os outros com quem ele
trabalha. Ele é o tipo mais raro de visionário; um que traduz sua visão
na realidade.
Pessoas demais no Bitcoin.com ajudaram na serialização de uma
versão inicial de A Revolução Satoshi para que eu possa listá-las, mas
algumas não podem passar sem menção. Mate Tokay é um coordenador
magistral para todas as coisas no bitcoin.com e o responsável por pre-
servar tanto o contexto amplo da operação bem como suas minúcias. As
décadas do Editor-Chefe Nanok Bie no jornalismo foram inestimáveis.
Marcel Chou é um editor paciente que se tornou um amigo e porta-voz
confiável. Aqueles que eu cheguei a chamar de “The Bitcoin Guys”,
nem uma vez tentaram influenciar as teorias sendo testadas e as hipóte-
ses sendo publicadas. Sou grata a todos eles.
Jeff Tucker, autor do Prefácio, tem sido para mim um associado
altamente estimado por muitos anos; ele não poderia ter sido mais en-
corajador com os artigos na medida em que eles apareceram. Para seu
crédito, Jeff captou mais rápido do que eu as implicações extraordiná-
rias que as criptomoedas têm para a liberdade. Minha evolução nesse
entendimento também possui uma dívida com uma quantidade muito
numerosa de pessoas para listar. O mais proeminente entre eles é o no-
tável advogado de propriedade intelectual Stephan Kinsella e o Presi-
dente do Satoshi Nakamoto Institution, Michael Goldstein.
Eu tive outra sorte grande durante A Revolução Satoshi. Repenti-
namente, a Dra. Peri Dwyer-Worrell me mandou um e-mail com uma
oferta para revisar meus artigos. Eu sempre fui indiferente em assuntos
tais como a colocação de vírgulas, carregando comigo a crença de que
apenas as ideias são importantes. Peri provou que eu estava errada e, no
processo, ela me fez uma escritora. Eu estou muito agradecida por fi-
nalmente ter cuidado com a pontuação e por conhecer essa elegante mu-
lher.
Nenhuma dedicatória estaria completa sem uma expressão de
meus agradecimentos eternos a Bradford, meu marido, que é o pilar in-
dispensável para tudo o que eu faço.

9
Prefácio
O mundo tem precisado desse livro para que tenhamos a visão
geral da revolução que está ocorrendo, e Wendy McElroy é a pessoa
exata para escrever isso. Seu trabalho tem sido imerso na história da
liberdade e da luta contra o controle autoritário. Ela traçou essa luta
desde o século XIX até o presente, tendo escrito artigos pioneiros e li-
vros contemplando a amplitude da experiência humana. Em A Revolu-
ção Satoshi, ela voltou a atenção dela ao que estou convencido ser uma
das inovações mais memoráveis da história: criptomoedas, ativos e ser-
viços relacionados. Ela explica como, em nosso próprio tempo, essa
tecnologia pressagia mudanças fundamentais, grandes mudanças, na re-
lação entre o indivíduo e o estado. Nos últimos dez anos – historiadores
futuros notarão isso – observamos a criação de uma nova arquitetura
monetária e financeira que poderá servir como uma substituição para
tudo que tem sido conhecido e usado no tempo de vida de todas as pes-
soas hoje presentes.
Experienciamos um dinheiro seguro e útil que funciona em todo
o mundo, não é conectado ao estado, e não precisa do atual sistema
bancário. O mesmo sistema pode servir como substituição a todo sis-
tema atual de pagamentos que usam moedas nacionais. Esse dinheiro é
uma criação puramente mercadológica que adiciona às funções de con-
tabilidade e de reserva de valor uma característica adicional: ser tam-
bém um meio de pagamento global peer-to-peer.
Uma década atrás, até mesmo teóricos de alto nível disseram que
isso não poderia acontecer. E então aconteceu.
Vimos a criação de um sistema de contratos inteligentes, que pode
gerenciar um vasto número de acordos, comprometimentos e interações
humanas. Até mesmo pessoas que aceitaram que o Bitcoin era real du-
vidaram que a Ethereum poderia alcançar isso. Mas isso aconteceu de
qualquer forma.
Nós até observamos como esse sistema se tornou um instrumento
para levantar capital e substituir as funções de empréstimo tradicionais.
Três anos atrás, isso era meramente uma ideia especulativa. Então isso
se tornou uma realidade de cem bilhões de dólares, e novas formas de
capital estão sendo levantadas através da tokenização.

11
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Aparentemente do nada, temos agora todo um conjunto de tecno-


logias que poderiam concebivelmente deslocar e até mesmo substituir
a moeda nacional, opções de pagamento tradicionais, e até mesmo mer-
cados de capitais regulados, e trazer algo novo.
Você está lendo isso e pensando: aqui vamos nós de novo com o
cripto-utopismo. Mas esse é o pulo do gato: não é mais apenas teoria.
Essas tecnologias existem, ao vivo e em cores, mesmo que estejam em
seus estágios iniciais. É por isso que há tantos bitcoiners por aí que fa-
lam tão exuberantemente sobre o futuro. Eles já experimentam isso.
Eles são motoristas de Maseratis em estradas cheias de Ford T’s, e eles
sabem disso. Uma melhoria do status quo que é tão impressionante que
não será suprimida.
Você pode não ter usado qualquer uma dessas novas tecnologias.
E está tudo bem. Com todas as falhas do atual sistema, as antigas estru-
turas cumprem seu trabalho. Na medida em que não há uma grande crise
no sistema, as pessoas confiam nele. Não há razões fortes para mudar,
mesmo que o novo sistema seja mais seguro, mais rápido, mais demo-
crático, mais inclusivo e menos arriscado e comprometedor da privaci-
dade individual. Ainda assim, o antigo sistema goza do ímpeto que vem
a partir do efeito manada. Todo mundo confia no antigo sistema, então
você continua confiando nele também.

A Regulação é a Chave

Há outro fator que está atrasando a mudança do antigo para o


novo. As regulações estão tentando forçar a nova tecnologia a se com-
portar como a tecnologia antiga. Nos Estados Unidos, para comprar
Bitcoin ou qualquer criptomoeda, você precisa cumprir com regulações
know-your-customer, cedendo cada detalhe sobre a sua pessoa. Qual-
quer dinheiro que você faça de movimentos dos preços em ascensão em
um novo ativo precisa ser registrado e você precisa pagar impostos so-
bre ele. Companhias que desejam prestar assistência no onboarding e
no offboarding de cripto para moeda fiduciária têm de se registrar no
governo como casas de câmbio. E, com as funções de alavancamento
de capital da tecnologia blockchain, os reguladores estão ameaçando
acabar com todas e fazê-las se comportar como títulos tradicionais.
Eu assisti enquanto essas regulações, gradualmente impostas e ar-
bitrariamente reforçadas, introduziram um elemento de medo em uma

12
Prefácio

tecnologia sem medo, distorcendo o setor e fazendo dele menos inova-


dor e menos competitivo. Toda vez que um novo uso das redes distri-
buídas é revelado e começa a se espalhar, alguns mandachuvas surgem
do alto para advertir sobre a conformidade com leis de décadas atrás
designadas para diferentes tecnologias.
Os consumidores ficam com medo, e a experiência de usuário fi-
nal não é aprimorada o tanto quanto ela poderia ter sido na ausência de
tantos custos de compliance. Eu vi o quanto a incerteza legal fez com
que os mercadores e os consumidores perdessem acesso a uma varie-
dade de serviços. Eu vi empreendedores interromperem seus planos, es-
perando algum édito administrativo vindo de Washington, DC.
O quão mais avançados estaríamos no caso da ausência dessas
regulações? É impossível ver as inovações que não experienciamos. Sa-
bemos apenas que as coisas seriam diferentes. Mas uma vez que você
considera o quão diferente seriam, a realidade se torna algo além do
incrível. E ainda não chegamos nisso.

Quanto Tempo Vai Demorar?

Considere o que acontece quando o poder é usado para parar o


progresso de uma nova tecnologia. Isso realmente funcionaria no longo
prazo? Para responder à questão, temos de nos engajar nos contrafactu-
ais.
Imagine se os governos na Europa tivessem se empenhado para
parar a prensa. E se as cidades ao redor do mundo tivessem banido os
automóveis? Qual teria sido o destino das ferrovias, da iluminação do-
méstica e do encanamento fechado se interesses especiais houvessem
sido suprimidos em favor das tecnologias prevalecentes?
Podemos apenas especular, porque nada disso realmente aconte-
ceu. É verdade que nem todo mundo recebeu bem a prensa. Escribas
em monastérios se preocuparam com o futuro de seus talentos. Algumas
pessoas perguntaram se a velha fé poderia sobreviver às pessoas tendo
acesso aos textos antigos. Mas, em geral, o advento da prensa foi visto
como uma inovação bem-vinda. Assim também se deu com a combus-
tão interna, eletricidade e encanamento. Algumas pessoas ficaram rece-
osas em adotar elas, é claro, mas os governos em sua maioria deixaram
a inovação acontecer.
E se eles não tivessem? Alguém realmente acredita que essas ino-
vações poderiam ser paradas e não meramente atrasadas? Eu penso que

13
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

não. Há casos na história em que garantias de monopólios por parte do


governo retardam competidores de adentrarem no mercado com melho-
rias. Isso aconteceu com os navios a vapor na Inglaterra, com os aviões
nos EUA, e com algumas aplicações de software nas últimas décadas.
Mas esses retardamentos são temporários; patentes expiram e a história
vai para frente.
Regulações são diferentes. Os empreendedores têm de inovar ao
redor delas. Os mercados cinza e negro emergem. Aventureiros enca-
ram as autoridades. Mas, eventualmente, alguém cede. Considere, por
exemplo, os resultados caso todo lorde e barão na Europa do século XII
tivesse banido a ferradura. Você acha que isso teria parado a implemen-
tação dessa tecnologia por séculos? Altamente duvidoso, e a razão é
fundamental: ideias são mais fortes que governos. Eventualmente, os
custos de imposição excedem vastamente os benefícios da classe go-
vernante existente.

Um Mundo Criptonizado

À luz do que temos visto nos últimos dez anos, aqui está um ex-
perimento mental com o qual eu venho brincando. Ele ocorreu a mim
numa divagação, enquanto meu advogado tributário estava explicando-
me profundamente sobre eventos tributáveis nos acordos cotidianos
com cripto. Eu estava considerando o quão incompatíveis eram essas
imposições com uma tecnologia que emergiu de e opera dentro de uma
estrutura de perfeita liberdade.
Algumas legislações entenderam isso. O Wyoming, por exemplo,
isentou a cripto de toda tributação, definiu certos tokens de um modo
que faz deles isentos de leis de títulos, e fizeram provisões especiais
para formas corporativas que são distribuídas, entre outras mudanças.
A legislação fez o seu melhor para tornar o estado atrativo para essa
nova indústria.
Agora, deixe-nos entrar no campo da fantasia. Digamos que o
congresso dos EUA passe uma legislação que isente toda criptomoeda,
todo criptotrading e criptoativos de toda tributação e regulação. A legis-
lação estabeleceria laissez-faire completo nesse setor, enquanto todo o
resto no mundo normal (o dólar, o FED, a SEC, o Tesouro, e todo o
resto que conhecemos) permaneceria o mesmo.
O que você acha que aconteceria? Dez anos atrás, se o Congresso
tivesse feito a mesma coisa, pouca coisa teria mudado, obviamente. A

14
Prefácio

tecnologia não existia, e nós realmente não sabíamos que ela poderia
existir.
O que aconteceria hoje se todas as intervenções ao redor dessa
tecnologia fossem repelidas? Você não seria mais punido por comprar
e vender em cripto, emitir novos tokens, desenvolver novos aplicativos
em plataformas de contratos inteligentes, inovar novos sistemas de pa-
gamentos e assim em diante. Companhias poderiam tokenizar em vez
de vender ações. Os negócios poderiam pagar em cripto e fazer sua con-
tabilidade em cripto e evitar qualquer penalidade. Considere com cui-
dado: você poderia manter um terço a mais dos seus ganhos justos sim-
plesmente mudando para uma tecnologia melhor.
Quanto tempo levaria para a criptoeconomia substituir todo o
resto? Se essa mudança legislativa realmente acontecesse – e não, ob-
viamente não vai – poderíamos observar o deslocamento geral dos sis-
temas econômicos e financeiros do velho mundo para os sistemas do
século XXI, e talvez isso acontecesse muito mais cedo do que qualquer
poderia esperar, talvez de 12 a 48 meses, dado que a infraestrutura da
cripto poderia escalar a tempo de satisfazer a nova demanda.

Forçando o Passado no Presente

Agora, se esse experimento mental estiver correto, há algumas


implicações poderosas. Isso sugere que o mundo financeiro e monetá-
rio, tal como existe hoje, está sendo mantido de pé pela força que está
nos prendendo aos velhos modos. Essa força está impondo limitações e
ineficiências; ela está literalmente mantendo uma vasta infraestrutura
no lugar daquilo que de outro modo cessaria de dominar ou até de exis-
tir, e impedindo o início de um novo modo de viver. E esse novo modo
não é somente sobre comprar e vender. Tão central para nossas vidas
públicas são a moeda nacionalizada e os mercados de capital regulados
que o advento de um mundo criptonizado mudaria fundamentalmente a
relação do indivíduo com o estado.
Estaria eu errado em estar maravilhado com essa percepção?
Manter um sistema vasto vivo apenas pela força não me parece
tão sustentável no longo prazo. Se você possui um conjunto massivo de
tecnologias que estão esperando para assumir o controle e estão apenas
sendo atrasadas por meios puramente artificiais, esse cenário não parece
sustentável dada a improbabilidade de que o passado possa para sempre

15
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

ser preservado. O futuro não pode para sempre ser adiado mesmo pelos
governos mais poderosos do mundo. Eventualmente as ideias vencem.
Wendy McElroy, a partir de seus estudos passados de história e
de seu mergulho profundo na cripto-tecnologia, entende o poder dessas
ideias. O Bitcoin e tudo que é relacionado a ele estão entre as ideias
mais revolucionárias da história. Ela demonstra como eles vão transfor-
mar para melhor a estrutura da economia, da política, e das relações
humanas num geral. Ir daqui para lá requer o entendimento mais amplo
possível do que está acontecendo. McElroy é a guia expert e erudita
pela qual estávamos esperando.
Jeffrey A. Tucker é Diretor Editorial do American Institute For
Economic Research e antigo Diretor de Conteúdo pela Foundation for
Economic Education. Ele é parceiro de gestão da Vellum Capital: Blo-
ckchain Financial Management, fundador da Liberty.me, Membro Ho-
norário Distinto do Mises Brasil, conselheiro econômico da FreeSoci-
ety.com, companheiro de pesquisa no Acton Institute, conselheiro polí-
tico do Heartland Institute, fundador da CryptoCurrency Conference,
membro da bancada editorial da Molinari Review, um conselheiro para
a desenvolvedor de aplicativos blockchain Factom. Ele é o autor de mi-
lhares de artigos na imprensa acadêmica e popular e é autor de oito li-
vros em oito línguas, o mais recente sendo The Market Loves You. Ele
fala amplamente sobre economia, tecnologia, filosofia social, e cultura.

16
Introdução
“Você nunca muda as coisas lutando contra a realidade exis-
tente. Para mudar algo, construa um novo modelo que faça
o modelo existente obsoleto.”
– R. Buckminster Fuller

A revolução de 2009 passou despercebida pela maioria das pes-


soas porque ela foi pacífica, ordenada, e tecnologicamente arcana. Em
2009, Satoshi Nakamoto lançou um software de código aberto por meio
do qual transferências peer-to-peer de riqueza digital, chamada bitcoins,
cintilaram através de um registro imutável e transparente, chamado blo-
ckchain.
O modelo mais conhecido de revolução é a derrubada de um go-
verno opressor por meio de uma revolta popular. Mas a dura realidade
da história é que outro governo quase inevitavelmente surge como uma
substituição – um governo tão elitista e brutal quanto seu predecessor.
O modelo Satoshi de revolução é diferente. Ele pacificamente faz com
que o sistema antigo se torne irrelevante ao superá-lo através de uma
nova tecnologia e de uma moeda privada diferente de tudo antes visto.
A criptomoeda se move ininterruptamente pelo mundo sem estados ou
fronteiras, obedecendo apenas aos comandos de indivíduos que esco-
lhem fazer acordos uns com os outros. Transferências são pseudônimas
com substancial privacidade providenciada por algoritmos de encripta-
ção e por funções hash. A blockchain é imutável e visível para todos, o
que faz dela imune à corrupção. Resistente a manipulação e a inflação
pelo governo, a cripto não serve elites poderosas às custas das pessoas
comuns. O bitcoin, a cripto, em geral, é o dinheiro do povo. (Nota: O
Bitcoin com b maiúsculo denota tanto a moeda quanto a blockchain;
bitcoin denota a moeda).
Em um instante, com a primeira faísca de transferência, o mundo
mudou para sempre.

Liberdade Versus Poder

17
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Os indivíduos subitamente tiveram a arma de autodefesa que es-


tava faltando no arsenal deles – uma arma que era necessária para ven-
cer o que o economista austríaco Murray Rothbard chama de “o grande
conflito que é travado eternamente entre a Liberdade e o Poder”. Os
indivíduos ganharam uma moeda privada viável que os permitiu con-
trolar suas próprias riquezas e se tornarem seus próprios bancos – serem
“selfbanks”. Finalmente houve um caminho prático para longe da mo-
eda fiduciária manipulada e das instituições financeiras corruptas que
formam a base do poder estatal. (As palavras “estado” e “governo” são
usadas intercambiavelmente neste livro).
O Bitcoin chegou no momento certo. Apenas dois anos antes, o
monopólio monetário causou a crise financeira de 2007-2008 em todo
o globo. O Bitcoin e a blockchain ofereceram aos indivíduos um sis-
tema melhor – um que serviu às necessidades deles, não àquelas da
elite, e prometeu a independência financeira e controle, os fundamentos
da autonomia.
Em sua massiva obra Conceived in Liberty (Volume 2), Rothbard
apresenta uma visão ampla do porquê dessa libertação ser essencial. Ela
não é somente “um grande bem moral em si mesmo”, mas também “a
condição necessária para o florescimento de todos os outros bens pelos
quais a humanidade presa: a virtude moral, a civilização, as ciências e
as artes e a prosperidade econômica”. Sem uma moeda privada e sem
um sistema bancário baseado na Liberdade, não no Poder, o potencial
humano estava mutilado.
Até chegar o Bitcoin, entretanto, poucos pré-requisitos de liber-
dade receberam tanta atenção de ativistas políticos modernos quanto a
necessidade por uma moeda privada e por um sistema bancário privado
que é acessível a todos. Os guerreiros da liberdade marcharam e morre-
ram sob bandeiras nas quais se liam LIBERDADE, VERDADE e JUS-
TIÇA. Em nenhuma bandeira que eu me lembre lia-se DINHEIRO PRI-
VADO, SELF-BANKING, mesmo que esses mecanismos fossem es-
senciais para cumprir a maioria dos outros objetivos na vida.
(Nota: Dinheiro possui três usos tradicionais: é um meio de troca,
uma reserva de valor, e uma unidade de conta. A cripto pode servir às
três funções, mas a discussão aqui é limitada à moeda (currency) – o
dinheiro em circulação como um meio de troca).
A autonomia econômica é a rocha matriz da libertação sem a qual
outros direitos se tornam problemáticos. A liberdade da expressão é ir-
relevante para um homem morrendo de fome. A liberdade de associação

18
Introdução

soa vazia para uma mulher que precisa aguentar abuso físico para ali-
mentar seus filhos. O Devido Processo Legal é irrelevante para alguém
que não pode arcar com os medicamentos requeridos para viver mais
um dia. A necessidade fundamental para todo ser humano é prover a sua
própria sobrevivência. Somente então pode a libertação se seguir, junto
“da virtude moral, da civilização, das artes e das ciências”.
Por anos, a visão política do indivíduo ou do time conhecido
como Satoshi Nakamoto escapou ao radar público. Desenvolvido por
cripto-anarquistas e sem ser amparado por decretos do governo ou pela
atenção da mídia, as autoridades do estado não notaram o fenômeno,
aquelas que o notaram desdenharam dele. Eles notam agora, e seus sor-
risos sádicos desapareceram de suas faces. Bancos e negócios agora
avidamente adotam e adaptam a blockchain porque eles reconhecem
seu incrível poder como ferramenta. Há uma pressa por patentes no que
já foi uma comunidade de código aberto. Traders são presos por não
serem licenciados. Corretoras são atacadas por não se adequarem à pa-
pelada exigida em relação aos consumidores. Os governam clamam
para regular a moeda para que se possa controlar não somente seus lu-
cros, mas também o perigo que ela acarreta para seu monopólio sobre
o dinheiro.
Rothbard observa, “[A Liberdade] tem sempre sido ameaçada pe-
las intrusões do poder, o poder que busca suprimir, controlar, aleijar,
tributar e explorar os frutos da liberdade e da produção.” O poder é
também ameaçado pela liberdade porque as duas dinâmicas gozam de
uma relação inversa; isto é, enquanto uma cresce, a outra afunda.
Sem dúvida que a visão de Satoshi da libertação individual atra-
vés da autonomia financeira está sob ataque. Os ataques incluem:
• As criptomoedas são ditas como sendo instrumentos meramente
financeiros e como nada sobre as quais se deva estar politica-
mente entusiasmado. Chamá-las de instrumentos de autodefesa
em uma batalha entre Liberdade e Poder é considerado “nonsense
anarquista”, e a discussão sobre o assunto sequer ocorre.
• Apenas criminosos precisam de privacidade financeira, é dito.
Usuários de cripto são traficantes de drogas, sonegadores de im-
postos, traficantes sexuais e outros similares. De outro modo, por
que iriam resistir a se reportarem ao governo? A acusação inti-
mida alguns usuários a permanecerem silenciosos por medo de
serem considerados criminosos a priori.

19
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

• Sem regulação, fraude massiva é dita inevitável. Essa reivindica-


ção diverge a atenção da fraude massiva do sistema fiduciário e
do centralismo bancário.

As afirmações precedentes são exemplos dos gravetos que são


usados para bater e desacreditar a cripto. Nenhuma delas são válidas,
mas muitas são amplamente acreditadas. E as crenças públicas tendem
a ser traduzidas em lei sempre que convém ao estado fazer isso.
O ataque mais perigoso à cripto, entretanto, é a “cenoura” – a pro-
messa de respeitabilidade. Até mesmo a comunidade cripto é suscetível
a essa tentação. Defensores querem que a blockchain e a cripto sejam
tão difundidas quanto possível. Os principais defensores querem acei-
tação para expandir sobre uma base indivíduo-por-indivíduo, negócio-
por-negócio, com todas as interações sendo voluntárias e extralegais.
Outros estão menos preocupados com o voluntarismo; eles acreditam
que suas reservas e investimentos irão elevar-se em valor se os governos
e outras instituições de monopólio se tornarem usuários ou garantidores
de segurança. Para esses usuários, a respeitabilidade é a chave para o
aumento dos lucros e lucro é tudo. Eles veem defensores que falam so-
bre a liberdade como obstáculos, instrumentos ou ambos.
Infelizmente, “respeitável” é frequentemente visto como sinô-
nimo para “sancionado pelo estado”, quando na verdade os dois termos
deveriam ser antônimos. O Bitcoin era necessário precisamente porque
instituições do governo e parceiras dele, tais como bancos centrais, são
vergonhosas; elas saqueiam as pessoas comuns até os trapos e ossos
através de manipulação de moeda, inflação, regulação obstrutiva, im-
postos e outras artimanhas. As elites botam as pessoas para fora da pros-
peridade através de licenças, patentes, crédito artificial, restrições de
investimento, monopólios e outros obstáculos auto servientes.
Os governos são o problema; eles não são a solução e eles nunca serão.
“Sancionado pelo estado” deveria significar “desgraçado”, não “respei-
tável”.
Um insulto acrescentado para buscar a sanção do estado é a clara
implicação de que a liberdade não é respeitável, que liberdade e respei-
tabilidade são, de algum modo, antagonistas e requerem o estado como
um árbitro. Isso é uma falsa e perigosa dicotomia porque o oposto é
verdadeiro, e isso dá ao estado o ponto de apoio por meio do qual se

20
Introdução

expande, como sempre acontece. Nada é mais respeitável do que a pai-


sagem de seres humanos fazendo acordos pacificamente uns com os
outros visando a vantagem mútua. O que o governo injeta numa socie-
dade livre é violência ou a ameaça de violência, a qual é o fim da liber-
dade e da sociedade civil.
As apostas são altas, tanto para a Liberdade quanto para o Poder.
Para a Liberdade: Privatizar a sua própria riqueza significa que indiví-
duos privatizam a vida deles e determinam os termos a partir dos quais
eles vivem. Para o Poder: Os governos e as instituições financeiras per-
dem seu monopólio sobre o dinheiro e sobre a riqueza sem os quais eles
são impotentes.
Está na natureza do Poder endurecer suas amarras sempre que
ameaçados. O poder irá tentar centralizar, regular, banir ou, de outro
modo, dominar as moedas digitais e a blockchain. As tentativas irão
falhar, em parte por causa da natureza descentralizada da tecnologia,
mas uma grande quantidade de dano pode ser infligida por um estado
que falha. A tecnologia não pode ser parada, mas alguns dos indivíduos
que a usam podem ser perseguidos, aprisionados e quebrados. A prote-
ção mais certa da vítima é manter clara a visão original de Satoshi sobre
a cripto e não se desviar dela.

A Revolução sem Sangue

Essa é a imagem quintessencial da revolução política. Campone-


ses famintos invadem a Bastilha porque a opressão os moveu para além
dos limites da resistência humana. Mas, e se essa imagem estiver er-
rada? Ou lamentavelmente incompleta? E se as forças mais revolucio-
nárias no mundo não forem a fome e o desespero, mas sim a esperança
e a oportunidade?
A frase e a dinâmica que captura a última visão é chamada de “a
revolução das esperanças crescentes”; ela descreve a promessa mais rí-
gida da revolução Satoshi. O termo tornou-se popular depois que a Se-
gunda Guerra Mundial desestabilizou governos ao redor do globo, com
os antigos regimes e sistemas políticos colapsando. A política abomina
um vácuo. Especialmente no que era até então chamado de o Terceiro
Mundo, as pessoas comuns começaram a acreditar que a vida delas po-
deria melhorar através de seus próprios esforços. A “revolução das es-
peranças crescentes” se refere a uma situação na qual um aumento na
prosperidade e na liberdade faz as pessoas acreditarem que elas podem

21
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

criar uma vida melhor para elas mesmas e para a família delas. Elas não
só agem para fazer isso, mas elas também demandam o espaço para
respiração política para conseguir mais. Elas têm fome por independên-
cia e prosperidade. As esperanças crescentes se tornam uma engrena-
gem do “populismo” no melhor sentido da palavra.
As autoridades já há muito sabem que um povo oprimido obedece
porque eles acreditam que não há alternativa viável. As pessoas acredi-
tam que nenhum ato de resistência pode melhorar a vida delas, então
elas mantêm o status quo, por mais sombrio que ele possa ser. A “cin-
zidade”, a conformidade e o medo são os amigos dos regimes totalitá-
rios que querem suprimir qualquer faísca de não conformidade ou de
criatividade, porque a centelha expressa a escolha individual e a inova-
ção. A centelha não pode ser controlada. Isso é verdade para a espe-
rança. Pessoas esperançosas agem para controlar as suas próprias vidas
porque elas vislumbram a possibilidade da libertação e da prosperidade
– dois lados da mesma moeda. O sociólogo do século XIX Alexis de
Tocqueville observou que a Revolução Francesa foi mais forte em áreas
da França onde o padrão de vida havia continuamente evoluído. Foi
mais forte lá porque as pessoas acreditaram na possibilidade de conti-
nuar a evoluir. Elas esperaram e demandaram.
O conceito de “esperanças crescentes” também explica o porquê
de revoltas sociais frequentemente surgirem em locais de oportunidade
em vez de em locais de opressão. A revolução flui a partir dos estudan-
tes privilegiados das universidades, por exemplo. Líderes revolucioná-
rios notoriamente vêm das classes média ou alta, vêm da intelligentsia,
e eles não partilham da vitimidade dos realmente oprimidos que alegam
representar. De fato, os oprimidos frequentemente recusam trabalhar
pela mudança social. Marx referiu-se a essa categoria da sociedade
como o “lumpemproletariado” – o proletariado especificado pelos cri-
minosos, vagabundos e os desempregados, que careciam de consciência
[de classe] – ele os escarneceu por não entenderem ou não se importa-
rem com o interesse de sua própria classe. Em vez de esperar por mu-
dança, talvez eles estivessem fazendo o melhor que eles sabiam.
A maioria das revoluções terminam de forma ruim. Algumas co-
meçam de forma ruim, com violência e com uma erupção de raiva que
parece visar mais a vingança do que a justiça. Até mesmo revoluções
inicialmente pacíficas tendem a se dissolver em violência e terminam
comandadas por líderes com agendas pessoais – sede de poder, ideolo-
gia, ganância, ou todos os fatores acima. Quando a fumaça cessa e os

22
Introdução

cadáveres são removidos das ruas, o novo regime é louvado pela popu-
lação. O novo regime rapidamente revela a si mesmo, entretanto, como
sendo não menos tirânico que os tiranos que acabaram de serem destro-
nados.
A Revolução Satoshi não corre esse risco. A blockchain é intrin-
secamente pacífica, sem capacidade de cometer violência. A cripto não
confronta os governos diretamente, decapita monarcas ou flamulam
bastiões da opressão. Ela esquiva e torna-os obsoletos com eficiência
brutal. Para aqueles embebidos na versão de revolução que só ergue
barricadas, a asserção prévia pode parecer inofensiva. Mas, ao dar às
pessoas liberdade financeira – até mesmo uma liberdade incompleta –
a cripto é incendiária. O fluxo de trocas e de comércio produz a liberta-
ção porque produz a independência e a escolha. Ela estabelece uma re-
volução de esperanças crescentes que não é baseada em uma ideologia,
mas no interesse próprio e racional das pessoas. Nada é mais poderoso.
Mas qual é a engrenagem que move a revolução Satoshi?

O Poder do Peer-to-Peer

O brilhantismo político da cripto reside em um fato: ela resolve o


problema da “terceira parte confiável”. (Aqui a palavra “confiável” sig-
nifica o inverso de sua definição literal). Entender esse conceito é es-
sencial para entender como funciona uma sociedade livre. Ainda assim,
estava faltando para o léxico da liberdade.
Essa ausência causava estranheza. Depois de tudo, as principais
dinâmicas do estado residem em forçar as pessoas a usarem as terceiras
partes confiáveis da burocracia e das instituições associadas ao governo
como um modo de as controlar. Se as pessoas desejam conduzir a vida
cotidiana, elas não têm escolha senão fazer o acordo com as agências
monopolistas do estado, incluindo reguladores, agentes de tributação,
bancos centrais e impositores da lei. Terceiros confiáveis são o braço de
ferro do estado. E é aí onde a parte “problema” do conceito surge. A
camada intermediária entre o estado e o povo – a camada das terceiras
partes confiáveis – é onde a corrupção e o controle germinam. Ao orde-
nar o uso dessas partes, o estado consolida sua autoridade e explora a
pessoa comum. Sem que a população use suas terceiras partes confiá-
veis, o estado não tem meios de imposição. A ausência desse conceito
é a chave para a ciência política.

23
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

A sociedade moderna parece exigir terceiras partes confiáveis, es-


pecialmente o sistema bancário central. De outro modo, é argumentado,
seres humanos irão retornar às trocas diretas do escambo os quais são
desorganizadas e muito limitadas no alcance geográfico do comércio e
na variedade de bens trocados.
A cripto e a blockchain conseguiram virar o jogo. O whitepaper
original de Satoshi, “Bitcoin: A Peer-to-Peer Cash System” (Outubro
de 2008), explica, “O que é necessário é um sistema de pagamento ele-
trônico baseado em uma prova criptográfica em vez de em confiança,
permitindo a quaisquer duas partes querendo transacionar diretamente
uma com a outra o façam sem a necessidade de uma terceira parte con-
fiável”. Essa é a raison d'être do Bitcoin.
Trata-se de uma questão de perspectiva, entretanto. Há uma fun-
ção adequada – uma função de livre mercado – para terceiras partes
confiáveis. É para facilitar as transações de indivíduos ao providenciar
serviços, tais como a verificação de identidade providenciada por um
notário. Tais terceiras partes confiáveis são subordinados ao livre mer-
cado ao qual eles existem para servir. Mas até mesmo as terceiras partes
confiáveis do livre mercado apresentam problemas. Um é inerente. A
palavra “confiado” implica que não é sempre possível verificar se o ter-
ceiro é recorrível. Se a verificação fosse possível, então a necessidade
de se confiar sequer iria aparecer como um problema; o termo seria
“terceira parte verificada”. O risco surge em acordos privados, bem
como em acordos públicos ou servientes ao estado. Por acaso um advo-
gado opera clandestinamente em nome de si mesmo em vez de em nome
de seus clientes, por exemplo? Confiar sua riqueza a outra pessoa é um
negócio arriscado, mesmo se você conhecer bem a pessoa. Quando o
terceiro é uma instituição impessoal sem contabilidade legal e paga pelo
estado, tais como a imposição da lei, o risco aumenta astronomica-
mente.
Todas as instituições funcionam de acordo com seu próprio inte-
resse e preservação. No livre mercado, o interesse próprio de um negó-
cio é servir a seus clientes para lucrar e evitar perdê-los para seus com-
petidores. Esse é um poderoso incentivo para estabelecer uma sólida
reputação e manter a clientela satisfeita. O governo e suas terceiras par-
tes monopolistas não possuem incentivo similar ou restrição porque as
pessoas precisam lidar com elas. O estado regula todos os aspectos do
mundo financeiro, por exemplo, o que força todos aqueles que desejam
bancar ou negociar a interagir com instituições reguladas pelo estado.

24
Introdução

Não há competição para a qual os monopólios possam perder clientes,


e os monopólios que atendem necessidades humanas básicas nunca irão
carecer de enchentes de clientela coagida. Se alguém precisa de uma
conta bancária ou de um cartão de crédito para funcionar, então ele pre-
cisa aceitar quaisquer termos de serviço que o sistema bancário requer.
Não há dúvida que esses termos beneficiam o banco e não o consumi-
dor.
Aqueles que trabalham para terceiros estatistas não são necessa-
riamente pessoas más, mas suas intenções e caráter não importam para
o resultado. Burocratas, serventes civis, e banqueiros podem verdadei-
ramente acreditar que sua obra promove o bem público. Eles podem
estar bem sorridentes, estar conscientes no trabalho, e até serem presta-
tivos àqueles que usam seus serviços. Mas, isso não influencia o conte-
údo do que eles produzem, a saber: um monopólio mandatado, através
do qual o estado controla a riqueza e o comportamento da sociedade.
Um burocrata bem-intencionado é parecido com um homem que traba-
lha em uma fábrica de conservas de atum e anuncia um dia que ele quer
fabricar doces em vez de peixe enlatado. Na medida em que ele segue
as regras da fábrica e usa as máquinas, ele irá produzir latas de atum e
não barras de chocolate. Suas intenções não importam porque é o ma-
quinário e o protocolo da fábrica o que determina o produto. O mesmo
é verdade para agências do estado. Um policial pode sinceramente
anunciar sua intenção de proteger direitos individuais contra a agressão
do estado, mas enquanto ele segue as regras e mecanismos da imposição
da lei, o produto resultante irá violar direitos individuais e sustentar o
estado. Esse é um ponto importante do porquê um ataque ao estado não
deveria se tornar um ataque a seres humanos que poderiam se tornar
colegas viajantes.
O dilema: o comércio moderno e as finanças internacionais re-
querem intermediários, tal como um sistema de bancos interconectados
que transmite dinheiro por uma longa distância. Novamente, a necessi-
dade das pessoas por comércio as deixa abertas para exploração e con-
trole pelo estado que apropria riqueza e informação ao dominar os in-
termediários.
Satoshi elegantemente resolveu esse problema. A cripto permite
que as pessoas transfiram riqueza em uma base peer-to-peer que não
requer intermediário, nenhuma terceira parte confiável. As transferên-
cias não podem ser arbitrariamente revertidas ou alteradas, de modo que

25
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

as duas partes não precisam confiar ou conhecer um ao outro; as inten-


ções são irrelevantes. O melhor aspecto do escambo é mantido – troca
direta – enquanto os piores aspectos caem por água abaixo – barreiras
geográficas e uma limitada diversidade de bens. Visto que pessoas po-
dem manter suas próprias carteiras, a necessidade de recorrer a um es-
tabelecimento de armazenamento ou agente de transferência é também
eliminada. Cada usuário pode funcionar como um banqueiro de si
mesmo com carteiras seguradas por chaves privadas que previnem
olhos e dedos maliciosos.
As implicações para a liberdade individual são profundas.

A Necessidade de um Dinheiro Descentralizado

Para as pessoas comuns se elevarem para além do escambo e


abraçar a prosperidade do comércio moderno, um meio de troca é ne-
cessário – isto é, uma moeda corrente é necessária.
Economistas escrutinizam as características que um meio de troca
desejável possui, tais como a ampla aceitação, durabilidade e fungibili-
dade.
Mas um aspecto crucial de uma moeda sólida é frequentemente
ignorado: quem controla ela? Quem emite a moeda e decide as regras
pelas quais ela circula? Uma moeda é tão sólida quanto as regras dentro
das quais ela joga. Nos fins extremos do continuum social, há duas pos-
síveis respostas. A moeda corrente está sob controle centralizado de
uma autoridade ou o sob o controle descentralizado de cada pessoa a
usando. Em outras palavras, a moeda corrente ou expressa o poder do
estado ou a liberdade do indivíduo.
Em uma sociedade primitiva, a questão do que constitui uma mo-
eda corrente válida é determinada pelas pessoas que negociam; elas po-
dem decidir que querem usar conchas do mar, por exemplo. Para um
observador de fora, a dinâmica poderia se assemelhar a um consenso
centralizado porque a maioria das pessoas iriam achar conveniente es-
colher a mesma moeda corrente e tolerar as mesmas regras evoluídas.
A moeda corrente, na verdade, expressa descentralização porque todo
indivíduo pode resgatar sua participação a qualquer tempo e oferecer
outros meios de troca. Essa é a característica definidora da descentrali-
zação; o indivíduo livremente entrega ou retira seu consentimento.
É dito que a sociedade moderna precisa de centralização porque
sua complexidade requer coordenação massiva. Sociedades avançadas,

26
Introdução

argumenta-se, demandam que decisões sejam coordenadas por um go-


verno que crie a moeda corrente, defina sua circulação e elimine a
fraude. Desconsiderando a objeção moral contra um monopólio da mo-
eda corrente – a saber, que é errado compelir indivíduos pacíficos a usar
ou a fazer qualquer coisa – ao menos duas outras objeções existem. A
primeira fora esboçada anteriormente. O governo e suas instituições ali-
adas agem em prol de seu próprio enriquecimento e preservação, não
em prol do interesse dos indivíduos forçados a usarem seus “serviços”.
A segunda objeção é utilitária. Em sua Aula Memorial do Nobel
de 1974, “The Pretense of Knowledge”, o economista liberal clássico
Friedrich Hayek explica:

O reconhecimento dos limites insuperáveis para esse co-


nhecimento deve […] ensinar ao estudante da sociedade
uma lição de humildade a qual deveria protegê-lo de se tor-
nar um cúmplice da batalha fatal do homem para controlar
a sociedade – uma batalha que não apenas o fará um tirano
sobre seus semelhantes, mas que pode muito bem fazê-lo o
destruidor de uma civilização ao qual nenhum cérebro de-
signou, mas sim que cresceu dos esforços livres de milhões
de indivíduos.

Ninguém possui informação o suficiente sobre as bilhões de tran-


sações que acontecem a todo minuto para centralizar ou controlá-las.
Mesmo se fosse possível fazer isso por um momento congelado no
tempo, o que não é o caso, preferências humanas e suas circunstâncias
são imprevisíveis e talvez mudassem no próximo momento. O que foi
verdade ontem pode não ser verdade hoje. Em resumo, Hayek acreditou
que a engenharia social aleijou, ao invés de ter criado, a sociedade, por-
que ela impôs ignorância e preveniu os indivíduos de agirem segundo
seu próprio interesse. Uma sociedade saudável é o resultado da ação
humana, mas não do desígnio humano.
Um argumento pela centralização imediatamente surge. Se todo
indivíduo persegue seu próprio auto interesse, então o caos é dito ser o
resultado inevitável, especialmente quando um empenho envolve mui-
tos indivíduos. O oposto é verdadeiro. O filósofo inglês do século XIX
Herbert Spencer argumenta persuasivamente contra a noção de que a
ordem social foi manufaturada pela coordenação através da lei. Em vez

27
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

disso, ele acreditava que a ordem desabrocha naturalmente das “coope-


rações espontâneas do homem perseguindo seus interesses privados.”
Spencer contrasta duas formas de ordem: fileiras de soldados
marchando em tandem (sociedade militar) e ordem espontânea (socie-
dade industrial). A última pode assemelhar-se ao caos, mas é na verdade
uma forma inigualável de coordenação. Considere uma grande loja de
departamentos durante uma corrida de Natal ao shopping. Uma pessoa
olhando de cima a cena de uma perspectiva semelhante a divina veria
as pessoas correndo em diferentes direções, às vezes esbarrando umas
nas outras ou parecendo perdidas. Vendedores pegam itens do estoque
apenas para colocá-los no chão de novo antes de se dispararem em di-
ferentes direções. Eles desdobram roupas apenas para deixá-las em uma
pilha bamba. O anúncio de uma promoção relâmpago faz com que elas
entrem em uma debandada rumo à pechincha. Funcionários da loja cor-
rem de um lado para o outro para responder perguntas ou para dar des-
conto às pessoas. A cena pareceria “anarquista” no sentido caótico da
palavra.
O que o observador vê, entretanto, é uma sofisticada versão da
ordem espontânea pela qual todas as partes pacificamente atingem seus
próprios caminhos sem coordenação centralizada. É um microcosmo do
livre mercado em funcionamento. A loja quer vender seus bens, os em-
pregados querem manter seus trabalhos, os clientes querem presentes.
O que parece ser uma correria de várias formigas é o comportamento
consciente e orientado a fins de indivíduos que não-intencionalmente
beneficiam uns aos outros enquanto satisfazem suas próprias necessi-
dades. Sem compradores no Natal, a loja pode ir à falência, os balco-
nistas perderiam seus empregos; os vendedores não teriam pacotes em-
baixo da árvore de Natal. O caos aparente é o livre mercado trabalhando
para satisfazer as necessidades das pessoas sem planejamento central,
sem coordenação. E todos estão satisfeitos.
A Dinâmica da Cripto é similar. Sua descentralização de livre
mercado depende de um consenso a partir do qual todos são livres para
retirar seu consentimento sem punição. Os participantes não requerem
conhecimento de transações além da deles mesmos, e eles chegam na
blockchain de todas as direções para diferentes propósitos. O que parece
caos é na verdade uma sofisticada forma de ordem que beneficia a to-
dos.

28
Introdução

O Primado da Privacidade

A privacidade da cripto é imperfeita, embora melhorias tecnoló-


gicas estejam sendo feitas. Ela providencia pseudonimato – um estado
de identidade discreta que permite a confirmação de um usuário sem
revelar sua identidade legal. Ademais, a cripto oferece uma forte ca-
mada de proteção contra abusos do estado e outras ameaças que surgem
de olhos intrusivos. Instrumentos como os mixers podem, além disso,
aumentar a proteção das criptos da identidade das pessoas, de seu Nome
Verdadeiro. (Mais será dito sobre esse conceito.)
Privacidade e liberdade estão intimamente ligadas. Imagine um
mundo onde a renda não é registrada. Como iriam os impostos ser co-
letados ou contas de banco confiscadas quando o governo não sabe o
que você tem ou onde você tem? Se o registro de eventos de vida como
o nascimento ou o ingresso na escola são privados, como poderiam nos-
sas crianças serem recrutadas? Se a permissão não é requerida para abrir
um negócio, como poderiam as regulações serem impostas? O maqui-
nário do governo é paralisado sem a informação sobre quem você é e o
que você tem. É por isso que seu apetite por dados é voraz. Conheci-
mento é poder. (Nota: as palavras “governo” e “o estado” estão sendo
usadas intercambiavelmente).
Emprego, finanças, histórico médico, elegibilidade militar, edu-
cação, residência, estado conjugal, registro de telefone, hábitos de via-
gem, uso de internet, propriedade de automóveis e uma miríade de ou-
tros dados são ou armazenados pelo governo ou facilmente acessados
por ele. A cripto providencia um raro oásis de privacidade baseado em
algoritmos e pseudonimato. Quando a carteira de alguém envia um pa-
gamento a outra, a chave daquele que enviou é decodificada pela chave
de quem recebeu. A encriptação protege a transação de intromissão ou
roubo. Sua privacidade protege a vida das pessoas do estado.
Essa é a visão de Satoshi Nakamoto: um sistema de comércio
peer-to-peer, descentralizado e pseudonímico de comércio e de serviços
bancários próprios através do qual o indivíduo evita a corrupção do
atual sistema ao evitar utilizar terceiras partes confiáveis. Indivíduos
privatizam as suas próprias vidas. Depois da prensa de Gutemberg, pou-
cas invenções criaram tanta libertação e oportunidades para a liberdade.
Isso permanecerá verdade, entretanto, apenas se a visão original
for sustentada e não comprometida por aqueles que perseguem “respei-
tabilidade” e equalizam essa palavra com sanção do estado.

29
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Conclusão

A introdução focou na contribuição das criptos para o poder e para


a liberdade dos indivíduos, mas o benefício da cripto para a sociedade
civil é imenso.
Talvez nenhum outro autor tenha sido melhor em capturar os be-
néficos do auto interesse descoordenado da sociedade do que o filósofo
do Iluminismo Francês François-Marie Arouet de Voltaire.
Em suas Cartas a respeito da Nação Inglesa, Voltaire pergunta o
porquê de haver tanta tolerância religiosa na Inglaterra em comparação
com a França, a qual foi despedaçada por conflitos brutais entre católi-
cos e protestantes. Não foi devido a leis ou a história. As leis britânicas
favoreciam fortemente a Igreja da Inglaterra e a perseguição passada foi
severa o suficiente para fazer com que os Peregrinos fizessem uma pe-
rigosa viagem para um Novo Mundo. A diferença chave entre a Ingla-
terra e a França, conclui Voltaire, era a rede de comércio relativamente
livre pela qual as pessoas comuns lidam umas com as outras somente
por auto interesse financeiro. A diferença foi o surgimento de uma
classe média comercial que rendeu para a Inglaterra o apelido de “uma
nação de vendedores”. A liberdade financeira alimentou a tolerância e
a civilidade da sociedade.
Voltaire declara:

Vá para a Bolsa de Londres, aquele lugar mais venerável


que muitos tribunais, e você verá representantes de todas as
nações reunidos lá em prol do lucro da humanidade. Lá o
judeu, o maometano e o cristão lidam um com o outro como
se fossem da mesma religião e reservam o nome de infiel
para aqueles que vão a falência. Lá o presbiteriano confia
no anabatista, e o anglicano aceita a promessa do quaker.
Ao sair dessas reuniões pacíficas e livres, alguns vão à si-
nagoga, outros em busca de bebida; outro homem está a ca-
minho de ser batizado em uma grande banheira em nome
do Pai, pelo Filho, ao Espírito Santo; aquele homem está
vendo o prepúcio de seu filho ser cortado, e uma fórmula
hebraica será murmurada sobre a criança da qual ele mesmo
não entende nada; alguns outros estão indo para sua igreja

30
Introdução

esperar a inspiração de Deus com seus chapéus; e todos es-


tão satisfeitos.

Ao permitir o livre fluxo de comércio e de riqueza, a cripto enri-


quece não apenas os indivíduos, mas também a sociedade civil, porque
a interação financeira é a base da tolerância. Ela quebra barreiras raci-
ais, étnicas e de classe. Bem como uma sociedade de encorajamento
saudável, a cripto oferece diversidade de escolha para o indivíduo. Al-
guns usuários irão escolher o anonimato, enquanto outros podem divul-
gar suas identidades. Alguns irão ser individualistas severos e anarco-
capitalistas, enquanto outros podem preferir o socialismo. Diferenças
de ideologia, religião ou estilo de vida são irrelevantes para as transa-
ções em blockchain porque elas são cegas a tais delicadezas. Elas reco-
nhecem apenas o consenso.
Uma sociedade em prosperidade é uma na qual as pessoas se re-
únem em prol de seu próprio lucro, seja o lucro definido em termos
monetários ou em termos culturais. Eles se reúnem em independência e
liberdade. Eles separam seus caminhos quando querem seguir em
frente. E todos estão satisfeitos.

31
SEÇÃO UM
O Problema da Terceira Parte Confiável
CAPÍTULO UM
Ouvindo o Passado
“O problema chave com as moedas correntes convencionais
é toda a confiança exigida para fazê-la funcionar. O banco
central precisa ser confiado para que não venha a degradar
a moeda corrente, mas a história das moedas fiduciárias está
cheia de violações dessa confiança. Os bancos devem ser
confiados para manter o nosso dinheiro e transferi-lo eletro-
nicamente, mas eles o emprestam em ondas de bolhas de
crédito mesmo que mal tenham uma fração de reserva. Te-
mos de confiar a eles a nossa privacidade, confiar neles para
que não deixem ladrões de identidade drenarem nossas con-
tas.”
– Satoshi Nakamoto

O problema das terceiras partes confiáveis têm assombrado os sis-


temas financeiros modernos e corretoras centralizadas porque as pes-
soas requerem um intermediário para fazê-las funcionar. Os bons ou
maus motivos da terceira parte se tornam um aspecto definidor da tran-
sação, e aqueles que usam as instituições estão à mercê dessas inten-
ções. Isso é especialmente verdade para o atual sistema de moeda emi-
tida pelo estado e para o sistema bancário central.
Um sistema sem necessidade de confiança evita intermediários e
não depende das intenções dos participantes; isto é, o sistema funciona
da mesma maneira independente da intenção de qualquer parte. A blo-
ckchain, com um protocolo peer-to-peer imutável e transparente, é cha-
mada de isenta da necessidade de confiança, porque não há intermedi-
ário corruptível do qual as trocas precisam depender.
Em uma pequena escala, o problema das terceiras partes confiá-
veis precisa sempre existir porque um intermediário é útil ou necessário
em algumas situações. Se terceiras partes confiáveis oferecem serviços
competitivos num livre mercado, entretanto, o dano da desonestidade
ou incompetência é limitado. As pessoas podem levar seus negócios a
todos os lugares, reportar um vigarista aos guardas, advertir aos outros
e mover uma ação judicial.
Um terceiro ocasionalmente desonesto não é o problema, Satoshi
adverte. Ele fala sobre a corrupção institucionalizada do governo e dos

34
Ouvindo o Passado

bancos centrais a partir dos quais a pessoa comum não poderia escapar
usando um competidor ou por processo judicial. Quase todos que tra-
balham numa mesa, dirigem um negócio, compram ou vendem bens,
aceitam benefícios do governo ou pagam impostos tiveram de aceitar
uma moeda fiduciária que constantemente afunda em termos de valor
devido à inflação. Quase todos que usam crédito, aceitam cheques, to-
mam empréstimos, conduzem comércio ou fazem negócios no exterior
precisam passar por bancos que roubam como assaltantes bêbados.
Para as pessoas comuns, a situação costumava parecer desespe-
rançosa porque nenhuma alternativa legal, prática e privada existia para
transferir fundos por consideráveis distâncias, incluindo fronteiras. Ten-
tativas de reformar ou remover o sistema também pareciam condenadas
porque elas eram inerentemente corruptas e auto servientes. De fato, o
serviço bancário central e a moeda fiduciária estavam servindo ao pro-
pósito para o qual eles foram estabelecidos: controle financeiro pelas
elites. A necessidade das pessoas por dinheiro e trocas se tornaram suas
camisas de força.
E então veio Satoshi. E então vieram a blockchain e a cripto. Um
novo conceito de dinheiro foi criado de uma forma que não pode ser
inflacionada; o número de bitcoins é fixo em 21 milhões de unidades
divisíveis. A oferta pode apenas diminuir quando moedas são perdidas,
como inevitavelmente ocorre. Satoshi nota, “Moedas perdidas apenas
fazem as moedas de todos os outros valerem um pouco mais. Pense
nisso como se fosse uma doação a todos.” O Bitcoin resolveu o pro-
blema da moeda fiduciária.
Um novo conceito de transferência financeira resolveu o pro-
blema das terceiras partes confiáveis, especialmente no que diz respeito
aos bancos. Embora transações peer-to-peer envolvam um intermediá-
rio ou minerador, nenhuma confiança é requerida visto que a transação
é lançada apenas quando a “proof of work” é feita, o que consiste em
resolver um complicado problema matemático. Chegar numa solução
pode ser custoso do ponto de vista do poder computacional e gasto de
tempo, mas as soluções em si mesmas são fáceis de verificar. Satoshi
comenta, “Com uma moeda eletrônica baseada em prova criptográfica,
sem a necessidade de se confiar numa terceira parte intermediária, o
dinheiro pode se tornar seguro e as transações tornadas fáceis.” A soli-
dez e propriedade do protocolo da blockchain é assegurada pelo uso de
opensource que é visível a todos e por todos verificável. O resultado

35
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

político: Uma moeda corrente privada e um método de troca que liber-


tou as pessoas da opressão financeira.
A própria ideia de uma moeda privada é, entretanto, dificilmente
nova.

Precedentes na Teoria Individualista Radical

O velho Friedrich Hayek é o economista austríaco mais respei-


tado do século XX. Seu livro The Denationalisation of Money: An
Analysis of the Theory and Practice of Concurrent Currencies argu-
menta vigorosamente a favor de moedas correntes privadas e competi-
tivas, para que substituam as moedas emitidas pelo governo. Hayek
pondera uma questão chave. “Quando se estuda a história da moeda não
será de ajuda perguntar o porquê de as pessoas terem persistido com
governantes exercendo um poder exclusivo por mais de dois mil anos
que foram regularmente usados para explorar e defraudá-las. Isso pode
ser explicado somente pelo mito” de que a moeda do governo precisava
“tornar-se tão firmemente estabelecida que não passou pela cabeça dos
estudantes profissionais dessas áreas […] sequer questionar isso. Mas
uma vez que a validade da doutrina é questionada, seu fundamento é
rapidamente percebido como frágil.”
Os governos arrancam lucros incríveis ao degradar a moeda, mas
o jogo manipulado funciona apenas se as pessoas não têm alternativa
senão jogá-lo. O propósito político das leis bancárias e de curso forçado
é garantir um monopólio ao estado, que permitem a redistribuição de
riqueza e de poder das pessoas comuns para além da elite da sociedade.
A moeda fiduciária e os sistemas bancários, entretanto, permanecem
frágeis, porque o sistema depende de pessoas que ou não entendem as
dinâmicas, ou que entendem e não tem escolha. Hayek se pergunta o
porquê de o entendimento público ser tão enganoso. Pois havia “um
monopólio do governo da provisão de dinheiro […] universalmente tido
como indispensável” e o que iria acontecer “se a provisão do dinheiro
fosse aberta para a competição de preocupações privadas ofertando di-
ferentes moedas correntes?”
Com estranha presciência, Hayek argumenta a favor de moedas
correntes desenvolvidas por empreendedores que inovam em novas for-
mas de dinheiro assim como eles inovam em outras áreas. Uma das des-
vantagens do monopólio do governo é que ele impõe um congelamento
do tipo de invenções que agora correm livres nas criptos. O historiador

36
Ouvindo o Passado

voluntarista Carl Watner observa: “Ninguém pode falar em antecipação


quais as formas de moedas que podem surgir porque ninguém tem cer-
teza de que escolhas os indivíduos fariam ou que novas tecnologias po-
dem ser descobertas. Leis forçando as pessoas a usarem o dinheiro do
Federal Reserve System congelaram os desenvolvimentos monetários
em um certo estágio. […] Imagine se o Congresso tivesse protegido os
Correios ao aprovar leis que iriam ter prevenido as pessoas de se comu-
nicar via internet. Nós nunca iríamos ter experienciado as maravilhas
do e-mail.”
O tardio economista austríaco Murray Rothbard também disputa
a questão de “por que as pessoas resistem tão vigorosamente a moedas
privadas?” Em seu livro For a New Liberty: The Libertarian Manifesto
ele antecipa uma explicação." Se o governo e apenas o governo tivesse
tido um monopólio da manufatura de sapatos e dos negócios de varejo,
como iria a maior parte do público tratar o libertário que veio agora
defender que o governo saia do negócio de sapatos e que o mercado seja
aberto para os empreendimentos privados?". Rothbard prevê que os cé-
ticos iriam atacar o libertário por privá-lo da única fonte possível de
sapatos – o governo. As pessoas são completamente doutrinadas a acre-
ditar que a vida cotidiana não pode funcionar sem o estado e a moeda
fiduciária.
Hayek e Rothbard são incomuns entre os economistas do livre
mercado no que diz respeito a sua adoção ao dinheiro e a sistemas mo-
netários privados. Até mesmo os zelotes do laissez-faire raramente de-
fendem moedas de livre mercado ou serviços bancários privados. Em
vez disso, eles debatem questões marginais tais como reserva fracioná-
ria e outras reformas que eles acham que irão melhorar o sistema exis-
tente. Ou eles argumentam pela restauração de um padrão ouro como
se isso fosse uma panaceia. Mas, se um padrão ouro fosse aplicado à
moeda fiduciária, o sistema ainda iria exigir que as pessoas confiassem
no governo e nos bancos. Isso significa confiar que ambas as institui-
ções iriam agir contra os seus próprios interesses, os quais eles histori-
camente negligenciaram-se a fazer.
A negligência moderna do dinheiro e dos serviços bancários de
livre mercado é estranha porque os individualistas do século XIX foca-
ram intensamente na importância da moeda privada e dos serviços ban-
cários privados para a libertação pessoal. Eles colocaram uma ênfase
primária no direito de todo indivíduo criar a sua própria moeda e funci-
onar como o seu próprio banco. Era um direito natural tão importante

37
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

quanto a liberdade de fala ou religião. O proeminente individualista


Benjamin Tucker acreditou que o direito de usar a moeda privada era
tão importante que esse direito poderia destruir o Estado totalmente por
si mesmo. Seu raciocínio: o monopólio monetário, incluindo o controle
do crédito, foi como o Estado sustentou a si mesmo e roubou as pessoas
comuns não apenas de riqueza, mas também de oportunidades econô-
micas.
Dois eventos específicos esculpiram a abordagem que os primei-
ros anarquistas individualistas adotaram em relação ao monopólio mo-
netário. Um deles foi o Pânico de 1837, que levou os Estados Unidos à
recessão até meados da década de 1840. As causas comumente citadas
do Pânico incluem uma bolha imobiliária em colapso e uma queda acen-
tuada nos preços do algodão. A culpa também é colocada nos pés do
presidente Andrew Jackson por vetar a recuperação do Segundo Banco
dos Estados Unidos e precipitar uma infeliz cadeia de eventos econô-
micos. Baseando-se no trabalho do professor de economia Peter Temin,
Rothbard contesta essa interpretação.

Primeiro, ele [Temin] aponta que a inflação de preços real-


mente começou mais cedo, quando os preços em geral atin-
giram um mínimo de 82% em julho de 1830 e depois subi-
ram em 20,7% em três anos para chegar a 99% no outono
de 1833. A razão para o aumento de preço é simples: A
oferta total de dinheiro havia aumentado de $109 milhões
em 1830 para $159 milhões em 1833, um aumento de
45,9%, ou um aumento anual de 15,3%. Dividindo ainda
mais os números, a oferta total de dinheiro aumentou de
$109 milhões em 1830 para $155 milhões um ano e meio
depois, uma expansão espetacular de 35%. Inquestionavel-
mente, essa expansão monetária foi estimulada pelo ainda
florescente Banco dos Estados Unidos, que aumentou suas
notas e depósitos de janeiro de 1830 a janeiro de 1832 de
um total de $29 milhões para $42,1 milhões, um aumento
de 45,2%. Assim, a inflação de preços e dinheiro nos pri-
meiros anos da década de 1830 foi novamente desencade-
ada pela expansão do ainda dominante banco central.

Pode-se dizer que o Pânico começou em maio de 1837, quando


os bancos da cidade de Nova York anunciaram que não iriam resgatar

38
Ouvindo o Passado

papel comercial em espécie pelo valor de face integral. Dos aproxima-


damente 800 bancos nos Estados Unidos, todos, exceto seis, pararam
em um ponto ou outro de resgatar notas e depósitos por moedas de ouro
ou prata. A suspeita e o ódio aos bancos tradicionais e ao dinheiro emi-
tido pelo governo dispararam, com radicais examinando sistemas alter-
nativos.
O outro evento que impactou dramaticamente a febre radical da
reforma monetária foi a Guerra Civil, pela qual o Norte financiou sua
luta por meio de Leis de Curso Legal e do National Banking Act de
1863.
Os radicais não apenas teorizaram; eles experimentaram moedas
privadas e novos modelos econômicos. Seus esforços são fascinantes,
mas também são histórias de advertência. Um grande problema para o
anarquismo individualista do século XIX foi a aceitação geral do movi-
mento de que havia um elo entre dinheiro sólido e a teoria do valor-
trabalho. Esta teoria afirma que o verdadeiro valor de um bem ou ser-
viço é baseado no trabalho necessário para produzi-lo, e não no preço
pelo qual um vendedor e um comprador estão dispostos a trocar. Em
suma, um bem tem valor intrínseco e não subjetivo. (Mais sobre isso na
seção sobre o Teorema da Regressão). Felizmente, seu principal obje-
tivo econômico era a abolição do “monopólio do dinheiro”. O termo se
referia a três formas diferentes, mas interativas de monopólio: bancos,
cobrança de juros e emissão privilegiada de moeda. A abolição do poder
estatal sobre a moeda era o foco, e eles evitavam o uso da força para
implementar seus próprios esquemas.
Josiah Warren forneceu um exemplo real do que se entende por
moeda baseada na teoria do valor-trabalho. Creditado como o primeiro
anarquista americano, Warren testou sua solução específica para o mo-
nopólio do dinheiro através de uma Loja de Tempo da qual ele emitiu
“Notas de Trabalho”. Em 1827, a empresa abriu com $300 em manti-
mentos e produtos secos que foram oferecidos com uma margem de 7%
dos custos de Warren para cobrir despesas de administração. Isso foi
antes de os mantimentos serem pré-embalados ou pré-pesados, e era
comum que os compradores negociassem com o lojista em vez de pagar
um preço postado. Uma das inovações de Warren foi colocar preços, o
que reduziu os custos porque as transações consumiam menos tempo.
O cliente pagou em dinheiro tradicional pelas mercadorias e pagou com
uma Nota de Trabalho para compensar Warren por seu tempo. A Nota
de Trabalho obrigava o cliente a fornecer a Warren uma quantidade

39
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

equivalente de seu tempo. Se a compradora fosse uma costureira, por


exemplo, a Nota de Trabalho a obrigava a render a Warren X unidades
de tempo para produzir roupas. O objetivo de Warren era estabelecer
uma economia – ou pelo menos estabelecer uma prova de princípio –
na qual o lucro fosse baseado na troca de tempo e trabalho. As Notas de
Trabalho circularam e foram amplamente negociadas na comunidade.
Até certo ponto, Warren teve sucesso. As pessoas viajavam cen-
tenas de quilômetros de distância para aproveitar os preços baixos da
Loja de Tempo. Depois de alguns anos, ele declarou o experimento um
sucesso e fechou a loja. Que as Notas de Trabalho tenham sido um su-
cesso é questionável, no entanto. A própria loja pode ter tido sucesso
devido aos seus preços baixos, não às Notas. Qualquer que seja a expli-
cação verdadeira, é difícil ver como essa nova moeda poderia funcionar
em populações densas ou em uma escala maior de comércio. Poucas
pessoas hoje estariam convencidas da viabilidade do dinheiro privado
com base no experimento da Loja de Tempo.
O que será que convenceria o público e os economistas de que as
moedas privadas funcionam tão bem ou melhor do que as emitidas pelo
governo? Voltar um pouco mais longe na história americana é um bom
ponto de partida, porque o futuro sempre se sustenta no passado.

A América nasceu na moeda privada

A América colonial ensina lições poderosas sobre moedas priva-


das.
As colônias britânicas naturalmente usavam moeda britânica, mas
as políticas monetárias duvidosas da pátria também criaram um apetite
voraz por dinheiro alternativo. Rothbard explica em A History of Money
and Banking in the United States: The Colonial Era to World War II,
“A Grã-Bretanha estava oficialmente em um padrão de prata […] No
entanto, a Grã-Bretanha também cunhou ouro e manteve um padrão bi-
metálico. […] Na Grã-Bretanha dos séculos XVII e XVIII, o governo
manteve uma razão de cunhagem entre ouro e prata que consistente-
mente supervalorizou o ouro e subvalorizou a prata em relação aos pre-
ços do mercado mundial.” As políticas da Grã-Bretanha criaram um
mercado robusto de substitutos para seu próprio dinheiro.
A Lei de Gresham governava o dinheiro colonial da mesma forma
que governa todas as moedas. A Lei: se duas moedas forem oficial-
mente avaliadas pelo mesmo preço ou por uma proporção fixa e o valor

40
Ouvindo o Passado

de mercado de uma for maior, então a moeda mais valiosa desaparecerá


da circulação geral e será usada de outra maneira, como a acumulação
de poupança ou pagamento de dívidas externas. Este é o significado do
axioma “a moeda ruim expulsa a boa”. Moedas de prata encorpadas co-
meçaram a desaparecer da circulação dentro das colônias, se transfor-
maram em prata mais leve, dinheiro baseado em mercadorias ou moe-
das estrangeiras e cunhadas de forma privada. Essas moedas funciona-
vam como moedas totalmente paralelas, com os peso de ocho espanhóis
sendo particularmente populares.
A primeira moeda americana cunhada em particular parece ser o
Granby ou Higley Token, que foi cunhado por Dr. Samuel Higley de
Connecticut em 1737. Após a morte de Samuel, seu irmão John produ-
ziu as moedas de cobre de 1737 a 1739 inclusive. Avaliando as fichas
em três pence cada, John supostamente gastou a maioria delas no bar
local, até que o barman se recusou a aceitar mais. Em seguida, ele lan-
çou moedas com um lado dizendo “Valore-me como quiser” e o outro
lado declarando “Eu sou bom cobre”. Nenhum valor foi estampado na
moeda, o que era prática comum naqueles dias. Eles circularam ampla-
mente por muitos anos, mesmo depois que John deixou de os cunhar,
porque eram uma liga confiável com a qual os ourives faziam joias.
Análises metalúrgicas posteriores do Granby descobriram que as moe-
das eram 98-99% de cobre puro.
Outra lição: o ourives de Nova York do século XVIII, Ephraim
Brasher, demonstrou um método pelo qual as moedas cunhadas em par-
ticular podiam circular amplamente e sem dúvidas sobre sua pureza ou
peso. Muitos cunhadores privados tinham boa reputação dentro de suas
próprias comunidades, mas a circulação de suas moedas era frequente-
mente limitada a esses arredores. Brasher ofereceu uma solução. Ele
tornou-se conhecido por testar moedas nas quais carimbava “EB” se
provassem ser seguras. Apoiadas por sua reputação, as moedas carim-
badas migraram por toda parte.
Esta é uma grande vantagem que a cripto tem sobre as moedas
privadas anteriores; suas moedas não têm a mesma necessidade de se-
rem lastreadas por verificação. Ao contrário das moedas físicas, as
bitcoins não podem ser raspadas, falsificadas, diluídas por ligas ou ne-
gadas pelos maus atos dos mineradores ou dos usuários. Um bitcoin é
um bitcoin, e ninguém pode alterar esse fato. Isso evita a verificação de
pureza ou peso.

41
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Como e por que o governo proibiu o dinheiro privado

Como a ratificação da Constituição dos Estados Unidos em 1788


afetou o dinheiro privado?
Pessoas assumem que a Constituição dos Estados Unidos concede
ao Congresso um “direito” de monopólio de emitir dinheiro. A suposi-
ção vem do artigo 1º, Seção 8, Cláusula 5 da Constituição que delega
ao Congresso o poder de “cunhar moeda, regular seu valor, e de moeda
estrangeira, e fixar o padrão de pesos e medidas”. Este é considerado
um direito de monopólio. Em seu panfleto “A Inconstitucionalidade das
Leis do Congresso Proibindo Correios Particulares” (1844), o jurista e
defensor do dinheiro privado Lysander Spooner explica o contrário:

[Os] poderes do Congresso […] para “cunhar dinheiro” são


na realidade exclusivos apenas contra os governos de outros
estados. […] A proibição constitucional sobre os indivíduos
de cunhar dinheiro não se estende além das proibições de
“falsificar os títulos e moedas atuais dos Estados Unidos”.
Desde que os indivíduos não “falsifiquem” ou imitem “os
títulos ou moedas correntes dos Estados Unidos”, eles têm
todo o direito, e o Congresso não tem poder para proibi-los
de pesar e analisar peças de ouro e prata, marcar neles seus
pesos e pureza e vendê-los pelo que eles trouxerem em
competição com a moeda dos Estados Unidos.

A Constituição trata da regulamentação da “moeda estrangeira”,


mas as moedas domésticas privadas permaneceram populares, especi-
almente uma chamada de Bechtler.
O século XIX viu uma onda de corridas de ouro na América do
Norte. No final da década de 1820, tanto a Geórgia quanto a Carolina
do Norte experimentaram grandes corridas e um dilema que as acom-
panhava. Não havia cunhagem governamental na área. O envio de ouro
para a principal casa da moeda na Filadélfia era problemático, porque
custava muito para transportar e segurar. Um jornal local explicou a si-
tuação da mineradora:

Já que o Banco do Estado limitou suas emissões e está re-


colhendo em seus cofres as notas que foram emprestadas

42
Ouvindo o Passado

aos nossos cidadãos, na liquidação de suas contas penden-


tes, grande inconveniência tem sido deixada em transações
comerciais com o Banco, e para fins comuns de comércio.
Até que ponto esse esquema [ter uma casa da moeda pri-
vada] conseguirá concretizar esses objetos, ainda temos que
aprender. O risco e a despesa de enviar ouro para a casa da
moeda [Filadélfia] é tal que os proprietários das minas mui-
tas vezes acham difícil descartar os produtos das minas a
um valor justo, como as coisas estão agora. Tendo falhado
a petição urgente ao Congresso para o estabelecimento de
uma filial da Casa da Moeda dos EUA na “região do ouro”,
e o ouro produzido estando em condições justas de desapa-
recer completamente do país e cair nos tesouros enferruja-
dos da Europa, esse esquema foi utilizado.

Os garimpeiros procuraram o respeitado relojoeiro e ourives Sr.


Christopher Bechtler para uma solução particular. Por ser também me-
talúrgico e homem honesto, Bechtler era o candidato perfeito para co-
meçar a cunhar moedas. A primeira moeda de ouro Bechtler emitida em
1831 foi seguida de anúncios declarando que Bechtler cunharia o ouro
de qualquer minerador por 2,5% do ouro.
A reação do governo à competição pode ser julgada pelo fato de
que o Tesouro dos Estados Unidos perdeu pouco tempo testando as no-
vas moedas, provavelmente na esperança de desacreditá-las. Infeliz-
mente para o Tesouro, os Bechtlers eram mais puros do que as emissões
governamentais. De fato, a Casa da Moeda Federal comprou $294.000
em Bechtlers e os usou para pagar dívidas e negociar com a Europa. De
repente, o governo foi motivado a abrir sua própria casa da moeda fe-
deral em Charlotte, Carolina do Norte, que ficava a cerca de 130 quilô-
metros da de Bechtler. A Casa da Moeda Federal começou a produzir
moedas de ouro em 1838.
Na época da morte do Sr. Bechtler, consideravelmente mais de
um milhão de Bechtlers circulavam amplamente na América, particu-
larmente no Sudeste. A partir daí, porém, os parentes que assumiram o
negócio eram incompetentes ou desonestos. A consistência e a pureza
diminuíram, e o mercado respondeu se afastando. A casa da moeda fe-
chou alguns anos depois porque ela viveu e morreu de sua reputação.
Os Bechtlers originais continuaram a circular, no entanto. Eles
eram tão populares que, durante a Guerra Civil Americana (1861-1865),

43
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

as obrigações monetárias da Confederação foram especificadas como


sendo pagáveis em ouro Bechtler, não confederado ou outra moeda emi-
tida pelo governo.
A moeda Bechtler é tanto um conto inspirador quanto um aviso.
Ele fala das consequências de integridade e degradação do livre mer-
cado, que não são problemas para a cripto porque são isentas da neces-
sidade de confiança e as moedas não podem ser alteradas. A história de
Bechtler também demonstra como o livre mercado supera o governo
em termos de mover-se rapidamente para um nicho vazio e produzir
qualidade. Como fazem hoje, as moedas de livre mercado superam as
emissões governamentais. Se eles deixarem de fazê-lo, a moeda falha
devido à Lei de Gresham. Como fez no passado, o governo hoje usa
moedas privadas, como ouro e criptomoeda, enquanto tenta minar a
concorrência que elas representam por meio de suas leis.
A resistência do governo à concorrência não começou nem termi-
nou com os Bechtlers, é claro. Em seu ensaio “Hard Money in the Vo-
luntaryist Tradition”, Watner traça o curso de uma casa da moeda em
São Francisco durante a corrida do ouro na Califórnia: Moffat & Co.
“A Moffat & Co. foi aparentemente a mais responsável das empresas
privadas de cunhagem de dinheiro”, pois quando “os negócios de São
Francisco colocaram um embargo em todas as cunhagens de moedas de
ouro privadas”, a exceção foi a Moffat. “O restante das emissões priva-
das foi logo enviado ao Gabinete de Ensaio dos EUA para ser derretido
ou então foi aprovado apenas por seu conteúdo de ouro no comércio.”
Inicialmente, a Moffat emitiu lingotes de ouro em concorrência
direta com o Gabinete Federal de Ensaio dos EUA porque não existia
então nenhum Gabinete de Ensaio do estado. De acordo com o site de
referência Coinfacts, “o ensaio oficial do governo desses lingotes pro-
vou que eles valem mais do que o valor estampado neles”. A Moffat
superou o governo.
A denominação dos lingotes era muito grande para o comércio
normal, no entanto, e os comerciantes exigiam moedas menores. A Mo-
ffat havia feito um acordo com o Gabinete de Ensaios dos EUA e agora
pedia autoridade para cunhar moedas, bem como os lingotes maiores.
Quando a permissão não veio, Moffat começou a cunhar moedas sob
sua própria marca e autoridade em 1849. A alta reputação da firma e
sua política de resgatar todas as moedas pelo valor nominal fizeram com
que sua emissão se tornasse uma moeda circulante popular.

44
Ouvindo o Passado

A obstrução do governo não parou com a recusa de autorizar a


cunhagem. Em 20 de abril de 1850, o State Assayer, Melter, and Refiner
of Gold of California foi estabelecido por lei. Um projeto de lei com-
plementar foi aprovado ao mesmo tempo com o objetivo de frear os
cunhadores privados. Junto com uma medida anterior em 8 de abril, o
projeto representava um compromisso. Coinfacts explicava a posição
original que o governo havia tomado em relação a cunhadores como
Moffat.

Foi durante a primeira metade de 1850 que houve uma séria


agitação contra a cunhagem privada. O Legislativo da Cali-
fórnia considerou um projeto de lei […] que teria rotulado
cunhadores privados como falsificadores, e que insistia em
sujeitar “os fabricantes ou passadores de tal moeda à pena-
lidade imposta aos cunhadores e falsificadores”. O projeto
de lei também teria forçado as casas de moeda privadas a
resgatar suas moedas em “dinheiro legal”. A Alta Califórnia
imprimiu o projeto de lei junto com um editorial de apoio.
O editor apontou ainda a impossibilidade de usar moedas
privadas no pagamento da alfândega.

No dia seguinte, a Alta Califórnia divulgou uma carta aberta da


própria Moffat através da qual ela apelou ao povo de São Francisco. Ela
reconheceu que o estado não podia emitir moedas legalmente devido a
restrições constitucionais, mas os particulares não tinham restrições se-
melhantes. Ela apontou para a casa da moeda Bechtler que continuava
a produzir moedas, embora o negócio estivesse a apenas 130 quilôme-
tros da filial do governo federal em Charlotte. A Moffat lembrou pode-
rosamente a São Francisco que ninguém jamais havia sido enganado
comprando ou aceitando suas moedas.
A primeira lei de compromisso do início de abril proibia a emis-
são privada de peças de ouro com peso inferior a quatro onças troy.
Mais uma vez, este era um tamanho estranho para o comércio normal e
quase garantia uma circulação limitada. Por outro lado, o Departamento
de Ensaios do estado foi autorizado a fundir lingotes de ouro de duas
onças troy. Coinfacts observou: “O Escritório Estadual de Ensaios da
Califórnia foi uma instituição única na história de nossa nação. Foi a
única casa da moeda a operar neste país sob a autoridade de um estado,

45
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

depois de 1789. Suas emissões (embora nunca contestadas nos tribu-


nais) podem ter sido ilegais sob a Constituição dos Estados Unidos, que
proibia qualquer estado de emitir moedas metálicas ou moedas corren-
tes”. O estado usou a artimanha de emitir lingotes que não foram men-
cionados na Constituição, mas que circulavam como o equivalente a
moedas.
O projeto de lei de 20 de abril prejudicou ainda mais os cunhado-
res privados, exigindo que eles resgatassem suas moedas pelo valor no-
minal para emissão do governo. Seguiu-se uma complicada ida e volta
entre a Moffat e os escritórios de análise estadual e federal. A Moffat
recebeu um contrato de cunhagem com o estado e buscou permissão
federal para cunhar moedas menores; foi negado. Eventualmente, Mo-
ffat voltou a emitir suas próprias moedas em denominações menores,
após o governo ter concedido à empresa permissão para emitir moedas
oficiais de $10 e $20 para o Gabinete de Ensaio.
O governo federal mudou de tática em 1852. A Alfândega dos
EUA de repente se recusou a aceitar os lingotes de US $50 de Moffat,
embora tivessem sido emitidos sob a autoridade direta do Gabinete de
Ensaios dos EUA.O pagamento da alfândega era o principal uso dos
lingotes, mas a lei federal exigia que os impostos fossem pagos em mo-
edas com 900/1000 de pureza, em vez do padrão da Califórnia de 884/
a 887/1000. O Departamento do Tesouro deu o notável passo de se re-
cusar a aceitar moedas emitidas por seu próprio Gabinete de Ensaios.
Ela invalidou a sua própria cunhagem.
A história da Moffat & Co. é significativa não apenas porque ilus-
tra como o dinheiro privado pode e irá atender às necessidades públicas,
mas também porque revela a determinação absoluta do governo de eli-
minar a concorrência na moeda e as táticas que costumava usar. As tá-
ticas permanecem as mesmas até hoje. Uma é proibir a moeda crimina-
lizando-a, como a legislatura da Califórnia tentou fazer com a acusação
de falsificação. Outra é absorver e controlar a concorrência como fez o
Gabinete de Ensaio ao contratar com a Moffat. Uma terceira estratégia
é colocar enormes obstáculos no caminho das moedas livres, o que
equivale a uma proibição de facto e dá uma vantagem decisiva ao di-
nheiro do governo.
A estratégia do governo funcionou. Watner explica: “Em outubro
de 1856, a Casa da Moeda federal aparentemente foi capaz de atender
a toda a demanda de moeda em circulação doméstica e para exportação,
de modo que as emissões privadas de moedas de ouro desapareceram

46
Ouvindo o Passado

silenciosamente. Não há registro de nenhuma outra cunhagem privada


na Califórnia depois dessa época.”
A história da cunhagem privada no início da América é profunda,
difundida e intimamente ligada ao sucesso econômico da nação. A
fraude certamente estava presente, mas a honestidade meticulosa e as
soluções para a fraude também. As casas da moeda com grande reputa-
ção e bom senso comercial tiveram sucesso, e muitas vezes superaram
suas contrapartes governamentais, reduzindo-as ao uso da força (lei)
para ganhar vantagem.
O governo não agiu em nome do público. Se tivesse, não teria
atacado empresas honestas que prestavam serviços desesperadamente
necessários a mineradores, comerciantes e compradores; a necessidade
pública de moeda foi ignorada pelo Departamento do Tesouro. A lei
também não explica por que alguns governos preferiram usar moedas
privadas em algumas ocasiões. Uma explicação faz sentido; o governo
queria eliminar a concorrência não porque fosse fraudulenta, mas por-
que a concorrência poderia vencer em um livre mercado. O governo
agiu em seu próprio nome para encher seus bolsos e fortalecer seu po-
der.
Em 8 de junho de 1864, o Congresso aprovou uma lei para punir
e impedir a falsificação de moedas dos Estados Unidos. Dizia, na ínte-
gra:

Que se qualquer pessoa ou pessoas, exceto as agora autori-


zadas por lei, fizerem ou fizerem ser feitas, ou emitirem ou
passarem, ou tentarem emitir ou passar, quaisquer moedas
de ouro ou prata, ou outros metais ou ligas de metal, desti-
nados ao uso e finalidade de dinheiro corrente, seja na se-
melhança da moeda dos Estados Unidos ou de países es-
trangeiros, ou de desígnio original, toda pessoa que assim
infringir deverá, mediante condenação, ser punido com
multa não superior a três mil dólares, ou com prisão por um
período não superior a cinco anos, ou ambos, a critério do
tribunal, de acordo com o agravamento do delito.

A cunhagem privada de moeda efetivamente cessou na América.


A Lei foi, sem dúvida, vendida ao público como sendo necessária
para proteger contra fraudes. Sem desculpar qualquer fraude existente

47
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

ou sugerir que o crime não deveria ser punido, uma política de adver-
tência ou “comprador, cuidado” deveria ser aplicada; o comprador é
responsável por verificar a qualidade das mercadorias antes de uma
compra. Muita fraude poderia ter sido evitada se as pessoas não tives-
sem confiado nas garantias do governo, mas tivessem aprendido a ava-
liar a qualidade por si mesmas. Uma categoria inteira e valiosa de ne-
gócios foi criminalizada porque alguns participantes eram desonestos e
alguns clientes descuidados. Essas foram as desculpas. A principal mo-
tivação para o governo foi eliminar a concorrência.
É reputada a Mark Twain a seguinte fala: “A história não se re-
pete, mas rima”. Para alguns, a cunhagem privada no início da América
pode parecer ter pouco em comum com a cripto, mas há um tema co-
mum. O governo está ameaçado e quer monopolizar ou regular um novo
dinheiro privado através de uma mistura de proibição, levantamento de
obstáculos, absorção e punição. A história está começando a rimar.
Em última análise, a viabilidade de criptomoedas e outras moedas
privadas se resume a duas perguntas: O livre mercado pode fornecer um
dinheiro competitivo? E o estado permitirá que o dinheiro privado
exista sem regulamentação?
Um grande obstáculo para a aceitação da cripto nos círculos de
livre mercado tem sido a convicção de que ela não é e não pode ser um
dinheiro válido.

O Teorema da Regressão

O exemplo da moeda de Granby que continuou a circular devido


ao seu valor na fabricação de joias ilustra um princípio que gerou debate
sobre se a cripto pode ser vista como uma moeda. O conceito é o Teo-
rema da Regressão.
O Teorema da Regressão é uma proposição econômica que está
mais associada a Ludwig von Mises. Aplica a teoria subjetiva do valor
ao poder de compra ou valor objetivo do dinheiro. O teorema faz isso
traçando valores de troca objetivos através da “teoria subjetiva do valor,
pela qual os valores são atribuídos aos valores de uso subjetivos finais
dos consumidores marginais que valorizam tais bens e serviços por seus
valores de uso objetivo que eles esperam consumir”. Em outras pala-
vras, o valor de uso objetivo do dinheiro remonta ao ponto em que as
pessoas valoravam seus usos não monetários. Isso levanta um problema
para a moeda fiduciária que não é consumida como o ouro ou a prata

48
Ouvindo o Passado

podem ser. Em vez disso, com a moeda fiduciária, “os valores de uso
subjetivo e objetivo do dinheiro coincidem e são iguais ao seu valor
objetivo de troca, o valor estimado dos bens e serviços pelos quais ele
pode ser trocado.”
O professor de Economia Jeffrey Rogers Hummel descompacta o
conceito, revelando como se aplica à moeda fiduciária. O poder de com-
pra do dinheiro de hoje “se baseia no de ontem, e no de ontem desse
ontem… e assim em diante. […] Até quão longe a regressão […] vai?
Logicamente, Mises explicou, para um dinheiro mercadoria ela vai até
o dia em que a mercadoria pela primeira vez passou a ser usada como
um meio de troca. Nesse dia, ele teve um valor de troca ou poder de
compra devido apenas” a sua importância “como uma mercadoria co-
mum (para consumo ou para uso como uma entrada produtiva) e não
para uso como um meio de troca. Pois […] o dólar dos EUA se tornou
uma moeda fiduciária ao terminar com a resgatabilidade do que fora
uma reivindicação para um dinheiro mercadoria […]. A cadeia histórica
regride para o dia antes da terminação, e, portanto, de volta ao dia antes
da mercadoria se tornar um meio de troca. A aplicação da lógica para
uma nova moeda fiduciária” significa aplicar uma taxa de resgate ofi-
cial para uma moeda fiduciária estabelecida.
O teorema tem sido muito influente porque ele elegantemente en-
trelaça o poder de compra do dinheiro com as teorias de valor subjetivo
e de utilidade marginal. A teoria subjetiva do valor argumenta que ne-
nhum bem ou serviço é inerentemente valioso; não tem valor embutido
devido ao trabalho necessário para produzi-lo, por exemplo. Em vez
disso, seu valor é determinado pela importância do bem ou serviço para
os indivíduos específicos que o vendem e consomem. Mas esse valor
não permanece constante mesmo para esses indivíduos por causa da uti-
lidade marginal. A utilidade marginal refere-se à satisfação adicional
que uma pessoa recebe ao consumir mais uma unidade de um bem ou
serviço, medida em números ordinais. Um homem faminto provavel-
mente valorizaria um prato de comida como o 1° da lista, enquanto uma
pessoa com excesso de peso em uma dieta rigorosa pode dar ao mesmo
prato uma classificação negativa. Depois de comer o suficiente, o ho-
mem faminto provavelmente desvalorizará a utilidade marginal de mais
comida e priorizará encontrar abrigo para a noite. Todo valor econô-
mico é subjetivo e está em fluxo.
O Teorema da Regressão precisa ser cuidadosamente ponderado
apenas porque muitos economistas austríacos e outros economistas de

49
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

livre mercado rejeitam a criptomoeda alegando que ela viola as circuns-


tâncias nas quais o dinheiro válido deve se originar; essas pessoas de-
veriam ser aliadas naturais da comunidade cripto, não críticas. En-
quanto isso, a maioria dos entusiastas de cripto reagem de uma das qua-
tro maneiras ao ouvir a objeção do Teorema da Regressão. Elas não
ligam. Assumem a atitude de “se cachorro come, é comida de ca-
chorro”; ou seja, se algo compra bens e serviços, é dinheiro. Eles afir-
mam que o teorema não se aplica para a era digital. Ou eles insistem
que se aplica à cripto de uma maneira que é mal compreendida. As duas
últimas abordagens são promissoras para resolver o que parece ser uma
tensão entre Mises e a cripto. Ambos os lados podem se beneficiar de
clarificação.
Um ponto inicial: Um teorema é uma proposição geral que não é
evidente em si mesma, mas precisa ser provada por uma cadeia de raci-
ocínios. Tem sido chamado de “uma verdade estabelecida por meio de
verdades aceitas”. Não é um axioma e é vulnerável a mudanças nas cir-
cunstâncias ou no raciocínio adicional. Isso significa que a proposição
é maleável.
O economista Robert P. Murphy fornece outro caminho para ex-
plicar como o Bitcoin surgiu como um meio de troca sem estar vincu-
lado a uma mercadoria ou resgatável em um valor fixo de uma moeda
fiduciária estabelecida. Seu artigo “Why Misesians Need to Tread
Cautiously When Disparaging Bitcoin” argumenta: “[As] primeiras
pessoas a negociar por ele o fizeram porque lhes fornecia utilidade di-
reta, porque sabiam que havia pelo menos uma chance de servir para
irritar os governos do mundo […] [Os] primeiros adeptos do Bitcoin
estavam fazendo isso por razões ideológicas, não por razões pecuniá-
rias”. Para Murphy, a liberdade é o valor de mercadoria ou serviço do
bitcoin.
O cripto-entusiasta Jeffrey A. Tucker usa uma tacada diferente.
Em um artigo da Foundation for Economic Education intitulado “What
Gave Bitcoin Its Value?”, ele aponta para o propósito que o teorema
serviu originalmente; ajudou a responder à pergunta de por que certas
mercadorias surgiram como moedas enquanto outras não. O surgimento
do sal como uma moeda, em vez de algas marinhas, foi devido à utili-
dade direta e durabilidade do sal, por exemplo.
Tucker então liga a cripto não a um bem concreto, mas a um ser-
viço concreto que cumpre com uma necessidade profunda e possui uti-
lidade direta – a saber, a blockchain como um sistema de pagamento.

50
Ouvindo o Passado

Bitcoin é tanto um sistema de pagamento quanto uma mo-


eda. O sistema de pagamento é a fonte de valor [não-mone-
tário], enquanto a unidade de medida expressa esse valor
em termos de preço. A unidade de dinheiro e de pagamento
é sua característica mais incomum, é aquela que a maioria
dos comentadores teve dificuldade em entender […]. Essa
lacuna entre dinheiro e pagamento sempre esteve conosco,
exceto no caso de proximidade física. Se eu lhe der um dó-
lar por seu pedaço de pizza, não há terceira parte. Mas sis-
temas de pagamentos, terceiros, e relacionamentos de con-
fiança se tornam necessários uma vez que você deixa a pro-
ximidade geográfica. É aí que as companhias como a Visa
e instituições como bancos se tornam indispensáveis.

Para Tucker, o valor não-monetário da cripto é um sistema de pa-


gamento que não requer uma terceira parte confiável e não possui limi-
tações geográficas. A blockchain é o que faz a cripto emergir como um
meio de troca. Dessa maneira, o Teorema da Regressão é aplicado ao
bitcoin, mas o teorema precisa ser atualizado para focar nos serviços
únicos – funcionando como bens de facto – que estão disponíveis na era
digital.
A última palavra do Teorema da Regressão pertence a Satoshi.
Em um post intitulado “Bitcoin does NOT violate Mises’ Regression
Theorem” no fórum bitcointalk que ele fundou, Satoshi afirma:

Como um experimento mental, imagine que houvesse um


metal base tão escasso quanto o ouro, mas com as seguintes
propriedades: – de cor acinzentada – não é um bom condu-
tor de eletricidade – não é particularmente forte, mas tam-
bém não é dúctil ou facilmente maleável – não é útil para
qualquer propósito prático ou ornamental e tem uma propri-
edade mágica especial: – pode ser transportado através de
um canal de comunicação. Se, de alguma forma, adquirisse
algum valor por qualquer motivo, qualquer pessoa que qui-
sesse transferir riqueza a longa distância poderia comprá-la,
transmiti-la e fazer com que o destinatário a vendesse. Tal-
vez possa obter um valor inicial circularmente como você
sugeriu, por pessoas prevendo sua potencial utilidade para

51
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

troca. (Eu definitivamente gostaria de alguns) Talvez cole-


cionadores, qualquer motivo aleatório poderia desencadear
isso. Creio que as qualificações tradicionais para dinheiro
foram escritas com a suposição de que existem tantos obje-
tos concorrentes no mundo que são escassos, um objeto
com o bootstrap automático de valor intrínseco certamente
vencerá aqueles sem valor intrínseco. Mas se não houvesse
nada no mundo com valor intrínseco que pudesse ser usado
como dinheiro, apenas escasso, mas sem valor intrínseco,
penso que as pessoas ainda aceitariam algo. (Estou usando
a palavra escasso aqui apenas para significar oferta poten-
cial limitada).

Mesmo se a cripto for uma moeda corrente válida, ela precisa po-
der competir com a moeda fiduciária e com outras moedas se ela quiser
prosperar. O que faz uma moeda competitiva? Isso leva à questão mais
fundamental de “O que é dinheiro?”

O Dinheiro pode criar Libertação e Civilização […] ou Opressão

Historicamente, o dinheiro foi uma das primeiras coisas


controladas pelo governo, e a “revolução” de livre mercado
dos séculos XVIII e XIX fez muito pouco efeito na esfera
monetária. Portanto, é hora de voltarmos a atenção funda-
mental para o sangue vital de nossa economia – o dinheiro.
– Murray Rothbard, What Has Government Done to Our
Money?

Eu tinha sete anos de idade quando percebi que meus pais não
entendiam algumas das dinâmicas mais importantes da vida. Eu estava
no banco de trás do nosso carro com um saco de doces que havia sido
comprado em uma loja de beira de estrada na esperança de me manter
quieta. Não funcionou. Um pensamento escapou pela minha boca: “Por
que pagamos por tudo? Por que as pessoas simplesmente não vão para
as lojas e pegam o que precisam?”
Minha mãe respondeu: “É errado roubar.”
Expliquei: “Não quero dizer roubar. Quero dizer, por que damos
dinheiro às pessoas em vez de apenas compartilhar tudo?” Meus pais
ficaram em silêncio.

52
Ouvindo o Passado

Quando perguntei novamente, minha mãe respondeu por cima do


ombro: “Não faça perguntas idiotas!”
Eles não sabiam a resposta; eu reconheci isso imediatamente. E
sua incapacidade de explicar por que precisávamos de dinheiro me per-
turbou porque eles discutiam sobre dinheiro constantemente. Havia o
suficiente para consertar o carro e para pagar a hipoteca? Eles poderiam
se dar ao luxo de substituir o telhado? Qual foi o teto de gastos no Natal
deste ano? O dinheiro era um tema em todos os aspectos de suas vidas
e ainda assim meus pais não sabiam como responder à pergunta básica
do porquê precisamos dele.
“O dinheiro é como o mundo funciona”, meu pai finalmente ex-
plicou, “porque permite que as pessoas comprem as coisas de que pre-
cisam para viver.” Esta foi uma não-resposta porque me fez não enten-
der por que compramos coisas em vez de simplesmente compartilhá-
las. Em um nível infantil, eu estava tentando entender a teoria monetá-
ria, e tenho lutado com isso desde então.
Nada foi mais benéfico nesta busca do que o pequeno livro What
Has Government Done to Our Money? por Rothbard. Ele não usou o
termo “terceira parte confiável” ou seu equivalente no livro ou em qual-
quer outro lugar em seus escritos, até onde eu saiba. Murray era um
amigo e mentor, no entanto, o que me dá alguma confiança em prever
qual teria sido sua provável reação a toda a hipótese de Satoshi. Sus-
peito que ele não teria visto a necessidade de confiar em um intermedi-
ário financeiro como um problema porque os bancos privados podiam
oferecer garantias como reputação, resgate em ouro e auditorias. Para
Murray, o dilema do dinheiro moderno parecia começar com a moeda
fiduciária do governo como o problema, e terminou com o livre mer-
cado como a solução que permitia às instituições financeiras privadas e
à moeda emitida por indivíduos, caso optassem por fazê-lo. O nome de
Murray para sua própria moeda hipotética era “The Rothbard”.
What Has Government Done to Our Money? Pertence aos anos
pré-Bitcoin, mas oferece contribuições significativas para a cripto. Ex-
plica as origens do dinheiro em termos claros, bem como destaca o pa-
pel proeminente do dinheiro em estabelecer a libertação e a civilização.
O livro providencia um contexto no qual apreciar a imensa liberação
que é a cripto e a imensa opressão que é a moeda fiduciária. O livro é
uma exposição enganosamente simples da maior fraude do mundo: a

53
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

inflação. O golpe só é possível quando as pessoas precisam de uma ter-


ceira parte confiável em assuntos financeiros e o governo usurpa esse
papel por meio da lei e do banco central.
Compreender a inflação requer uma compreensão de bom senso
do que é dinheiro e do que deveria ser. Isso não é pouca coisa. A teoria
monetária moderna cria uma névoa de complexidade que garante que
as pessoas comuns fiquem sem palavras quando confrontadas com
questões básicas – mesmo aquelas que impactam profundamente suas
vidas. Isso poderia ser evitado facilmente. As escolas poderiam ensinar
economia prática; o governo e as instituições financeiras poderiam ser
transparentes em vez de paredes de tijolos; a política fiscal poderia ser
apresentada em inglês em vez de em burocratês com estatísticas e ma-
temática impenetráveis.
Isso não acontecerá por si só. A falta de conscientização pública
beneficia o monopólio monetário do estado e as escolas públicas finan-
ciadas por impostos não são propensas a ensinar a revolução contra a
mão que as alimenta.

Um Breve Tour Pelo Básico

Toda sociedade comercializa bens e serviços porque a troca é uma


necessidade humana. É o motor da vida econômica, uma fonte de pros-
peridade e a base da sobrevivência. O comércio não é um jogo de soma
zero, como argumentam alguns economistas. Ou seja, se uma pessoa
troca um peixe por um pão, o lucro de um comerciante não anula o do
outro. O comércio é uma situação ganha-ganha porque a troca só ocorre
quando uma pessoa valoriza mais o pão do que o peixe e vice-versa. Ou
cada um ganha com a troca ou ela não ocorre. No processo, os comer-
ciantes também estabelecem cooperação e, talvez, um nível de boa von-
tade que ajude o comércio no futuro. Isso torna o livre trocar um dos
principais alicerces da sociedade civil.
Os seres humanos são tão magnificamente variados que existe
uma gama diversificada de habilidades mesmo dentro de um pequeno
grupo de indivíduos. Negociar essas habilidades aumenta as chances de
sobrevivência tanto para o grupo quanto para cada membro dele, mas a
troca direta ou troca é severamente falha, como explica Rothbard. “Os
dois problemas básicos são ‘indivisibilidade’ e ‘falta de coincidência de
quereres’.” “Indivisibilidade” significa que um bem de troca, como um
arado, pode ser difícil ou impossível de dividir em muitas partes, o que

54
Ouvindo o Passado

impede que seja trocado por várias coisas com várias pessoas. Então,
nenhuma negociação ocorre. “Uma falta de coincidência de quereres”
significa que Smith possui ovos e Jones possui sapatos, mas Smith quer
manteiga. Assim, nenhuma negociação ocorre.
A troca indireta resolve o problema do escambo […] até certo
ponto. Smith troca seus ovos pelos sapatos de Jones porque o último
pode ser trocado por uma terceira pessoa por algo que Smith deseja.
Isso mitiga a falta de coincidência de quereres. Mais importante, para a
teoria monetária, entretanto, negociações indiretas naturalmente enco-
rajam um meio de troca a emergir. Por quê? Negociadores irão favore-
cer itens de escambo que são altamente desejáveis e serão aceitos por
muitas pessoas. Bens altamente trocáveis tendem a partilhar de carac-
terísticas, incluindo divisibilidade, durabilidade, fungibilidade e trans-
portabilidade. Não coincidentemente, essas mesmas características fre-
quentemente descrevem bom dinheiro, e elas se aplicam a cripto.
De acordo com o teorema de Mises, um item de escambo desejá-
vel é primeiro valorado por seu valor de uso. Rothbard lista algumas
mercadorias que se tornam moedas. “[O] tabaco na Virgínia colonial,
açúcar nas Índias Ocidentais, Sal na Abissínia, gado na Grécia Antiga,
pregos na Escócia, cobre no antigo Egito, e grãos, contas, chá, moluscos
e anzóis.” A demanda por um bem gera uma “espiral de reforços: mais
mercabilidade causa um uso mais amplo como um meio o qual causa
mais mercabilidade etc. Eventualmente, uma ou duas mercadorias são
usadas como meio geral – em quase todas as trocas – e essas são cha-
madas de dinheiro”.
Moedas comumente aceitas eliminam a necessidade tanto por es-
cambo quanto por troca indireta, as quais podem ser confusas, consu-
midoras de tempo e geograficamente limitadas. Moedas criam um livre
mercado complexo que permite que bilhões de pessoas que não conhe-
cem umas às outras consumam produtos ao redor do mundo. Em re-
sumo, o dinheiro lança os seres humanos da sobrevivência para a pros-
peridade e possibilita o luxo do tempo para pensar, para criar arte, gozar
de profundos relacionamentos e tomar conta de sua saúde. Um meio de
troca é um dos fundamentos da civilização.
E então entra o governo. A moeda desempenhou um papel defini-
dor em libertar e civilizar os seres humanos. Agora seria usada para
escravizá-los.

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Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Inflação, o Maior Roubo de Todos

O governo não produz bens e serviços no mercado para vender


aos clientes que os desejam. Indivíduos fazem isso. O estado rouba ri-
queza dos chamados clientes, forçando-os a pagar por “bens” e “servi-
ços”, como os militares, quer queiram ou não. A tributação é a forma
mais visível de roubo. Mas está longe de ser o único motor de roubo.
Ao paralisar os concorrentes que supririam as necessidades da socie-
dade no livre mercado, o governo também rouba oportunidades e lucros
não realizados da classe produtiva das pessoas.
A ferramenta mais poderosa de roubo público, no entanto, é o mo-
nopólio do estado na emissão de dinheiro ou fiduciário. Rothbard ex-
plica: “O surgimento do dinheiro, enquanto um benefício para a raça
humana, também abriu uma rota mais sutil para a expropriação gover-
namental de recursos […] [Se] o governo puder encontrar maneiras de
se envolver em falsificação – a criação de dinheiro novo do nada – ele
pode rapidamente produzir seu próprio dinheiro sem se dar ao trabalho
de vender serviços ou minerar ouro. Ele pode então se apropriar de re-
cursos astutamente e passar quase desapercebido, sem despertar a hos-
tilidade desencadeada pela tributação.”
A parte “quase desapercebida” da análise anterior é fundamental.
Todo mundo entende de tributação porque vem com formulários para
preencher, deduções de um salário, prisão por sonegação, agentes as-
sustadores que auditam e um acréscimo doloroso sobre mercadorias na
caixa registradora. Quase todo mundo se ressente da tributação; surtos
de resistência, rebeliões e pedidos de revogação são temas comuns ao
longo da história; a Revolução Americana é um exemplo. Previsivel-
mente, o governo quer reduzir a presença de multidões enfurecidas que
protestam contra suas políticas nas ruas. No entanto, ele precisa dessa
riqueza.
Em contraste, uma espiral complexa e arcana de inflação rara-
mente enfurece a pessoa comum que não a percebe até que os efeitos
sejam aparentes, ruinosos e inescapáveis. Se a tributação é o equiva-
lente ao roubo com uma arma apontada para a cabeça das pessoas, então
a inflação é um ladrão que despoja suas casas na madrugada. A inflação
também é difícil de evitar porque os monopólios governamentais incor-
poraram o decreto e o sistema bancário central no centro do comércio
moderno. Talvez o conhecido ditado deva ser “nada é inevitável, exceto
a morte e a inflação”.

56
Ouvindo o Passado

O que é inflação? A inflação é um aumento na oferta de dinheiro


e de crédito. Geralmente ela está associada ao governo, e com razão,
mas também pode ocorrer com o dinheiro do livre mercado. A oferta de
ouro pode aumentar por vários motivos, incluindo enormes descobertas
minerais ou uma liberação maciça de reservas de um banco. Mas uma
diferença crucial entre a inflação do estado e o livre mercado é que o
ouro cumpre com muitos usos não monetários. Se a oferta aumentar, o
consumo para esses usos também aumentará, pois o custo do ouro cairá.
Isso significa que uma inflação nas unidades de ouro disponíveis seria
uma coisa boa para algumas pessoas – especificamente para aqueles que
usam ouro de maneira não monetária. Por sua vez, o aumento da de-
manda por ouro não monetário absorveria o “excesso” de oferta e ele-
varia o valor monetário. A inflação de livre mercado é autoajustável e é
acompanhada por um benefício social, incluindo um aumento no valor
de moedas privadas concorrentes, como a prata.
Por outro lado, o único uso da moeda fiduciária é como dinheiro.
Isso significa que não há mecanismo de autoajuste. Os mercados mun-
diais podem desvalorizar uma moeda fiduciária notória se outras moe-
das fiduciárias não forem ainda piores. Nessa circunstância, no entanto,
o governo com moeda desvalorizada pode aumentar sua impressora e
criar um círculo vicioso de inflar ainda mais a oferta monetária. A in-
flação fiduciária não é autoajustável nem oferece benefícios a ninguém,
exceto a classe de elite que recebe primeiro o dinheiro recém-impresso.
Para a pessoa média, a palavra “inflação” é sinônimo de “aumento
de preços”, mas o aumento é uma consequência da inflação, não um
sinônimo dela. Como observado anteriormente, a inflação é simples-
mente um aumento na oferta de dinheiro e de crédito. A diferença entre
esses dois significados é muito mais do que semântica. Ver a inflação
como um aumento de preços ignora muito do grande dano infligido pela
inflação porque implica que toda a sociedade enfrenta a mesma desvan-
tagem: preços mais altos onipresentes. O oposto é verdadeiro. A infla-
ção é uma arma de classe que redistribui a riqueza das pessoas médias
para a elite da sociedade. Isso acontece porque o novo fiat é inicial-
mente avaliado na mesma proporção que as unidades antigas que já es-
tão em circulação. Dobrar a oferta de dinheiro da noite para o dia aca-
baria colapsando o poder de compra de cada unidade em circulação,
mas o prazo operacional é “eventualmente”. Os primeiros usuários
aproveitam o valor da pré-inflação porque o dano escorre lentamente

57
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

por toda a economia. Esses primeiros usuários incluem o estado, a bu-


rocracia, as instituições financeiras e as empresas compadres que rece-
bem empréstimos favoráveis. O usuário final é a pessoa comum que
recebe a moeda fiduciária diluída que perdeu poder de compra à medida
que se espalhava pela economia. A pessoa comum suporta o peso da
inflação por ter o valor de sua riqueza e renda caindo enquanto o custo
de vida dispara. Enquanto isso, a classe alta goza de maior prosperidade
às custas de todos.
Com leis de curso legal e sem o padrão ouro, pouco previne o
governo de expandir o dinheiro e o crédito à vontade, usando taxas de
juros para afinação. Os incentivos estão todos no lado da inflação. É
altamente lucrativo ao estado e na maior parte invisível para o público,
especialmente nos primeiros estágios. O vilão econômico dos defenso-
res do livre mercado, John Maynard Keynes, soube bem disso. Seu livro
pivô The Economic Consequences of Peace declara:

É dito que Lenin declarou que a melhor maneira de destruir


o Sistema Capitalista era perverter a moeda. Através de um
contínuo processo de inflação, o governo pode confiscar,
secretamente e de forma não observada, uma importante
parte da riqueza de seus cidadãos. A partir desse método
eles não apenas confiscam, mas o fazem arbitrariamente; e
enquanto o processo empobrece muitos, ela na verdade en-
riquece alguns. Enquanto a inflação procede e o valor real
da moeda flutua selvagemente de mês para mês, todas as
relações permanentes entre devedores e credores, os quais
formam o fundamento último do capitalismo, tornam-se tão
totalmente desordenados que são quase sem sentido; e o
processo de obtenção de riqueza degenera em jogo e loteria.

Lênin certamente estava certo. Não há meio mais sutil e se-


guro de derrubar a base existente da sociedade do que cor-
romper a moeda. O processo envolve todas as forças ocultas
da lei econômica do lado da destruição, e o faz de uma ma-
neira que nem um homem dentre milhões de homens é ca-
paz de diagnosticar.

Os danos da inflação continuam. Rothbard enfatiza um menos


discutido:

58
Ouvindo o Passado

Isso distorce a pedra angular da nossa economia: o cálculo


empresarial. Como nem todos os preços mudam uniforme-
mente e na mesma velocidade, torna-se muito difícil para as
empresas separar o duradouro do transitório e avaliar ver-
dadeiramente as demandas dos consumidores ou o custo das
suas operações. Por exemplo, a prática contábil insere o
“custo” de um ativo no valor que a empresa pagou por ele.
Mas se a inflação intervir, o custo de reposição do ativo
quando se desgastar será muito maior do que o registrado
nos livros. Como resultado, a contabilidade das empresas
irá superestimar seriamente seus lucros durante a inflação –
e pode até estar consumindo capital enquanto pensa estar
aumentando seus investimentos.

Os bancos centrais têm grande culpa pelo roubo e distorções da


inflação; o estado é, em última análise, o culpado. Um banco central é
uma câmara de compensação de moeda nacional; é um intermediário
para as políticas financeiras de uma nação. Ele goza de controle mono-
polista sobre a produção e distribuição de dinheiro e crédito de uma
nação. Normalmente, também esculpe a política monetária por meio de
mecanismos, como a fixação de taxas de juros, e policia os bancos
membros.
O Federal Reserve System americano às vezes é chamado de “pri-
vado”. Por um lado, os Bancos de Reserva regionais são corporações
privadas de propriedade dos seus bancos membros. O rótulo é ilusório.
O Federal Reserve foi estabelecido por um ato do Congresso em 1913
e deriva o seu poder principal de um monopólio garantido pelo governo
para emitir curso legal. O sistema pode imitar uma agência privada em
alguns modos, mas, como explica Rothbard, o sistema de bancos é
“sempre dirigido por oficiais apontados pelo governo, e servem como
braços do governo.”
O Federal Reserve permite a inflação. Ele o faz de duas maneiras
básicas: removendo as restrições à inflação e direcionando a própria in-
flação. Rothbard esboçou uma implantação inicial da primeira tática.
“[O] Federal Reserve Act compele os bancos a manter a proporção mí-
nima de reservas para depósitos e, desde 1917, essas reservas só podiam
consistir em depósitos no Federal Reserve Bank. O ouro não podia mais

59
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

fazer parte das reservas legais de um banco; tudo teve que ser deposi-
tado no Federal Reserve Bank”. Rothbard ilustra a segunda tática de
direcionar a inflação. “Ao controlar as ‘reservas’ dos bancos – suas con-
tas de depósito no Banco Central. Os bancos tendem a manter uma certa
proporção de reservas para seus passivos totais de depósito, e nos Esta-
dos Unidos o controle do governo é facilitado pela imposição de uma
proporção mínima legal ao banco. O Banco Central pode estimular a
inflação, então, despejando reservas no sistema bancário, e reduzindo o
índice de reservas, permitindo assim uma expansão do crédito bancário
nacional.”
Na medida em que o governo aperta as rédeas sobre o dinheiro, a
liberdade e a civilização são enfraquecidas. O dinheiro privado tradici-
onal confronta e supera a fiat do governo. Mas enquanto o estado puder
dominar e manipular o dinheiro, ele pode possuir o sistema financeiro
ao ponto de chegar em contas bancárias individuais, títulos e outras ri-
quezas armazenadas de indivíduos. Ele pode possuir sua riqueza futura
diluindo-a através da inflação. Até as criptos, o anarquismo tropeçou e
caiu sobre o problema de terceiras partes confiáveis do estado e dos
bancos. Até as criptos, o estado parecia ter um controle inabalável da
moeda.

Liberdades Civis e Bancos Centrais

O sistema bancário central deve ser rejeitado não apenas por mo-
tivos econômicos, mas também por motivos de liberdade civil. (Nota:
Eu não faço distinção entre direitos econômicos e civis. Ambos são ex-
pressões da propriedade de si; essa é a jurisdição moral que todo ser
humano tem sobre seu próprio corpo e ações pacíficas simplesmente
em virtude de ser humano. Mas fazer uma distinção entre direitos
econômicos e civis é comum)
O sistema bancário central é um veículo de controle monetário e
financiamento para todos no poder. De acordo com o Financial Times
–, “Os principais bancos agora possuem um quinto da dívida total do
governo”. Os seis principais bancos centrais “que embarcaram na flexi-
bilização quantitativa na última década – o Federal Reserve dos EUA,
o Banco Central Europeu, o Banco do Japão e o Banco da Inglaterra,
juntamente com os bancos centrais suíços e suecos – agora detêm mais
de US $15 trilhões em ativos, de acordo com a análise do FT do FMI e
dos números do banco central, mais de quatro vezes o nível pré-crise”.

60
Ouvindo o Passado

A flexibilização quantitativa ocorre quando um banco central compra


títulos, geralmente do governo, para reduzir as taxas de juros e aumentar
a oferta de moeda. Isso alimenta artificialmente a economia, reduzindo
os custos de empréstimos para famílias e empresas. Mas isso é insus-
tentável.
Governos e bancos centrais não são independentes. A história re-
vela que o conluio entre eles é inerente e íntimo, não acidental. O sueco
Riksbank é amplamente considerado como o primeiro banco central.
Inaugurado em 1668, o Riksbank era tecnicamente um banco privado
de ações conjuntas, mas funcionava sob estrita autoridade real; o rei
determinou as regras de operação e nomeou a administração do banco.
Todo o propósito do Riksbank era emprestar fundos ao governo e ser
uma câmara de compensação para o comércio.
Em 1694, a Governança e a Companhia do Banco da Inglaterra
foram criadas pelo Royal Charter. É um modelo sobre o qual a maioria
dos bancos centrais se baseiam. O Banco da Inglaterra surgiu porque o
crédito do rei William III estava mal. A sociedade por ações forneceu
um caminho para o rei arrecadar os fundos públicos que lhe permitiram
continuar travando a guerra. William III estava em desacordo militar
com a Irlanda, Escócia e América do Norte, todos em vários estágios de
rebelião. Mais importante ainda, no entanto, a Guerra dos Nove Anos
(1688-1697) com a França devastou a marinha da Inglaterra. Nenhuma
instituição financeira arriscaria as 1,2 milhões de libras necessárias para
reconstruí-la.
Assim, a lei inglesa estabeleceu incentivos artificiais para enco-
rajar empréstimos ao rei. Aqueles que auxiliam no processo foram in-
corporados como coproprietários do Banco da Inglaterra. Os credores
davam dinheiro vivo congelado ao rei em troca do qual recebiam acesso
exclusivo às finanças do governo. O banco também se tornou a única
empresa de responsabilidade limitada autorizada a emitir notas, usando
títulos do governo como garantia. Em outras palavras, o Banco da In-
glaterra concedeu um empréstimo a um beneficiário que ninguém mais
tocaria; adquiriu títulos do rei – o destinatário intocável; com base nos
títulos, o banco emitiu dinheiro que foi emprestado novamente. Sem
privilégio legal, o banco central não teria atraído investidores ou finan-
ças. Com o privilégio legal, os £1,2 milhão foram arrecadados em me-
nos de duas semanas.
Governo e bancos centrais lavam as mãos uns dos outros.

61
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

O ganho financeiro não é o único motivo para atrair pessoas para


a terceira parte confiável dos bancos centrais. Há também a sede por
poder. A guerra é o último desdobramento de poder através do qual os
governos mantêm, asseveram e expandem a si mesmos. A guerra requer
dinheiro – muito. A questão é sempre como conseguir o suficiente.
Existe a opção do roubo descontrolado, é claro. A economia pode ser
saqueada, mas os indivíduos saqueados podem objetar e se rebelar. Tal
rebelião levou à Carta Magna em 1215; um comentador da época ad-
vertiu ao rei João, “Com as ocasiões de suas guerras, ele os pilha [o
povo e os nobres] com impostos e impostos até os ossos”. João foi for-
çado a assinar a Carta Magna, presumivelmente sob ameaça de morte.
Ele prometeu parar de pilhar a economia para pagar por suas guerras.
Era necessária mais sutileza na pilhagem.
Quando um governo declara guerra, ele o faz em pelo menos três
frentes: o governo oponente, o povo da nação oponente e os dissidentes
dentro de sua própria população. Alguns dissidentes internos agitam, a
princípio, mas suas fileiras são engrossadas por aqueles que se opõem
aos impostos e outras violações da liberdade civil cometidas em nome
da guerra. Para o governo, a questão complicada é: como extrair o má-
ximo de dinheiro possível sem incorrer em uma reação negativa? Como
isso pode contornar a tendência das pessoas de afirmar suas liberdades
civis e resistir?
Um aspecto pouco discutido dos bancos centrais e da manipula-
ção da moeda é seu impacto nas liberdades civis. Impostos diretos, con-
fiscos e regulações são visíveis. As pessoas entendem uma mão que vai
direto para seus bolsos ou as joga na cadeia por se recusarem a pagar
impostos pela guerra. Por outro lado, políticas monetárias confusas e
não transparentes são invisíveis. As pessoas não entendem nem sentem
imediatamente o impacto da flexibilização quantitativa, por exemplo.
Elas não os levam para as ruas com placas de piquete. Em vez disso, as
pessoas seguem suas vidas diárias e simplesmente assumem o ônus de
um imposto indireto que não entendem muito bem.
Para reafirmar este ponto através de um paralelo: A inflação é um
imposto oculto que as pessoas tendem a tolerar mesmo que se rebelem
contra um imposto direto. A inflação é, no entanto, comparativamente
invisível e não compreendida. As pessoas que protestariam contra um
imposto pró-guerra toleram as políticas do banco central, sem as quais
a guerra seria impossível. Aqueles que são antiguerra devem pedir, em
primeiro lugar, a dissolução do Federal Reserve e de todos os outros

62
Ouvindo o Passado

bancos centrais. Mas o papel dos bancos centrais no financiamento da


guerra é invisível, o que permite ao governo evitar um confronto com
ativistas antiguerra. As pessoas não reivindicam seus direitos civis por
nenhuma outra razão além de não saberem que esses direitos estão
sendo violados. O papel dos bancos centrais no controle social perma-
nece em grande parte desconhecido porque é misterioso.

63
CAPÍTULO DOIS
A Tecnologia Encontra a Anarquia, e Ambos Lucram
“O Bitcoin é o catalisador para uma anarquia pacífica e li-
bertadora. Foi feito como uma reação contra governos cor-
ruptos e instituições financeiras. Não foi somente criado em
prol de melhorar a tecnologia financeira. Mas algumas pes-
soas adulteram a verdade. Em realidade, o Bitcoin era para
funcionar como uma arma monetária, como uma criptomo-
eda posta para minar autoridades. Agora, ele está eufemi-
zado. É visto como uma tecnologia educada e despretensi-
osa para apaziguar políticos, banqueiros e mães corujas.
Seu propósito às vezes é ocultado para tornar a tecnologia
palatável para as massas ignorantes e a elite do poder. No
entanto, ninguém deve esquecer ou negar porque o proto-
colo foi escrito.”
– Sterlin Lujan

A cripto foi criada para fazer uma diferença política e não para
obter lucro. Se os principais desenvolvedores quisessem colher uma
fortuna, não teriam empregado software de código aberto e evitado as
patentes que os tornariam bilionários. Lucrar com cripto e blockchain
são subprodutos louváveis para alguns, e aqueles que acumularam ri-
quezas no livre mercado devem ser aplaudidos. Isso é especialmente
verdade porque a maneira como eles ganharam dinheiro não interferiu
na privacidade e na liberdade financeira de ninguém. Da mesma forma,
a blockchain não foi forjada para tornar o sistema bancário mais efici-
ente, mas para torná-lo obsoleto. Qualquer um que acredite que o
Bitcoin foi designado para ganho financeiro não está prestando atenção
à sua história ou ao idealismo embutido em seus algoritmos. O Bitcoin
foi concebido como um veículo para criar mudanças políticas e sociais,
empoderando indivíduos e empobrecendo o governo. Seus desenvolve-
dores eram revolucionários. O Bitcoin foi seu golpe de abertura.
E não foi sequer um momento antes da hora. A Internet deu ao
governo uma arma incrível contra a privacidade dos indivíduos, que te-
ria sido radicalmente reduzida sem a criptografia – a arte da comunica-
ção secreta.

64
A Tecnologia Encontra a Anarquia, e Ambos Lucram

A História do Bitcoin

A história do Bitcoin às vezes é rastreada até o engenheiro e cien-


tista Timothy C. May. O “Manifesto Cripto-Anarquista” (1988) de May
apareceu pela primeira vez sendo distribuído por alguns tecno-anarquis-
tas na conferência Crypto '88. O manifesto de seis parágrafos exige uma
tecnologia de computador baseada em protocolos criptográficos que
“alterariam completamente a natureza da regulamentação governamen-
tal, a capacidade de tributar e controlar as interações econômicas, a ca-
pacidade de manter a informação em segredo e até alterar a natureza da
confiança e reputação … A tecnologia para essa revolução – e certa-
mente será uma revolução social e econômica – existiu em teoria na
última década.… Mas só recentemente as redes de computadores e os
computadores pessoais atingiram velocidade suficiente para tornar as
ideias praticamente realizáveis.”
O manifesto conclui com um grito de guerra. “Levante-se, você
não tem nada a perder a não ser suas cercas de arame farpado!”
Mesmo em 1988, May podia contar com uma rica história das
criptos. Em meados da década de 1970, a criptografia deixou de ser
domínio quase exclusivo das agências militares e de inteligência, que
operavam em grande parte em sigilo. Em contraste, a pesquisa acadê-
mica que mais tarde surgiu foi abertamente compartilhada. Um evento
em particular quebrou o controle do governo em campo. Em 1975, o
guru da computação Whitfield Diffie e o professor de engenharia elé-
trica Martin Hellman inventaram a encriptação de chave pública e pu-
blicaram seus resultados no ano seguinte no ensaio “New Directions in
Cryptography”. (O que pode ser disputado porque a chave pública foi
uma reinvenção, pois os britânicos haviam desenvolvido essa encripta-
ção anteriormente, mas foram silenciados sobre o assunto pelo go-
verno). Em 1977, os criptógrafos Ron Rivest, Adi Shamir e Leonard
Adleman criaram o algoritmo de encriptação RSA, aquele que foi um
dos primeiros sistemas práticos de chave pública.
A encriptação de chave pública atingiu a comunidade de compu-
tadores como uma explosão. Seu brilho é sua simplicidade. Cada usuá-
rio tem duas chaves – uma pública e uma privada – ambas únicas. A
chave pública embaralha o texto de uma mensagem que pode ser deci-
frada apenas pela chave privada. A chave pública pode ser jogada ao
vento, mas a chave privada deve ser bem guardada. Na época, o resul-
tado estava próximo de uma privacidade impenetrável.

65
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Diffie se inspirou no problema das terceiras partes confiáveis. O


livro High Noon on the Electronic Frontier: Conceptual Issues in
Cyberspace (1996) o cita dizendo: “Você pode ter arquivos protegidos,
mas se uma intimação fosse enviada ao gerente do sistema, daí não viria
nada de bom. Os administradores o dedurariam, porque não teriam in-
teresse em ir para a cadeia.” Sua solução foi eliminar a necessidade de
confiança por meio de uma rede descentralizada na qual cada indivíduo
possui a chave matemática de sua própria privacidade – o direito mais
ameaçado pela sociedade digital. A encriptação de chave pública tam-
bém removeu a tensão de enviar informações seguras por canais inse-
guros. Excluiu “Eve”; esse é o nome que os criptógrafos chamam de
bisbilhoteiro indesejado que pode ser o estado ou um criminoso comum.
É importante ressaltar que a criptografia de chave pública era gratuita
para todos porque uma revolução bem-sucedida não requer nada além
de participação.
O governo não achou graça. A Agência de Segurança Nacional
(NSA) não podia mais espionar à vontade porque seu monopólio do-
méstico de criptografia foi subitamente arrancado. O jornalista Steven
Levy comentou em um artigo da Wired: “Em 1979, Inman [então chefe
da NSA] deu um discurso que veio a ser conhecido como ‘the sky is
falling’, alertando que ‘atividades criptológicas e publicações não go-
vernamentais […] representam riscos claros para a segurança nacio-
nal’.”
Uma declaração posterior do criptógrafo John Gilmore capturou
a resposta dos rebeldes:

Mostre-nos. Mostre ao público como sua capacidade de vi-


olar a privacidade de qualquer cidadão evitou um grande
desastre. Eles estão restringindo a liberdade e a privacidade
de todos os cidadãos para nos defender contra um bicho-
papão que eles não explicaram. A decisão de literalmente
trocar nossa privacidade é uma decisão que deve ser tomada
por toda a sociedade, não unilateralmente por uma agência
de espionagem militar.

O que poderia ser chamado de “a primeira guerra cripto” estourou


quando a NSA tentou restringir a circulação das ideias de Diffie e Hell-
man. A agência informou aos editores que os dois rebeldes e qualquer
um que os publicasse poderia enfrentar pena de prisão por violar as leis

66
A Tecnologia Encontra a Anarquia, e Ambos Lucram

que restringem a exportação de armas militares. Um dos veículos de


Hellman, o Instituto de Engenheiros Elétricos e Eletrônicos (IEEE), re-
cebeu uma carta que dizia, em parte: “Percebi nos últimos meses que
vários grupos do IEEE têm publicado e exportado artigos técnicos sobre
encriptação e criptologia – um campo técnico que é coberto por Regu-
lamentos Federais, a saber: ITAR (Regulamento Internacional de Trá-
fego de Armas, 22 CFR 121-128).” Ordens de mordaça foram emitidas.
Legalização foi proposta. A NSA tentou controlar o financiamento para
pesquisa de cripto e considerou exigir que as pessoas depositassem suas
chaves privadas em um terceiro que seria vulnerável à ordem de um juiz
ou à polícia. Isso teria retornado ao problema de terceiras partes confi-
áveis que a criptografia de chave pública pretendia evitar. Em reação, o
cofundador da Electronic Frontier Foundation, John Perry Barlow, de-
clarou: “Você pode ter meu algoritmo de encriptação […] quando você
arrancar meus dedos frios e mortos da minha chave privada.”
A NSA falhou. A encriptação potente tornou-se um bem público
que oferecia privacidade extraordinária aos indivíduos.

Levantem-se, Cypherpunks!

No final da década de 1980, os cypherpunks surgiram como algo


semelhante a um movimento. O rótulo deliberadamente bem-humorado
foi cunhado pela hacker Judith Milhon, que misturou “cipher” com
“cyberpunk”. Os cypherpunks queriam a criptografia para se defender
tanto da vigilância quanto da censura do estado. Eles também buscaram
construir uma sociedade contra econômica como uma alternativa aos
sistemas bancários e financeiros existentes. Conforme definido por seu
exemplar e Anarcocapitalista Samuel E. Konkin III, a contra economia
é o estudo e a prática de toda ação humana pacífica que é proibida pelo
estado.
A visão dos cypherpunks foi facilitada pelo trabalho pioneiro do
cientista da computação David Chaum, apelidado de “Houdini da
cripto”. Três de seus artigos foram particularmente influentes.
• Correio Eletrônico não Rastreável, Endereços de Retorno e Pseu-
dônimos Digitais” (1981) estabelece as bases para a pesquisa e o
desenvolvimento de comunicações anônimas baseadas em cripto-
grafia de chave pública.

67
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

• “Assinaturas Cegas para Pagamentos não Rastreáveis” (1983)


afirma: “A automação da forma como pagamos por bens e servi-
ços já está em andamento. […] A estrutura final do novo sistema
de pagamentos eletrônicos pode ter um impacto substancial na
privacidade pessoal, bem como na natureza e extensão do uso cri-
minoso de pagamentos. Idealmente, um novo sistema de paga-
mentos deve abordar esses dois conjuntos de preocupações apa-
rentemente conflitantes.” O ensaio clama por dinheiro digital.
• “Segurança sem Sistemas de Transação para tornar o Grande Ir-
mão Obsoleto” (1985) descreve ainda mais dinheiro digital anô-
nimo e sistemas de reputação com pseudônimos.

Um típico cypherpunk desconfiava e não gostava do governo, es-


pecialmente do tipo federal; a cruzada da NSA contra a encriptação pri-
vada só fortaleceu essa resposta. A maioria dos cypherpunks também
abraçou a contracultura com sua ênfase na liberdade de expressão, libe-
ração sexual e liberdade de usar drogas. Em suma, eles eram libertários
civis. Um dos primeiros retratos dos radicais de codificação foi o artigo
de Levy Wired mencionado anteriormente. Levy os chamou de “liber-
tários techie-cum-civil”. Eles eram idealistas que “esperam por um
mundo onde as pegadas informativas de um indivíduo – desde uma opi-
nião sobre aborto até o registro médico de um aborto real – possam ser
rastreadas apenas se o indivíduo envolvido optar por revelá-las; um
mundo onde mensagens coerentes são lançadas ao redor do globo por
redes e micro-ondas, mas intrusos e federais que tentam arrancá-las da
fumaça encontram apenas rabiscos; um mundo onde as ferramentas de
espionagem são transformadas em instrumentos de privacidade.” As
apostas? “O resultado dessa luta pode determinar a quantidade de liber-
dade que nossa sociedade nos concederá no século XXI.” O ideal não é
que a liberdade lhes seja dada, é claro, mas que ela seja tomada como
um direito natural.
Em 1991, Phil Zimmermann desenvolveu o Pretty Good Privacy
(PGP), que se tornou o software mais popular do mundo de encriptação
de e-mail. Ele via o PGP como uma ferramenta de direitos humanos e
acreditava tanto nele que perdeu cinco pagamentos de hipoteca e quase
perdeu sua casa para projetá-la. A versão original foi chamada de “uma
teia de confiança”. Zimmermann descreve este protocolo no manual do
PGP versão 2.0.

68
A Tecnologia Encontra a Anarquia, e Ambos Lucram

Com o passar do tempo, você acumulará chaves de outras


pessoas que você pode querer designar como apresentado-
res confiáveis. Todos os outros escolherão seus próprios
apresentadores confiáveis. E todos irão acumular e distri-
buir gradualmente com suas chaves uma coleção de assina-
turas de certificação de outras pessoas, com a expectativa
de que qualquer pessoa que a receba confie em pelo menos
uma ou duas das assinaturas. Isso causará o surgimento de
uma rede de confiança descentralizada e tolerante a falhas
para todas as chaves públicas.

O PGP foi inicialmente distribuído gratuitamente por ser postado


em quadros de avisos de computador. Zimmermann explicou: “[c]omo
milhares de sementes de dente-de-leão soprando no vento” o PGP se
espalhou pelo mundo. O governo percebeu, e Zimmermann foi alvo de
uma investigação criminal de três anos com base na possível violação
das restrições dos EUA de exportação de software criptográfico.
Saltando para 1992. May, Milhon, Gilmore e Eric Hughes forma-
ram um pequeno grupo de fanáticos por programação que se reuniam
todos os sábados em um pequeno escritório em São Francisco. Um ar-
tigo do Christian Science Monitor descreve o grupo como “todos uni-
dos por aquela combinação única da Bay Area: apaixonados por tecno-
logia, mergulhados na contracultura e inabalavelmente libertários.”
O grupo cresceu rapidamente. Um fórum de postagem eletrônico
chamado The List tornou-se seu aspecto mais ativo, com os “algoritmos
das pessoas” atraindo forte apoio de nomes como Julian Assange e Zim-
mermann. O Christian Science Monitor comenta: “Os libertários radi-
cais dominaram a lista, junto com ‘alguns anarcocapitalistas e até al-
guns socialistas’. Muitos tinham capacidade técnica de trabalhar com
computadores; alguns eram cientistas políticos, estudiosos dos clássicos
ou advogados”. Eric Hughes contribuiu com outro manifesto para o mo-
vimento. “A Cypherpunk’s Manifesto” começa, “A privacidade é ne-
cessária para uma sociedade aberta na era eletrônica”. Ele continua,
“pois para a privacidade ser amplamente espalhada ela precisa ser parte
de um contrato social. As pessoas precisam se juntar e implantar esses
sistemas pelo bem comum. A privacidade só se estende até a coopera-
ção de seus companheiros na sociedade.”

69
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

O grupo rapidamente encontrou uma objeção que viria a dominar


o ataque do governo à encriptação privada; “maus agentes”, argumen-
tou-se, usarão o anonimato para cometer crimes. Durante uma entre-
vista em 1992, um cético confrontou May. “Parece a coisa perfeita para
notas de resgate, ameaças de extorsão, subornos, chantagem, informa-
ções privilegiadas e terrorismo”, ele desafiou e May respondeu: “Bem,
e quanto à venda de informações que não são vistas como legais, diga-
mos, sobre cultivo de maconha e aborto do tipo faça você mesmo”? E
quanto ao anonimato desejado para denunciantes, confessionários e na-
moros?” E enquanto aos “bons agentes” que seriam penalizados pela
remoção da criptografia privada?
Cypherpunks acreditavam que a criptografia de chave pública re-
almente tornava a sociedade menos perigosa e menos criminosa porque
reduziu ou eliminou pelo menos duas grandes fontes de violência. A
primeira foi o estado; sua intrusão criminosa na vida pessoal dos indi-
víduos poderia ser amplamente neutralizada pela privacidade efetiva.
Se as trocas financeiras fossem invisíveis, por exemplo, o roubo de im-
postos ou o confisco seria impossível. A segunda fonte de violência era
o risco associado a crimes sem vítimas, como o uso de drogas, que não
eram vistos pelos cypherpunks como crimes. A encriptação de chave
pública reduziu ou removeu esse risco. Encomendar drogas on-line, por
exemplo, era mais seguro do que comprá-las em um beco de um bairro
ruim à meia-noite.
Sem dúvida, a criptografia de chave pública poderia proteger ati-
vidades que violavam direitos, assim como pagar em dinheiro vivo po-
deria fazê-lo. No entanto, essa perspectiva era amplamente irrelevante,
já que a encriptação era uma realidade que se espalharia apesar dos efei-
tos colaterais desagradáveis. Os Cypherpunks argumentaram que a tec-
nologia ou a comunidade poderiam desenvolver soluções para crimes
online reais.

As Guerras Cripto Continuam

Um incidente capturou o núcleo das guerras cripto entre os


cypherpunks e o estado. Gilmore decidiu salvar e divulgar as informa-
ções em documentos ameaçados pela censura da NSA. Ele distribuiu
um artigo de um criptógrafo cujo trabalho a NSA havia sido fundamen-
tal para suprimir. Depois que Gilmore postou na Internet, o artigo se
tornou viral. Em 1992, Gilmore apresentou um pedido de Freedom of

70
A Tecnologia Encontra a Anarquia, e Ambos Lucram

Information Act (FOIA) para adquirir as partes públicas de uma obra


de quatro volumes de William Friedman, que às vezes é chamado de pai
da criptografia americana. Os manuais já existiam há muitas décadas.
Gilmore também solicitou que os outros livros de Friedman fossem tor-
nados públicos.
Enquanto a NSA prolongava sua resposta à FOIA, Gilmore ouviu
notícias fascinantes de um amigo cypherpunk. Os documentos pessoais
de Friedman foram doados para uma biblioteca depois de sua morte, e
eles incluem os manuscritos anotados de um livro sigiloso. O amigo
simplesmente tirou o livro da estante da biblioteca e o xerocou para
Gilmore. Outro dos livros sigilosos de Friedman foi encontrado em um
microfilme na Boston University. Gilmore notificou o juiz no que se
tornou um apelo à FOIA, para que os assim chamados documentos clas-
sificados estivessem publicamente disponíveis em bibliotecas. Antes de
fazê-lo, porém, Gilmore fez várias cópias do material em questão e as
escondeu em lugares obscuros, incluindo um prédio abandonado.
A NSA reagiu com extrema veemência. Eles invadiram bibliote-
cas e reclassificaram documentos que estavam disponíveis publica-
mente. O Departamento de Justiça chamou o advogado de Gilmore para
dizer que seu cliente estava perto de violar o Ato de Espionagem, o qual
poderia levar a uma prisão de até 10 anos. A violação: ele mostrou às
pessoas um livro de uma biblioteca pública.
Por sua vez, Gilmore contatou repórteres de tecnologia no jornal.
A NSA temia a publicidade, e os cypherpunks sabiam disso. Artigos
críticos da NSA começaram a fluir, incluindo um na San Francisco Exa-
miner. Dois dias depois, o New York Times afirmou: “A National Se-
curity Agency, a agência de espionagem eletrônica secreta do país, re-
cuou abruptamente de um confronto com um pesquisador independente
sobre manuais técnicos secretos que ele encontrou em uma biblioteca
pública há várias semanas. […] [E]la disse que os manuais não eram
mais secretos e que o pesquisador poderia guardá-los”. A Aegean Park
Press, uma editora da Califórnia, rapidamente imprimiu os livros.
Os primeiros cypherpunks eram protótipos que definiram a ati-
tude, a tecnologia e o contexto político em que grande parte da próxima
geração de zelotes da cripto operou. Os objetivos eram a desobediência
à autoridade injusta, contra economia, liberdade pessoal e a ruptura de
um sistema corrupto por meio da criptografia.

71
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Lições de Moral de Moedas Digitais Anteriores

Existiram 3 fases da moeda: a baseada em mercadorias, a


baseada em política e agora a baseada em matemática.
– Chris Dixon

Versões de dinheiro digital e sistemas de transferência online


existiam décadas antes do Bitcoin. A DigiCash e o e-gold estão entre os
mais conhecidos, mas nenhum deles conseguiu abalar o obstinado pro-
blema de terceiras partes confiáveis. Ambos careciam do veículo essen-
cial da privacidade e do self-banking criado por Satoshi: a blockchain.
Os sistemas iniciais são úteis, entretanto, como lições de moral e real-
çam a elegância do Bitcoin.

DigiCash: Suas lições

Em 1983, o renomado criptógrafo David Chaum introduziu a


ideia de dinheiro digital em um trabalho de pesquisa inovador. Em
1989, ele fundou uma corporação de dinheiro eletrônico chamada Digi-
Cash, que, por sua vez, estabeleceu o sistema de pagamento eletrônico
e-cash. (A moeda real foi apelidada de DigiCash). O e-cash foi chamado
de “tecnicamente perfeito”. Ele foi construído sobre um sistema ante-
rior projetado por Chaum: Assinatura Cega. Essa é uma assinatura di-
gital em que o conteúdo de uma mensagem de uma pessoa é disfarçado
para que não seja visto por uma segunda pessoa que autentica a mensa-
gem.
O processo é frequentemente descrito por uma analogia. Um elei-
tor quer que seu voto permaneça secreto. Para ser contado, no entanto,
deve ser assinado por um funcionário eleitoral que verifica a elegibili-
dade do eleitor. A solução: o eleitor escreve suas credenciais do lado de
fora de um envelope, embrulha a cédula marcada em papel carbono e a
coloca dentro do envelope. O funcionário verifica as credenciais e as-
sina o envelope, transferindo sua assinatura para a cédula interna; ele
verifica a cédula sem saber seu conteúdo. O eleitor coloca a cédula
agora autorizada em um novo envelope não marcado que é colocado em
uma caixa de cédulas esperando para serem contadas. O tabulador ve-
rifica a assinatura de autenticação e o voto é registrado. O contator de
votos não tem, entretanto, a menor ideia de quem colocou qualquer voto

72
A Tecnologia Encontra a Anarquia, e Ambos Lucram

particular. Nem o conteúdo do voto nem o próprio voto podem ser liga-
dos até um eleitor individual. Essa é a essência de uma assinatura cega.
Em termos simples, o e-cash de Chaum se utiliza de assinaturas
cegas como se segue: em um banco que lida com dinheiro eletrônico,
você tem uma conta com $20 à qual uma senha dá acesso. Para sacar e-
cash em quantias de $1 cada, você usa um software para gerar 20 nú-
meros únicos e aleatórios de tamanho suficiente para que seja altamente
improvável que alguém também os produza. O problema: você precisa
que o banco verifique se cada número representa $1 em valor, mas você
não quer que o banco saiba qual $1 é qual porque a moeda pode ser
rastreada. Se não há nada mais, o banco pode combinar dados de saída
e entrada, permitindo que ele saiba onde você compra, o que você com-
pra, seu estilo de vida e outras informações que você deseja que perma-
neçam privadas.
Você mantém a privacidade “cegando” cada pedido com encrip-
tação especial. O banco então recebe uma solicitação codificada na qual
assina com uma chave privada de $1; isso afirma o valor e a autentici-
dade. O selo do banco converte o número no equivalente a uma moeda
de $1 que pode ser usada apenas por você. É anônimo; o banco sabe
quantas unidades de $1 ele estampou para você, mas não pode distinguir
entre essas 20 unidades ou reconhecê-las de qualquer outra unidade de
$1 que já autenticou.
Para gastar o dinheiro, você revela o número. Isso resulta em uma
mensagem assinada válida que pode ser verificada pela chave pública
do banco. As unidades de $ 1 são armazenadas em seu computador,
esperando para serem enviadas para qualquer pessoa que aceite e-cash.
Para fazer isso, você envia à pessoa um número decriptado e assinado,
e ela o leva ao banco. A assinatura é verificada; o número de série é
registrado; o valor é resgatado. Gravar o número permite que o banco
rejeite qualquer tentativa de gasto duplo. Mas o banco não pode conec-
tar a transação à sua conta, e o destinatário de $1 não tem ideia de quem
você é, a menos que você decida revelar sua identidade.
O processo é tão anônimo quanto o dinheiro. Isso contrasta forte-
mente com o uso de cartão de crédito online, que envolve dizer a uma
empresa e a um destinatário quem você é, onde está e o que está com-
prando. O DigiCash também está protegido contra pessoas maliciosas
que estão tentando roubar identidades. Ele tem uma vantagem extra.
Porque ele é altamente divisível, ele acomoda micro pagamentos – pa-
gamentos menores de $10, para a qual os custos de transação fazem dos

73
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

cartões de crédito virtualmente impraticáveis. O e-cash era perfeito para


transferir e-nickels e e-quarters pela Internet.
A DigiCash Inc. causou um grande impacto na comunidade finan-
ceira. O primeiro banco a adotá-lo foi o Mark Twain Bank em St. Louis,
Missouri, mas outros logo se seguiram. Em 1998, o e-cash estava dis-
ponível através do Deutsche Bank na Alemanha, Credit Suisse na Suíça
e vários outros pontos de venda poderosos. Mas, em 1998, a DigiCash
Inc. entrou com pedido de falência do Capítulo 11 e posteriormente
vendeu seus ativos, incluindo as patentes.
O que aconteceu? As explicações variam e todas podem conter
alguma verdade.
Em uma entrevista de 1999, Chaum afirmou que o DigiCash foi
uma ideia antes de seu tempo porque o comércio eletrônico não estava
firmemente estabelecido. A Forbes teve outra explicação: “Uma admi-
rável moeda nova para um admirável mundo novo, com apenas um pro-
blema: Ninguém queria isso – nem bancos, nem comerciantes e, mais
importante, nem consumidores. O comércio eletrônico está florescendo,
mas acontece que Visa e MasterCard – não dinheiro digital – são a mo-
eda de escolha.” A maioria dos governos estavam entre aqueles que não
gostaram da moeda irrastreável porque ela poderia ser usada para sone-
gar impostos e cometer outros “crimes” geralmente contra o estado.
Em uma fascinante peça anônima na Next Magazine! foi apresen-
tada uma teoria totalmente diferente. Os criptógrafos, explica, são ge-
ralmente paranoicos. E Chaum é um GRANDE criptógrafo. O funcio-
namento interno do DigiCash descrito no artigo parece uma ala psiqui-
átrica, não uma empresa de tecnologia. Chaum é também comparado
como um homem de negócios abismal. Um exemplo:

ING Investment Management estava interessado. Este


acordo foi de cerca de vinte milhões de guilders [US $ 10
milhões de dólares na época]. Os planos estavam todos tra-
çados. O ING Barings, juntamente com o Goldman Sachs,
também levaria o DigiCash ao mercado de ações dentro de
dois anos. “No dia em que estávamos prontos para assinar,
David não queria”, conta Stofberg [o homem responsável
pelos assuntos financeiros da DigiCash].
“Ele era tão paranoico, que sempre achava que algo estava
errado. Havia 8 pessoas do ING, incluindo o CEO, e David
simplesmente se recusou a assinar”!

74
A Tecnologia Encontra a Anarquia, e Ambos Lucram

Uma abordagem mais interessante do que psicologizar é observar


algumas das fraquezas dos sistemas de e-cash e DigiCash, que contri-
buíram para seu fracasso e compará-los com o sucesso do Bitcoin e da
blockchain.
• Chaum acreditava em patentes e direitos autorais, ambos aplica-
dos em seus projetos. Isso restringiu severamente o acesso e o
desenvolvimento cooperativo por uma comunidade global de
mentes brilhantes. Colocar uma etiqueta de preço no produto di-
ficultou a ampla aceitação do público. Por outro lado, o Bitcoin é
livre de patentes e é opensource, o que dá acesso irrestrito e per-
mite que o desenvolvimento avance.
• O e-cash não evitou o problema de terceiras partes confiáveis por-
que precisava de uma assinatura cega de autorização de uma ins-
tituição financeira. Além do mais, sua crescente aliança com ban-
cos centrais proeminentes indicava uma presença crescente de ter-
ceiras partes confiáveis. O Bitcoin peer-to-peer elimina comple-
tamente terceiras partes confiáveis devido ao fato que a aceitação
pela blockchain é a autorização, e cada participante é um self-
banker.
• O e-cash exigia um emissor centralizado, como um banco. O
Bitcoin é descentralizado até o nível individual.
• O e-cash preservou o sistema bancário existente. Bitcoin torna o
sistema atual irrelevante.
• E-cash era vulnerável às falhas de personalidade de um homem.
A comunidade Bitcoin é assombrada por conflitos internos, mas
nenhuma personalidade pode destrui-la porque ninguém é dono
do sistema. Além disso, sempre é possível criar uma criptomoeda
alternativa para competir com uma que seja inferior de alguma
forma.
• O e-cash não foi projetado para libertação financeira. O ensaio
“Untraceable Electronic Cash”, de coautoria de Chaum, afirmou:
“Gerar um dinheiro eletrônico deve ser difícil para qualquer pes-
soa, a menos que seja feito em cooperação com o banco”. Os anar-
quistas e idealistas que esculpiram o Bitcoin queriam empoderar
o indivíduo contra os bancos e o estado e não precisavam da per-
missão de ninguém para fazê-lo.

75
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Sem dúvida que as corporações mostraram interesse imediato em


e-cash. Eles só recentemente mostraram interesse no Bitcoin, que agora
esperam patentear, dominar e domar para seus próprios propósitos.

E-gold: Suas lições

E-gold era um sistema de moeda de ouro digital que foi operado


entre 1996 e 2009 pela Gold & Silver Reserve, Inc. Em 2000, a G&SR
se reestruturou e uma nova empresa, e-gold Ltd., assumiu a administra-
ção da emissão e de transferências de e-metal. A moeda digital estava
ligada ao ouro, com a unidade de conta típica sendo gramas ou onças
troy. Como os primeiros certificados de ouro dos EUA, o e-gold repre-
sentava unidades de ouro para as quais poderia ser resgatado sob de-
manda do metal armazenado.
Clientes com contas no site do e-gold também podiam fazer trans-
ferências instantâneas de metais preciosos para outras contas.
Foi um dos primeiros sistemas de pagamento a permitir trocas globais
complexas fora do sistema bancário tradicional. Um crítico da moeda
fiduciária e dos bancos convencionais, o cofundador e libertário Dou-
glas Jackson tinha uma missão; ele queria forjar uma alternativa privada
ao lamaçal financeiro causado pelos governos. No livro A History of
Digital Currency in the United States: New Technology in an Unregu-
lated Market (2016), o editor da revista Digital Gold, P. Carl Mullan,
citou Jackson como dizendo que tal “tarefa exigia capacidade compu-
tacional em larga escala, armazenamento de dados e meios de comuni-
cação globais seguros”. Os custos eram proibitivos, exceto para os go-
vernos nacionais. Isto é, até a Internet.
Com a Internet, o e-gold foi pioneiro em vários avanços. Em
1999, por exemplo, a empresa introduziu pagamentos móveis sem fio
usando um celular habilitado para web. Isso foi sete anos antes do
PayPal oferecer um serviço semelhante. Uma inovação menos louvável
veio em 2000, quando a empresa exigiu que os clientes que desejassem
agregar valor às suas contas tivessem uma terceira parte confiável e in-
dependente que pudesse trocar e-gold por moeda e vice-versa. Em
um ano, várias dezenas de empresas e indivíduos preencheram esse ni-
cho; uma nova indústria nasceu.
De acordo com a e-gold Ltd., o número de contas cresceu de 1
milhão em 2003 para 5 milhões em 2008. Usuários de e-gold tinham

76
A Tecnologia Encontra a Anarquia, e Ambos Lucram

uma variedade de motivos. Alguns eram fanáticos por ouro que acredi-
tavam devotamente que o e-gold era superior a moeda fiduciária. Outros
eram anarquistas econômicos que pensavam que o governo não tinha
papel adequado para desempenhar no dinheiro. Outros ainda queriam
sonegar impostos ou minimizar os riscos de crimes sem vítimas.
Muitos mais inundaram os emergentes Programas de Investi-
mento de Alto Rendimento, alguns dos quais usavam e-gold como uma
plataforma de pagamento. Esses programas ofereciam altos retornos ir-
realistas que só poderiam ser mantidos redirecionando a riqueza de no-
vos investidores; os esquemas Ponzi levaram a uma corrida do ouro
eletrônico a um nível internacional. Os fraudadores aproveitaram os re-
cursos do e-gold, como o fato de que todas as transações eram finais e
nunca eram estornadas. Os golpistas abriram contas de e-gold e pediram
aos potenciais investidores que fizessem o mesmo. Em seguida, eles
extraíram dos investidores e compradores tudo o que podiam.
A essa altura, o e-gold oferecia uma ampla gama de serviços,
desde cassinos e leilões online até comércio de metais e doações para
organizações sem fins lucrativos. A empresa estava repleta de possibi-
lidades para golpistas. Infelizmente, os clientes fraudados muitas vezes
não faziam distinção entre o próprio e-gold ético e os vigaristas que os
roubavam com investimentos falsos ou com bens inexistentes. Alguns
usuários desiludidos reclamaram com as autoridades governamentais.
Em 2007, o governo federal dos EUA acusou o e-gold de lavagem
de dinheiro e violação de 18 leis dos EUA. Código §1960, o qual proíbe
as empresas de transmitirem moeda sem uma licença. Muitas corretoras
atreladas ao e-gold foram fechadas. A publicidade e as corretoras per-
turbadas causaram uma queda íngreme no número de clientes e-gold; a
dificuldade de trocar e-gold por moeda fiduciária fez com que poten-
ciais recebedores de e-gold fugissem. Muitos clientes ficaram presos
com contas que não podiam liquidar.
O e-gold lutou vigorosamente contra as acusações, sem sucesso.
Em Abril de 2008, o juiz em United States of America v. E-gold, Ltd,
decidiu contra a companhia e, ao fazer isso, dramaticamente aumentou
o alcance de autoridade do Departamento do Tesouro. A lei agora defi-
nia um “transmissor de dinheiro” como um negócio que transferia qual-
quer valor armazenado de uma pessoa para outra, mesmo que a transfe-
rência envolvesse dinheiro. Este foi um cheque em branco para proces-
sos futuros.

77
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Os três diretores da empresa se declararam culpados e firmaram


um acordo pelo qual o e-gold cumpriria os requisitos legais para um
negócio de transmissão de dinheiro, incluindo ser licenciado. Jackson
recebeu 300 horas de serviço comunitário, 3 anos de supervisão e uma
multa de US $200. Ele poderia ter recebido 20 anos e uma multa de US
$500.000. Os outros dois diretores receberam a mesma sentença, com
multas mais pesadas.
Então veio uma amarga ironia. As confissões de culpa impediram
os diretores de adquirir uma licença em qualquer lugar nos EUA. Isso
colocou todo o e-gold em bloqueio porque devolver dinheiro aos clien-
tes envolveria a transmissão de dinheiro sem licença, o que violava o
acordo judicial. Em 2010, o governo finalmente permitiu que o e-gold
devolvesse o valor monetizado de suas contas aos clientes.
A definição expandida e vaga do Tesouro de “transmissor de di-
nheiro” tem implicações claras para o bitcoin. O sucesso do e-gold e o
processo judicial contra ele mudaram a forma como o governo lidava
com os sistemas de pagamento online. Agora tinha o precedente legal
para agir contra a cripto.
Os paralelos entre Bitcoin e e-gold são claros. O ouro eletrônico
era altamente divisível em micro pagamentos tão pequenos quanto um
décimo de milésimo de grama. Mantinha um registro aberto no qual as
transações diárias eram publicadas ao vivo e de forma transparente. As-
sim como o bitcoin, o e-gold não era uma moeda complementar. Uma
moeda complementar é aquela que não compete com uma moeda naci-
onal; um exemplo seria dinheiro privado emitido como promoção por
uma empresa para clientes, que poderia ser usado para comprar merca-
dorias na loja. O e-gold era intencionado como um substituto para a
moeda fiduciária e para o sistema bancário, com a vantagem adicional
de ser um escape contra a inflação.
As diferenças entre Bitcoin e e-gold são tão importantes quanto
os paralelos.
• O e-gold incorporou o problema de terceiras partes confiáveis,
como descobriram os clientes encurralados por processos judici-
ais. É difícil culpar o e-gold pelas circunstâncias, é claro, mas a
desonestidade ou a ineficiência não são os únicos riscos de con-
fiar aos outros o seu dinheiro. O Bitcoin elimina esse problema.

78
A Tecnologia Encontra a Anarquia, e Ambos Lucram

• Indiscutivelmente, o e-gold introduziu um "problema do quarto


confiável" quando insistiu que os clientes usassem corretoras para
converter e-gold na, e para fora da, moeda fiduciária.
• O e-gold e as casas de câmbio eram pontos de centralização e al-
vos fáceis para regulação ou proibição. Eles também eram pontos
de estrangulamento para coletar informações do cliente. Quando
o e-gold foi reestruturado em 2000, o OmniPay se formou como
o sistema de câmbio da empresa. O OmniPay utilizou três méto-
dos para verificar a identidade dos clientes: verificação postal uni-
versal; pagamento apenas por transferência bancária; e, salva-
guardas para detectar pagamentos recebidos de terceiros. No
acordo de apelo do e-gold anos depois, o governo quase certa-
mente obteve acesso a essas informações. O Bitcoin peer-to-peer
é pseudonímico.
• A insistência do e-gold na “associação para usar” restringiu a dis-
seminação de seus serviços. O Bitcoin está aberto a todos.

O risco de uma corretora que necessita de confiança como a Om-


niPay é um aviso para os usuários de cripto. Uma corretora centralizada
geralmente é o primeiro alvo da regulamentação do governo porque é
visível, vulnerável e constitui um cachê de dados valiosos sobre usuá-
rios de outro modo ocultos. Os proprietários de corretoras provavel-
mente cumprirão as exigências do governo porque a não conformidade
significa ser fechado, preso ou ambos. Em suma, a centralização incen-
tiva até mesmo terceiros honestos a obedecerem a leis e regulamentos
que prejudicam os clientes.

79
CAPÍTULO TRÊS
Descobrindo Satoshi
Empresas como Visa, Dun and Bradstreet, Underwriter's
Laboratories e assim por diante conectam estranhos descon-
fiados em uma rede de confiança comum. Nossa economia
depende deles. Muitos países em desenvolvimento carecem
desses centros de confiança e se beneficiariam muito com a
integração com centros mundiais desenvolvidos como es-
ses. Embora essas organizações geralmente tenham muitas
falhas e fraquezas – as empresas de cartão de crédito, por
exemplo, têm problemas crescentes com fraude, roubo de
identidade e relatórios imprecisos, e a Barings recentemente
faliu porque seus sistemas de controle não se adaptaram
adequadamente à negociação de títulos digitais e muitas
dessas instituições estarão conosco por muito tempo.
– Nick Szabo.

A maior ameaça financeira à riqueza e à liberdade das pessoas é


o sistema confiável de terceiros que não atende aos clientes, mas corre,
em vez disso, para cumprir as regulamentações governamentais, como
os requisitos de relatórios.
O anonimato é uma ferramenta poderosa para a privacidade, mas
os indivíduos também precisam evitar os canais estatais que contrariam
a confidencialidade. A coleta de dados moderna é voraz, e a fiscalização
está acelerando. Se você jogar o jogo do estado ao seguir os caminhos
financeiros, ele vai te dirigir para baixo porque o estado escreveu o livro
de regras, e ele tem a vantagem da casa. Ele não irá jogar justo. Então
não jogue. Para repetir Buckminister Fuller: “Você nunca muda as coi-
sas ao lutar contra a realidade existente. Para mudar algo, construa um
novo modelo que faça do modelo existente obsoleto”. Afastar-se do es-
tado e simplesmente viver dá à liberdade a vantagem da casa. Até re-
centemente, no entanto, afastar-se significava um enorme sacrifício de
oportunidades econômicas e de qualidade de vida porque o estado tinha
uma trava no que Nick Szabo chama de “centros de confiança”.

Satoshi e Buckminister Fuller

80
Descobrindo Satoshi

O brilhantismo do Bitcoin: ser um novo modelo do que Fuller


falou. Usuários da blockchain podem se afastar de terceiras partes con-
fiáveis sem profundo sacrifício. A blockchain ou performa os serviços
válidos de uma terceira parte confiável ou torna mais óbvia a necessi-
dade por eles. Corretoras descentralizadas – corretoras peer-to-peer –
cada vez mais providenciam serviços sofisticados tais como comprar e
vender cripto como especulação.
O “White Paper” de Satoshi e o passo-a-passo do “Bitcoin Whi-
tepaper: A Beginner's Guide” mostram como a blockchain substitui as
terceiras partes confiáveis. O documento define “uma moeda eletrônica
como uma cadeia de assinaturas digitais”. As moedas viajam por um
registro digital distribuído, chamado blockchain, pelo qual são registra-
das de forma transparente, cronológica e imutável. Esses são os passos
básicos na jornada de uma moeda:
1. Um indivíduo transmite uma nova transação para todos os nodes
ou computadores na rede.
2. Os nodes coletam a nova transação para um bloco. Um bloco é
como uma página única no registro da blockchain, ele contém in-
formação sobre uma transferência específica, bem como está pro-
cessando dados.
3. O controlador de cada node – chamado de “minerador” – per-
forma uma proof of work para o bloco. A prova de trabalho é um
cálculo de computador que é difícil de produzir em termos de po-
der de processamento e tempo, mas é fácil para outros verifica-
rem.
4. Quando um node tem uma proof of work, ele transmite o bloco
concluído para todos os outros nodes.
5. Os nodes aceitam o bloco somente se a transação for válida e a
moeda ainda não tiver sido gasta. Timestamps exclusivos, incluí-
dos em cada bloco, evitam gastos duplos.
6. Os nodes expressam a aceitação do bloco procedendo ao trabalho
no próximo na cadeia, usando o hash do bloco previamente aceito
para construir uma continuidade ininterrupta de informações. Um
hash é uma função que converte uma entrada em uma string alfa-
numérica de tamanho fixo. Cada bloco possui um valor de hash
único.
Terceiros confiáveis originalmente surgiram porque eles provi-
denciaram funções válidas para consumidores. A função incluía verifi-
cação de uma transação, facilidade e segurança de uma transferência,

81
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

preservação da privacidade, prevenção de gastos duplos, mediação de


disputas e provisão de um registro. Hoje, as terceiras partes confiáveis
perverteram esses valiosos serviços aos consumidores com assaltos a
eles. O Bitcoin retorna esses serviços aos indivíduos sem ataques de
atendentes.
Verificação de uma transação. Uma terceira parte confiável vá-
lida autentica uma transação. Um banco pode comparar a assinatura
num cheque com a que está no arquivo, ou ele pode verificar que o
dinheiro não é falsificado. Esses serviços têm valor, Mas uma quantia
estonteante da autenticação feita pelos bancos hoje são desvalor para os
consumidores. A exaustiva verificação da identidade de um consumi-
dor, por exemplo, viola sua privacidade para saciar o apetite do governo
por dados, o que é frequentemente usado para danificar o consumidor
A blockchain verifica transações sem se intrometer nos usuários.
A transferência é autenticada, não os participantes. A transação é veri-
ficada por mineradores através de uma proof of work conduzida num
bloco. Uma moeda é autenticada quando a proof of work está completa
e o bloco é aceito pela blockchain. Visto que a blockchain é um registro
aberto público, todos podem traçar a história de uma moeda e terem a
certeza da precisão de uma transação sem saberem a identidade daque-
les envolvidos. O governo pode pesquisar na blockchain, mas o registro
é muito mais uma barreira do que um acréscimo na fiscalização.
Facilidade de transferência. Enquanto o comércio global galopa
para frente e a internet encoraja a gratificação instantânea, a velocidade
e facilidade de transferências se tornou cada vez mais importante – isto
é, para o consumidor. Com um monopólio virtual sobre transferências
internacionais, entretanto, os bancos definem termos que os beneficia e
que prejudicam o consumidor. Bancos impõe custos diretos e indiretos.
Um custo direto é a taxa associada a cada transferência, que pode ser
substancial. Três custos indiretos: a conversão de moeda, se necessário;
as informações pessoais necessárias; e o tempo considerável que uma
transferência pode levar para ser compensada. O período de compensa-
ção é chamado de “float”. Float é o dinheiro no sistema bancário que é
contado duas vezes no processo de transferir o pagamento – uma vez
quando ele é depositado no banco do pagador, e uma vez quando é re-
cebido pelo banco do pagador. Visto que o banco do pagador recebe
juros sobre o dinheiro flutuando, tem havido incentivo para fazer o pro-
cesso mais longo do que o necessário.

82
Descobrindo Satoshi

Em contraste, a blockchain não reconhece distância na transferên-


cia de riqueza ou de informações. Dois computadores na mesma casa
podem estar tão próximos ou distantes um do outro (em termos de
tempo de transmissão) quanto dois computadores em continentes dife-
rentes. Os mineradores cobram uma tarifa por seu serviço, mas as tarifas
são conhecidas e não têm pegadinhas ocultas. Se a tarifa de transferên-
cia de uma cripto é insatisfatória, então há muitas outras criptos para se
escolher. Em contraste, tarifas bancárias tendem a ser padronizadas. A
maioria das transferências ocorrem rapidamente – ao menos compa-
rando aos bancos – e não há float aí. A blockchain não tem auto inte-
resse ou agenda escondida.
Segurança ou transferência. Até mesmo bancos honráveis podem
ser hackeados, roubados e comprometidos em suas transmissões. Em-
bora existam muitas corretoras de cripto perdendo ou roubando a ri-
queza de suas contas – e esse é um problema inegável – bancos são tão
vulneráveis quanto. Não há uma diferença grande entre os dois, entre-
tanto, no que tange a segurança. Toda instituição financeira over-the-
table entrega informações de clientes ao governo, que utiliza os dados
para tributar, confiscar, multar e prender clientes.
A blockchain é descentralizado e resiste a ataques de hackers; não
pode ser corrompida por más intenções porque é inanimada. A ampla-
mente divulgada perda de moedas por roubo ocorre quando uma pessoa
passa das transferências peer-to-peer que controla para depositar suas
moedas em uma corretora, especialmente uma centralizada. A comuni-
dade cripto precisa reduzir os riscos nessa categoria de uso das criptos.
O trabalho está em andamento.
Enquanto isso, nenhuma informação pessoal é entregue ao go-
verno. O registro é transparente para todos, incluindo ao estado, mas é
relativamente fácil mascarar uma identidade e embaralhar as transfe-
rências por meio de serviços como mixers ou tumblers. A blockchain é
atualmente o método mais seguro pelo qual podemos transferir fundos
online. A principal ameaça à segurança é se o governo tentar controlar
toda a internet. Se isso for possível e se as alternativas não surgirem
rapidamente, todos os métodos de transmissão online estarão ameaça-
dos, não apenas a criptografia.
Preservação da privacidade. O tipo de privacidade outrora noto-
riamente oferecido pelos bancos suíços já se foi, mesmo na Suíça. As
instituições financeiras são pontos de trava nos quais os dados pessoais
de um cliente são coletados e compartilhados com as autoridades. A

83
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

única privacidade verdadeira é o sigilo real com que bancos informam


sobre um cliente, sem o conhecimento ou consentimento do cliente.
Manter a privacidade em uma blockchain transparente parece ser
uma contradição em termos. O “Bitcoin Whitepaper A Beginner’s
Guide” explica o porquê não é “Com a rede peer-to-peer, a privacidade
ainda pode ser alcançada mesmo que as transações sejam anunciadas.
Isso é feito mantendo as chaves públicas anônimas. A rede pode ver os
valores dos pagamentos sendo enviados e recebidos, mas as transações
não estão vinculadas a suas identidades.”
Se um usuário decidir revelar as chaves públicas, uma estratégia
de privacidade comum é o pseudônimo. Uma transferência peer-to-peer
não requer informações para além dos cripto endereços do remetente e
do destinatário, que são gerados de forma privada pela carteira de cada
participante. No entanto, quando uma pessoa se junta à blockchain, ela
se torna vulnerável à análise de rede que procura padrões de transferên-
cias para montar o perfil de um usuário. É por isso que alguns usuários
geram um endereço diferente para cada transação, o que cria vários
pseudônimos. Satoshi explica: “Quando você gera um novo endereço
bitcoin, só ocupa espaço em disco em seu próprio computador (como
500 bytes). É como gerar uma nova chave privada PGP, mas com menos
uso de CPU porque é ECC. O espaço de endereçamento é efetivamente
ilimitado. Não faz mal a ninguém, então gere tudo o que você quiser.”
Outras práticas padrões de privacidade: crie várias carteiras para
isolar uma transação ou um tipo de transação de ser associado a um
padrão; encobrir um endereço IP usando uma ferramenta de anonimiza-
ção como o Tor; e passe por um serviço de mixagem.
Prevenção de gastos duplos. O gasto duplo ocorre quando a
mesma unidade de dinheiro é gasta em mais de uma transação, embora
possa ser gasta legitimamente apenas uma vez. Satoshi descreve como
os sistemas de pagamento tradicionais evitam gastos duplos: “Uma so-
lução comum é introduzir uma autoridade central confiável, ou cunha-
gem, que verifica todas as transações em busca de gastos duplos. Após
cada transação, a moeda deve ser devolvida à casa da moeda para emitir
uma nova moeda, e apenas moedas emitidas diretamente da casa da mo-
eda são confiáveis para não serem gastas duas vezes. O problema com
esta solução é que o destino de todo o sistema monetário depende da
empresa que administra a casa da moeda, com todas as transações tendo
que passar por eles, assim como um banco”. A solução coloca a oferta

84
Descobrindo Satoshi

monetária nas mãos de uma terceira parte confiável, ou mesmo de uma


“quarta parte confiável”, o que o torna isso uma não-solução.
Em teoria, a cripto é suscetível a gastos duplos. Duas transações
com a mesma moeda podem ser transmitidas em rápida sucessão para
que a primeira não seja registrada publicamente antes que a segunda
seja enviada. A solução de Satoshi é elegantemente simples. Toda tran-
sação não é somente pública, mas também adotada por todos os parti-
cipantes da rede em uma linha do tempo para que possamos assumir
que o pedido da cadeia é o mesmo para todos. Cada transação é marcada
temporalmente. Se uma segunda transação com a mesma moeda ocorre,
então a marca temporal inicial é contada, e a última descartada.
Mediação de Disputas. O dinheiro físico tinha uma vantagem so-
bre outras formas de pagamento; a troca é irreversível com exceção do
consenso ou através de um processo judicial. A maioria dos sistemas de
pagamento online possuem processos embutidos para reverter ou con-
testar uma transação. O serviço aumenta as tarifas gerais do sistema de
pagamento, bem como colocam um limite prático sobre o tamanho mí-
nimo de uma transação. Também aumenta o envolvimento prático do
sistema de pagamento nas transações.
As transferências de blockchain são irreversíveis. Os fundos só
podem ser devolvidos em uma base ponto a ponto se o destinatário con-
cordar em fazê-lo. Isso inutiliza a necessidade de uma tarifa e permite
micro pagamentos. Se a garantia tradicional do “dinheiro de volta” é
desejada, então alguns serviços providenciam garantia por uma tarifa
extra.
A provisão de um registro. Instituições financeiras mantém regis-
tros, mas seus conteúdos podem ou podem não ser providenciadas ao
consumidor. A interação de um banco com uma agência fiscal, por
exemplo, quase certamente será escondida de um titular da conta. Isso
significa que muitos registros são mantidos apenas para benefício do
banco e do governo, não para o cliente.
A própria blockchain é o registro. É um registro imutável e trans-
parente de todas as transferências ocorridas desde o bloco original Ge-
nesis. Nenhuma interação oculta pode prejudicar um usuário.
Em resumo, a cripto fornece os serviços de um terceiro honesto
com vantagens adicionais.

Satoshi é um Libertário e Anarquista?

85
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Parte de explorar a dinâmica de terceiras partes confiáveis e a im-


portância de contorná-los é perguntar: “Por que essa tarefa foi tão im-
portante para Satoshi?” Ele era um libertário e anarquista ou ele era
politicamente neutro e simplesmente farto de bancos? Uma declaração
explícita de Satoshi sobre o assunto teria sido muito útil para responder
a essa pergunta. Do jeito que a situação está, no entanto, o melhor que
alguém pode fazer é examinar as evidências circundantes, como suas
breves declarações on-line e o Whitepaper, e especular a partir da estru-
tura do próprio Bitcoin.
Em 31 de outubro de 2008, Satoshi publicou" Bitcoin: A Peer-to-
Peer Electronic Cash System” (o “White Paper”) na Lista de Discussão
sobre Criptografia em metzdowd.com. Apresentou a tecnologia por trás
do Bitcoin e o design de seu instrumento de implementação – a block-
chain. A breve explicação de Satoshi é um documento tecnológico de-
finidor do nosso século.
É ainda mais notável, portanto, que ninguém parece saber a iden-
tidade de Satoshi, se “ele” é realmente uma equipe, ou muito mais sobre
ele. Claramente, ele codificou por amor à tecnologia e não por desejo
de fama porque evitou os holofotes; ele também não perseguiu o status
acadêmico. Como o código é de código aberto e não patenteado, a aqui-
sição de riqueza também não era uma força motriz, embora os um mi-
lhão de bitcoins em sua conta agora constituam uma fortuna incrível.
Ao contrário de May e outros antecessores, Satoshi não exibiu arrogân-
cia ou desejo de chocar; em um post, ele se desculpa e modestamente
diz: “Desculpe lhes dar um balde de água fria. Escrever uma descrição
dessa coisa [Bitcoin] para o público em geral é muito difícil.” Em suma,
ninguém pode afirmar definitivamente os motivos de Satoshi ou seu
propósito final. Pelo processo de eliminação, a motivação política
torna-se mais provável. Seus atos e palavras fornecem outras razões
para chegarmos a essa conclusão.
Satoshi começou a escrever o código Bitcoin em 2007. Quando o
“White Paper” apareceu na lista de discussão da Cryptography em
2008, também foi disponibilizado em um site criado por Satoshi –
bitcoin.org. A lista de discussão consistia em especialistas em matemá-
tica, estatística e criptografia, que imediatamente argumentaram contra
a viabilidade do Bitcoin. Não será escalável, alegaram; requer muitos
recursos para ser prático, argumentaram. Além disso, “maus” nodes po-
dem controlar o poder da CPU da rede e gerar uma cadeia mais longa

86
Descobrindo Satoshi

do que os nodes “honestos”; maus agentes poderiam controlar a block-


chain.
As pacientes respostas de Satoshi gradualmente convenceram a
maior parte da lista de que o Bitcoin poderia funcionar. Enquanto isso,
os desenvolvimentos no lançamento aconteceram rapidamente. Os des-
taques incluem:
• 3 de janeiro de 2009, o bloco Genesis é extraído.
• 9 de janeiro de 2009, a versão 0.1 do software Bitcoin é lançada
no Sourceforge.
• 12 de janeiro de 2009, ocorre a primeira transação de bitcoin.
• 5 de outubro de 2009, uma taxa de câmbio de US $1 = 1.309,03
BTC é estabelecida.
• 12 de outubro de 2009, o canal #bitcoin-dev é registrado para co-
munidades de desenvolvimento de código aberto.
• 16 de dezembro de 2009, a versão 0.2 é lançada.
• 6 de março de 2010, dwdollar estabelece uma corretora de
Bitcoin.
• 22 de maio de 2010, a primeira transação no mundo real ocorre
quando uma pizza é comprada por 10.000 bitcoins.
• 7 de julho de 2010, a versão 0.3 é lançada.
• 16 de outubro de 2010, ocorre a primeira transação com bitcoin
como garantia.

Em meados de 2010, Satoshi transferiu a bitcoin.org para Gavin


Andresen. Andresen explica:

Comecei a enviar código para Satoshi para melhorar o sis-


tema principal. Com o tempo, ele confiou no meu juízo so-
bre o código que escrevi. E, eventualmente, ele me pergun-
tou de forma repentina se estaria tudo bem se ele colocasse
meu endereço de e-mail na página inicial do bitcoin, e eu
disse que sim, sem perceber que quando ele colocou meu
endereço de e-mail lá, ele tirou o dele. Eu era a pessoa que
todos enviavam e-mails quando queriam saber sobre
bitcoin. Satoshi começou a recuar como líder do projeto e a
me empurrar para frente.

87
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Em 2010, Satoshi ficou em silêncio. Mais uma vez, fica claro que
ele não escreveu pela fama.
O lançamento sistemático e meticuloso do bitcoin, bem como a
estrutura elegante da blockchain, reflete um homem que pensa as situ-
ações em detalhes e entende suas implicações. Satoshi compreendeu o
impacto político de seu sistema revolucionário, mas fez poucos comen-
tários sobre o assunto.

Evidência das motivações políticas de Satoshi

Grande debate gira em torno da política de Satoshi com muitas


pessoas projetando suas próprias atitudes em relação ao Bitcoin para
ele. Mas todas as indicações do mundo real apontam para Satoshi ser
um libertário, um anarquista ou ambos. As evidências das crenças polí-
ticas de Satoshi remontam ao bloco Genesis – o primeiro elo na block-
chain. Ele contém a seguinte mensagem: “A Times de 03/Jan/2009:
Chancellor à beira do segundo resgate aos bancos”. A mensagem é uma
manchete da primeira página do jornal britânico The Times de Londres.
3 de janeiro de 2009 é o aniversário do blockchain – a revelação do
presente de Satoshi para o mundo. Por que ele escolheu anunciá-lo com
essas palavras específicas?
Algumas pessoas pensam que o texto foi uma escolha aleatória da
edição de 3 de janeiro do Times, e foi inserido com o único propósito
de comprovar a data. Eles afirmam que a mensagem poderia facilmente
ter sido “Dez profissionais do sexo presos em Sting”. Esta afirmação
desafia sua credibilidade. Satoshi era um programador metódico que ia
diretamente ao cerne dos assuntos sem frivolidade, capricho ou apartes.
Ele lançou o que ele deve ter sabido ser uma obra-prima de codificação,
e não é plausível que ele tenha colocado uma mensagem aleatória no
bloco Gênesis. O próprio fato de que o primeiro bloco é chamado de
“Gênesis” – provavelmente uma referência ao primeiro livro da Bíblia
em que Deus cria o mundo – mostra o significado que Satoshi deu ao
evento.
Um cenário muito diferente é altamente provável. Satoshi está
sentado em seu computador, preparando-se para lançar o primeiro bloco
para o mundo como uma semente ao vento. Ele conhece seu poder e
quer que as pessoas conheçam seu propósito sem ter que abrir sua con-
cha de anonimato. Ele acabou de ler o jornal da manhã com seus rela-

88
Descobrindo Satoshi

tórios contínuos de torpeza financeira em que as elites políticas e finan-


ceiras agiram apenas em benefício próprio às custas dos pagadores de
impostos. Uma manchete fornece o trecho perfeito sobre as duas agên-
cias mais responsáveis pelo estupro econômico dos pagamentos de im-
postos – o governo e o sistema bancário. As oito palavras também cap-
turam o conluio entre eles. Satoshi digita cuidadosamente: “Chancellor
à beira do segundo resgate aos bancos”, e incorpora essa mensagem no
Genesis de uma dinâmica que ele acredita que pode mudar o mundo. A
intenção é anti-chancellor, anti-banco e anti-resgate. Desde o primeiro
piscar do blockchain, ele declara que o poder do dinheiro está sendo
devolvido às pessoas.

Evidências a partir do “White Paper”

Outro ponto de debate sobre as intenções políticas de Satoshi gira


em torno do tom neutro do “Whitepaper”. O documento ainda afirma
que um sistema de instituições financeiras terceirizadas confiáveis
“funciona bem o suficiente para a maioria das transações”. Apenas ob-
jeções práticas ao sistema existente são delineadas nele. Em suma, o
“Whitepaper” não parece um manifesto político.
Nem deveria. Um whitepaper é técnico. É uma explicação oficial
de uma ideia ou experimento e de seus resultados ou conclusões, que é
apresentada para revisão a especialistas na mesma área. Seu objetivo é
expor um conceito, resolver um problema ou revelar uma descoberta. A
ideologia não tem lugar. Além disso, a lista na qual Satoshi postou o
“White Paper” era composta por especialistas em matemática, estatís-
tica e criptografia que queriam os fatos técnicos simples, não a política
que os cercava. Os membros, sem dúvida, tinham uma variedade de
pontos de vista políticos, e poderiam muito bem ter tropeçado em al-
guns com os quais discordavam. A Lista não era o momento, não era o
lugar para declarar motivos ou crenças políticas.
No entanto, uma referência política está em posição de destaque.
Nota de Rodapé [1] lê, “W. Dai, ‘b-money’, http://www.wei-
dai.com/bmoney.txt, 1998.” Este é o aceno de agradecimento de Satoshi
à proposta de b-money de 1998 desenvolvida pelo famoso cypherpunk
Wei Dai, com quem Satoshi teve uma troca de e-mails. A proposta de
Dai é amplamente vista como uma precursora do “White Paper”, com
algumas pessoas acreditando que Dai é Satoshi. Em 22 de Agosto de

89
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

2007, Satoshi enviou um e-mail para Dai para o informar, “Estou fi-
cando pronto para lançar um documento que expande suas ideias em
um sistema operacional completo”. O fato de os pontos de vista de Dai
serem um trampolim para o “White Paper” faz com que valha a pena
examiná-los.

A proposta do b-money de Dai começa:

Sou fascinado pela criptoanarquia de Tim May. Ao contrá-


rio das comunidades tradicionalmente associadas à palavra
“anarquia”, em uma criptoanarquia o governo não é destru-
ído temporariamente, mas permanentemente proibido e per-
manentemente desnecessário. É uma comunidade onde a
ameaça de violência é impotente porque a violência é im-
possível, e a violência é impossível porque seus participan-
tes não podem ser vinculados a seus nomes verdadeiros ou
locais físicos." A proposta conclui: “O protocolo proposto
neste artigo permite que entidades pseudônimas não ras-
treáveis cooperem umas com as outras de forma mais efici-
ente, fornecendo-lhes um meio de troca e um método de
execução de contratos. Espero que este seja um passo para
tornar a criptoanarquia uma possibilidade prática e teórica.

Também é razoável examinar os recursos que Satoshi escolheu


incorporar no Bitcoin como um reflexo de sua política. Os recursos in-
cluem

• Descentralização Radical. A primeira linha do resumo do “White


Paper” afirma, “uma versão puramente peer-to-peer de dinheiro
eletrônico poderia permitir pagamentos online serem enviados di-
retamente de uma parte para outra sem passar por uma instituição
financeira”. Sem líderes, sem burocracia, sem posição de poder
além do que o indivíduo exerce sobre si mesmo.
• Privacidade. A Seção 10 do “White Paper” é intitulada “Privaci-
dade”. Ainda que não perfeito, o anonimato buscado e oferecido
pelo Bitcoin é muito superior àquele de outras formas de paga-
mento online. A Seção 10 termina com uma advertência e, talvez,
uma indicação de uma melhoria que Satoshi estava planejando

90
Descobrindo Satoshi

fazer para a Blockchain. “Como um firewall adicional, um novo


par de chaves deveria ser usado para cada transação para impedi-
las de serem ligadas a um dono comum. Algumas ligações são
ainda inevitáveis com transações multi-entradas, as quais neces-
sariamente revelam que suas entradas eram possuídas pelo
mesmo dono. O risco é que, se o proprietário de uma chave for
revelado, a vinculação poderá revelar outras transações que per-
tenciam ao mesmo proprietário.”
• Pró-capitalismo. O “White Paper” enfatiza as vantagens do
Bitcoin para o comércio e para os comerciantes como um sistema
de pagamento de empresas livres. Ele afirma: “Com a possibili-
dade de reversão [que o Bitcoin não acomoda], há a necessidade
da confiança se espalhar. Os comerciantes devem ser cautelosos
com seus clientes, incomodando-os por mais informações do que
eles precisariam”. É difícil imaginar um socialista tendo essa per-
cepção ou se importando com os comerciantes.
• Anti-bancos. Todo o propósito do Bitcoin consiste em “pagamen-
tos online […] sem passar por uma instituição financeira.” No
nono fórum PGP, Satoshi explicou: “A raiz do problema com a
moeda convencional é toda a confiança necessária para fazê-la
funcionar. O banco central deve ser confiável para não desvalori-
zar a moeda, mas a história das moedas fiduciárias está cheia de
violações dessa confiança. Os bancos devem ser confiáveis para
manter nosso dinheiro e transferi-lo eletronicamente, mas eles o
emprestam em ondas de bolhas de crédito com meramente uma
fração de reserva. Temos que confiar neles nossa privacidade,
confiar neles para não deixar ladrões de identidade drenarem nos-
sas contas.”
• Antigoverno. Embora o governo não seja mencionado no “White
Paper”, o Bitcoin é um ataque direto a uma função estatal supos-
tamente vital – o setor bancário. A mensagem no bloco do Gene-
sis foi um tapa no Chancellor tanto quanto no resgate a bancos.
• Anti-inflação. A seção 6 do “White Paper”, intitulada “Incentive”,
afirma que “uma vez que um número predeterminado de moedas
tenha entrado em circulação, o incentivo pode fazer a transição
inteiramente para taxas de transação e ser completamente livre de
inflação”. O número predeterminado é de 21 milhões de moedas,
cada uma divisível até uma pequena fração de uma moeda inteira.

91
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

As características anteriores se aproximam de uma declaração de


anarquismo econômico. Um artigo do CoinJournal intitulado “Op-Ed:
Satoshi Nakamoto is Clearly an Anarchist” refere-se a uma apresenta-
ção de 2014 de Daniel Krawisz do Satoshi Nakamoto Institute. Krawisz
afirma: “Alguém que promove bitcoin e que não é anarquista é um crip-
toanarquista porque o bitcoin é inerentemente anarquista.”

Evidência a partir de postagens e associações pessoais

As postagens menos formais de Satoshi em fóruns são mais uma


evidência de sua política. Novamente, as observações são antibancárias
e antigovernamentais, enquanto reconhecem abertamente o apelo do
Bitcoin aos libertários.
• Anti-bancos. Novamente, Satoshi escreve: “Os bancos devem ser
confiáveis para manter nosso dinheiro e transferi-lo eletronica-
mente, mas eles o emprestam em ondas de bolhas de crédito com
meramente uma fração em reserva.”
• Antigoverno: Quando um usuário se opõe ao Bitcoin, dizendo:
“Você não encontrará uma solução para os problemas políticos na
criptografia”, Satoshi responde: “Sim, mas podemos vencer uma
grande batalha na corrida armamentista e ganhar um novo territó-
rio de liberdade por vários anos. Os governos são bons em cortar
as cabeças de redes controladas centralmente como o Napster,
mas redes P2P puras como Gnutella e Tor parecem estar se man-
tendo.”
• Pró-liberdade. “[Bitcoin é] muito atraente para o ponto de vista
libertário se pudermos explicá-lo adequadamente. Eu sou melhor
com código do que com palavras”. Além disso, a postagem de
Satoshi no fórum bitcointalk, O Bitcoin NÃO viola o Teorema da
Regressão de Mises, indica sua familiaridade com Mises, e o tó-
pico em si discute o livro-assinatura de Rothbard Homem, Eco-
nomia e Estado.

Associações pessoais são outro indicador de crenças pessoais. O


principal entre os associados de Satoshi era o falecido Hal Finney. De-
senvolvedor da PGP Corporation, Finney foi o primeiro destinatário de
uma transação de bitcoin, que Satoshi enviou a ele em 12 de janeiro de

92
Descobrindo Satoshi

2009. Finney obviamente cooperou de perto com Satoshi – alguns acre-


ditam que ele era Satoshi – o que torna as opiniões políticas de Finney
relevantes. No início dos anos 1990, Finney contribuiu regularmente
para o listserv dos cypherpunks. Satoshi também postou um link para
seu “White Paper” no site cypherpunk da P2P Foundation, onde ele era
um membro da lista. Em um post, Finney afirma, “Naturalmente, na
sociedade de hoje, com o poder alocado de forma tão desproporcional,
essas ideias [criptografia] são uma ameaça para grandes organizações.
O poder sendo balanceado significaria uma perda líquida de poder para
eles. Portanto, nenhuma instituição vai pegar e defender as ideias de
Chaum. Terá que ser uma atividade de base, na qual os indivíduos pri-
meiro aprendam quanto poder eles podem ter e depois o exijam.”
Martti Malmi fornece outra pista. Malmi era um estudante da Uni-
versidade de Tecnologia de Helsinki, que se tornou um entusiasta do
Bitcoin. O livro de Nathaniel Popper Digital Gold: Bitcoin and the In-
side Story of the Misfits and Millionaires Trying to Reinvent Money de-
screve a jornada de Malmi. Postando no fórum anti-state.org, que ex-
plorou o anarquismo de livre mercado, Malmi escreve sobre o Bitcoin:
“Estou realmente empolgado com a ideia de algo prático que possa re-
almente nos aproximar da liberdade em nossa vida. :-)”. Em um e-mail
a Satoshi, Malmi incluiu um link para esse post.
Satoshi responde, “Seu entendimento do Bitcoin está certíssimo.”
Novamente, Satoshi percebeu totalmente o quão revolucionário
seu sistema seria. Quando o Wikileaks permitiu doações de bitcoin
como um modo de desviar de um bloqueio financeiro, o Bitcoin foi pro-
pulsionado a um novo nível de atenção e popularidade. Um chocado
Satoshi postou: “Teria sido bom chamar essa atenção em qualquer outro
contexto. O WikiLeaks chutou a colmeia das vespas, e o enxame veio
em direção a nós.” Ele pediu ao Wikileaks que não destacasse o Bitcoin
porque o projeto era jovem o suficiente para ser destruído pelo governo.
De fato, a decisão de Satoshi de permanecer anônimo aponta para sua
compreensão do perigo envolvido com o Bitcoin. Afinal, os criadores
anteriores de dinheiro digital foram processados com destaque, e Sa-
toshi deve ter observado de perto como os processos se desenrolaram.
O argumento anterior não é uma prova definitiva de que Satoshi
era um libertário ou um anarquista, mas chega perto disso. “Libertário,
anarquista ou ambos” tornam-se a resposta mais plausível de longe à
pergunta sobre suas crenças políticas.

93
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Evidência do ambiente de Satoshi

A atmosfera político-econômica da qual o Bitcoin emergiu for-


nece mais uma indicação das crenças de Satoshi. A codificação do
Bitcoin começou em 2007, e é improvável que o momento seja uma
coincidência. A crise financeira de 2007-2008 foi considerada a pior
desde a Grande Depressão da década de 1930. Foi causado em grande
parte pelas terceiras partes confiáveis que Satoshi mais se opunha: go-
vernos e bancos.
O que aconteceu? Em termos simplistas, a indústria de emprésti-
mos imobiliários de alto risco entrou em colapso e provocou a crise.
Um empréstimo imobiliário de alto risco é normalmente emitido para
um mutuário com crédito ruim que apresenta um alto risco de inadim-
plência. Para compensar o credor por esse risco, o mutuário paga uma
alta taxa de juros. Os empréstimos imobiliários de alto risco tornaram-
se cada vez mais comuns no período anterior a 2007 por várias razões.
Um foi o uso de software de subscrição automatizado que acelerou o
processo de empréstimo, mas ignorou a revisão padrão de dados e do-
cumentos. Em suma, as instituições de crédito não autenticaram a ele-
gibilidade do mutuário. Os preços da habitação dispararam devido a
uma enxurrada de crédito artificialmente solto. Atingindo o pico em
2006, os preços iniciaram uma espiral descendente que durou anos e
causou execuções massivas tanto nos EUA quanto internacionalmente.
A alta taxa de inadimplência levou a uma desvalorização dos ins-
trumentos financeiros, o que ameaçou o colapso do confiável sistema
de terceiros – também conhecido como sistema financeiro. O Estado
não iria e não poderia permitir que isso acontecesse; o sistema finan-
ceiro era seu braço direito. Em 7 de setembro de 2008, o governo federal
dos EUA assumiu as responsabilidades dos extremamente abalados
Freddie Mac e Fannie Mae. Outros resgates se seguiram. Em 3 de ou-
tubro, a Lei de Estabilização Econômica de Emergência de 2008 auto-
rizou gastos de até US$ 700 bilhões para comprar ativos em dificulda-
des e financiar instituições financeiras, inclusive estrangeiras. O custo
de salvar a hierarquia de terceiras partes confiáveis foi repassado aos
pagadores de impostos, é claro.
Satoshi observou os resgates se desenrolarem, como atesta a men-
sagem de bloqueio do Genesis. A pilhagem de fundos de impostos para
enriquecer a elite, enquanto as pessoas comuns perderam suas casas,
deve ter parecido um pesadelo de terceiras partes confiáveis.

94
Descobrindo Satoshi

Outra coisa ocorreu em 2007. O governo federal dos EUA acusou os


chefes da e-gold, Inc. de lavagem de dinheiro e transmissão de dinheiro
sem licença. Os donos do e-gold foram julgados e condenados; a em-
presa arruinada foi forçada a fechar suas portas eletrônicas. Satoshi
deve ter visto essa situação bem de perto. Ele aprendeu disso. O anoni-
mato era segurança.

Legado de Satoshi

Satoshi produziu uma tecnologia elegante e original que rivaliza


com a impressora de Gutenberg em sua importância para o progresso
humano porque permite fácil liberdade econômica em nível individual.
O paralelo merece expansão. Embora sua impressora não tenha
sido a primeira, Johannes Gutenberg foi pioneiro em inovações criati-
vas que tiveram um impacto semelhante à criação de Satoshi. Ele subs-
tituiu as tintas à base de água de curta duração por uma durável à base
de óleo, por exemplo. Mais importante ainda, ele usou uma forte liga
para criar cerca de 300 bits de tipos separados que poderiam ser rapida-
mente montados em modelos uniformes e desmontados. As impressoras
anteriores usavam pedaços de madeira frágeis ou esculpiam as letras de
cada página em um bloco de madeira que era pintado. As inovações
transformaram a imprensa de uma ferramenta das classes de elite – a
corte, o clero – em uma ferramenta do povo. Gutenberg abriu um mundo
de informações e ideias para pessoas comuns que não precisavam mais
confiar nas autoridades para sua versão da verdade. A imprensa descen-
tralizou o conhecimento nas mãos do homem comum, e conhecimento
é poder. Isso tornou a imprensa não apenas uma maravilha técnica, mas
também um agente de mudança e revolução social.
Os que estão no poder teriam evitado a mudança, se pudessem,
suprimindo a enxurrada de opiniões e ideias. Um público iletrado, não
informado, é mais fácil de controlar. Um público letrado e informado
encoraja a ascensão do populismo e de reformadores que ameaçam o
status quo. Preservar um status quo favorável ao poder é a principal
razão pela qual a censura estatal existia então e agora, sendo o controle
da imprensa um fator essencial. Infelizmente para os poderosos, a lite-
ratura aumentou e mais pessoas puderam julgar por si mesmas quais
crenças religiosas e políticas ressoavam dentro delas como reais.
Um exemplo de convulsão social: sem a imprensa de Gutenberg,
a Reforma Protestante provavelmente não teria ocorrido, ou teria sido

95
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

muito limitada em escopo. Martinho Lutero lançou a Reforma em 1517


pregando suas noventa e cinco teses na porta de uma igreja alemã. O
documento foi rapidamente traduzido do latim para o alemão, depois
copiado e reimpresso; no jargão de hoje, tornou-se viral. Como homem,
Lutero só podia alcançar aquelas pessoas dentro do alcance de sua voz
e caneta. Como um autor produzido em massa, Lutero espalhou ideias
por toda a Europa em poucos meses. Em três anos, centenas de milhares
de cópias de suas Teses foram produzidas em centenas de prensas tipo-
gráficas. A Igreja Católica respondeu excomungando Lutero, levando-
o a fugir e a se esconder. As ideias, entretanto, não respondem a amea-
ças de fogo do inferno, nem fogem.
A imprensa de Gutenberg provocou movimentos e revoluções.
Mas a imprensa em si não era ideológica, pois qualquer ideia podia ser
montada em moldes e impressa em massa: Catolicismo ou Protestan-
tismo, individualismo ou socialismo, Karl Marx ou Ayn Rand. A má-
quina ela mesma era neutra. A prensa teve fortes implicações ideológi-
cas, com certeza, porque deu poder ao indivíduo e às massas. Em outras
palavras ela era uma forma populista. Mas as autoridades também usa-
ram a nova tecnologia para seus próprios fins estatistas. Por mais mag-
nífica que fosse a imprensa, era uma ferramenta para o bem ou para o
mal, dependendo da finalidade do usuário individual.
O mesmo pode ser dito da cripto. Seu empoderamento do indiví-
duo é um ato profundamente político. Mas esse empoderamento faz to-
dos serem mais livres para escolher quaisquer ideologias que eles quei-
ram. A própria cripto não possui posição ideológica estabelecida. É por
isso que individualistas, anarquistas, socialistas, estatistas e entre outros
podem usar a blockchain como um modo de perseguir seus fins, inde-
pendentemente de quais fins esses possam ser. Amir Taaki, um desen-
volvedor da Darkmarket? Openbazaar e da Dark Wallet, é um anar-
quista de esquerda agressivo que passou um tempo em Rojava [Kurdis-
tão Sírio], ajudando a fundar uma República Popular através da intro-
dução do Bitcoin. Rojava estava “sob embargo, então não havia maneira
de mover dinheiro para dentro ou para fora”, ele explica. “Então temos
realmente de criar nossas próprias economias em bitcoin. Agora temos
uma ferramenta tecnológica para as pessoas livremente se organizarem
fora [do] sistema do estado. Porque é uma moeda não controlada por
bancos centrais.”

96
Descobrindo Satoshi

O Bitcoin pode atingir uma diversidade galopante de objetivos.


Essa é uma grande força. A prensa de Gutenberg providenciou informa-
ção e perspectivas que permitiram as pessoas escolherem religião e po-
líticas por elas mesmas. A cripto dá às pessoas o controle de seu próprio
futuro econômico que lhes permite escolher seus próprios estilos de
vida e compromissos. Parte do que faz a Revolução Satoshi brilhar é
que ela é profundamente política ao empoderar o indivíduo, mas não
exige uma posição ideológica. Ou seja, não diz aos indivíduos empode-
rados o que eles devem escolher ou como eles podem usar seu próprio
poder. A maioria das pessoas veem pouca diferença entre o político e o
ideológico. Geralmente não há. Mas às vezes a política e a ideologia
são distintas.
O Bitcoin é político no mesmo sentido em que a prensa de Gu-
temberg. Ela descentraliza o controle até o nível do indivíduo – a cripto
é puro empoderamento – mas ela não dita o que indivíduos fazem com
seu autocontrole. Isso seria uma contradição em termos. Ainda sim é
isso que o estado faz quando ele tenta controlar a cripto; ele tenta vin-
cular uma contradição em termos com a sociedade. O estado toma uma
dinâmica inerentemente descentralizada e individualista e tenta centra-
lizá-la ao torná-la um braço do governo. As boas notícias: as tentativas
do estado parecem fadadas ao fracasso. A má notícia: o estado continu-
ará tentando.

97
C A P Í T U L O Q U AT R O
O Governo Leva a Cripto a Sério
O melhor status para se ter vis-à-vis ao estado, no final das contas,
é nenhum – isto é, passar despercebido enquanto você vive sua vida em
paz e em liberdade. A invisibilidade é, entretanto, um status difícil ou
caro de se alcançar, e o governo pune punições rígidas àqueles que ten-
tam sem sucesso. A cripto perdeu a invisibilidade legal que inicialmente
gozou de ser arcana ou desconsiderada como uma faísca numa panela.
Está sendo tomada seriamente e é “vista” pelas autoridades. Chamar a
atenção do estado é provavelmente o que Satoshi quis dizer quando la-
mentou a proeminência que o Bitcoin alcançou por meio de sua associ-
ação com o Wikileaks. A tecnologia era jovem e estava em desenvolvi-
mento inicial; a última coisa que precisava era ser levada a sério pelo
governo. Como Satoshi comentou, “A WikiLeaks chutou o ninho de
vespas, e o enxame está vindo em nossa direção.”
O objetivo do enxame do estado é previsível – controle –, mas a
reação das autoridades varia. Alguns políticos e burocratas percebem
uma ameaça; outros vislumbram a mais nova pilhagem possível; outros
ainda veem um meio de atualizar um sistema bancário central inefici-
ente e impopular; muitos querem usá-lo como trampolim para uma so-
ciedade sem dinheiro que eles controlam digitalmente. Quaisquer que
sejam as diferenças de perspectiva, no entanto, a mesma conclusão é
alcançada: a criptografia precisa estar sob sua autoridade centralizada.

Uma estratégia do estado para controlar a cripto

Uma estratégia popular de estado para dominar cripto é reclassi-


ficá-lo como dinheiro e aplicar as mesmas leis rigorosas que cobrem a
fiat. Um projeto de lei atualmente parado no Senado dos Estados Uni-
dos incorpora aspectos comuns dessa tática, que está longe de se limitar
às costas americanas. Examinar o projeto de lei é uma maneira de en-
tender como essa estratégia provavelmente funcionará e como o pro-
cesso destruiria as criptomoedas, caso bem-sucedido.
Na terça-feira, 28 de novembro de 2017, o Projeto de lei 1241 do
Senado foi ouvido pela Comissão de Justiça do Congresso. O projeto
de lei foi discutido no comitê onde ele permanece. É um alarme soando
à noite.

98
O Governo Leva a Cripto a Sério

Alguns entusiastas das criptos vão aplaudir esse desenvolvimento


porque acreditam que a regulamentação significa que a cripto está se
tornando mainstream e alcançando uma respeitabilidade que traz mais
lucro. Alguns entre aqueles que aplaudem querem se beneficiar de li-
cenças (aprovações governamentais), o que poderia eliminar os concor-
rentes de livre mercado. Outros fanáticos por criptomoedas apenas irão
cruzar os braços porque pensam que as criptomoedas de livre mercado
não podem ser controladas e os esforços estatistas falharão. Os indife-
rentes podem estar corretos – espero que estejam –, mas vidas podem
ser destruídas pela tentativa do estado de dominar, e a destruição de
pessoas boas é um assunto de não se cruzar os braços. A abordagem
prudente à intrusão do estado não é nem o aplauso, nem a indiferença,
mas preparação. O governo está chegando e ele quer mais que dinheiro.
Ele quer dar exemplos contundentes de usuários de cripto para dissuadir
outros de buscar a liberdade financeira.
A “Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro, Financiamento do
Terrorismo e Falsificação” (S.1241) é um projeto de lei contra a lava-
gem de dinheiro que regula a criptomoeda a nível federal. Isso significa
que haveria uma uniformidade no status legal e no tratamento das crip-
tomoedas em toda a América.
Novamente, alguns entusiastas de criptomoedas aplaudirão esse
movimento por fornecer clareza à situação. Essa é uma resposta enga-
nosa em vários níveis. Por um lado, controle não é clareza; é a centrali-
zação e a entrega da escolha. E a clareza não tem valor intrínseco à parte
do conteúdo que está sendo esclarecido; um assassino pode ser muito
claro sobre como ele pretende matar você, mas isso não é algo para
comemorar ou buscar. Por outro lado, se inconsistências legais no tra-
tamento das criptos causarem problemas, então a resposta apropriada é
remover as leis, não exigir mais.
Além disso, inconsistências na lei podem ser úteis porque podem
funcionar para a vantagem daqueles que buscam a liberdade. A estraté-
gia é às vezes chamada de abordagem da “instituição paralela”. Insti-
tuições paralelas como a Igreja e o Estado podem atuar como baluartes
contra o poder um do outro, permitindo que os indivíduos respirem mais
profundamente na divisão. O conceito de santuário da igreja estava tra-
dicionalmente disponível para criminosos e escravos fugitivos, por
exemplo, embora não fosse oferecido de forma confiável. Por outro

99
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

lado, pessoas com crenças religiosas ou políticas “erradas” às vezes po-


dem escapar da perseguição fugindo para o santuário de uma área poli-
ticamente mais amigável.
A estratégia da instituição paralela é empregada todos os dias em
todo o mundo. Na América, as pessoas se mudam de estados com altos
impostos para estados com poucos ou nenhum imposto. Os ricos britâ-
nicos se mudam para paraísos fiscais. Os aficionados da maconha se
mudam do Texas, com suas leis draconianas sobre drogas, para o Colo-
rado, onde a maconha é legal. Em todo o mundo, as pessoas fogem por
suas próprias razões.
A liberdade não se beneficia da homogeneização da lei governa-
mental, mas da presença de alternativas. A federalização da lei sobre
criptomoedas para eliminar a inconsistência também elimina a capaci-
dade dos usuários de se mudarem para qualquer jurisdição estadual que
seja mais favorável ao seu propósito. A federalização da lei também
expande o governo para áreas que ainda não são abordadas no nível
estadual; isso inclui controle de fronteira e alfândega. A consistência
pode trazer clareza, mas ela não traz escolha. Outra palavra para con-
sistência na lei é a palavra “centralização”.

O que é a S.1241?

S.1241 foi introduzido no Comitê do Senado secretamente. Um


bitcoiner atencioso notou que a reunião do Judiciário do Senado havia
sido listada na página oficial às 10h do dia 28 – o mesmo dia da audi-
ência – depois de ser adicionada à página da Audiência às 18h. na noite
anterior. Essa manobra efetivamente impediu a cobertura da mídia,
feedback do público ou protestos. Ações para controlar a cripto são pro-
váveis de seguir esse padrão – abrupto, invisível e inesperado. A S.1241
pode ser vista como um modelo de como os governos pretendem pro-
ceder. Para onde os EUA vão, grande parte do mundo vai.
A S.1241 procura emendar o Código 31 § 5312, que trata das de-
finições e sua aplicação a dinheiro e finanças. Parece seco, mas o im-
pacto seria dramático. O objetivo do projeto de lei é incluir “moedas
digitais” na definição de “instrumentos monetários” e incluir “qualquer
corretora digital ou trocador de moeda digital” na definição de “insti-
tuição financeira”. $10.000 é o valor acionante da lei. Nos EUA.
$10.000 aciona uma declaração pessoal na margem; é o ponto em que
as instituições financeiras completam um relatório de moeda exigido

100
O Governo Leva a Cripto a Sério

pelo estado que pode fazer com que as contas sejam congeladas ou con-
fiscadas, independentemente de haver evidência de um crime

A S.1241 é uma corda apertada

Seção 2: “Transporte ou Transbordo de Cheques em Branco ao


Portador” declara que qualquer cheque entrando ou saindo dos EUA
que seja “extraído em uma conta contendo mais de US$ 10.000” e não
tenha um valor em dólar especificado é “valorizado acima de
US$ 10.000 para fins de relatório”. Visto que a cripto pode ser difícil
de se ensaiar e raramente tem um valor em dólar especificado, o "valor
sem dólar" permite que os agentes alfandegários avaliem a cripto no
valor registrável.
Seção 3: “Aumentar as penalidades para o contrabando de di-
nheiro a granel” aborda a ocultação de $10.000 ou mais em moeda ou
instrumentos monetários ao cruzar a fronteira. A pena máxima é de dez
anos de prisão com multas aumentando em um valor não especificado.
Quando o estado pune uma pequena ofensa de maneira draconiana, isso
significa que as autoridades não têm outra solução para a situação senão
o cano de um fuzil.
Seção 4: A “Seção 1957 Violação Envolvendo Fundos Combina-
dos e Transações Agregadas” trata da “transferência de produtos crimi-
nais […] Sem a necessidade de demonstrar” intenção criminosa. Duas
brechas existentes seriam fechadas. 1) $10.000 em fundos nos quais di-
nheiro supostamente sujo é misturado com dinheiro limpo tornam-se
$10.000 de dinheiro sujo. 2) Uma série de transações abaixo de $10.000
que estão “intimamente relacionadas no tempo, a identidade das partes,
a natureza das transações ou a maneira como são conduzidas” atendem
coletivamente ao limite de $10.000. O dinheiro legal que está na pre-
sença de dinheiro “criminoso” é culpado por cumplicidade, permitindo
que os funcionários confisquem tudo. Cripto não declarada ou decla-
rada incorretamente torna toda a riqueza – seja cripto ou não – um alvo
fácil.
Seção 5: “Acusação de lavagem de dinheiro como um curso de
conduta” simplifica o processo de acusação de uma pessoa por lavagem
de dinheiro e inclui “conspirações para violar […] [a] proibição das em-
presas que transmitem dinheiro não licenciado são rotuladas enquanto
conspirações de lavagem de dinheiro”. Planos de transmissão de cripto
podem ser punidos como se o ato tivesse ocorrido. Não está claro se os

101
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

co-conspiradores também serão acusados ou terão seu dinheiro confis-


cado.
Seção 6: “Empresas de serviços financeiros ilegais” torna crime
para empresas não registradas enviar “receitas para o exterior”. O des-
conhecimento da necessidade de registro não é defesa. O termo “negó-
cio de transmissão de dinheiro” é substituído por “negócio de serviços
monetários” para incluir “entidades […] como caixas de cheques” que
“não transmitem dinheiro”. As penalidades e multas aumentam.
Seção 7: “Lavagem de dinheiro oculta” aplica-se a “entregadores
ou mulas”. A Suprema Corte decidiu no passado que um réu precisa
saber que o transporte de fundos é clandestino e porque os fundos estão
sendo “transportados” para que um entregador seja culpado de um
crime. Esses requisitos são diluídos ou eliminados. Novamente, igno-
rância não é uma defesa.
Seção 8 “Congelamento de contas bancárias de pessoas presas
pela movimentação de dinheiro através das fronteiras internacionais”.
Uma retenção de 30 dias é instituída nas contas dos acusados e pode ser
estendida “por uma boa causa”. Isso parece se aplicar ao valor total de
uma conta.
Seção 9: “Proibir a lavagem de dinheiro por meio de Hawalas,
outros sistemas informais de transferência de valor e transações estrei-
tamente relacionadas” redefine o que constitui um crime de lavagem de
dinheiro quando envolve “um conjunto de transações paralelas ou de-
pendentes”. Todos seriam considerados “um único plano ou arranjo”, o
que poderia levar a transação coletiva a níveis passíveis de ação judi-
cial.
Seção 10: “Restaurar a autoridade de escutas telefônicas para cer-
tas infrações de lavagem de dinheiro e falsificação” permite que o es-
tado monitore as pessoas suspeitas de atividade criminosa.
Seção 11: “Aplicando o Estatuto Internacional de Lavagem de Di-
nheiro à Evasão Fiscal” define o uso de contas estrangeiras para sone-
gação de impostos como lavagem de dinheiro. Como a cripto flui tão
facilmente através das fronteiras, os usuários tendem a frequentar cor-
retoras “estrangeiras” – uma prática que pode ser rotulada de “evasão
fiscal”, a menos que se prove o contrário.
Seção 12: “Conduta em auxílio à falsificação” inclui o uso de no-
vas tecnologias, “materiais, ferramentas ou maquinário”. Esta disposi-
ção visa especificamente a criptomoeda, o dinheiro digital e as ferra-
mentas que fornecem privacidade a eles.

102
O Governo Leva a Cripto a Sério

Seção 13: “Dispositivos de acesso pré-pago, cartões de valor ar-


mazenado, moedas digitais e outros instrumentos semelhantes” altera a
lei atual para incluir explicitamente “qualquer corretora digital ou tum-
bler de moeda digital”, bem como qualquer “emissor, resgatador ou
caixa” de uma “moeda digital”. Os fundos armazenados em formato
digital estão explicitamente sujeitos a requisitos de relatórios de lava-
gem de dinheiro.
Seção 14: “Intimações Administrativas para Casos de Lavagem
de Dinheiro” expande a disponibilidade e facilidade de intimações ad-
ministrativas.
Seção 15: “Obtenção de Registros Bancários Estrangeiros de
Bancos com os EUA. Contas Correspondentes” fortalece “essa ferra-
menta de investigação existente”. Bancos estrangeiros podem ser inti-
mados para registros relacionados a qualquer “ação de confisco civil” e
podem ser punidos por descumprimento. Relembre-se: A S.1241 inclui
“qualquer cambiador digital ou tumbler moeda digital” na definição de
“instituição financeira”, o que deixa as moedas estrangeiras vulneráveis
a intimações.
Seção 16: “Danger Pay Allowance” fornece compensação espe-
cial para uma ampla gama de agências de aplicação da lei. Não está
claro o que constitui “perigo”, mas, presumivelmente, as agências terão
interesse em definir situações de uma maneira que atraia mais financi-
amento.
Seção 17: “Esclarecimento da Autoridade do Serviço Secreto
para Investigar Lavagem de Dinheiro” expande a autoridade policial.
Seção 18: A “Proibição de Ocultação de Titularidade de Conta”
torna crime que uma pessoa “oculte, falsifique ou deturpe consciente-
mente, de ou para uma instituição financeira” sua identidade ou “fato
relativo à propriedade ou controle de uma conta ou ativos mantidos em
uma conta.” Isso é particularmente relevante para usuários de cripto que
rotineiramente empregam anonimato ou pseudonimato. Torna-se um
crime não revelar identidades ou transferências específicas na block-
chain.
Seção 19: A “Proibição de Ocultação de Fonte de Ativos em Tran-
sações Monetárias” permite que o governo busque ativos mesmo que a
pessoa não seja acusada de um crime. Em vez disso, seu dinheiro pode
ser confiscado simplesmente porque sua fonte não é declarada ou não é
manifesta.

103
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

O advogado Ballard Spahr explica: “Se aprovado em sua forma


atual, a S.1241 ironicamente levará ao único tipo de ofensa que o Con-
gresso historicamente não tem permitido, construir um pretexto na apli-
cação das leis de lavagem de dinheiro – ou seja, tratar como tal a fraude
fiscal “comum”, que não envolve receitas ilegais – e virar as coisas de
cabeça para baixo. Ou seja, as transações que promovam um crime fis-
cal, desde que envolvam uma transação transfronteiriça, serão o único
tipo de transação que pode constituir um crime de lavagem de capitais
quando os rendimentos representarem fundos inteiramente legais.”
Aqueles que desejam se preparar contra a repressão vindoura de-
vem estudar a S.1241.

Protegendo as pessoas de sua liberdade

Lavagem de dinheiro e evasão fiscal são duas justificativas que o


estado proclama quando tenta controlar as criptos. Indiscutivelmente,
essas justificativas amplas e vagas não são vistas com simpatia geral,
porque muitas vezes parecem um flagrante roubo monetário.
Outras justificativas são mais bem-sucedidas. A comunidade
cripto, argumenta o governo, está repleta de traficantes de drogas, chan-
tagistas, traficantes de sexo, produtores de pornografia infantil, trafi-
cantes de armas e outros malfeitores. O estado aponta a “dark web”
como prova dessa perfídia. Esta é a parte da web que é acessada apenas
por software especial, permitindo que os usuários permaneçam anôni-
mos ou não rastreáveis. Diz-se que o controle de criptomoedas é neces-
sário para proteger as pessoas do crime na dark web. Ao fazê-lo, o es-
tado argumenta que está protegendo usuários de drogas vulneráveis,
mulheres e crianças exploradas, vítimas de armas, pagadores de impos-
tos obedientes, cidadãos cumpridores da lei e uma lista de outras “víti-
mas” dos bandidos monetários.
Existem inúmeras maneiras de refutar essa afirmação, incluindo
o fato de que ela é totalmente falsa. Alguns usuários de cripto são, sem
dúvida, criminosos violentos; o mesmo acontece com algumas pessoas
que usam dinheiro e cartões de crédito. Criptos são moedas e métodos
de pagamento. Como qualquer outra coisa útil na vida, é uma ferra-
menta que pode ser empregada para bons ou maus propósitos. Mas a
esmagadora maioria das pessoas com cripto ou com dinheiro são seres
humanos pacíficos que estão sendo criminalizados por preferir um mé-
todo de pagamento em detrimento de outro. A justificativa para isso se

104
O Governo Leva a Cripto a Sério

resume à alegação de que suas escolhas econômicas são perigosas para


o bem-estar público.
Reprimir práticas econômicas supostamente exploradoras, mas
não violentas, é uma tremenda violação dos direitos das pessoas vulne-
ráveis; não os protege. Eu sei. Minha vida poderia ter sido arruinada por
uma medida destinada a evitar a assim chamada forma de exploração
econômica que repugna à maioria das pessoas – o trabalho infantil. Aos
16 anos, fugi de casa e morei na rua o menor tempo que pude. Recusei-
me a ir para um abrigo ou procurar ajuda do governo pelo mesmo mo-
tivo que muitos adolescentes fugitivos; quando os adolescentes prefe-
rem o relento à casa, significa que os adultos os traíram. A única segu-
rança é cuidar de si mesmo.
Eu tive mais sorte do que muitos. Eu mal tinha 16 anos, mas isso
significava que eu poderia trabalhar legalmente. Eu poderia ficar atrás
do balcão quente em um restaurante de fast food ou, no meu caso, po-
deria sentar-me no escritório de uma loja de móveis de propriedade fa-
miliar, onde eu fazia anos de papelada durante o dia e dormia em um
sofá no andar de baixo durante a noite. O dono me pagava um salário-
mínimo e me dava um lugar seguro para dormir. Como resultado, tra-
balhei muito mais do que as oito horas diárias pelas quais fui paga. Eco-
nomizei o suficiente para me mudar para uma pensão e, quando passei
para um trabalho de arquivamento em um banco, tive uma referência.
Meu futuro dependia de ter essas oportunidades.
E se eu fosse um mês ou um ano mais nova do que a idade legal
para trabalhar? O dono da loja não teria arriscado seu negócio me con-
tratando. Nem deveria. Ele estava certo em insistir em inspecionar e
xerocar minha identidade. antes de me oferecer o emprego; ele estava
certo em esperar até me conhecer um pouco melhor para me oferecer o
sofá do porão. Por que ele deveria colocar a renda e o futuro de sua
família em perigo para ajudar uma estranha? E foi isso o que ele fez;
ele não me explorou. Ele me ajudou.
Sem a capacidade de ganhar dinheiro legalmente, minha vida po-
deria ter acabado mal em vez de bem. Em nome do humanitarismo, a
lei teria trancado minha única porta para a sociedade comum, e teria
feito isso segundo seu próprio parâmetro arbitrário de justiça. Como eu
teria me alimentado então? Roubo, mendicância, trabalho sexual e trá-
fico de drogas vêm à mente. Mas eu queria um caminho para fora da
rua, não uma forma de fazer dela ou da prisão meu endereço perma-
nente.

105
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Fechar opções econômicas não violentas não protege as pessoas


vulneráveis. Assim como o aumento do salário-mínimo obrigatório
torna difícil encontrar emprego para quem está começando, as “prote-
ções” econômicas impedem que as pessoas vulneráveis possam ascen-
der. No meu caso, não poder me sustentar teria criado uma criminosa e
uma vítima, diminuindo o bem público. Se houver violência envolvida
em uma opção econômica, então trate a violência. Se não houver, então
deixe isso sozinho. Este princípio é a maneira de ajudar a todos que
querem ganhar seu próprio dinheiro e gastá-lo como bem entenderem.
O estado não protege as vítimas ou a sociedade tirando opções econô-
micas de pessoas que não causaram danos demonstráveis, mas que por
acaso se enquadram em uma categoria que é protegida ou vilipendiada.
Estranhamente, a resposta da lei a ambas as categorias é mais do
mesmo: negar direitos econômicos. Como uma adolescente fugitiva, eu
estava na categoria “protegida” e quase perdi meu direito de ganhar a
vida. Usuários de criptomoedas pacíficos estão na categoria “injuria-
dos”, e muitos podem ser destituídos do direito de reter o dinheiro que
ganharam.
Para beneficiar os vulneráveis e a sociedade, o estado não precisa
fazer nada além de sair do caminho. A frase francesa “laissez faire” é
mais frequentemente associada ao “capitalismo laissez-faire”. Diz-se
que se originou durante uma reunião de 1681 entre Jean-Baptiste Col-
bert, o Controlador-Geral de Finanças francês, e um grupo de empresá-
rios. Colbert perguntou como o Estado poderia ajudar os homens em
seus negócios. O chefe do grupo, M. Le Gendre, teria respondido: “lais-
sez nous faire” (deixe conosco). Deixe-nos em paz.

Uma segunda estratégia de controle: Cripto emitida pelo governo

Alguns estados planejam ou tentam emitir sua própria criptomo-


eda. A moeda digital emitida pelo Banco Central (CBDC) refere-se a
uma criptomoeda nacional emitida por um banco central. É a contrapar-
tida cripto de uma moeda fiduciária física, como o dólar americano ou
a libra esterlina.
É também uma ironia amarga. Um pulo do gato monetário que foi
projetado para minar o sistema financeiro está sendo redefinido para
servir ao status quo. Pelo menos, é isso que o status quo espera que
aconteça. Para ser justo, alguns líderes mundiais entendem que esse de-
senvolvimento não é possível. Putin de forma infame disse que uma

106
O Governo Leva a Cripto a Sério

criptomoeda nacional não é viável porque a criptomoeda é um fenô-


meno internacional. Outras nações estão explorando ativamente o de-
senvolvimento de CBDCs, no entanto. O Japão lançou o dinheiro digital
J-Coin, por exemplo. É uma moeda digital em vez de ser uma cripto-
moeda baseada em blockchain, mas serve ao propósito de aproximar o
Japão de uma sociedade sem dinheiro vivo; torna o rastreamento de
usuários de moedas digitais uma questão trivial; e permite que o estado
reprima usuários de criptomoedas reais com maior facilidade e menos
reação. Esses são três dos principais objetivos de uma moeda eletrônica
nacional.
As CBDCs podem parecer paralelos à cripto de livre mercado,
mas elas são anticripto. Considere apenas algumas das diferenças téc-
nicas:
• Bitcoin é descentralizado; As CBDCs centralizariam todos os as-
pectos da moeda digital, muitas vezes nas mãos de uma agência
ou sistema de agências que são fortemente regulamentadas.
• Bitcoin é peer-to-peer entre indivíduos; CBDCs seriam adminis-
tradas por terceiras partes confiáveis no pior sentido desse termo.
• Bitcoin é de código aberto; Os CBDCs seriam patenteadas, pro-
prietárias e não transparentes.
• Bitcoin é minerado; CBDCs seriam emitidas por uma autoridade
central.
• Bitcoin é limitado a 21 milhões de moedas; O limite das CBDCs
seria o que a autoridade desejasse.
• O Bitcoin está em uma blockchain transparente; CBDCs podem
não usar uma blockchain, e provavelmente não usariam.
• Os usuários de Bitcoin possuem suas próprias chaves privadas;
chaves privadas para CBDCs seriam de propriedade de uma ter-
ceira parte confiável que controlaria a riqueza.
• Bitcoin é anônimo; Os CBDCs rastreiam as identidades dos usu-
ários e como eles gastam a moeda.
• O Bitcoin corta a conexão entre a moeda e os bancos centrais; Os
CBDCs iriam cimentá-la.
As criptos de livre mercado e as CBDCs também têm objetivos
antagônicos. A criptomoeda torna obsoleto o status do banco central
como uma terceira parte confiável e elimina o monopólio do dinheiro.
As CBDCs são a tentativa do sistema de banco central de manter seu
status de terceira parte confiável e o monopólio monetário.

107
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

As criptomoedas de livre mercado e as CBDCs podem ter um ob-


jetivo em comum, no entanto: a eliminação final do fiat. Mas, nova-
mente, as razões são antagônicas. A cripto rejeita uma moeda corrupta
que rouba de pessoas honestas. As CBDCs querem resgatar o status quo
em benefício das elites financeiras criando uma fiat digital.

Por que o impulso para uma sociedade sem dinheiro?

O dinheiro congelado sempre foi o inimigo de governo. Em seu


artigo “Por que os governos odeiam o dinheiro”, o professor de econo-
mia Joseph Salerno escreve:

Agora, a razão dada por nossos governantes para suprimir


o dinheiro é manter a sociedade a salvo de terroristas, sone-
gadores de impostos, lavadores de dinheiro, cartéis de dro-
gas e outros vilões reais ou imaginários. O real objetivo da
enchente de leis restringindo ou até proibindo o uso de di-
nheiro é forçar o povo a fazer pagamentos através do sis-
tema financeiro. Isso permite que os governos expandam
sua capacidade de espionar e acompanhar as transações fi-
nanceiras mais privadas de seus cidadãos, a fim de extrair
deles até o último dólar de pagamentos de impostos que eles
alegam ser devidos.

O problema que as autoridades enfrentam: Quando o dinheiro sai


do banco e vai para os bolsos dos indivíduos, o governo perde a noção
de como é gasto. Os indivíduos podem comprar e vender com um ano-
nimato que bloqueia a cobrança de impostos, taxas e outras receitas para
o estado. O governo quer “resolver” isso. Sites de rastreamento de di-
nheiro podem registrar os números de série da moeda fiduciária, por
exemplo, e permitir que a circulação seja monitorada, ou seja, desde
que o número de série seja reinserido em todas as etapas. O sistema
requer um alto grau de cooperação improvável.
O impulso em direção à moeda fiduciária rastreável inevitavel-
mente falhará devido à falta de cooperação. Felizmente para governos
e bancos centrais, o dinheiro digital é um substituto perfeito para o di-
nheiro físico porque a rastreabilidade é incorporada ao projeto. Se os
governos conseguirem fazer o dinheiro digital funcionar, os dinheiros

108
O Governo Leva a Cripto a Sério

resultantes serão um pesadelo para a liberdade. Eles combinarão a efi-


ciência das criptomoedas com o totalitarismo do governo. O problema
da terceira parte confiável que o Bitcoin foi criado para eliminar estará
de volta com esteroides.
A hostilidade do estado ao dinheiro fará com que algumas nações
passem da moeda fiduciária física para a digital com entusiasmo. É pro-
vável que o processo se pareça com alguma versão do seguinte:
Primeiro: Um governo explora a possibilidade de dinheiro digital
enquanto remove gradualmente o dinheiro físico de circulação.
Segundo: Um banco de dados para moeda digital – provavel-
mente não baseado em uma blockchain – é escrito em código proprie-
tário e implementado de maneira não transparente.
Terceiro: Um dinheiro digital é emitido e vendido como uma al-
ternativa ao dinheiro e à cripto de livre mercado. Para encorajar sua
adoção, o governo regula as criptos de livre mercado que são levadas à
clandestinidade ou forçadas a fugir para climas mais amigáveis.
Quarto: A tributação automática é embebida na nova moeda digi-
tal. O rastreamento absoluto de cada unidade de moeda, que está ligada
a identidades reais, dá ao governo um controle sem precedentes sobre o
fluxo de riqueza.
Quinto: Bancos centrais inflacionam a oferta de moeda digital à
vontade, desvalorizando cada unidade em circulação. Isso inflige um
imposto enorme e oculto a todos os proprietários.
A CBDC também dá ao governo maior precisão na manipulação
da economia. Em um artigo intitulado “Por que os governos querem
uma moeda digital emitida pelo Banco Central”, o economista austríaco
Xiong Yue observa:

[D]ado que essas moedas digitais são programáveis, o go-


verno pode até controlar exatamente como gastar esse novo
dinheiro usando scripts. Por exemplo, se o governo planeja
subsidiar certas fazendas, digamos algumas fazendas de mi-
lho, para apoiar este setor da agricultura, eles podem adici-
onar diretamente uma certa quantia de dinheiro às carteiras
de algumas fazendas, por exemplo, 100 milhões de dólares
e programar esse dinheiro para ser enviado a certos comer-
ciantes de fertilizantes em um determinado momento, e que
cada um só possa gastar no máximo 10 milhões de dólares
por ano.

109
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Em suma, uma CBDC poderia facilitar um estado centralizado


mais eficiente. Isso dificilmente é uma coisa boa.
Outro item da agenda do governo e dos bancos centrais são as
taxas de juros negativas. Os juros negativos ocorrem quando os depo-
sitantes não recebem juros sobre o dinheiro mantido em suas contas; em
vez disso, eles pagam juros ao banco por reter seu dinheiro. Esse é uma
fábrica de dinheiro para os bancos. Também incentiva as pessoas a gas-
tar porque o dinheiro se desgasta se não for gasto, e os gastos do con-
sumidor parecem sustentar a economia.
A crise bancária de 2015 na Grécia é um exemplo de como os
juros negativos funcionam. Para evitar corridas bancárias, a Grécia im-
pôs uma sobretaxa de um euro por 1.000 euros em saques em dinheiro.
Salerno observa: “Não parece muito grande, mas o princípio em ação é
extremamente grande porque o que eles estão fazendo é quebrar a taxa
de câmbio entre uma unidade de depósitos bancários e uma unidade de
moeda.” Salerno continua: “Para facilitar os cálculos […] digamos que
a ‘sobretaxa’ grega é de dez dólares para cada 100 dólares sacados.
Agora, em vez de poder converter um euro em sua conta corrente em
um euro em dinheiro, sob demanda, você só poderá comprar um euro
em dinheiro gastando 1,10 euros em suas contas bancárias. Isso é uma
taxa negativa de 10% em algum sentido. […] Então, você realmente só
receberia noventa centavos para cada dólar que você quisesse sacar e
isso é muito significativo pois significa que será mais caro comprar um
item com dinheiro do que com depósitos bancários.” Previsivelmente,
as pessoas foram afastadas do dinheiro. Havia um incentivo para pagar
contas domésticas a partir de suas contas bancárias, o que tornava todos
os pagamentos rastreáveis.
O principal problema com um esquema de juros negativos para o
governo e os bancos centrais é que as pessoas manterão seu dinheiro
fora do sistema financeiro. Quantias grandes irão se manter além do
alcance do governo. Se, entretanto, o dinheiro digital for totalmente
adotado, então o governo pode insistir que as pessoas o usem em vez
de dinheiro digital para pagamentos tais como impostos. Isso significa
que a riqueza ficará presa no sistema financeiro.

A estratégia das corretoras centralizadas

110
O Governo Leva a Cripto a Sério

A raiz do problema com a moeda convencional é toda a con-


fiança necessária para fazê-la funcionar […] Temos de con-
fiar a elas [terceiras partes] nossa privacidade, confiar que
elas não permitam que ladrões de identidade [incluindo o
governo] drenem nossas contas.
– Satoshi Nakamoto

A única coisa a que as CBDCs não podem sobreviver é a compe-


tição de livre-mercado. É por isso que todo estado que busca uma
CBDC fará um esforço conjunto para eliminar ou aleijar as alternativas
de livre mercado. Um aspecto interessante dessa repressão é que existe
uma forma de cripto não estatal que a maioria dos governos tolerará:
moedas digitais emitidas por instituições financeiras licenciadas. Essas
moedas não são um desafio para o sistema bancário central porque as
instituições emissoras são regulamentadas para agir como se fossem
bancos afiliados. Corretoras licenciadas tornam-se o lobby externo do
sistema bancário central. O lobby imita o livre mercado de algumas ma-
neiras, mas não tem nenhuma relação real com ele.
Uma definição padrão de uma corretora centralizada: “As corre-
toras de criptomoedas centralizadas são plataformas online usadas para
comprar e vender criptomoedas. Eles são os meios mais comuns que os
investidores usam para comprar e vender reservas em criptomoedas.”
Uma corretora centralizada é um mercado para negociar ou converter
ativos por meio de um único local ou serviço. No entanto, a definição
não captura os problemas que as corretoras centralizadas apresentam ao
modelo Satoshi.
Mas, primeiro, quais são os problemas que as corretoras centrali-
zadas resolvem? Por que elas vieram a existir? Há uma demanda de
mercado para especular, negociar moedas e realizar outras transações
financeiras sofisticadas para as quais as estruturas peer-to-peer – corre-
toras descentralizadas – ainda não estão adequadamente equipadas. Há
também uma demanda por conveniência e acesso a cripto que não re-
quer conhecimento técnico ou esforço. Para alguns, as corretoras cen-
tralizadas também têm a familiaridade reconfortante dos bancos. Ou
elas preenchem um nicho ou então elas não seriam populares. Atual-
mente, elas dominam grande parte do mundo das criptos, com a maioria
dos usuários confiando às corretoras sua riqueza e privacidade.
O nicho ocupado pelas corretoras centralizadas vem da combina-
ção das funções de um mercado de ações com a de um banco. De muitas

111
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

maneiras, elas são semelhantes à Bolsa de Valores de Nova York. Moe-


das podem ser negociadas, vendidas e sacadas por moeda fiduciária, por
exemplo; o trading à margem, stop loss e empréstimos também estão
disponíveis. De outras maneiras, as corretoras centralizadas se asseme-
lham aos bancos tradicionais. Depois de comprar cripto de uma corre-
tora, muitos clientes escolhem deixar suas moedas em uma conta em
vez de transferi-las para suas carteiras privadas em seus próprios discos
rígidos. As corretoras centralizadas tornam-se terceiras partes confiá-
veis; isso significa que elas representam um perigo terrível para a ri-
queza e o bem-estar dos titulares de contas. Considere um aspecto do
risco. A maioria das corretoras centralizadas possuem as chaves priva-
das dos titulares das contas. Mas as chaves privadas são as criptos. As
moedas não possuem presença física, apenas algorítmicas. Quando uma
corretora controla as chaves, ela de fato é proprietária das moedas. O
cliente não tem nada mais do que uma promessa de acesso a elas sob
demanda, da mesma forma que os bancos prometem acesso a dinheiro
físico mediante solicitação de um titular de conta.
Recentemente, os riscos associados às corretoras centralizadas
aumentaram exponencialmente e por um motivo: as corretoras estão
cada vez mais cumprindo ou fazendo parceria com o estado para fazer
cumprir as leis e os requisitos de relatórios aos clientes. Um artigo da
Forbes de fevereiro de 2018 anunciou o inevitável em relação à maior
corretora centralizada do mundo.

Finalmente está acontecendo: A movimentada movimenta-


ção de documentos na batalha entre o Internal Revenue Ser-
vice (IRS) e a Coinbase, uma empresa que facilita transa-
ções de moedas digitais como Bitcoin e Ethereum, está
avançando. A Coinbase anunciou que notificou os clientes
afetados de que cumprirá uma ordem judicial em relação à
liberação de dados específicos.

2018 foi o ano em que as agências fiscais americanas levaram a


sério os lucros e reservas em criptomoedas. Governos de todo o mundo
estão observando a Coinbase fornecer dados sobre seus clientes, o que
quase certamente levará a auditorias e/ou processos judiciais de alto ní-
vel. Especificamente, a Coinbase está relatando todos os clientes com
transações de $20.000 ou mais em um único ano entre 2013 e 2015.

112
O Governo Leva a Cripto a Sério

Serão entregues identidades, nomes reais, datas de nascimento, endere-


ços e todos os registros de transações. A riqueza de dados está disponí-
vel porque a Coinbase, como qualquer outra corretora licenciada, está
em conformidade com as leis de Know Your Customer e Anti-Lavagem
de Dinheiro que destroem a privacidade financeira.
A Coinbase se tornou extremamente agressiva na coleta de infor-
mações e na verificação de identidades. A corretora usa a tecnologia de
reconhecimento facial, por exemplo, para comparar uma foto de rosto
em tempo real de uma webcam ou smartphone com qualquer docu-
mento de identidade enviado pelo candidato. Espere que a intrusão
agressiva se torne a norma para trocas centralizadas porque elas valori-
zam suas licenças e relacionamentos com o governo. Espere que elas
atuem como braços de coleta de dados do estado. O perigo não é apenas
o congelamento e confisco de contas, mas também os processos judici-
ais e a prisão dos titulares de contas. O IRS declara que “qualquer pes-
soa condenada por evasão fiscal está sujeita a uma pena de prisão de até
cinco anos e uma multa de até $250.000. Qualquer pessoa condenada
por apresentar uma declaração falsa está sujeita a uma pena de prisão
de até três anos e multa de até $250.000.”
Felizmente, a demanda do mercado para o mercado de ações e por
funções bancárias pode ser satisfeita (ou em breve será satisfeita) sem
sacrificar a privacidade e a segurança. Uma corretora descentralizada é
um mercado que não depende de serviços de terceiros. As negociações
são peer-to-peer; são transferências diretas entre pessoas que utilizam
um processo automatizado para facilitar a troca. Elas são isentas da ne-
cessidade de confiança. Elas são transparentes, com o software e suas
transações sendo de código aberto. Elas são Satoshi.
Uma corretora descentralizada permite que os indivíduos mante-
nham suas próprias chaves privadas, o que a torna um alvo menos atra-
ente para hackers. Também requer uma quantidade mínima de dados
pessoais ou financeiros para estabelecer uma conta e realizar comércio.
Muitas vezes, apenas um endereço de e-mail é solicitado e pode ser ge-
rado especificamente para registro, sem conexão com uma identidade
real.
As corretoras descentralizadas empregam uma ampla variedade
de estratégias para facilitar as transferências peer-to-peer. Alguns criam
tokens proxy; outros empregam um depósito de múltiplas assinaturas.
O banco peer-to-peer usa uma dinâmica do tipo leilão para facilitar em-

113
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

préstimos de um valor específico e a uma taxa acordada entre os mem-


bros. Os contratos inteligentes podem assumir as funções tradicionais
dos bancos. A Technology Review explica:
Alternar entre dinheiro fiduciário e criptomoeda exigirá um ponto
de troca tradicional no futuro próximo. Mas alguns tecnólogos dizem
que é possível um modelo alternativo para negociar criptomoedas que
daria às pessoas mais controle sobre sua riqueza. Suas metacorretoras
podem ser descentralizadas, eles dizem, usando uma blockchain. A
ideia depende especificamente dos chamados contratos inteligentes, có-
digo de software que pode ser armazenado em uma blockchain e confi-
gurado para controlar as transações programaticamente. Imagine, por
exemplo, que você queira enviar a seu amigo alguma criptomoeda au-
tomaticamente em uma data e hora específicas. Você pode usar um con-
trato inteligente para fazer isso.
A questão aqui é não defender uma tática de descentralização es-
pecífica. É oferecer uma noção das alternativas ricas e em evolução às
corretoras centralizadas. Muitas pessoas ainda escolherão uma corre-
tora centralizada porque as plataformas são fáceis de acessar e usar; eles
são sancionados pelo governo e isso significa respeitabilidade para al-
gumas pessoas; e oferecem as funções familiares e avançadas de um
mercado de ações. As pessoas têm todo o direito de fazer essa escolha
com seu próprio dinheiro, é claro. Mas para aqueles que valorizam a
privacidade, é uma alternativa inaceitável. (Mais sobre corretoras des-
centralizadas posteriormente).
Uma analogia ilustra a diferença gritante em como a privacidade
e os direitos se comportam em um sistema centralizado e descentrali-
zado: mídia social.
“’Quer enlouquecer?’ Aqui estão todos os dados pessoais que o
Facebook/Google coleta”. Esta é uma manchete de março de 2018 em
Zero Hedge. Os tipos de dados coletados são extensivos demais para
enumerar. Um exemplo: Os usuários de celulares Android que baixaram
aplicativos específicos do Facebook tiveram dados sobre suas chama-
das pessoais registradas pelo Facebook por anos.
Uma causa relativamente não discutida da hemorragia de privaci-
dade das mídias sociais e sua abreviação da liberdade de expressão é a
centralização de informações e discussões que acompanham as empre-
sas gigantes, como Facebook e Google. Grandes corporações formam
alianças de conveniência e lucro recíproco com o governo. Um artigo
intrigante no The Federalist pergunta: “As mídias sociais foram um

114
O Governo Leva a Cripto a Sério

erro?” O autor, Robert Tracinski, remonta aos anos 2000 – a era de ouro
dos blogs, quando todos, até suas avós, se expressaram através de blogs.
Tracinski escreve: “Parecia uma liberação. A era dos blogs ofere-
ceu a promessa de uma mídia descentralizada. Qualquer um poderia pu-
blicar e comentar as notícias e encontrar uma audiência. […] Estávamos
ignorando os antigos guardiões da mídia. E tivemos o controle sobre
eles! Nós postamos em nossos próprios sites. Tivemos boas discussões
sobre nossos campos de comentário, os quais nós moderamos.” Era um
turbilhão de liberdade de expressão, mas também era um bastião de pri-
vacidade porque os indivíduos mantinham o controle. O controle indi-
vidual de dados e expressão é liberdade.
Então as mídias sociais chegaram como um rolo compressor, e os
blogs familiares migraram seus diários e informações para o Facebook,
Google, Twitter e outras terceiras partes confiáveis. Assim como as cor-
retoras centralizadas, os gigantes da mídia social eram relativamente
fáceis de acessar e usar; eles ofereciam software e funções sofisticadas
que os blogueiros individuais não tinham conhecimento técnico ou di-
nheiro para implementar; as mídias sociais deslizaram perfeitamente
para os telefones celulares por meio de aplicativos que pareciam abrir
o mundo. Na realidade, eles fecharam a libertação pessoal.
Tracinski observa o resultado.

Alguns dos melhores e mais interessantes blogs tornaram-


se publicações on-line completas, mas muitos dos peque-
nos, peculiares e amadores blog de uma só pessoa se muda-
ram para as mídias sociais. Isso se mostrou como um grande
erro, porque a era da mídia social re-centralizou a mídia.
Em vez de um milhão de blogs – o que Glenn Reynolds,
famoso pelo Instapundit, chamou de “Exército de Davids”
– agora temos uma economia de mídia social controlada
principalmente por três grandes empresas: Twitter, Face-
book e Google.

O preço de centralizar a escrita pessoal tornou-se aparente. A po-


lítica esquerdista dos gigantes da mídia social significa que eles purgam
(suspenderam contas) ou puniram (contas limitadas) aqueles que têm
opiniões “erradas”. Isso é semelhante a bancos e outras instituições fi-
nanceiras que se recusam a lidar com pornografia, maconha ou indús-

115
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

trias de armas devido à pressão política do governo. Os “antigos guar-


diões da mídia” foram substituídos pelos puritanos igualmente intrusi-
vos do Vale do Silício. Embora ambos possam ser preferíveis à inter-
venção direta do governo, seus quase monopólios são reforçados por
privilégios fiscais, por regulamentação favorável e por financiamento
de impostos diretos. Em suma, eles podem não ser do governo, mas
certamente são comparsas do estado e devem sua lealdade a ele. Como
resultado, os indivíduos perderam o controle de seu próprio trabalho e
dados. Talvez seja mais correto dizer que eles o abandonaram.
Em nenhum lugar o preço da centralização da expressão pessoal
é mais gritante do que com os dados pessoais. Em retorno pela conve-
niência, tudo o que as mídias sociais pediam era conhecer e comercia-
lizar cada detalhe da vida dos clientes. O papel da centralização nesse
estupro da privacidade foi fundamental para sua eficácia.
A Privacidade é a linha de frente da defesa da liberdade indivi-
dual. A descentralização é a condição social sob a qual a privacidade
prospera. Ninguém pode ou deve dizer aos indivíduos qual estratégia
usar. Mas, se você valoriza privacidade e segurança, mantenha a priva-
cidade e descentralize.

116
SEÇÃO DOIS
O Imperativo da Privacidade
CAPÍTULO CINCO
Quando a Privacidade é Criminalizada,
Apenas os Criminosos têm Privacidade
“Eu cresci entendendo que no mundo em que eu vivia as
pessoas desfrutavam de uma espécie de liberdade para se
comunicarem umas com as outras em privacidade, sem se-
rem monitoradas, medidas, analisadas ou julgadas por essas
figuras e sistemas sombrios que vivem mencionando o
tempo todo na mídia.”
– Edward Snowden

Quero a seguinte mensagem escrita em minha lápide: “Eu vivi.


Eu morri. Agora cuide da sua maldita vida.” O que eu teria a esconder?
Tudo! Que é o mesmo que dizer: qualquer informação que eu seja obri-
gada a revelar são dados que eu me recuso a divulgar.
No entanto, uma questão fundamental paira sobre essa retórica
fervorosa e rebelde:

O que é Privacidade?

Uma resposta famosa vem de um artigo dos advogados america-


nos Samuel Warren e Louis Brandeis, que apareceu em uma edição de
1890 da Harvard Law Review. É uma das peças mais influentes na his-
tória da teoria jurídica ocidental. “The Right to Privacy” foi chamado
de primeiro apelo proeminente para a privacidade como um conceito a
ser consolidado na lei.
O artigo começa da seguinte maneira:

“QUE o indivíduo deve ter plena proteção pessoal e patri-


monial é um princípio tão antigo quanto o direito comum;
mas foi considerado necessário, de tempos em tempos, de-
finir novamente a natureza exata e a extensão de tal prote-
ção.”

Em outros lugares, a privacidade é definida como o direito de ser


deixado em paz.

119
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

O artigo defende a privacidade como um direito humano “funda-


mental” ou básico sobre o qual repousam todos os outros direitos. “O
direito de propriedade em seu sentido mais amplo, incluindo todos os
direitos e privilégios e, portanto, abrangendo o direito a uma personali-
dade inviolável, justifica sozinho aquela ampla base sobre a qual pode
repousar a proteção que o indivíduo exige”. A privacidade é um pré-
requisito para todos os outros direitos: liberdade de expressão, sexuali-
dade, liberdade de consciência e segurança financeira dependem disso,
porque nenhum direito pode ser exercido na presença de storm troopers
batendo à porta. E por isso o direito de trancar essa porta é essencial.
Curiosamente, o artigo de Brandeis-Warren foi uma resposta a de-
senvolvimentos tecnológicos que ameaçavam a privacidade pessoal.
Um dos desenvolvimentos foi a câmera portátil, com a qual jornalistas
fotografavam pessoas importantes em locais que antes eram privados,
como restaurantes, casamentos e funerais. Hoje, o foco da proteção da
privacidade mudou dos jornalistas para o estado, para o qual “privaci-
dade” é sinônimo de “sigilo”. A privacidade não é mais um direito, mas
uma provável causa de suspeita. A mudança na definição reflete o quão
poderoso o estado se tornou desde a década de 1890 – e o quão enfra-
quecido se tornou o indivíduo.
Embora a privacidade tenha sido um tema tanto no direito consu-
etudinário quanto nas sociedades ocidentais, seu status legal tem sido
vago. De fato, antes do “Direito à Privacidade”, a proteção legal da pri-
vacidade era fragmentada em questões específicas. Leis contra invasão
existiam, por exemplo, mas a codificação do conceito amplo de priva-
cidade não existia.
Afinal, o que significa o “direito de ser deixado em paz”? Grande
parte deste capítulo explora uma resposta.
Todo mundo sabe que a bolsa de uma mulher não deve ser rou-
bada, nem sua janela espiada e tão pouco sua casa assaltada. Esses são
obviamente e intuitivamente casos de violações de privacidade, mas
não são o tipo de violação que os usuários de criptomoedas provavel-
mente enfrentarão. Os usuários de criptos lidarão com suas informações
pessoais sendo extraídas e monitoradas – muitas vezes secretamente –
para serem usadas contra eles de alguma maneira. Com o estado, o ob-
jetivo da extração de dados e do monitoramento é o controle social, a
tributação, o confisco e a prisão. Com criminosos, o objetivo é o roubo,
a chantagem e a extorsão.

120
Quando a Privacidade é Criminalizada,
Apenas os Criminosos têm Privacidade

Espiar pela janela do quarto pode ser uma violação óbvia de pri-
vacidade, mas e os bisbilhoteiros que acessam informações públicas,
como as incorporadas à blockchain? O registro financeiro aberto da blo-
ckchain permite que partes indesejadas monitorem transações financei-
ras que os usuários tornam públicas voluntariamente. Se um bisbilho-
teiro analisa o padrão de transferências e desmascara a identidade de
um usuário, então a privacidade foi violada? A blockchain é uma rede
pública, onde as pessoas trocam voluntariamente de uma maneira que
sabem ser transparente e registrada. Espionagem é semelhante a ouvir
pessoas que estão falando audivelmente em público. Mas será que ouvir
é um ato culposo, especialmente quando feito por agentes do estado ou
outros maus agentes? De fato, o estado e outros criminosos usam a in-
formação de maneira maléfica, mas essa questão é irrelevante para de-
finir se o ato de simplesmente ouvir é errado em si.
Avaliar essa questão significa colocar a privacidade no contexto
de outros direitos humanos.

O contexto dos direitos humanos à privacidade

Murray Rothbard afirma que todos os direitos humanos são direi-


tos de propriedade. Ou seja, todos os direitos se resumem à questão de
quem controla adequadamente o uso e o descarte de uma coisa, seja a
coisa uma ferramenta, uma ideia ou um corpo humano. É sempre pos-
sível usar a força para usurpar o controle de qualquer coisa, é claro, mas
a questão de quem é o proprietário adequado permanece.
Rothbard responde: O proprietário é o indivíduo que detém o tí-
tulo válido da coisa. A verdadeira propriedade não é uma questão de
puro controle, que pode ser adquirido através da força bruta, mas de
controle legítimo, que vem da aquisição pacífica do título. Não pode
haver título mais óbvio ou válido do que aquele que os indivíduos têm
sobre seus próprios corpos. De fato, tentar negar esse título se reduz à
obscenidade ou ao absurdo. Existem apenas três posições possíveis so-
bre quem possui o corpo de uma pessoa: a própria pessoa (liberdade),
outra pessoa (escravidão), ou é bagagem não reclamada. Aqueles que
valorizam a liberdade e os direitos humanos defendem a autoproprie-
dade.
Novamente, a definição clássica de autopropriedade: todo ser hu-
mano tem jurisdição moral e lógica sobre seu próprio corpo e o uso

121
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

pacífico dele, incluindo os produtos de seu trabalho. Nenhum direito é


mais fundamental do que a autopropriedade, porque ela é a própria
fonte de todos os outros direitos. A liberdade de consciência e de ex-
pressão só existe porque os indivíduos têm a capacidade de pensar e
falar, e ambos são aspectos do corpo humano. O direito de autodefesa
existe apenas porque as pessoas são donas de seus corpos e têm o direito
de proteger sua propriedade. O outro lado dos direitos é o dever. Assim
como todos os outros seres humanos são moral e logicamente proibidos
de iniciar a força contra você, você tem o dever de desistir de iniciar a
força contra eles.
Se existe um direito à privacidade, então ele deve estar enraizado
na autopropriedade. Deve ser o que se chama de direito natural. E, se a
privacidade é um direito, outras pessoas têm o dever de desistir de violá-
la.
A questão não é trivial. A propriedade de si mesmo e a privaci-
dade estão ambas sob o constante ataque do maior bisbilhoteiro da his-
tória: o estado. O estado, com extremo preconceito, pretende usar os
dados que coleta contra as pessoas. Em seu livro, Seeing Like a State:
How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed, o
cientista político James C. Scott comenta o papel que apenas uma forma
de coleta de dados desempenhou na ascensão do estado moderno: o
censo. “Se imaginarmos um estado que não tem meios confiáveis de
enumerar e localizar sua população, medir sua riqueza e mapear suas
terras, recursos e assentamentos, estamos imaginando um estado cujas
intervenções nessa sociedade são necessariamente brutas.” O estado
atual é sofisticado e complexo.
Informação é poder, tanto para o indivíduo quanto para o estado.
Uma razão pela qual o estado consegue adquirir dados é que a privaci-
dade é um conceito mal definido que as pessoas não entendem como
parte do contexto mais amplo dos direitos. Outra razão é que a informa-
ção é efêmera e parece menos propensa à posse do que uma mesa ou
um carro.
A avaliação de se a privacidade de dados é um direito natural de-
pende de duas questões. Como um prelúdio para considerá-las, pondere
se você tem o direito de propriedade sobre seus pensamentos e sua ex-
pressão, incluindo a expressão de informações pessoais. Essa ampla in-
dagação é fundamental para a questão da propriedade intelectual, que é
a afirmação de que as ideias e suas expressões podem ser possuídas. As

122
Quando a Privacidade é Criminalizada,
Apenas os Criminosos têm Privacidade

pessoas chegam a conclusões dramaticamente diferentes, e a proprie-


dade intelectual é frequentemente reivindicada como um direito natural.
A mesma questão confronta a privacidade, que também aborda a pro-
priedade das informações pessoais e a expressão delas.
Pergunta # 1: Quem é o dono do que está na sua mente?
A maioria das pessoas declararia em voz alta: “ninguém é dono
do que está em minha mente!”. Seus pensamentos são seus pela mesma
razão que seus dedos e olhos; eles são parte de seu corpo, e seu corpo é
quem você é. É você. Ninguém mais tem o que clamar ao reivindicar
jurisdição sobre seu corpo. Mas e se o pensamento em sua mente for
uma fórmula química originada por um colega de trabalho e escrita em
um quadro-negro durante uma palestra que você assistiu? A fórmula
agora faz parte da sua mente, assim como da dele e, se ele pode reivin-
dicar o direito de usá-la porque faz parte do corpo dele, você não deve-
ria poder fazer a mesma reivindicação?
Nesse ponto, o argumento do colega de trabalho geralmente muda
de terreno. Ele originou a ideia, diz ele; a fórmula é um produto de seu
trabalho, e possuir os produtos de seu trabalho é uma extensão da pro-
priedade de si mesmo. Não importa se a ideia está em sua mente agora;
é ideia dele. Ele a encontrou primeiro.
Deixando de lado o fato de que o colega de trabalho provavel-
mente utilizou as ideias e o trabalho de centenas de pessoas antes dele
– ou seja, a fórmula também é produto do trabalho deles – vamos supor
que ele adicionou um refinamento totalmente original. O que é que tem?
No instante em que você vislumbrou a fórmula, o conceito mudou. A
fórmula foi integrada a todos os outros conceitos que você tem sobre
química, tecnologia e vida em geral. A fórmula em sua mente é ligeira-
mente ou consideravelmente diferente daquela no quadro-negro ou na
mente de seu colega de trabalho. Como então ele pode reivindicar di-
reitos de propriedade em uma ideia baseada no trabalho anterior de ou-
tras pessoas enquanto nega seus direitos de propriedade em uma ideia
baseada em seu trabalho anterior?
A linha de chegada do cenário: ninguém tem direito ao que está
em sua mente. O que é chamado de privacidade nesta circunstância se
reduz à autopropriedade. Você é dono daquilo que está sob sua pele,
incluindo as suas ideias. O libertário do século XIX James Walker
afirma: “Meus pensamentos são minha propriedade, assim como o ar
em meus pulmões é minha propriedade […]” Quando você expira, no

123
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

entanto, você perde todo o direito de propriedade do ar expelido. O


mesmo vale para ideias ou informações que são lançadas na esfera pú-
blica; você perde todas as reivindicações de privacidade, exceto e a me-
nos que haja um acordo prévio de confidencialidade em vigor. Nessas
circunstâncias, sua reivindicação de privacidade ou propriedade de in-
formações não é uma questão de direitos naturais, mas de direitos con-
tratuais.
O paralelo com as informações financeiras: os usuários de cripto
perdem qualquer expectativa razoável de privacidade ou propriedade
das informações quando elas entram na blockchain ou em outra esfera
pública. Um bisbilhoteiro que acessa os dados nada mais faz do que ver
aquilo que é de conhecimento e acesso público. O bisbilhoteiro pode
usar o conhecimento de forma que prejudique um usuário, mas o uso da
informação é uma questão diferente de como ela foi obtida.
Pergunta #2: Como os dados foram obtidos?
A resposta a esta pergunta é distinguir entre a espionagem legí-
tima e o ato criminoso. Bisbilhoteiros legítimos não fazem mais que
acessar informações divulgadas publicamente ou livremente e, ainda
que sejam inconvenientes, de forma alguma violam direitos. Por outro
lado, bisbilhoteiros criminosos violam direitos de propriedade privada
para acessar dados. Tocar em um telefone ou computador é como inva-
dir a casa de uma pessoa para vasculhar um arquivo ou uma mesa. Um
recenseador que ameaça uma pessoa que não responde com multas ou
prisão está usando meios criminosos para acessar informações. O teste
decisivo para distinguir entre espionagem legítima e espionagem crime
é se a aquisição de dados envolve uma violação de direitos.
Rothbard argumenta que “não existe direito à privacidade, exceto
o direito de proteger a propriedade de uma invasão”. Em outras pala-
vras, não há direito natural à privacidade per se. A informação é privada
em virtude de estar protegida por outros direitos. Uma pessoa tem o
direito de ocultar informações, por exemplo, porque o direito à liber-
dade de expressão inclui o direito de permanecer em silêncio, e quebrar
um determinado silêncio requer ameaças ou violência. Da mesma
forma, uma pessoa tem o direito de fechar a porta atrás de si, e as infor-
mações nos papéis em sua mesa são protegidas de intrusos por seu di-
reito de propriedade sobre a casa. A privacidade da informação é prote-
gida pelo muro de direitos que a cerca, mas isso não faz da privacidade
um direito em si.

124
Quando a Privacidade é Criminalizada,
Apenas os Criminosos têm Privacidade

Por outro lado, se uma pessoa grita informações pessoais em


praça pública ou se joga seus papéis pela janela ao vento, seus dados
não estão mais protegidos por seus direitos de propriedade. A pessoa os
colocou na esfera pública e abandonou a reivindicação de controle ex-
clusivo.
A abordagem Satoshi da privacidade tem um pé em ambos os
mundos – abandono público de informações junto com privacidade pro-
tegida por direitos naturais. Uma blockchain transparente funciona com
usuários anônimos ou pseudônimos que empregam chaves públicas e
privadas. Os dados sobre as transações foram jogados ao vento, mas as
identidades são protegidas por outros direitos. Em outras palavras, des-
mascarar a identidade de alguém ou sua chave privada requer uma vio-
lação dos direitos de propriedade que os cercam e protegem – o direito
da pessoa ao seu computador, por exemplo. A propriedade consiste no
direito exclusivo de controlar e usar uma coisa; se o estado acessar um
computador sem considerar o consentimento do proprietário real, então
o estado está usurpando a propriedade do computador e violando des-
caradamente os direitos do proprietário real.

Uma mudança dramática no paradigma da privacidade

A abordagem Satoshi pode confundir algumas pessoas. Enquanto


elas se apegarem ao velho paradigma de privacidade – isto é, privaci-
dade é igual a ocultação – a transparência da blockchain continuará a
soar como uma sentença de morte. Mas o novo paradigma da privaci-
dade é a transparência das informações e a proteção da identidade. O
foco mudou de informações sobre atividades para informações sobre
nomes verdadeiros.
A transparência das transações serve a um propósito vital. Por
uma questão de honestidade e eficiência, a blockchain publica todas as
suas atividades. A proteção dos Nomes Verdadeiros também serve a um
propósito vital. Por uma questão de liberdade pessoal, os participantes
mascaram suas identidades à vontade e com facilidade. A blockchain
exige a verificação de identidade tanto quanto uma mercearia exige o
registro dos nomes daqueles que compram leite nela. Que todos vejam,
que todos verifiquem a veracidade da transação. Que ninguém exija in-
formações pessoais sobre quem é o porquê da troca. Tanto a honestidade

125
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

quanto a privacidade são preservadas, mas o vínculo entre uma transa-


ção e um Nome Verdadeiro é quebrado. O restabelecimento forçado
desse vínculo ameaça a riqueza e a liberdade dos usuários.
No passado, o foco do estado era a divulgação ou vigilância for-
çada de informações sobre atividades, porque o estado havia encurra-
lado a “indústria da identidade”. Desde o nascimento, as pessoas são
registradas, certificadas, gravadas e processadas de acordo com os nú-
meros e outros identificadores emitidos pelo estado. David Friedman
observa em seu ensaio “The Case for Privacy”, “É difícil passar pelo
mundo sem deixar rastros. Em algum lugar há um registro de todos os
carros que comprei, todos os formulários de impostos que paguei, dois
casamentos, um divórcio, o nascimento de três filhos, milhares de pos-
tagens em fóruns on-line sobre uma ampla variedade de assuntos, qua-
tro livros publicados, registros médicos e muito mais.”
A identidade e o Nome Verdadeiro dos indivíduos são muito mais
conhecidos do que suas interações, muitas das quais podem ocorrer em
segredo e silêncio. O modelo Satoshi inverte essa situação. Ele torna
todas as interações públicas com todas as identidades permanecendo
privadas a critério dos indivíduos. O estado não controla mais a identi-
dade e, sem esse controle, o acesso a todas as outras informações têm
pouco valor. E o estado sabe muito bem disso.
A era digital mudou o Zeitgeist cultural, político e psicológico da
privacidade. “Cuide da sua maldita vida!” já foi uma atitude respeitada,
mas o estado lentamente corrompeu a ideia de que pessoas inocentes
precisam de privacidade. Eis o novo Zeitgeist: apenas aqueles que têm
algo a esconder se recusam a responder a perguntas ou a serem obser-
vados. “Só os criminosos temem a vigilância do estado” é uma resposta
comum para quem defende a privacidade hoje. Mas toda pessoa pacífica
é agora um criminoso com algo a esconder. Por quê? Porque todos ul-
trapassaram o limite de velocidade, usaram drogas ilegais, contraban-
dearam bebidas baratas ou cigarros através da fronteira, fizeram acrés-
cimos “não autorizados” a um imóvel, enganaram um agente do estado,
sonegaram sua renda ou violaram uma das dezenas de milhares de leis
estatais que criminalizam o comportamento inofensivo de maneira oni-
presente. A maioria das pessoas não está ciente de quantas leis eles que-
bram no decorrer de uma vida cotidiana pacífica.

126
Quando a Privacidade é Criminalizada,
Apenas os Criminosos têm Privacidade

Em seu livro Three Felonies A Day: How the Feds Target the In-
nocent, o advogado Harvey Silverglate detalha como o americano mé-
dio acorda e segue sua rotina diária, sem saber que provavelmente co-
meterá vários crimes federais ao fazê-lo. O número de crimes federais
aumentou exponencialmente nas últimas décadas e os promotores agora
podem escolher entre uma infinidade de crimes vagamente definidos
para acusar indivíduos pacíficos de todas as origens, profissões e status.
Uma combinação de leis amplas e mal definidas, a guerra às drogas e
promotores de carreira que são imunes às consequências transformaram
a justiça em uma burocracia livre de consciência, onde parece não haver
espaço para a inocência ou culpa. Silverglate observa um procedimento
padrão para os burocratas da justiça:

Os promotores são capazes de estruturar acordos de delação


premiada, de maneira que torna quase impossível para pes-
soas normais, racionais e calculistas se arriscarem a ir a jul-
gamento. A pressão sobre réus inocentes para se declararem
culpados e “cooperar” testemunhando contra outros em
troca de uma sentença reduzida é enorme – tão grande que
essas testemunhas que cooperam muitas vezes deixam de
dizer a verdade, dizendo, em vez disso, o que os promotores
querem ouvir.

O livro de Silverglate evoca uma assustadora citação infame da


era soviética, dita pelo desprezado Beria, chefe da polícia secreta de
Stalin. “Mostre-me o homem, e eu encontrarei o crime para você.”
Quando alguém lhe perguntar: “O que você tem a esconder?”, você
deve responder: “De Beria e sua laia, tudo, especialmente minha iden-
tidade (o homem).”
Ou, como Ayn Rand explicou certa vez: “O único poder que qual-
quer estado tem é o poder de reprimir os criminosos. Bem, quando não
há criminosos suficientes, eles os criam. Declara-se que tantas coisas
são crime que se torna impossível para os homens viverem sem infringir
as leis.”
Os usuários de cripto que exigem privacidade são especialmente
vulneráveis a suposições culturais e políticas que favorecem fortemente
o controle estatal em vez da liberdade individual.
As fortes suposições contra a privacidade incluem:

127
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

• A presunção da inocência pertence ao estado, e não aos indiví-


duos.
• Um duplo padrão de moralidade é aplicado ao estado e aos indi-
víduos.
• A privacidade é equiparada à ocultação.

A Presunção da Inocência. O termo legal “presunção da inocên-


cia” às vezes é expresso pela frase latina “ei incumbit probatio qui dicit,
non qui negat”, que significa que o ônus da prova é do acusador, e não
do acusado. O acusado é presumido inocente até que se prove o contrá-
rio. A doutrina jurídica baseia-se na crença de que a maioria das pessoas
não são criminosas, de modo que a criminalidade não pode ser presu-
mida; ela deve ser demonstrada. A doutrina também reconhece um prin-
cípio fundamental da lógica: por ser impossível provar uma negativa, o
ônus da prova recai sobre a pessoa que faz uma afirmação positiva. Al-
guém pode alegar que você é um ladrão. E mesmo evidências massivas
de sua honestidade não dissiparão a acusação, porque você pode estar
mentindo sobre um delito passado ou ocultando evidências. É por isso
que o acusador é solicitado a especificar o que você roubou e a fornecer
provas do crime.
A presunção da inocência é a pedra angular do devido processo
legal e um muro de proteção contra processos arbitrários por parte do
estado. É uma característica definidora de uma sociedade livre em opo-
sição a uma totalitária. O renomado advogado britânico Sir John Clif-
ford Mortimer – mais conhecido como o criador do amado advogado
de defesa fictício Horace Rumpole – estava longe de ser o único a ver
a presunção da inocência como “o fio de ouro” que une a justiça.
Mas o fio de ouro foi rompido.
Em nome da segurança, o público perdeu a presunção da inocên-
cia mesmo na ausência de acusações. Agentes de fronteira e aeroporto
tiram impressões digitais, revistam, interrogam e ladram “Seus docu-
mentos!” para hordas enfileiradas. Indivíduos que não cumprem são au-
tomaticamente retirados da linha e processados como criminosos. Os
policiais exigem identidade e prendem aqueles que se recusam, inde-
pendentemente de a prisão ser legal ou não. Afinal, supõe-se que os
agentes estatais protejam a segurança e imponham a paz. Isso significa
que aqueles que resistem são contra a segurança e a paz. Poucas pessoas

128
Quando a Privacidade é Criminalizada,
Apenas os Criminosos têm Privacidade

perguntam de onde a imposição da lei obtém o direito de exigir obedi-


ência de pessoas que não estão causando danos. A presunção de inocên-
cia foi transferida dos indivíduos para os agentes estatais, o que inverte
a intenção original do conceito legal de proteger os indivíduos do es-
tado.
O princípio lógico de ser incapaz de provar uma negativa foi subs-
tituído pela falácia conhecida como “o argumento ou apelo à ignorân-
cia”. Aqui, “ignorância” refere-se à falta de evidência contrária – uma
situação considerada suficiente para provar a verdade de uma afirma-
ção. Em suma, uma acusação é verdadeira porque não se prova que seja
falsa. A criminalidade de um indivíduo torna-se um dado porque não é
refutada. Por que mais, pergunta o estado, ele se recusaria a cooperar
com as autoridades?
É difícil exagerar a importância da mudança na presunção da ino-
cência do indivíduo para os agentes estatais. Assim como a presunção
da inocência é o fio de ouro da justiça, a presunção da culpa para os
indivíduos é sua morte. Isso oblitera o devido processo e leva a socie-
dade diretamente para o totalitarismo. Esse é o significado político e a
consequência da “inocente” pergunta: “O que você tem a esconder?”. A
identidade emitida pelo estado é crucial para o processo. Depois que
seu Nome Verdadeiro é conhecido, então todos os outros controles so-
ciais se tornam possíveis.
Um duplo padrão de moralidade. Existem dois pesos e duas me-
didas em ação na sociedade – um para os indivíduos e outro para o es-
tado. O que é imoral para um indivíduo, tornou-se moral para o estado.
Se você pegar dinheiro de um vizinho sob a mira de uma arma, é um
ato de roubo pelo qual você é preso com justiça. Se um agente do estado
faz o mesmo, é um ato de tributação, pelo qual o malfeitor paga sua
“justa parte” dos ganhos e pelo qual o agente recebe um salário e uma
pensão. A moralidade moderna é agora definida por quem está reali-
zando o ato, não pelo ato em si. O sigilo impenetrável do estado é pru-
dente, enquanto a privacidade dos indivíduos é criminosa.
Nenhuma voz foi mais clara contra um duplo padrão de morali-
dade do que a do editor libertário Raymond Cyrus Hoiles, que criou a
rede midiática Freedom Communications. Hoiles acreditava que o du-
plo padrão era mais destrutivo para a sociedade do que qualquer outro
conceito, e seus ataques ferozes contra ele explodiam com frequência
em seus jornais.

129
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Em um editorial intitulado “O erro mais prejudicial que a maioria


das pessoas honestas cometem” (17 de dezembro de 1956), publicado
no Santa Ana Register, Hoiles explica o erro: “É a crença de que um
grupo ou um estado seja capaz de fazer coisas que seriam prejudiciais
e perversas se feitas por um indivíduo e produzir resultados que não
sejam prejudiciais, injustos e perversos. É a crença de que um número
de pessoas fazendo algo que é errado para um indivíduo pode resultar
em algo correto e justo.” Hoiles mais frequentemente criticou o erro
com referência à tributação. Novamente, se era errado um vizinho rou-
bar seus bens, então era igualmente errado para um grupo de vizinhos
ou seu representante designado (estado) realizar o mesmo ato.
A crítica de um duplo padrão não começou com Hoiles, é claro.
Um panfleto de 1657 atribuído ao rebelde Coronel Titan argumenta: “O
que pode ser mais absurdo na natureza e contrário a todo bom senso do
que matar e chamar de Ladrão aquele que vem sozinho […] e obedecer
e chamar de Lorde Protetor aquele que vem com regimentos e tropas?
Se aquele que rouba e comanda dois ou três navios é chamado de pirata,
por que aquele que rouba e comanda cinquenta é chamado de almi-
rante?”. É esse o absurdo que o estado impõe quando faz algo que não
seria tolerado caso fosse feito por um único indivíduo.
Mais uma vez, ninguém pergunta onde o estado adquire esses cha-
mados direitos abrangentes. Como os únicos direitos que existem são
os individuais, contra os quais ninguém pode legitimamente agredir, se
o estado deseja reivindicar a propriedade legítima das informações pri-
vadas de terceiros deve apresentar prova de divulgação voluntária,
transferência ou compartilhamento de título. Caso contrário, os chama-
dos direitos nada mais são do que a afirmação da pura violência.
O que se aplica à tributação se aplica não menos à violação da
privacidade. Se é errado um vizinho revistar seu corpo e o de seu filho
sem consentimento, então é errado um agente do estado fazer isso em
um aeroporto. Se é errado um vizinho grampear seu telefone, registrar
suas transações financeiras e espiar pelas janelas, então é errado o es-
tado fazê-lo. Os indivíduos de um grupo não renunciam à responsabili-
dade pessoal porque os atos são sempre cometidos por um indivíduo e
são sempre uma questão de responsabilidade pessoal. O estupro cole-
tivo não é menos que o estupro individual e os estupradores não são
menos particularmente responsáveis porque foram o segundo ou o ter-
ceiro na fila.

130
Quando a Privacidade é Criminalizada,
Apenas os Criminosos têm Privacidade

No entanto, as pessoas aceitam um duplo padrão de moralidade,


que isenta os agentes estatais de responsabilidades morais e legais. Se
os agentes do estado, do presidente aos funcionários dos correios, esti-
vessem sujeitos aos mesmos padrões de decência e responsabilidade le-
gal que os indivíduos, o atual estado desmoronaria.
A privacidade é equiparada à ocultação. Redefinir “privacidade”
como “ter algo vergonhoso a esconder” é um truque de mágica. Em seu
excelente ensaio “I’ve Got Nothing to Hide’ and Other Misunderstan-
dings of Privacy”, o professor Daniel J. Solove explica a mágica por
trás da metamorfose da privacidade em ocultação: “O argumento de que
não existe problema de privacidade se uma pessoa não tem nada a es-
conder é frequentemente feito. […] Quando o governo se envolve em
vigilância, muitas pessoas acreditam que não há ameaça à privacidade,
a menos que o governo descubra atividades ilegais, caso em que uma
pessoa não tem justificativa legítima para alegar que isso deve perma-
necer privado”. Curiosamente, as pessoas que usam o argumento de não
ter “nada a esconder” também penduram cortinas nas janelas e as fe-
cham ao se despir. Eles não dão suas carteiras ou bolsas para estranhos
vasculharem. Eles fecham a porta antes de fazer sexo e se opõem que
suas fotos nuas sejam postadas online. O que eles estão escondendo?
Como Solove comenta: a privacidade “não é sobre nada a esconder, é
sobre as coisas que não são da conta de ninguém.”
O ataque à privacidade individual é tóxico para a sociedade como
um todo.
Considere a liberdade de expressão. Lembro-me de estar em um
restaurante quando um parente fez um discurso pós 11 de setembro so-
bre como a atmosfera nos EUA estava começando a parecer a da Cuba
da qual ele havia fugido. Sua esposa tentou silenciá-lo, declarando em
um sussurro inflexível: “Você não pode dizer essas coisas em público”.
Ela estava nervosa enquanto olhava ao redor para ver quem poderia ter
ouvido. A vigilância e os informantes tornam as pessoas relutantes em
expressar opiniões que podem ser usadas contra elas de maneira legal
ou política. Propriedades podem ser apreendidas, famílias destruídas e
pessoas presas. Por que alguém falaria o que pensa se como resultado
seus filhos podem perder o pai deles?
Até recentemente, muitas incursões contra a privacidade não
ocorriam apenas por serem difíceis de executar. Então a tecnologia che-
gou. A vigilância agora é muito mais eficiente, e requer menos esforço.

131
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Mesmo burocracias notoriamente incompetentes são capazes de vigiar


como nunca. Muitas pessoas estão com medo ou complacentes em re-
lação à vigilância. Alguns simplesmente não acreditam mais na possi-
bilidade de privacidade. O estado se beneficia imensamente da Grande
Mentira de que a privacidade agora é impossível devido à onipotência
e onisciência do estado. Isso é besteira. Em primeiro lugar, a tecnologia
quase sempre empodera o indivíduo tanto ou mais do que o estado. Em
segundo lugar, há um mundo de diferença entre o mais difícil e o im-
possível. A privacidade pode ser mais difícil do que antes ou, talvez,
seus requisitos tenham apenas mudado e sejam necessárias proteções
diferentes do que as de antes. Talvez a privacidade exija mais inovação
e trabalho.

O valor da privacidade para a sociedade

Uma sociedade saudável requer privacidade. Quando um estado


monitora a comunicação geral, as pessoas não interagem livremente.
Isto é especialmente verdadeiro para dissidentes, os pacificamente aber-
rantes, escritores, delatores, usuários de drogas, críticos do estado, cé-
ticos, advogados de defesa, artistas … Quem é diferente no estilo de
vida ou na opinião sente o calafrio de ser observado por autoridades que
acenam com armas e celas de prisão. A sombria sociedade cinzenta da
União Soviética e de outros estados comunistas fornecem uma lição de
moral sobre como o medo esmaga a criatividade e a discussão. A vigi-
lância despoja a sociedade de cor e vibração porque drena a vida dos
indivíduos, e os indivíduos são, coletivamente, a sociedade.
Também impede que as pessoas se levantem contra a injustiça. A
defesa da privacidade é uma defesa dos direitos humanos. Ainda assim,
a privacidade financeira pode não ser a questão com a qual entrar na
discussão desse vínculo, porque o dinheiro desperta cinismo imediato.
Mas o vínculo deve ser estabelecido.
Considere a liberdade de religião e o devido processo legal. Uma
insurreição do século XVI definiu a evolução desses dois, bem como
sua conexão com a privacidade. A revolta girava em torno do direito de
uma pessoa manter suas crenças religiosas privadas para que não pu-
dessem ser usadas contra ela em um tribunal. Uma versão atual desse
direito é chamada de “clamar a quinta” – invocando o devido processo

132
Quando a Privacidade é Criminalizada,
Apenas os Criminosos têm Privacidade

legal contra a autoincriminação. É chamado de “clamar a quinta” por-


que a Quinta Emenda da Declaração de Direitos dos EUA estabelece:
“Nenhuma pessoa será obrigada em qualquer caso criminal a ser teste-
munha contra si mesma”. Embora este pilar do devido processo seja
frequentemente retratado como um recurso para o culpado, o grande
beneficiário é o homem inocente na rua, que é protegido contra o exer-
cício do poder arbitrário, quer ele perceba ou não.
A insurreição do século XVI: Henrique VIII negou a autoridade
papal e estabeleceu a Igreja da Inglaterra, que reivindicou nova autori-
dade sobre as almas das pessoas. Os protestantes, chamados dissidentes,
eram frequentemente julgados por heresia com tortura, geralmente
acompanhando o julgamento. No final da década de 1530, o protestante
John Lambert foi queimado vivo por heresia. Durante seu julgamento,
Lambert se tornou o primeiro inglês conhecido a proclamar que era ile-
gal sob Deus e a lei comum obrigar um homem a se acusar. Ele apelou
para a privacidade da consciência.
Em 1563, o dissidente John Foxe publicou o imensamente influ-
ente Book of Martyrs, um livro de história e martirológio protestante,
que foi chamado de “cartilha libertária” sobre direitos processuais. Ele
defende o direito de permanecer em silêncio para manter as informa-
ções pessoais privadas. Notoriamente, o leveller e libertário John Lil-
burne empregou os procedimentos de Foxe em 1637, quando foi levado
ao Tribunal da “Star Chamber” (Câmara Estrela) por distribuir livros
puritanos (o termo “Star Chamber” tornou-se sinônimo de tribunais eli-
tistas e abusivos que se reúnem em segredo). Recusando-se a fazer o
juramento costumeiro, Lilburne negou-se a responder perguntas que
testemunhassem contra si mesmo. Ele foi multado, chicoteado, humi-
lhado e condenado à prisão até que ele obedecesse. Enquanto estava lá,
ele escreveu um relato de seu tratamento brutal, intitulado The Work of
the Beast. Alguns anos depois, a tão odiada Star Chamber foi abolida e
o direito de permanecer em silêncio – o direito à privacidade – foi esta-
belecido.
O direito contra a autoincriminação – o direito à privacidade das
informações pessoais – está no cerne do devido processo legal. Está
historicamente ancorado na busca pela liberdade religiosa, mas não se
aplica menos a outras liberdades, inclusive às econômicas. A demanda
por privacidade não apenas protegeu os indivíduos, mas também impul-
sionou as sociedades em direção à liberdade.

133
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

É apenas um pequeno exagero dizer que a Revolução Americana


poderia não ter ocorrido se os colonos não tivessem exigido o direito à
privacidade pessoal e de propriedade. A privacidade é um princípio e
uma virtude revolucionária que levou os colonos americanos a fechar a
porta na cara das autoridades britânicas, literal e figurativamente. A Ter-
ceira Emenda da Constituição dos EUA, por exemplo, proíbe a prática
então generalizada de alistar soldados à força em residências particula-
res, mesmo em tempos de paz. A Emenda soa antiquada aos ouvidos
modernos, mas a violação foi importante o suficiente para que os revo-
lucionários a colocassem em terceiro lugar na lista de liberdades decla-
radas pela Declaração de Direitos. A Terceira Emenda afirma o direito
à privacidade contra a intrusão do estado no mais pessoal de todos os
reinos: o lar. Por mais ultrapassada que essa emenda possa parecer, não
é necessário um grande salto para aplicar seu princípio ao atual ataque
contra todas as outras formas de privacidade.
A Quarta Emenda também afirma a privacidade. Começa defen-
dendo “[o] direito do povo à segurança de suas pessoas, casas, papéis e
pertences contra buscas e apreensões irrazoáveis”. Em termos de priva-
cidade, a palavra importante é “papéis”, porque pode ser extrapolada
para se aplicar a e-mails e outros dados de computador, incluindo iden-
tidades reais.
A Quinta Emenda defende a privacidade ao decretar o direito de
um indivíduo de não prestar “testemunha contra si mesmo” em casos
criminais.
No linguajar do século XVIII, quando o estado vigia computado-
res e contas de cripto, ele está realizando uma apreensão de “papéis”.
No entanto, as regras de provas físicas nem sempre se aplicam de forma
clara às provas digitais, e as decisões inconsistentes dos tribunais sobre
privacidade das criptos causam confusão. A compreensão da crescente
confusão legal sobre privacidade pode estar na palavra da Quarta
Emenda – “papéis”. A Emenda afirma que tanto “papéis quanto perten-
ces [estão protegidos] contra buscas e apreensões irrazoáveis”. Mas o
direito consuetudinário, no qual se baseia a jurisprudência ocidental,
tende a conceder maior proteção aos “papéis” do que aos “pertences”,
talvez porque os documentos sejam vistos como uma violação da pes-
soa e não da propriedade.

134
Quando a Privacidade é Criminalizada,
Apenas os Criminosos têm Privacidade

O professor de direito Donald A. Dripps abre seu ensaio pioneiro


“‘Dearest Property’: Digital Evidence and the History of Private ‘Pa-
pers’ as Special Objects of Search and Apprehension” com duas per-
guntas. “Por que a Quarta Emenda se refere distintamente a ‘papéis’
antes de ‘pertences’? Por que devemos nos importar?” Dripps pede para
“fundar regras especiais da Quarta Emenda para evidências digitais”
dentro da lei estatal para restringir “o volume de informações inocentes
e íntimas que devem ser expostas [ou exigidas] antes que o material
criminal seja descoberto”. Mais uma vez, a Revolução Americana for-
nece uma visão.
Na década de 1760, os mandados britânicos para documentos co-
meçaram a ser emitidos contra autores e editores coloniais suspeitos de
sedição. Entick V. Carrington (1765) é provavelmente o caso jurídico
mais influente da época. Os fatos básicos do caso: John Entick publicou
um jornal que se opunha à Coroa. Em 1762, oficiais invadiram a casa
de Entick e roubaram centenas de papéis em busca de evidências de
traição. Entick processou. Entick ganhou. O juiz presidente, Lorde
Camden, ofereceu um famoso ditado: “Se for lei, será encontrado em
nossos livros. Se não for encontrado aqui, não é lei”. O suposto direito
do estado de apreender papéis não estava nos estatutos, portanto, não
era lei.
A análise subsequente do caso Entick descobriu que quatro aspec-
tos do ataque do estado eram legalmente desagradáveis; todos eles se
aplicam à atual vigilância e apreensão de informações financeiras. O
mandado foi indiscriminado. A apreensão expropriou os papéis, ne-
gando seu uso ao autor. O mandado foi desregulado porque não havia
supervisão neutra ou via de apelação. A apreensão foi inquisitorial por-
que deu ao estado informações sobre o funcionamento privado da mente
de Entick. O advogado de Entick declarou: “Nenhuma potestade pode
invadir legalmente a casa de um homem e investigá-la para buscar pro-
vas contra ele; isso seria pior do que a inquisição espanhola, pois sa-
quear as gavetas e caixas secretas de um homem para obter provas con-
tra ele é como torturar seu corpo para descobrir seus pensamentos se-
cretos.” A apreensão de papéis era um ataque contra a pessoa, não con-
tra a propriedade.
Qualquer juiz que posteriormente considerasse emitir um man-
dado de busca de documentos tinha que considerar a decisão de Lorde

135
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Camden: de que uma suposta ofensa precisava estar nos livros de esta-
tuto para que existisse na lei. Além disso, mandados sobre documentos
cada vez mais entravam em conflito com as constituições estaduais.
A guerra muda as leis, especialmente as leis que protegem os di-
reitos individuais. Dripps continua: “A América se recusou a modificar
a proibição da lei comum por estatuto até a Guerra Civil”. O imposto
de consumo era a principal fonte de financiamento do governo federal
para a guerra, mas a evasão fiscal era desenfreada. Em resposta, um
estatuto único foi aprovado. “[Este] ato de 1863 foi o primeiro ato neste
país […] ou na Inglaterra, até onde pudemos apurar, que autorizou a
busca e apreensão de documentos particulares de um homem, ou a pro-
dução compulsória deles, para usá-los como prova contra ele em um
processo criminal, ou em um processo para executar o confisco de seus
bens”. A apreensão de papéis estava agora nos estatutos.
A questão dos papéis versus pertences ziguezagueou juridica-
mente após a Guerra Civil. Indiscutivelmente, a mudança mais impor-
tante ocorreu em 1886, quando o Boyd v. United States foi decidido pela
Suprema Corte dos EUA. “A história do caso Boyd”, escreve Dripps,
“começa corretamente com um estatuto que autoriza os funcionários da
alfândega a apreender os livros e papéis de importadores suspeitos de
evasão de impostos”. A Suprema Corte decidiu a favor de Boyd, di-
zendo:

“Os princípios estabelecidos neste parecer afetam a própria


essência da liberdade e da segurança constitucionais. Apli-
cam-se a todas as invasões por parte do estado e seus funci-
onários à santidade da casa de um homem e das privacida-
des da vida. Não é o arrombamento de suas portas e o re-
mexer de suas gavetas que constitui a essência da ofensa,
mas sim a invasão de seu direito irrevogável de segurança
pessoal, liberdade pessoal e propriedade. É a invasão desse
direito sagrado que fundamenta e constitui a essência do
julgamento de Lord Camden.”

A decisão de Boyd restabeleceu maior proteção constitucional aos


papéis do que aos pertences, e incide diretamente sobre os papéis digi-
tais. A proteção nunca foi absoluta, no entanto, e foi severamente cor-

136
Quando a Privacidade é Criminalizada,
Apenas os Criminosos têm Privacidade

rompida. Dripps explica: “Durante o último quarto do século XX, a Su-


prema Corte começou efetivamente a equiparar ‘papéis’ e ‘pertences’.
Outra linha de casos modernos estabeleceu regras de ‘linhas-claras’,
que deram o mesmo tratamento constitucional a todos os ‘pertences’”.
Os papéis não apenas perderam seu status especial sob o direito comum
e constitucional, mas também chegaram mais perto de se tornarem le-
galmente intercambiáveis com todos os outros pertences. Isso oferecia
uma proteção muito mais fraca. No entanto, o precedente de Boyd pre-
valeceu por quase um século e ainda não envelheceu.
A importância dos papéis está intrinsecamente ligada ao valor da
privacidade para os indivíduos. Quando o estado rouba dados, não viola
“propriedades” no sentido legal da palavra; ele viola a pessoa.
A privacidade faz parte de uma vida saudável, criativa e autorre-
flexiva. Desde a infância mantenho um diário no qual coloco esperan-
ças, confusões, decepções e desejos. Quando leio páginas do passado,
me conecto visceralmente com quem eu era aos dez anos e entendo me-
lhor a pessoa que sou hoje. Esses diários são privados, não porque eu
tenha vergonha deles, mas porque são pessoais. Em seu romance distó-
pico 1984, George Orwell enfatiza a importância dos diários:

“A única coisa que ele estava prestes a fazer era abrir um


diário. Isso não era ilegal (nada era ilegal, já que não havia
mais leis), mas se detectado era razoavelmente certo que
seria punido com a morte.”

O protagonista de 1984 descobre seu individualismo. Nesta jor-


nada, o diário representa a liberdade de expressão e consciência que são
essenciais para um senso de identidade – tão essencial que o estado ma-
tará por esse ato de privacidade.
Toda violação de privacidade corrói o espírito humano. Uma pa-
lavra não é dita por medo de ser ouvida; um pensamento não se forma
por medo de se tornar uma palavra; um sentimento nunca é expresso e,
talvez com o tempo, nem mesmo sentido. Então, um dia, o silêncio ex-
terior torna-se interior através do hábito agora automático da autocen-
sura. As pessoas não questionam mais. Talvez nem percebam mais que
não questionam mais. Eles desenvolveram o hábito de não ser um indi-
víduo e, em vez disso, tornaram-se parte de uma vontade coletiva.

137
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Todo mundo tem áreas de privacidade para proteger. Alguns usam


medalhões com fotos de parentes mortos; outros abrigam um amor pro-
ibido; alguns trancam a porta para deleitar-se com um banho quente sem
serem incomodados, ou escondem uma preferência sexual incomum.
Todo ser humano tem o direito de traçar linhas que não prejudicam nin-
guém, linhas que ninguém mais deveria cruzar sem ser convidado. Bata
a porta na cara de quem disser o contrário!
O foco das criptomoedas na privacidade é mais do que o desejo
de reter riqueza, como geralmente é acusado. É um desejo de manter a
individualidade, o espírito humano e a liberdade.

138
CAPÍTULO SEIS
Nomes Verdadeiros e Estratégias para a Privacidade
Todos aqueles que usaram seu conhecimento em uma ten-
tativa de promover mudanças sociais viram a criptografia
como uma ferramenta para aumentar a privacidade indivi-
dual e transferir o poder das grandes instituições centrais
para os seres humanos que vivem em sua órbita.
– Paul Vigna.

O mundo precisa de um novo paradigma de privacidade porque o


Estado sempre vencerá sob o velho paradigma enquanto controlar a In-
dústria de Identidade. A indústria consiste em muito mais do que docu-
mentos de identificação do governo e formulários a serem preenchidos.
Nas últimas duas décadas, a Indústria da Identidade se expandiu para
incluir triagem de aeroportos, biometria, regulações Know Your Custo-
mer, caches de dados clandestinos e vigilância em cada turno. Alastair
Berg, do RMIT Blockchain Innovation Hub, observa: “Esses são apenas
alguns segmentos em uma indústria que deve crescer para $16 bilhões
até 2022”.
O Estado não vai afrouxar o controle sobre a indústria porque a
identificação é uma parte insubstituível do controle social e da acumu-
lação de riqueza. Isso é verdade desde a era napoleônica, quando foi
introduzido um cartão de identidade que prenunciava os modernos. O
objetivo do ID era controlar os salários, restringindo a mobilidade dos
trabalhadores que queriam se mudar para obter melhores empregos com
salários mais altos. As cartas foram fundamentais para converter uma
França relativamente livre em um estado policial.
O monopólio estatal de identificação precisa ser quebrado da
mesma maneira que as criptos quebram o monopólio monetário. Não
deve ser confrontado; ele deve ser contornado, procurando-se uma al-
ternativa melhor. Isso não apenas afasta o Estado, mas também fornece
uma alternativa de livre mercado para a necessidade humana válida de
identificação. Historicamente, a identificação era uma função de livre
mercado; certidões de casamento, por exemplo, eram um contrato pri-
vado entre famílias e honrados pela igreja. Pode facilmente ser uma
função do livre mercado novamente. Enquanto a Indústria da Identidade

140
Nomes Verdadeiros e Estratégias para a Privacidade

for um ramo do governo, no entanto, essa necessidade humana ficará


insatisfeita ou será satisfeita a um custo assombroso para a liberdade.
O novo paradigma online para privacidade está aqui. É exempli-
ficado pela blockchain onde as interações são transparentes e as identi-
dades reais são protegidas. A privacidade reside na proteção de True
Names (Nomes Verdadeiros) – uma referência à novela pioneira de
1981, de Vernor Vinge, na qual um grupo de hackers (chamados warlo-
cks/feiticeiros) invade computadores ao redor do mundo. Suas identi-
dades reais são secretas umas das outras e especialmente do Grande
Adversário – uma referência ao estado americano. Mascarar identida-
des do mundo real é vital porque qualquer um que conheça o True Name
de um “feiticeiro” pode chantageá-lo ou causar uma True Death (Morte
Verdadeira). A identidade é literalmente uma questão de vida ou morte.

A origem dos True Names

“Acho que o carteiro está nos atacando um de cada vez, co-


meçando com os mais fracos, nos atraindo o suficiente para
aprender nossos Nomes Verdadeiros – e então nos destru-
indo.”
– Vernor Vinge, True Names

True Names é uma das primeiras representações ficcionais de um


ciberespaço desenvolvido. É amplamente creditado como iniciador do
movimento cyberpunk, que mais tarde explorou muitos dos temas apre-
sentados na novela.
A novela começa da seguinte maneira:

Nos dias de era-uma-vez da Primeira Era da Magia, o feiti-


ceiro prudente considerava seu próprio nome verdadeiro
como seu bem mais valioso, mas também a maior ameaça à
sua vida, pois – as histórias contam – uma vez um inimigo,
mesmo um inimigo fraco e não qualificado, aprendeu o ver-
dadeiro nome do feiticeiro, e então feitiços rotineiros e am-
plamente conhecidos poderiam destruir ou escravizar até
mesmo os mais poderosos. Com o passar dos tempos, che-
gando à Idade da Razão, e daí para a primeira e a segunda
revoluções industriais, tais noções foram desacreditadas.
Agora parece que a Roda deu uma volta completa (mesmo

141
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

que nunca tenha havido realmente uma Primeira Era) e vol-


tamos a nos preocupar com nomes verdadeiros novamente.

Na história, o hacker protagonista é visitado por agentes do


Grande Inimigo que descobriram seu Verdadeiro Nome. Eles o armam
para rastrear um alvo maior conhecido como The Mailman. Assim, a
história é altamente antiestatista com um senso aguçado de como a iden-
tidade é crucial para a liberdade.
A novela despertou a admiração dos criptoanarquistas, que tam-
bém se basearam em sua visão do ciberespaço. Uma reimpressão pos-
terior de True Names inclui dez artigos e ensaios de escritores que for-
necem comentários sobre a história de Vinge. Um deles é o ensaio “True
Nyms and Crypto Anarchy” de Timothy May, autor de “The Crypto
Anarchist Manifesto”. (Nyms é a abreviação de pseudônimos.) No tri-
buto a True Names, May afirma com otimismo:

“A criptoanarquia é a realização ciberespacial do anarcoca-


pitalismo, transcendendo as fronteiras nacionais e liberando
os indivíduos para fazer consensualmente os arranjos
econômicos que desejam fazer.”
Isso garante que homens com armas não possam ser trazi-
dos para interferir em transações mutuamente acordadas, o
único tipo de interação econômica possível na anarquia
criptográfica. Algumas pessoas, é claro, gritarão: “In-
justo!”, e exigirão a intervenção do governo, razão pela qual
a criptografia pesada provavelmente sofrerá oposição das
massas, a menos, é claro, que as massas sejam sábias e te-
nham uma visão de longo prazo. Isso pode cheirar a eli-
tismo, mas tenho muito pouca fé na democracia. De
Tocqueville alertou em 1840 que, traduzido aproximada-
mente: “A República Americana durará até que os políticos
percebam que podem subornar as pessoas com seu próprio
dinheiro”. Chegamos a esse ponto há várias décadas.

A criptografia pesada e a privacidade que ela oferece são essenci-


ais para o sucesso da criptoanarquia. Sua antítese é o controle social,
que requer identificar as pessoas e vinculá-las às atividades para ser efi-
caz. A criptografia quebra esse vínculo. E nunca é cedo demais.

142
Nomes Verdadeiros e Estratégias para a Privacidade

Atualmente, a identidade do governo é a única maneira pela qual


a maioria das pessoas pode provar suas identidades offline para acessar
as necessidades da vida moderna. Na maioria dos países ocidentais, pes-
soas indocumentadas não podem embarcar em um avião, dirigir um
carro ou alugar um apartamento. Elas não podem abrir uma conta ban-
cária, adquirir um cartão de crédito, acessar cuidados médicos, descon-
tar um cheque, ter um emprego visível, frequentar uma universidade ou
comprar um carro. Tornam-se cidadãos de segunda classe.
Enquanto isso, aqueles com identidade estatal tornam-se vulnerá-
veis a processos e perseguições. Em um sistema nacionalizado de iden-
tificação e relatórios, o governo sabe quem são todos, o que cada um
possui e onde encontrar ambos. Como Orwell argumenta eloquente-
mente em romances e ensaios, a nacionalização da privacidade é um
pilar do totalitarismo. Não é de admirar que o apetite do governo por
dados seja tão voraz. Não é à toa que há um esforço para retirar o ano-
nimato da Internet sob a égide da preocupação com o bullying.
O que é necessário agora é um novo paradigma para a privacidade
offline que possa funcionar em conjunto com as proteções online. Ou
melhor, um velho paradigma deve ser revivido. A privacidade offline é
melhor alcançada pelo ID de livre mercado, que fornece os benefícios
da identificação sem a responsabilidade de se tornar um número em um
arquivo burocrático.

Sistemas offline de identificação de livre mercado

A identidade de livre mercado é a antítese da identidade do go-


verno na medida em que devolve o poder de identificação ao indivíduo
para usar ou não de acordo com seu próprio critério. A identidade de
livre mercado é uma aliada natural da criptografia, porque os objetivos
são os mesmos – quebrar o monopólio estatal da indústria de identidade.
Quando o comércio estava no nível do escambo, as pessoas ge-
ralmente conheciam os indivíduos com quem negociavam. Quando o
comércio se expandiu para incluir trocas complexas com estranhos a
um mundo de distância, a troca direta foi substituída pela troca indireta,
que muitas vezes exigia confiança ou um intermediário. A base da con-
fiança em alguém é a capacidade de responder à pergunta: “Com quem
estou lidando?”. Assim, há uma necessidade legítima de identificação e
pouco perigo para ela enquanto o estado não estiver envolvido.

143
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Considere um método difundido de identificação de séculos atrás


que está voltando – cartas de apresentação. A dinâmica básica: a pessoa
A carrega cartas de identificação para a pessoa C a quem A é um estra-
nho. As cartas são escritas pela pessoa B, que é um conhecido respei-
tado e mútuo. A pessoa B atesta a identidade do portador da carta e C é
capaz de responder à pergunta: “Com quem estou lidando?”. Essas car-
tas podem ser preparadas por uma empresa que verifica identidades
para obter lucro.
Uma versão eletrônica de cartas de apresentação ocorre em círcu-
los de criptografia e em redes sempre que um membro respeitado atesta
um estranho que deseja participar. Dado o tamanho da comunidade e o
fato de estar sob ataque, as introduções parecem ser uma prática cada
vez mais popular.
As cartas incorporam o primeiro e mais básico serviço prestado
pelo ID do livre mercado: a autenticação. Existem inúmeras razões pe-
las quais alguém gostaria de autenticar a identidade de uma pessoa. A
pessoa pode estar pegando um pacote, confirmando uma reserva, in-
gressando em um clube, descontando um cheque ou solicitando um em-
prego. O filtro de autenticação significa que um estranho não pode co-
meter fraudes.
A autenticação no livre mercado de identidades reais também
pode ser realizada por empresas que emitem carteiras de identidade. A
identificação privada é comum hoje em uma forma bastarda que tem
valor limitado. Os empregadores emitem IDs aos funcionários para que
possam desbloquear escritórios; as instituições financeiras oferecem
cartões de crédito aos clientes; as universidades distribuem carteiras de
identidade para que os alunos possam acessar os serviços. Mas a priva-
cidade aqui é ilusória. Antes que um empregador ou uma instituição
financeira emita o ID, o destinatário é selecionado no processo de con-
tratação ou na abertura de uma conta. Os cartões de estudante são pré-
selecionados pela extensa documentação necessária para se matricular
em uma universidade. Esta informação é rotineiramente relatada ao es-
tado de uma forma ou de outra. Esses IDs semiprivados podem ser uma
prova de princípio, mas não são de livre mercado ou privados.
A agorista Sunni Maravillosa especula sobre como seria a identi-
dade de livre mercado em seu ensaio “ID without Big Brother”, na an-
tologia National Identification Systems: Essays in Opposition:

144
Nomes Verdadeiros e Estratégias para a Privacidade

“Se um indivíduo deseja um documento de identidade que


atribua um determinado rótulo a ele, ele tem várias empre-
sas para escolher. IDs R Us é uma rede nacional que possui
requisitos mínimos para tal identificação, e oferece atendi-
mento rápido a preços baixos. No entanto, por ter requisitos
mínimos, seu histórico de segurança não é tão bom e muitas
empresas não confiam muito em seus IDs. O emissor de ID
de autenticação mais bem-sucedido é o Spooner's Identity
Emporium. Essa empresa também tem requisitos mínimos
para identificação apenas de nome de baixo nível, mas dá a
etapa adicional de verificar o histórico do candidato à iden-
tificação com esse nome, bem como a reputação daqueles
que garantem o candidato à identificação. A empresa pu-
blica uma lista mensal em seu site – geralmente uma lista
muito curta, devido ao seu processamento cuidadoso – de
indivíduos cuja identidade foi revogada, juntamente com o
motivo da revogação […] Claro, se um indivíduo não gostar
dos requisitos de uma empresa, ela está livre para usar outra
[…]”

A maioria das empresas teria cuidado com a precisão porque qual-


quer pessoa fraudada por um documento falso pode entrar com uma
ação legal. Eles também teriam cuidado com a privacidade do cliente,
pois a discrição seria a chave para a comercialização de seu ID. Se os
IDs emitidos pela empresa facilitarem a fraude ou se as informações do
cliente vazarem, a publicidade por si só prejudicaria ou arruinaria a re-
putação da empresa; as empresas de identidade de livre mercado vive-
riam e morreriam com base em suas reputações.
O segundo serviço que a ID de livre mercado oferece aos indiví-
duos é a certificação. Cartas de recomendação atestam o caráter, a edu-
cação e as habilidades específicas do portador. As empresas provavel-
mente cooperariam umas com as outras no fornecimento de tais cartas.
Maravillosa oferece um exemplo hipotético:

Os bancos emitem “credenciais de crédito”, que se baseiam


no histórico de crédito de um indivíduo ou empresa com o
banco, para que outro indivíduo ou instituição esteja con-

145
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

vencido de que a entidade em questão é diferente de ina-


dimplência em um empréstimo ou outro acordo de crédito
até um determinado valor.

Novamente, a versão cripto desse serviço é uma recomendação


online pessoal de uma figura confiável sobre um estranho. Alternativa-
mente, o estranho poderia apontar para documentos de certificação –
talvez artigos acadêmicos que ele escreveu sobre assuntos relevantes.
Sua própria reputação pode ser uma identificação de certificação.
Algumas formas de ID atual executam uma função semelhante.
Os diplomas universitários supostamente certificam um nível de educa-
ção e inteligência; uma carta de referência de um empregador descreve
os hábitos de trabalho louváveis de um ex-funcionário; a participação
em organizações profissionais ou de caridade sugere o caráter e as ha-
bilidades sociais de uma pessoa.
Há uma desvantagem marcada para muitas certificações atuais,
no entanto. Uma delas: as licenças e diplomas estatais frequentemente
substituem os métodos de certificação do livre mercado. Tudo, de neu-
rocirurgia a tranças de dreadlocks, exige licenças, e estas tendem a subs-
tituir a reputação como medida de valor. Um exemplo: Um curandeiro
não tradicional é bem conhecido por sua habilidade, mas não consegue
obter uma licença. Sua reputação é gigantesca, mas os médicos locais
bloqueiam o processo de licenciamento para eliminar a concorrência. O
curandeiro é incapaz de tratar as pessoas sem o risco de ir para a cadeia.
Diplomas exigidos pelo estado – mesmo que tenham valor, o que é cada
vez mais duvidoso – são barreiras para aqueles que são talentosos, mas
não sancionados pelo estado. Desta forma, o estado desvaloriza ou nega
o valor da reputação.
O terceiro propósito da ID de livre mercado é autorizar ações es-
pecíficas. As cartas podem atribuir direitos limitados ao portador. Um
escritório de advocacia pode atribuir um poder limitado a um de seus
advogados para que ele possa resolver um caso em nome de um cliente.

Objeções ao ID de livre mercado

Surgem objeções à identificação de livre mercado. Diz-se que os


métodos de identificação são antiquados, não fornecem anonimato real

146
Nomes Verdadeiros e Estratégias para a Privacidade

e não têm uniformidade. Além disso, estabelecer uma reputação é um


processo lento em um mundo em rápida evolução.
Antiquado. Alguns modelos de identificação podem estar ultra-
passados. Mas o remédio mais seguro para isso é abrir o campo e deixar
o mercado inovar. Os IDs mais antiquados são os produzidos pelo es-
tado estagnado.
Sem anonimato. O objetivo principal da identificação inicial era
verificar a identidade, não tornar o anonimato. E ainda há uma demanda
de livre mercado para verificar a identidade. Há valor no anonimato; há
valor em ser conhecido. O valor depende de se o indivíduo é capaz de
escolher livremente entre os dois.
Sem uniformidade. Outra palavra para “sem uniformidade” é “di-
versidade”, e é uma das vantagens extremas do ID de livre mercado
porque dá escolha. A identidade do governo é homogeneizada porque o
objetivo é impor a conformidade com as leis e os requisitos de relató-
rios. Quando o ID atende a indivíduos, sua forma é ditada por suas ne-
cessidades e preferências, não pelo estado.
Lento para estabelecer confiança ou reputação. Este é um mundo
corrido. Mas o fato de que uma reputação ou um negócio pode levar
tempo e trabalho duro para se estabelecer dificilmente é uma crítica.
Conquistas que valem a pena levam tempo e trabalho duro.
A opção nuclear do estado no armamento de dados

“A privacidade inclui a capacidade de manter as coisas em


segredo do governo. Posso estar mantendo em segredo mi-
nha fraqueza por álcool, heroína, jogos de azar ou porno-
grafia e, assim, impedir que o governo interfira para me pro-
teger de mim mesmo. Se você vê o governo como um super
ser benevolente cuidando de você – um tio sábio e gentil
com uma longa barba branca – você vai e deve rejeitar
muito do que estou dizendo. Mas o governo não é o Tio Sam
ou um rei filósofo. O governo é um conjunto de instituições
através das quais os seres humanos agem para fins huma-
nos. Sua característica especial – o que diferencia a ação
política das outras maneiras pelas quais tentamos obter o
que queremos – é que o governo pode usar a força para fazer
as pessoas fazerem coisas.”
– David Friedman

147
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

O governo não é um tio sábio e gentil. É uma instituição de inte-


resse próprio ocupada por seres humanos com paixões humanas, espe-
cialmente por poder, riqueza, status, moralização e vingança. Atual-
mente, os usuários de cripto têm motivos para serem particularmente
privados. Uma notícia recente declara: “A NSA rastreia usuários de
Bitcoin desde 2013, novos documentos de Snowden são revelados”.
Muita cautela tanto online quanto offline não é paranoia quando eles de
fato estão atrás de você.
Uma manchete de 6 de fevereiro de 2018 na revista Reason alerta:
“Os governos odeiam Bitcoin e dinheiro vivo pelo mesmo motivo: eles
protegem a privacidade das pessoas”. O artigo a seguir deriva de uma
citação do secretário do Tesouro dos EUA, Steve Mnuchin: “Uma das
coisas em que trabalharemos muito de perto com o G-20 é garantir que
isso não se torne as contas bancárias numeradas na Suíça”. Mnuchin
rejeita as criptos descentralizadas como sistema de pagamento, investi-
mento ou poupança porque não podem ser facilmente rastreadas pelo
governo. A crítica de Mnuchin confirma que as criptomoedas são um
bem positivo para os indivíduos, não apenas porque os empodera, mas
também porque os protege de estatistas como ele.
Os ataques de privacidade em todo o mundo ficarão rapidamente
mais agressivos. Os dados estão sendo transformados em armas em um
ritmo assustador, criando uma corrida acirrada entre privacidade e tota-
litarismo. Estados estão desenvolvendo novas maneiras de usar bancos
de dados para reprimir as oportunidades e atividades de pessoas que
fazem escolhas “erradas” ou que têm pensamentos “errados”.
Uma manchete na Reuters dizia: “China barrará pessoas com mal
‘crédito social’ de aviões e trens”. O crédito social (xinyong) é um con-
ceito moral de longa data dentro da tradição chinesa, que indica o nível
de honestidade e confiabilidade de uma pessoa. O governo chinês agora
estende esse conceito moral para incluir lealdade ao estado e honesti-
dade social ou política; atribui uma classificação oficial a cada pessoa.
Então, o controle social extremo é imposto àqueles com pontuações bai-
xas, negando-lhes “privilégios”, como viagens e educação. Os crimes
de crédito social incluem usar bilhetes vencidos para embarcar em um
trem ou fumar enquanto estiver nele, comprar muito álcool, assistir por-
nografia, devolver uma bicicleta alugada com atraso, “não comparecer
a um restaurante sem cancelar a reserva, trapacear em jogos online, dei-
xando avaliações falsas de produtos, e atravessar a rua fora da faixa.”

148
Nomes Verdadeiros e Estratégias para a Privacidade

As ofensas triviais podem parecer intrigantes ou até engraçadas,


mas servem a um propósito importante para o Estado e horripilante para
os indivíduos. As ofensas triviais dão ao Estado um cheque em branco
para reprimir dissidentes, opositores políticos ou outros “indesejáveis”,
porque praticamente todos cometem infrações menores como parte da
vida cotidiana. Como Beria disse uma vez: “Mostre-me o homem, eu
lhe mostrarei o crime”. O governo chinês agora pode escolher quem
deseja converter em não-pessoa, impedindo-os de viajar e outras inte-
rações sociais. A estratégia é semelhante à descrita no livro Three Felo-
nies a Day, segundo a qual todos que violam a autoridade do estado são
vulneráveis a acusações criminais por um ou outro delito. Todo mundo
é vulnerável aos ataques do estado. Esse perigo também fornece um
grande incentivo para que as pessoas obedeçam absolutamente e não
chamem a atenção para si mesmas. Isso é verdade na China. É cada vez
mais verdade em muitas nações.
O conceito de crédito social não é exclusivamente chinês. Nos
EUA, os passaportes são negados àqueles que estão suficientemente
atrasados no pagamento de pensão alimentícia ou de impostos, e ex-
criminosos têm dificuldade em viajar para o exterior. Os estrangeiros
que disserem a um guarda de fronteira dos EUA que fumaram maconha,
independentemente de o evento ter ocorrido em um local onde era legal
ou não, terão sua entrada recusada. Global News, um portal de notícias
canadense, explica: “eles são […] instruídos a voltar para o Canadá e
informados de que são inadmissíveis pelo resto da vida. Esta é uma pro-
ibição vitalícia.” Enquanto isso, direitos constitucionais como a posse
de armas estão sendo negados por uma lista cada vez maior de razões.
O apetite voraz do governo pelos dados exigidos pelo controle
social está crescendo. O Cloud Act tornou-se lei federal em 2018, por
exemplo. A lei permite que a aplicação da lei federal obrigue as empre-
sas de tecnologia sediadas nos EUA a fornecer dados armazenados em
servidores, independentemente de onde os dados estão armazenados.
Ele retira os direitos da Quarta Emenda contra busca e apreensão irra-
cionais, permitindo que os EUA celebrem acordos de compartilhamento
de dados com países estrangeiros e ignorem os tribunais dos EUA. Os
usuários-alvo podem nunca saber do mandato.
As pessoas precisam escolher sua abordagem à privacidade e se
preparar.

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Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

O que você deveria fazer?

As estratégias variam de pessoa para pessoa, porque são baseadas


em variáveis como personalidade e circunstância. Existem muitos ca-
minhos para a privacidade, não apenas um.
Antes de responder “O que você deve fazer?”, algumas distinções
são úteis. Todas as informações não são iguais, e criptografar tudo pode
chamar atenção indesejada. Você pode considerar criptografar apenas
informações importantes para sua liberdade, riqueza e bem-estar. Todo
mundo tem pelo menos três tipos de dados pessoais. Primeiro, há dados
que devem ser amplamente divulgados, como um currículo de emprego.
Esta informação requer marketing, não privacidade. Em segundo lugar,
há fatos que são inofensivos de divulgar, como uma cor favorita ou uma
preferência por batatas fritas. A divulgação pode atrair solicitações in-
desejadas de negócios, mas esses aborrecimentos não comprometem di-
reitos. Terceiro, há fatos que os maus agentes podem usar contra você.
Os dados financeiros são um excelente exemplo. Este é o ponto em que
a privacidade se torna um mecanismo de sobrevivência.
A próxima distinção é o terreno bem trilhado da privacidade ver-
sus anonimato versus pseudônimo. Vou pisar nessa questão mais uma
vez e brevemente.
Privacidade é o ato de manter dados pessoais ou atividades para
si mesmo em sua totalidade ou para qualquer que seja o seu nível de
conforto. Qual é o seu nível de conforto?
O anonimato é a estratégia de tornar o conteúdo transparente, mas
ocultar os Nomes Verdadeiros. Rick Falkvinge, fundador do primeiro
Partido Pirata, elabora:

“O exemplo típico seria se você deseja denunciar abuso de


poder ou outras formas de crime em sua organização sem
arriscar a carreira e a posição social desse grupo, e é por
isso que normalmente temos leis fortes que protegem as
fontes da imprensa livre. Você também poderia postar esses
dados anonimamente online por meio de uma VPN, da rede
de anonimização TOR ou de ambos. Este é o equivalente
análogo da carta de denúncia anônima, que tem sido vista
como um procedimento padrão em nossas checagens e ava-
liações.”

150
Nomes Verdadeiros e Estratégias para a Privacidade

O pseudônimo é a estratégia de usar um nome fictício em vez de


um Nome Verdadeiro. É o anonimato adquirido pelo disfarce. A pseu-
donimidade não é um fenômeno recente. Os influentes The Federalist
Papers (1787-1788) foram escritos por Publius – um pseudônimo cole-
tivo que abrange James Madison, Alexander Hamilton e John Jay. Os
historiadores ainda discordam sobre quem escreveu algumas das peças;
isso atesta a eficácia do pseudônimo.
As táticas mais eficazes para proteger dados online podem ser
tecnológicas, mas este livro não as aborda, exceto de passagem. Em vez
disso, ele aponta para estratégias ou hábitos de privacidade que são usa-
dos há décadas, se não há séculos. Alguns deles serão familiares. O ob-
jetivo não é promover material novo ou revolucionário; é conscientizar
as pessoas a pensar em como manter a privacidade.
Eles foram atualizados para focarem nas criptomoedas. Aqui está
uma amostra de algumas técnicas básicas e eficazes:
Ofuscar ou “esconder à vista de todos”. Seja tão discreto ou sutil
em suas ações externas e aparência que seja quase imperceptível. Mis-
ture-se e torne-se invisível. Às vezes, a ofuscação envolve a participa-
ção em locais tão cheios de “ruído” que um bisbilhoteiro acha difícil
distinguir seu sinal de qualquer outro. O cerne desta estratégia é evitar
chamar atenção para si mesmo. Quando você fizer coisas “notáveis”,
como pedir a derrubada do sistema bancário central, faça-o sob um
pseudônimo. Sob seu Nome Verdadeiro, seja cauteloso.
Evite corretoras centralizadas e outros centros de compartilha-
mento de dados. Esta é uma versão atualizada para usuários de cripto
do conselho de evitar centros de coleta de dados conectados ao estado,
como os bancos centrais. Se você deseja que o estado tenha todos os
seus dados financeiros, basta enviá-los por correio para as agências es-
taduais.
Proteja tudo com senha e fique livre de vírus. Uma senha é como
uma fechadura em uma porta que dificulta a entrada de malfeitores.
Evite vírus e malwares através dos quais hackers podem atacar seus da-
dos e roubar sua identidade. Nunca abra arquivos não solicitados em e-
mails; nunca baixe arquivos de sites desconhecidos ou inseguros. Exe-
cute um programa antivírus competente e prefira navegadores que re-
sistam a penetrações, como os usados em Linux.
Encontre maneiras discretas de sacar. O veterano das criptos Kai
Sedgwick escreve: “As transações Bitcoin são semianônimas: todas as
transações na blockchain são transmitidas publicamente e visíveis por

151
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

toda a eternidade, mas o proprietário de cada carteira é desconhecido.


Vincular endereços a identidades do mundo real agora é relativamente
fácil para os poderosos, porque todos precisam sacar em algum lugar, e
isso geralmente envolve vincular endereços de Bitcoin a contas bancá-
rias.” Não use terceiras partes confiáveis para sacar. Na medida do pos-
sível, lide com as pessoas individualmente ou por meio de corretoras
descentralizadas que facilitam a compra e a venda peer-to-peer. Seja
inventivo. Procure locais que troquem criptomoedas por gift-cards em
lojas nas quais você faz compras regularmente, incluindo mercearias.
Escolha um mecanismo de pesquisa que respeite a privacidade.
Muitos mecanismos de pesquisa registram históricos de navegação e os
usam para segmentar anúncios ou gerar receita vendendo-os. Outros,
como o DuckDuckGo, não rastreiam dados pessoais.
Use uma moeda de privacidade. Existem dezenas dessas moedas
e mais estão chegando porque a privacidade está em demanda. O fun-
dador da Zcash explica a filosofia por trás de sua moeda de privacidade.
“Acreditamos que a privacidade fortalece os laços sociais e as institui-
ções sociais, protege as sociedades contra seus inimigos e ajuda as so-
ciedades a serem mais pacíficas e prósperas […] Uma tradição robusta
de privacidade é uma característica comum em sociedades ricas e pací-
ficas, e a falta de privacidade é frequentemente encontrada em socieda-
des com dificuldades e fracassadas”.
Nunca dê mais informações do que o necessário. Nunca forneça
informações, especialmente por escrito, sempre que a recusa ou o silên-
cio for uma opção. Se um formulário é obrigatório, preencha o menor
número de espaços em branco possível da forma mais confusa possível.
Desconfie de qualquer empreendimento conectado às criptomoedas que
exija mais do que informações mínimas para adquirir o serviço ou bem
que está sendo oferecido. Ninguém nas criptos precisa saber seu número
de previdência social, mesmo os últimos quatro dígitos. Sempre per-
gunte a quem solicita informações “por que” elas são necessárias e
quais os usos que farão delas. Decida com antecedência quantos dados
você está disposto a divulgar e de que forma.
Seja cauteloso em fóruns públicos. Fóruns públicos, como Face-
book ou Twitter, são monitorados e explorados por governos e corpora-
ções; eles também são monitorados por criminosos e pessoas maliciosas
que guardam rancor. Fóruns públicos são pontos de coleta de dados pes-
soais, mesmo que uma pessoa pense que está postando anonimamente.

152
Nomes Verdadeiros e Estratégias para a Privacidade

Se a mídia social for necessária por motivos profissionais, use-a ao mí-


nimo e apenas por motivos profissionais. Nunca publique nada nas re-
des sociais que você não colocaria na primeira página do New York Ti-
mes.
Tenha cuidado ao registrar informações. Não anote chaves priva-
das, por exemplo, sem ter um local seguro e não divulgado para arma-
zená-las. Não faz sentido criptografar dados online se o mesmo infor-
mativo estiver em forma cursiva na mesa da cozinha.
Use apenas conexões Wi-Fi seguras. É comum as pessoas se co-
nectarem ao Wi-Fi gratuito na Starbucks e em outros locais, mas não há
como saber quem pode estar ouvindo seu tráfego de internet. Se você
precisar usar Wi-Fi inseguro, não transmita dados pessoais e use um
serviço VPN para criptografar dados pessoais.
Minta ao estabelecer perguntas de segurança de senha. “Qual é
o nome de solteira da sua mãe?” Com essas informações, alguém mali-
cioso pode invadir suas contas bancárias e, talvez, roubar sua identi-
dade. Não responda a esta ou a outras perguntas de “identificação” pa-
drão com sinceridade. Tenha uma resposta falsa padrão que você não
use em formulários oficiais ou importantes que sejam seguros. Sobre
esses, diga a verdade.
As precauções rudimentares anteriores destinam-se a formar o há-
bito da privacidade. Muitas pessoas têm o hábito de revelar, de dizer a
verdade reflexivamente. Um hábito nada mais é do que uma resposta
automática que resulta de um padrão de comportamento estabelecido.
Pode ser difícil quebrar o hábito da divulgação e substituí-lo pela dis-
crição, mas é necessário fazê-lo. Nunca minta para um amigo, mas não
entregue a um estranho as chaves da sua identidade.
O governo está indo atrás das criptos, o que significa que ele está
investigando os usuários. Seu ataque na linha de frente será um ataque
à privacidade, porque a privacidade é a espinha dorsal da criptografia
como ferramenta de liberdade. Agora é a hora de aumentar a vigilância.
Parafraseando a comediante Lily Tomlin: “Não importa o quão para-
noica eu fique, nunca é suficiente para acompanhar o ritmo”.
A privacidade pode ser a defesa da linha de frente da liberdade
individual, mas a descentralização é a condição social sob a qual a pri-
vacidade prospera. Ninguém pode ou deve dizer aos indivíduos qual
estratégia específica usar. Mas, se você valoriza privacidade e segu-
rança, mantenha a privacidade e se descentralize.

153
SEÇÃO TRÊS
Descentralização
CAPÍTULO SETE
Descentralização no Núcleo da Cripto-Liberdade
“Muitas pessoas descartam automaticamente a moeda ele-
trônica como uma causa perdida por causa de todas as em-
presas que faliram desde a década de 1990. Espero que seja
óbvio que foi apenas a natureza centralmente controlada
desses sistemas que os condenou. Acho que esta é a pri-
meira vez que estamos tentando um sistema descentralizado
e não baseado em confiança.”
– Satoshi Nakamoto

Apesar do incrível sucesso das criptomoedas, a questão de saber


se o livre mercado pode estabelecer um sistema monetário viável ainda
surge. Muitas vezes é sugerido que a cripto é viável apenas porque
existe em paralelo com a moeda fiduciária, com a qual é conversível e
sobre a qual se baseia. Mas será que a instituição do dinheiro, em última
análise, exige supervisão confiável de terceiras partes e o envolvimento
do estado? (Uma instituição é uma lei, prática ou costume estabelecido
dentro de uma sociedade).
A questão pode ser reduzida a uma mais fundamental: como surge
qualquer instituição dentro da sociedade e como ela declina? A resposta
está dentro dos conceitos de descentralização e centralização.

O que é Centralização? O que é Descentralização?

A centralização concentra o controle de uma atividade ou organi-


zação sob uma única autoridade para coordenar os resultados. Em ter-
mos de monopólio monetário, a atividade é a sociedade; a autoridade é
o estado que coordena o fluxo de finanças com o objetivo declarado de
produzir uma economia eficiente e produtiva. Outro termo para o con-
trole centralizado da sociedade é “engenharia social”. O estado aplica
as teorias da ciência social à gestão de seres humanos para controlar o
posicionamento e funcionamento de cada um. O controle social visa
alcançar uma sociedade que seja justa ou efetiva de acordo com a visão
dos responsáveis.
Nem toda centralização dispensa a escolha individual. Empresas
privadas podem centralizar-se sob uma equipe de gerenciamento para

156
Descentralização no Núcleo da Cripto-Liberdade

aumentar os lucros, por exemplo. Quando o fazem, muitas vezes são


chamadas de corporações. A diferença crucial entre esse cenário e a
centralização estatal é que as empresas são voluntárias e os indivíduos
envolvidos são livres para ir embora e se juntar a um concorrente. Com
o controle social, os indivíduos não têm escolha. Afastar-se significa
infringir a lei, e não há concorrente.
A descentralização é a difusão do poder de uma autoridade central
para suas unidades constituintes. Na arena política, isso significa passar
o controle do nível nacional para o local. A discussão da descentraliza-
ção geralmente começa e termina na esfera política, com o poder ainda
investido em uma autoridade coordenadora. Um governo local pode ser
melhor do que um remoto porque é mais responsivo à comunidade, mas
o ponto final lógico da descentralização é o indivíduo, que é o alicerce
de toda a sociedade e sua unidade constituinte mais básica. Esse arranjo
é tanto um método quanto um objetivo. O método é o empoderamento
do indivíduo. O objetivo é uma sociedade saudável, na qual cada mem-
bro faça suas próprias escolhas de acordo com seu próprio interesse.
A centralização está tão entrelaçada no tecido da cultura que mui-
tas pessoas acreditam ser necessária para o funcionamento da socie-
dade. Escolas públicas, bancos centrais, sistema judiciário, obras públi-
cas, estradas governamentais, tarifas … A maioria das pessoas não con-
segue visualizar a sociedade através de qualquer outra lente que não a
do controle estatal centralizado; é tudo o que conhecem e tudo o que
aprenderam.
Ao longo da maior parte da história, a sociedade foi vista como o
resultado do projeto de alguém. O designador pode ser Deus, um chefe
tribal, um monarca, um comitê de socialistas ou comunistas, uma
equipe de especialistas ou alguma outra entidade que também era o es-
tado, só que com outro nome. A sociedade era vista como uma constru-
ção artificial criada e gerida pelas autoridades. A sociedade era consi-
derada dependente de uma autoridade coordenadora para sua lei, mora-
lidade e prosperidade.
Em sua obra de três volumes Law, Legislation and Liberty, o teó-
rico social Friedrich Hayek se refere a essa posição como “racionalismo
construtivista”. Uma crença construtivista central é que o homem pode
e deve inventar conscientemente instituições sociais, como a lei, através
da aplicação da razão e da ciência social. Hayek argumenta vigorosa-
mente contra essa perspectiva, alegando que os construtivistas não com-
preendem o processo pelo qual as instituições da sociedade surgem e

157
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

evoluem. De fato, ele acredita que a abordagem construtivista é antité-


tica com o processo real, e dificulta as instituições sociais que deveriam
evoluir em vez de seguir um plano. Em uma palestra no Memorial do
Nobel de 1974 intitulada “The Pretense of Knowledge”, Hayek ex-
pressa uma objeção epistemológica básica ao construtivismo – isto é,
uma objeção baseada em uma teoria do conhecimento humano. Ele
afirma que nenhum comitê pode predizer as escolhas em evolução e os
resultados não intencionais de uma massa de pessoas que interagem ao
longo do tempo. A preferência humana é muito variável e muda de
forma a frustrar todo o planejamento.
Para reciclar uma citação anterior no livro:

“O reconhecimento dos limites insuperáveis para esse co-


nhecimento deve […] ensinar ao estudante da sociedade
uma lição de humildade que deveria protegê-lo de se tornar
um cúmplice da batalha fatal do homem para controlar a
sociedade – uma batalha que não apenas o fará um tirano
sobre seus semelhantes, mas que pode muito bem fazê-lo o
destruidor de uma civilização a qual nenhum cérebro desig-
nou, mas sim que cresceu dos esforços livres de milhões de
indivíduos.”

Contemporâneo de Hayek, Ludwig von Mises chega à mesma


conclusão de um ângulo menos epistemológico e mais econômico em
sua obra-prima Human Action:

“A ação humana origina a mudança. Na medida em que há


ação humana, não há estabilidade, mas alteração incessante
[…] Os preços do mercado são fatos históricos expressivos
de um estado de coisas que prevaleceu em um instante de-
terminado do processo histórico irreversível. […] No ima-
ginário e, claro, estado irrealizável de rigidez e estabilidade,
não há mudanças a serem medidas. No mundo atual de mu-
danças permanentes, não há pontos fixos […]”

Tanto Hayek quanto Mises acreditam que o conhecimento bus-


cado pelos construtivistas é inatingível. Não é possível planejar a dinâ-
mica de amanhã com base na de ontem porque as preferências das pes-

158
Descentralização no Núcleo da Cripto-Liberdade

soas e outras circunstâncias são imprevisíveis, mesmo pelas pessoas en-


volvidas; suposições são possíveis, mas o conhecimento não é. Mesmo
uma coisa pequena, como o preço do pão ontem, não dá conhecimento
do preço do pão amanhã, porque pode disparar devido à falta de farinha
ou a uma mudança nas prioridades das pessoas.
Usar uma foto estática da sociedade de ontem para projetar o fu-
turo vai contra um princípio básico da ação humana e da natureza hu-
mana: mudança inevitável. A mudança inevitável é uma diferença fun-
damental entre os seres humanos e os objetos físicos examinados pelas
ciências exatas sobre as quais os construtivistas baseiam sua teoria so-
cial. Um cientista pode aprender tudo o que precisa saber para prever o
comportamento de uma rocha porque a rocha é estática ao longo do
tempo. A água continua a ter a mesma estrutura molecular e continua a
ser definida por constantes, como a lei da gravidade, por exemplo. Mas
a sociedade não consiste em objetos invariáveis. O comportamento dos
seres humanos é baseado na alteração de preferências, emoções e res-
postas psicológicas que podem ser conflituosas ou ocultas até mesmo
das pessoas que estão agindo. Os seres humanos não podem ser catego-
rizados, empilhados e obrigados a obedecer às leis da ciência. A socie-
dade consiste em indivíduos imprevisíveis, que reagem a mudanças nas
circunstâncias. Não são rochas ou água.
Há duas maneiras de os teóricos sociais abordarem a desobediên-
cia do homem imprevisível. Eles podem aceitar a natureza dos seres
humanos e trabalhar suas teorias em torno dela, ou podem tentar mudar
a natureza do homem para que ele se adeque às teorias deles.
Os construtivistas escolhem a segunda opção, com o novo Ho-
mem Soviético ou Pessoa Soviética sendo uma manifestação de suas
teorias. O novo homem soviético foi considerado a evolução lógica dos
seres humanos sob o regime comunista. Em seu livro The Mass Psycho-
logy of Fascism (1933), o psicanalista alemão Wilheim Reich pergunta:
“O novo sistema socioeconômico se reproduzirá na estrutura do caráter
das pessoas? Se sim, como? Suas características serão herdadas por seus
filhos? Será ele uma personalidade livre e autorregulada? Os elementos
de liberdade incorporados à estrutura da personalidade tornarão desne-
cessárias quaisquer formas autoritárias de governo?”
A natureza humana, assim como a sociedade, seria reconstruída
por aqueles que estão no poder. O novo homem soviético era um arqué-
tipo ou ser humano ideal com características específicas que seriam pro-

159
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

jetadas e que evoluiriam a partir do comunismo. A nova natureza hu-


mana seria compartilhada por todos os povos soviéticos, independente-
mente de fatores como diferentes origens culturais ou étnicas. As carac-
terísticas comunistas incluíam altruísmo, entusiasmo pelo comunismo,
saúde física, coletivismo e disciplina. Também haveria uma nova mu-
lher soviética, como o mundo nunca tinha visto antes – abnegada e de-
dicada aos ideais revolucionários.
Em contraste, Hayek trabalha desapaixonadamente com a natu-
reza humana como ela se mostra a ele: interessada por si mesma e indi-
vidualista. Ele vê a engenharia social como sendo mais que meramente
impossível: é também tremendamente destrutiva, porque é a antítese de
uma sociedade natural e destrói as instituições liberais que evoluíram
para servir aos indivíduos, e não ao estado.
Hayek conhecia em primeira mão as terríveis consequências do
planejamento central. Ele havia testemunhado a devastação do libera-
lismo clássico por duas guerras mundiais, mas especialmente pela Pri-
meira Guerra Mundial, que despedaçou os moldes do livre mercado. O
governo em tempo de guerra havia fixado o controle centralizado sobre
o setor privado para garantir o fluxo de armamentos e outros bens “ne-
cessários”. O dinheiro havia sido drasticamente inflacionado e reduzido
em valor para pagar por maciços aumentos militares. A guerra estran-
gulou o fluxo do livre comércio, que os liberais clássicos pensavam ser
um pré-requisito para a paz entre as nações, bem como para a prosperi-
dade dos indivíduos. Hayek viu como a máquina centralizadora do es-
tatismo do século XX destruiu a promessa do liberalismo clássico do
século XIX.
Em refutação ao construtivismo, os economistas austríacos des-
crevem como as instituições em uma sociedade saudável surgem espon-
taneamente. As descrições geralmente começam com modelos simplis-
tas para ilustrar um princípio básico ou ponto – o jeito como um cami-
nho é forjado através de um campo, por exemplo. Uma pessoa toma o
caminho mais curto através de um campo coberto de mato, e sua passa-
gem deixa um rastro tosco de grama pisada para trás. Por uma questão
de conveniência, a próxima pessoa que cruza o campo usa o caminho
áspero, que fica mais claramente estabelecido como resultado. Cada
pessoa que cruza posteriormente contribui para tornar o caminho mais
visível e mais fácil de percorrer. Ninguém constrói o caminho intenci-
onalmente ou como um serviço a outras pessoas; é simplesmente do
interesse de cada pessoa usar a rota mais fácil através do campo. No

160
Descentralização no Núcleo da Cripto-Liberdade

entanto, o reforço auto interessado do caminho beneficia a todos os que


percorrem o campo depois.
Uma das primeiras obras de Mises, Nation, State and Economy
(1919) analisa o quanto fenômenos sociais mais complexos – como a
linguagem – também foram consequências não intencionais de intera-
ções individuais. Nenhum comitê ou autoridade central decidiu inventar
a fala humana ou publicar um dicionário, muito menos projetar uma
linguagem específica como o inglês. De maneira completamente alheia
ao benefício da lei, os indivíduos começaram a se comunicar para obter
o que queriam uns dos outros. Os sons emitidos gradualmente se torna-
ram mais redefinidos e variados, mesmo quando os significados de sons
específicos se tornaram mais amplamente reconhecidos. A linguagem
evoluiu.
Hayek desenvolve um sistema similarmente sofisticado de teoria
social para explicar como todas as instituições da sociedade evoluem
naturalmente de baixo para cima – das interações voluntárias e não pla-
nejadas dos indivíduos – e não de cima para baixo – de especialistas ou
poderosos que impuseram sua vontade. As instituições naturais, sus-
tenta Hayek, são os resultados coletivos, mas não intencionais, da inte-
ração humana: “é resultado da ação humana, e não da projeção hu-
mana”. Mesmo fenômenos sociais complexos – como a escrita, a reli-
gião ou o dinheiro – são consequências não intencionais da interação
humana. A suposta eficiência dos programas governamentais empalide-
ceu em comparação, para dizer o mínimo.
Os construtivistas contra-argumentam que uma sociedade não
planejada é caótica e esbanjadora. Com conhecimento suficiente e uma
abordagem científica, eles acreditavam que uma sociedade perfeita-
mente eficiente poderia ser projetada. Sem excedentes, sem escassez,
sem desperdício, sem desemprego. Os mercados de ações não entrariam
em colapso e as moedas não flutuariam, exceto quando deveriam fazê-
lo. A sociedade poderia ser construída de modo que seus membros ca-
minhassem em uníssono em direção aos mesmos objetivos sociais su-
postamente desejáveis, assim como haviam marchado em uníssono
como soldados rumo à vitória na guerra.
A resposta de Mises aos construtivistas reformularia o conceito
de individualismo.

161
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

O Novo Individualismo Austríaco

Uma nova concepção de individualismo surgiu em resposta a uma


teoria que acompanhava o construtivismo. O holismo social tornou-se
popular no início do século XX. O holismo social afirma que os siste-
mas devem ser vistos como totalidades e não como coleções de suas
partes, e a dinâmica de um todo difere da soma de suas partes. Em suma,
o coletivo é maior e diferente das unidades que o compõem. Uma aná-
lise holística da sociedade geralmente começa com um estudo do cole-
tivo, e não do indivíduo, e assume que o comportamento do indivíduo
é determinado pelo coletivo. O comportamento individual é definido
pelas categorias e propriedades da classe que compõem seu contexto. A
sociedade é mais do que a soma total dos indivíduos que a constituem.
Economistas austríacos afirmam o contrário. A sociedade resulta
de e é explicada pelo comportamento dos indivíduos que, coletiva-
mente, são a sociedade. A sociedade não tem existência independente
de seus membros individuais, todos os quais agem em seu próprio inte-
resse. No entanto, o interesse próprio não é equivalente ao egoísmo,
pois os atos tradicionalmente altruístas – doar para a caridade, ajudar o
próximo, sacrificar-se pela família – são frequentemente vistos pelos
indivíduos como um comportamento que enriquece a vida. No que pa-
rece um paradoxo para alguns, atos tradicionalmente altruístas são mui-
tas vezes realizados como uma questão de interesse próprio.
Os marxistas acusam aqueles que reduzem a sociedade a indiví-
duos de serem atomistas; isto é, diz-se que eles fragmentam a sociedade
em unidades desconexas e isoladas, de modo que a sociedade não existe
verdadeiramente. Em resposta, alguns marxistas chegam ao ponto de
afirmar que é o indivíduo, e não a sociedade, que é a verdadeira abstra-
ção. Ou seja: os indivíduos não existem sem uma sociedade envolvente,
que os defina e os construa. Mises fez uma observação sobre essa posi-
ção: “A noção de um indivíduo, dizem os críticos, é uma abstração va-
zia. O homem real é necessariamente sempre um membro de um todo
social”.
Karl Marx argumenta um ponto semelhante a este usando um ce-
nário de Robinson Crusoé, que é uma maneira popular de construir um
argumento sobre a natureza humana a partir de seus fundamentos abso-
lutos: o homem isolado. Um indivíduo que nasce e é abandonado em
uma ilha deserta, afirma Marx, será mais um ser humano em potencial

162
Descentralização no Núcleo da Cripto-Liberdade

do que um ser humano real. (Alguns socialistas, como Hegel, argumen-


tam que o próprio homem era uma abstração.) Marx faz uma distinção
entre a “natureza humana em geral” e “natureza humana modificada”
por períodos históricos de épocas. Existem dois tipos de impulsos hu-
manos: aqueles que são fixados, como a fome, e aqueles que “devem
sua origem a certas estruturas sociais e a certas condições de produção
e comunicação”. O ponto de Marx é que, além de características ine-
rentes ao instinto, a natureza humana é uma construção social definida
pelo contexto social; a sociedade cria a essência humana de seus mem-
bros individuais. Isso significa que a sociedade poderia construir o que
Marx considera ser o tipo certo de humanidade – como o novo homem
soviético – caso as instituições da sociedade fossem totalmente orienta-
das para alcançar esse objetivo.
Os liberais clássicos argumentam o contrário: uma pessoa criada
isoladamente ainda será um ser humano realizado com características
humanas que vão muito além de um impulso para as necessidades bá-
sicas de sobrevivência. Por exemplo: Crusoé terá uma escala de prefe-
rências que os economistas chamam de utilidade marginal decrescente,
e ele agirá para atingir primeiro a mais alta; ele obterá água para beber
antes de se banhar. Ele terá curiosidade e capacidade de sentir tristeza.
Sem interação social, grandes partes de seu potencial nunca se desen-
volverão, é claro, mas isso não o torna menos humano ou vazio de von-
tade e personalidade individuais. Os coletivos oferecem incentivos para
comportamentos específicos, mas não definem a humanidade dos indi-
víduos. São os seres humanos e sua natureza inata que definem o cole-
tivo. Sob a análise de Mises, esse argumento simples evolui para uma
nova e abrangente abordagem do individualismo.
Como uma teoria social geral, o individualismo significa a defesa
da liberdade individual em oposição ao poder de um coletivo, especial-
mente o estado. Como uma questão pessoal, significa que as pessoas
fazem suas próprias escolhas pacíficas e assumem a responsabilidade
por elas. Embora um individualista às vezes seja caracterizado como
solitário, o oposto geralmente é verdadeiro, porque os seres humanos
são animais sociais – eles anseiam por interação quase tanto quanto por
comida e abrigo. A cooperação e o comércio são a realização do indivi-
dualismo, porque permitem que o indivíduo expresse preferências e sa-
tisfaça necessidades. “Uma vez percebido que a divisão do trabalho é a

163
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

essência da sociedade”, observa Mises, “nada resta da antítese entre in-


divíduo e sociedade. A contradição entre o princípio individual e o prin-
cípio social desaparece”.
Um conceito central da filosofia individualista de Mises é a “pra-
xeologia” – uma palavra [práxis] que significa “obra” ou “ação”, e que
deriva do grego antigo. Seu significado moderno é “o estudo da ação
humana, baseado na crença de que o comportamento humano é propo-
sital em oposição a não intencional ou reflexivo, como piscar”. Exceto
pelo comportamento reflexivo, as pessoas agem, e o fazem porque é de
seu interesse fazê-lo, mesmo que seja apenas para remover aquilo que
Mises chama de “sensação de insatisfação”. Isso acontece tanto para
mudar de cadeira, visando aliviar um músculo dolorido, quanto para
investir no mercado de ações para garantir a aposentadoria. Toda ação
humana é individual, intencional e auto interessada.
Mises então esboça a teoria mais associada a ele. Sua obra-prima Hu-
man Action descreve o individualismo metodológico:

“Primeiro devemos perceber que todas as ações são realiza-


das por indivíduos. Se examinarmos o significado das vá-
rias ações realizadas por indivíduos, devemos necessaria-
mente aprender tudo sobre as ações do todo coletivo. Um
coletivo social não tem existência ou realidade fora das
ações dos membros individuais. Por exemplo: os indivíduos
que compunham uma família interagiam uns com os outros
dentro de um contexto específico; a soma dessas interações
individuais era o que constituía a abstração ‘família’.”

Mises usa a ideia não ideológica e neutra do individualismo me-


todológico para descrever a natureza básica da ação humana, bem como
para desconstruir a abstração do estado. Se apenas os indivíduos agem,
então tudo o que o estado faz ou é pode ser reduzido a ações tomadas
pelos indivíduos que coletivamente constituem o estado. Em um exem-
plo famoso, Mises explica: “É o carrasco, e não o estado, que executa o
criminoso. É o significado dessa ação que simboliza, na ação do car-
rasco, uma ação do estado”. Indivíduos que olham para o carrasco veem
o estado, mas apenas porque aceitaram a abstração chamada “o estado”
como uma estrutura de compreensão do comportamento do carrasco.
Sem o contexto do estado, o carrasco seria visto como um assassino, e
não como um instrumento de justiça.

164
Descentralização no Núcleo da Cripto-Liberdade

Mises admite prontamente que o carrasco age em relação a outros


indivíduos, como os juízes, que também constituem o estado; o carrasco
faz parte do sistema penal. Ele também pode agir sob coerção, porque
a recusa em executar um criminoso pode causar demissão e dificuldades
para sua família. Mas a praxeologia está preocupada apenas com o com-
portamento de um indivíduo, que é o ponto de partida e a única prova
observável da preferência individual. A praxeologia não trata das in-
fluências sociais ou psicológicas sobre a ação humana; esse trabalho
pertence a “outro departamento”. Mises simplesmente afirma que todas
as ações são iniciadas e realizadas por indivíduos que agem para pro-
mover seus próprios interesses. Explicado de outra forma: não é o es-
tado, mas o carrasco individual que levanta o machado mortal. É o
braço do carrasco, e ele não pode escapar da responsabilidade pelas
ações que escolhe tomar. (Claro, isso não exonera outros indivíduos en-
volvidos, como os juízes, por exemplo).
Se apenas os indivíduos agem, então o comportamento coletivo
nada mais é do que a soma total das ações e interações dos membros
individuais. É comum falar de coletivos ou abstrações como se fossem
entidades separadas, que são mais importantes que seus membros. É
comum falar dos indivíduos como se agissem e pensassem como um
grupo. Quando um homem é preso, por exemplo, o noticiário informa
que ele foi apanhado pela polícia. Na realidade, o homem foi algemado
por um único policial, e só depois de um único juiz ter assinado o man-
dado de prisão. Quando ocorre uma batalha, o jornal relata um avanço
militar, quando na verdade foram aqueles soldados específicos os úni-
cos a terem de fato avançado. Grupos não agem ou pensam; os indiví-
duos o fazem; e, às vezes, os indivíduos optam por obedecer a uma au-
toridade central, que acaba dando a impressão de pensamento coletivo.
O individualismo metodológico soa antissocial para alguns. A im-
pressão também pode ser reforçada pelo uso que Mises faz do exemplo
de Robinson Crusoé – o homem isolado – para explicar a praxeologia.
No entanto, este uso não sugere que os seres humanos sejam antissoci-
ais. Muito pelo contrário. O experimento mental de Crusoé destina-se
apenas a remover o fator complicador das relações interpessoais en-
quanto busca a questão “o que é a ação humana qua ação humana?” É
semelhante a um cientista voltando aos princípios fundamentais para
entender uma dinâmica. As conclusões de Crusoé são então aplicadas
ao mundo real da sociedade.
O Human Action explica:

165
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Se a praxeologia fala do indivíduo solitário, agindo apenas


em seu próprio nome e independente dos outros, o faz em
prol de uma melhor compreensão dos problemas da coope-
ração social. Não afirmamos que tais seres humanos autár-
quicos isolados já tenham vivido, e nem que o estágio social
dos ancestrais não humanos do homem, assim como o sur-
gimento dos laços sociais primitivos, tenham se efetivado
no mesmo processo. O homem apareceu na cena dos acon-
tecimentos terrenos como um ser social. O homem a-social,
isolado, é um constructo fictício. (Nota: Autarquia é a ca-
racterística da autossuficiência).

A sociedade aumenta o individualismo porque afasta o ser hu-


mano do nível animal, permitindo que cada pessoa alcance seu poten-
cial e realize objetivos que seriam impossíveis se buscados de maneira
isolada. A interação também é um mecanismo de sobrevivência. A ri-
queza produzida em conjunto pode ser muito mais abundante do que a
riqueza produzida de forma privada, por exemplo, o que deixa todos os
envolvidos mais ricos e mais propensos a prosperar. É justamente esse
tipo de cooperação que levou a humanidade a dominar o planeta. Os
seres humanos são profundamente sociais e as recompensas da socie-
dade são imensas.
Mises argumenta que os coletivos – como a família ou a sociedade
– são abstrações de valor inestimável, pois permitem que as pessoas
entendam e descrevam suas interações com outros indivíduos. Os cole-
tivos fornecem o contexto específico para dar sentido à ação individual
e à mudança da dinâmica do grupo. Ele explica: “O individualismo me-
todológico, longe de contestar o significado de tais totalidades coleti-
vas, considera como uma de suas principais tarefas descrever e analisar
as origens e as ruínas dessas totalidades, assim como suas estruturas
cambiantes e seu funcionamento. E ele o escolhe como o único método
adequado para resolver satisfatoriamente esse problema”. O individua-
lismo é a chave para entender os coletivos. É a descentralização apli-
cada à vida real e cotidiana.
E, ainda assim, se apenas os indivíduos agem, como podem surgir
instituições coletivas? A resposta volta ao conceito de ordem espontâ-
nea desenvolvida por Hayek e outros.

166
Descentralização no Núcleo da Cripto-Liberdade

Ordem Espontânea na Produção Econômica

A análise até agora se concentrou em como as instituições e a so-


ciedade podem surgir – arguivelmente, como um sistema saudável deve
surgir – em função do livre mercado e da livre associação. A dinâmica
é bem fácil de ser descrita se usada como referência uma tribo isolada.
Mas será que a estrutura do individualismo pode ser expandida do nível
local ao global, a fim de fornecer mecanismos complexos, como o co-
mércio internacional, onde os indivíduos geralmente não se conhecem
nem interagem diretamente?
No nível local, a cooperação geralmente é intencional. Os agri-
cultores vendem os produtos para os mercados locais; uma equipe de
programadores projeta o melhor e mais recente aplicativo; um hospital
coordena os horários dos funcionários, com médicos consultando os pa-
cientes; caminhoneiros entregam mercadorias em determinado ende-
reço; um negócio de startup contrata um especialista em marketing. Es-
tes são contatos intencionais e diretos dentro do contexto limitado de
uma sociedade.
Como podem indivíduos, de países estrangeiros, que não se co-
nhecem e nem falam a mesma língua, esperar cooperar na criação de
alguma coisa? Por acaso não é necessária uma autoridade suprema para
a coordenação de estranhos no comércio global? Se assim for, então a
autoridade suprema – isto é, o estado – também é necessária interna-
mente, porque todas as nações modernas vivem ou morrem no comércio
global. A exigência de centralização reintroduz o estado como um po-
deroso e legítimo policial da economia.
Mas o comércio global não requer supervisão. Pode parecer para-
doxal dizer que estranhos irão cooperar inconscientemente para benefí-
cio mútuo porque é do seu próprio interesse fazê-lo. Mas é isso o que
acontece. A cooperação não visa a criação de sociedades ou instituições.
Cada participante visa enriquecer-se.
“Eu, o Lápis” é um breve ensaio de Leonard Read, fundador da
Foundation for Economic Education. É uma curta história contada a
partir da perspectiva de um lápis, que narra sua própria criação. A saga
começa com a colheita, mineração e formação de matérias-primas em
terras distantes, incluindo cedro, cola, cera, grafite, laca e pedra-pomes.
Os trabalhadores estrangeiros vendem quantidades definidas para uma
variedade de negócios estrangeiros, e o fazem visando ganhar dinheiro

167
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

para alimentar suas famílias. Podem desconhecer o destino ou finali-


dade das matérias-primas; eles podem não se importar, mas eles o fazem
mesmo assim.
As tripulações de navios estrangeiros transportam os materiais
para um destino específico, onde os estivadores descarregam os contêi-
neres e os caminhoneiros os transportam para uma fábrica de lápis. Os
indivíduos da tripulação e os do cais provavelmente são indiferentes ou
ignoram o conteúdo da carga, porque recebem os mesmos salários in-
dependentemente da remessa. Até este ponto, todos os envolvidos na
fabricação de pré-lápis não se importam com os próprios lápis; eles nem
mesmo sabem o papel que desempenham no processo da fabricação dos
lápis. Seu propósito é, pura e simplesmente, ganhar a vida.
A matéria-prima chega a uma fábrica de lápis, onde pode começar
a cooperação autoconsciente para a criação do lápis. Embora as fábricas
de lápis hoje sejam provavelmente automatizadas, isso não diminui a
cooperação humana necessária para produzir um lápis. Mesmo as fábri-
cas automatizadas exigem supervisão administrativa, assim como for-
necedores de equipamentos, reparadores, zeladores, investidores e uma
série de outros indivíduos para produzir um único lápis. No entanto,
isso não significa que essas pessoas se conheçam, nem necessariamente
que se importem com lápis. O que isso tudo de fato significa é que eles
querem lucrar com salários e retornos.
O produto de uma multidão de estranhos que agem apenas se-
gundo seus próprios interesses isolados é um lápis.
Em sua introdução a “Eu, o Lápis”, o economista ganhador do
Nobel Milton Friedman escreve:

Nenhuma das milhares de pessoas envolvidas na produção


do lápis executou sua tarefa porque queria um lápis. Alguns
deles nunca viram um lápis e não sabem para que serve.
Cada um vê seu trabalho como uma forma de obter os bens
e serviços que deseja: bens e serviços que produzimos para
obter o lápis que desejamos. Cada vez que vamos à loja e
compramos um lápis, estamos trocando um pouco de nos-
sos serviços pela quantidade infinitesimal de serviços; os
serviços que cada um dos milhares de indivíduos prestaram
para conseguir o que queriam, e que acabaram por produzir
o lápis.

168
Descentralização no Núcleo da Cripto-Liberdade

É ainda mais surpreendente que o lápis tenha sido produ-


zido. Ninguém sentado em um escritório central deu ordens
a essas milhares de pessoas. Nenhum policial militar fez
cumprir as ordens que não foram obedecidas. Essas pessoas
vivem em países diferentes, falam línguas diferentes, prati-
cam religiões diferentes e podem até se odiar – e ainda as-
sim, nenhuma dessas diferenças os impediu de cooperar
para, sabendo ou não, produzir um lápis. Mas como foi que
isso pôde acontecer? Adam Smith nos deu a resposta […]
há duzentos anos.

A resposta de Smith foi a “mão invisível”. O termo é introduzido


no livro que Smith considera sua obra-prima: A Teoria dos Sentimentos
Morais, e reaparece em sua obra subsequente, A Riqueza das Nações. A
Mão Invisível refere-se aos benefícios não intencionais, mas imensos
para a sociedade, que fluem de pessoas que agem em seus próprios in-
teresses, especialmente no interesse econômico, da maneira descrita
pelo conto “Eu, o Lápis”. Quase que invisivelmente, a ordem surge das
ações auto interessadas de indivíduos, que cooperam com outros de ma-
neira intencional ou não, consciente ou não. A ordem natural declina
quando a interação voluntária é prejudicada pela interferência do es-
tado. Em suma, a liberdade traz civilização e prosperidade; o poder pro-
duz conflito e pobreza.
“Eu, o Lápis” e “A Mão Invisível” esclarecem outra confusão que
pode advir de discussões de ordem espontânea; ou seja: a definição de
ordem espontânea como o “resultado da ação humana, mas não da pro-
jeção humana” é um pouco ambígua. Claramente, há uma ordem plane-
jada dentro da cadeia de atividades necessárias para fazer um lápis. Os
trabalhadores que coletam as matérias-primas trabalham para uma em-
presa que tem, projetado, um objetivo específico, e o mesmo vale para
os trabalhadores dos navios e das docas. A fábrica é uma máquina alta-
mente projetada.
A frase “o resultado da ação humana, mas não da projeção hu-
mana” não nega que a produção requer projeção. “Não da projeção hu-
mana” significa que nenhum planejador central organiza e coordena
qualquer etapa da produção. Toda a organização e estrutura são forne-
cidas por aqueles indivíduos que, em diferentes etapas, projetam, ge-
renciam ou trabalham de maneira independente, dentro de suas próprias
etapas, para os empreendimentos que resultam, na soma total dessas

169
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

etapas, em um lápis. Sem uma autoridade de supervisão, eles se coor-


denam e funcionam bem. De fato, uma autoridade supervisora seria um
obstáculo à sua eficiência. A frase “o resultado da ação humana, mas
não da projeção humana” procura explicar como redes complexas po-
dem surgir da cooperação “não intencional”: uma cooperação da qual a
vida moderna depende.
“Não da projeção humano” refere-se ao exército de estranhos, cu-
jas ações auto interessadas e ostensivamente descentralizadas entregam,
sem a necessidade de intenção, uma variedade impressionante de mer-
cadorias. Eles só precisam agir (e sempre agem) em seu próprio inte-
resse. Como resultado, a pessoa média desfruta hoje de um padrão de
vida mais alto do que os nobres no passado, incluindo frutas fora de
época e uma magnífica variedade de vinhos para acompanhá-las. A co-
operação também une as pessoas em paz, porque elas têm interesse em
continuar a lucrar umas com as outras por meio do comércio. Multipli-
que essa cooperação pelos muitos milhões de interações que criam mi-
lhões de produtos e serviços, e a dinâmica coletiva se torna uma cola
que mantém as sociedades unidas e permite que o comércio global
surja: comércio esse que é o motor da paz.
Até agora, a ordem espontânea foi aplicada à economia – a base
da sociedade. Dentro da ordem espontânea, a economia é muitas vezes
chamada de cataláxia.

170
CAPÍTULO OITO
A Cripto Como um Fenômeno Econômico Austríaco
O Bitcoin é melhor entendido quando visto pela lente con-
ceitual da Cataláxia: os participantes do Bitcoin formam es-
pontaneamente um ecossistema monetário e financeiro des-
centralizado, escolhendo coletivamente o Bitcoin como
meio de troca e reserva de valor. O Bitcoin é uma demons-
tração irrefutável de ordem espontânea na prática.
– Francis Pouliot

A Cripto-Cataláxia

A teoria praxeológica da cataláxia explica como a ordem econô-


mica emerge de um sistema descentralizado, originado das ações des-
coordenadas e diversas de indivíduos que perseguem seus próprios in-
teresses; é a ordem econômica espontânea. Às vezes chamado de “ca-
taláctica”, o conceito econômico é um dos avanços intelectuais que per-
mitiram aos defensores do livre mercado explicar como a sociedade
evoluiu sem uma autoridade central. Hayek a define como “a ordem
trazida pelo ajuste mútuo de muitas economias individuais em um mer-
cado”.
O termo obscuro capta a dinâmica que cria a civilização: a coo-
peração econômica espontânea entre indivíduos e grupos de indivíduos.
Se os seres humanos devem se elevar acima do nível de Robinson Cru-
soé, eles devem interagir em benefício mútuo. A cooperação é tão vali-
osa para a liberdade individual que Satoshi forneceu o modelo da blo-
ckchain gratuitamente como uma forma de melhorar o mundo porque
isso melhorou a vida dele. E fez isso segundo seu próprio interesse.
A revolução Satoshi exemplifica como o individualismo metodo-
lógico e a cataláxia trabalham juntos. O controle econômico é dado aos
indivíduos. As pessoas armazenam suas riquezas em carteiras privadas,
com as quais realizam comércio internacional sem passar por um sis-
tema bancário, o que equivaleria a passar pelo estado. A descentraliza-
ção é reforçada, e não contrariada, pela cooperação de uma rede de pes-
soas estranhas agindo, cada uma, em seu próprio interesse. E ainda as-
sim, todos os estranhos se beneficiam, mesmo que não gostassem uns

172
A Cripto Como um Fenômeno Econômico Austríaco

dos outros casos se encontrassem pessoalmente. A criptoeconomia é a


verdadeira sociedade econômica.
Ao longo da obra de Hayek, Mises e outros economistas pró-livre
mercado, dois conceitos fundamentais emergem repetidamente: indivi-
dualismo metodológico e ordem espontânea. Os dois conceitos são a
espinha dorsal que forma a estrutura ideológica da cripto. Eles também
explicam por que a explosão da cripto liberdade foi tão inesperada: sur-
giu dos indivíduos e da liberdade de ação, que estimulam explosões im-
previsíveis de criatividade. Com as criptomoedas, a explosão ocorreu
na área mais necessitada: a liberdade financeira.
A área mais difícil de implementar o individualismo metodoló-
gico é a financeira, porque ela foi controlada por muito tempo por um
dos coletivos mais poderosos que existem: os bancos centrais, que fun-
cionam como braços do estado. Isso significa que as instituições que
cercam o banco central foram formadas por sua presença e por suas
exigências, e que as atitudes financeiras comuns foram formadas de ma-
neira semelhante.
A sociedade precisa ser lembrada: o estado não produz riqueza.
No entanto, o estado precisa de grandes quantias para financiar a buro-
cracia, os militares e outras armadilhas centralizadas do poder. Isso sig-
nifica que o estado precisa roubar grandes quantidades de riqueza do
setor privado – das pessoas comuns. Mas fazê-lo diretamente pode cau-
sar resistência na forma de revoltas fiscais ou em algo pior – pior para
o estado, é claro. Assim, o estado emite títulos, moeda fiduciária com-
pulsória, incentiva a inflação e compele todo o comércio a passar por
instituições corporativistas – compadres dele – que estão sob seu con-
trole. Muitas pessoas aceitam esse status quo como sendo “o jeito que
o mundo gira”. Mas o que mais eles sabem? Outros, especialmente
aqueles com compreensão da história, sabem que essa situação não é
política ou moralmente inevitável, e muito menos necessária. No en-
tanto, por muito tempo os rebeldes encontraram um caminho viável que
fosse capaz de contornar a centralização das finanças.
Junte-se à cripto. É uma expressão pura do individualismo meto-
dológico e da ordem espontânea. Mas “É” de que forma? As formas
incluem:
• É a descentralização em larga escala. A engenharia central do di-
nheiro e seu fluxo é incorporada por leis de curso legal, dinheiro

173
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

fiduciário inflacionado, bancos centrais, leis de licenciamento fi-


nanceiro, requisitos de relatórios e outros monopólios econômi-
cos criados artificialmente pelo estado. Enquanto os indivíduos
tiverem de seguir as regras do estado, especialmente o uso de fiat
e bancos, não haverá liberdade financeira. No que pareceu um
instante, mas que na verdade levou anos, Satoshi (e seus prede-
cessores) descentralizou o dinheiro e seus meios de transmissão.
As abstrações do estado e dos bancos centrais foram substituídas
pelos indivíduos, que agem em seu próprio interesse.
• É descentralização consciente. O objetivo do Bitcoin e da block-
chain é contornar a necessidade de uma terceira parte confiável,
especificamente o banco central e o estado. A primeira linha de
“Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System” diz: “Uma ver-
são puramente peer-to-peer de dinheiro eletrônico permitiria que
pagamentos online fossem enviados diretamente de uma parte
para outra sem passar por uma instituição financeira”. Ao fazer
isso, a criptomoeda ignora as instituições usadas pela elite domi-
nante para roubar riqueza.
• O dinheiro é valorizado pelos indivíduos. Os construtivistas acre-
ditam que o dinheiro é uma construção social, que recebe signifi-
cado e valor pelo estado da mesma maneira que os seres humanos
recebem a humanidade por meio da socialização. Satoshi vira o
mundo dos construtivistas de cabeça para baixo. O dinheiro do
estado é uma fraude, e ele sabe disso. Os indivíduos que mineram
e usam criptomoedas infundem valor nela sempre que a escolhem
como meio de troca. E eles não apenas criam riqueza – os indiví-
duos também definem o valor dela.
• A cripto é profundamente individualista. Isso é verdade não ape-
nas sobre suas funções, mas também sobre sua estrutura. Ela fun-
ciona através da involuntária cooperação de indivíduos auto inte-
ressados, como por exemplo os “mineradores”. A estrutura da
blockchain não pode ser centralizada ou nacionalizada; é descen-
tralização exemplificada. Vladimir Putin de forma infame disse
que “nem a Rússia, nem qualquer outro país, ‘por definição’, pode
ter sua própria criptomoeda. Se falarmos sobre criptomoedas –
isso é algo que vai além das fronteiras nacionais”. As criptomoe-
das em uma blockchain chegam o mais próximo possível de uma

174
A Cripto Como um Fenômeno Econômico Austríaco

moeda que o estado não pode controlar ou centralizar. Alguns ar-


gumentam que as criptomoedas já são coletivistas, porque depen-
dem de uma rede cooperativa de mineradores, nodes, desenvol-
vedores e administradores; alguns afirmam que a própria rede
constitui uma terceira parte confiável. Mas isso não é verdade. A
rede é um modelo de como um sistema independente de confiança
opera na prática. A acusação confunde cooperação com coleti-
vismo e consenso com planejamento central.
• A cripto expressa o mesmo tipo de ordem espontânea mundial que
o conto “Eu, o Lápis.” Em todo o mundo, estranhos involuntaria-
mente cooperam uns com os outros para benefício mútuo. Suas
valorações subjetivas e auto interessadas fortalecem algumas
criptomoedas e desvalorizam outras, criando e atualizando uma
taxa de câmbio para cada uma delas. As criptomoedas prospera-
ram precisamente porque é um imenso número de estranhos que
controlam os nodes, que fazem as transferências, que inovam, que
escrevem códigos e, no fim, cooperam. Cada ato é feito por mo-
tivos auto interessados, mas que acabam resultando em lucro para
si e para os outros.
• A cripto pode parecer caótica, mas expressa uma ordem natural.
A ordem centralizada lembra um desfile militar ou as obedientes
filas indianas de triagem aeroportuária. A ordem espontânea as-
semelha-se a uma autoestrada movimentada onde os carros po-
dem mudar de faixa constantemente, entrando e saindo à vontade.
O que parece ser caos é uma forma sofisticada de organização, na
qual estranhos voluntariamente participam. A autoestrada de apa-
rência caótica leva as pessoas ao seu destino de desejo dia após
dia.
• A cripto traz ordem ao campo monetário através de uma diversi-
dade que oferece escolhas quase infinitas. Bancos centrais e ins-
tituições financeiras licenciadas pelo estado impõem a uniformi-
dade, porque elas precisam que os clientes estejam em conformi-
dade com os regulamentos e requisitos de relatórios do estado. A
uniformidade imposta e a ordem centralizada não refletem as pre-
ferências dos indivíduos; eles refletem as preferências do estado.
A comunidade cripto evita a uniformidade, porque a cripto atende
a indivíduos cujas preferências são incrivelmente diversas. So-

175
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

mente quando “uniformidade” é usada como sinônimo de “or-


dem” que a cripto se torna desordenada. Caso contrário, a cripto
espelha o mesmo tipo de ordem que o pregão de uma bolsa de
valores.
• O estado é irrelevante e é um obstáculo para a cripto. A centrali-
zação requer o estado ou algum substituto equivalente, porque a
uniformidade não é natural e, para ser “aceita” deve ser empur-
rada goela abaixo. A descentralização, por sua vez, não requer um
estado, porque não há conformidade forçada de ação ou preferên-
cia. Todas as escolhas são feitas livremente pelos indivíduos en-
volvidos.
• A cripto é a “mão invisível” da moeda. O termo descreve os be-
nefícios sociais e econômicos não intencionais de ações tomadas
pelos indivíduos visando seus próprios interesses. Ao perseguir
seus próprios interesses financeiros, os usuários de cripto fazem
muito mais para valorizar a moeda e criar práticas financeiras só-
lidas do que reformadores, que protestam por mudanças dentro do
status quo sem questionar seus fundamentos… e sem conseguir
resultados.
A cripto é uma expressão pura da economia austríaca.

Os Aspectos Revolucionários Não Reconhecidos da Cripto

A cripto lembra a “teoria do atirador solitário”. Embora o termo


seja geralmente associado ao assassinato do presidente John Kennedy e
à subsequente Warren Commission, seu significado pode ser expan-
dido. A história tropeça ao longo de um caminho bastante estável, em-
bora nem sempre fácil, que é amplamente planejado pelo estado. Então
um atirador solitário salta dos arbustos e atira no arquiduque Francisco
Ferdinando, da Áustria, no Presidente McKinley, ou em JFK. A socie-
dade vira de cabeça para baixo. No caso de Ferdinando, o assassinato
desencadeou a Primeira Guerra Mundial. A história muda para sempre,
e a mudança não pode ser desfeita.
O controle estatal do mundo financeiro avançou esplendidamente
ao longo do século XX – ou miseravelmente, dependendo da sua pers-
pectiva. Uma rede mundial de controle foi lançada sobre as finanças
dos indivíduos através de medidas como a Foreign Account Tax Com-

176
A Cripto Como um Fenômeno Econômico Austríaco

pliance Act (FATCA), que tentou garantir que os indivíduos que busca-
vam a liberdade não tivessem para onde ir com seu dinheiro. Então a
cripto salta dos arbustos e assassina o sistema bancário. A história eco-
nômica muda para sempre, e a mudança não pode ser desfeita.
O efeito da cripto nas instituições financeiras estatais é bem co-
nhecido, mas os efeitos sobre política social são menos discutidos. Pre-
visivelmente, a explosão de liberdade que abalou o sistema bancário
central também impactou outras instituições e políticas do estado. Aqui
estão algumas poucas:
Política estrangeira. A comida é frequentemente usada como
arma de política externa. Um artigo do Free Thought Project descreve
como a blockchain neutraliza o uso belicoso de alimentos: “A tecnolo-
gia revolucionária da blockchain está ajudando a vítimas de desastres
& alimentando os famintos sem estado”. “Enquanto estados e banquei-
ros afirmam que criptomoedas e blockchain são ferramentas de crimi-
nosos, milhões de dólares em ajuda – gerados por essas tecnologias –
estão ajudando os menos afortunados em todo o mundo”. A ideia central
do artigo é que as criptomoedas permitem que nações e indivíduos ca-
rentes contornem sanções econômicas impostas a eles por nações mais
poderosas. Tornou-se mais difícil deixar as pessoas famintas por vanta-
gens políticas.
Política doméstica. Quando o estado da Venezuela desvalorizou
o Bolívar, removendo três zeros da moeda, os cidadãos migraram para
a alternativa de livre mercado do bitcoin, com a qual eles já estavam
familiarizados. “Nas economias avançadas, criptomoedas ativas como
o bitcoin até agora tiveram pouco propósito além de especulação e jogos
de azar. Mas nos países onde o sistema monetário e as estruturas finan-
ceiras estão desmoronando, o bitcoin pôde fornecer uma reserva alter-
nativa de valor em relação à já demasiadamente inflacionada moeda lo-
cal”. A cripto resgata empresas; ela salva vidas.
O Controle Social do “Vício”. A “Operação Chokepoint” foi uma
operação bancária e política da era Obama, que atacava negócios su-
postamente indesejáveis, mas legais, como a venda de maconha medi-
cinal, sexo e armas. O sistema bancário fechou contas, cancelou cartões
de crédito e negou todos os seus serviços aos clientes “malfeitores”.
Essa prática está sendo revivida hoje. Mais uma vez, os bancos estão
mirando nas lojas de maconha, nos profissionais do sexo e nas empresas
de armas, independentemente de eles estarem ou não realizando um ne-

177
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

gócio legal. Cada vez mais, os vendedores de bens e serviços desapro-


vados têm adotado as criptomoedas como forma de sustentar seus meios
de subsistência.
Proteção da Liberdade de Expressão. Depois de fazer circular do-
cumentos que constrangiam estados, o Wikileaks enfrentou um blo-
queio bancário que acabou com as doações, que eram seu sangue vital.
Então a Wikileaks abriu doações via bitcoin e a riqueza foi mais uma
vez derramada sobre a empresa. A censura foi evitada. O mesmo acon-
tece com a indústria pornográfica, que é um alvo da Operação Choke-
point.
O Livre Fluxo de Informações. Os processos contra a propriedade
intelectual são geralmente baseados em seguir a trilha do dinheiro e
descobrir os indivíduos do outro lado. Mas com o anonimato criptográ-
fico, essa estratégia cai por água abaixo. Um artigo do site bitcoin.com,
intitulado “Escritório de Propriedade Intelectual [IP] da UE: Bitcoin
impede esforços antipirataria”, explica: “A ameaça inerente ao Bitcoin,
de acordo com o relatório, é que as transações não podem ser facilmente
vinculadas a um indivíduo no mundo real. Este problema é ruim para o
EUIPO, uma vez que a aplicação dos direitos de autor é normalmente
baseada na estratégia de seguir a trilha do dinheiro”. Isso beneficia o
fluxo global de informações.
Política de imigração. A imigração e a migração temporária são
muitas vezes motivadas por um desejo de enviar dinheiro de volta para
casa. Mas os migrantes também são frequentemente “desbancarizados”
por instituições financeiras que exigem documentação, e a única alter-
nativa é pagar taxas enormes para enviar dinheiro através de uma em-
presa privada, com suas famílias esperando dias pelas transferências. O
presidente Trump ameaçou cortar esse incentivo à migração ao fechar
ainda mais canais de transmissão. Mas, infelizmente, transferências rá-
pidas e baratas via criptomoedas são incrivelmente difíceis de controlar.
O Estrangulamento dos Advogados e dos Tribunais. Contratos in-
teligentes são contratos jurídicos vinculados que usam software para
auto executar os termos do contrato. Os contratos inteligentes peer-to-
peer podem um dia se tornar onipresentes, desde negócios imobiliários
até pedidos de seguro, o que reduzirá drasticamente a necessidade de
advogados.
A Autonomia da Família. Os impostos sobre herança são hedion-
dos porque são uma dupla tributação: assim que morre e passa suas pro-

178
A Cripto Como um Fenômeno Econômico Austríaco

priedades remanescentes para sua família, a pessoa cuja riqueza foi tri-
butada por toda a vida é cobrada mais uma vez pelo estado. A cripto
divide invisivelmente os bens entre os entes queridos – não há espaço
para o estado na família.
Tudo isso é apenas uma pequena amostra do impacto revolucio-
nário do uso das criptomoedas. As instituições que servem ao livre mer-
cado estão sendo lentamente devolvidas ao controle e serviço dos indi-
víduos. As instituições que atendem ao estado estão sendo ignoradas e
afundando cada vez mais.
As criptomoedas são o dinheiro da sociedade, não do estado. Sua
evolução oferece um raro vislumbre de como instituições essenciais po-
dem surgir em um livre mercado, sem a assistência do estado. A cripto
de livre mercado é a manifestação do individualismo metodológico e da
ordem espontânea em grande escala em uma área essencial da vida: a
privacidade financeira.

Descentralização como Desobediência

A descentralização como estratégia para a liberdade acontece


quando indivíduos buscam empoderar-se, separando-se do estado e rei-
vindicando sua autonomia como indivíduos. Uma maneira de se separar
é desobedecer à lei. A maioria das pessoas desobedece a lei de maneiras
triviais e pacíficas todos os dias de suas vidas. Elas ignoram os limites
de velocidade, constroem um anexo não autorizado à sua casa, cruzam
o sinal vermelho, mentem nos formulários do estado, recebem paga-
mentos por baixo da mesa, queimam lixo no quintal, andam no meio da
rua, recusam perguntas do censo, passeiam com o cachorro sem coleira
ou sem licença e enviam mensagens de texto enquanto dirigem. Essas
pequenas ofensas trazem pouco risco além de uma multa, mas mostram
que as pessoas não se importam com a desobediência a leis que não
fazem sentido ou que as incomodam de forma irracional.
Depois, há aqueles que desobedecem a lei de maneira mais séria.
Eles sonegam impostos, estabelecem negócios não licenciados, usam
drogas ilegais, mentem para a polícia, trocam sexo por dinheiro ou con-
trabandeiam. Esses delitos acarretam uma possível pena de prisão, mas
a disposição das pessoas em desobedecer mostra que uma parcela sig-
nificativa da população despreza as leis de crimes sem vítimas com
tanto desprezo que elas as não cumprem, mesmo com risco considerá-
vel para seu bem-estar.

179
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Nos anos 80, uma estratégia popular pela qual os indivíduos des-
centralizavam completamente suas vidas ficou conhecida como “Brow-
ning-out”, porque os praticantes usavam o livro best-seller de Harry
Browne, How I Found Freedom in an Unfree World: A Handbook for
Personal Freedom, como um modelo. Browne define a liberdade como
viver a vida como você deseja viver enquanto permite que outros façam
o mesmo. Em vez de protestar contra o estado ou buscar reformas dis-
tantes por meio de organizações, como os republicanos ou os democra-
tas, Browne afirma que as pessoas podem desfrutar de um alto grau de
liberdade aqui e agora. O capítulo 7 de seu livro, intitulado “As Arma-
dilhas do estado”, afirma: “Mas quem é a ‘sociedade’, senão as pessoas
que já expressam suas necessidades e preferências no mercado? Se elas
não estão dispostas a pagar pelo serviço no livre mercado, quem pode
dizer que estão dispostos a pagar por ele através do estado? Todas as
ações do estado dependem de transações unilaterais, nas quais um indi-
víduo é forçado a escolher entre pagar pelo que não quer ou ir para a
cadeia”. Aqueles que Browned-out (saíram como Browne) da Armadi-
lha do estado descentralizaram o poder em suas vidas para o nível pes-
soal, onde eles eram a única autoridade sobre suas próprias escolhas.
Sair da sociedade tem um custo alto, no entanto. Não é apenas
que o Estado tenta dar exemplos de dissidentes. É também que a socie-
dade é um benefício incrível para a humanidade. Facilita “bens” como
conhecimento, prosperidade, cultura, progresso e autorrealização emo-
cional de uma maneira impossível para os seres humanos isolados. Re-
tirar-se torna-se preferível apenas quando uma sociedade é tão totalitá-
ria que constitui um perigo ou tormento para a própria vida. Esse é o
ponto ao qual os escravos americanos arriscaram suas vidas para fugir
do Norte, com cães e homens armados em seus calcanhares. Esse é o
ponto ao qual pessoas desesperadas escalaram um muro de arame far-
pado em Berlim Oriental, apesar das armas apontadas em suas costas.
Pessoas desesperadas tentaram escapar de uma selvageria que se faz
passar por ordem social, e arriscaram suas vidas para fazê-lo.
A lição: a sociedade só tem valor para os indivíduos na medida
em que eles têm a capacidade de dizer “não”. Nada é um “bem” incon-
dicional; até mesmo o alimento com o qual a vida se sustenta não é um
bem incondicional. Pergunte às pessoas que desejam cometer suicídio
ou a um prisioneiro em greve de fome. O que é bom ou ruim depende
de circunstâncias que devem ser avaliadas pelo próprio indivíduo. O

180
A Cripto Como um Fenômeno Econômico Austríaco

valor da sociedade depende da descentralização do poder, porque só as-


sim os indivíduos que a compõem poderão sempre dizer “não”.
A cripto fornece uma nova estratégia de liberdade, que evita mui-
tas das desvantagens da desobediência aberta ou emigração; ela oferece
uma revolução pacífica baseada no interesse próprio e que contorna o
estado, em vez de enfrentá-lo. As pessoas podem dizer “não” a aspectos
intoleráveis da sociedade, como o monopólio monetário, enquanto per-
manecem fisicamente conectadas com o resto.
Para muitos, uma revolução pacífica soa como uma contradição
em termos. A confusão envolve a questão da revolução, porque ela foi
mal retratada na ciência política e mal representada na realidade. Ruas
com barricadas, pessoas em fúria, carros em chamas, confrontos com
militares, gás lacrimogêneo, vitrines quebradas de lojas saqueadas...
isso não é revolução. A verdadeira mudança vem dos corações e mentes
das pessoas quando elas abraçam uma nova ideia, uma nova visão. A
verdadeira revolução não é raiva e desespero; é esperança e realização.
John Adams escreveu a Thomas Jefferson sobre a Revolução
Americana. “O que queremos dizer com Revolução? Guerra? Isso não
fazia parte da Revolução. Foi apenas um Efeito e Consequência disso.
A Revolução estava na mente do povo, e isso foi efetuado, de 1760 a
1775, no decorrer de quinze anos antes que uma única gota de sangue
sequer fosse derramada em Lexington.” Adams explicou onde a Revo-
lução Americana poderia ser encontrada. “Os registros de treze legisla-
turas [coloniais], os panfletos, jornais em todas as colônias devem ser
consultados, durante esse período”. Durante quinze anos antes do le-
vante, oradores e escritores vinham educando incessantemente o pú-
blico sobre seus direitos naturais e a common law (lei comum). Essa foi
a verdadeira Revolução Americana.
Uma revolução social nada mais é do que uma mudança funda-
mental em uma sociedade que transfere o poder de um grupo ou classe
para outro. A verdadeira revolução ocorre somente depois que as bases
intelectuais foram estabelecidas para mudar os corações e mentes de
uma parcela suficientemente significativa da população; alguns esti-
mam que a porção não deve ser superior a 10%. Se as bases intelectuais
não foram estabelecidas, então as erupções violentas inevitavelmente se
transformam em golpes, com um novo grupo de elites substituindo o
antigo grupo. Enquanto for politicamente liderada, a revolução retor-
nará ao “novo chefe, igual ao antigo chefe”, e os indivíduos não serão
empoderados.

181
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Uma revolução de e para as pessoas comuns significa que a mu-


dança no poder é descentralizada das elites para o nível individual. A
violência apenas interfere nesse processo. É tentador especular o que
teria acontecido se a revolução intelectual nas colônias americanas não
tivesse sido interrompida pela violência. A verdadeira revolução refe-
renciada por Adams estava lentamente conquistando a lealdade das pes-
soas comuns, e poderia ter produzido uma derrubada não violenta do
jugo britânico. Como seria a América agora se não tivesse nascido com
sangue? Felizmente, seu verdadeiro nascimento foi no papel de jornal,
o que pode explicar por que terminou melhor do que a Revolução Fran-
cesa.
A explosão silenciosa causada por Satoshi em 2008 foi “uma re-
volução” porque derrubou a realidade do controle financeiro estatal e
descentralizou o poder do estado para a pessoa comum. Aqueles que
chamam o Bitcoin de revolucionário, no entanto, são descartados como
hiperbólicos, porque a erupção criptográfica não está de acordo com as
imagens de ruas ocupadas com barricadas e pessoas gritando “estado de
merda!”. Os pioneiros das criptomoedas não se assemelham a revoluci-
onários armados, atirando na selva aos moldes de Che Guevara. O pró-
prio Satoshi permanece anônimo, e isso é inédito para um líder revolu-
cionário. E o Bitcoin rompe com esse estereótipo de revolução de várias
maneiras. Foi uma revolução modesta e despretensiosa, em que nenhum
sangue foi derramado. A área da vida que causou turbulência foi a fi-
nança – também conhecida como “lucro imundo” – e isso raramente é
considerado uma causa nobre, digna de uma revolução. Não deveria
uma bandeira que se preze dizer “LIBERDADE, JUSTIÇA” em vez de
“DINHEIRO PRIVADO”?
Isso acontece porque a independência financeira é liberdade e jus-
tiça. A capacidade das pessoas de fazer e manter a riqueza que ganham
é a maneira como elas alimentam seus filhos e perseguem sonhos; é
como elas passam da fome ao bem-estar; a riqueza permite que as pes-
soas possuam a terra em que andam; o “lucro imundo” transforma uma
assembleia de estranhos em uma sociedade civil, em indivíduos que ne-
gociam uns com os outros em vez de fazerem guerra uns contra os ou-
tros. O dinheiro é o motor da própria civilização porque a liberdade de
expressão, a arte, a literatura e as outras incríveis conquistas humanas
só acontecem quando as pessoas conseguem se alimentar.

182
A Cripto Como um Fenômeno Econômico Austríaco

A Revolução Satoshi é uma revolução das esperanças crescentes,


que se tornou possível através da descentralização do controle econô-
mico que as criptomoedas forjaram. É uma revolução de pessoas co-
muns, que agora têm uma alternativa viável ao fiat opressivo e aos ban-
cos centrais.
“A revolução das esperanças crescentes” refere-se a uma situação
em que mesmo um leve aumento na prosperidade e na liberdade leva as
pessoas comuns a acreditar que podem melhorar suas vidas por meio de
seus próprios esforços. Essa crença os faz exigirem mudanças políticas
e econômicas que tragam mais liberdade e mais prosperidade. A pessoa
comum não é uma lutadora da liberdade, e sua demanda por mudança
não depende de ideologia. Depende do interesse próprio. Elas querem
uma vida melhor para si mesmas e para seus filhos. E para isso, estão
dispostas a lutar – principalmente de forma não violenta.
A frase “revolução das expectativas crescentes” surgiu depois que
a Segunda Guerra Mundial desestabilizou a estrutura de poder do
mundo. As ex-colônias do Extremo Oriente à América Latina e África
se livraram do imperialismo e do despotismo, porque as pessoas co-
muns vislumbraram a possibilidade de finalmente alcançar mais liber-
dade e prosperidade.
O advento das criptomoedas desestabilizou a estrutura de poder
financeiro do mundo e está causando uma segunda revolução de espe-
ranças crescentes. Isso não ocorre em nível nacional – a cripto não re-
conhece fronteiras – mas sim na vida dos indivíduos, que podem final-
mente controlar suas próprias finanças em privacidade e independente-
mente de permissão. Isso tem implicações políticas profundas, é claro,
porque as pessoas independentes são muito menos propensas a obede-
cer.
Toda revolução bem-sucedida deve responder: “Qual é o ponto
final?” Se não houver uma boa resposta, então um sistema ruim será
substituído por outro sistema ruim, que despencará no vazio. A Revo-
lução Francesa derrubou uma monarquia corrupta apenas para vê-la
substituída por um “Comitê de Segurança Pública”, que instituiu o que
ficou conhecido como “O Reino do Terror”. A revolução Satoshi deve
responder: “Qual é o ponto final?”. Gandhi disse: “os meios são os fins
em andamento”. Para aqueles que acreditam na cripto, a descentraliza-
ção é o meio; a descentralização é o fim em andamento: o empodera-
mento total dos indivíduos.

183
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Anarquismo: o Ponto Final da Descentralização

O homem nasce livre, mas encontra suas correntes em todo


canto.
– Jean Jacques Rousseau

Existe tanta confusão e calúnia cercando o termo “anarquismo”


que é útil, senão necessário, introduzir o conceito através de uma expli-
cação… Daquilo que ele não é.
• Anarquismo não é violência. A maioria das tradições é explicita-
mente pacífica. O anarquismo não violento de Henry David Tho-
reau e de Mahatma Gandhi são exemplos.
• O anarquismo não é caos. Significa “sem estado”, e não “sem or-
dem”.
• Anarquismo não é pacifismo. Algumas formas, como o anar-
quismo cristão promovido por Leon Tolstói, mantêm o pacifismo
como um princípio central, mas a maioria das tradições reconhece
plenamente o direito de usar a força em autodefesa.
• O anarquismo não é inerentemente de esquerda. O anarquismo de
esquerda recebeu a maior parte da atenção histórica, mas o pri-
meiro anarquista americano foi o libertário Josiah Warren (1798-
1874).
• O anarquismo não é um ideal impraticável. É uma abordagem re-
alista para viver em sociedade sem sacrificar a individualidade.

Se isso tudo é aquilo que o anarquismo não é, então o que é o


anarquismo? Simplificando, anarquismo significa “sem o estado”.
Mas o que é o estado? É a instituição que reivindica jurisdição
sobre determinado território e o monopólio do uso da força. O estado é
uma força institucionalizada, que exige obediência das pessoas que vi-
vem neste território. O anarquismo olha para o estado e não vê serviços
pelos quais as pessoas pagam impostos. Aquilo que é dito como serviço
é, na realidade, monopólio sustentado pelo roubo e pela força.
Uma das maneiras mais fáceis de entender como o anarquismo
funciona é perceber que é assim que a maioria das pessoas conduz suas
vidas diárias. Elas vivem sem o estado, e nem se dão conta disso. O

184
A Cripto Como um Fenômeno Econômico Austríaco

anarquismo é a filosofia que eles seguem com a família, amigos, par-


ceiros de negócios e até estranhos. Quando uma pessoa acorda de ma-
nhã, nenhuma lei a obriga a alimentar seus filhos com café da manhã
em vez de deixá-los morrer de fome, ou a beijar sua parceira em vez de
espancá-la. Quando ela pega carona com colegas para o trabalho, não
há nenhum policial presente para impedi-lo de roubar seus bolsos ou
socá-los no nariz. Ao longo do dia, nenhum burocrata fica por perto
para garantir que ele pague por uma xícara de café ou contribua com
sua parte da conta do almoço. Enquanto anda pela rua, um homem não
ataca estranhos aleatórios ou puxa uma mulher para o beco a fim de
molestá-la. Quando um estranho começa a sair do meio-fio em direção
a um veículo que se aproxima numa velocidade considerável, alguém
estende a mão rapidamente para impedir a pessoa.
Não é o estado que faz as pessoas agirem com decência habitual.
É a sociedade civil, a família e os laços da humanidade que o fazem. A
sociedade civil é naturalmente pacífica porque consiste em trocas vo-
luntárias e não coercitivas. É da sociedade civil que os homens adqui-
rem os hábitos e as recompensas da cooperação. Dito de outra forma, a
maioria dos indivíduos já lida uns com os outros em suas vidas diárias
como se todos vivessem sob a anarquia.
É o estado e outros criminosos que introduzem a força na vida
cotidiana. O estado chega na forma da lei monopolizada através da
ponta de uma arma. O estado diz a uma pessoa: “você não pode abrir
um negócio, porque competiria conosco ou com alguma corporação fa-
vorecida por nós”. Diz que “sua propriedade não é sua para usar, mas
nossa para administrar, tributar e confiscar se você se recusar a obede-
cer”. O estado rouba os ganhos de uma pessoa para sustentar seus pró-
prios empreendimentos, até mesmo aqueles que causam repulsa na pes-
soa, como a guerra; o estado diz: “seu dinheiro é nosso para gastar como
nós quisermos, e sua consciência não importa”. O estado exige a sua
obediência a uma miríade de leis babás que trivializam o suposto direito
de escolha individual que ele oferece. O estado tenta determinar até o
tipo de canudo que alguém pode usar para beber refrigerante. O estado
afirma: “você é meu para comandar.”
Em contraste, os anarquistas dizem às pessoas pacíficas: “abra
qualquer negócio que desejar”; “sua propriedade é sua”; “seu dinheiro
e sua alma são seus”, e “o estado não tem autoridade sobre você.”
Se o anterior não soa como o anarquismo que geralmente se dis-
cute, é porque existem diferentes tradições de anarquismo, e as mais

185
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

barulhentas e violentas recebem mais atenção. As várias formas de


anarquismo incluem anarquismo individualista, anarquismo comunista,
anarquismo socialista, anarquismo mutualista, anarquismo cristão,
anarco-sindicalismo e anarcocapitalismo. O que os une? O que os se-
para?
As tradições dentro do anarquismo concordam que o estado é um
tipo de grupo baseado na violência organizada e que é indesejável; é
isso que une os anarquismos hifenizados – a rejeição do estado e da
violência organizada como um todo. Onde eles discordam, porém, é so-
bre o que constitui violência e como uma sociedade sem ela funcionaria.
Eis o contraste entre as abordagens dos anarquismos comunistas
e individualistas.
O comunismo vê o capitalismo laissez-faire como uma forma de
roubo, que é uma forma de violência. Um dos motivos é o “valor exce-
dente” – a famosa mais-valia. Popularizado por Karl Marx, esse con-
ceito refere-se ao valor supostamente criado pelos trabalhadores, que
excede os custos de seu trabalho e produção. De forma simplista: Um
operário ganha $1 por hora e usa matéria-prima que custa $1 para pro-
duzir um bem que é vendido por $10. Segundo Marx, uma mais-valia
de $8 foi criada pelo trabalhador, que é o legítimo proprietário dessa
quantia. A mais-valia é embolsada pelo dono da fábrica capitalista em
um ato de roubo. O capitalista é capaz de roubar os $8 porque possui os
meios de produção que são protegidos pela força do estado. Assim, o
capitalismo está irrevogavelmente enredado na exploração dos traba-
lhadores e na violação de seus direitos. Para os esquerdistas, o anar-
quismo é necessariamente antiestatista e anticapitalista porque ambos
são formas de violência.
O anarquismo individualista desafia essa interpretação. Ele olha
para o mesmo operário e proprietário da fábrica e vê uma relação con-
sensual pela qual o trabalhador recebe um salário com o qual ambos
concordaram e através do qual ambos se beneficiam. A chamada mais-
valia ou lucro que o capitalista recebe é em troca dos riscos de fazer
negócios, das despesas gerais, do investimento contínuo de capital, dos
custos de propaganda e do custo de seu próprio tempo. Nenhuma força
ou fraude está presente. Desde que o estado não promova o lucro do
capitalista, fazendo nada além de fazer valer os direitos de propriedade
– por exemplo, ele não lhe concede um monopólio – então nenhuma
força ou fraude está presente devida ao estado. A fábrica expressa ape-
nas o livre mercado e a troca voluntária.

186
A Cripto Como um Fenômeno Econômico Austríaco

Se o estado intervém, aprovando leis que favorecem ou prejudi-


cam os negócios, então o arranjo deixa de ser de livre mercado ou capi-
talismo de laissez-faire e se torna capitalismo de compadrio; este é um
arranjo no qual o estado e algumas empresas se alinham em benefício
mútuo e em desvantagem de todos os outros. Os que mais sofrem são
os trabalhadores, as empresas concorrentes e os consumidores. Para os
anarquistas individualistas, o anarquismo é antiestado e anti-compar-
sas-do-estado. O anarquismo individualista é pró-mercado e capitalista.
O profundo desacordo sobre o livre mercado tem implicações
para os conceitos-chave usados por ambas as formas de anarquismo.
Por exemplo, o anarquismo comunista e o anarquismo individualista
definem “classe” e afiliação de classe de maneiras drasticamente dife-
rentes. O anarquismo comunista define a filiação de classe de uma pes-
soa por referência à sua relação com os meios de produção; alguém é
trabalhador ou capitalista; ele é explorado ou explorador. As duas clas-
ses estão presas em uma guerra de classes sem fim.
Em contraste, o anarquismo individualista define a filiação de
classe com referência à relação de uma pessoa com o poder do estado;
ele coopera com os outros de forma voluntária (sociedade) ou usa a
força (o estado). Ou ele é um membro produtivo da sociedade ou ele é
um criminoso. Os anarquistas individualistas veem as duas classes – a
sociedade e o estado – presas em uma guerra de classes insolúvel.
Em resumo: embora todas as formas de anarquismo rejeitem o
estado e sua violência organizada, algumas formas de anarquismo dis-
cordam profundamente sobre o que constitui violência.

O que é o Anarquismo Individualista ou Libertário?

Isso nos leva ao Anarquismo, que pode ser descrito como a


doutrina de que todos os assuntos dos homens devem ser
administrados por indivíduos ou associações voluntárias, e
que o estado deve ser abolido. Quando Warren e Proudhon,
prosseguindo em sua busca por justiça ao trabalho, se depa-
raram com o obstáculo dos monopólios de classe, viram que
esses monopólios repousavam sobre a Autoridade, e con-
cluíram que a coisa a ser feita era não fortalecer essa Auto-
ridade e assim tornar o monopólio universal, erradicar to-
talmente a Autoridade e dar total domínio ao princípio

187
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

oposto, a Liberdade, tornando a competição, a antítese do


monopólio, universal.
– Benjamin R. Tucker

Aqueles que chamam a si mesmos de individualistas ou anarquis-


tas-libertários não concordam em todos os aspectos da teoria. Afinal,
eles são anarquistas. O que precede, entretanto, é a visão dominante. O
anarquismo individualista geralmente se baseia na Lei Natural da qual
surgem os direitos naturais ou individuais. A palavra “Lei” aqui não é
usada em sentido legal ou legislativo. Refere-se a um princípio ou uma
regra governante, como as leis da física. “Natural” significa que a lei é
baseada nos fatos da realidade e na natureza do homem.
Em sua forma mais simples, a versão da Lei Natural usada pelo
anarquismo individualista é uma tentativa de fundamentar os valores
humanos nos fatos da realidade e da natureza humana. Dito de outra
forma: Dado o que sabemos sobre a realidade e sobre a natureza hu-
mana, é possível raciocinar regras de comportamento que maximizem
o bem-estar dos seres humanos? O anarquismo individualista responde
“sim!” e se volta para o conceito de direitos naturais ou individuais. Ele
pergunta: “quem é o dono do indivíduo?” Como discutido anterior-
mente, existem apenas três respostas possíveis: é o indivíduo (liberdade
pessoal), é alguém ou alguma outra coisa (escravidão), ou ele é propri-
edade não reclamada. O anarquismo individualista argumenta forte-
mente a favor da primeira posição.
A reivindicação de uma pessoa sobre seu próprio corpo é descrita
com diferentes termos, incluindo “soberania do indivíduo”, “donidade
de si mesmo”, “autonomia”, “autopropriedade” e “direitos individuais”.
Mas para reivindicar seu direito inato de liberdade, todo homem deve
respeitar a liberdade igual dos outros. Se ele inicia a força, então suas
ações constituem uma declaração de que ele não considera a liberdade
como seu direito de nascença ou qualquer direito. Os direitos são uni-
versais – existem no mesmo grau dentro de cada ser humano – ou não
são baseados na natureza humana. É este dever de respeitar os direitos
dos outros que um indivíduo carrega consigo dentro da sociedade.
Direitos e deveres são as ferramentas pelas quais a sociedade re-
solve conflitos e evita a violência. O individualista do século XIX Ben-
jamin R. Tucker usa essa abordagem enquanto especula sobre a natu-
reza da propriedade. Tucker acredita que as ideias surgiram apenas por-
que atendem a uma necessidade ou porque respondem a uma pergunta.

188
A Cripto Como um Fenômeno Econômico Austríaco

Para ilustrar seu ponto de vista, Tucker pede aos leitores que imaginem
um universo paralelo ao nosso, mas que siga regras diferentes. Nesse
universo paralelo, os habitantes podem satisfazer suas necessidades
simplesmente desejando bens. Comida aparece magicamente em suas
mãos, roupas milagrosamente cobrem seus membros e uma cama surge
sob seus corpos cansados. É pouco provável que essa sociedade paralela
venha com o conceito de propriedade privada. Por quê?
Tucker pergunta: “O que há na realidade de nosso próprio mundo
e na natureza do homem que dá origem ao conceito de propriedade em
primeiro lugar?”. Ele conclui que a ideia de propriedade surge como
forma de resolver conflitos causados pela escassez. No universo real,
quase todos os bens são escassos, e isso leva à competição pelo seu uso.
Como a mesma cadeira não pode ser usada da mesma maneira ao
mesmo tempo por duas pessoas, é necessário determinar quem deve
usar a cadeira. O conceito de propriedade resolve esse problema social.
O proprietário da cadeira deve determinar seu uso. “Se fosse possível”,
escreve Tucker, “e se sempre tivesse sido possível, para um número ili-
mitado de indivíduos usar em uma extensão ilimitada e em um número
ilimitado de lugares a mesma coisa concreta ao mesmo tempo, jamais
teria sido instituída qualquer coisa como a propriedade.”
Quaisquer direitos, deveres e propriedades são derivados – seja
da lei natural ou do utilitarismo. Eles são o contexto que os indivíduos
trazem consigo quando entram na sociedade.

Uma Saudação a Henry David Thoreau

Poucos filósofos do século XIX usaram a sua própria capacitação


com tanta graça quanto o americano Henry David Thoreau. Ele tinha
boas razões para se perguntar: “Como o indivíduo lida com um estado
moralmente intrusivo?” Sua solução é simples; jogue o estado fora de
sua vida e nunca olhe para trás. Foi isso que Thoreau fez na vida real.
O tratado político mais famoso de Thoreau se chama Desobedi-
ência Civil. Foi sua resposta a uma prisão durante a noite de 1846 por
se recusar a pagar um imposto que violou sua consciência. Uma troca
famosa e talvez anedótica ocorreu enquanto ele estava preso. Ralph
Waldo Emerson o visitou e cobrou-lhe o pagamento de uma multa para
que fosse libertado.
Emerson pergunta: “Henry, o que você está fazendo aí dentro?”

189
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Thoreau responde: “Waldo, a verdadeira questão é: o que você


está fazendo aí fora?”
Thoreau não ficou amargurado com sua breve prisão. Perto do fim
de sua vida, ele foi perguntado: “Você fez as pazes com Deus?” Ele
respondeu: “Nunca briguei com ele”. Para Thoreau, esse teria sido o
custo real do pagamento do imposto; significaria brigar com sua própria
consciência, o que seria semelhante a brigar com Deus.
A Desobediência Civil termina com uma nota feliz. Após a liber-
tação de Thoreau da prisão, as crianças de sua cidade natal imploraram
para que ele se juntasse a uma caçada por mirtilos. Caçar mirtilos era
um dos passatempos valiosos de Thoreau, e sua habilidade em localizar
arbustos carregados de frutas o tornou o favorito das crianças. Ele ter-
mina sua crônica de prisão com as palavras: “Eu me juntei a um grupo
de caçadores de mirtilos, que estavam impacientes para se submeterem
à minha liderança; e em meia hora estávamos no meio de um campo de
mirtilos, em uma de nossas colinas mais altas, a duas milhas de distân-
cia, e lá o estado não foi visto em lugar algum.”
E lá o estado não foi visto em lugar algum. Este é o legado de
Thoreau e Satoshi para aqueles que desejam compreender isso: para
aqueles que estão dispostos a abandoná-lo e não olhar para trás, o estado
não será visto em lugar algum. Thoreau, em sua alegria de correr com
as crianças, sabia que a prisão não era a sua realidade. Caçar mirtilos
era a sua realidade.
O que resta quando não há estado? Indivíduos, sociedade… e mir-
tilos!1

1 Nota de Tradução: Um trecho dessa parte específica foi uma adição considerada
pertinente pela equipe de tradução. No original lê-se Individuals and Society (in-
divíduos e sociedade).

190
S E Ç Ã O Q U AT R O
Estado e Sociedade
CAPÍTULO NOVE
Relevância do Estado, da Sociedade
e da Obediência para a Cripto
O muro que separa o estado e a sociedade está desmoro-
nando. Ou melhor, o estado está martelando em uma tenta-
tiva agressiva de controlar todos os aspectos da vida produ-
tiva e cooperativa. […] As pessoas com quem você lida di-
ariamente estão deixando de ser bons vizinhos, comercian-
tes honestos e estranhos desinteressados. Eles estão se tor-
nando informantes do estado que monitoram sua expressão,
seu dinheiro, seu comportamento e atitude para denunciá-lo
às autoridades. Eles estão deixando de ser “sociedade” e se
tornando “o estado”.
– Murray Rothbard, “Society Without State”.

O liberalismo clássico traça uma distinção nítida entre o estado e


a sociedade, que as criptos adotam. A cripto não foi projetada para imi-
tar moeda emitida pelo estado ou sistemas monetários controlados pelo
estado. Sua estrutura e função foram criadas para empoderar o indiví-
duo através do fornecimento de meios livres do estado para alcançar a
independência financeira. Seus fins e seus meios são tão compatíveis
com a sociedade quanto antagônicos ao estado.
Os conceitos e realidades de estado, sociedade e obediência são o
contexto no qual o Bitcoin nasceu e no qual as criptomoedas agora ope-
ram. Para entender o passado, presente e futuro das criptomoedas, é ne-
cessário entender esses conceitos.

A Estrutura do estado, da Sociedade e das criptomoedas

O problema dos meios é, a meu ver, um problema duplo:


primeiro, o problema do fim e dos meios; segundo, o pro-
blema do Povo e do estado, ou seja, os meios pelos quais o
povo pode supervisionar ou controlar o estado […]. Os
meios devem ser proporcionados e adequados ao fim, pois
são meios para o fim, por assim dizer, o próprio fim em seu
próprio processo de vir à existência. De modo que aplicar

193
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

meios intrinsecamente maus para alcançar um fim intrinse-


camente bom é um simples absurdo e um fracasso. – Jac-
ques Maritain, Man and The State.

Um método simples para entender a diferença entre o estado e a


sociedade é analisar seus meios e fins.
O fim de um estado é regular a sociedade para manter sua exis-
tência e fazer valer seus privilégios. Seu privilégio primordial é o mo-
nopólio do exercício da violência sobre as pessoas e propriedades den-
tro de um território definido. O estado usa a força na forma de lei ou a
ameaça da lei para impor suas políticas. Atrás de cada lei está uma arma
com a possibilidade de irromper violência se a lei não for obedecida.
No entanto, o estado prefere obter a complacência do que ter de punir
alguém, porque a punição é um processo desajeitado que pode inspirar
resistência. O estado prioriza a aquisição de riqueza porque não produz
nada e não tem receita, exceto o que é derivado de outros por meio de
ameaças ou violência. Em outras palavras, aqueles que estão no poder
usam o monopólio da força como meio de criar e sustentar o privilégio
desejado.
A sociedade é a interação voluntária dos indivíduos com as insti-
tuições que evoluem das associações. Uma instituição é um costume,
padrão de comportamento ou relacionamento dentro da dinâmica de
uma sociedade; casamento, igreja ou a família são exemplos. O dinheiro
é uma instituição vital tanto para o estado quanto para a sociedade.
O objetivo da sociedade – se é que se pode dizer que uma rede
altamente descentralizada tem um propósito consciente – é ser um local
no qual os indivíduos possam trocar por benefício mútuo, seja esse be-
nefício definido em termos econômicos, espirituais ou outros. A socie-
dade é voluntária, com obrigações legais decorrentes apenas de consen-
timento e contrato. Este é o meio social: a livre associação. O fim ou
objetivo da sociedade é expresso por cada membro que age em seu pró-
prio interesse. Como os indivíduos são diversos e imprevisíveis, a
forma da sociedade é fluida e imprevisível, exceto por não ser violenta.
“A forma segue a função” significa que a forma básica de qual-
quer coisa é determinada pelo seu propósito. A forma de uma cadeira é
ditada por sua função como estrutura sobre a qual as pessoas se sentam,
e é por isso que uma cadeira de sucesso tem uma superfície estável. Para
o arquiteto Frank Lloyd Wright, a forma e a função de uma coisa tinham
que ser inseparáveis para que sua síntese fosse bem-sucedida. “A forma

194
Relevância do Estado, da Sociedade e da Obediência para a Cripto

segue a função – isso foi mal compreendido”, observa Wright. “Forma


e função devem ser uma, unidas em uma união espiritual.” Se os dois
estiverem em conflito, então a forma falha ou a função revela-se dife-
rente do que foi declarado. Se manter a paz envolve matar pessoas ino-
centes, por exemplo, significa que manter a paz não é o fim a ser ex-
presso. Durante a Guerra do Vietnã, um oficial do exército dos EUA
justificou o bombardeio de áreas civis na província de Bến Tre, no delta
do Mekong, com a declaração: “Tornou-se necessário destruir a cidade
para salvá-la”. Essa explicação se transformou no infame ditado: “Ti-
vemos que destruir a vila para salvá-la”. Uma forma e uma função dis-
cordantes muitas vezes revelam uma função oculta e verdadeira.
Mahatma Gandhi expressou famosamente a conexão entre forma
e função na dinâmica social. “Se cuidarmos dos meios”, escreve ele, “o
fim cuidará de si mesmo”. Isso refletia a realidade dos meios serem os
fins em andamento. Gandhi não desvaloriza a importância do fim à
vista, mas reconhece que cada estágio dos meios deve expressar o fim
em uma progressão lógica para que o fim se materialize.
A maioria das pessoas se concentra em objetivos, como prosperi-
dade, e depois descobre como alcançá-los. As estratégias são vistas
como pragmáticas e quase intercambiáveis: o que funciona ou oferece
um atalho. Mas a crueldade não pode levar a relacionamentos amoro-
sos; só a benevolência pode. O roubo não cria respeito pelos direitos de
propriedade; só a honestidade o faz. Se o objetivo das criptomoedas é
libertar indivíduos financeiramente, então o meio de alcançá-lo é inse-
parável desse fim. Os meios são o respeito aos direitos individuais, aos
livres mercados, à paz e à sociedade. As estratégias opostas são o cole-
tivismo, os monopólios e a violência, sendo o estado um resultado pre-
visível.
“Deveria haver uma lei” é uma solução instintiva comum para
alcançar quase qualquer objetivo social nos dias de hoje; as pessoas cla-
mam por usar a violência institucionalizada do estado, a fim de promul-
gar leis que punam ou incentivem outros a aceitar um fim desejado que
não aceitariam de bom grado. O objetivo pode ser comparativamente
modesto, como impor um código de vestimenta pelo qual homens, e
não mulheres, ficam de topless. Ou pode ser abrangente como a impo-
sição de uma determinada doutrina religiosa. A reação reflexiva de “de-
veria haver uma lei” ignora a questão de saber se os meios e os fins
estão em conflito. Poucas pessoas perguntam se é mesmo possível que
a lei imponha ideias e atitudes, pensamentos e sentimentos; não é. O

195
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

máximo que é possível é que a lei intimide as pessoas a expressar ex-


ternamente pensamentos e sentimentos “corretos”, apesar do que pen-
sam e sentem por dentro.
Como tais leis interferem na liberdade de consciência e de expres-
são de um indivíduo, uma sociedade livre não as impõe; como meio,
tais leis contradizem os fins da sociedade. No entanto, por conferirem
ao estado imenso poder sobre sua população, tais leis são uma prática
padrão para aqueles que estão no poder; como meio, eles atingem os
fins desejados. Quanto mais vaga for a declaração de uma meta –
“igualdade de renda” ou “justiça social” – mais poder ela confere ao
estado, porque a definição é elástica. Com a cripto de livre mercado, o
fim está bem definido: uma transferência descentralizada e privada de
fundos ou outras informações em uma rede peer-to-peer. Com fiat e o
sistema bancário, o fim é subjetivo e aberto à redefinição: estabilidade
monetária.
Todo mundo sabe que alguns objetivos exigem meios específicos.
Manter-se saudável requer comer bem, praticar exercícios e adotar bons
hábitos. Os meios apropriados tornam-se menos óbvios quando o fim é
complexo, amorfo ou não expresso com franqueza. De alguma forma,
a conexão lógica entre os dois se perde. “Os fins justificam os meios”
tornou-se uma desculpa para abandonar as considerações práticas e mo-
rais sobre como alcançar objetivos específicos. Uma vez que um fim é
estabelecido, um menu de meios é examinado para aqueles que devem
atingir o objetivo da forma mais rápida e econômica possível. Questões
mais fundamentais sobre a relação entre meios e fins raramente são fei-
tas. A guerra pode realmente trazer a paz? A censura pode criar uma
sociedade aberta? A proibição de criptomoedas protege a segurança fi-
nanceira?
Quando os fins e os meios entram em conflito, o fim torna-se uma
impossibilidade prática. Uma pessoa que declara que “os fins justificam
os meios” ou está muito equivocada sobre como os objetivos são alcan-
çados, ou tem em mente um objetivo totalmente diferente do que é de-
clarado. A utilização de um meio hostil para a obtenção de um fim in-
troduz um elemento orwelliano. O duplipensar intrínseco no slogan da
Primeira Guerra Mundial “Uma guerra para acabar com todas as guer-
ras” é óbvio. Os meios obviamente falharam em atingir o objetivo de-
clarado, porque a eliminação do conflito nunca foi o objetivo real; ter-
ritório, poder e lucro foram o propósito da Primeira Guerra Mundial. O
falso objetivo foi aceito, no entanto, e ainda é alardeado, embora não

196
Relevância do Estado, da Sociedade e da Obediência para a Cripto

faça sentido. Ninguém fala de “Uma Verdade para Acabar com Todas
as Verdades”, “Um Argumento Lógico para Acabar com Toda a Ló-
gica” ou “Uma Virtude para Acabar com Todas as Virtudes” porque es-
tes são absurdos autocontraditórios. A maneira de acabar com a guerra
não é travá-la, mas recusar o engajamento. O meio – travar uma guerra
– é diametralmente oposto ao fim declarado – prevenir mais guerra.
Quando isso ocorre, é hora de olhar sob a superfície para a intenção
real.
Isso revela uma profunda diferença ideológica entre os defensores
do estado e os defensores da sociedade ou do livre mercado. Os estatis-
tas são orientados para os fins; defensores da sociedade civil são orien-
tados para os meios. Isso não sugere que a sociedade civil – isto é, os
indivíduos dentro dela – não tenha ou estabeleça objetivos específicos.
Diz que a sociedade percebe que os meios adequados para atingir qual-
quer fim devem ser empregados. Em contraste, os estatistas se concen-
tram inteiramente no fim e usam todo e qualquer meio necessário ou
conveniente para alcançá-lo.
Os estatistas fornecem um plano detalhado para o que constitui
uma sociedade justa, por exemplo. Um fim declarado dessa sociedade
pode ser uma igualdade socioeconômica, que exija que o estado mono-
polize todas as questões monetárias, incluindo o comércio, para garantir
a distribuição adequada de riqueza e oportunidades. O fim dita os
meios. Isso vale para uma sociedade moral, qualquer que seja a defini-
ção de “moralidade” empregada. O fim exige que o estado monitore o
comportamento, as palavras e as atitudes expressas por cada indivíduo.
Sempre que um fim específico é identificado como um objetivo primor-
dial e independente, então o uso da força torna-se necessário para impô-
lo a pessoas que discordam pacificamente, porque alguém sempre o
fará.
Em contraste, a abordagem de livre mercado é orientada para os
meios. Uma sociedade justa não visa um resultado como um arranjo
socioeconômico específico. Quaisquer arranjos que resultem de indiví-
duos fazendo escolhas livres e pacíficas são considerados justos. O que
quer que seja voluntário é justo – ou, pelo menos, tão próximo disso
quanto os seres humanos imperfeitos em um mundo imperfeito podem
chegar. Por exemplo, uma faculdade particular que discrimine negros e
uma que aplique uma política somente para negros existiriam lado a
lado no mercado. Desde que ambos sejam financiados por fundos pri-
vados e ninguém seja obrigado a participar, ambos os arranjos são justos

197
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

e a lei não pode interferir adequadamente. Se as pessoas consideram as


políticas escolares imorais, elas são livres para usar uma ampla varie-
dade de meios pacíficos para promover mudanças. Essas estratégias in-
cluem educação, protesto, piquetes, boicote e persuasão moral. O que
eles não podem fazer é usar a força para ditar a maneira como as facul-
dades usam seu próprio dinheiro para estabelecer suas próprias políti-
cas. A liberdade de associação exige o direito de discriminar.
Os estatistas não são igualmente restritos. Sua primeira escolha
ao buscar “reformar” uma prática pacífica, mas imoral, é aplicar a força
institucional da lei.
O filósofo francês do século XX, Jacques Maritain, considerou o
“o dilema dos meios versus os fins” como o problema da filosofia polí-
tica. A Revolução Francesa forneceu a ele o modelo de como um fim
falhou miseravelmente porque os meios usados para alcançá-lo eram
“intrinsecamente maus”. Em uma revolução estereotipada, os indiví-
duos se levantam em massa para tomar o poder da elite e dos governan-
tes opressores. As revoluções são chamadas de “populares” porque co-
meçam com uma onda de resistência popular contra o status quo. E é
verdade; é assim que muitas revoluções começam. E então elas se de-
senrolam de maneira terrivelmente errada. A França foi de uma monar-
quia absoluta, que devastou os direitos das pessoas comuns, à “uma
pessoa superior chamada estado Nação”, que devastou os direitos das
pessoas comuns. A prometida “Liberté, Égalité, Fraternité” (Liberdade,
Igualdade, Fraternidade) nunca se materializou. Em vez disso, autocra-
tas sanguinários como Robespierre e Saint-Just, juntamente com uma
nova classe de burocratas mesquinhos, realizaram prisões e execuções
em massa que geralmente visavam pessoas comuns que violavam as
leis econômicas – contrabando, por exemplo.
A Revolução Bolchevique é outra lição de moral. O catastrófico
número de mortos e fome causados pelo envolvimento da Rússia na
Primeira Guerra Mundial, mais do que um compromisso com o mar-
xismo, levou os russos à revolta. As terceiras partes confiáveis chama-
das “líderes” levaram a sociedade longe demais, e eles perderam toda a
confiança. Seu colapso deixou um vazio de poder. Sob o lema “Paz, Pão
e Terra”, oficiais revolucionários correram para preencher esse vazio
com um regime totalitário e dogmático, em vez do paraíso dos traba-
lhadores que eles mesmos haviam prometido. É o caminho desgastado
das revoluções; conheça o novo chefe, igual ao antigo chefe.

198
Relevância do Estado, da Sociedade e da Obediência para a Cripto

Essas revoluções não atingiram “o objetivo final e a tarefa mais


essencial do corpo político ou da sociedade política”, explica Maritain.
A tarefa era “melhorar as condições da própria vida humana” e “procu-
rar o bem comum da multidão, de tal maneira que cada pessoa concreta,
não apenas em uma classe privilegiada […] pudesse verdadeiramente
alcançar essa medida de independência que é própria à vida civilizada”.
Em termos coloquiais, Maritain está dizendo: “você não pode chegar lá
a partir daqui”.
Por quê? Porque os líderes revolucionários se tornaram um novo
conjunto de terceiras partes confiáveis. Os revolucionários formaram
uma nova elite, que adotou a mesma estrutura básica de poder de antes:
governo absoluto que governa por meio de reivindicações de legitimi-
dade, intimidação e força bruta. Mudaram-se os rostos, as ideologias e
os fins declarados, mas não os meios de poder centralizado que se im-
punham pela força institucionalizada. Os revolucionários usaram os
mesmos meios que seus predecessores, e chegaram aos mesmos resul-
tados: a opressão das pessoas comuns. Somente se mudando os meios
– apenas descentralizando o poder de volta para o indivíduo – uma re-
volução pode evitar se transformar em só mais um estado. Somente
quando os líderes revolucionários deixarem de evoluir para uma terceira
parte confiável, que um Robespierre, um Lenin, um Pinochet, um Mao
ou um Castro deixarão de ser inevitáveis.
A revolução das criptomoedas resolve o Dilema Meios Versus
Fins dentro da filosofia política, porque as criptomoedas são o meio e o
fim ao mesmo tempo. Gandhi também afirma: “Não há muro de sepa-
ração entre meios e fins. Meio e fim são termos sinônimos em minha
filosofia de vida.” Eis a estratégia das criptomoedas: descentralizar as
trocas financeiras por meio de uma blockchain, a fim de contornar ter-
ceiras partes confiáveis e devolver o controle monetário ao indivíduo.
O fim político: descentralizar as trocas financeiras para contornar ter-
ceiras partes confiáveis e devolver o controle monetário ao indivíduo.
O meio e o fim são um no mesmo. O processo pseudônimo, descentra-
lizado e peer-to-peer é transformador. Quando a flexão do poder indivi-
dual se torna suficientemente difundida, torna-se uma revolução sem
líder – uma revolução independente de confiança – que depende de in-
divíduos perseguindo seus próprios interesses. Os meios são “qualquer
coisa que seja pacífica”. O fim é o que resulta dos meios.

199
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

O estado Contra a Sociedade

Em sua obra clássica, The State (1914), o sociólogo alemão Franz


Oppenheimer encabeça uma análise dos dois termos mais importantes
na discussão política: “o estado” e “a sociedade”. Os termos antitéticos,
cada qual expressa um modo de organização humana e cada um reflete
a importância da riqueza ou produtividade para a existência humana. A
condição natural do homem é a pobreza. Um bebê nasce com nada além
de seu próprio desamparo, e morrerá sem a intervenção tenaz de um
cuidador. Uma vez que uma pessoa é capaz de usar seu trabalho para
transformar recursos ou criá-los, então ela é capaz de cuidar de si
mesma através de um esforço contínuo. A produção de riqueza é literal-
mente o que permite que as pessoas sustentem suas vidas. A habilidade
de produzir e controlar a riqueza é uma questão de vida ou morte.
Oppenheimer identifica dois meios antagônicos pelos quais a ri-
queza é controlada: o estado e a sociedade. Ele define o estado como “a
soma de privilégios e posições dominantes que são criadas pelo poder
extraeconômico”. As palavras “poder extraeconômico” significam
força ou ameaça de força. As instituições do estado incluem os milita-
res, a imposição da lei, as legislaturas e as burocracias. Seu denomina-
dor comum é a administração e manutenção do poder estatal através do
uso da violência institucionalizada. “Eu defino o estado”, escreve Roth-
bard, “como aquela instituição que possui uma ou ambas (quase sempre
ambas) das seguintes propriedades: (1) adquire sua renda pela coerção
física, conhecida como ‘tributação’; e (2) afirma e geralmente obtém o
monopólio coagido da prestação de serviços de defesa (polícia e tribu-
nais) sobre uma determinada área territorial. Uma instituição que não
possua nenhuma dessas propriedades não é e não pode ser, de acordo
com minha definição, um estado”.
Oppenheimer define a sociedade como “a totalidade de conceitos
de todas as relações e instituições puramente naturais entre homem e
homem”. As palavras “puramente natural” significam “voluntário”,
sendo a sociedade a soma total das interações pacíficas dos indivíduos
dentro dela. As instituições da sociedade incluem o livre mercado, os
locais de adoração, as escolas, as instituições de caridade e as artes.
Rothbard descreve a sociedade como um lugar “onde não há possibili-
dade legal de agressão coercitiva contra a pessoa ou propriedade de um
indivíduo”. Os anarquistas se opõem ao estado porque ele tem seu pró-
prio ser em tal agressão, a saber, a expropriação da propriedade privada

200
Relevância do Estado, da Sociedade e da Obediência para a Cripto

por meio de impostos, a exclusão coercitiva de outros prestadores de


serviços de defesa de seu território e todas as outras depredações e co-
erções que são construídas sobre esses focos gêmeos de invasões de
direitos individuais”. O estado é chamado de esfera pública; a sociedade
é a esfera privada.
(Nota: O estado e a sociedade são abstrações, e deve-se tomar
cuidado para não torná-los em algo excessivamente concreto. A abor-
dagem analítica do liberalismo clássico é o individualismo metodoló-
gico, que afirma que apenas os indivíduos existem e agem. Todas as
instituições – incluindo as de ambos o estado e a sociedade – podem ser
reduzidas às ações dos membros individuais de cada instituição).
A riqueza pode ser controlada pelo estado ou pela sociedade – isto
é, pelos membros individuais de ambos – mas só pode ser produzida
pela sociedade. O estado emprega o que Oppenheimer chama de “meio
político” – isto é, força ou ameaça de força – para adquirir a riqueza que
não produz nem adquire por meio de troca voluntária. A riqueza é reti-
rada de pessoas que produzem e trocam, o que Oppenheimer chama de
“meio econômico” de adquirir bens.
O estado não costuma tomar a riqueza pela força bruta, no en-
tanto. Em vez disso, o estado usa métodos de roubo mais sutis e menos
arriscados. Por exemplo, canaliza a produtividade da sociedade para
uma forma de dinheiro que monopoliza ao emiti-lo e impõe leis de
curso legal. Então, o monopólio monetário é consolidado regulando as
instituições financeiras através das quais o dinheiro é forçado a fluir.
Isso permite que o estado realize roubos sutis, como a inflação. A vio-
lência direta é o monopólio monetário, que proíbe e pune os concorren-
tes do livre mercado.
Expresso de outra forma: O fim do estado é manter sua existência
e poder. Para cumprir esse objetivo, o estado precisa da riqueza e da
cooperação da sociedade, pois não produz riqueza. O estado precisa
roubar da sociedade porque sua única fonte de “renda” é o que ele ob-
tém através de meios que incluem impostos, confiscos, multas, taxas,
tarifas, inflação e subornos. A força e as ameaças de força são os meios
necessários – os meios políticos –: os meios do estado.
Em contraste, a sociedade não tem fins. Embora seja um motor de
criação e troca, a sociedade não tem consenso sobre quais devem ser os
resultados dessa produtividade. Cada membro individual age para per-
seguir seu interesse próprio, com cada pessoa tendo uma definição
única do que compreende esse objetivo. O objetivo de uma pessoa pode

201
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

ser ganhar um milhão de dólares, enquanto o de outra pode ser adquirir


educação. O meio pelo qual cada indivíduo atinge seu objetivo é através
da criação e do comércio – os meios econômicos – que produzem sua
própria versão de riqueza. Novamente, o que constitui riqueza difere de
pessoa para pessoa, e inclui dinheiro, cultura, conhecimento, família,
espiritualidade e todos os outros valores humanos possíveis. Os meios
da sociedade são o oposto da coerção, porque uma troca ocorre apenas
quando todas as partes de uma transação concordam com seus termos e
todas as partes se beneficiam.
Rothbard destaca a principal diferença entre interagir com a soci-
edade e com o estado.

Se eu deixar ou me abster de comprar cereais no mercado,


os produtores de cereais não virão atrás de mim com uma
arma ou ameaça de prisão para me obrigar a comprar; se eu
não conseguir entrar na American Philosophical Associa-
tion, a associação não pode me forçar a entrar ou me impe-
dir de desistir de minha filiação. Somente o estado pode
fazê-lo; só o estado pode confiscar minha propriedade ou
me colocar na cadeia se eu não pagar seus impostos.

A principal diferença é o consentimento.


O individualista americano Albert Jay Nock foi o principal con-
dutor do pensamento de Oppenheimer para os Estados Unidos. Ele cap-
turou o sentimento central de seu mentor no livro Our Enemy, The State,
no qual Nock observa: “Tomando o estado, onde quer que seja encon-
trado, adentrando em sua história a qualquer momento, não se vê como
diferenciar as atividades de seus fundadores, administradores e benefi-
ciários daqueles de uma classe criminosa profissional”.
A perspectiva de “adentrar a história do estado” atraiu muitos teó-
ricos políticos, porque se relaciona diretamente com a natureza do es-
tado e se ele é legítimo. Por sua vez, isso aborda a questão de porque as
pessoas obedecem ao estado. Muitas pessoas parecem consentir com a
presença do estado, enquanto reclamam sobre quão corrupto é o sistema
e os padrões duplos na lei. Mesmo aqueles que consideram a maioria
das leis injustas parecem acatá-las, mesmo não sendo explicitamente
forçados a fazê-lo. Mas por quê?
Examinar as raízes do estado é o ponto de partida de uma res-
posta. Em geral, existem quatro teorias básicas e às vezes sobrepostas

202
Relevância do Estado, da Sociedade e da Obediência para a Cripto

de como um estado se origina. Cada teoria traz implicações diferentes


para a relação do estado com a sociedade e a legitimidade que reivin-
dica.
A primeira teoria é sobrenatural. Sustenta que o estado existe pela
vontade de Deus ou algo equivalente. Este é o direito divino de reis ou
governantes, e a teoria muitas vezes resulta em uma teocracia. Membros
menores da sociedade – que presumivelmente também são colocados
em suas posições por Deus – devem lealdade aos líderes ungidos, como
parte de seu dever para com Deus. Uma igreja estabelecida às vezes
atua como um braço do estado, com líderes religiosos reforçando a le-
gitimidade divina do governante.
A segunda teoria de como um estado se origina baseia-se em uma
explicação mais naturalista. O estado é uma instituição espontânea que
surge do ato da comunidade, argumenta-se. A pessoa e a propriedade
dos indivíduos exigem proteção, e seus contratos exigem um meca-
nismo de execução. Isso faz com que uma autoridade superior evolua
para prestar os serviços necessários, atuando como policial e árbitro de
disputas. A sociedade paga ao estado da mesma maneira que paga a um
empreiteiro pela prestação de um serviço valioso. De acordo com a te-
oria do consentimento, nenhuma linha rígida distingue o estado da so-
ciedade, porque ambos estão engajados em um empreendimento coo-
perativo.
A terceira e quarta teorias envolvem conflito. A terceira teoria
afirma que o estado surge devido à guerra interna dentro de uma socie-
dade. Karl Marx popularizou essa visão, analisando o estado como parte
da luta de classes, através da qual os capitalistas controlam e exploram
os trabalhadores; isto é, os capitalistas usam o estado – ou se unem ao
estado – para oprimir os trabalhadores. Para Marx, o estado expressa e
protege uma classe da sociedade às custas de outra, e esta não deve
qualquer lealdade a seus opressores. De fato, o dever dos trabalhadores
é resistir e se rebelar.
A quarta teoria das origens do estado aponta para conflitos exter-
nos em que uma tribo conquista outra. A tribo vitoriosa forma a classe
alta dentro da sociedade resultante, e a tribo conquistada paga tributo
por meio de obediência e riqueza.
Dentro do liberalismo clássico, as duas teorias que lutaram pelo
domínio são a teoria do consentimento, pela qual o estado evolui natu-
ralmente a partir das necessidades da sociedade, e a teoria da conquista,
pela qual o estado está em constante guerra contra a(s) classe(s) não

203
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

privilegiada(s) da sociedade. Estas não são apenas suposições históri-


cas. São também abordagens analíticas para se o estado pode ou não
reivindicar legitimidade.

As teorias do consentimento e da conquista do estado

Se o estado governa com o consentimento da sociedade e fornece


um serviço necessário, então o argumento contra a revolução – na forma
das criptomoedas ou em nome de qualquer outra coisa – é considera-
velmente enfraquecido. É provável que o sistema monetário seja visto
como necessitando de uma reforma considerável, em vez de ser elimi-
nado.
Na teoria do consentimento do estado, o filósofo inglês do século
XVII John Locke se destaca por meio de seus Dois Tratados sobre o
Governo. A filósofa americana contemporânea Karen Vaughn observa
a partir de seu Segundo Tratado: “Locke argumenta o caso dos direitos
naturais individuais, o governo limitado dependendo do consentimento
dos governados, separação de poderes dentro do governo e, mais radi-
calmente, o direito das pessoas dentro da sociedade de depor governan-
tes que não cumprem sua parte no contrato social”. O trabalho de
Locke, sobre o qual as revoluções francesa e americana se basearam,
continua sendo uma pedra de toque da teoria do consentimento para o
governo limitado dentro do liberalismo clássico.
Locke acredita que Deus deu o mundo a todos os homens em co-
mum e justifica a propriedade privada – a apropriação de um bem co-
mum para uso pessoal – argumentando que cada homem tem um direito
de propriedade sobre sua própria pessoa. Com base na autopropriedade,
Locke argumenta: “O trabalho de seu corpo e o trabalho de suas mãos,
podemos dizer, são propriamente dele. O que quer que ele remova do
estado que a natureza forneceu e o deixou, ele misturou seu trabalho e
juntou a ele algo que é seu, e assim o torna sua propriedade”. Até agora,
isso não parece sugerir que o estado, ao contrário dos indivíduos, pro-
duza riqueza ou valor.
Locke então postula que a necessidade de proteger “vida, liber-
dade e propriedade” leva os homens a formar um governo. Uma das
principais razões pelas quais o estado surge é como um escudo contra a
confusão quanto aos títulos de propriedade e outros conflitos, que ocor-
rem quando os indivíduos acumulam e competem por riqueza em um

204
Relevância do Estado, da Sociedade e da Obediência para a Cripto

mundo de escassez. Por meio de um contrato social explícito, os ho-


mens dão ao estado o direito de julgar as disputas. De sua parte, o estado
se compromete a garantir a reivindicação de propriedade dos homens –
por meio de leis de herança, por exemplo. Locke rejeita a afirmação de
que o consentimento prestado ao estado pelos membros iniciais da so-
ciedade pode vincular as gerações futuras, no entanto. Em vez disso, ele
desenvolve uma doutrina de consentimento tácito pela qual as pessoas
que não consentiram explicitamente ainda são obrigadas a aceitar a au-
toridade do estado. Diz-se que cada pessoa que vive em sociedade e
desfruta de seus benefícios concorda com as regras pelas quais um es-
tado limitado governa.
A retirada do consentimento tácito é possível. Um homem pode
renunciar a sua propriedade e deixar a comunidade. Enquanto ele per-
manecer, no entanto, ele aceita implicitamente a autoridade do estado.
Afinal, como argumenta Locke, o “bom título” de sua propriedade veio
do estado, que facilitou sua justa transferência. Um argumento seme-
lhante pode ser feito sobre a riqueza acumulada em virtude de um con-
trato: o contrato tem validade devido ao contexto legal fornecido pelo
estado. Somente quando o estado deixa de cumprir sua parte no contrato
social é que se justifica a rebelião contra sua autoridade. Caso contrário,
o estado e a sociedade são parceiros.
A teoria da conquista do estado contrasta fortemente com o mo-
delo lockeano e é a teoria preferida pelos anarquistas individualistas.
Ele tenta fundamentar o estado primitivo em fatos históricos, em vez de
conjecturas políticas. Uma expressão comum da teoria da conquista é a
seguinte: tribos agrícolas se estabelecem e se tornam dependentes de
áreas específicas de terra. Nômades itinerantes fazem guerra às tribos
mais sedentárias pelos benefícios econômicos que vêm da pilhagem e
do saque. Os nômades começam matando e arrasando, mas descobrem
que é do seu interesse econômico de longo prazo escravizar e exigir
tributos. Por que roubar por uma única estação quando é possível roubar
para sempre? Este é o modelo de conquista simplista para explicar como
surgiu o estado e sua relação com a sociedade.
Em Our Enemy, The State, Nock defende a teoria da conquista do
estado em bases históricas. Em For A New Liberty, Rothbard apresenta
uma versão modificada da teoria. Ele afirma que a conquista foi a gê-
nese típica do estado, mas admite que alguns estados podem ter evolu-
ído de maneira diferente. Mas mesmo um estado que emergiu de um

205
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

contrato social explícito, argumenta ele, não poderia vincular novas ge-
rações por meio de consentimento tácito, porque uma atribuição de di-
reitos naturais requer um contrato explícito. Como não existe renovação
geracional do contrato, qualquer estado atual não tem legitimidade.
Ao defender a teoria da conquista, tanto Nock quanto Rothbard
se apoiam fortemente em Oppenheimer, que sustenta que o estado con-
siste em pessoas que desejam satisfazer seu “impulso econômico” atra-
vés dos meios políticos – através do uso da força. Oppenheimer postula
seis estágios pelos quais um grupo conquistador normalmente passa
para se tornar um estado:
• Primeiro, um grupo guerreiro ataca e saqueia uma comunidade
vulnerável para roubar riqueza em vez de produzi-la por conta
própria. Os ataques vikings na costa britânica são um exemplo.
• Em segundo lugar, a comunidade vitimizada deixa de resistir ati-
vamente; às vezes é feito um acordo explícito entre os agressores
e as vítimas. Os saqueadores passam a saquear apenas o exce-
dente, deixando suas vítimas vivas e com comida suficiente para
garantir a produção de riqueza futura a ser saqueada repetida-
mente. Eventualmente, os dois grupos reconhecem interesses mú-
tuos, como proteger as plantações de terceiras partes externas.
• Terceiro, as vítimas prestam homenagem aos invasores, elimi-
nando a necessidade de qualquer violência.
• Quarto, os dois grupos se fundem territorialmente e vivem juntos
na mesma área.
• Quinto, o grupo belicoso assume a autoridade para arbitrar dispu-
tas, o que envolve o monopólio do uso da força.

Oppenheimer descreve o último estágio em que ambos os grupos


desenvolvem o “hábito de governar”. Em seu capítulo “A Gênese do
Estado”, ele explica: “Os dois grupos, separados, para começar, e de-
pois unidos em um território, são inicialmente apenas colocados um ao
lado do outro, depois são desmembrados um pelo outro. Misturam-se,
unem-se, amalgamam-se à unidade, nos costumes e hábitos, na fala e
no culto. Logo os laços de relacionamento unem os estratos superiores
e inferiores.” Os estratos superiores eram chamados de “classe de mes-
tres.”
O estado, que se originou da conquista externa, evolui para uma
agência de conquista interna pela qual as camadas superiores do estado

206
Relevância do Estado, da Sociedade e da Obediência para a Cripto

utilizam os meios políticos para se beneficiar economicamente às custas


das camadas inferiores de produtores. Nessa visão, o estado surge e se
mantém como parasita e inimigo da sociedade. Ainda assim, em qual-
quer que seja o caminho que leve ao surgimento de um estado uma
questão permanece: por que as pessoas aceitam a autoridade do estado
sobre suas vidas, suas propriedades e o futuro de suas famílias?

Servidão Voluntária

A força é geralmente o último recurso que o estado introduz


quando outros métodos de persuasão, como o apelo ao patriotismo, não
funcionam. Afinal, a presença da força aberta poderia colocar em ques-
tão a legitimidade do estado. Para evitar a desobediência ou a rebelião,
o estado tenta justificar-se aos olhos da sociedade para que possa garan-
tir as vantagens da violência sem incorrer em seus perigos. Nenhuma
análise da relação entre estado e sociedade está completa sem examinar
a questão da legitimidade.
Um ensaio do século XVI intitulado “Discurso da Servidão Vo-
luntária” do jurista francês Étienne de La Boétie é uma discussão inicial
de uma questão inquietante. Por que as pessoas obedecem a leis injus-
tas? La Boétie pergunta: “Se um tirano é um homem e seus súditos são
muitos, por que eles consentem em sua própria escravização?” Corre-
tamente ou não, La Boétie não acredita que o estado governe principal-
mente pela força. Afinal, há muito mais pessoas na sociedade do que
agentes do estado. Se mesmo uma pequena porcentagem da população
se recusa a obedecer a uma lei, então a lei se torna inaplicável; a tirania
é automaticamente derrotada se as pessoas retirarem seu consentimento.
No entanto, a maioria das pessoas obedece sem ser forçada a fazê-lo.
La Boétie desenvolve uma explicação; ele chama isso de “servidão vo-
luntária”.
O Discurso circulou pela primeira vez privadamente na França
(por volta de 1553) em um cenário de guerra estrangeira e conflito in-
terno. Os estados-nação europeus estavam em ascensão, e os monarcas
entraram em conflito não apenas entre si, mas também com seus pró-
prios cidadãos, de quem exigiam muito dinheiro e obediência. O século
XVI deu origem à tirania que levou à Revolução Francesa séculos de-
pois.
Nascido em uma família abastada e politicamente conectada, La
Boétie escapou do analfabetismo, miséria e doenças que se abateram

207
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

sobre a maioria de seus compatriotas. A fome era tão comum na França


que os homens esculpiam cruzes no pão recém-assado para simbolizar
a sacralidade da comida. Pragas irromperam repetidamente. Enquanto
o camponês lutava para sobreviver, os impostos estaduais consumiam
um terço ou mais de sua renda, com os dízimos da igreja absorvendo
outro décimo. Grupos itinerantes de soldados roubavam à vontade e se-
questravam filhos jovens para preencher suas fileiras. A França era uma
monarquia absoluta, o que significava que o poder nacional não era dis-
tribuído, mas ficava com o rei e era administrado por meio de nomea-
ções. Para arrecadar dinheiro para a guerra e o luxo, o rei vendia títulos
aos “nouveau riche”, que formavam uma nova aristocracia com notório
desprezo pelas classes mais baixas. Enquanto isso, as fileiras de advo-
gados aumentavam enquanto administravam burocracias para alimentar
o apetite de um estado em crescimento.
Por que o homem comum obedeceu a um sistema que o tratou tão
miseravelmente e foi claramente manipulado contra ele? Para garantir
isso, o monarca foi ungido por Deus e abençoado pela Igreja Católica
dominante, mas a ascensão do protestantismo na França – os hugueno-
tes – fez com que um segmento crescente da sociedade não reconhe-
cesse a divindade do rei. Havia também lealdades provinciais que com-
petiam com as nacionais. A maioria dos franceses dava fidelidade pri-
mária à província de seu nascimento e não à nação ou ao rei, e as pro-
víncias variavam amplamente em costumes, práticas religiosas e lin-
guagem. Essas diferenças dividiram a nação. Também e com razão, o
rei temia que potências estrangeiras se alinhassem contra ele com pro-
víncias rebeldes. Uma tempestade perfeita entre o estado e a sociedade
parecia estar se formando.
O Discurso provavelmente foi escrito enquanto La Boétie era es-
tudante de direito na Universidade de Orléans, famosa pela atividade
huguenote. De fato, um de seus professores seria mais tarde queimado
na fogueira por heresia. O ensaio em si era uma resposta a um evento
específico – a Revolta de Gabelle em Bordeaux. O Gabelle era um im-
posto muito odiado sobre o sal, que não era apenas uma necessidade
humana, mas também um monopólio estatal. Os manifestantes mataram
o diretor geral do Gabelle junto com dois de seus oficiais. Em retalia-
ção, 140 plebeus foram mortos, muitos outros foram chicoteados e mul-
tas exorbitantes foram impostas.

208
Relevância do Estado, da Sociedade e da Obediência para a Cripto

La Boétie era um observador perspicaz da sociedade. Quando o


povo finalmente se rebelou, ele observou e se perguntou por que o es-
tado foi capaz de fazer quase tudo o que queria por tanto tempo, não
importa o quão tirânico. Ele assistiu de perto também depois que a Re-
volta de Gabelle foi anulada. Por que as pessoas não se levantaram no-
vamente, ele se perguntou, desta vez en masse? Por que a sociedade
tolerava o estado? O Discurso foi a resposta de La Boétie.
Nele, o autor conclui que a obediência coletiva da sociedade vem
de “um vício para o qual nenhum termo pode ser encontrado suficien-
temente vil, que a própria natureza repudia e nossas línguas se recusam
a nomear”. Ele chama isso de “servidão voluntária”. É um vício porque
contradiz a natureza humana; na verdade, até os animais brutos lutam
para se libertar quando apanhados em uma armadilha. Cada homem re-
cebe sua própria capacidade de raciocinar, argumenta La Boétie, e a
virtude reside no cultivo de cada pessoa de sua própria independência
inata. Mas a habilidade do homem de fazê-lo exigiu a morte da tirania,
que é a antítese da independência individual. A defesa do tiranicídio não
era novidade para a teoria europeia, mas La Boétie adota um viés dife-
rente. A maneira de “matar” um tirano é destruir seu poder através da
resistência não-violenta. Dessa maneira, o povo não mata um homem,
mas a própria tirania. A liberdade exige apenas que um número sufici-
ente de pessoas retire seu consentimento e cooperação.

Aquele que assim domina você tem apenas dois olhos, ape-
nas duas mãos, apenas um corpo […]; ele realmente não
tem nada mais do que o poder que você confere a ele para
destruí-lo. Onde ele conseguiu olhos suficientes para espi-
oná-lo, se você mesmo não os forneceu? Como ele pode ter
tantos braços para bater em você, se ele não os empresta
contigo? Os pés que pisoteiam suas cidades, de onde ele os
tira senão dos teus?

La Boétie dirige-se diretamente ao camponês francês. “Vocês en-


tregam seus corpos ao trabalho duro para que ele [o tirano ou o estado]
possa se entregar a seus deleites e chafurdar em seus prazeres imundos;
vocês se enfraquecem para torná-lo mais forte e mais poderoso para
mantê-los sob controle”. Por que obedecer?
La Boétie explora as principais formas pelas quais os engenheiros
estatais consentem com a sociedade.

209
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

As gerações que nasceram “sob o jugo e depois foram nutridas e


criadas na escravidão” aceitam sua condição como natural. É o caminho
do mundo. Assim, La Boétie considera o costume como a primeira ex-
plicação da servidão voluntária. As pessoas acreditam que a vida sem-
pre foi assim; a vida sempre será assim; e é preciso um grande esforço
para introduzir uma nova visão a eles.
O autor e teórico francês Michel de Montaigne, que era o melhor
amigo de La Boétie, dramatizou o incrível poder da tradição em seu
ensaio “Do Costume”. Abre com as palavras:

Parece ter tido uma apreensão correta e verdadeira do poder


do costume, quem primeiro inventou a história de uma cam-
ponesa que, acostumada a brincar e carregar um bezerro nos
braços, e continuando diariamente a fazê-lo como cresceu,
obteve isso por costume, que, quando crescido para ser um
grande boi, ela ainda era capaz de suportar.

Mas, argumenta La Boétie, algumas pessoas sempre tentarão se


livrar “do jugo”, talvez porque “se lembrem de seus ancestrais e de seus
antigos costumes”. Conscientes da história, comparam o passado com
o presente e ousam ansiar por um futuro melhor. “Estes são os que,
tendo suas próprias mentes boas, os treinaram ainda mais pelo estudo e
aprendizado. Mesmo que a liberdade tivesse desaparecido inteiramente
da terra, tais homens a inventariam”.
Depois que a maioria se acostuma à obediência automática, o
principal desafio do tirano é reduzir a dissidência silenciando os poucos
que tentam livrar-se do jugo. Dois meios básicos de fazer isso são con-
trolar a imprensa e monopolizar a educação para que as pessoas não
comparem o passado com o presente e percebam o quanto mais é pos-
sível no futuro. Com um forte controle da informação, o estado pode
inculcar a crença de que age em prol do bem-estar público para manter
a paz, o patriotismo e a tradição. Pode convencer as pessoas de que in-
corpora o bem público. A lavagem cerebral é outra razão pela qual as
pessoas obedecem.
O estado, então, reforça sua imagem maior que a vida por meio
de um processo de mistificação: isto é, tenta parecer maior do que a
mera reunião de seres humanos em suas fileiras. Os governantes se ali-
nham com a religião, são coroados por oficiais da Igreja, realizam ceri-
mônias pomposas, juram proteger a nação, apelam à autoridade de um

210
Relevância do Estado, da Sociedade e da Obediência para a Cripto

documento fundador e assim por diante. Os agentes do estado estão ves-


tidos com uniformes; são construídos monumentos ao poder estatal e
aos líderes do passado; os rituais do ofício são ostensivamente exibidos;
e manifestações da autoridade do estado, como tribunais, estão alojadas
em edifícios imponentes.
Esta é mais uma razão pela qual as pessoas prestam obediência
automática: mistificação. Depois que uma imprensa regulamentada e
um sistema escolar os convenceu de que a autoridade do governante é
legítima, a mistificação do poder do estado os leva um passo adiante.
Eles ficam amedrontados, intimidados e até temerosos.
Algumas pessoas ainda serão difíceis de convencer, no entanto. Aqueles
que não obedecerem por costume, lavagem cerebral ou admiração po-
dem muito bem ser comprados. E, assim, o governante também se en-
gaja na generosidade. La Boétie aponta para as distrações patrocinadas
pelo estado que servem como “ópios”. Fascinado pelo prazer, o povo
não percebe sua própria escravização. Outras vezes, os governantes li-
teralmente alimentam o povo distribuindo estoques de alimentos. “E
então todos gritam descaradamente: ‘Longa vida ao rei!’”, comenta La
Boétie com desdém. “Os tolos não perceberam que estavam apenas re-
cuperando uma parte de sua própria propriedade, e que seu governante
não poderia ter dado a eles o que estavam recebendo sem primeiro tê-
lo tirado deles.” Ao fornecer pão e circo – bem-estar do estado e distra-
ções populares – as pessoas são subornadas para que abdiquem de sua
liberdade.
O suborno direto perde importância, no entanto, ao lado de uma
forma indireta que La Boétie chama de “a mola mestra e o segredo da
dominação, o suporte e a base da tirania”. Isso é suborno institucionali-
zado pelo qual milhões de pessoas são empregadas em empregos esta-
tais e recebem fundos de impostos com os quais pagam suas contas.
Esses funcionários do estado “se agarram ao tirano” e oferecem sua le-
aldade. Alguns funcionários do estado, como policiais, tornam-se as
mãos do estado, alcançando toda a sociedade para implementar leis e
políticas. Intelectuais apoiados por impostos, como professores univer-
sitários, tornam-se as vozes do estado, defendendo suas políticas. Ou-
tros ainda, trabalhando como escriturários ou burocratas menores, fa-
zem a máquina diária do estado funcionar.
Ao longo de gerações, uma vasta nova classe de pessoas emerge
dos funcionários do estado: pessoas que servem aos governantes em
troca de um salário financiado por impostos e outros benefícios. Esses

211
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

funcionários públicos destroem voluntariamente sua própria liberdade


e a de seus vizinhos. E o fazem sem reflexão porque a força do costume
os leva a acreditar que as coisas sempre foram e sempre serão assim.
A solução de La Boétie para a servidão voluntária é que as pessoas
retirem seu consentimento e cooperação do estado. La Boétie aconselha
o homem comum: “Eu não peço que você coloque as mãos sobre o ti-
rano para derrubá-lo, mas simplesmente que você não o apoie mais;
então você o verá, como um grande colosso cujo pedestal foi arrancado,
cair de seu próprio peso e quebrar em pedaços.” La Boétie é ampla-
mente reconhecido como uma das primeiras vozes de desobediência ci-
vil e resistência não-violenta contra a autoridade.
Se ele estiver correto, se a liberdade é um desejo humano natural,
então a própria natureza argumenta a lógica de não cooperar com a ti-
rania. Algo dentro dos seres humanos e até dos animais resiste à tensão
de uma coleira. Em vez de quebrar a tensão atacando aqueles que detêm
os reinados, La Boétie disse às pessoas que deixassem a tensão afrou-
xar; deixe a ponta da coleira cair. As pessoas devem se recusar a se
defender violentamente ou a se submeter.
Eles devem simplesmente dizer “não”.

Estado, Sociedade, Obediência e Cripto

Para repetir: os conceitos e realidades de estado, sociedade e obe-


diência são o contexto em que o Bitcoin nasceu e no qual as criptomo-
edas agora operam. Eles também definirão seu futuro.
O estado deve tirar a riqueza da sociedade para existir. As cripto-
moedas não são apenas uma nova e rica fonte de riqueza para saquear,
mas também uma forte concorrente da fonte atual mais lucrativa do es-
tado: o monopólio monetário. O objetivo do estado é acessar a bonança
das criptomoedas e preservar o monopólio monetário. Sendo inteira-
mente orientado para fins, o estado usará todos e quaisquer meios à sua
disposição para atingir esse objetivo. As estratégias já em exibição in-
cluem:
Propaganda: as criptomoedas estão ligadas a crimes como terro-
rismo, resgates e tráfico de seres humanos de uma maneira que faz com
que esses crimes pareçam ser os usos predominantes. A ligação serve a
pelo menos dois propósitos. Isso cria uma justificativa para o estado
agir contra a criptomoedas e reduz qualquer reação indesejada por parte

212
Relevância do Estado, da Sociedade e da Obediência para a Cripto

do público geral. Em vez disso, o público gritará: “Deverá haver uma


lei”.
O Uso da Força: Como o próprio estado é uma força instituciona-
lizada, esta é sua estratégia final em situações em que a obediência não
pode ser obtida de outras maneiras. E as criptomoedas são irremedia-
velmente desobedientes. A estratégia de violência ou conquista empre-
gada pelo estado geralmente se acelera por etapas:
• O estado saqueia. A privacidade das transferências de blockchain
e o viés antiestatista da comunidade cripto tornam essa opção pro-
blemática. Indivíduos e corretoras vulneráveis são atacados e seus
fundos são confiscados, mas grande parte das criptomoedas per-
manece fora de alcance.
• O estado chega a um acordo com usuários de cripto compatíveis.
As corretoras centralizadas que concordam em cumprir os regu-
lamentos bancários e os requisitos de relatórios são licenciadas e
se tornam corretoras comparsas.
• O estado protege as corretoras de compadres dos concorrentes.
Indivíduos que funcionam fora das zonas cripto regulamentadas
– e especialmente corretoras descentralizadas – tornam-se alvos.
Atacar esses “inimigos externos” beneficia tanto o estado quanto
as corretoras obedientes.
• O estado tenta transformar as criptomoedas em um novo tipo de
dinheiro fiduciário. Por meio de instituições financeiras, o estado
pode imitar a dinâmica das criptomoedas de forma a reproduzir o
monopólio monetário de que goza com a moeda fiduciária. Mo-
eda digital que não usa blockchain pode ser oferecida, por exem-
plo; isso permitirá uma inflação lucrativa e que o estado rastreie
todas as transações de volta para um usuário.

Enquanto passa pelos estágios do uso da força, o estado se envol-


verá em um duplo pensamento ativo, semelhante ao slogan “Uma
guerra para acabar com todas as guerras”. As corretoras centralizadas
serão apresentadas como forma de garantir a segurança do patrimônio
dos usuários, por exemplo, ainda que o maior perigo para a sua riqueza
seja o sistema de banco central que as corretoras espelham.
A propaganda contra as criptomoedas não regulamentadas conti-
nuará, pois, na presença de alternativas, o estado precisa que o público
continue aceitando o monopólio monetário. Muitas pessoas vão fazê-lo

213
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

através do costume. Alguns farão isso por causa de lavagem cerebral


pela mídia cúmplice que se concentra em qualquer irregularidade dos
usuários de criptomoedas. Enquanto isso, o estado mistificará suas pró-
prias atividades, auxiliado pelo fato de que poucas pessoas entendem a
tecnologia das criptomoedas ou da moeda digital. O primeiro – se não
regulamentado – será diminuído como inseguro, criminoso e falso. O
último – sob controle do estado – será considerado seguro, legítimo e
forte.
As criptomoedas que se recusarem a serem regulamentadas con-
tinuarão sendo o dinheiro da sociedade – ou seja, o dinheiro de indiví-
duos que interagem livremente e em seu próprio interesse para benefí-
cio mútuo. Continuarão a produzir riqueza. Em virtude da cripto ser
orientada para os meios, como a sociedade, ela evoluirá para diversos
fins com apenas os meios sendo previsíveis: não-violência e consenti-
mento. O conflito entre dinheiro privado e dinheiro fiduciário persistirá
porque os dois têm dinâmicas fundamentalmente antagônicas que se
ameaçam. Um dos principais campos de batalha será a opinião pública.
Nesse campo de batalha, o maior desafio que o mundo cripto en-
frenta é convencer um número suficiente de pessoas a simplesmente
dizer “não”.

214
CAPÍTULO DEZ
Teoria Cripto de Classe e Lei de Livre Mercado
A teoria de classe fundamenta o livre mercado e as criptomoedas:
o estado versus a sociedade. O Bitcoin foi projetado para contornar um
sistema bancário central que serve à classe política em detrimento da
econômica. Como inimiga do estado, a criptomoeda é uma aliada da
sociedade.

Guerra de Classes e Cripto

Muitas pessoas assumem que qualquer coisa relacionada a bancos


e finanças expressa os interesses de classe dos capitalistas versus o ho-
mem comum. O oposto é verdadeiro, mas a confusão é compreensível.
A palavra “capitalismo” é comumente aplicada ao capitalismo de com-
padrio nos dias de hoje – isto é, um arranjo econômico pelo qual algu-
mas empresas desfrutam de um relacionamento próximo e mutuamente
benéfico com funcionários do estado e recebem tratamento privilegi-
ado. Um “capitalista” tradicional é aquele que possui e usa bens de ca-
pital, permanecendo na sociedade sem vínculo com o estado; esse ar-
ranjo econômico às vezes é chamado de “capitalismo laissez-faire”. É
uma expressão do livre mercado e é um benefício para o homem co-
mum, porque o capitalismo laissez-faire atua como um motor de pros-
peridade.
Os bancos centrais e a maioria das instituições financeiras expres-
sam o capitalismo de compadrio. O capitalismo laissez-faire expressa o
livre mercado. Assim, uma afirmação mais específica do conflito de
classes é o capitalismo de estado e compadrio versus sociedade e capi-
talismo laissez-faire. Nesse conflito, a criptomoeda cai claramente do
lado da sociedade. A lealdade de classe da criptomoeda é evidente pelos
notáveis paralelos entre sua forma e função e os da sociedade. Os para-
lelos incluem:
• O indivíduo é o locus do poder.
• Ambos são descentralizados até o nível do indivíduo.
• Voluntarismo é o modo de operação.
• Sua finalidade é facilitar as trocas, principalmente econômicas.
• As trocas ocorrem somente com o consentimento de todos os en-
volvidos.

215
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

• Terceiras partes confiáveis são desnecessárias.


• A privacidade é preservada, caso os participantes assim o dese-
jem.
• Não há barreira artificial à entrada.
• Nenhum deles é detentor de um ponto fraco em que todo o sistema
esteja vulnerável.
• A riqueza está sendo constantemente criada.
• Riqueza e status são baseados em labuta.
• As trocas não são baseadas em ideologia ou política.
• Reputações são importantes.
• O estado é o inimigo da classe.

Por outro lado, a forma e a função do estado são antitéticas à crip-


tomoeda e ao livre mercado.
• O estado é o locus do poder.
• Todo o poder é centralizado em burocracias.
• A coerção é seu modo de operação.
• O objetivo do estado é manter sua própria existência.
• Transferências forçadas de riqueza e poder são feitas em bene-
fício do estado.
• É a terceira parte última.
• A privacidade é desaprovada e prejudicada a cada passo.
• Barreiras à entrada são erguidas, às vezes chegando a proibi-
ções.
• Quem está no poder é o ponto fraco do sistema.
• Nenhuma riqueza é criada.
• Riqueza e poder são baseados na política.
• A riqueza é acumulada por meio de roubo e privilégio.
• A reputação não é necessária e menos importante que o status.
• A sociedade é a inimiga da classe.

Outro teste decisivo para saber se a criptomoeda serve ao estado


ou à sociedade está enraizado nas respostas a duas perguntas sobre di-
nheiro. #1. Quem o emite? O dinheiro fiduciário é emitido pelo estado
ou por uma autoridade controlada pelo estado, sendo a concorrência
proibida por lei. As criptomoedas são emitidas por empreendedores que

216
Teoria Cripto de Classe e Lei de Livre Mercado

competem vigorosamente entre si pela aceitação popular. #2. As pes-


soas podem optar por usar a moeda ou não? O estado exige que as pes-
soas aceitem seu fiat como moeda legal. A cripto deixa a decisão para
o indivíduo.
Talvez a maior ameaça à criptomoeda não regulamentada seja o
esforço do estado para mudar a forma e a função da criptomoeda para
que ela não mais expresse e enriqueça a sociedade, mas expresse e en-
riqueça o estado. O estado queria esculpir a criptomoeda em sua própria
imagem por meio de emissão estatal, regulamentação e outras medidas
para que se tornasse um tipo de criptomoeda fiduciária. Isso não pode
ser feito; a blockchain não pode ser centralizada sob uma única autori-
dade. Nenhuma mistura de forças inerentemente antagônicas é possível.
Não é sequer claro que criptos estatais e de livre mercado possam coe-
xistir.
O estado continuará tentando forjar uma criptografia bastarda, no
entanto, até que esteja convencido de que os esforços são inúteis. Neste
ponto, a criptomoeda deixará de ser vista como uma oportunidade e será
vista como um perigo. A própria existência de criptomoedas de livre
mercado invade uma fonte insubstituível de poder estatal – a emissão
de dinheiro. A criptomoeda tem a capacidade de enfraquecer essa fonte
de poder e, talvez, destruí-la.
Os recursos de criptografia que enfraquecem o estado incluem:
• As transferências peer-to-peer negam riqueza evitando os ban-
cos centrais através dos quais o fluxo financeiro é controlado.
• A privacidade cripto atrapalha a campanha de controle social do
estado. Os dados das instituições financeiras que informam so-
bre seus clientes são vitais para a capacidade do Estado de impor
controle social e econômico.
• A privacidade também evita a centralização do estado. O estado
quase pode ser definido como a centralização do poder para be-
neficiar a elite.
• A existência da cripto levanta a questão de saber se o estado é
necessário. Se o livre mercado pode assumir tão facilmente uma
função essencial do estado – a emissão e circulação de moeda –
então por que não pode assumir outras, ou todas?

A cripto é o dinheiro da sociedade; não pode e não serve ao es-


tado.

217
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

A aplicação da lei como ferramenta da guerra de classes

O poder tributário coercitivo do governo cria necessaria-


mente duas classes: os que criam e os que consomem a ri-
queza expropriada e transferida por esse poder. Aqueles que
criam a riqueza naturalmente querem mantê-la e dedicá-la
aos seus próprios propósitos. Aqueles que desejam expro-
priar procuram formas cada vez mais inteligentes de ad-
quiri-lo sem incitar resistências. Uma dessas formas é a di-
vulgação de uma elaborada ideologia de estatismo, que en-
sina que as pessoas são o estado e que, portanto, eles só es-
tão pagando a si mesmos quando pagam impostos. Os ofi-
ciais do estado e os intelectuais do tribunal nas universida-
des e os meios de comunicação fazem de tudo para que as
pessoas acreditem nessa história fantástica, incluindo a cri-
ação de escolas. Infelizmente, a maioria das pessoas passa
a acreditar.
– Sheldon Richman

Uma das armas mais poderosas que o estado possui na luta de


classes que trava contra a sociedade é a imposição da lei, incluindo a
legislação e o sistema judicial através do qual o estado afirma seus pri-
vilégios de classe. A lei é parte integrante do monopólio do estado sobre
a força e sua capacidade de coagir a transferência de riqueza da socie-
dade para suas próprias mãos. Sem o monopólio da imposição da lei, é
difícil imaginar como o estado poderia vencer o conflito de classes, por-
que a sociedade desfruta das enormes vantagens de ser produtiva, ino-
vadora e enérgica.
O estado investe imenso tempo e imensas quantias de dinheiro
para convencer a sociedade de que a imposição da lei é uma proteção,
não uma ameaça. À medida que um estado se aproxima do totalitarismo,
porém, torna-se mais difícil manter esse engano porque suas armas –
isto é, as indústrias de imposição da lei – tornam-se mais visíveis.
Uma das últimas ferramentas que o Estado usa para manter a le-
gitimidade antes de começar a usar armas é o argumento N.H.A: não há
alternativa. O estado incita o medo de um terrível inimigo – terroristas,

218
Teoria Cripto de Classe e Lei de Livre Mercado

talvez – e então assegura à sociedade que são necessários guardas ar-


mados nos aeroportos, câmeras de vigilância e uma força policial mili-
tarizada. Além disso, não há alternativa. Ou melhor, a única alternativa
é o terrorismo. Muitos acreditarão nessa falsa escolha e aceitarão o me-
nor de dois males.
Felizmente, existe uma alternativa: a lei do livre mercado.

Lei de livre mercado

Há uma distinção importante entre legislação e lei. Legisla-


ção é a lei que vem da ação política. […] A lei é mais geral
no sentido de que a legislação é uma forma de lei, mas a lei
também pode ser o tipo de lei que evolui através da intera-
ção humana. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, muitas
vezes somos chamados de países de ‘common law’ e isso
porque uma boa parte e, de fato, a maior parte de nossa lei
surgiu por meio de um processo evolutivo que não envolveu
a ação de representantes políticos.
– John Hasnas

Deveria haver uma lei. O significado desta afirmação depende da


definição de “lei”. O estado trata a palavra como sinônimo de legislação
ou lei estatutária, que é a lei que resulta de um processo político. Qual-
quer pessoa ou grupo que detenha poder suficiente pode aprovar legis-
lação e usar a aplicação da lei para impô-la à sociedade. Trata-se de um
modelo centralizado e redutor pelo qual uma classe superior determina
como a classe inferior deve se comportar. O efeito das decisões da
classe alta flui verticalmente para a vida das pessoas da classe baixa. O
único perigo para um sistema piramidal é que os seres humanos agem
em seu próprio interesse, e a lei legislada provavelmente reflete os in-
teresses dos políticos, e não os das pessoas a quem é imposta. O sistema
é uma fórmula para a corrupção e uma porta de entrada para o estado se
expandir cada vez mais profundamente na sociedade.
Pode haver lei viável sem o Estado? Anarquistas e defensores do
governo limitado têm debatido essa questão há séculos, com muitas vo-
zes do livre mercado concluindo que a lei deve emanar do estado da
mesma maneira que eles acreditam que o dinheiro deve. O direito é uma
necessidade humana sem a qual a sociedade civil dificilmente durará
muito. Se o livre mercado não pode fornecer esse bem essencial, então

219
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

o anarquismo falha e o governo limitado é a alternativa mais prática. A


sociedade se tornará um parceiro júnior do estado. A eterna luta entre a
Liberdade e o Poder sobre a qual Rothbard escreveu terminará com o
Poder declarando vitória.
É uma abordagem útil começar definindo o termo “lei”. Lei é um
termo mais geral do que “legislação”, que é meramente uma forma de
lei; o termo geral refere-se a qualquer código ou conjunto de regras que
governam a interação humana. “Governança” não implica em estado.
Pode haver lei sem um estado? A resposta: “sim, pode”, e por um
motivo: a sociedade precede o estado, que necessariamente surge da
reunião de seres humanos que buscam interação. A sociedade precede
tanto o estado quanto a lei.
Outra razão pela qual a lei de livre mercado pode existir é porque
ela já existe.
Uma forma popular de lei de livre mercado é chamada de lei co-
mum ou consuetudinária. Este é um conjunto de regras baseadas em
precedentes que evoluem ao longo do tempo para resolver disputas em
uma comunidade específica. Não é preventivo, mas reativo. Quando
uma disputa irrompe, as partes vão a um terceiro imparcial ou a uma
assembleia da comunidade para que seus casos sejam ouvidos. Em uma
comunidade rural, por exemplo, se um homem acusa outro de roubar
um animal de fazenda, então o árbitro avalia o caso e aplica um padrão
comunitário que surgiu de casos semelhantes no passado. Uma vez que
os próprios juízes podem estar envolvidos em uma futura disputa co-
munitária, eles têm interesse em infundir o processo com bom senso.
Isso é lei popular. É uma lei descentralizada que não tem a ampla
aplicação das leis federais porque é adaptada às circunstâncias e pa-
drões locais. Uma vila de pescadores quase certamente desenvolveria
regras de comportamento diferentes de uma cidade de mineração, por
exemplo. As regras que regem a comunidade de criptomoedas seriam
diferentes das regras da indústria da construção. Enquanto o objetivo
for preservar a interação pacífica e corrigir as violações, não há certo
ou errado no conteúdo específico da lei.
O estudioso jurídico John Hasnas explica:

O direito consuetudinário é o tipo de direito que evolui


quando surgem disputas. […] Com o passar das décadas e
séculos, à medida que as coisas evoluem, o tomador de de-
cisões torna-se cada vez mais especializado, e quando você

220
Teoria Cripto de Classe e Lei de Livre Mercado

chega à era normanda na Inglaterra, as decisões são toma-


das por júris. Os júris ainda são formados por pessoas co-
muns do país. […] Em nosso sistema, não se tem tribunais
organizados de forma hierárquica até o final do século XIX,
então já é 1873 e 1875.

Uma sociedade moderna complexa pode funcionar sem um con-


junto homogeneizado de regras que são obrigatórias? A lei fundamen-
talmente descentralizada pode funcionar dentro de uma estrutura muito
maior do que uma vila de pescadores ou uma comunidade rural?
A perspectiva tem sido discutida há séculos.

A Primeira Discussão da Lei de


Livre Mercado e Sistemas de Defesa

Ao nosso redor estão os benefícios quase inimagináveis de


mercados, cooperação e tecnologia, mas de alguma forma
somos ingênuos se não quisermos canalizar a atividade hu-
mana através das rampas de gado do governo. A vasta abun-
dância material e digital que desfrutamos todos os dias é
fornecida sem nenhum aparato estatal e, na verdade, o é
apesar desse aparato. Este mundo privado não faz parte da
realidade? O governo é o artifício, e os estatistas são os so-
nhadores utópicos que imaginam que indivíduos agindo sob
a bandeira mágica do governo podem planejar, coagir e co-
ordenar milhões de vidas.
– Jeff Deist

O liberal clássico do século XIX Gustave de Molinari respeitava


o livre mercado tão profundamente que seus colegas se referiam a ele
como “a lei da oferta e da demanda transformada em homem”. Muito
elogiado em sua época, Molinari caiu na obscuridade. Seu legado deve
ser recuperado, no entanto, porque ele levantou uma questão crucial.
Por que a segurança é um serviço monopolizado pelo estado e não exe-
cutado pelo livre mercado, que fornece todos os outros serviços de
forma mais eficiente e barata?
Molinari é o primeiro precursor explícito do anarquismo de livre
mercado. Rothbard alude a seu ensaio de 1849, “Da produção de segu-
rança”, como “a primeira apresentação em qualquer lugar da história

221
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

humana do que agora é chamado de ‘anarcocapitalismo’ ou ‘anar-


quismo de livre mercado’”. O núcleo do anarquismo de Molinari é sua
teoria de como a sociedade surge.

Há duas maneiras de considerar a sociedade. Segundo al-


guns, o desenvolvimento das associações humanas não está
sujeito a leis providenciais e imutáveis. Em vez disso, essas
associações, tendo sido originalmente organizadas de ma-
neira puramente artificial por legisladores primitivos, po-
dendo mais tarde ser modificadas ou refeitas por outros le-
gisladores, de acordo com o progresso da ciência social.
Nesse sistema, o governo desempenha um papel preemi-
nente, pois é sobre ele, guardião do princípio da autoridade,
que recai a tarefa cotidiana de modificar e refazer a socie-
dade.
Segundo outros, ao contrário, a sociedade é um fato pura-
mente natural. Como a terra em que está, a sociedade se
move de acordo com leis gerais preexistentes. Nesse sis-
tema, não existe, estritamente falando, ciência social; existe
apenas a ciência econômica, que estuda o organismo natural
da sociedade e mostra como esse organismo funciona.

Molinari acredita que os homens formam a sociedade por inte-


resse próprio para satisfazer o mesmo “instinto de sociabilidade”, de-
monstrado por outros animais de alta ordem; a sociabilidade foi cons-
truída na natureza do homem da mesma forma que a fome. A sociedade
é organizada espontaneamente com o propósito de fazer trocas ampla-
mente definidas; estas são a esfera apropriada do estudo econômico,
não da ciência social.
Molinari apresenta três métodos pelos quais qualquer bem ou ser-
viço pode ser produzido.
• O primeiro método é conceder um monopólio a uma entidade pri-
vilegiada. Isso é o que acontece quando o estado recebe o mono-
pólio do uso da força e da lei dentro de uma jurisdição. Indivíduos
dissidentes são forçados a obedecer, ou são silenciados.

222
Teoria Cripto de Classe e Lei de Livre Mercado

• O segundo método é através de um coletivo que produz um ser-


viço que diz beneficiar a sociedade em geral. A autoridade inves-
tida em uma democracia é um exemplo. Essa forma menos cen-
tralizada de controle não é menos perigosa para um dissidente.
• O terceiro método é a competição de livre mercado. A autoridade
reside com indivíduos que são empresários e clientes. Os indiví-
duos escolhem livremente fazer negócios ou não.

Todos os serviços e bens devem ser questões puramente econô-


micas, incluindo segurança e defesa. Como todos os outros serviços que
atendem a uma necessidade humana, a segurança é melhor fornecida
por um livre mercado, no qual os indivíduos exercem o poder supremo
do “sim” ou do “não”. Molinari é o primeiro teórico a apresentar um
argumento coeso sobre como os mecanismos de livre mercado podem
substituir as chamadas funções essenciais do estado, especialmente a
proteção contra agressões. Ele afirma que o mercado também estabe-
lece uma sociedade mais justa do que o governo.

Essa opção que o consumidor retém de poder comprar se-


gurança onde bem entender provoca uma constante emula-
ção entre todos os produtores, cada produtor se esforçando
para manter ou aumentar sua clientela com a atração do ba-
rateamento ou da justiça mais rápida, mais completa e me-
lhor.
Se, ao contrário, o consumidor não é livre para comprar tí-
tulos onde quiser, logo se abre uma grande profissão dedi-
cada ao arbítrio e à má gestão. A justiça torna-se lenta e
custosa, a polícia vexatória, a liberdade individual não é
mais respeitada, o preço da segurança é inflacionado de
forma abusiva e repartido de forma desigual, conforme o
poder e a influência desta ou daquela classe de consumido-
res. Os protetores se envolvem em lutas amargas para ar-
rancar clientes uns dos outros. Numa palavra, surgem todos
os abusos inerentes ao monopólio ou ao comunismo.

Em suma, não deveria haver outra lei; que não a de livre mercado.

223
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Molinari esboça brevemente um plano de como pode ser o serviço


econômico de segurança. Para começar, ele se concentraria inteira-
mente na proteção da pessoa e da propriedade, em vez da proteção do
estado ou de um código moral. Isso elimina a grande maioria das leis.
Também reduz as guerras constantemente travadas por território por na-
ções que desconsideram as preferências das populações.
A segurança seria um negócio – ou muitos negócios – incluindo
forças policiais privadas e serviços de arbitragem. Os clientes em po-
tencial provavelmente fariam uma série de perguntas a um provedor,
incluindo uma que Molinari sugere; Será que “qualquer outro produtor
de segurança, oferecendo garantias iguais … oferecerá … esta merca-
doria em melhores condições?” Em suma, Molinari prevê um sistema
de provedores de segurança que funciona da mesma maneira que as se-
guradoras de hoje. Ele conclui: “Sob um regime de liberdade, a organi-
zação natural da indústria de segurança não seria diferente da de outras
indústrias”.
Uma contrarresposta surge inevitavelmente; lei exige consenso.

Locke sobre o argumento do consenso para o direito

A percepção do problema da necessidade de consenso tem assom-


brado a questão do estado versus direito privado e justiça. Seu defensor
mais persuasivo foi John Locke.

A chave para… um sistema judicial anarcocapitalista é en-


contrada no conceito de um “judiciário pessoal”. [Atuando
como seu próprio juiz.] … O propósito dos tribunais é per-
mitir que os homens resolvam disputas de modo a evitar a
resolução violenta, bem como os ciclos de agressão-com-
pensação. Considerar as decisões dos tribunais como legíti-
mas é a única maneira de os litigantes evitarem ações judi-
ciais pessoais.
– Karl T. Fielding, “The Role of Personal Justice in Anar-
cho Capitalism” [ênfase adicionada]

“Judiciário pessoal” é uma ideia que Locke apresenta no Segundo


Tratado do Governo. O termo refere-se ao direito natural de uma pessoa
de avaliar suas próprias experiências e agir de acordo com suas conclu-
sões; isso inclui julgar seu próprio caso. Além disso, como todos têm o

224
Teoria Cripto de Classe e Lei de Livre Mercado

direito de reclamar sua propriedade de um ladrão, todos podem agir


como seu próprio agente de restituição. Se alguém roubar sua carteira,
você tem o direito de pegar o ladrão para recuperá-la. O agarrar é um
ato de força defensiva, não de agressão.
Locke reconhece esse direito, mas acha insensato exercê-lo. Ele
escreve:

Que no estado de natureza cada um tem o poder executivo


da lei de natureza, não duvido, mas será objetado que não é
razoável que os homens sejam juízes em seus próprios ca-
sos, que o amor-próprio torne os homens parciais para si
mesmos e seus amigos. E por outro lado, essa má natureza
– paixão e vingança – os levará longe demais ao punir os
outros; e, portanto, nada além de confusão e desordem se
seguirão.

Não é sensato que os homens julguem seus próprios casos porque


o ato produzirá conflito na sociedade. Mesmo um homem justo vê as
coisas de sua própria perspectiva e interesse próprio; esta é a natureza
humana. Além disso, ele pode se enganar sobre os fatos, inclusive fun-
damentais como a identidade do ladrão. Em outras palavras, mesmo um
homem bom carece de objetividade. As pessoas que são menos hones-
tas ou mais emocionais podem ser ainda menos justas e podem exigir
remédios inapropriadamente severos.
Locke argumenta que uma sociedade na qual as pessoas julgam
seus próprios casos cairá em “confusão e desordem”. Por quê? Porque
um veredicto injusto ou um remédio impróprio prejudica o destinatário
que então julga seu próprio caso e retifica o malfeito a ele. O processo
pode se tornar um ciclo sem fim porque a justiça administrada não é
aceita como legítima por ambas as partes.
Locke acredita que quebrar o ciclo requer um juiz imparcial cuja
avaliação seja amplamente aceita como legítima. Em termos de cripto-
grafia: Locke quer que a justiça descentralizada de cada homem jul-
gando seu próprio caso seja centralizada e colocada sob a autoridade de
uma terceira parte confiável. A necessidade de legitimidade na justiça é
uma das principais razões pelas quais Locke defende um estado limi-
tado. E, durante séculos, a abordagem de Locke tem sido usada para
argumentar contra a possibilidade de direito privado e justiça na socie-
dade civil.

225
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Mas se uma terceira parte confiável é irrelevante para exercer di-


reitos como a liberdade de religião, ele não deveria ser verdade para o
exercício de uma reivindicação de direito de propriedade sobre bens?
Se a criptomoeda for roubada, a vítima não deveria poder recuperar sua
propriedade diretamente hackeando as moedas?
Sim, diria Locke, mas há boas razões para não a exercer. Remé-
dios individuais apresentam perigo para a vítima. Primeiro, se ele esti-
ver enganado sobre a identidade do ladrão, o erro converte um ato de
legítima defesa em uma agressão pela qual ele é responsável. Em se-
gundo lugar, a vítima pode buscar mais remédios do que o apropriado,
levando o agressor original a retaliar. Alcançar a restituição também
pode ser perigoso ou além da capacidade da vítima. E assim por diante
e assim por diante.
Julgar seu próprio caso também introduz o problema do bom sa-
maritano. Os espectadores basearão seus julgamentos na aparência. Se
eles testemunham um ataque na rua desde o início, eles sabem quem é
o agressor, é claro. Sabem? E se você testemunhar um homem agarrar
uma mulher e puxá-la rudemente para ele? Ela grita por socorro. Você
corre para o resgate, atingindo o homem no rosto com um livro pesado
que está carregando. Enquanto ele cobre o nariz quebrado, a mulher
libertada sai correndo. Mais tarde você descobre que a mulher é uma
batedora de carteiras; o homem estava recuperando uma carteira rou-
bada.
Você facilitou um crime e feriu um homem inocente. E, no en-
tanto, tudo o que você pretendia fazer era exercer um princípio corolário
de autodefesa: o direito de defender pessoas inocentes contra agressões.
Sem esse corolário, os cônjuges não poderiam se defender legitima-
mente e os pais não poderiam proteger os filhos. Você se comportou de
maneira razoável, mas sua avaliação foi incorreta. O homem tinha o
direito de cobrar remediação dela, e agora de você.
A confusão pode ser maior com o roubo de criptomoedas. Consi-
dere um cenário. Sua conta em uma corretora ou em seu disco rígido é
limpa de moedas. Através do trabalho de detetive, você identifica o la-
drão e busca a restituição invadindo sua carteira. Sua corretora detecta
a atividade e vê você como o criminoso simplesmente porque é assim
que aparece. A corretora chama a polícia e processa você. Eventual-
mente, você limpa seu nome à custa de dinheiro, inconveniência e cons-
trangimento. Além disso, você não recupera as moedas.

226
Teoria Cripto de Classe e Lei de Livre Mercado

Muitas vezes é impossível para um espectador distinguir entre


uma vítima e um agressor através da observação. Isso é especialmente
verdadeiro com crimes de criptomoedas. O homem que recupera sua
carteira pode provar que é sua carteira mostrando o ID interno. Não é
igualmente fácil provar que moedas ou dinheiro fiduciário pertencem a
uma pessoa – uma moeda é uma moeda, um dólar é um dólar e eles não
vêm com certificados de propriedade.
Felizmente, há uma maneira segura de identificar quem é a ví-
tima.
O teste decisivo: quem é o proprietário do imóvel em questão?
Ser proprietário significa ter um título válido para a propriedade. A
posse pode até ser “9/10 da propriedade”, mas o título é 100%. Ainda
assim, a prova de título requer uma determinação baseada no exame das
evidências.

Se nenhum homem pode invadir a propriedade “justa” de


outra pessoa, qual deve ser nosso critério de justiça? Não há
espaço aqui para elaborar uma teoria da justiça nos títulos
de propriedade. Basta dizer que o axioma básico da teoria
política libertária sustenta que todo homem é dono de si
mesmo, tendo jurisdição absoluta sobre seu próprio corpo.
[…] Segue-se então que cada pessoa é a justa proprietária
de quaisquer recursos previamente não reclamados aos
quais ela apropria ou mistura seu trabalho”. A partir desses
axiomas gêmeos – donidade de si mesmo e “apropriação
original” – derivam a justificativa para todo o sistema de
títulos de direitos de propriedade em uma sociedade de livre
mercado. Este sistema estabelece o direito de cada homem
à sua própria pessoa, o direito de doação, de legado (e, con-
comitantemente, o direito de receber o legado ou herança),
e o direito de transferência contratual de títulos de proprie-
dade.
– Murray Rothbard

Como conceitos, roubo e restituição dependem da ideia de títulos


de propriedade. Na maioria dos casos, a restituição é melhor feita por
um agente ou agência terceirizada confiável. Contanto que o terceiro
seja de livre mercado, isso apresenta poucos problemas. Ao contrário

227
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

da aplicação da lei, uma agência de livre mercado pode ser contratada


e demitida à vontade. Essa é a diferença entre o Estado e a sociedade.
Antes de prosseguir para uma discussão mais concreta sobre se-
gurança de livre e sua relevância para a criptomoeda, outro aspecto da
segurança de livre mercado é melhor abordado: a prevenção do crime.

Segurança preventiva

Talvez o principal problema nessa área seja ver a importân-


cia da proteção – fazer com que as pessoas se concentrem
mais em deixar o criminoso fora e menos em prendê-lo de-
pois que ele cometeu um crime. Esforços bem-sucedidos
para reduzir a incidência de crimes devem ser baseados em
melhores métodos de proteção. Ou seja, devemos nos preo-
cupar em tentar prevenir as transgressões ao invés de nos
preocuparmos com o que faremos depois que formos ofen-
didos. […] Os homens que veem a necessidade de proteção
percebem que o governo não está em condições de fornecê-
la, e eles dão as costas. A melhor fonte de proteção é o mer-
cado.
– Robert LeFevre, The Fundamentals of Liberty

Uma desvantagem de confiar sua segurança ao estado é a tendên-


cia de se tornar dependente dele e negligenciar a proteção a si mesmo.
Se não houvesse polícia, as pessoas seriam mais agressivas em garantir
preventivamente sua própria segurança. A situação se assemelha a
como as pessoas abordam suas contas bancárias. Como a Federal De-
posit Insurance Corporation assegura depósitos nos EUA contra falên-
cias bancárias, os clientes raramente pensam duas vezes na segurança
de suas contas. Essa atitude ou hábito torna as pessoas vulneráveis a
perder criptomoedas em corretoras ou investimentos imprudentes. A
dependência do estado faz com que percam ou nunca desenvolvam o
hábito da autoproteção. No entanto, a autoproteção é tanto responsabi-
lidade do indivíduo quanto sua saúde.
LeFevre destaca outra desvantagem. Aqueles que utilizam os ser-
viços de imposição da lei estão reforçando o mito da legitimidade do
estado.
Então, como obter a justiça? LeFevre responde: defesas preventi-
vas que evitam o crime antes que ele aconteça. Isso contrasta fortemente

228
Teoria Cripto de Classe e Lei de Livre Mercado

com a forma como a maioria dos teóricos libertários aborda a justiça


privada; eles se concentram quase inteiramente em questões como res-
tituição versus retribuição. Essas questões entram em jogo, no entanto,
somente após a ocorrência de uma violação de direitos. Como Satoshi,
LeFevre quer um sistema que impeça que os crimes aconteçam em pri-
meiro lugar.
Existem paralelos impressionantes entre LeFevre e Satoshi. Am-
bos querem evitar e substituir uma agência estatal terceirizada confiável
por uma alternativa privada. LeFevre se concentra em substituir a apli-
cação da lei tradicional, enquanto Satoshi tem como alvo o sistema ban-
cário central. Suas motivações são semelhantes. LeFevre vê a aplicação
da lei como um fracasso maciço, ou muito pior. Sob o pretexto de for-
necer justiça, oprime os indivíduos regulando quase todas as atividades
deixando-os sem fôlego. Da mesma forma, Satoshi sabe que os bancos
centrais e o dinheiro fiduciário são fracassos maciços, ou muito piores.
Sob o pretexto de fornecer estabilidade e proteção financeira, eles sa-
queiam a riqueza dos indivíduos por meio de mecanismos como a in-
flação.
Ambos os homens não enfrentaram o estado, mas evitaram a ne-
cessidade dele. LeFevre escreve: “O governo é o único dispositivo que
conhecemos de autoproteção? Não, não é. O seguro voluntário é outro
dispositivo. Assim como policiais particulares, organizações privadas
como a Legião Americana, vigias noturnos, polícia mercante, a Triple
A e talvez uma dúzia de outros…”
As vantagens práticas aderem ao compromisso de LeFevre e Sa-
toshi com a prevenção. Por um lado, após a ocorrência de um crime,
pode ser quase impossível remediar a vítima, mesmo em casos não cri-
minais de contrato ou atos ilícitos simples.
O estado não quer que as pessoas se protejam a si mesmas porque
isso quebra seus monopólios de terceiras partes confiáveis sobre a apli-
cação da lei e os bancos. Ou, pelo menos, os ignora. O estado quer que
as pessoas acreditem que a polícia “serve e protege”, porque então eles
aceitam a perda da liberdade como o preço da segurança. A principal
arma de autodefesa da sociedade é demonstrar que a proteção e os ser-
viços do estado são desnecessários. As pessoas não precisam pagar com
sua liberdade para estarem seguras

Uma Pergunta Assombrosa

229
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

A ênfase na prevenção captura um cisma dentro da comunidade


cripto. Prevenção e desvio são companheiros naturais. O confronto não
é. Qual abordagem é mais eficaz para lidar com o estado? Ou será que
pode mesmo ser feita uma declaração geral? Satoshi parecia favorecer
a ênfase na prevenção.
As duas atitudes estão incorporadas em um incidente entre Julian
Assange e Satoshi. Ambos entendem completamente o valor da liber-
dade de cripto, mas parecem discordar sobre a melhor maneira de al-
cançá-lo.
Assange twittou em outubro de 2017: “Meus mais profundos
agradecimentos ao governo dos EUA, senador McCain e senador Lie-
berman por pressionar Visa, MasterCad [sic], Paypal, AmEx, Mo-
neybookers, e outros, a erguer um bloqueio bancário ilegal contra @Wi-
kiLeaks começando em 2010. Isso nos levou a investir em Bitcoin –
com retornos > 50.000%.
A atitude de Satoshi é sintetizada por sua resposta a um tweet an-
terior de Assange que declara: “Pode vir [bitcoin]”. Objetou Satoshi:
“Não, não ‘faça isso’. O projeto precisa crescer gradualmente para que
o software possa ser fortalecido ao longo do caminho. Faço este apelo
ao WikiLeaks para não tentar usar o Bitcoin. Bitcoin é uma pequena
comunidade beta em sua infância.” Menos de uma semana depois, em
12 de dezembro de 2010, Satoshi desapareceu após postar a mensagem:
“WikiLeaks chutou o ninho de vespas, e o enxame está vindo em nossa
direção”. O enxame é o governo e, talvez, aqueles usuários que não se
importam com o Bitcoin como veículo de liberdade e podem diluir seu
potencial.
É tentador especular sobre o software com o qual Satoshi queria
fortalecer o Bitcoin. Proteções contra maus agentes? Uma corretora
descentralizada para negociação complexa e saque? É perturbador per-
ceber que o Bitcoin pode ter sido prejudicado ao se popularizar cedo
demais.
Mas a principal questão colocada aqui é se a atitude de prevenção
e evasão de Satoshi é a abordagem mais eficaz para combater o estado.
Nesse caso, aqueles que confrontam o estado com provocações e desa-
fios podem estar enfraquecendo uma força primária da criptomoeda:
liberdade por meio da prevenção, não do confronto. Eles podem estar
devolvendo uma vantagem ao estado e afastando-a da sociedade. As
teorias e estratégias de resistência não-violenta oferecem um plano de
como lidar com o estado.

230
SEÇÃO CINCO
Cripto, Lei e Justiça
CAPÍTULO ONZE
Lidando com o Crime sem o Estado
O desafio último para a cripto é o mesmo que confronta o próprio
anarquismo: e enquanto a lei e a ordem? Como pode o crime ser preve-
nido e corrigido?
Os seres humanos precisam de justiça tão certamente quanto eles
precisam de comida e abrigo. É um bem econômico que o livre mercado
pode e irá satisfazer para lucrar. A dinâmica de como as criptos podem
prevenir e corrigir o crime será amplamente tecnológica. Elas irão evo-
luir constantemente para atender às circunstâncias e preferências, a mai-
oria das quais são imprevisíveis. O propósito aqui é esboçar os princí-
pios e o contexto dentro do qual a justiça do livre mercado precisa fun-
cionar e argumentar a favor de sua superioridade sobre o sistema estatal.

Comparado ao que?

A perfeição não existe. Ao avaliar e comparar sistemas que su-


postamente abordam o mesmo problema, pelo menos duas perguntas
devem ser respondidas. Qual é o objetivo de cada sistema? E com que
eficácia conseguem atingi-lo?
Apesar da palavra “justiça” aparecer em ambos os termos, os ob-
jetivos da justiça do livre mercado e da justiça do estado são incompa-
tíveis. Uma empodera o indivíduo; a outra centraliza o poder nas mãos
da autoridade. A justiça de livre mercado é a plena realização do direito
de um indivíduo à autodefesa; a justiça estatal destrói o direito de auto-
defesa ao centralizá-lo nas mãos da autoridade. A situação é semelhante
à do domínio financeiro. As criptomoedas e as blockchains permitem
que os indivíduos se tornem self-bankers e controlem suas próprias fi-
nanças; moeda fiduciária e bancos centrais permitem que o estado mo-
nopolize as finanças e tire o controle das mãos dos indivíduos.
A metodologia e os objetivos dos dois sistemas são diametral-
mente opostos e, para compreendê-los, é útil compará-los especial-
mente no que diz respeito aos crimes cometidos por indivíduos uns con-
tra os outros.
No entanto, deve-se primeiro declarar uma vantagem fundamen-
tal da justiça de livre mercado. A justiça de livre mercado aborda apenas
o problema do crime – isto é, a violação de direitos – e atua apenas para

232
Lidando com o Crime sem o Estado

remediar as vítimas. O estado cria pseudocrimes – isto é, criminaliza o


comportamento que é pacífico, porém “ofensivo” – e age apenas para
proteger seu próprio poder. É difícil exagerar o impacto dessa diferença.

O governo é uma fábrica de leis. Aprova leis da mesma ma-


neira que uma fábrica produz e vende peças de metal […],
Mas, enquanto a fábrica está fornecendo um produto que é
útil para os cidadãos em geral, e que os cidadãos que as
comprarem o farão voluntariamente, a fábrica governamen-
tal fornece a coerção, que é útil principalmente para o pró-
prio governo, e essa coerção é “comprada” [através de im-
postos e outras ‘taxas’] antecipadamente pelo povo, que
nunca está em posição de recusar a “compra”.
– Robert LeFevre, The Nature of Man and It’s Government.

O sistema de justiça do estado fabrica rotineiramente dois tipos


de criminosos reais – pessoas que violam intencionalmente os direitos
dos outros. O maior grupo é formado por criminosos santificados que
saqueiam riquezas e impõem o controle social em nome do estado. São
políticos, burocratas, agentes da lei e outros agentes do estado ou seus
comparsas. Quando as pessoas aceitam sua alegação de legitimidade e
obedecem, eles governam com luvas de veludo. No entanto, quando as
pessoas se recusam, a verdadeira natureza do sistema se revela e a obe-
diência é comandada por meio da coerção crua: a violência.
O segundo grupo consiste em criminosos não santificados. São
indivíduos que escolhem a violência ou a ameaça dela como um cami-
nho rápido para o lucro, mas o fazem sem a pretensão de legitimidade.
Criminosos comuns existiriam em qualquer sistema, mas a justiça esta-
tal multiplica seu número oprimindo as pessoas de maneira a arrancar
delas sua humanidade e a fazê-las abandonar toda crença na lei – qual-
quer lei. As prisões atuam como campos de treinamento para o crime;
não apenas no sentido prático – o de como fazer –, mas também no
sentido psicológico: o de por que fazer.
O sistema também produz pseudocriminosos – isto é, pessoas
cujo comportamento é pacífico, porém “ofensivo”, isto é: inaceitável
para o estado. Traficantes e usuários de drogas são exemplos.
O estado se beneficia da fabricação de criminosos de pelo menos
quatro maneiras:

233
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

• A necessidade humana de segurança e justiça dá ao estado uma


justificativa para reivindicar o monopólio do uso da violência. O
estado então centraliza e industrializa os “serviços” que fornece:
a indústria legislativa, as burocracias regulatórias, a indústria po-
licial, o sistema judiciário, a indústria prisional, o estado de vigi-
lância e uma infinidade de outras indústrias associadas. O poder
do estado está cimentado em todos os nichos da vida cotidiana.
• Se as pessoas acreditam que o estado é a única fonte de segurança,
elas aceitam de bom grado a violência cometida por seus agentes.
O povo presta obediência em troca de proteção, crendo não haver
alternativa.
• O estado justifica impostos, multas e outras taxas em nome do
financiamento da lei e da ordem. A “segurança” e todos os seus
custos de fabricação, aplicação e manutenção são as gansas dos
ovos de ouro dessa organização.
• Dinâmicas menos diretas, como o trabalho prisional, são extre-
mamente lucrativas para o estado e para seus cúmplices corpora-
tivistas, que usam as prisões como centros fabris com mão de obra
extraordinariamente barata.

Uma abordagem totalmente diferente é necessária para preencher


a necessidade humana de segurança e justiça. Nada atende às necessi-
dades humanas de forma tão eficiente e imparcial quanto o livre mer-
cado. É necessário um retorno às raízes.
As apostas são altas. Reconsidere aquilo que atualmente dizem
ser justiça.

O estado destrói o que não pode controlar

Comparar a justiça do livre mercado e a justiça estatal requer uma


compreensão dos objetivos e da metodologia de cada uma. A justiça de
livre mercado procura proteger a pessoa e a propriedade dos indivíduos
e retificar qualquer violação com o mínimo de força possível. A justiça
estatal busca manter o controle do estado sobre a sociedade e punir
qualquer violação de suas regras com a força necessária para desenco-
rajar novas violações. O objetivo do estado faz dele uma fábrica de leis;
sua metodologia o torna uma fábrica de crimes.

234
Lidando com o Crime sem o Estado

A maioria das pessoas não consegue avaliar os obstáculos


fundamentais colocados no caminho da prevenção do crime
pela lógica perversa da propriedade pública, da aplicação
da lei pública e da prisão pública. Primeiro passo: comece
com ruas públicas, calçadas e parques onde todos os cida-
dãos devem ter permissão de uso, a menos que se provem
culpados de um crime. Etapa dois: apoie-se sobre uma bu-
rocracia pública inerentemente ineficiente para capturar,
processar e julgar os criminosos contra os quais existem
evidências suficientes de culpa. Terceiro passo: caso sejam
condenados, sujeite os criminosos a um ambiente perigoso,
improdutivo e, às vezes, incontrolável das prisões públicas
para impedi-los de cometer futuras conduta antissociais.
Etapa quatro: libere periodicamente a maioria dos prisionei-
ros de volta à sociedade e, depois, retorne à etapa um e re-
pita o ciclo indefinidamente. Cada passo segue o passo an-
terior, e cada passo inevitavelmente deixa um espaço con-
siderável para a conduta criminosa prosperar.
– Randy Barnett, The Structure of Liberty: Justice and the
Rule of Law.

Em suma, o estado cria criminosos não apenas por meio da legis-


lação, mas também através de seu método de punição. Ele reivindica
autoridade sobre o próprio cimento que as pessoas pisam, e depois as
criminaliza por qualquer passo em falso. Isso não ajuda vítimas reais.
Uma vez dentro do sistema de justiça, os criminosos têm pouca ou ne-
nhuma chance de remediar seus erros por meio da restituição. Para a
justiça estatal, a vítima geralmente é o próprio estado. Isso é especial-
mente verdadeiro para crimes sem vítimas – os chamados “crimes”, nos
quais todos os envolvidos, ironicamente, participam voluntariamente.
Os crimes sem vítimas são responsáveis pela maioria das prisões.
O monopólio estatal da força é essencial para manter todos os ou-
tros monopólios, inclusive sobre o fluxo financeiro. Qualquer pessoa ou
qualquer coisa que ameace esses monopólios é criminalizada, incluindo
as criptomoedas. O estado identifica com precisão as criptomoedas
como uma violação de seu monopólio e privilégios monetários. Isso
significa que contornar o estado e os bancos centrais é criminalizado
por estar associado à atividade do mercado negro e a outras condutas

235
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

pacíficas que privam o estado de receita. Esses pseudocrimes “justifi-


cam” a repressão estatal. Claro, as pessoas que usam dinheiro fazem o
mesmo, mas há uma diferença notável na forma como o estado lida com
crimes financeiros:
1. Os usuários-alvo são demonizados – profissionais do sexo, por
exemplo – mas o dinheiro em si não é acusado de ser criminoso,
talvez porque seja emitido por um agente do estado. Ou seja, a
grande maioria das pessoas que usam dinheiro não são vistas
como meliantes. Por outro lado, tanto os usuários quanto as crip-
tos são demonizadas. A cripto é o verdadeiro alvo, com categorias
de usuários que são vistas como desagradáveis sendo atacadas
com destaque; uma tentativa de minar a legitimidade das cripto-
moedas.
2. Toda a categoria de usuários de criptomoedas é criminalizada –
ou melhor, toda a categoria daqueles que usam criptomoedas não
regulamentadas. Esta é uma característica da justiça estatal. Ca-
tegorias de pessoas se tornam criminosas – traficantes de drogas
e profissionais do sexo, por exemplo – independentemente de al-
gum deles ter agredido outro indivíduo. Novamente, o dinheiro
está isento desse tratamento, com a grande maioria dos que usam
o dinheiro estatal não sendo acusados de crime.

O problema fundamental do estado com as criptomoedas, em opo-


sição ao dinheiro, é que as criptomoedas tornam possível confiar em
estranhos. Isso faz do próprio estado um estranho, porque ele é sempre
o último a ser confiável. Se os indivíduos não exigirem os serviços do
estado, não haverá razão legítima para ele existir. É por isso que o es-
tado está tão desesperado para convencer as pessoas de que elas preci-
sam dele para ter dinheiro, segurança, aposentadoria, assistência mé-
dica, educação e todos os outros bens do livre mercado e todos os outros
serviços que puderem requisitar. O atual sistema de justiça não trata da
proteção da sociedade ou dos indivíduos, mas da preservação do estado.
Infelizmente, uma segunda justificativa apoia a campanha do es-
tado contra as criptomoedas não regulamentadas: a alegação de que as
criptomoedas violam os direitos individuais. Especificamente, diz-se
que as criptomoedas estão envolvidas em violência contra indivíduos,
como o tráfico humano. O aspecto “infeliz” dessa justificativa é que
algumas acusações são verdadeiras. Este é o ataque mais perigoso do
estado às criptomoedas, porque dá a entender que pessoas decentes que

236
Lidando com o Crime sem o Estado

ficam e devem ficar horrorizadas com crimes como o tráfico humano


simpatizam com ele.
Um artigo do bitcoin.com de março de 2018 aborda outro crime
real: fraude. “Todos os dias são perdidos cerca de $9 milhões em golpes
de criptomoedas.”

No tempo que você leva para ler esta frase, $850 terão sido
perdidos em golpes de criptomoeda. No tempo necessário
para concluir este artigo, esse valor terá subido para
$17.000. Phishing; fraude; roubo; hacking; e os números
são sempre altos. Nos primeiros dois meses de 2018, ocor-
reram 22 golpes separados envolvendo roubos de $400.000
ou mais. Junte todos os números e isso equivale a uma mé-
dia de $9,1 milhões por dia. Ah, e isso não inclui os valores
discrepantes de 2018 – Coincheck, Bitconnect e Bitgrail.
Caso contrário, o total seria de $23 milhões por dia.

O estado usa crimes reais como cobertura para atingir seu verda-
deiro objetivo em relação à cripto: eliminar a concorrência que ameaça
um de seus monopólios vitais: o dinheiro. Parte da campanha do estado
é exagerar os crimes reais, e com isso apresentar seu serviço como o
único remédio possível.
As criptomoedas são acusadas de proteger quase todos os atos de
violência concebíveis. O artigo “10 das maiores mentiras contadas so-
bre o Bitcoin” trata da acusação de que as criptomoedas são o dinheiro
preferido do terrorismo.

Se você quer culpar uma moeda, tente o dólar americano,


que tem sido usado para financiar mais guerras, guerras por
procuração, bombardeios, sequestros e insurgências do que
qualquer outra moeda. A Europol não encontrou evidências
de que terroristas estivessem usando criptomoedas para fi-
nanciar suas atividades. Isso não quer dizer que já não tenha
acontecido ou que não vá acontecer. É revelador, no en-
tanto, que as únicas pessoas que ligam o bitcoin ao terro-
rismo são os governos, que buscam reprimir as moedas di-
gitais.

As criptos também são acusadas de facilitar grupos de ódio.

237
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Poderíamos lançar uma longa explicação sobre o porquê de


ser ridículo culpar uma moeda pelas ações de um pequeno
subconjunto de seus usuários, mas às vezes as respostas
mais simples são as melhores: “Você provavelmente já ou-
viu falar sobre carros – mas o que você certamente não ou-
viu é o quanto eles estão ajudando os ladrões de banco.”

Muitas vezes é difícil enxergar através da fumaça, discernir os


crimes frios e cruéis nos quais as criptomoedas estão envolvidas das
próprias criptomoedas. Mesmo assim, esses crimes devem ser comba-
tidos. E não apenas porque convidam ao envolvimento do Estado, mas
também porque as vítimas merecem reparação. No entanto, concordar
com o Estado neste ponto é o início de uma disputa mais profunda que
se resume a questões mais fundamentais.

O que é Justiça?

O libertarianismo é sobre direitos individuais, direitos de


propriedade, livre mercado, capitalismo, justiça ou o prin-
cípio de não agressão. Ainda assim, nenhuma dessas coisas
é suficiente para explicá-lo completamente. O capitalismo
e o livre mercado descrevem as condições catalácticas que
surgem ou são permitidas em uma sociedade libertária, mas
não abrangem outros aspectos do libertarianismo. E direitos
individuais, justiça e agressão resultam em direitos de pro-
priedade, pois, como Murray Rothbard explicou, direitos
individuais são direitos de propriedade. E a justiça é apenas
dar a alguém o que lhe é devido, e isso depende de quais
são seus direitos.
– Stephan Kinsella, “What Libertarianism Is.”

O que é justiça? A resposta é: a estrutura rudimentar de qualquer


sistema de direito. O filósofo político americano Michael Sandel res-
ponde: “A maneira mais simples de entender a justiça é dar às pessoas
o que elas merecem. Essa ideia remonta a Aristóteles. A verdadeira di-
ficuldade começa com descobrir quem merece o quê e o porquê”. [Ên-
fase adicionada] Isso é justiça privada. Ela precisa de mais definição.

238
Lidando com o Crime sem o Estado

A justiça privada é distinta da justiça divina, mas às vezes as duas


se confundem. A justiça divina supõe uma deidade ou algum outro po-
der supremo responsável e capaz de pesar o valor de cada pessoa em
uma balança, aplicando ao réu o destino que a deidade julgar como
justo. “Por que eu, ó Senhor, por que eu?” é o grito de quem acredita ter
sido traído pela justiça divina. A teoria por trás desse “grito de socorro”
é que há algo, além da não agressão contra sua propriedade, que uma
boa pessoa tem o direito de exigir do mundo: boa saúde, por exemplo.
Quando coisas ruins acontecem, a situação é chamada de “injusta”. Po-
rém, a palavra está sendo usada coloquialmente ou sendo mal utilizada.
Talvez uma palavra melhor seria “azar”.
A justiça privada não é baseada em uma divindade ou algum outro
poder transcendente. É, como sustenta Aristóteles, justiça que consiste
nas pessoas receberem o que merecem umas das outras. E, como Kin-
sella explica na primeira citação: “justiça é apenas dar a alguém o que
lhe é devido, e isso depende de quais são seus direitos”. Baseia-se na
natureza humana e na autopropriedade de cada indivíduo.
O conteúdo da justiça privada baseia-se em dois princípios. A pri-
meira é a não iniciação da força, que é uma reafirmação do dever de
uma pessoa de respeitar a autopropriedade dos outros; a justiça reside
em viver juntos em paz. O segundo princípio é o direito contratual, pelo
qual uma pessoa troca voluntariamente com outra. A justiça aqui reside
em cada pessoa recebendo o que foi acordado. Quando a justiça não
ocorre, é necessário um remédio. No entanto, nem uma quebra de con-
trato nem seu remédio precisam envolver violência. Uma violação nem
sequer precisa ser culpa de uma pessoa; poderia ser ocasionada por
qualquer outra coisa, como uma mudança inesperada das circunstân-
cias. Mesmo assim, a pessoa prejudicada pela violação ainda tem o di-
reito de ser remediada.
É aí que começa e termina o direito à justiça. Porém, há uma con-
fusão comum sobre justiça. Nominalmente, muitas vezes é chamado de
“injusto” quando uma parte trata a outra com desrespeito ou hostilidade.
Isso pressupõe que uma pessoa possa ter, numa situação dessas, o di-
reito à reivindicação de reparação pela atitude da outra pessoa. Mas,
esse direito não existe; há apenas o direito de viver sem ser agredido ou
ameaçado e ao cumprimento de um contrato. É improvável que um ven-
dedor que seja rude com um comprador tenha negócios repetidos, e isso
é um forte incentivo para que ele seja civilizado. Mas o único dever do
vendedor sob a justiça é ser não violento e ser honesto na troca; ser

239
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

agradável, embora favorável a ambas as partes, é totalmente opcional.


Como Rothbard escreve: “Não é função da lei tornar alguém bom, re-
verente, moral, educado ou gentil”.
Voltando à declaração inicial de Sandel, o quem da justiça é du-
plo: 1) quem é privado do que é seu por direito – autonomia corporal,
propriedade ou um benefício contratado, 2) e quem é responsável por
fornecer reparação à vítima. O como é abordado neste capítulo. O por-
quê é por conta do fato de cada pessoa ser um proprietário de si mesmo.
Poucas coisas são tão justas quanto o livre mercado, em que duas
pessoas trocam diretamente por valores acordados e depois vão embora,
cada uma satisfeita. Uma mulher que compra um tomate e vai para casa
com sua compra para fazer uma salada está aproveitando a justiça. O
vendedor de tomates que embolsa o dinheiro da mulher e passa para o
próximo cliente também está experenciando a justiça. Assim, o livre
mercado oferece às pessoas o que elas merecem por direito. Em outras
palavras: o livre mercado é a justiça aristotélica na prática.
Outra maneira de dizer isso é que a justiça privada é proprietária.
Em seu ensaio “A Teoria Proprietária da Justiça na Tradição Libertária”,
o cofundador do Movimento Voluntarista Moderno, Carl Watner, for-
nece um resumo justo da justiça privada: “A teoria proprietária da jus-
tiça está preocupada com apenas uma coisa: a determinação crucial de
títulos de propriedade justos versus títulos de propriedade injustos de
indivíduos em relação a seus próprios corpos e aos objetos materiais ao
seu redor.”
O teórico mais persuasivo da justiça proprietária pode muito bem
ser o jurista libertário Randy Barnett. Em seu livro The Structure of Li-
berty, Barnett argumenta que a lei deve ser administrada de forma pri-
vada, com quaisquer ineficiências deixadas sob a responsabilidade do
livre mercado. Parte da eficiência da justiça proprietária deriva de sua
pura simplicidade e do número mínimo de leis. Barnett escreve sobre o
sistema atual: “Cada dólar gasto para punir um usuário ou vendedor de
drogas é um dólar que não pode ser gasto cobrando restituição de um
ladrão. Cada hora gasta investigando um usuário ou vendedor de drogas
é uma hora que poderia ter sido usada para encontrar uma criança desa-
parecida. Todo julgamento realizado para processar um usuário ou ven-
dedor de drogas é tempo de tribunal que pode ser usado para processar
um estuprador”. Barnett argumenta que o direito privado é a solução
para a corrupção inevitável que surge dos interesses adquiridos e dos
monopólios.

240
Lidando com o Crime sem o Estado

Os Requisitos do Direito de Contratos Privados

O direito contratual exige apenas duas coisas para funcionar: a


presença de um acordo e um instrumento de execução. O contrato é a
presença do acordo; expressa o consentimento e os termos de aceitação.
Os contratos podem ser implícitos, verbais ou escritos, mas quanto mais
explícito for o acordo mais fácil será a administração da justiça.
O obstáculo sobre o qual a lei muitas vezes tropeça é o instru-
mento de execução. Como você aplica a lei em outra pessoa e executa
restituição? Surgem daí questões éticas e práticas. Uma questão ética
comum: e os direitos individuais daqueles forçados a fornecer restitui-
ção? Uma resposta comum: quem viola os direitos de outro renuncia
aos seus na proporção do dano infligido e até que esse dano seja reme-
diado. Uma questão prática comum: a restituição convida à participação
de uma terceira parte confiável. Na lei estatal, a terceira parte é com-
posta por agentes do estado, que costumam usar a violência. No direito
proprietário ou de livre mercado o terceiro consiste em agentes do livre
mercado, que são restringidos por dinâmicas como o uso da força pro-
porcional e a necessidade de preservar uma boa reputação. Mas qual-
quer modelo que dependa de uma terceira parte confiável é vulnerável
à corrupção, incompetência e outros riscos.
Satoshi removeu das trocas econômicas o problema das terceiras
partes confiáveis, e a blockchain também pode removê-lo de muitas
áreas da lei. Uma transferência peer-to-peer na blockchain atende a to-
dos os requisitos de um bom contrato. Ela incorpora um acordo volun-
tário; memoriza os termos da troca; sua validade é comprovada pela
transparência. A blockchain também pode cumprir um dos requisitos da
lei – ou seja, é um instrumento de execução por si só. Quando isso acon-
tece, é chamado de contrato inteligente – um contrato autoexecutável.
Um relatório recente do Senado dos EUA afirma: “O conceito [de con-
tratos inteligentes] está enraizado no direito básico dos contratos. Nor-
malmente, o sistema judicial julga disputas contratuais e impõe termos.
Com os contratos inteligentes, um programa impõe o contrato embutido
no próprio código.” Os contratos inteligentes oferecem a mesma opor-
tunidade de evitar terceiras partes confiáveis de advogados e tribunais
do estado, assim como as criptomoedas evitam os bancos centrais.
Além disso, ao atuar como o acordo e o instrumento de execução, a

241
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

criptomoeda pode eliminar grande parte das despesas dos serviços de


justiça.
Os contratos inteligentes de hoje são, sem dúvida, primitivos em
comparação aos que virão, mas também são uma prova de que a ideia
funciona.
O impacto na sociedade causado pela tecnologia dos contratos au-
toexecutáveis pode ser enorme. Em uma sociedade organizada em torno
da troca, os contratos seriam a base de toda lei. Até o uso da violência,
que viola os direitos individuais, pode ser visto como uma violação do
dever – o contrato implícito – de que todos devem respeitar os direitos
dos outros se quiserem reivindicar esses direitos para si. Mais uma vez,
aqueles que cometem crimes perdem seus próprios direitos na mesma
medida em que os negaram a outrem e enquanto o erro não for sanado,
isto é: enquanto a vítima não for remediada. Em seguida, o contrato é
restabelecido. Toda lei pode ser reduzida ao contrato.
Um artigo no Futurism, “Um escritório de advocacia de IA quer
automatizar todo o mundo jurídico”, indica o quão fácil pode ser a tran-
sição de contratos físicos e advogados para contratos inteligentes e al-
goritmos. “No LawGeex [um serviço automatizado], os usuários carre-
gam um contrato e, em um curto período (uma hora, em média), rece-
bem um relatório informando quais cláusulas não atendem aos padrões
legais comuns. O relatório também detalha quaisquer cláusulas vitais
que possam estar faltando e onde cláusulas existentes podem exigir re-
visão. Tudo isso é calculado por algoritmos.” Por uma taxa modesta, a
LawGeex pode detectar cláusulas que permitem fraudes ou fornecem
proteção inadequada.
Esses serviços destacam um aspecto raramente discutido da jus-
tiça: o fato de que ela é um serviço. Basicamente, há dois aspectos da
justiça proprietária: Os proprietários devem pagar o custo de proteger
sua propriedade, se assim o desejarem e os criminosos devem pagar to-
dos os custos da restituição, que incluem a própria restituição, as des-
pesas para obter a remediação e a inconveniência ou sofrimento da ví-
tima.

“A análise econômica do crime começa com uma simples


suposição: os criminosos são racionais. Um assaltante é um
assaltante […] porque essa profissão o torna melhor, se-
gundo seus próprios padrões, do que qualquer outra alter-

242
Lidando com o Crime sem o Estado

nativa disponível para ele […] Se os assaltantes são racio-


nais, não temos que tornar o assalto impossível para evitá-
lo, apenas inútil … Se velhinhas começarem a carregar pis-
tolas em suas bolsas, de modo que um assalto em dez coloca
o assaltante no hospital ou no necrotério, o número de as-
saltantes diminuirá drasticamente – não porque todos te-
nham sido baleados, mas porque a maioria terá mudado
para formas mais seguras de ganhar a vida. Se o assalto se
tornar suficientemente não lucrativo, ninguém o fará”.
– David Friedman, Rational Criminals and Profit-Maxim-
izing Police.

Qualquer um que valorize sua propriedade deve tornar os crimes


contra ela não lucrativos e difíceis. Essa abordagem por si só poderia
reduzir em muito os crimes. No entanto, as pessoas geralmente lidam
com sua segurança pessoal de uma dessas quatro formas:
• Elas se auto protegem, assumindo diretamente a responsabilidade
por sua própria segurança e pela de sua propriedade. Isso envolve
custos como fechaduras, prática de autodefesa e, portanto, um
certo investimento de tempo.
• As pessoas ignoram sua própria segurança, confiando na sorte ou
na boa vontade dos outros. O custo é o dano potencial à sua pro-
priedade e à sua pessoa.
• As pessoas confiam na proteção do estado. O custo é a sua liber-
dade e a chance de segurança real.
• As pessoas veem a segurança como um serviço privado ao qual
assinam – contratar um vigia noturno, por exemplo. O custo é o
custo do serviço.

Se segurança é um bem econômico, como comida ou abrigo, en-


tão o consumidor do bem deve arcar com o preço de adquiri-lo, e o
custo nem sempre é monetário. O preço a se pagar pode muito bem ser
o tempo e a energia necessários para configurar proteções. (Veja a dis-
cussão sobre proteção no capítulo anterior).
Um vislumbre de como a proteção do livre mercado pode funci-
onar para as comunidades são as redes de confiança (networks), que não
contam com a proteção da polícia, e que ainda assim precisam cuidar e

243
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

cuidam de si mesmas. Considere as profissionais do sexo. A proprie-


dade a ser protegida, nesse caso, é o próprio corpo da profissional do
sexo.
Em seu artigo “Cem anos de anarquia criptográfica”, a engenheira
Blockchain Elaine Ou comenta: “A encriptação de chave pública não
serve apenas para encriptar mensagens privadas. Ela também fornece
provas de que o remetente é quem diz ser. Quando compradores e ven-
dedores realizam transações, eles assinam mensagens com suas chaves
privadas. As assinaturas se tornam identificadores digitais.” Se isso pa-
rece muito distante da prevenção à violência, converse com profissio-
nais do sexo, cuja principal forma de defesa é verificar as identidades e
reputações dos clientes, que elas compartilham umas com as outras por
meio de redes de confiança (networks). Uma das responsabilidades me-
nosprezadas de um cafetão – muitos dos quais não são abusivos – é
garantir a segurança das profissionais do sexo, seja examinando clien-
tes, manuseando dinheiro, fornecendo transporte ou lugares seguros e
esperando. Os cafetões são terceiras partes confiáveis, mas como quais-
quer terceiros, podem trazer mais problemas do que soluções. A cripto-
grafia muda essa dinâmica para que algumas tarefas de um cafetão se-
jam substituídas por um filtro peer-to-peer com transparência. Assim, a
profissional do sexo está no controle, e isso se traduz em menos risco
de violência e mais dinheiro, o que promove a segurança.
O segundo aspecto da justiça proprietária é a necessidade de obri-
gar os criminosos a pagarem o preço de remediação de suas vítimas.
Mas como isso poderia se dar?
Um mecanismo de restituição comumente proposto tem sido a
agência de defesa privada (PDA). O PDA é um negócio de livre mer-
cado cujos lucros e a reputação dependem da precisão e justiça de suas
práticas na remediação do crime. Uma vítima de crime escolhe livre-
mente sua terceira parte confiável, cuja confiança é testada pela pre-
sença constante de concorrentes. A relação comercial dura apenas en-
quanto o cliente valoriza o serviço.
O objetivo do PDA é recuperar das mãos do criminoso os bens
roubados ou danificados, ou no mínimo o valor deles; novamente, a
propriedade danificada pode ser o corpo da vítima. Mas o PDA também
atua como proteção para a vítima e para o próprio agressor durante o
processo de remediação. A vítima é protegida de qualquer dano ou pe-
rigo que possa estar envolvido; o agressor lida com um profissional que
deseja apenas garantir a remediação, e não a dar vazão à raiva da vítima,

244
Lidando com o Crime sem o Estado

de quaisquer outros ou de sua própria. De fato, o PDA tem um forte


incentivo comercial para evitar as despesas e complicações de ferir al-
guém.
Friedman oferece uma visão de um PDA em seu livro Machinery
of Freedom. De início, o autor considera “o caso mais fácil” de um con-
flito, que é “a resolução de disputas envolvendo contratos entre firmas
bem estabelecidas […]. Um desenvolvimento recente; historicamente,
a aplicação veio do desejo de uma empresa de manter sua reputação”.
Mas e as disputas envolvendo violência, incluindo roubo? “A pro-
teção contra a coerção é um serviço”, explica Friedman. “Atualmente,
é vendido em uma variedade de formas, como guardas da Brinks, fe-
chaduras, alarmes contra roubo etc. À medida que a eficácia da polícia
estatal diminui, esses substitutos de mercado para a polícia, como os
substitutos de mercado para os tribunais (os contratos inteligentes), tor-
nam-se mais populares. Suponha então que em algum momento futuro
não haja polícia estatal, mas sim agências de proteção privada. Essas
agências vendem o serviço de proteção a seus clientes. Talvez eles tam-
bém garantam desempenho ao segurar seus clientes contra perdas resul-
tantes de atos criminosos”. O seguro que foi adquirido de um PDA
torna-se a solução imediata oferecida à vítima, talvez da mesma ma-
neira que o seguro de carro paga por danos após um acidente; o PDA
pode então buscar a solução do criminoso com o bônus de adquirir seu
lucro. Ou a vítima pode contratar o PDA após o crime ter sido cometido,
e então o PDA investigaria e recuperaria tanto a propriedade quanto o
custo de seus serviços diretamente do agressor.
Friedman conclui: “O que descrevi é um arranjo muito improvi-
sado. Na prática, uma vez que as instituições anarcocapitalistas estive-
rem bem estabelecidas, as agências de proteção antecipariam tais difi-
culdades e providenciariam contratos com antecedência, antes mesmo
que os conflitos específicos ocorressem […]” Mas, novamente, não é
possível prever futuros mecanismos de restituição.
Na verdade, a resposta mais precisa para uma pergunta feita ante-
riormente – como seria a justiça proprietária? – é uma que muitas pes-
soas acharão insatisfatória. Ninguém sabe, assim como ninguém sabia
como o Bitcoin se formaria e como se manifestaria.

A razão pela qual a aparência futura


da justiça proprietária é imprevisível

245
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Na obra Human Action, de Ludwig von Mises, onde o autor de-


fende o conceito de “consumidor soberano”, que expressa como consu-
midores e produtores se relacionam em uma economia de mercado. Os
produtores são o motor da prosperidade, afirma Mises, mas não são eles
que determinam a direção que uma economia toma. Esse poder pertence
aos consumidores. Mais especificamente à preferência dos consumido-
res. Essas preferências diversas levam a uma explosão de escolhas eco-
nômicas – uma dinâmica que seria verdadeira para os serviços de segu-
rança e justiça.
A soberania do consumidor vai contra a crença dominante de que
são os capitalistas e os grandes empresários que determinam o curso de
uma economia, assim como a vida das pessoas, que participam dela. É
aquela velha ideia tradicional: a de que o controle econômico está nas
mãos de quem tem a propriedade dos meios de produção, enquanto as
pessoas comuns são forçadas a aceitar as migalhas.
Para Mises, a relação é simbiótica, sendo o consumidor um par-
ceiro igual ou maior. Ele descreve a soberania do consumidor:

A direção de todos os assuntos econômicos é, na sociedade


de mercado, uma tarefa dos empresários; deles é o controle
da produção. Eles estão no leme e dirigem o navio. Um ob-
servador superficial acreditaria que eles são supremos. Mas
eles não são. Os empresários, ao contrário do que se pode
pensar, são obrigados a obedecer incondicionalmente às or-
dens do capitão, e o capitão é o consumidor. Nem os em-
presários, nem os agricultores, nem os capitalistas determi-
nam o que deve ser produzido. Apenas os consumidores
têm o poder de fazer isso. Se um empresário não obedecer
estritamente às ordens do público que lhe são transmitidas
pela estrutura de preços de mercado, ele sofre perdas, vai à
falência e, assim, é afastado de sua posição no leme. Outros
que se saírem melhor em satisfazer a demanda dos consu-
midores o substituirão.

Uma consequência da soberania do consumidor é que ninguém


pode prever as preferências expressas no mercado, incluindo os pró-
prios consumidores. Ninguém pode prever as instituições, agências ou
dinâmicas que surgirão para lucrar com essas preferências. Sem dúvida,

246
Lidando com o Crime sem o Estado

a tecnologia e outras inovações evoluirão para oferecer novas alternati-


vas; a mudança será vertiginosa. Mises observa:

“Eles [os consumidores] não são chefes fáceis. Estão sem-


pre cheios de caprichos e fantasias, mutáveis e imprevisí-
veis. E não se importam nem um pouco com o mérito pas-
sado. Assim que lhes é oferecido algo que eles gostam mais
ou é mais barato, os consumidores abandonam seus antigos
fornecedores.”

O livre mercado muda constantemente em resposta à forma como


os consumidores votam com seu dinheiro. É fluido, constante e está
além da capacidade de previsão de qualquer pessoa. A soberania do
consumidor é uma das principais razões pelas quais não é possível ofe-
recer um plano fixo de como a justiça proprietária funcionará no futuro.
Só é possível descrever os conceitos que cercam a justiça, mas não suas
aplicações específicas.

Rumo a uma nova visão de justiça

As criptomoedas mudaram a visão do mundo sobre o dinheiro –


do que era e do que poderia ser… Ou será. A justiça proprietária tam-
bém revoluciona o conceito e a aplicação da lei. Em ambos os casos, os
princípios e definições permanecem inalterados. O dinheiro é um meio
de troca, uma forma de riqueza e uma unidade financeira. Justiça é cada
um receber o que merece; a lei é o meio e as regras de execução da
justiça. Mas a forma que a justiça proprietária assume, como as cripto-
moedas, é algo novo sob o sol.
Tradicionalmente, o estado justifica seu monopólio sobre o di-
nheiro e a justiça apontando para uma suposta necessidade de “con-
senso”. O estado justifica seu monopólio monetário pela chamada ne-
cessidade de que uma moeda seja “confiável” e amplamente aceita em
um determinado território. Lockeanos justificam o próprio estado pela
suposta necessidade da sociedade civil de um árbitro final de justiça
cujo julgamento seja “confiável” e geralmente aceito dentro de um de-
terminado território. (O consenso que é compelido pela força, é claro,
não é consenso; indica o contrário.)

247
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

O consenso é o raciocínio do século passado. É inválido para a


moeda; é inválido para a justiça. As criptomoedas provaram que o con-
sentimento individual, junto com um instrumento de aplicação – a blo-
ckchain –, cria uma moeda válida. Não importa se os usuários indivi-
duais constituem uma pequena parcela da população. Como na América
colonial, uma infinidade de moedas pode circular para preencher uma
variedade de nichos e preferências. E o mesmo acontece com a justiça.
As pessoas que estabelecem contratos entre si podem ter uma vi-
são de justiça diferente da de seus vizinhos ou do público em geral. A
primazia dos contratos e o uso da blockchain significam que, desde que
a violência seja evitada, não há uma justiça universal. O que for acor-
dado é justo. Quem acredita que cobrar juros é errado, por exemplo,
fará empréstimos que não incluem nenhum. Para os capitalistas, o
oposto será verdadeiro. Ambos os arranjos são justos, com o conteúdo
da justiça sendo definido pelos seus participantes.
O ponto mais importante: os indivíduos contratantes definirão seu
próprio padrão de justiça, que pode e irá variar de contrato para contrato
dentro da mesma jurisdição. Isso separa a justiça da geografia – dos
ditames de uma autoridade que reivindica jurisdição sobre um determi-
nado território – e localiza o conteúdo da justiça dentro dos próprios
indivíduos. A justiça é descentralizada até o nível máximo: o do indiví-
duo.
O estado recorre ao argumento do consenso porque sua jurisdição
está inerentemente ligada à geografia. Uma nação é definida geografi-
camente e um estado é a instituição que reivindica jurisdição sobre uma
nação específica, a qual ele tenta manter sob controle através do mono-
pólio do uso legítimo da força. Na realidade, o consenso que o estado
alega ter advém de sua própria autoridade, que todos dentro da jurisdi-
ção são compelidos, sob ameaça, a honrar. A população deve aceitar a
moeda legal, obedecer à lei e obedecer às vontades e aos decretos de
seus juízes; ninguém está autorizado a discordar. Ninguém.
Mas o que acontece quando a geografia se torna irrelevante para
a lei e a justiça como a transferência de dinheiro é agora? Nesse caso, o
estado ainda seria capaz de exercer sua “autoridade”?
As criptomoedas respondem esta pergunta: Cruzando o globo
como o vento e não assumindo qualquer nacionalidade, as criptomoedas
sobrevoam pontos físicos de engarrafamento, chamados bancos, assim
como linhas imaginárias, chamadas fronteiras. A cripto ignora a geo-
grafia, assim como ignora o problema das terceiras partes confiáveis. O

248
Lidando com o Crime sem o Estado

estado perde o monopólio do dinheiro e do sistema financeiro, que é sua


força vital. Quando a geografia se torna irrelevante, o estado também
se torna, pois o estado é uma reivindicação territorial, e as criptomoedas
tratam essa questão de maneira peculiar: elas não dão a mínima.
Esta é a Justiça sem fronteiras geográficas. Esta é a justiça das
criptos. A justiça que não passa pelo engarrafamento da lei estatal, que
impõe aceitação às normas do estado. Essa é a justiça descentralizada,
a que expressa apenas as preferências dos indivíduos envolvidos. Essa
noção de justiça visa libertar os indivíduos da “justiça” estatal da
mesma maneira que as criptomoedas os libertaram do dinheiro fiduciá-
rio monopolizado pelo estado.
Infelizmente, a necessidade percebida de consenso faz com que
as pessoas acreditem que a justiça de livre mercado é "anárquica" no
pior sentido da palavra. Elas não entendem os princípios, o propósito e
conteúdo da justiça proprietária. Seu princípio central é o direito de
cada indivíduo de viver em paz. Seu propósito é facilitar as trocas vo-
luntárias entre os indivíduos para que cada um receba o que merece;
quando não o fazem, então o propósito se torna a restituição. Exceto
pela proibição da violência, o conteúdo da justiça seria tão variado
quanto as próprias criptomoedas, porque os indivíduos decidiriam o que
é exatamente da mesma maneira que decidem o preço adequado de um
bem – por meio de um acordo.
Declarado de outra forma: A blockchain atua como o contrato, a
lei e o mecanismo de aplicação em um único pacote. Ela incorpora os
termos com os quais as partes concordaram, aplica esses termos sem o
envolvimento de terceiros e garante que sua aplicação ocorra sem con-
siderar jurisdições geográficas. Assim como a cripto evita o monopólio
monetário, a justiça blockchain pode contornar os monopólios de apli-
cação da lei e justiça do estado.
A confusão das pessoas sobre a lei e a justiça de livre mercado é
compreensível porque os conceitos vão contra tudo o que os foi ensi-
nado. O que aprenderam é incorreto; não apenas a teoria, mas também
a história.
Em seu artigo, “Por que as Elites Preferem um Sistema Legal
Centralizado”, o historiador Chris Calton explica como a visão conven-
cional de justiça centralizada foi incorporada. “A motivação para cen-
tralizar a autoridade legal foi inteiramente política.” Uma função vital
da sociedade civil foi usurpada e homogeneizada em nome da consis-
tência e do consenso. Isto nem sempre foi desse jeito. Calton continua:

249
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

“Mas no início do século XIX, a consistência era menos va-


lorizada do que a flexibilidade no sistema jurídico. Quando
os tribunais eram locais, as pessoas de uma determinada co-
munidade tinham interesse em que a justiça fosse feita de
acordo com as particularidades de cada caso individual.
[…] E para aqueles que não tiveram a sorte de se encontrar
no topo da hierarquia jurídica – os sem instrução, os pobres,
as mulheres, as crianças e os negros – essa flexibilidade sus-
tentava até mesmo as noções modernas de justiça – ainda
que imperfeitamente – com mais eficácia do que os tribu-
nais centralizados e legalmente consistentes que se segui-
ram.”

A lei foi descentralizada para o nível local, a fim de atender às


necessidades da população local. E se a lei centralizada nem sempre
existiu, então ela não é inevitável nem necessária. O passo final, é claro,
é descentralizar a justiça para o indivíduo.
Na verdade, instâncias de lei descentralizada funcionam ao nosso
redor agora e oferecem modelos práticos para a construção de novos
sistemas. Uma delas é chamada Creative Commons Law (CCL). A CCL
é um empreendimento de código aberto para construir um sistema jurí-
dico prático para sociedades sem estado. Ela enfatiza a aplicação con-
creta e de forma alguma bloqueia outros sistemas concorrentes. A mai-
oria das pessoas encontrou uma manifestação do CCL: as licenças Cre-
ative Commons para publicação de material têm sido tradicionalmente
vistas como o limite da propriedade intelectual, dos direitos autorais e
patentes.
Muitos autores e inventores descartam a legitimidade da PI e ofe-
recem seu trabalho sem as restrições normais de direitos autorais na re-
publicação; outras licenças Creative Commons especificam termos
como creditar a fonte original na reimpressão. O autor ou inventor es-
colhe a licença que prefere; sua escolha de forma alguma infringe as
pessoas que escolhem diferentes termos de publicação, como os que
buscam preservar um quase monopólio de seu trabalho. Ideias e desen-
volvimento de código aberto têm sido a base da comunidade de cripto.
A CCL é uma prova da lei de livre mercado.
Em resumo, a justiça da blockchain é uma justiça proprietária,
que está livre das jurisdições geográficas conhecidas como nações. Ela

250
Lidando com o Crime sem o Estado

é limitada, em vez disso, por algoritmos e escolhas. Não requer con-


senso ou o envolvimento da terceira parte confiável chamado estado. O
código é a lei, e o conteúdo do código é o que os envolvidos concordam.
Os indivíduos definem e executam sua própria lei sem uma legislatura
ou um processo político. E, se a justiça consiste em cada pessoa receber
o que merece – isto é, receber a troca acordada – então cada indivíduo
também define a justiça para si mesmo. A única restrição é a de que os
acordos devem ser voluntários; ou seja, de que eles devem ser o que
são: acordos.

“O anarquismo e a liberdade não dizem nada sobre como as


pessoas livres se comportarão ou sobre quais arranjos esco-
lherão. Simplesmente diz que as pessoas têm a capacidade
de escolher os arranjos que farão e quais os que não farão.
O anarquismo não é normativo, ele não diz como se deve
ser livre, mas apenas que a liberdade pode existir.”
– Karl Hess, “Anarchism Without Hyphens”.

Sem a necessidade de consenso, várias versões da lei e da justiça


podem e irão coexistir pacificamente dentro de um território. Elas po-
dem funcionar diretamente ao lado um do outro ou dentro da mesma
casa, e podem variar de contrato para contrato para a mesma pessoa,
dependendo de seu propósito e de suas circunstâncias. Se alguém pre-
fere a lei comum ocidental enquanto um vizinho judeu prefere a lei has-
sídica, que assim seja; ninguém está vinculado aos valores do outro,
porque a execução de termos de uma pessoa de forma alguma impede
a capacidade do outro de executar um conjunto diferente de termos. Os
comunistas podem rejeitar uma cláusula politicamente censurável,
como pagar aluguel, enquanto os capitalistas podem exigir que os con-
tratos a incluam.
O código é a lei. A execução do código é justiça. Os indivíduos
estão no controle.

Considere a dinâmica de um crime específico: A Fraude

O crime ainda existiria sob a justiça blockchain, pois sempre exis-


tirá em todas as sociedades, mas seria reduzido ao mínimo.

251
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Um dos crimes privados contra os quais os usuários de criptomo-


edas exigem mais proteção é a fraude, que é uma forma de roubo. Cer-
tamente não é o único crime, mas examinar a fraude pode fornecer in-
formações sobre como os outros podem ser tratados.
Roubo é a usurpação de propriedade sem o consentimento do pro-
prietário; ou seja, nenhuma transferência de título acompanha a trans-
ferência real de um bem. Onde quer que a propriedade termine, o título
permanece com o proprietário. Se a propriedade foi tomada por meio
de violência direta, como num roubo, então ocorreu um assalto. Se foi
obtida por meio de engano, o roubo é chamado de fraude. A fraude pode
consistir em uma falsa troca de valor; uma pessoa vende um Rolex que
é, na verdade, uma imitação barata, por exemplo. Ou a troca pode ocor-
rer em termos falsos; o Rolex genuíno acaba por ser uma propriedade
roubada, sobre a qual o vendedor não tem nenhum título e nenhum di-
reito de propriedade. O vendedor mente; o comprador acredita; o con-
trato de venda – explícito ou implícito – é inválido, pois a troca acor-
dada não ocorreu. Não houve troca, apenas fraude.
Antes de discutir a fraude cripto, no entanto, é importante perce-
ber que o crime pode não ser tão comum quanto muitos supõem.
A Australian Competition & Consumer Commission divulgou um
relatório sobre o nível e os tipos de golpes que aconteceram em 2017.
Fraudes relacionadas às criptomoedas constituíram 0,6% do total. Ou,
como uma manchete da Panda Security afirmou recentemente:
“A fraude com criptomoedas é a exceção, não a regra.”
Para cada golpe, existem milhões de oportunidades que são cria-
das pela criptografia e pela blockchain para aumentar a riqueza e faci-
litar a cooperação entre os usuários. No entanto, cada caso de fraude
chama mais atenção do que merece, porque as acusações são usadas
para exigir regulamentação. Para exigir o envolvimento do estado.
Prestar atenção à fraude é necessário, é claro, mas o problema re-
quer mais do que atenção. Requer uma diligência por parte dos usuários,
que não pode ser legislada. Veja o golpe “mybtgwallet.com”, em 2017:
O mybtgwallet.com ofereceu aos usuários carteiras Bitcoin Gold online
gratuitas, através das quais eles poderiam verificar seus saldos e realizar
transações gratuitas por um tempo limitado. A carteira era uma fraude,
mas ganhou credibilidade ao aparecer brevemente no site oficial do
Bitcoin Gold – um ato de extremo descuido, na melhor das hipóteses,
por parte deste site. Para aceitar a oferta do mybtgwallet.com, os usuá-
rios precisavam enviar suas chaves privadas ou chaves de recuperação.

252
Lidando com o Crime sem o Estado

Um link fraudulento era um aspecto oculto do processo. Depois que


usuários desavisados aceitaram a oferta da mybtgwallet, a criptomoeda
em suas carteiras foi encaminhada para outros endereços: os endereços
dos criminosos. De acordo com a Coindesk, “num elaborado esquema,
mais de $3,3 milhões foram roubados de usuários de bitcoin, que bus-
cavam reivindicar sua parte da criptomoeda recém-criada: a Bitcoin
Gold. Pelo menos $30.000 em Ethereum, $72.000 em Litecoin,
$107.000 em Bitcoin Gold e mais de $3 milhões em Bitcoin foram fur-
tados.”
Ninguém deveria ter caído nesse golpe porque ninguém deveria
ter entregue suas chaves privadas, mas mesmo os veteranos das cripto-
moedas o fizeram. O fato de terem feito isso não significa que “eles
mereciam”; esta não é a mensagem aqui. Uma pessoa com dinheiro
transbordando de seus bolsos pode decidir dormir em um beco atrás do
bar. Sua escolha é tola e perigosa, mas não o torna legalmente respon-
sável se o dinheiro for roubado. Ela seria, ainda assim, vítima de um
crime. Infelizmente, aqueles que entregam chaves privadas a estranhos
fazem o equivalente a dormir em um beco com bolsos salientes. Essas
pessoas seriam aconselhadas a desenvolver hábitos de advertência.
Parte da propriedade em um mundo predatório é descentralizar a auto-
defesa, incluindo a defesa da propriedade.
Quais são algumas das lições a se aprender com o desastre do
mybtgwallet.com para evitar fraudes? As especificidades incluem:
• Sempre assuma que um site estranho pode estar tentando roubar
suas criptomoedas, sua identidade, seus dados ou todos esses
itens. Estenda a confiança real somente após tomar as devidas
precauções.
• Não lide com sites que exijam algo além das informações pesso-
ais mais básicas. Prefira aqueles que incentivam o pseudonimato.
• Amigo ou não, nunca confie a ninguém seus dados privados ou
suas chaves de recuperação. Isso equivale a divulgar a combina-
ção de um cofre ou entregar um maço de dinheiro para alguém
segurar enquanto você faz uma ligação. Dados e chaves de recu-
peração são a prova e o controle de propriedade. Eles constituem
o título de propriedade da cripto.
• Nunca guarde seus dados ou chaves em qualquer lugar que seja
vulnerável a ser copiado por outra pessoa.

253
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

• Sempre mantenha uma versão em papel de ambos em um local


seguro como backup.
• Em essência, mantenha a privacidade. Os ladrões precisam de
acesso para saquear. Não deixe suas portas abertas.

Essas são as especificidades. Mas esse é o ponto mais geral e fun-


damental: sempre tome as devidas precauções e sempre proteja a sua
propriedade. Essas são as responsabilidades que advém da propriedade
para o proprietário; as responsabilidades dos dados e dos usuários. Lem-
bre-se: quando a criptomoeda sai de uma carteira, ela desaparece para
sempre. Pelo menos essa deveria ser a sua suposição. A transação não
pode ser revertida e poucas corretoras ou outros ramos da cripto ofere-
cem seguro contra roubo. Até mesmo vítimas determinadas com casos
documentados raramente recebem de volta mais do que alguns centavos
de dólar, como as vítimas da Mt. Gox fizeram após anos e anos de exa-
ustivo esforço.
Felizmente, a situação está mudando devido à necessidade de pro-
teção do mercado. Um artigo de junho de 2019 no Zero Hedge comen-
tou: “Os preços das criptomoedas foram atingidos da noite para o dia
depois que a Binance, a maior corretora de criptomoedas do mundo,
sediada em Hong Kong, revelou que hackers haviam fugido com 7.000
bitcoins – no valor de aproximadamente $41 milhões a preços atuais –
roubados da ‘hot wallet’ da corretora. No entanto, os preços rapida-
mente reduziram algumas de suas perdas depois que a corretora anun-
ciou que os clientes não seriam responsáveis pelas perdas: em vez disso,
os depositantes seriam remediados com ativos da ‘Secure Asset Fund
for Users’ da Binance.” E assim, a SAFU foi criada em 3 de julho de
2018, como uma resposta do mercado ao desejo de segurança dos usu-
ários. A Binance aloca 10% do valor das taxas de trading realizadas em
seu site e as transfere para um fundo de armazenamento em uma carteira
fria para proteger os clientes em “casos extremos”.
Mecanismos de mercado e educação financeira minimizam os da-
nos e eventos de fraude, possibilitando que pessoas desafortunadas ou
descuidadas sejam protegidas. No entanto, é difícil proteger aqueles que
correm para as criptomoedas por conta de FOMO (Fear Of Missing Out,
medo de estar perdendo algo), assim como é difícil proteger aqueles que
entregam suas economias nas mãos de estranhos contra o roubo. O
crime sempre ocorrerá; o objetivo é reduzi-lo ao mínimo.

254
Lidando com o Crime sem o Estado

Quando a fraude ocorre, as pessoas clamam por regulamentação


do governo. Mas há uma ironia sutil e amarga nessa dinâmica. Uma das
razões pela qual as pessoas podem ser propensas à fraude é porque elas
abordam a riqueza e os investimentos com uma mentalidade estatista.
Ou seja: elas estão acostumadas às garantias de segurança do estado.
Essas garantias são ilusões, mas isso não importa; o que importa para
influenciar o comportamento das pessoas é que elas acreditem nas ga-
rantias. Nos EUA, por exemplo, a Federal Deposit Insurance Corpora-
tion garante o dinheiro que uma pessoa deposita em um banco até o
valor de $250.000. A aplicação da lei opera divisões de fraude que re-
gistram relatórios do crime. Em suma, o estado faz com que as pessoas
se sintam mais seguras do que deveriam, e isso as faz negligenciar as
devidas precauções. O estado induz as pessoas a renunciar seu senso de
responsabilidade.
A terceira parte confiável mais fraudulenta do mundo – o estado
– não é um remédio. Suas falsas garantias vêm ao custo de sacrificar a
privacidade e a liberdade individual, que são as maiores precauções de
todas as riquezas. E, no fim, a riqueza ainda é saqueada.

Uma Revolução Prática e Descentralizada

A Revolução Satoshi está aqui e agora. É uma revolução prática,


que é descentralizada ao nível individual.
Primeiro, a parte prática: a perfeição não é possível quando admi-
nistrada por seres imperfeitos. Os criptoanarquistas que criaram o
Bitcoin não eram apenas idealistas, mas também realistas; eles sabiam
que o mundo e as criptomoedas nunca estariam perfeitamente a salvo
da violência. O estado se intrometeria e as carteiras seriam hackeadas.
Eles também sabiam que trabalhar em direção a um ideal é a única ma-
neira de chegar o mais próximo possível dele. A situação é semelhante
à ingestão diária de vitaminas: embora a saúde perfeita possa não ser
alcançada, vitaminas e exercícios levarão alguém o mais próximo pos-
sível disso. E aproximar-se de ideais como a justiça é uma jornada que
vale a pena, mesmo que o destino nunca seja alcançado.
O idealismo prático tem pelo menos dois benefícios utilitários. A
rede de princípios para uma sociedade ideal é um mapa intelectual para
avaliar se um ato específico se aproxima ou se afasta da liberdade. Se a
liberdade de expressão é um dos princípios, por exemplo, suprimir um
livro ofensivo afasta-se da liberdade e não deve ocorrer. Um ideal é

255
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

como o verdadeiro Norte em uma bússola. Ele diz: “Sim, esta é a dire-
ção correta”. A única coisa mais poderosa do que uma ideia cuja hora
chegou é um ideal cuja hora chegou.
A descentralização: A Revolução Satoshi é uma revolução das ex-
pectativas crescentes; ela é impulsionada pelo desejo de liberdade, pri-
vacidade financeira e esperança para o futuro. A revolução está ocor-
rendo em uma base individual, porque não é mais necessário que as
pessoas se levantem em massa, concordem com estratégias revolucio-
nárias ou coordenem eventos por meio de comitês de terceiras partes
confiáveis. Cada usuário se rebela sem drama ou ideologia enquanto
persegue o interesse próprio, que é a motivação humana mais forte de
todas. O interesse próprio em todas as suas formas deve ser a base de
uma revolução bem-sucedida. Qualquer um que permaneça fiel à visão
de Satoshi acerca das criptomoedas se manterá, quer queira ou não,
como um lutador da liberdade, porque a descentralização radical do po-
der é a definição da Revolução, da nossa Revolução: da Revolução Sa-
toshi.
O estado continua sendo o maior criminoso de todos; seu poder
não deve ser subestimado, mas também não deve ser temido. A melhor
atitude e abordagem em relação ao estado que já vi foi a do falecido
Samuel E. Konkin III (SEK3), o pai do Agorismo e um velho compa-
nheiro de bebida. SEK3 atendia rotineiramente seu telefone com a sau-
dação “Smash the State”; sua atitude em relação ao estado era infalivel-
mente rebelde. E, no entanto, sua atitude não era a abordagem prática
que adotava em relação ao estado. Seu estilo de vida não enfatizava
confrontos diretos com a autoridade; desafiar era sua atitude, não seu
estilo de vida. Sempre que possível, SEK3 evitou contato e substituiu
quaisquer serviços valiosos que o estado usurpou do livre mercado –
como os bancos – com os privados. Suas ações eram um plano ambu-
lante sobre como derrotar o estado eliminando-o de sua vida, porque ele
sabia que a maneira mais eficaz de esmagar o estado era estabelecer
alternativas privadas para torná-lo irrelevante, ou seja: privar o estado
de sua vida privada.
O legado duradouro da SEK3 para a teoria anarquista foi o sis-
tema econômico-filosófico chamado Agorismo, que busca uma revolu-
ção pacífica por meio da contra economia. SEK3 o definiu como “o
estudo e prática de toda ação humana pacífica que é proibida pelo es-
tado”. A contra economia é a versão “mercado negro” da praxeologia

256
Lidando com o Crime sem o Estado

de Mises, a qual Mises define como “o estudo da ação humana”. O sis-


tema de SEK3 é o estudo da ação humana necessária para negar a pre-
sença do estado na vida pessoal e na sociedade. Esmague o estado em
atitude, substituindo-o na vida cotidiana. Não “esmague [literalmente]
o estado”; apenas contorne-o.
SEK3 teria se deleitado com a audácia da criptomoeda que foi
criada com a atitude “Smash the State”, mas que adota a abordagem de
evitar o confronto direto. Ele teria reconhecido imediatamente que es-
tabelecer uma moeda melhor e de livre mercado é a maneira mais se-
gura de enfraquecer a moeda fiduciária. Ele teria, com a mais absoluta
certeza, declarado a criptomoeda “a moeda contra econômica” – a mo-
eda do Agorismo. Mas mais do que isso. Em um piscar de olhos, o
SEK3 teria reconhecido as implicações das criptomoedas para a justiça
– exatamente porque elas evitam e substituem as leis estatais pelas do
livre mercado, da privacidade e dos contratos. Em minha mente, con-
sigo ver meu amigo Samuel tomando um gole da cerveja preta horrível
que ele adora, seguido por uma tragada em seu cachimbo constante-
mente presente, antes de anunciar: “A anarquia chegou!”

257
Posfácio
Eu pretendia terminar este livro discutindo o impacto da block-
chain na violência física, nos crimes de violência. Eu não posso. Não
acho que haja impacto. Não sei como a blockchain poderia impedir es-
tupros em becos, por exemplo. Eu poderia falar sobre colocar o trabalho
sexual em um registro financeiro aberto, mas isso seria um chá fraco, e
pareceria uma evasão. Este é um livro de teoria original, que explora o
que nunca foi dito antes sobre criptomoedas. Nem sempre sei para onde
as ideias estão me levando, mas o impacto na violência física não é um
desses destinos.
E é por isso que estou, agora mesmo, escrevendo o posfácio do
meu livro.
Minha jornada pelas criptomoedas começou em uma cozinha no
Chile. Fui a palestrante de destaque em uma conferência, que também
apresentou um painel de três outros especialistas em Bitcoin. Meu ma-
rido e eu decidimos alugar uma casa pelo AirBnb porque queríamos
estender aqueles dois dias em duas semanas de saltos pelo país, o que
foi mágico. A casa em que acabamos, no entanto, foi equipada para ca-
samentos. Tradução: Havia cerca de trinta camas amontoadas em apro-
ximadamente vinte quartos, que eram ligados por pisos feitos de com-
pensado rachado, abaixo dos quais havia um desnível de dois andares.
Não era uma casa; era uma aventura … com um banheiro funcionando.
Eu prefiro chamá-la de exótica.
A conferência abrigou os palestrantes e atendentes em um com-
plexo remoto, que rapidamente se encheu. Os organizadores nos pedi-
ram para receber os especialistas em Bitcoin. Nós concordamos com
prazer. Eram sujeitos agradáveis e apresentáveis – embora homens que
falavam de assuntos que não faziam sentido para mim. Felizmente, meu
marido desenvolve hardware e software para sistemas embarcados, en-
tão estou acostumada a nem sempre entender as coisas.
E então houve a manhã depois que eles chegaram. Um sujeito
dormiu até tarde. Um insistiu em preparar o café da manhã; não pre-
tendo caluniá-lo, porque ele era muito agradável e tentava ser um bom
hóspede. Mas as pessoas não cozinham perto de mim. Eu cozinho; você
come; nos damos bem. Ele cozinhou…

258
Posfácio

Então, eu estava de mau humor quando olhei do outro lado da


mesa do café da manhã para os olhos negros como carvão de Michael
Goldstein, que mais tarde descobri ser fundador do Instituto Satoshi.
Um jovem notável. Michael é apelidado de Bitstein por quem tem cari-
nho por ele… e, sendo sincera, tudo que você precisa fazer é conhecê-
lo para que isso aconteça. Quando olhei em seus olhos, tive uma sensa-
ção familiar, porque tenho espelhos no meu próprio banheiro. “Ele é um
fanático”, concluí. Acontece que gosto de fanáticos, dependendo do tó-
pico em discussão, é claro. E eu não tinha nada contra as criptomoedas,
que começaram a me interessar porque as pessoas que eu admirava as
levavam muito a sério.
Com um olhar inabalável, Bitstein me disse que a blockchain era
um registro financeiro aberto que daria luz à anarquia. Ok. Eu imedia-
tamente entendi o poder da cripto para contornar o sistema bancário
central… se fosse amplamente adotado; se não fosse proibido, se, Mas
por que anarquia?
Todas as minhas ressalvas eram políticas e totalmente diferentes
das de meu marido, que se juntou a nós depois de cerca de quinze mi-
nutos. Brad esperou até que Michael respirasse fundo e então disse uma
palavra: “escalabilidade”. Foi a primeira vez que Michael tropeçou. Ele
disse: “estamos trabalhando nisso”. Eu vi Brad perder algum interesse.
Mas eu não. Eu não sabia o que escalabilidade significava nesse
contexto, exceto no senso comum. Mas eu não me importei porque a
palavra “anarquia” tinha sido pronunciada, e isso eu sabia. Michael pa-
recia mais do que feliz em abandonar a escalabilidade para a política, e
eu investiguei por que ele achava que o alvorecer da liberdade havia
chegado como uma cavalaria em um algoritmo.
Michael respondeu, e não me convenceu, mas me instigou a ler.
Assim como meu velho amigo Jeff Tucker. Assim como o incrível
Stephan Kinsella. Outras pessoas tentaram aumentar minha consciência
também. Mihai Alisie, da Bitcoin Magazine, me pediu para escrever
para ele sobre o anarquismo, por exemplo. Acho que não agradeci ade-
quadamente a ele por ter tanta confiança em mim. E naquele ponto, sua
confiança provavelmente era infundada. Enviei um artigo para a Bitcoin
Magazine, que estava longe de ser o meu melhor trabalho. Isso atraiu
uma resposta melhor do que eu merecia: eles estavam dispostos a “tra-
balhar comigo”. Agradeci ao editor e recuei com a desculpa absoluta-
mente genuína de que não sabia se tinha algo original para contribuir
para a discussão. Eu não tinha nada de novo para dizer. Eu ainda não

259
Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

tinha entendido as arestas duras e frias da teoria cripto e não entendia


seu poder. O que significava que eu ainda não tinha demarcado a única
área onde eu poderia e posso contribuir com algo original: a integração
do criptoanarquismo com a rica história da teoria anarquista-libertária
que se estende por séculos.
À medida que lia mais, fiquei envergonhada de mim mesma.
Criptoanarquismo: o desenvolvimento político mais importante da mi-
nha vida ocorreu sem que eu percebesse, o que é imperdoável. Eu havia
gastado meu tempo com o libertarianismo “oficial” – institutos orienta-
dos por doações e definidos por doações, universidades financiadas por
impostos, revistas acadêmicas. Quando foi que a liberdade chegou em-
balada em dólares de impostos, prêmios e homenagens entregues em
jantares beneficentes? A liberdade é uma luta de rua. O criptoanar-
quismo tomou as ruas sem que eu percebesse. Mas agora eu o vejo.
Roger Ver. Nosso primeiro contato foi um e-mail que ele enviou
do nada. O e-mail de Roger me conquistou de primeira, porque ele usou
a palavra “voluntarismo”. Em 1982, fui uma das três pessoas que cria-
ram o movimento voluntarista moderno durante uma conversa fiada,
em um apartamento de dois quartos com aluguel recente em Hol-
lywood, Califórnia. Lembro-me de meus dedos literalmente zumbindo
com a excitação das ideias e planos que estávamos forjando na época:
Carl Watner, George H. Smith e eu. Mas, principalmente, Carl. Era e é
quase inacreditável para mim que, décadas e décadas depois, um visio-
nário voluntarista chamado Roger estivesse batendo à minha porta (por
assim dizer). Ele me pediu para escrever para seu site.
Roger teve um bom timing. Em linguagem de ficção científica,
eu finalmente grokkei (entendi) o bitcoin; Além disso, tiro meu chapéu
para Robert A. Heinlein por inventar essa palavra. E tiro meu chapéu
para Roger e toda a equipe do bitcoin.com por nunca – e quero dizer,
nem uma vez, de qualquer maneira – terem tentado influenciar minhas
ideias enquanto eu as desenvolvia nas minhas tentativas (às vezes desa-
jeitadas) de integrar o criptoanarquismo nas tradições mais amplas do
liberalismo clássico, da economia austríaca e do anarquismo individu-
alista.
A montagem do livro se transformou em uma reescrita maciça,
seguida por um período de edição feroz. O livro diante de você agora é
baseado nas colunas que eu serializei no bitcoin.com, mas pelo menos
metade do material é novo – especialmente a seção sobre justiça.

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Posfácio

Antes de encerrar, devo abordar outro aspecto do criptoanar-


quismo. Eu não esperava esse efeito colateral benéfico, mas aí está ele;
a vida é muitas vezes inesperada. O mundo cripto me fez jovem nova-
mente.
Tive a imensa sorte de fazer amizade e passar muitos anos com
pessoas que ajudaram a fundar o movimento libertário. Murray Roth-
bard costumava brincar, nas conferências de 1980, dizendo que o liber-
tarianismo poderia ser eliminado por uma bomba bem colocada. Ele
estava certo, mas agora o movimento é imenso. Vão precisar de uma
bomba maior.
Ainda assim, há uma desvantagem para toda essa minha sorte: as
pessoas com quem cresci na intelectualidade adulta agora me fazem
sentir velha, principalmente porque muitas delas estão mortas; eu ge-
ralmente era a mais nova na sala. Sentir-se velho é sentir-se cansado,
sem nada à vista que faça seus olhos brilharem.
Lembro-me de Murray e de sua paixão– lembro-me tão vivida-
mente …, Mas, ao longo dos anos, algo deu errado com sua paixão.
Veio da raiva, eu acho, e se expressou atacando outras pessoas. Lembro-
me de um jantar pós-conferência em que um colega teve a infelicidade
de dizer algo positivo sobre Keynes. E então – Deus nos ajude! – ele
elaborou. Murray finalmente explodiu em um discurso retórico com sua
voz chiada broklinesca, e o sujeito começou a recuar. Acho que ele teria
empurrado sua cadeira para fora do restaurante, se essa fosse uma pos-
sibilidade. O colega admitiu que Keynes podia estar errado sobre “esta”
questão, e sobre “aquela” questão. E que, provavelmente, Keynes po-
deria ser considerado “fraco” no contexto histórico. Murray desceu a
mão aberta sobre a mesa e disse em voz alta: “E Hitler foi ‘fraco’ com
os judeus!”. Todos rimos, embora sabendo que aquilo havia sido um
ataque… e um aviso.
A cripto brilha como uma coisa girando ao sol; e o brilho é limpo,
porque não vem da raiva ou de humilhação de alguém ou qualquer coisa
parecida. A paixão que vem dela é positiva. Uma porta se abriu, e não
sei onde o caminho que ela mostra me levará, porque nunca poderia ter
previsto até onde cheguei. Que os tijolos amarelos sejam gentis comigo.
Uma coisa eu sei: estou em boa companhia; a crew do bitcoin.com
não foi nada menos que decente e sorridente para essa mulher que ousou
se intrometer em seu mundo. Isso significa muito para mim. Não sei
onde vou parar em seguida, mas sei que a tecnologia – e não apenas as
criptos – vai nos dar uma aventura selvagem pelo resto de nossas vidas.

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Revolução Satoshi: A Revolução das Esperanças Crescentes

Minhas mãos estarão sobre o teclado, dedicadas a colocar as mudanças


corriqueiras em perspectiva histórica, mesmo enquanto elas estiverem
acontecendo.
Eu tenho uma chance de fazer isso … porque eu sou jovem nova-
mente; estou esperançosa. E nada, nada é impossível. Foi isso que este
livro significou para mim. Faço uma pausa nesta jornada, neste exato
momento, para te agradecer por fazer parte dela:
Seja bem-vindo à Revolução Satoshi.

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